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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Acordos, projetos e programas: uma abordagem antropológica das práticas e dos saberes administrativos da GTZ no Brasil RENATA CURCIO VALENTE Novembro, 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

Acordos, projetos e programas: uma abordagem antropológica das

práticas e dos saberes administrativos da GTZ no Brasil

RENATA CURCIO VALENTE

Novembro, 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

MUSEU NACIONAL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA

SOCIAL

Acordos, projetos e programas: uma abordagem antropológica das

práticas e dos saberes administrativos da GTZ no Brasil

RENATA CURCIO VALENTE

PPGAS - UFRJ

Rio de Janeiro, RJ

2007

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RENATA CURCIO VALENTE

Acordos, projetos e programas: uma abordagem antropológica das

práticas e dos saberes administrativos da GTZ no Brasil

Tese apresentada como pré-

requisito ao Doutoramento em

Antropologia Social no Programa

de Pós-Graduação em Antropologia

Social do Museu Nacional da

Universidade Federal do Rio de

Janeiro, sob orientação do Prof. Dr.

Antonio Carlos de Souza Lima.

PPGAS - UFRJ

Rio de Janeiro, RJ

2007

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FOLHA DE APROVAÇÃO

Renata Curcio Valente

Acordos, projetos e programas: uma abordagem antropológica das práticas e dos

saberes administrativos da GTZ no Brasil

Rio de Janeiro, 22 de novembro de 2007.

_______________________________________________________________ Presidente, Prof. Dr. Antonio Carlos de Souza Lima, PPGAS/MN/UFRJ

_______________________________________________________________ Prof. Dr. José Sérgio Leite Lopes, PPGAS/MN/UFRJ

_______________________________________________________________ Prof. Dra. Beatriz Maria Alásia Heredia, IFCS/UFRJ

_______________________________________________________________ Prof. Dra. Kelly Cristiane da Silva, Deptº Antropologia/UNB

______________________________________________________________ Prof. Dr. Aurélio Vianna da Cunha Lima Junior, Fundação Ford

_______________________________________________________________ Prof. Dr. Adriana de Resende Barreto Vianna, PPGAS/MN/UFRJ (Suplente)

____________________________________________________________________ Dr. João Paulo Macedo e Castro, pesquisador associado, DA/MN/UFRJ (Suplente)

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Ficha Catalográfica

Valente, Renata Curcio Acordos, projetos e programas: uma abordagem antropológica das práticas e saberes administrativos da GTZ no Brasil. Renata Curcio Valente – Rio de Janeiro: UFRJ/PPGAS, 2007. xv. f380 . 2v. Orientador: Antonio Carlos de Souza Lima Tese (Doutorado) - UFRJ/PPGAS/ Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, 2007. Referências bibliográficas: f. 381-400. 1. Cooperação internacional 2.Administração pública.3. GTZ. 4. Meio Ambiente. 5. Indigenismo 6. Desenvolvimento I. Souza Lima, Antonio Carlos de. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. III. Intervenção Tácita ou Cooperação Técnica? Práticas e Saberes Administrativos de uma Agência Alemã no Brasil.

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Dedicatória

Dedico esta tese

ao meu filho Gil Pedro,

pela imensa generosidade e sabedoria que traz em si , fonte de luz na minha vida,

aos meus pais, Pedro e Sonia, e a meu irmão Flávio, referências de valores e de amores,

ao Rick, por sua sensibilidade

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Resumo A presente tese tem como objetivo investigar as práticas administrativas adotadas

por uma agência governamental alemã de abrangência global, a GTZ, (Deutsche

Gesellschaft für Technische Zusammenarbeit), no Brasil, nos anos 90, particularmente

em políticas governamentais brasileiras para meio ambiente e populações indígenas. Há

mais de quarenta anos atuando no Brasil, mais recentemente, a GTZ tem redefinido sua

orientação de ação de projetos técnicos, tecnológicos e agrícolas para se concentrar na

área de meio ambiente e conservação da Floresta Amazônica, eixo a partir do qual

populações indígenas têm sido contempladas.

A tese se divide em três partes: a primeira busca fazer um panorama em relação às

abordagens teóricas sobre o tema, sobretudo focalizando na perspectiva antropológica. A

segunda parte da tese situa o contexto da produção conceitual e institucional da “política

de cooperação para o desenvolvimento” na Alemanha: do Ministério Federal de

Cooperação Econômica e Desenvolvimento, o BMZ (Bundesministerium für

wirtschaftliche Zusammenarbeit und Entwicklung), que é o núcleo de integração de um

amplo conjunto de instituições entre as quais escolhemos a GTZ por ser a principal no

que concerne à cooperação técnica. Nesta parte, é atribuída especial atenção ao papel e às

trajetórias pessoais dos “peritos técnicos“. Por fim, a terceira parte focaliza os diferentes

modos de intervenção da GTZ no Brasil que são definidos por cooperação técnica.

Tomou-se três eixos de investigação etnográfica: o escritório da GTZ no Brasil e seus

funcionários, um projeto para populações indígenas e eventos públicos organizados pela

GTZ. A pesquisa foi baseada em levantamento e análise documental, além de observação

participante no escritório da GTZ, entrevistas com seus funcionários e a participação em

seminários, eventos comemorativos e diplomáticos organizados pela instituição alemã,

realizados entre 2002 e 2005.

1. GTZ. 2. Meio Ambiente. 3. Indigenismo 4. Cooperação internacional 5.Administração

pública. 6. Desenvolvimento

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Abstract

The present thesis main objective is to investigate the administrative practises of a

wordlwide institution, the German Technical Cooperation Agency, GTZ (Deutsche

Gesellschaft für Technische Zusammenarbeit), particularly in brazilian governmental

politics for environment and indigenous people. For more than forty years acting in

Brazil, most recently, the GTZ has changed her focus from technological and agricultural

to environment areas, specially to the Amazon Forest conservation, a field where

indigenous people has been included as a cooperation theme.

The thesis has three parts: the first one seeks to stablish a survey of the literature

related to theoretical approachs about the subject treated, technical cooperation, above all

focusing on the anthropological perspective. The second part locates the context of the

conceptual and institutional production of the politics of development cooperation in

Germany. The Federal Ministry of Economic and Development Cooperation, the BMZ

(Bundesministerium für wirtschaftliche Zusammenarbeit und Entwicklung) is the axis of a

large group of institutions from which we chose the GTZ for being one of its most

important institutions and the one that has the governmental attributes to implement

technical cooperation. Special attention is due to the life experiences of some technical

experts. At last, the third part we present an analisis of the different circumstances where

ethnographic research was taken: in the brazilian GTZ office in Brasília and its

employees; a indigenous people project and public events organized by the GTZ. The

research was based on documentary survey and analisis, besides participant observation

at GTZ office and taking part on public events organized by the german institution

between 2002 and 2005.

1. GTZ. 2. Environment. 3. Indigenous Peoples. 4. International Cooperation. 5.Public

Administration. 6. Development.

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Agradecimentos

A todos aqueles que colaboraram de diferentes formas para a elaboração desta

tese, com entrevistas ou publicações concedidas, e a todas as pessoas muito especiais na

minha vida que estiveram ao meu lado nesse longo processo, sou imensamente grata.

Foram várias as formas de ajuda, que não se limitam ao campo da pesquisa, mas

transcende-o, alcançando aspectos pessoais e profissionais da minha vida em sua

contribuição para que alcançasse este resultado.

Antonio Carlos de Souza Lima, mais do que um orientador, foi para mim um

desses encontros raros. Poucas vezes linear em seus questionamentos, às vezes duros e

desconcertantes, mas certamente precisos e irônicos, fez com que eles funcionassem

comigo como uma força de impulsão diante de minha teimosa resistência em me colocar

como autora e antropóloga. Foi um amigo e um excelente dialogador ao longo de toda a

tese, papel a que se propôs, em clara opção a não ser pedagógico. Além disso, viu com

olhos de raio X minha natureza oscilante, mas ao mesmo tempo persistente, desafiando-

me a combates que não sabia ser capaz de travar ou vencer, fazendo-o sempre com

sabedoria e humanidade. A ele, devo mais que muito.

Ao corpo de professores do PPGAS, especialmente a João Pacheco de Oliveira, a

José Sérgio Leite Lopes e a Ligia Sigaud que me apresentaram um universo de questões e

reflexões instigantes do campo da antropologia.

Gostaria de deixar aqui registrado meu agradecimento a CAPES a FINEP e

FAPERJ, instituições de apoio à pesquisa, cujos recursos foram fundamentais para esta

tese. A Capes, agradeço pela bolsa concedida ao longo de todo o doutorado. Os recursos

concedidos pela FINEP e FAPERJ, por meio de projetos desenvolvidos por meu

orientador, contribuíram em muito para a finalização da tese. Assim, agradeço à FINEP

pelo apoio financeiro viabilizado por meio do projeto “Políticas para a "Diversidade" e os

Novos "Sujeitos de Direitos": estudos antropológicos das práticas, gêneros textuais e

organizações de governo, coordenado por meu orientador Antonio Carlos de Souza Lima

(MN/UFRJ), Adriana de Resende Barreto Vianna (MN/UFRJ) e Eliane Cantarino

O´dwyer (UFF), por meio do Convênio FINEP nº 01.06.0740.00 – REF: 2173/06 –

Processo FUJB nº 12.867-8, nos quadros do Laboratório de Pesquisas em Etnicidade,

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Cultura e Desenvolvimento (LACED)/Setor de Etnologia – Dept. De

Antropologia/Museu Nacional-UFRJ.

Também foram concedidos recursos da FINEP para a tese, por meio do projeto

“As políticas públicas e os direitos culturalmente diferenciados no Brasil pós-

Constituição de 1988: uma antropologia das transformações sócio-culturais da

administração pública no Brasil”, sob a condução de Antonio Carlos de Souza Lima,

parte do projeto Transformações sociais e culturais no Brasil contemporâneo do PPGAS

financiado pela FINEP, por meio do Convênio Contrato 01.05.0304.01 REF: 3964/04. A

isso, devo manifestar minha gratidão.

Por fim, agradeço à FAPERJ pelo apoio por meio do projeto “Estudo

antropológico da administração pública no Brasil: das formas de incapacitação civil e

social e da idéia de "homogeneidade nacional" aos "sujeitos especiais de Direito” e à

construção de uma sociedade plural. Pesquisa, debate e divulgação”, financiado como

Bolsa Cientista do Nosso Estado Faperj (2004-2006), sob a responsabilidade de Antonio

Carlos de Souza Lima.

A todo o pessoal do PPGAS, particularmente às secretárias Tânia e Beth, além do

Afonso, pela paciência, orientação em processos burocráticos da universidade e constante

disposição em ajudar. Às bibliotecárias Isabel, Cristina e Carla, pelo primor no

atendimento. Á Carmem, sempre prestativa nas reproduções da copiadora.

Agradeço imensamente ao esforço hercúleo de Maria Lucia Resende empreendido

na revisão da tese, em prazo exíguo. A ela, meu agradecimento de coração por sua

correção perfeccionista.

Para o levantamento de informações para a pesquisa, sou muito grata à

colaboração de toda a equipe da GTZ no Brasil, sem a qual a tese não teria sido possível.

Agradeço particularmente pelas entrevistas concedidas, às explicações informais, ao

apoio em dúvidas freqüentes sobre a instituição e na língua alemã a: Doris Thurau, Gert

Antonius, Claudia Herlt, Hans Kruger, Sondra Wentzel, Viktor Dohms, Monika

Grossman, Thomas Fatheuer, Gustavo Wachtel, Anselm Duchrow, Maria Auxiliadora

Cruz de Sá Leão, Ana Lucia Palfinger, Andréa Terayama, Regina, Lucia Loebell, Elena

Soltau, Rosani, Adriana e Jorge, entre outros que minha falha memória talvez peque em

não lembrar.

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Também àqueles, de outras instituições alemãs, como Rainer Willingshoffer, da

Embaixada da República Federal da Alemanha no Brasil, a Dietmar Wenz, do banco

KfW no Brasil, a Albert L.e à Marisa M., ex-funcionários da GTZ, cujos depoimentos

foram absolutamente importantes para entender a história da atuação das instituições de

cooperação alemã no Brasil, assim como da própria GTZ.

Agradeço ainda a disponibilidade de outros alemães em colaborar: Jens Schneider

forneceu uma rede de profissionais alemães que trabalham ou trabalharam no Brasil

através de redes de organizações articuladas por ideais ambientalistas; a Karin Urschel,

ex-diretora da Fundação Heinrich Böll no Brasil e à Regine Schönenberg, cuja visão

crítica foi de grande inspiração para algumas questões aqui apresentadas.

Ao pessoal do PPTAL – Artur Nobre Mendes, Juliana Selanni, Márcia Gramkow,

Themis Quezado de Magalhães, Marcos Alves, Maria Helena Ortolan e Slowacki de

Assis, pelos esclarecimentos em relação aos procedimentos e às normas de execução do

projeto.

Agradeço à Elke Constanti, da Agência Brasileira de Cooperação, sempre solícita,

cordial, e mesmo didática em relação aos procedimentos da cooperação técnica brasileira.

Da mesma forma, sou grata à Valdete Silveira, da Secretaria de Assuntos Internacionais

do Ministério do Planejamento (SEAIN/MPOG), pela boa vontade em traduzir os

meandros dos processos de execução de projetos de cooperação financeira. Agradeço

ainda, particularmente, a Aurélio Vianna, Alfredo Wagner B. de Almeida, Adriana

Ramos e Henyo Barretto Filho pelas entrevistas concedidas e colaboração.

Ao pessoal do CTI, especialmente à Maria Elisa Ladeira e a Gilberto Azanha, que

me possibilitaram a pesquisa em acervos pessoais e institucionais do CTI.

A todos os amigos e “parentes” que me ajudaram nas incursões pelas cidades

onde estive para fazer a pesquisa – Manaus, Brasília, São Paulo, Belo Horizonte e Rio de

Janeiro, agradeço especialmente a hospitalidade de Divaci, em Brasília, à família Neves,

em particular Marili e Napoleão que me acolheram em Manaus, ao Alexandre, que nos

confiou seu apartamento em Brasília por dois meses, ao meu primo Fábio Curcio, pela

gentileza de me apoiar em São Paulo, e à Ludmila, em Belo Horizonte.

Em relação à família, especialmente de meus amados pais, Pedro e Sonia, do meu

irmão, Flávio e de meu ex-companheiro, Gil, nada teria sido possível sem o carinho

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reconfortante e as condições para o trabalho, desde emocionais, financeiras, de tempo e

de amor disponíveis sempre, a mim e ao meu filho, em todos os momentos. Gil Velho,

pai do meu filho, agradeço pela sua dedicação a ele durante a elaboração da tese e por

tudo de bom que nos aconteceu ao longo de dez anos de vida em comum. Um

agradecimento também devo ao meu primo, Ricardo, por todos os momentos de angústia

e alegria comigo compartilhados e pela torcida para que terminasse a tese.

Gostaria de registrar meu agradecimento especial a José Carlos Levinho, Diretor

do Museu do Índio, por sua força e apoio incondicional em todos os momentos em que

precisei. Ao Alex, “companheiro” de lutas antigas e futuras, pelo cafezinho reconfortante,

pelos debates políticos calorosos.

Aos amigos de Brasília: Lea, André Saboya Martins e Celso França, pelas

conversas, interesses em comum, pelo acolhimento e apoio. E um agradecimento aos

colegas da Funai, Luiz Fernando e especialmente Guilherme Carrano e Nieta Barros, do

Departamento de Recursos Humanos;

Aos amigos e alunos da Estácio, pela paciência e compreensão em momentos

difíceis, e aos colegas de sala e de labuta, um agradecimento especial a Solange, Etiène

Magalhães, Carla, Marta Moreno e a Wania Santanna e, especialmente, ao amigo Adair

Rocha, como folião que é, acreditou sempre.

À Sonia Monteiro, por sua presença e apoio em um momento bastante importante

de meu retorno ao Rio de Janeiro, quando me ajudou a clarear a vista, a redescobrir

pérolas em mim.

Aos meus queridos e especiais amigos do PPGAS, tenho agradecimentos a fazer à

Mariana Paladino, a José Gabriel e à Maria Barroso-Hoffman, amigos sempre solidários

em compartilhar dúvidas e questionamentos próprios ao campo do indigenismo e da

“antropologia do desenvolvimento” em papos que foram fundamentais para uma

conversão, às vezes árida, à antropologia. Ao trio: Cecília Mello, Ingrid Weber e Flávia

Pires, amigas por quem tenho carinho especial e com quem compartilhei alguns

momentos muito especiais. À Alexandra e a Fabio Mura, ao Wagner, Marcelo Piedrafita,

a Carlos Augusto Freire e ao Francisco, minha gratidão.

Aos amigos da capoeira, um agradecimento por compartilharmos uma mesma

roda ao toque do berimbau, roda esta que vimos crescer com a chegada de nossos filhos,

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também amigos entre si. A cada dia, intensificam-se nossos laços de amizade, nossa

alegria de estar junto, de compartilhar. Por isso, agradeço a Mariane e ao Tatão, ao Dudu

e à Lola, à Renatinha e ao Zeca, e à Roberta e Flavinho.

Na Ilha do Governador fiz minhas mais antigas amizades, até hoje sólidas. Ali,

em meio às águas mansas da Baía de Guanabara, crescemos em uma ilha onde vivíamos

com liberdades e com prazeres raros em uma cidade grande, na rua, palco de nossas

brincadeiras, onde andava de bicicleta e tomava banho de chuva nos temporais de verão

depois da escola, fantasiando a vida. Anete é a amizade mais antiga. Sua solidariedade foi

sempre incentivo para continuar. Patrícia Paladino, amiga literária, agradeço por sua

intensa criatividade, estímulo revigorante e desafiador no aprimoramento do processo de

escrita; ao Cira e à Letícia, pela certeza na vida e a clara convicção de que a arte está no

ar; ao Person, pelas conversas filosóficas que me deram fôlego no período final da tese.

Às crianças quero fazer um agradecimento especial: amiguinhos de meu filho,

amiguinhos meus, foram eles em muitos momentos a alegria que me abasteceu, a leveza

que me elevou. Descobri isso com Gil Pedro, um filho mágico, meu Peter Pan da Terra

do Nunca, meu Pequeno Príncipe encantado, herói de minhas estórias, meu pequeno

samurai. Sua vinda e o amor infinito que despertou em mim tornaram-me mais

humanizada, mais grata e mais compreensiva mas, ao mesmo tempo, combativa e

corajosa. Suas reflexões constantemente me colocam questões filosóficas profundas, e a

cada dia aprendo com ele um pouco mais de uma sabedoria milenar que ele aporta e que

procuro descobrir também em mim. Sua vinda trouxe-me ainda o universo infantil destes

seres pequeninos, lúdicos, tão intensos, levados, risonhos, barulhentos, bagunceiros

pestinhas. Por todas as vezes que me ajudaram com sua alegria na elaboração da tese,

agradeço ao Gil Pedro, e também a toda a turma: aos meus filhos postiços Taoã, Tainá, às

já crescidas Flora e Maíra, aos amigos Gabriel Polpa, Leandro, João Pascoal, Daniel

Gama, Gabriel e Mateus Fausto, João e Vicente Vilela, Francisco e Pedro Cruz, Ana

Terra e Pedrinho Rocha Leão, Sabrina Villas, Catarina Terreri, Cauê Ferraz, Leo de

Arruda e Breno Barthollo.

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Resumo

Ficha Catalográfica........................................................................................................... 5  Dedicatória......................................................................................................................... 6  Resumo............................................................................................................................... 7  Abstract.............................................................................................................................. 8  Agradecimentos................................................................................................................. 9  Lista de siglas e abreviaturas ......................................................................................... 17  I. Introdução .................................................................................................................... 23  

Objetivo ................................................................................................................36  Metodologia .........................................................................................................38  Setting ...................................................................................................................54  A divisão da tese...................................................................................................57  

Parte I – Cooperação técnica internacional como problema para análise antropológica ................................................................................................................... 64  Capítulo 1 – O PPG-7 e os sentidos entre cooperação técnica, povos indígenas e alemães ............................................................................................................................. 65  

A Eco-92 e o desenvolvimento sustentável...........................................................66  Um modelo de cooperação internacional em ação..............................................77  Os alemães no PPG-7 - Intervir e conceder .......................................................81  Clima e biodiversidade.........................................................................................84  

Capítulo 2 - Desvendando a cooperação técnica para o desenvolvimento................. 94  Relações internacionais e cooperação internacional como ordem .....................94  Antropologia e cooperação para o desenvolvimento...........................................97  Cooperação como ação social comum (Práticas) .............................................102  Cooperação governamental ...............................................................................109  Cooperação técnica............................................................................................112  

Parte II. Supostos e contextos da intervenção alemã no Brasil ................................ 117  Capítulo 3. Origens da cooperação técnica: uma história oficial ............................. 120  

A cooperação internacional no pós-guerra .......................................................122  A guerra e a diplomacia .....................................................................................125  A Resolução 200 do ECOSOC ...........................................................................128  O Plano Marshall e o Ponto Quatro ..................................................................129  Os primórdios da cooperação técnica no Brasil ...............................................134  Anos 60-70..........................................................................................................136  A criação da ABC...............................................................................................139  Fluxograma simplificado do ciclo de projetos Brasil-Alemanha ......................143  Negociações intergovernamentais: Brasil e Alemanha .....................................144  

Capítulo 4. Aparato de intervenção alemã em administrações estrangeiras: O BMZ e as instituições implementadoras ............................................................................... 148  

Segunda Guerra Mundial e cooperação para desenvolvimento ........................149  Discursos do desenvolvimento ...........................................................................156  O debate sobre desenvolvimento na Alemanha..................................................158  Os temas do desenvolvimento.............................................................................162  O cooperativismo dos alemães...........................................................................168  A visibilidade da necessidade de cooperar ........................................................169  Idealistas ou heróis? ..........................................................................................170  As instituições do BMZ.......................................................................................174  Cooperação no sentido restrito ..........................................................................178  Cooperação no sentido amplo............................................................................182  

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Organizações eclesiásticas ................................................................................183  Fundações políticas............................................................................................187  

Parte III. Modos de intervenção da GTZ............................................................... 193  Capítulo 5. A GTZ no Brasil e a produção de saberes administrativos no exterior......................................................................................................................................... 197  

A identidade desconhecida da GTZ....................................................................198  A estrutura internacional da GTZ ......................................................................204  Cooperação técnica............................................................................................205  Diretrizes e princípios da cooperação técnica alemã........................................207  A visão sobre a GTZ no Brasil ...........................................................................214  Cooperação menos técnica? ..............................................................................216  Temas .................................................................................................................217  Análise dos projetos no Brasil por programa ....................................................223  O Programa ProRenda ......................................................................................223  Pequenas e médias empresas .............................................................................225  Meio ambiente ....................................................................................................226  O escritório da GTZ no Brasil e a produção de um saber administrativo no exterior ...............................................................................................................228  Organização administrativa e física do escritório.............................................229  O desenho administrativo do escritório .............................................................233  A língua da burocracia ......................................................................................236  

Capítulo 6: Os funcionários da GTZ.......................................................................... 241  A categoria “alemães”.......................................................................................249  Conhecendo o grupo ..........................................................................................250  Dificuldades com os peritos e os funcionários da GTZ e a língua alemã .........251  A relação entre alemães e brasileiros nos setores públicos ..............................254  Peritos: representações e auto-representações .................................................256  Origens de uma mesma trajetória em comum: solidariedade e cooperação.....257  Trajetórias pessoais ...........................................................................................264  

Capítulo 7. Ver e ser visto: as alianças locais e as redes alemãs em evidência. ....... 281  Os rituais da cooperação ...................................................................................281  A ordem que estrutura o ritual ...........................................................................283  A eficácia dos eventos ........................................................................................287  Os encontros.......................................................................................................291  Efeitos de Estado: energias renováveis..............................................................291  Efeitos de visibilidade: a comemoração dos quarenta anos de cooperação .....295  A organização da festa .......................................................................................300  A festa .................................................................................................................302  Quanto vale uma festa? ......................................................................................305  Memória e história .............................................................................................307  

Capítulo 8. Disciplina e reprodução de saberes em um projeto de cooperação técnica, o PPTAL .......................................................................................................... 309  

O KfW e os índios brasileiros, Brasília, 2002...................................................309  O PPTAL para os alemães .................................................................................311  O PPTAL ............................................................................................................317  Antecedentes históricos ......................................................................................324  As peças do PPTAL ............................................................................................333  O PPTAL e as redes do indigenismo..................................................................337  A missão de maio de 1992: as redes ambientais do Banco Mundial .................342  A entrada da cooperação alemã: a missão de agosto 1992...............................347  

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As mudanças no projeto .....................................................................................349  A cooperação técnica do PNUD ........................................................................352  A entrada da GTZ: seminários ...........................................................................357  A demarcação piloto ..........................................................................................360  Apoio à SETEC...................................................................................................363  A vinda dos peritos .............................................................................................366  

Considerações Finais: Santo de casa não faz milagre................................................ 370  BIBLIOGRAFIA........................................................................................................... 380  Anexo de Documentos: ................................................................................................. 401  

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Lista de siglas e abreviaturas

ABA - Associação Brasileira de Antropologia

ABC - Agência Brasileira de Cooperação do MRE

ABONG - Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais

AMA - Projeto de Apoio ao Monitoramento de Análise do PP-G7

BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento

BIRD - Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento ou Banco Mundial

BMD - Bancos Multilaterais de Desenvolvimento

BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul

CAD - Comitê de Assistência ao Desenvolvimento

CCB - Comissão de Coordenação Brasileira do PP-G7

CCC - Comissão de Coordenação Conjunta do PP-G7

CCD - Comissão de Coordenação dos Doadores do PP-G7

CCPY - Comissão pela Criação do Parque Yanomami

CE - Comissão Executiva do PP-G7

CEB - Comunidades Eclesiais de Base

CEC - Comissão das Comunidades Européias

CEDI - Centro Ecumênico de Documentação e Informação

CEPAL - Comissão Econômica para América Latina e Caribe

CGDOC - Coordenação Geral de Documentação

CGPE - Coordenação Geral de Projetos Especiais

CGPIMA - Coordenação Geral de Meio Ambiente

CIDA - Canadian International Development Agency

CIVAJA - Conselho Indígena do Vale do Javari

COFIEX – Comissão de Financiamentos Externos

COIAB - Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira

COICA - Coordenadoria de las Organizaciones Indigenas de la Cuenca Amazonica

CNUMAD - Conferência das Nações Unidas para Meio Ambiente e Desenvolvimento

(ECO-92 ou Rio-92)

CNS - Conselho Nacional dos Seringueiros

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CTBR - Cooperação Técnica Bilateral Recebida

CTI - Centro de Trabalho Indigenista

CTMR - Cooperação Técnica Multilateral Recebida

CTPD - Cooperação Técnica para Países em Desenvolvimento

CUT - Central Única de Trabalhadores

DAC - Development Assistance Committee (Comitê de Assistência ao Desenvolvimento)

DAF - Diretoria de Assuntos Fundiários

DFID - Agência Inglesa de Cooperação Internacional

ECOSOC - Conselho Econômico e Social

FAOR - Fórum da Amazônia Oriental

FASE - Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional

FINEP – Financiadora de Estudos e Projetos

FMI - Fundo Monetário Internacional

FMV - Fundação Mata Virgem / Rain Forest Foundation

FOIRN - Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro

FUNAG - Fundação Alexandre de Gusmão

FUNAI - Fundação Nacional do Índio

FVA - Fundação Vitória Amazônica

G7 - Grupo dos Sete: Estados Unidos, Reino Unido, França, Alemanha, Itália, Canadá e

Japão

GEF - Global Environmental Facility (Fundo Global para o Meio Ambiente)

GTA - Grupo de Trabalho Amazônico

IAG - International Advisory Group (Grupo Consultivo Internacional)

IAEA - International Atomic Energy Agency

IBAMA - Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis

IBASE - Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas

ICAO - International Civil Aviation Organization

IEA - Instituto de Estudos Amazônicos e Ambientais

INESC - Instituto de Estudos Sócio-Econômicos

IPHAE - Instituto de Pré-História, Antropologia e Ecologia

ISA - Instituto Socioambiental

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KOINONIA – Koinonia Presença Ecumênica e Serviço

MMA - Ministério do Meio Ambiente

MPOG - Ministério de Orçamento, Planejamento e Gestão

MPST - Movimento pela Sobrevivência da Transamazônica

NAEA - Núcleo de Altos Estudos Amazônicos

OCDE - Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico

ODA - Official Development Assistance (Assistência Oficial ao Desenvolvimento)

OEA - Organização dos Estados Americanos

OEEC - Organisation for European Economic Co-operation (Organização para

Cooperação Econômica Européia)

OIT - Organização Internacional do Trabalho

OMS - Organização Mundial de Saúde

ONG - Organização Não-Governamental

ONU - Organização das Nações Unidas

OTAN – Organização para o Tratado do Atlântico Norte

OXFAM – Oxford Committee for Famine Relief (Comitê de Oxford para o Alívio da

Fome)

PNUD/UNDP - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

PPG-7 - Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil

PPTAL - Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia

Legal

PDA – Subprograma Projetos Demonstrativos tipo A

PDPI - Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas

PETI - Projeto Estudos Sobre Terras Indígenas no Brasil

PROTEGER - Projeto de Mobilização e Capacitação em Prevenção de Incêndios

Florestais na Amazônia

PROMANEJO - Projeto de Apoio ao Manejo Florestal Sustentável da Amazônia

PROVÁRZEA - Projeto de Manejo dos Recursos Naturais da Várzea

RESEX - Projeto de Reservas Extrativistas

RFT - Rain Forest Trust Fund (Fundo Fiduciário para Florestas Tropicais)

RMT - Revisão de Meio Termo

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SAE - Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República

SEAIN – Secretaria de Assuntos Internacionais (do Ministério de Planejamento,

Orçamento e Gestão, MPOG)

SEMAM - Secretaria de Meio Ambiente

SEAIN - Secretaria de Assuntos Internacionais do Ministério de Orçamento,

Planejamento e Gestão

SCA - Secretaria de Coordenação da Amazônia

SPRN – Subprograma de Políticas de Recursos Naturais

UNAIDS - Agência das Nações Unidas para AIDS

UNCTAD - United Nations Conference on Trade and Development (Conferência das

Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento.

UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura

UNRRA - United Nations Relief and Reabilitation Administration

WHO - World Health Organization

WMO - World Metheorological Organization

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Alemanha

AG-KED - Arbeitsgemeinschaft Kirchlicher Entwicklungsdienst (Grupo de Trabalho

sobre o Serviço das Igrejas para o Desenvolvimento)

AS - Aktionsgemeinschaft Solidarische – (Comunidade de Ação Mundo Solidário)

BfW ou PPM - Brot für die Welt (Pão para o Mundo)

BMZ - Bundesministerium für wirtschaftliche Zusammenarbeit und Entwicklung

(Ministério Federal de Cooperação Econômica e Desenvolvimento)

CDG - Carl Duisberg Gesellschaft (Fundação Carl Duisberg)

CDU - União Democrática Cristã

CIM – Centrum für Internationale Migration und Entwicklung (Centro de Migração

Internacional e Desenvolvimento ou Programa de Peritos Integrados)

CSU - União Social Cristã

DAAD - Deutscher Akademischer Austauschdienst (Serviço Alemão de Intercâmbio

Acadêmico)

DED - Deutscher Entwicklungsdienst (atribuição atual do Brasil para SACTES)

DEG - Deutsche Investitions und Entwicklungsgesellschaft mbH (Sociedade Alemã para

o Desenvolvimento e Investimento Ltda.)

DG - Die Grünnen (Partido Verde)

DGRV - Deutscher Genossenschafts und Raiffeisenverband e.V. (Confederação das

Cooperativas da Alemanha Federal)

DSE - Deutsche Stiftung für Intenationale Entwicklung (Fundação Alemã para o

Desenvolvimento Internacional)

DÜ - Dienste in Übersee (Serviços em Ultramar)

DW - Deutsche Welthungerhilfe (Fundação Agrária Alemã)

EMW - Evangelisches Missionwerk (Obra Missionária Evangélica)

EZE - Evangelische Zentralstelle für Entwicklungshilfe (Central Evangélica de Ajuda

para o Desenvolvimento ou Associação Evangélica de Cooperação e Desenvolvimento)

FDP - Partido Democrático Liberal

FES - Friedrich Ebert Stiftung (Fundação Friedrich Ebert)

FNS - Friedrich Naumann Stiftung (Fundação Friedrich Naumann)

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GTZ - Deutsche Gesellschaft für Technische Zusammenarbeit (Agência Alemã de

Cooperação Técnica)

HBS - Heinrich Böll Stiftung – Fundação Heinrich Böll

HSS - Hans Seidel Stiftung – Fundação Hans Seidel

INWENT - Internationale Weiterbildung und Entwicklung gGmbH – Aperfeiçoamento

Profissional e Desenvolvimento

KAS - Konrad-Adenauer Stiftung – Fundação Konrad Adenauer

KED - Kirchlicher Entwicklungsdienst - Serviço das Igrejas para o desenvolvimento

KfW - Kreditanstalt für Wiederaufbau - Banco Alemão de Crédito para Reconstrução

Kindernothilfe - Associação de amparo às necessidades da criança

KZE - Katholische Zentralstelle für Entwicklungshilfe, Central Católica de Ajuda ao

Desenvolvimento

RFA - República Federal da Alemanha

RDA - República Democrática da Alemanha, Alemanha Oriental

SACTES - Serviço Alemão de Cooperação Técnica e Social (antiga sigla para o atual

DED)

SES - Senior Experten Service - Serviço de Peritos Sêniores

SPD - Partido Social-Democrata

Weltfriedensdienst - Serviço para a Paz Mundial

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I. Introdução

A proposta de desenvolvimento desta tese surgiu quando eu pesquisava políticas

de proteção da floresta amazônica e processos de regularização fundiária de terras

indígenas adotados pelo governo brasileiro naquela região. Uma mudança não pouco

desprezível ocorrera com a passagem da década de 80 para as de 90, particularmente em

relação às políticas para povos indígenas: os processos de demarcação de terras

indígenas, feitos até então apenas por órgãos do governo brasileiro, neste caso a

Fundação Nacional do Índio (Funai) incorporariam cada vez mais outras instituições. A

questão me instigou sobretudo porque era uma prática que passara a ser considerada

“normal” por aqueles setores da administração pública brasileira que eram fortemente

reativos a este tipo de abertura – de defesa e militares, principalmente - em nome do

princípio de “soberania nacional”.

Este processo já havia se iniciado no final dos anos 80 em outros setores, sendo

particularmente característico das políticas de gestão dos recursos naturais, nas quais se

observou a tendência de articulação entre agências e organismos internacionais de

“cooperação” nas práticas de administração pública adotadas no Brasil. O fato ganhou

proporções mais significativas a partir dos 90, com a Conferência das Nações Unidas

para Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD ou ECO-92).

A expressão cooperação técnica para o desenvolvimento foi sendo naturalizada

nos discursos políticos e na linguagem usual das políticas governamentais e não-

governamentais contemporâneas, turvando a visão a respeito dos processos efetivamente

em prática. Sua intensificação incitou, ao longo dos anos 90, um intenso debate sobre as

implicações de poder associadas ao papel de órgãos governamentais e não-

governamentais em atividades de cooperação técnica internacional no Brasil. O

incômodo em tratar relações de poder associadas a fluxos de conhecimentos e de recursos

financeiros, utilizados de forma condicionada a determinados meios e fins como

“cooperação” nunca foi resolvido pelas vias do campo das relações internacionais. Neste

sentido, fui buscar nos procedimentos de pesquisa e nas referências teóricas da

antropologia o instrumental que me permitisse aprofundar este mal estar em relação a um

discurso pouco ajustado às práticas de poder implementadas.

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O assunto já me interessava há alguns anos, quando desenvolvi minha pesquisa de

mestrado em relações internacionais, na PUC do Rio de Janeiro, entre 1993 e 1996.1 Na

época, havia abordado o tema da cooperação internacional como uma prática da política

externa dos países, interessando-me então por aquelas que eram adotadas para viabilizar a

implementação de políticas de proteção ambiental para bens comuns.

Este recorte envolveu minha análise na discussão sobre a formação de regimes

internacionais2 e de um “espaço público transnacional”, que entendia como fundamental

para a consolidação de relações de cooperação entre norte e sul. Ao partir da legislação

ambiental da União Européia como eixo de convergência de políticas ambientais, o

enfoque sobre a atuação de organizações européias da sociedade civil (ONGs), procurei

destacar o papel desses atores no desenvolvimento de regimes de cooperação

internacional na área ambiental e sua contribuição na produção de sentidos sobre meio

ambiente nas agendas nacionais de políticas. Observei que as políticas adotadas por

agências e órgãos estrangeiros alemães em relação às políticas ambientais no Brasil

sobressaíam não somente no plano estrito da atuação governamental, mas também no

trabalho de redes de ONGs alemãs.3 Naquele contexto, já se destacavam os projetos

desenvolvidos pelas agências governamentais alemãs de cooperação no Brasil, da mesma

forma que de organizações não-governamentais alemãs em face de outros países, tanto

em termos de quantidade de projetos, quanto no que dizia respeito à sua capacidade de

articulação com ONGs de importante atuação política no Brasil, participando de e

contribuindo para os debates sobre a abertura democrática e mais recentemente para as

políticas de desenvolvimento sustentável para a região amazônica.

Uma outra situação estimulou minha curiosidade sobre o assunto, em particular as

condições de atuação da Alemanha no Brasil. Antes de iniciar a pesquisa de doutorado

que resultou na presente tese, fui para a Alemanha em 1999 por motivos pessoais e fiquei

durante um mês em Hamburgo, no apartamento de um casal alemão-brasileiro. Viajei 1 A pesquisa citada resultou na dissertação de mestrado pelo Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, cujo título é O meio ambiente em pauta: uma abordagem da cooperação internacional entre Europa e Brasil, defendida em 1997 pela presente autora. Orientadora: Sonia de Camargo. 2 Uma das principais referências na área de relações internacionais sobre regimes internacionais é Krasner, Stephen. Ver International regimes. New York: Cornell University Press, 1983. Voltaremos a analisar os regimes internacionais no Capítulo 1. 3 Wolff, L.A.; Kaiser, W. (coords.) & Mello, F.V. Cooperação e solidariedade na Alemanha. 2.ed. Rio de Janeiro: IBASE: EZE; São Paulo: ABONG, 1995, p.7.

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para participar de um grande evento de capoeira que se realizava na cidade e era

organizado há quase vinte anos pelos meus amigos. 4 O evento era uma oportunidade para

reunir brasileiros que viviam na Europa como também europeus que admiravam a

“cultura brasileira”. Neste período, tive a oportunidade de conhecer alguns brasileiros que

moravam na Alemanha, como Romão e Eduardo, que estavam envolvidos, entre outras

coisas, com o levantamento de fundos e recursos para uma ONG brasileira que trabalhava

com povos indígenas de Mato Grosso do Sul. Eles faziam a divulgação de documentários

e vídeos que haviam produzido sobre a situação fundiária dos povos indígenas da região.

Apesar de rápida, esta experiência ampliou a visão sobre certos aspectos relativos a

processos e fluxos transnacionais de cultura e de conhecimentos, estabelecidos por meio

de relações pessoais entre profissionais do Brasil e da Alemanha.

Até aquele momento, o suporte de alemães a projetos destinados a grupos

específicos como as populações indígenas parecia-me estranho ou mesmo uma ação

isolada, casual, o que mais tarde constataria ser uma política adotada pelo próprio

governo alemão no Brasil.

A viagem à Alemanha reavivou interesses antigos de pesquisar o trabalho

desenvolvido por funcionários de instituições alemãs em projetos sociais e ambientais no

Brasil. A princípio, quando defini uma estratégia de pesquisa, imaginava dividir o

trabalho de levantamento de dados de campo entre o Brasil e a Alemanha, objetivo que

foi aos poucos sendo modificado. Não voltei à Alemanha por considerar todas as

implicações que isto demandaria para a elaboração da pesquisa, a começar por uma

preparação na língua, e também em nível pessoal. Por outro lado, constatei que havia um

universo de questões e de possibilidades etnográficas a ser explorado e de projetos

implementados por órgãos do governo alemão no Brasil, não somente em sua

especificidade institucional, mas, sobretudo em suas formas de interação com órgãos do

governo brasileiro. Não queria perder de vista o Brasil como espaço de intervenção, e

desta forma reorientei o foco para observar como os alemães atuavam no Brasil, o que se

não descartava, também não justificava o deslocamento para a Alemanha.

4 Meu companheiro na época era mestre de capoeira e foi convidado para participar de algumas “oficinas” e cursos de capoeira realizados, durante o evento, em vários espaços da cidade.

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Neste contexto, tive conhecimento de um dos mais expressivos programas “de

cooperação internacional” desenvolvidos pelo governo brasileiro, que contava com a

participação de vários organismos e agências internacionais, o Programa Piloto para as

Florestas Tropicais do Brasil, o PPG-7. Estabelecido desde 1992, o PPG-7 foi definido

como um programa que tinha como objetivo a conservação das florestas tropicais do

Brasil, prioritariamente a floresta amazônica, sendo o governo da Alemanha o seu maior

doador isolado, entrando com recursos na ordem de mais de 40% do total. Atribuiu-se

grande importância ao PPG-7 não somente pelo volume de recursos aportado, mas

principalmente por ter sido concebido como um “modelo” de programa multilateral de

cooperação destinado à implementação de políticas públicas de proteção da floresta

amazônica e da Mata Atlântica. Como apresenta a vice-ministra alemã Uschi Eid, o PPG-

7 seria:5

[...] maior programa mundial para a proteção de florestas tropicais e para o manejo de recursos naturais em um único país [de forma a] encorajar a aplicar em outros países e regiões este bem sucedido modelo de cooperação para a preservação do futuro comum da humanidade.

O aprofundamento da investigação sobre o PPG-7 revelava um universo

diversificado de atores nacionais e internacionais e de práticas associadas ao

desenvolvimento de projetos na administração pública brasileira, entendido como um

campo muito rico para a análise do que era definido como cooperação técnica

internacional. Além disso, esse campo descortinava um aspecto particular da atuação de

instituições alemãs em programas e projetos sociais e ambientais no Brasil que, se eu

imaginava existir, não dimensionava a sua abrangência temporal e espacial no país.

Quando da decisão de desenvolver a pesquisa de doutorado no Brasil, resolvi

adotar uma abordagem que, em princípio, caracterizasse o processo histórico que

viabilizou a intensificação de fluxos de recursos internacionalmente e a administração

em territórios estrangeiros por meio do desenvolvimento de projetos, e que desencadeou

na formalização destas práticas na administração pública de Estados Nacionais no pós- 5 Palavras da vice-ministra do Ministério Federal de Cooperação Econômica e Desenvolvimento da Alemanha, Uschi Eid, em Cooperação entre Brasil e Alemanha nas Florestas Tropicais Brasileiras, publicação do grupo KfW e GTZ, sem data.

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Segunda Guerra, como política de cooperação técnica para o desenvolvimento.

Procurou-se focalizar a especificidade de como este processo se implementou no Brasil e

na Alemanha, mais claramente a partir dos anos sessenta.

Nesse período, foram criadas instituições na administração pública alemã

destinadas a promover um determinado tipo de intervenção em territórios estrangeiros,

intervenção esta voltada para a administração de projetos articulada a instituições

governamentais locais, conforme normas e procedimentos administrativos regulares e

com profissionais especializados, evidenciando uma política oficial de cooperação para o

desenvolvimento em processo de implementação pelo governo da Alemanha.

As burocracias da cooperação têm uma característica particular de organização

em rede: estão localizadas no país de origem, mas têm “bases” institucionais espalhadas

em territórios estrangeiros, escritórios que garantem uma maior captação de informações

do exterior e, portanto, facilitam a administração de territórios e populações estrangeiras,

sobretudo as do chamado “Terceiro Mundo”. Antes muito centralizados nas decisões da

sede, cada vez mais os escritórios das agências têm ganhado autonomia decisória e

orçamentária, como forma de flexibilizar a sua atuação nos países e de obter melhores

resultados com os projetos que desenvolvem. São agências estatais de administração em

larga escala, que atuam por meio de projetos e cuja ação se caracteriza por uma forma de

sedução ou de persuasão ou até mesmo de pedagogia, mas não por intervenção coercitiva

explícita.

Esta característica é particularmente observada na estrutura institucional alemã,

sob a coordenação política e financeira do Ministério de Cooperação Econômica e

Desenvolvimento (Bundesministerium für wirtschaftliche Zusammenarbeit und

Entwicklung), mais conhecido por BMZ.

O BMZ é um órgão administrativo e de formulação política, mas não executa

diretamente as políticas e diretrizes propostas para a cooperação para o desenvolvimento.

Atribui às várias instituições a ele vinculadas as funções de organizações governamentais

que desenvolvem projetos e enviam profissionais e equipamentos para vários países em

todo o mundo, tendo como base os princípios políticos definidos pelo ministério e

dispondo de seus recursos orçamentários. O BMZ tem outras organizações não-

governamentais parcialmente articuladas a ele. Ainda que a extensão das relações

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existentes entre as organizações alemãs e sua conexão com o ministério não sejam claras

à primeira vista, as histórias dos “profissionais da cooperação”,6 funcionários dessas

instituições, que atuam nos projetos como advisors, peritos, consultores, entre outras

funções, revelam os vínculos entre várias instituições e o BMZ.

No caso do Brasil, um dos locais onde são implementadas as políticas de

cooperação, apesar de haver um representante do ministério, que fica na sede da

embaixada da Alemanha, não existe um escritório de representação do BMZ no país. É

uma organização decisória praticamente virtual em relação aos países onde são

implementadas as políticas alemãs de cooperação. Sua existência torna-se efetiva através

dos discursos e das rotinas de trabalho dos funcionários das agências, nos quais faz faz

menção constante ao ministério, às suas exigências, aos seus recursos, às suas diretrizes.

Da mesma forma, a conexão entre eles mostra-se particularmente clara nas participações

que têm em eventos públicos relacionados a políticas governamentais no Brasil,

sobretudo ambientais.

Entre as variadas formas como se dão as práticas e conhecimentos administrativos

de um Estado com atributos de poder de intervenção e administração sobre populações,

territórios e Estados estrangeiros, a cooperação técnica ganha operacionalidade por meio

de projetos e programas. Ela envolve múltiplos e diferenciados fluxos e contrafluxos

entre fronteiras nacionais: de equipamentos e conhecimentos técnicos, administrativos e

gerenciais (de planejamento), de pessoas e de recursos financeiros. No sentido formal, os

projetos são instrumentos de operacionalização da cooperação técnica, a qual se dá entre

as instituições executoras dos dois países.

De todo um conjunto de instituições da burocracia alemã da cooperação

articuladas ao BMZ, foi atribuída à Agência Alemã de Cooperação Técnica - GTZ

(Deutsche Gesellschaft für Technische Zusammenarbeit) a competência formal de

produção e reprodução de determinados saberes e práticas de Estado, o que se realiza por

meio da intervenção em espaços nacionais estrangeiros, recebendo o nome de

6 Esta denominação não foi usada, durante a pesquisa, por nenhum dos entrevistados, peritos, consultores, funcionários administrativos ou outros que atuam nos projetos, mas foi usada aqui para definir, genericamente, um grupo de pessoas, indivíduos que trabalham junto com agências estrangeiras em projetos de “cooperação internacional”.

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cooperação técnica.7 A investigação deste panorama mais amplo de organizações alemãs

“de cooperação”, no qual a GTZ se insere, revelou a centralidade de sua função no Brasil,

atuando no país desde a sua criação, em 1975, com um número expressivo de projetos

com o governo brasileiro. Mais recentemente, o governo tem priorizado projetos na área

de meio ambiente. Neste contexto que abarca a proteção das florestas tropicais no Brasil,

foram elaborados projetos destinados ao desenvolvimento de povos indígenas; neles, as

duas principais instituições da política de cooperação alemã, a GTZ e o Banco Alemão de

Crédito para Reconstrução (Kreditanstalt für Wiederaufbau – KfW), se envolveram.

Tomei como ponto de partida da análise os discursos e as práticas cotidianas de um setor

da administração pública brasileira ao qual estavam vinculados, por meio de acordos

formalmente estabelecidos no plano governamental, profissionais da GTZ, responsáveis

pela implementação de normas e procedimentos próprios para a administração de

projetos.

Entre os projetos do PPG-7 vinculados à linha de “conservação de áreas

protegidas”, dois projetos são orientados para povos indígenas: o Projeto Integrado de

Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal, usualmente conhecido

por PPTAL e o Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas, conhecido por PDPI. O

PPTAL antecedeu o PDPI e já estava em andamento desde 1996. As primeiras atividades

do PDPI foram iniciadas somente em 2001. Neste sentido, eu entendia que encontraria na

análise do PPTAL um campo já constituído, com uma breve porém já sólida história de

processos em transformação quanto à regularização fundiária em função da articulação

entre a agência de cooperação técnica alemã, a GTZ e a Fundação Nacional do Índio, a

Funai.

O PPTAL promoveu o avanço do processo demarcatório e uma normatização de

procedimentos, o que o caracterizou como um divisor de águas em relação à política

governamental de regularização das terras indígenas da Amazônia Legal. Sua execução

envolvia a Funai, um dos órgãos governamentais oficiais então responsáveis pela política

de regularização de terras indígenas, além do Banco Mundial, coordenador do PPG-7, e

7 Em relação ao aporte de recursos do governo em 2005, cerca de 80% do total de recursos eram provenientes de projetos e programas com clientes governamentais, principalmente do BMZ. Em 2003, estes dados chegavam a 85%. Os outros 20% vinham de contratos com instituições financeiras internacionais e companhias do setor privado. Ver http://www.gtz.de

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da agência alemã de cooperação técnica, a GTZ. Também do ponto de vista dos

procedimentos adotados nos processos demarcatórios do governo, particularmente no que

concerne à aceitação de recursos orçamentários e humanos para o desenvolvimento de

políticas governamentais, o PPTAL mostrou-se inovador, porque instituiu uma “forma de

fazer” que não havia anteriormente. E isto se deveu, entre outros fatores, à presença

constante de funcionários da GTZ no mesmo espaço de trabalho que os funcionários da

Funai usufruem desde 1996 quando o projeto efetivamente entrou em vigência, até os

dias de hoje.

O PPTAL não é um projeto bilateral, porque envolve o governo alemão e o Banco

Mundial, organismo multilateral. No entanto, o peso do orçamento de instituições

governamentais alemãs como o banco KfW e a GTZ para a execução do projeto, que se

responsabilizam por 80% dos recursos para demarcação, difundiu a idéia de que o projeto

fosse de fato exclusivo ao governo brasileiro e “aos alemães”. Além do aspecto

financeiro, outra dinâmica mais direta, resultante da presença constante de uma equipe de

profissionais da GTZ atuando na sede da Funai, dava maior visibilidade aos instrumentos

adotados na prática por aquela equipe, particularmente no que se referia ao poder de

instituir procedimentos e estruturar normas administrativas para o processo de

regularização fundiária. O Banco Mundial, enquanto isto, pouco aparecia. Neste

contexto, de observação do local de trabalho de duas equipes vinculadas ao mesmo

projeto, ficavam patentes as diferenças existentes entre elas, diferenças estas ignoradas

em documentos, panfletos e folders informativos sobre o projeto.

Era reservada à equipe de “assessoria”8 da GTZ uma sala na Funai equipada com

móveis, pastas, computadores e outros bens de uso de escritório, todos de qualidade

diferenciada daqueles existentes no órgão brasileiro, pois em sua grande maioria, o que

vim a saber então, eram importados da Alemanha. Da mesma forma que ocorre em outras

instituições, também em outros órgãos do governo brasileiro, como no Ministério do

Meio Ambiente (MMA), se encontrava esta divisão e reserva de um espaço para a equipe

alemã em áreas comuns das repartições públicas.

8 Usei o termo assessoria entre aspas porque é uma das expressões adotadas pelos alemães, além de consultoria, quando se referem aos seus próprios trabalhos nos projetos junto aos órgãos brasileiros.

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Algumas perguntas surgiram em relação a atuação destes profissionais que

compunham as equipes da GTZ e que trabalhavam em projetos no Brasil. Quais eram as

suas atribuições? Por que eram chamados de “peritos técnicos”, se faziam trabalhos

basicamente administrativos? Quais eram as trajetórias pessoais capazes de identificar

algo em comum no grupo, desde seu “exílio”, até o lado “aventureiro” ou filantrópico?

Eu entendia que elas poderiam dizer muito da própria instituição, a GTZ. Não encontrava

respostas diretas para estas perguntas em textos impressos ou em entrevistas formais. Não

havia registros em publicações que pudessem revelar um pouco da “humanidade” dos que

executavam os projetos de cooperação técnica, aqueles que efetivamente representavam

as instituições.

A partir da perspectiva das instituições governamentais alemãs, a GTZ mostrou

ser um dos mais importantes pontos de entrelaçamento de redes sociais de profissionais

alemães deslocados de seu país de origem, para atuarem em projetos de cooperação

técnica alemã para o desenvolvimento.

A partir do escritório da GTZ no Brasil, localizado em Brasília, foi possível

observar como operam os dispositivos administrativos de controle e regulação de todos

os projetos no Brasil, a partir da análise de documentos, de entrevistas e da observação

direta. Também pelo entendimento de como essa agência funciona nas práticas de

administração e planejamento nos projetos, no seu gerenciamento e/ou avaliação, na

organização de eventos públicos, na estruturação de cursos e seminários para treinamento

de profissionais e na transmissão de conhecimentos, em suma, o seu “modus operandi”,

aquilo que a define propriamente como uma agência de cooperação técnica.

As práticas do escritório são baseadas em um modelo racional de administração

eficiente que atua por meio de normas e critérios de planejamento, execução e avaliação;

ele é transmitido da Alemanha para ser operacionalizado por profissionais em seus

trabalhos cotidianos. No Brasil, a GTZ produz uma tecnologia de gestão e governo

baseada em saberes específicos para administrar, monitorar, avaliar e planejar projetos,

visando planejar “políticas” com legitimidade e exclusividade isto é, planos e ações de

governo por meio dos quais o próprio Estado, em certo plano, corporifica-se.

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Neste sentido, são valorizados comportamentos sociais representados como

tipicamente “alemães”: ordem, disciplina, rigor e muito trabalho. Como nos relata um ex-

funcionário da GTZ:

Eu estive nesta posição porque o Paulinelli insistiu. Ele me conhecia e disse: “eu quero ele”. Eu não tenho doutorado. Eu tenho dois diplomas, não sou habilitado. Sou um cara comum, que tava lá porque ele me queria. O cara te conhece, ele confia. Ele sabe que você trabalha muito mais ainda do que ele. Nós alemães somos assim, trabalhamos o tempo todo, sem parar. Somos workaholic.

O escritório desempenha também o papel de centro de informações sobre os

projetos e as relações com os funcionários e os consultores, além de ser um ponto de

constante contato com a sede da GTZ na Alemanha e com o BMZ. A sede da GTZ na

Alemanha fica em Eschborn, onde trabalham cerca de mil funcionários, além de haver

escritórios também em Frankfurt, Bonn, Berlim e Bruxelas.9 No total, o seu quadro de

funcionários ultrapassa os 10 mil em mais de 130 países em todo o mundo. O Brasil é um

dos 67 países que possuem um escritório da GTZ.

Em função do papel de relevo que o governo alemão vem desempenhando desde

os anos 90 em políticas para o meio ambiente e para as populações e as terras indígenas

no Brasil, analisamos as condições discursivas e operacionais de atuação de profissionais,

técnicos e gerentes que trabalham em projetos e programas da GTZ no Brasil, objeto

desta tese. Apesar de serem freqüentemente alvo de pesquisas sobre as práticas de

cooperação ou de solidariedade internacional, as ONGs não são o foco da presente

pesquisa, a não ser como subsidiárias ou complementares das políticas instituídas por

órgãos dos governos envolvidos.

No Brasil, o governo da Alemanha vem desenvolvendo projetos de cooperação

técnica em várias regiões há mais de quarenta anos, por meio de um acordo de

cooperação técnica formalmente iniciado em 1963. Apesar de longa e duradoura, a

história desta relação de intervenção de instituições deste governo em programas sociais e

ambientais no Brasil é praticamente desconhecida, mantendo até certa “invisibilidade”, o

que se contrapõe a uma forma de intervenção mais explícita, hegemônica, característica

da atuação de agências norte-americanas, como a USAID, por exemplo, ou de 9 Desde 1993, a GTZ tem escritório em Bruxelas para uma atuação mais estreita entre o governo alemão e a Comissão Européia no que diz respeito aos assuntos relacionados à Europa.

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instituições multilaterais como o Banco Mundial e as agências do sistema ONU

(Organização das Nações Unidas).

Esta oposição e competição aparece de forma recorrente nos discursos dos

funcionários da GTZ nas falas dos brasileiros que trabalham em projetos em que estão

presentes representantes norte-americanos do Banco Mundial e alemães da GTZ, por

exemplo. Como vemos no relato de uma alemã que participou da estruturação do PPG-7

no Brasil, o espaço de atuação de ambos os governos no “campo da cooperação para o

desenvolvimento” era fortemente disputado:10

Os Estados Unidos nunca participaram oficialmente do PPG-7, mas o Banco Mundial, para mim, é uma organização internacional, mas é norte-americana. Como o Banco Mundial assumiu a coordenação do PPG-7 - nunca sabia porque, já que a Alemanha deu uma grana, pagou quase tudo e o Banco Mundial coordenava - custou uma nota para nada. Mas tudo bem. Nós entramos em choque permanente com eles! Permanente! Eu lembro quando cheguei a primeira vez, em 1995, eu fiz pesquisa anos e anos na Flona Tapajós11 . O Banco Mundial, junto com o governo brasileiro, queria tirar a população da Flona – tem uma lei da Flona que não permite gente . Entendíamos que tirar as pessoas da terra, isso faz a destruição. Nós ganhamos, eles ficaram. Desta briga eu entendi que a visão do Banco Mundial – norte-americana – era de fazer um parque nacional da Amazônia. Foi a briga entre uma visão de “áreas de conservação” norte-americana contra a de desenvolvimento sustentável. Acho que hoje em dia está resolvida esta briga, mas na época, não.

Nesta fala, como em outras situações, observa-se que o poder de dizer “como se

faz” ou de assumir o papel principal no que diz respeito ao conhecimento implícito nos

programas ou nos projetos desenvolvidos tem relação direta com o volume de recursos

aportado. Fica evidente o conflito latente, senão explícito entre os “doadores”, o qual se

expressa e é traduzido em termos conceituais, mas que os precede à sua chegada ao país

estrangeiro porque se define como uma disputa entre eles por acúmulo de capital

simbólico, o que tem a ver com a dádiva, com os recursos oferecidos. Um representante

do governo brasileiro que atuou como coordenador do PPG-7 argumenta neste mesmo

sentido: 12 “De todo jeito, eles (os alemães) são importantes para o RFT porque sempre

10 Profissional alemã, em entrevista concedida no Rio de Janeiro. 11 Flona é a denominação para Floresta Nacional. É uma unidade de conservação cujas formas de manejo dos recursos naturais são bem mais restritivas do que nas terras indígenas. 12 Em entrevista concedida em 13 de outubro de 2003, em Brasília.

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tiveram grande influência nos rumos do RFT e você só adquire importância quando você

coloca dinheiro.”

Em certo sentido, é lícito afirmar que o governo alemão exerce uma influência

conceitual e ideológica discreta particularmente no campo social e ambiental junto a

populações e a espaços do território brasileiro, e o faz por meio de processos

administrativos de intervenção cuja lógica é pouco acessível tanto às populações

envolvidas como aos setores da administração brasileira. Se supusermos que este tipo de

intervenção silenciosa resulta de uma estratégia racional que se presta a uma lógica de

invisibilidade para maior expressão de poderes sem incorrer em críticas, poderíamos

adotar como hipótese o fato de que esta discrição seja uma forma de garantir seu sucesso

ou pelo menos de não atrapalhar o seu desempenho.

Parece, à primeira vista, uma contradição o fato de que as atividades de

cooperação técnica não tenham visibilidade, considerando ser o reconhecimento político

e público um dos princípios da ação de “solidariedade” internacional, resultante do

acúmulo de capital simbólico advindo dos recursos, ou seja, da dádiva concedida.

Em um país como o Brasil, com disponibilidade de recursos públicos e privados

para aplicação em projetos sociais, este tipo de intervenção internacional fica muito

suscetível de críticas, sendo a discrição, portanto, a melhor das opções para dar

continuidade às atividades de cooperação. O histórico da entrada do Brasil em programas

chamados de cooperação para o desenvolvimento, o que desencadeou mudanças na

administração pública para o recebimento de recursos, esteve submetido desde os seus

primórdios às diretrizes e às flutuações da política norte-americana como parte da

ideologia de segurança hemisférica, o que foi percebido com reservas por muitos

intelectuais no país. De maneira diferente, em países da América Latina ou da África, em

condições econômicas mais precárias e com frágil articulação política, os programas de

cooperação para o desenvolvimento são fartamente adotados e as instituições que assim o

fazem são menos passíveis de críticas.13

13 Um caso exemplar sobre esta facilidade de entrada de agências internacionais em países mais carentes pode ser observado no trabalho de James Ferguson (Ferguson, 1994:3-8) sobre desenvolvimento em Lesotho, no qual o autor analisa uma multiplicidade de projetos de “ajuda” e “assistência” desenvolvidos por agências governamentais e organismos internacionais desde a década de 70 no país, o que ele caracteriza como um volume desproporcional de ajuda, uma elevada concentração de assistência ao desenvolvimento em um só país.

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Diante da discrição e do pouco alarde que presentes nas instituições alemãs, como

a GTZ, ao desenvolverem projetos no Brasil, possíveis atribuições à sua atuação, tidas

como de “intervenção”, podem soar inadequadas, já que o exercício de poder é

implementado de forma menos explícita por meio de estratégias pedagógicas de

transformação e também pela regulação na restrição à disponibilidade de verbas para

projetos que não se ajustam às definições de recursos.

Assim, quanto ao Brasil, ainda que aparentemente não haja o reconhecimento da

importância dos alemães, poderíamos afirmar que seu prestígio é reconhecido, mesmo

que discretamente, nos meios políticos governamentais e não-governamentais muito mais

pelas relações pessoais e profissionais que os representantes de suas organizações vêm

construindo historicamente no país. Sabe-se, como atributo a mais, que dispõem de

recursos e, por isso, são identificados como “bons parceiros” para o desenvolvimento, de

maneira especial quando estão envolvidas as questões ambientais.

Nos fóruns de debates e discussões sobre estratégias políticas de desenvolvimento

sustentável, particularmente no caso da Amazônia, são muito atuantes os representantes

de organizações eclesiásticas, fundações políticas ou agências governamentais alemãs. A

sua presença e a de pesquisadores alemães em espaços de discussão em universidades ou

centros de pesquisa, como o Núcleo de Estudos Amazônicos, do Museu Goeldi, revela os

fortes e duradouros vínculos entre representantes de ONGs e os de governos, bem como

entre pesquisadores acadêmicos e outros formadores de opinião do Brasil e da Alemanha,

pelo constante suporte em projetos que as organizações alemãs garantem. Essas redes

institucionais mantém-se por meio de profissionais que atuam nas instituições e que

mudam freqüentemente de condição, passando de ONG para governo ou universidade,

mudando de uma ONG para outra, ou de um departamento do governo para outro.

Em uma investigação rica e criteriosa sobre as práticas de agências

governamentais e organismos internacionais no processo de consolidação do Estado

timorense, Silva evidencia para nós aspectos associados ao regime da dádiva: “Para além

de determinar o status do doador, o regime da dádiva, entre outras coisas, cria vínculos,

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atribui identidade às coisas, define relações de poder e é orientado por uma etiqueta

própria.” 14

A autora nos lembra ainda da importância da abordagem etnográfica das práticas

adotadas por organismos internacionais em contextos políticos internacionais: “uma

análise limitada aos documentos não dá conta de perceber o que está por trás dessas

políticas de doação: uma corrida por status político, no qual a dádiva é moeda de troca e

fonte de poder e prestígio.” 15

A pesquisa em agências governamentais administrativas enfrenta reações e

resistências de todo tipo, tanto maiores quando trata-se de instituições estrangeiras. Neste

sentido, a experiência de realização de observação direta das práticas efetivas da GTZ,

agência de cooperação alemã na administração pública brasileira foi o meio de trazer à

tona processos e procedimentos pouco explícitos sobre poder.

Objetivo

O objetivo desta tese é analisar certas práticas políticas de um órgão da

administração pública do Estado da Alemanha, enquanto formas de administração e

intervenção na administração pública de outro Estado, o Brasil. Tomou-se por referência

o trabalho desenvolvido no país pela GTZ, uma agência da administração pública alemã

que atua naquilo que o Estado formula e descreve como cooperação técnica, e que

envolve administração, planejamento e avaliação de projetos; organização de cerimônias

e comemorações públicas; estruturação de cursos e seminários para treinamento de

profissionais; em suma, aquilo que de forma simplificada costuma ser chamado de

“transmissão de conhecimentos”. Este processo envolve ainda a projeção de imagens de

um modo de ser e de se comportar que, focado na instância profissional e técnica,

ultrapassa-o, alcançando a subjetividade na forma de estruturas mentais.16

14 Silva, Kelly Cristiane da. Paradoxos da autodeterminação: a construção do Estado nacional e práticas da ONU em Timor-Leste. Tese de doutorado, DAN/UnB, Brasília, 2004. p.72. 15 Ibidem, p.71. 16 Bourdieu, P. “Espíritos de Estado”. In: Bourdieu, P. Razões práticas sobre a Teoria da Ação. Campinas: Papirus Editora, 1996. p.105.

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O objetivo é analisar como esta política de cooperação técnica funciona e como

opera enquanto instrumento de governo e administração de um Estado Nacional em

espaços estrangeiros, considerando que, por ser uma política de Estado, viabiliza a

produção de categorias de pensamento que utilizamos espontaneamente,17 e o faz por

meio de um artifício de neutralização do aspecto político.18 A este processo Foucault

denominou tecnologias políticas, instrumentos que promovem o mascaramento do

aspecto político sob o véu da neutralidade. Aqui, vale lembrar, ela assume uma dimensão

específica: institui formas de dominação em territórios estrangeiros.19

A cooperação técnica, ainda que defina seu objetivo como a transmissão de

conhecimentos e técnicas para redução da pobreza, através de práticas de monitoria e

capacitação associadas à doação de recursos, na verdade expressa formas de

disciplinamento, nas quais promove a formação de elites, de hierarquias e assimetrias

sociais nos locais onde atua, caracterizando-se, do ponto de vista mais geral, em um

processo social civilizatório.

A projeção de imagens em espetáculos rituais de encontro e celebração garante

as condições necessárias à naturalização e à cotidianidade das práticas da cooperação.

Neste sentido, as formas de intervenção da GTZ expressam um dos meios pelos quais a

administração do Estado alemão se efetiva em outros territórios, delineando

representações para o outro, o estrangeiro, e servindo de lente privilegiada para se

proceder a uma leitura antropológica do Estado. Observamos a prática a partir de quem a

faz: 1. na administração de projetos, 2. na organização de eventos públicos, enquanto

“ritos de instituição” de sua intervenção no país, como forma de garantir legitimidade e

3. no treinamento, por meio de cursos, seminários e debates. Cada uma dessas

modalidades de atuar significa diferentes expressões de “transmissão de conhecimento”.

Assim procedi na realização da etnografia desta organização.20

Como o objeto que observamos é a operacionalidade administrativa de controle e

regulação da GTZ em políticas governamentais, o foco dirige-se para as práticas de

17 Idem, p.97. 18 Shore, C. & Wright, S. Anthropology of policy. Critical perspectives on governance and power. London and New York: Routledge, 1997. p.8. 19 Shore, C. & Wright, S., opus cit., p.9. 20 A GTZ era chamada no Brasil de “Sociedade Alemã de Cooperação Técnica”, sendo atualmente adotada a denominação de “Agência de Cooperação Técnica Alemã”.

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cooperação técnica alemã enquanto técnicas de poder rituais e simbólicas implementadas

junto aos órgãos da administração pública brasileira cuja finalidade é produzir e difundir

uma auto-representação que coloca a Alemanha como elemento fundamental na

construção de uma história de políticas ambientais e sociais, particularmente indígenas,

no Brasil.

Pretende-se assim contribuir para maior elucidação das práticas de cooperação

técnica, buscando definir o contexto histórico e cultural, buscando fugir às usuais

representações de homogeneidade, e definições vagas enquanto um movimento, operação

ou processos de larga escala ou como as próprias instituições que implementam estes

processos.

Metodologia

Em função das características múltiplas do objeto de pesquisa, o levantamento de

dados de informações sobre projetos desenvolvidos por organizações alemãs no Brasil

fundamentou-se em uma estratégia de pesquisa “multissituada” e multiinstitucional no

Brasil. A partir da caracterização breve de algumas possíveis frentes de entrada no

campo, entre Rio de Janeiro, Manaus e Brasília – sendo Brasília o centro político e

administrativo do país – decidi que para observar de perto as dinâmicas das práticas de

poder envolvidas no que se denomina de cooperação técnica para o desenvolvimento, o

lugar para observação direta deveria ser Brasília.

Observa-se, ao pesquisarmos este campo da administração pública, que a

complexidade implicada na configuração de um programa de cooperação internacional,

pelo comprometimento de uma diversidade de atores em escalas diferenciadas (locais,

nacionais, internacionais e globais), pelo conjunto de formas de atuação e pelos fluxos de

distintas naturezas entre fronteiras nacionais (de conhecimentos, de pessoas, de recursos

financeiros, de equipamentos, entre outros) é absorvida por um discurso que promove

uma naturalização das expressões e uma simplificação de toda a sua natureza complexa.21

21 Grillo, R. “Discourses of development: the view from Anthropology”. In: Grillo, R.D. & Stirrat, R.L. Discourses of development: anthropological perspectives. Oxford/New York: Berg, 1997. p.1-34.

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Assim, foi necessário repensar o conceito antropológico de campo em novas

bases, buscando alternativas à concepção tradicional baseada em uma aldeia ou em uma

comunidade local específica. Ao caminhar no sentido proposto por Shore e Wright,22 o

campo deslocou-se para as “conexões entre níveis e formas de processos e ações sociais

em diferentes lugares”, desde as organizações de Estados nacionais distintos até os

lugares de encontro: projetos e eventos públicos enquanto rituais do Estado.

O período de pesquisa foi bastante extenso, de 2002 a 2007, e ela foi realizada em

três etapas: em 2002, por cerca de dois meses entre Brasília e Manaus; entre 2003 e 2005,

quando passei a residir em Brasília e participei diretamente de atividades nas instituições

e em eventos e convenções internacionais realizadas pela GTZ; em 2006 e 2007,

atividades eventuais ainda foram concretizadas no sentido de complementar alguma

informação que ainda se fazia necessário levantar.

O arrolamento de dados para a pesquisa foi baseado em três procedimentos

principais: levantamento e análise documental, observação participante nas instituições e

entrevistas com funcionários das organizações e dos órgãos de governo alemães e

brasileiros.

A seleção e a leitura de documentos foram feitas em várias instituições brasileiras

e alemãs, governamentais e não-governamentais: GTZ, Funai, Agência Brasileira de

Cooperação (ABC), Ministério de Relações Exteriores (MRE), da ONG Centro de

Trabalho Indigenista (CTI), entre outras de menor importância. Foram pesquisados

documentos sobre as instituições e suas regras de atuação e sobre acordos e atos

internacionais. Além destes, documentos produzidos pela GTZ que regulamentam suas

práticas e as de seus funcionários no Brasil, como o Compêndio da GTZ, livro que

sistematiza, como um manual de consulta, diretrizes, procedimentos e conceitos

fundamentais da cooperação técnica alemã, desvendando normas e definições a partir das

quais trabalham no exterior.

Os documentos enquanto referências históricas de dados etnográficos, foram

fontes muito importantes para traçar alguns caminhos inovadores de interpretação e

estabelecer correlações entre pessoas e contextos capazes de esclarecer muitos aspectos

do objeto pesquisado.

22 Shore, C. & Wright, S., opus cit., p.14.

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Quanto à observação participante, priorizei dois “lugares”: o projeto PPTAL, que

freqüentei de forma menos sistemática, entre 2002 e 2003 e a GTZ, onde permaneci por

período mais longo no escritório, entre 2003 e 2004.

No PPTAL, eu me ative às formas de entrada e de absorção dos procedimentos

alemães no órgão indigenista brasileiro, como ele havia sido elaborado e quais as

articulações locais postas em prática com a participação da organização alemã. Busquei

explorar as dinâmicas de redefinição na administração pública de orientações, antes

refratárias, que incorporam o projeto de cooperação resultante de todo um processo

construído por meio de pessoas em redes já existentes do ambientalismo e do

indigenismo. Para complementar a história do projeto, recorri a algumas pessoas que

participaram do seu momento inicial, entrevistei Isa Pacheco Rogedo e Sidney Possuelo,

a partir dos quais tive contato com membros do CTI, que também tomaram parte na

negociação e na elaboração do projeto.

Ao longo da pesquisa, compreendi que o foco restrito a um projeto limitava

muitos aspectos que explicavam a lógica própria à cooperação técnica alemã da GTZ,

porque não garantia uma observação comparada entre trabalhos daquela mesma

organização, além de que as particularidades do projeto, as tensões e conflitos

envolvendo brasileiros e alemães já terem sido exploradas por outra pesquisadora e por

um consultor da GTZ23.

Como não tinha clareza quanto ao que era próprio daquela conflituosa relação

com a Funai e o que era específico da GTZ, decidi ampliar o universo de análise ao

campo institucional e conceitual do desenvolvimento na Alemanha onde se situava a

GTZ, envolvendo o ministério alemão BMZ. Isto implicava ainda entrar em contato com

outras instituições da administração pública brasileira da área de meio ambiente na qual a

GTZ também desenvolvia projetos vinculados ao PPG-7 no Ministério de Meio Ambiente

(MMA), e com aqueles setores que regulamentavam os acordos de cooperação técnica

entre Alemanha e Brasil, especialmente a ABC, além de outros setores do MRE.

Busquei abordar a agência de cooperação técnica alemã, a GTZ a partir de como

ela se representa, daquilo que ela afirma ser enquanto uma agência alemã de cooperação 23 Lima, Ludmila. “Se a FUNAI não faz, nós fazemos”. Conflito e mudança no contexto de um projeto de cooperação. Tese de doutorado, UnB/DAN, Brasília, 2000. Ver também: Almeida, Alfredo Wagner Berno de. “Avaliação Independente sobre o PPTAL”, Consultoria apresentada à GTZ, 2001.

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técnica. Analisei deste lugar periférico as próprias “organizações doadoras”, ou “do

Império”, seguindo uma linha de investigações aberta por Laura Nader sobre o impacto

de instituições em sociedades que os antropólogos tradicionalmente estudam, e propõe

um desafio aos antropólogos: “What if, in reinveniting anthropology, anthorpologists

were to study the colonizers, rather than the culture of the powerless, the culture of

affluence rather than the culture of poverty.”24

A elaboração de etnografias em burocracias ainda atrai muito poucos

antropólogos. Hinshaw já apontara em 1980 a carência de estudos antropológicos sobre

administração pública, o que ele atribuía à falta de inclinação dos antropólogos pelo

trabalho com burocracias:25 “Few anthropologists have written about administration and

bureaucratic cultures, for the reason that anthropologists find administrative roles and

participant observation in bureaucracies a bit distasteful”. No entanto, a partir dos anos

1990 vimos que trabalhos como o de Helen Schwartzman, Ethnography in Organizations

(1993) e de Susan Wright, Anthropology of Organizations (1994) apontam para um

crescente interesse por parte de antropólogos em relação ao tema e apresentam questões

que foram muito inspiradoras para o presente trabalho, particularmente em relação a

abordagem que trazem sobre poder nas organizações.

No entanto, há ainda outros aspectos, relacionados particularmente à relação dos

antropólogos não com comunidades iletradas ou tribais, mas com os da sua própria

cultura, de formação universitária e outros atributos que os colocam diante de um

contexto questionador e pouco favorável à sua aceitação entre eles, fato que não concorre

para a realização de um trabalho de observação participante.

Há pesquisas desenvolvidas prioritariamente a partir de análise documental, e as

que são realizadas através da observação participante diretamente em instituições.26 Neste

último caso, o processo de levantamento de dados é mais difícil, ficando o pesquisador

vulnerável às dinâmicas de poder dos atores em jogo, sendo ora envolvido em suas redes

de relações, ora evitado, ou ainda mantido sem as informações relevantes de que os atores

24 Nader, L. “Up the anthropologist”. In: Hymes, D. Reinventing Anthropology. New York, Ramdom House, 1972, p.289. 25 Hinshaw, R.E. “Anthropology, administration and public policy”. Annual Review of Anthropology, 9, p.509, 1980. 26 Lima, Ludmila, 2000.; Silva, K. 2004. Castro, J. 2005.

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dispõem. Tão enredadas relações implicam uma relativa perda da noção de

distanciamento do pesquisador, que se faz mais intensa do que as pesquisas que lidam

com dados históricos e documentos arquivados.

Além da falta de interesse que este ambiente promove em boa parte dos

antropólogos, com seus escritórios no espaço urbano, salas com ar-condicionado, janelas

semifechadas, luz fria, telefones e computadores individuais, a própria pesquisa é uma

atividade estranha, pouco usual nos escritórios de agências públicas, demonstrando quão

pouco público é o seu fazer. De maneira geral, a entrada do pesquisador cria um temor de

auditoria, de investigação criminal, não havendo um claro entendimento por parte dos

funcionários quanto às finalidades de um estudo acadêmico, principalmente

antropológico baseado na observação direta naquele local. São raras as ocasiões em que

isto acontece, dependendo da formação de algumas pessoas nas instituições.

Os documentos “públicos”, por sua vez, são instrumentos de poder de quem os

detém. Na maioria das instituições “públicas”, apesar de haver um arquivo de

documentos, muitos deles são pessoalmente guardados pelos coordenadores de projetos,

chefes de departamentos ou mesmo funcionários. Apesar de serem “públicos”, acessá-los

é uma manobra diplomática, uma conquista que exige procedimentos formais de

apresentação de compromissos escritos e cartas aos superiores para o convencimento do

interesse exclusivamente acadêmico da pesquisa, porque há sempre uma suposição de

que haja interesses políticos por trás dela.

Como já mencionei, a GTZ é uma das várias organizações alemãs que executam

esta política, uma política de Estado, e como é uma das mais importantes agências,

centraliza em seus escritórios regionais informações também sobre trabalho

desenvolvidos por profissionais de outras agências e fundações alemãs no Brasil, como

DED, Fundação Heinrich Böll, Deutsche Stiftung für Intenationale Entwicklung

(Fundação Alemã para o Desenvolvimento Internacional - DSE), entre outras.

Assim, o segundo contexto de observação da cooperação alemã foi o escritório da

agência GTZ, local privilegiado de produção de saberes e ponto de encontro e referência

cultural para os funcionários alemães, com uma abordagem centrada na etnografia de

organizações, conforme será analisado no capítulo 5. No período mais longo em que

fiquei em Brasília, de 2003 a 2005, freqüentei seguidamente o escritório da GTZ,

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realizando novas entrevistas e pesquisa bibliográfica mais ampla em biblioteca própria. O

escritório da GTZ em Brasília é o local onde supostamente se administra como na

Alemanha, fala-se alemão e encontram-se os alemães que trabalham com projetos de

desenvolvimento deste país, inclusive de outras organizações. É o lugar mais próximo, o

elo com o exterior, fonte de controle e regulação que vem de fora.

Por um período contínuo de um semestre e, posteriormente, em visitas

esporádicas, durante os dois anos em que estive em Brasília presenciei a atuação dos

funcionários nos processos em andamento do escritório de representação da GTZ no

Brasil. Procurei participar de situações rotineiras do escritório, entrevistei os peritos e os

funcionários, fiz levantamento das publicações existentes na pequena biblioteca e estive

presente em eventos que caracterizam os rituais da cooperação, como convidada da

GTZ, das redes de ONGs ou das instituições do governo brasileiro.

Um dos caminhos que busquei para pensar a constituição da GTZ, além daquele

formal, a partir da estrutura da empresa e de seu caráter institucional, foi entender quem

são os alemães que atuam em projetos do PPG-7 nos quais a GTZ estava envolvida:

coordenadores de programas, coordenadores de projetos, peritos técnicos de atuação

local, auxiliares de contabilidade de escritório e secretárias. Entrar no universo das

relações pessoais dos peritos, buscando desvendar suas visões sobre o trabalho que

desempenham poderia revelar uma determinada perspectiva “de dentro” da organização.

São profissionais de variadas áreas, como filólogos, antropólogos, sociólogos,

economistas, administradores, pedagogos, agrônomos entre outros.

Uma de minhas hipóteses, a partir da análise das trajetórias sociais dos “peritos”

da GTZ, de voluntários e de outros que trabalham em projetos de cooperação para o

desenvolvimento é que há uma intensa circulação destes profissionais entre as instituições

governamentais e não-governamentais alemãs de cooperação em um mesmo país, o que

se presta a uma forma de administrar informações e conhecimento por uma mesma rede.

Outra hipótese é que a atribuição do sucesso de um projeto não se deve, em última

instância, a fatores associados a racionalidade “técnica” das burocracias, mas antes se

baseiam em características pessoais do perito e em sua capacidade de estabelecer

vínculos com a comunidade com a qual trabalha. O sucesso de um projeto estaria

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relacionado, portanto, à construção de uma relação de confiança entre o perito e o grupo

com o qual trabalha, que reconhece seu valor.

Procurei identificar se seria possível falar de uma “trajetória alemã”, dos aspectos

singulares nas variadas formas de elaborar o “problema” e definir “soluções” nos projetos

de cooperação, independente das instituições que atuam e dos cargos que são ocupados.

Neste sentido, o foco seria a existência ou não de saberes e práticas especializados em

relação à gestão de populações indígenas, as “tecnologias sociais” de gestão de

populações e os conflitos decorrentes de concepções e práticas distintas da administração

pública nacional que definiriam a própria existência dos “peritos”, aqueles que detêm

esses saberes especializados.

Nos países onde atua, a GTZ está constituída por um corpo de profissionais

característico de burocracias da administração pública: diretores e coordenadores de

programas, funcionários responsáveis pela administração dos projetos junto à GTZ

central e contadores, além daqueles que desempenham a função direta de execução dos

projetos em órgãos de governo local, que no caso alemão, são os peritos técnicos. Eles

são os portadores de saberes e conhecimentos específicos de Estado e os transmissores

desses conhecimentos para órgãos de governo de outros Estados. Articulam-se, nas

variadas instituições às quais estão vinculados, por meio de redes sociais estabelecidas

não somente por ideais terceiro-mundistas, mas também por fundamentos de

solidariedade, de cristianismo e de princípios ambientalistas e conservacionistas.

Os profissionais da GTZ que atuam no Brasil são, em sua maioria, alemães

nativos, descendentes ou cônjuges de alemães. No caso dos peritos, em geral são todos

alemães nativos, cabendo aos descendentes e aos seus cônjuges funções administrativas

de menor responsabilidade, sendo raros os alemães nativos que não coordenam projetos.

Para esta pesquisa entrevistamos um grupo de alemães falantes da língua portuguesa, cuja

prática profissional se deu, em algum momento de suas experiências na GTZ, em projetos

desenvolvidos na América Latina e no Brasil.

Um aspecto muito pouco mencionado em publicações existentes sobre a GTZ é o

fato de ela ser uma empresa de direito privado, na forma de sociedade de

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responsabilidade limitada27, de propriedade do governo federal alemão. Todos os

profissionais que trabalham em programas e projetos de desenvolvimento no mundo têm

com a GTZ um vínculo empregatício assalariado: são profissionais liberais e não

voluntários. Àqueles funcionários responsáveis pela execução de projetos em países

estrangeiros são garantidos salários bastante elevados, compatíveis com o mercado

europeu e pagos em euros. Além dos altos salários, têm sua mudança, carro e despesas

com moradia pagos por fora do salário recebido, o que permite uma vida de muito

conforto, representando também uma forma de poupar, já que o custo de vida em “países

em desenvolvimento” é, em geral, bem inferior ao da Europa. Por trás do discurso oficial

da bondade, das parcerias e da ajuda internacional, o campo do “desenvolvimento”

representa um grande mercado de trabalho para alemães no exterior, sobretudo para

aqueles formados em áreas como agronomia, zootecnia, botânica, ecologia, pedagogia,

sociologia, entre outros, que de maneira geral são campos restritos na Alemanha.

São chamados peritos aqueles a quem são atribuídas as funções de coordenação e

planejamento das atividades do projeto. O trabalho dos peritos envolve o monitoramento

e o acompanhamento das atividades de funcionários de órgãos dos governo locais com os

quais desenvolvem os projetos. Isto abarca desde ministros de Estado, presidentes de

órgãos da administração pública, diretores, coordenadores ou chefes de departamentos,

até funcionários das áreas chamadas técnicas.

Os peritos são responsáveis por repassar uma forma de administrar definida por

princípio como eficiente, sendo eles os “especialistas” treinados para implementar as

normas e os procedimentos de planejamento e gerenciamento de projetos desenvolvidos

pela GTZ. São familiarizados com esta forma de administrar por meio de cursos que

recebem na Alemanha e de estágios práticos que fazem em campo junto a outros peritos

mais experientes. A função dos peritos é fazer com que os conhecimentos relativos a

“administrar em territórios estrangeiros” sejam aplicados e transmitidos para os

profissionais com os quais trabalham, independente do tipo de projeto que eles venham a

executar. Assim, eles atuam como elos de uma cadeia de transmissão de saberes do

Estado alemão aos Estados com os quais cooperam, conectando a sede na Alemanha à

instância local e atribuindo valores e representações em um duplo processo de

27 A sigla que representa sociedade limitada na Alemanha é GmbH.

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significação: traduzem para os “locais” o que entendem ser a GTZ, da mesma forma que

também o fazem sobre os significados dos problemas e questões dos países onde

desenvolvem os projetos. São eles os portadores de informações à sede da organização na

Alemanha sobre o andamento do projeto, como também trazem de lá novas normas e

diretrizes para execução de projetos. São, para a sede alemã, os tradutores, intérpretes do

“local”.

Foram realizadas entrevistas com brasileiros e alemães falantes do português que

trabalhavam ou haviam trabalhado em projetos da GTZ no Brasil, num total de 52

entrevistas, entre as quais 24 foram de funcionários da GTZ: diretores, coordenadores de

projetos, peritos, responsáveis administrativos por projetos, secretárias e mesmo ex-

funcionários aposentados. Havia ainda funcionários e representantes de outras

instituições alemãs, como do KfW, da Fundação Heinrich Böll, de Ongs e pesquisadores

de universidades alemãs, estes últimos por e-mail. Do governo brasileiro, representantes

de vários órgãos foram entrevistados: funcionários da Funai, do Ministério do Meio

Ambiente, da Agência Brasileira de Cooperação, da Secretaria de Assuntos

Internacionais e de Ongs brasileiras, como o INESC, o CTI e a FASE, totalizando 28

entrevistas. Deste conjunto, procurei obter um panorama diversificado de funcionários,

profissionais, agentes produtores e reprodutores da lógica da cooperação técnica alemã

que colocam em prática nas suas relações profissionais e pessoais.

Entre os alemães nativos atuantes no PPG-7, foram entrevistados: Monika

Grossman, perita da GTZ em Projetos Demonstrativos - PDA; Thomas Fatheuer, na

época perito da GTZ no PDA; Sondra Wenzel, perita da GTZ no PDPI; Gustavo Wachtel

(perito da GTZ nos projetos Áreas Protegidas (ARPA) e Corredores Ecológicos; Hans

Kruger, perito da GTZ no SPRN. Outros alemães que não eram ligados aos projetos do

PPG-7 também foram entrevistados, como Claudia Herlt, perita da GTZ no projeto DST-

AIDS; Anselm Duchrow, perito em projeto no semi-árido do Ceará; Ernst Lamster, ex-

funcionário da GTZ atualmente aposentado. Participei de encontros de antropologia da

ABA, em Gramado, e da ABANNE junto com Peter Schroeder, da Universidade Federal

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de Pernambuco e Karin Naase, pesquisadora vinculada ao Museu Goeldi, no Pará, além

de Sondra Wentzel.28

Eu sabia desde o início que a aproximação com os alemães integrantes das redes e

das instituições desta pesquisa não seria fácil. As maiores barreiras que encontrei em

relação a eles no levantamento de campo da burocracia da cooperação em Brasília foi a

reserva ou a resistência de peritos, funcionários, técnicos, consultores da GTZ no Brasil.

Esta aproximação com a vida privada incomodou em muito os peritos alemães,

burocratas por excelência. O fato é que, ao tocarem as entrevistas em questões pessoais,

as respostas eram desviadas para o mundo do trabalho. Muitas vezes atribuíam às suas

ocupações a impossibilidade de concederem entrevistas ou de conversarem comigo sobre

o tema da pesquisa. Weber diz que “a organização moderna do serviço público separa a

repartição do domicílio privado do funcionário e, em geral, a burocracia agrega a

atividade oficial como algo distinto da esfera da vida privada”.29 Isto foi comprovado em

muitas situações cotidianas, nas quais tentava me aproximar mais da esfera pessoal dos

peritos e dos funcionários da GTZ, mas sem muito sucesso.

Em determinado momento da pesquisa, diante dessas dificuldades no contato

pessoal, resolvi optar por uma estratégia mais abrangente de levantamento de dados e

solicitei um horário para conversar com a diretora da GTZ no Brasil. Expliquei a respeito

dos problemas encontrados e pedi autorização para enviar aos funcionários da GTZ,

situados em todo o Brasil de acordo com os seus respectivos projetos, um questionário

com perguntas de caráter pessoal sobre as suas experiências no mundo da cooperação

internacional em geral e, particularmente, na GTZ. Ela pediu que mandasse para ela um

resumo da minha pesquisa e disse que remeteria aos funcionários, através da rede de

endereços eletrônicos, uma apresentação indicando que estaria sendo enviado por mim o

questionário para cada um deles. De cerca de 20 funcionários, somente uma resposta me

foi enviada. Além deste, em oportunidade posterior, uma das funcionárias que havia

28 Além dos alemães da GTZ e de outras instituições alemãs, entrevistei também funcionários brasileiros da GTZ que atuavam em projetos no Brasil, mas que não eram necessariamente peritos. Alguns o foram, como Walkyria Moraes, Maria Auxiliadora Cruz de Sá Leão e Márcia Gramkow, chamados peritos locais. Já Ana Lucia Palfinger e Lucia Loebell eram funcionárias administrativas do escritório da GTZ. 29 Weber, M. “Burocracia”. In: _______. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1963. p.230.

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recebido o questionário me disse que circularam entre eles várias mensagens sobre o

enfoque nas pessoas, e que eles teriam decidido em grupo não responder.

Nenhuma resposta me foi encaminhada, fosse de crítica à forma do envio do

questionário, fosse de justificativa em relação às razões de não responderem. Fiquei por

mais de um mês aguardando, em vão. Novamente enviei ao grupo uma solicitação de

colaboração, ou mesmo alguma indicação das razões de não estarem respondendo.

Um ano se passou até que recebesse pessoalmente as críticas e as considerações

sobre aquele episódio que me deixara bastante desestimulada e desesperançada com a

pesquisa. Em Manaus, em um evento de antropologia, uma “perita”, após algumas

explicações pontuais que fiz sobre cada uma das minhas perguntas no questionário,

concedeu-me uma entrevista, respondendo a algumas delas de caráter bem pessoal;

segundo ela, isto é bastante problemático quanto à identidade alemã: “A vida privada

para os alemães é ‘sagrada’, é uma questão a ser preservada. Em relação ao espaço do

mundo privado, os alemães mantêm reserva e discrição. Esta é uma característica comum

a nós.”

Sua definição da preservação da vida privada como algo sagrado, generalizado

para “os alemães” não foi exatamente o que observei nas entrevistas. Alguns deles na

GTZ, particularmente aqueles que tinham altos postos, posições elevadas na hierarquia,

respondiam com certa liberdade às questões pessoais. O fato é que a identidade

institucional é usada como uma forma de justificar os comportamentos pessoais,

mascarando-os, ou mesmo de representar a própria instituição a partir de seus

comportamentos .

Em outra ocasião, em Brasília, um ano após esta entrevista, um perito da GTZ,

responsável por um projeto que fazia interface com os projetos indígenas, o Corredores

Ecológicos, justificou a posição que levou o grupo a não responder às perguntas. Sua

explicação seria distinta daquela que me fora apresentada anteriormente, não fazendo

menção a qualquer atributo relacionado à identidade nacional. Disse-me ele que o

questionário que apresentara tinha perguntas pessoais que haviam sido colocadas em um

meio de muito fácil veiculação, a Internet, de divulgação pública. Para eles, não havia

ficado claro no e-mail que eu enviara qual era o tipo de pesquisa que estava fazendo e,

como envolvia certa “indicação” da diretora da GTZ, insinuava estar vinculada ou

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submetida àquela que era a chefe de todos eles. Este mesmo perito explicou também que

há um sindicato dentro da empresa, na Alemanha, que anualmente investiga questões

pessoais sobre as condições de trabalho, a adaptação ao país, se têm apoio da agência. No

entanto, para que se sintam seguros sobre o destino dessas informações, sabendo que

estarão guardadas confidencialmente, há uma senha de acesso, muito diferente do que eu

havia feito.

Em seguida, contou-me outro episódio sobre uma avaliação que a GTZ solicitara a

nove ONGs da Amazônia sobre o trabalho que vinha realizando nos projetos ARPA e

Corredores Ecológicos. Os resultados consolidados nas críticas e nos relatórios de

avaliação enviados pelas ONGs deveriam ser retornados a elas, com o objetivo de

estabelecer um diálogo. No entanto, os relatórios ficaram somente para discussão interna,

não sendo divulgados publicamente porque, em suas palavras: “Nós somos governo. Tem

coisas pessoais que são colocadas em relatórios que não podem se tornar públicas. Uma

das demandas das ONGs era de que fôssemos mais próximos às ONGs, mas nós somos

governo”.

A língua foi um dos pontos de maior desconforto para alguns alemães que

entrevistei, até mesmo para funcionários brasileiros da GTZ, que me indagavam como

pretendia fazer uma pesquisa sobre alemães sem dominar o alemão.30

Da forma como me foi colocada – insistentemente – por peritos e até por

funcionários administrativos da GTZ, a questão da língua alemã tinha uma representação

fundamental no que concerne aos procedimentos administrativos da agência. Ela era,

sobretudo, um dos elementos de identificação de um grupo, aquele que define os limites

de uma comunidade deutschland.31 Uma funcionária da GTZ, de formação superior,

30 Fiz durante um ano um curso particular com um professor alemão, o que me forneceu uma estrutura da língua, favorecendo particularmente a leitura, acompanhada de dicionário, mas não sendo suficiente para pesquisa e leitura aprofundada de relatórios e documentos de análise de órgãos de governo alemão. 31 A expressão “comunidade deutschland” foi usada na revista alemã Deutschland, publicada pelo Ministério de Relações Exteriores da Alemanha, para referir-se ao conjunto de pessoas que têm nacionalidade alemã. Até 2000, a cidadania alemã baseava-se no princípio do jus sanguinis, ou seja, da descendência, independente do nascimento em solo alemão. A partir de então, passou a ser permitido aos filhos de estrangeiros nascidos na Alemanha adquirirem a cidadania alemã desde o nascimento, conforme mudanças na Lei de Reforma do Direito de Cidadania. In: Ministério Federal das Relações Exteriores. Perfil da Alemanha. Berlim: Media Consulta Deutschland GmbH, 2003. p.20.

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argumentava que para trabalhar ali o principal requisito era falar o alemão e não

necessariamente ser muito competente.

Cheguei a Brasília para fazer a pesquisa sem vínculos com aquele “mundo da

cooperação” e com as instituições que pesquisava, o que me colocava em uma posição de

outsider em vários sentidos. Do ponto de vista da “comunidade da cooperação

internacional” – funcionários que trabalham nesta área – eu também não me enquadrava:

não era funcionária pública, não era consultora de agências de cooperação internacional,

não era diplomata, estas sendo algumas das principais formas de inserção nas políticas de

cooperação internacional. Era uma mera pesquisadora, ainda mais com vínculos

distantes, no Rio de Janeiro e não na UnB.32

Em relação aos alemães, outros fatores me excluíam quanto a uma forma de

inserção: a dos estrangeiros, dos doadores. Entre os funcionários da GTZ, alemães e não-

alemães, era constantemente testada em relação às minhas afinidades com o mundo

deutschland. Aí também eu não me enquadrava: não sou alemã, nem mesmo descendente

de alemães ou cônjuge de um, não sou uma exímia falante da sua língua, ou sequer morei

na Alemanha ou trabalhei em suas empresas ou agências.

Esta distância quanto ao seu país intrigava-os em função dos meus interesses na

pesquisa. Minha relação com os alemães da GTZ restringiu-se ao enfoque da pesquisa

antropológica, o que era visto pelos seus funcionários de Brasília como uma “reedição”

de outros trabalhos de antropologia bastante críticos sobre a GTZ, e isto se tornou uma

condição fundamental para a restrição a determinadas informações. 33

32 Consultor, na definição do dicionário Aurélio, é “aquele que dá pareceres acerca de assuntos da sua especialidade”. Na prática, o consultor pode ser um profissional de qualquer área contratado para prestar um serviço temporário a órgãos de governo, ONGs ou instituições privadas, com base em conhecimentos próprios à sua formação acadêmica e profissional. Diz-se usualmente que o contrato de consultoria se dá “por produto”, considerando que o resultado final de uma consultoria seja um relatório, uma avaliação ou um parecer (o produto a que se refere) sobre determinado assunto específico de um projeto, podendo ser feito em qualquer uma de suas fases, desde sua negociação até o seu encerramento. 33 No Brasil, há pelo menos dois trabalhos antropológicos sobre a atuação da GTZ no projeto indígena PPTAL, os quais mencionam a relação da perita da GTZ com os técnicos brasileiros: o primeiro, de caráter essencialmente acadêmico, refere-se a uma tese de doutorado em antropologia social pela UnB, de Ludmila Lima (2000); posteriormente, em 2001, foi encomendada pela própria GTZ uma consultoria ao antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida de avaliação de progresso de projeto. Esta avaliação costuma ser feita por alemães, para que se dê continuidade ao financiamento. Neste caso, Almeida fez uma “avaliação independente” e adotou uma abordagem acadêmica, com muitas críticas ao projeto. As repercussões na agência não foram das melhores, mas também aconteceram no meio de antropólogos e pessoas envolvidas com a questão indígena no Brasil. A procedência destes trabalhos talvez tenha dificultado um pouco mais o estabelecimento da confiança necessária ao levantamento de dados.

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No que se refere à abordagem que eu pretendia adotar, não encontrei, no entanto,

restrições por não dominar o alemão, particularmente porque o grupo que estava

pesquisando falava o português, já que se tratava de uma agência situada no Brasil. Além

destes, muitos de meus informantes eram brasileiros que trabalhavam diretamente com os

alemães, desde funcionários do escritório central da GTZ até funcionários dos projetos.

Estes últimos não eram contratados pela GTZ, mas atuavam em órgãos governamentais e

em instituições não-governamentais diretamente ligadas aos projetos em que a GTZ

estava presente.

Apesar de o domínio do alemão não ser indispensável para a pesquisa,

compreendi que o lugar de “excluída” que me atribuíam, por não fazer parte de uma

comunidade deutschland, tinha muitos significados, sobretudo no que se referia a uma

posição hierárquica. A compreensão da língua nos distinguia culturalmente e, neste

sentido, a assimetria era um elemento marcante. 34

Ao considerar que tais relações “de cooperação” se inserem em uma estrutura

internacional assimétrica de poder, cuja dimensão e efeitos não podemos negligenciar, a

falta de fluência na língua dos “doadores” dirigiu o meu olhar para as formas em que ela

era acionada enquanto dispositivo de poder, tanto nas experiências observadas nas

relações pessoais, como nas publicações institucionais.

A “marginalidade” da língua alemã é uma questão colocada em fóruns e debates

internacionais, e a importância da tradução para outras línguas de textos e obras neste

idioma é reconhecida como forma de se estabelecer diálogo com parceiros, como consta

em publicação da GTZ/BMZ: “existem versões da edição alemã nas línguas inglesa,

francesa e espanhola, a fim de serem eliminadas as barreiras lingüísticas no diálogo com

os colegas nos países parceiros da GTZ”. 35

Apesar de muitas publicações em português, inglês ou espanhol, os livros e os

periódicos em alemão para o público científico e acadêmico revelavam uma determinada

escolha de quem os produzia por dialogar com os pares de mesma língua. Ou mesmo de

restringir o acesso a informações, reflexões e interpretações sobre a realidade social e

política de um público não-alemão. A publicação na língua-mãe pode ser interpretada 34 Steinmetz, George (ed.). State/Culture: State formation after the cultural turn. Ithaca and London: Cornell University Press, 1999. 35 BMZ/GTZ. Desenvolvimento rural regional: princípios de orientação. Eschborn, 1987. p.7.

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como uma opção que contradizia alguns dos princípios de horizontalidade das diretrizes

do BMZ. 36

Mas não só isso. É importante ressaltar que o alemão é a língua da burocracia

alemã, onde quer que ela esteja. A expansão das burocracias leva com ela seus

pressupostos de nacionalidade, de referências nacionais. A GTZ adota como padrão de

funcionamento gerencial que todos os documentos no trâmite administrativo dos projetos

no escritório sejam feitos em alemão, desde comunicados entre os funcionários até

contratos de serviços (inclusive de consultorias), contabilidade, documentos de avaliação

interna sobre os projetos e relatórios periódicos dos peritos. Ao se considerar a sua

atuação em mais de cem países, a prerrogativa do alemão como língua de referência tem

que ser instituída para controle administrativo por parte da central. Todos os documentos

relativos a projetos e programas no mundo inteiro são enviados à Alemanha.

Pesquisar nessas condições pouco familiares e pouco interessantes para os

“pesquisados” dificultou em muito a aproximação e o estabelecimento dos laços de

confiança necessários para a prática de levantamento etnográfico. Como o objetivo inicial

do trabalho era priorizar os relatos pessoais de profissionais alemães que atuavam na

“cooperação técnica” que a GTZ investia nos projetos com povos indígenas no Brasil,

sobretudo aqueles que tinham uma trajetória anterior – fosse em igrejas ou em

organizações não-governamentais nos anos 70 – a dificuldade de aproximação com os

alemães praticamente inviabilizava a investigação. Foi necessário um exercício de

adaptação às condições de acesso a informações, o que fiz por meio da pesquisa

bibliográfica, da observação nos escritórios, da participação em eventos e seminários

organizados pela GTZ e de entrevistas com brasileiros.

A aproximação com os profissionais alemães da cooperação foi particularmente

difícil, como veremos na análise sobre os peritos técnicos da GTZ, mas os obstáculos não

impediram a realização da pesquisa, seja as entrevistas, seja a observação participante. O

processo em ambas as situações ocorreu em meio às condições de trabalho dos escritórios

e às atividades cotidianas vividas na administração pública e nos organismos

internacionais em Brasília. Havia pressões de todo tipo, telefonemas, decisões políticas,

36 O site da GTZ e do BMZ foi traduzido para o inglês somente em agosto de 2005.

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reuniões e convenções, estando sempre presentes diversas restrições: a forma como os

“nativos” se apresentam e o que ocultam (institucionalmente ou individualmente); o que é

permitido que seja visto ou lido, ou não; o que é interessante de ser visto e lido pelos

alemães ou pelo serviço público brasileiro. Vale ressaltar que, se eles não se mostraram

disponíveis, tampouco interditaram minha pesquisa, sendo muitos dos entrevistados

bastante cordiais e colaboradores em relação ao meu trabalho.

Ao conviver com este universo de cooperantes, tive conhecimento de encontros e

seminários organizados pela GTZ no Brasil e pude freqüentá-los. Participei de alguns

acontecimentos da cooperação alemã no Brasil, como o seminário sobre Energias

Renováveis na América Latina, o encontro latino-americano sobre AIDS, além do mais

simbólico evento da cooperação: a comemoração dos 40 anos de relações de cooperação

entre Brasil e Alemanha. Acompanhei diretamente a organização desta comemoração,

participando da elaboração das festividades, da revisão de documentos publicados e da

própria festa. Para este tipo de eventos da cooperação ou rituais de Estado – seminários,

oficinas, debates, comemorações, conferências – Brasília é um espaço urbano

privilegiado. Possui infra-estrutura de serviços e hotéis de luxo para grandes

comemorações, além dos salões do Itamaraty, que são os mais tradicionais e os mais

disputados para eventos diplomáticos.

Nesses encontros, ocorrem situações que reúnem grupos de alemães que

trabalham em agências e organizações de “cooperação” em diversos pontos do país e nos

setores da administração pública no Brasil, como também pessoas que fazem parte do

governo brasileiro, de organizações não-governamentais e internacionais e que

participam freqüentemente dos eventos das organizações alemãs. Foi possível, a partir

destes encontros, delinear o contorno das redes de pessoas e instituições que tinham

relações com a GTZ no Brasil. Busquei, ainda, reunir dados e informações com as

instituições nacionais chamadas contrapartes brasileiras – os parceiros da GTZ no Brasil

– quando não conseguia obtê-los pelas fontes da GTZ. Tal estratégia permitiu-me ver, de

diferentes lugares, como a GTZ se apresentava e como era percebida.

Os rituais públicos das agências de cooperação são realizados com vários

propósitos, tanto em relação ao seu país de origem, como ao contexto onde atuam: são

uma forma de prestação de contas para os contribuintes de seus países de origem do

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trabalho que vem sendo realizado e de como o “seu dinheiro” (do contribuinte) está sendo

bem aplicado. Para o contexto local, é também a propaganda de uma imagem de

confiança e eficiência, que visa criar admiração e estabelecer alianças.37 Nessas ocasiões

de descontração e de conforto, são consolidadas alianças entre representantes dos dois

governos envolvidos, quando é possível ter visibilidade dos grupos que, no Brasil, têm

relações mais próximas com os alemães, desde funcionários do governo até organizações

relações mais próximas com os alemães, desde funcionários do governo até organizações

não-governamentais.

Setting

Foi no contexto urbano de Brasília, cidade contraditória, capital federal e

“província” de Goiás, espaço urbano excludente e de concepção arquitetônica

“igualitária”, profundamente estratificado e segmentado, que a pesquisa se desenvolveu.

Como capital federal, Brasília é espaço de elaboração e reprodução de inúmeros rituais de

poder, centro das decisões políticas, sendo, portanto, o local mais importante para captar

as dinâmicas das políticas e das relações diplomáticas associadas à cooperação técnica

para o desenvolvimento.

Em Brasília estão localizados os organismos e as agências internacionais mais

influentes do Brasil. Ali se situam as embaixadas dos países com os quais o Brasil tem

relações diplomáticas e a grande maioria das representações de organismos internacionais

no Brasil, como a Organização das Nações Unidas - ONU, a Organização dos Estados

Americanos - OEA, o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento -

BID, a Comissão Econômica para América Latina e Caribe - CEPAL, a Organização

Internacional do Trabalho - OIT, a Organização Mundial de Saúde - OMS, a Organização

das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura - UNESCO, o Programa das

37 A idéia dos eventos é de passar imagens positivas do trabalho realizado e não um espaço para críticas e discussões. A forma de apresentação é rápida, ilustrativa, da maneira que os expectadores já esperam que tudo se dê, sem maiores polêmicas, para que sigam diretamente ao coquetel e às conversas, nas quais são amarradas novas propostas de negócios e projetos. Isto é o que interessa.

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Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD, 38 bem como os escritórios das

principais instituições que executam a política de cooperação para o desenvolvimento da

Alemanha no Brasil, dentre elas, a GTZ, o banco KfW e a embaixada da Alemanha.

A decisão de realizar o trabalho de campo na cidade foi fruto de um empenho não

só pessoal, mas também familiar, que envolveu toda uma rede complexa de sentimentos,

mudanças, incertezas. Meu companheiro, meu filho de seis anos e eu nos mudamos

esperando ficar por seis meses em um pequeno apartamento funcional de um estudante do

Instituto Rio Branco, que ficaria vago por dois meses, tempo em que ele estaria

cumprindo o estágio no exterior.

Ficamos, sem que houvesse um planejamento prévio, por mais de dois anos nesta

cidade, que reflete este aspecto “estatal” na própria organização urbana. Nem sempre as

diferenças entre os tipos de apartamentos, mais confortáveis ou menores, são notadas da

rua, porque do exterior eles são parecidos; talvez não exatamente os apartamentos, mas o

aspecto geral dos jardins, dos pilotis, da disposição geral onde se situam os prédios.

Somente aos poucos é possível compreender a lógica que impera quanto ao valor

atribuído a determinados endereços, a certas quadras, o que não tem relação, como

acontece no Rio de Janeiro, com a vista mais bonita de uma montanha ou do mar, com

pontos turísticos ou lugares de uma beleza natural, nem com o acesso a facilidades

urbanas de abastecimento ou diversão, mas sim com o status dos funcionários que ali

residem. Somente para quem se familiariza com as dinâmicas da administração pública,

em função da lógica interna de uma cidade que é a capital, é possível entender porque a

quadra 305 ou a 406 da Asa Sul pode ser mais valorizada do que a 412. A distribuição

das moradias funcionais, hoje mais escassas, é um fator importante na definição do status

das quadras, que tem relação com o grau de importância da função e do cargo que seu

morador ocupa no governo. Os funcionários de uma “repartição” ou de um ministério são

“alojados” na mesma quadra ou prédio de apartamentos.

Talvez por ter vindo de uma cidade como o Rio de Janeiro, em que os espaços

públicos, mais do que outros, proporcionam a integração, ainda que forçada, entre

estratos sociais e membros de grupos sociais muito distintos, tem-se a impressão de que a

38 Verificar na página correspondente a lista de siglas para as definições específicas de cada uma das organizações aqui citadas.

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disposição urbana planejada e ordenada das ruas e das quadras acabaram contribuindo

para que esta fragmentação e segmentação social se incorporasse ao modo de ser

“brasiliense”.

A dinâmica social e urbana da cidade relaciona-se, em termos gerais, às estruturas

burocráticas de poder. É uma cidade regulada pela economia e pela etiqueta do “poder”, é

costurada por redes sociais entrelaçadas e baseadas em vínculos profissionais e políticos,

segmentados em temas e questões do mundo da administração pública (meio ambiente,

direitos humanos, saúde, educação...). Para um recém-chegado, a inserção em uma de

suas redes é fundamental, e isto se dá em grande parte através das relações de trabalho.

As amizades, salvo exceções, organizam-se em termos de trabalho, na sua maioria,

pessoas advindas da administração pública federal. A vida social de uma fração

significativa da população de Brasília circula prioritariamente em torno dessas relações

de trabalho, o que envolve toda uma lógica do poder – acesso a informações, linhas de

financiamento, lobbies, participação em eventos, entre outros.

Esta dinâmica da cidade como centro de poder garante uma fonte incessante de

informações e boatos sobre o funcionamento do governo, da administração pública, que

não se obtém de outra forma senão estando presente nas instituições, participando de

eventos, conversando informalmente com os funcionários em Brasília. Constituem-se ali

redes de “cidadãos funcionais”, para utilizar uma categoria “funcional”, derivada da

administração pública – forma freqüente de representação de aspectos da vida em Brasília

que, neste caso, se aplica à idéia de que o exercício de cidadania está fortemente

articulado à posição exercida na vida profissional, em grande parte relacionada à

administração pública.

Não sendo facilmente identificáveis à primeira vista, percebem-se com o passar

do tempo a sua constituição e os seus entrelaçamentos com outras redes. Notam-se

também redes de profissionais de ONGs na administração pública, em uma composição

nem sempre muito clara dos limites entre o que seja governamental e não-governamental.

É freqüente ouvir que as relações sociais em Brasília são construídas com base em

interesses de ascensão profissional, já que a probabilidade de se ter contato com pessoas

que exercem cargos políticos ou que têm funções de “mando” é grande. Ter bons contatos

e conhecer pessoas significativas em seu meio profissional representa um grande valor

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social e político na cidade, o que gera, em conseqüência, contextos sociais altamente

competitivos e grupos sociais bastante restritivos e fechados.

Os grupos de profissionais são bastante herméticos, com fronteiras bem

demarcadas: antropólogo anda com antropólogo e afins “da cultura”, diplomatas com

diplomatas. Ali indivíduos afirmam-se como parte de seu grupo social, defendendo

características profissionais como elementos importantes de auto-identificação e de

pertencimento.39 As redes de relações pessoais confundem-se com as redes de relações

profissionais que fazem parte da engrenagem administrativa. Muitas vezes, essas redes de

relações profissionais são anteriores à própria prática profissional, gerações formadas em

uma mesma instituição de ensino que, em função da atuação profissional, assumem em

Brasília cargos na administração pública ou em ONGs, e contribuem para a composição

de suas “equipes” de trabalho com conhecidos de tempos anteriores.

As representações simbólicas de rituais de poder, a encenação e a ficção fundem-

se e recriam-se com as próprias práticas colocadas em ação, não sendo restritas às

instituições de governo, aos ministérios, mas estando presentes nas mais corriqueiras

conversas, em espaços informais, nos raros botequins e nos inúmeros bares e restaurantes

elegantes. Está presente também nos teatros e nos shows, cuja grande parte dos ingressos

é distribuída entre os funcionários públicos como presente de amigo, um agrado.40

A divisão da tese

A primeira parte busca desvendar as diferentes abordagens contemporâneas sobre

cooperação internacional para o desenvolvimento enquanto um conjunto de práticas

governamentais de intervenção de um Estado em outro Estado ou territórios estrangeiros,

em que estão implicados fluxos variados. Nela, apresentamos uma discussão conceitual e

39 Esta afirmação de pertencimento profissional ou “funcional” é tão forte que tive a oportunidade de conhecer um diplomata já em carreira que fez questão de comprar um antigo carro Opala, já fora de linha, o “Diplomata”. 40 Esta não é uma prática que se restringe ao meio de funcionários da área da cultura. A distribuição de ingressos de shows e espetáculos de teatro, mais caros em Brasília do que a média no Rio de Janeiro, é exercício comum na administração pública, entre os diplomatas, na Câmara e no Senado, entre políticos em geral, como “agrado” a determinados funcionários e diretores de ministérios, além de amigos pessoais. Certa vez, no Ministério de Relações Exteriores, escutei um funcionário comentando que o preço do ingresso em Brasília tinha que ser mais alto porque precisava compensar os ingressos gratuitamente distribuídos.

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teórica em que são tratadas as formas de apropriação desta expressão em distintos campos

de conhecimento, das relações internacionais à antropologia. O interesse crescente das

ciências sociais em estudar cooperação técnica para o desenvolvimento se deve em parte

à maior intensidade com que este fenômeno tem ocorrido na administração pública dos

diferentes países. Aspectos das relações de poder implícitos em discursos e práticas da

cooperação, que recorrem às imagens de bondade, solidariedade, parceria e harmonia

dessas políticas, vêm tornando cada vez mais evidente a importância de pesquisas que

tentem desvendar as práticas adotadas globalmente junto às populações de países em

desenvolvimento.

Procura-se ainda, nesta primeira parte, situar o contexto particular em que este

fenômeno explodiu no Brasil, o de intervenção de agências estrangeiras nas políticas

governamentais brasileiras por meio de recursos humanos e financeiros: o Programa

Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil, mais conhecido por PPG-7. Os

projetos a ele vinculados deram visibilidade a processos gerais e particulares de atuação

da agência alemã GTZ, que foi o eixo a partir do qual analisei práticas de intervenção no

campo ambientalista e indigenista no Brasil, no qual foram abertos espaços de atuação

para instituições governamentais e não-governamentais no mundo.

No primeiro capítulo da tese, argumentamos que o avanço da discussão sobre

questões ambientais no Brasil, que ocorreu com a realização da Eco-92 no Rio de Janeiro,

impulsionou articulações políticas entre órgãos da administração pública brasileira e

agências e organismos internacionais na forma de políticas de cooperação para o

desenvolvimento, sendo o PPG-7 um eixo a partir do qual isto ficou evidente. Neste

contexto, a articulação entre instituições nacionais e alemãs ocorreu em meio à crescente

atuação das organizações não-governamentais nas políticas ambientais, entrando

principalmente nas políticas governamentais de proteção da Floresta Amazônica. A

participação do governo alemão no PPG-7 como maior doador isolado garantiu

politicamente a afirmação de sua liderança internacionalmente, como um catalisador, na

implementação e na formulação conceitual nas iniciativas políticas ambientais.

No capítulo dois, tratamos de analisar o conjunto de definições sobre as práticas e

os discursos chamados de cooperação técnica para o desenvolvimento na literatura

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acadêmica das ciências sociais e, mais especificamente, as contribuições da antropologia

referentes ao tema.

A segunda parte refere-se aos supostos e aos contextos que caracterizam

especificamente o campo “alemão” da cooperação para o desenvolvimento. Procurei

abordar uma parte da história da Alemanha e o surgimento do aparato institucional estatal

para a cooperação, as mesmas instituições criadas para receber recursos estrangeiros para

a recuperação de sua economia no final da Segunda Guerra Mundial, e que passaram a

atuar pelo mundo na intervenção em territórios estrangeiros e na sua administração,

particularmente países “em desenvolvimento” ou países do “Terceiro Mundo”.

Esta parte trata de situar, em determinado momento da história contemporânea, as

condições políticas e conceituais que viabilizaram a implementação em vários Estados

Nacionais de um conjunto de normas e instituições de intervenção para a administração

de populações e territórios em outros Estados, o que se deu por meio de projetos que

promoviam a circulação – envio e recebimento – de recursos em fluxos distintos dos

comerciais, além de investimentos no setor produtivo. Pretendia-se historicizar este

campo usualmente tratado através de abordagens funcionais que se prendem aos

discursos naturalizados dos projetos ou dos programas em jogo. A análise deste contexto

nos permite ter maior clareza sobre a intensificação das relações entre os governos destes

dois países em diferentes momentos da história, a partir da assinatura do acordo básico de

cooperação técnica de 1963, que analisaremos na parte final da tese.

O surgimento das práticas de cooperação técnica internacional entre os anos 50 e

meados dos 70 não pode ser pensado separadamente do contexto em que surgiu,

caracterizado pelo marco ideológico da Guerra Fria, como um sistema de alianças entre a

União Soviética e os Estados Unidos, na concorrência por zonas de influência. Desde a

recuperação de alguns países europeus, a bipolaridade característica da Guerra Fria deu

espaço para a crescente atuação de outros países, como Alemanha e Japão, que já nos

anos 60 passaram a desempenhar o papel de países doadores e não mais receptores de

recursos internacionais, caracterizando uma alteração dos diferenciais de poder e

desestabilizando certa dinâmica existente de distribuição de poderes.

Para isso, no capítulo três, recorremos a um enfoque histórico do pós-guerra,

visando abordar o contexto mais geral de política internacional, sobretudo os processos

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históricos de formação de estruturas e órgãos específicos da administração pública

ocorridos no Brasil. Observamos o contexto em que se institucionaliza esta forma

específica de intervenção de instituições estrangeiras na administração púbica brasileira

nas duas primeiras décadas pós-Segunda Guerra, quando se estabelece a primazia dos

setores militar e diplomático. Chega-se ao final dos anos 80 com a consolidação de um

sistema organizado e regulamentado com a criação da Agência Brasileira de Cooperação,

quando há o ressurgimento de variados fluxos internacionais. Tais práticas fazem parte de

um processo mundial de expansão e consolidação de novas formas de intervenção, com

arcabouço conceitual e institucional do aparelho de Estado para atuar no exterior,

estabelecendo fundamentos discursivos e de atuação prática com base na lógica do

desenvolvimento.

O propósito do capítulo quatro é priorizar os processos específicos de resposta de

cada contexto nacional, brasileiro e alemão, no que diz respeito à montagem de condições

institucionais para promoção de políticas para o desenvolvimento a partir de convênios

internacionais ao final da Segunda Guerra Mundial. Recorrer aos primórdios de seu

estabelecimento e às formas que foram se desenvolvendo é fundamental para

compreendermos como a discussão atual sobre cooperação técnica no Brasil é polêmica

e envolve críticas, em função de uma suposta “perda de soberania” quando trata de

assuntos considerados estratégicos, como a questão relativa aos cuidados com populações

e terras indígenas pelo Estado brasileiro.

Por fim, a terceira parte procura retratar os resultados de uma abordagem mais

etnográfica sobre as formas de atuação, os modos de intervenção de uma agência em

particular, a GTZ. As experiências práticas observadas foram: um projeto, o escritório e

seus funcionários, e um evento público. Depois de uma incursão nos processos históricos

que promoveram arranjos bem estabelecidos e aceitos sobre uma idéia de cooperação

técnica em política internacional e da apresentação das instituições que estão envolvidas,

nós nos propusemos, nesta terceira parte, a voltar o foco para as práticas efetivamente

observáveis em contextos muito restritos e elitizados que envolvem representantes de

diferentes governos.

Também foi nosso objetivo analisar as formas pelas quais a cooperação técnica

efetivamente se institui, por meio de práticas consideradas procedimentos administrativos

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normais, usuais e, portanto, descaracterizados de aspectos de poder. Na medida em que o

Ministério de Cooperação e Desenvolvimento Econômico - BMZ é uma instância política

mas não de execução, as práticas devem ser observadas a partir das instituições às quais o

BMZ delega as funções executivas das políticas de cooperação. Como nosso interesse

recai sobre as práticas de cooperação técnica, voltamo-nos para a GTZ, tendo como

proposta analisar a organização enquanto produtora e transmissora de um determinado

tipo de conhecimentos: a administração em territórios estrangeiros.

O campo de atuação da GTZ é um “espaço de fronteiras nacionais”. Por ser uma

instituição internacional, envolve atores de diferentes nacionalidades e indivíduos em

diversas posições, como funcionários técnicos, peritos ou diretores, além de brasileiros

com os quais as agências estabelecem vínculos através dos projetos.41 Por haver ali

múltiplos sentidos, visões e nacionalidades, é um espaço de reconfiguração de

representações pelo contato. A esse espaço são conferidos valores distintos e

hierarquicamente estabelecidos.

Diante das múltiplas dimensões da atuação da agência GTZ no Brasil, a proposta

desta parte refere-se aos modos de intervenção, tanto por meio das relações informais

entre os funcionários e os consultores no escritório e outros indivíduos de organizações

nacionais, como também no que se refere aos critérios formais – hierarquias, regras de

funcionamento, divisão das atividades, métodos de contratação e plano de carreira.

As formas de administração em territórios estrangeiros, adotadas pelas agências

internacionais de cooperação técnica, através das quais se produz e dissemina um

determinado tipo de conhecimento, são principalmente: programas ou projetos

desenvolvidos com órgãos do governo local; a estrutura administrativa daquela

instituição, um escritório “filial” no qual a agência centraliza as atividades

administrativas das várias instâncias de atuação no país; ou ainda os eventos e os grandes

encontros (comemorações, seminários, oficinas, entre outros), considerados aqui rituais

das agências e dos organismos internacionais, organizados junto aos setores diplomáticos

do governo brasileiro.

41 Wright, Susan. “Culture in anthropology and organizational studies”. In: _______. (org.). Anthropology of organizations, 1994. p.19.

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O desconhecimento sobre as relações entre um “modo de fazer” projetos sociais e

ambientais e um conjunto de conhecimentos administrativos e de planejamento passados

por uma atuação continuada, disseminada e com propósitos multiplicadores de

propagação é provavelmente uma característica também de outros locais onde são

implementados, pela Alemanha, os projetos de cooperação para o desenvolvimento. Este

é o desafio de tal trabalho e, também, diante das lacunas e dos silêncios, buscar

estabelecer as tramas feitas de fios pouco visíveis aos olhos daqueles que estão no palco

dessas intervenções.

Uma vez explorados os aspectos formais que definem as relações entre os países

através de acordos de cooperação internacional, nos próximos capítulos colocamos em

foco a cooperação técnica na prática, tendo em vista três frentes de atuação da GTZ

como agência governamental de cooperação técnica: primeiramente, observamos um

projeto enquanto construção social, produto por definição da cooperação técnica e lugar

de disciplinamento, “educação”, “treinamento”, valores, comportamentos e de uma

concepção de vida social; em seguida, analisamos o local de produção, reprodução e

disseminação de comportamentos, o escritório “no estrangeiro”, espaço da exaltação do

nacional alemão, um dos pontos de estabelecimento de fronteiras claras entre o que se

define e se institui como autenticamente “alemão” e os outros; por fim, seus rituais de

produção de imagens e de difusão de conceitos.

As trajetórias particulares da GTZ na política da cooperação técnica em países

como o Brasil deve ser compreendida como parte de estratégias do BMZ para um

conjunto de organizações alemãs, o “aparato burocrático” governamental42 alemão da

política de cooperação para o desenvolvimento, aquela que tem o maior peso político de

representação do ministério BMZ no exterior.

O propósito aqui não é o de retratar a GTZ enquanto uma instituição dotada de

intenções ou decisões, mas procurar enfatizar as manipulações na prática de certas

normas pelos agentes envolvidos, as quais acabam por constituir e dar sentido à

“organização” GTZ como agência estatal de cooperação técnica alemã. 42 A ressalva aqui é importante: o que chamamos de “aparato” governamental não necessariamente se restringe a esfera de “governo” ou “Estatal” no sentido estrito. Neste caso de fato não ocorre, mas inclui também instituições não governamentais. O uso do termo “governamental” refere-se mais a idéia da existência de um “governo” de uma esfera pública de decisão que se orienta para atividades no mundo chamadas de cooperação internacional.

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No capítulo 5, analisamos aspectos formais da GTZ, sua estrutura, as normas e os

procedimentos que orientam seu trabalho no Brasil, a partir de uma etnografia realizada

no escritório da GTZ no Brasil. A observação participante no escritório da GTZ foi um

dos eixos centrais a partir dos quais desenvolvi esta tese, com o propósito de dar

visibilidade ao trabalho do governo alemão no campo da solidariedade e da cooperação

internacional através de suas práticas.

No capítulo seis, abordamos o grupo que caracteriza os funcionários da GTZ no

Brasil, partindo de uma análise de suas atribuições funcionais no escritório e da análise de

quatro trajetórias particulares de peritos que trabalharam na GTZ na implementação de

projetos. Destacamos as formas de vínculos trabalhistas, as hierarquias e as

reivindicações dos trabalhadores diante de mecanismos de poder característicos de

grandes instituições globais, como é a GTZ.

No capítulo 7, analisamos a definição de cooperação técnica a partir da atuação da

GTZ na organização de eventos, na promoção de festas e encontros, em publicações e,

principalmente, na contratação de pessoal especializado para trabalhar nos projetos pelo

mundo inteiro. O fato é que no Brasil, do ponto escolhido para observar o campo de

atuação da GTZ, a impressão que se tem é de haver uma névoa que embaça a visão das

múltiplas conexões existentes entre os vários projetos e programas desenvolvidos.

Sua maior responsabilidade é gerencial e administrativa, e a GTZ o faz por meio

de uma rede de projetos em todo o mundo, o que de certa forma tem muitas semelhanças

com a lógica colonial de administração. Assim, no último capítulo, o de número 8,

analisamos o processo de elaboração, negociação e implementação de um projeto, o

PPTAL, naquilo que se refere às articulações com as redes governamentais e não-

governamentais existentes nas dinâmicas da administração pública brasileira.

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Parte I – Cooperação técnica internacional como problema para análise antropológica

O interesse crescente das ciências sociais em estudar cooperação técnica para o

desenvolvimento se deve em parte à maior intensidade com que este fenômeno tem

ocorrido na administração pública dos diferentes países. Aspectos das relações de poder

implícitos em discursos e práticas da cooperação, que recorrem às imagens de bondade,

solidariedade, parceria e harmonia de tais políticas, vêm evidenciando cada vez mais a

importância de pesquisas que buscam desvendar as práticas adotadas globalmente junto

às populações de países em desenvolvimento.

Mas, afinal, o que vem a ser cooperação para o desenvolvimento? Poderíamos

chegar a um consenso em torno de uma definição? Ou a definição muda em decorrência

dos atores sociais que a implementam?

Como foi dito anteriormente, esta primeira parte da tese visa percorrer um campo

amplo em torno das formas de conceituação e elaboração teórica sobre cooperação

técnica para o desenvolvimento, o que defini como um conjunto de práticas

governamentais de intervenção de um Estado em outro Estado ou territórios estrangeiros

em que estão implicados fluxos variados.

Em certa medida, podemos afirmar que estudos na área de “relações

internacionais” foram pioneiros, ainda nos anos 80, em abordar questões relacionadas a

este tema que, apesar de pouco explorado na literatura antropológica contemporânea, tem

feito parte de pesquisas mais recentes, dissertações e teses de doutorado na área de

antropologia.

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Capítulo 1 – O PPG-7 e os sentidos entre cooperação técnica, povos

indígenas e alemães

Neste capítulo, retomo o argumento desenvolvido por mim em trabalho anterior

de a discussão sobre questões ambientais globais em fóruns internacionais ter promovido,

como conseqüência, a renovação de práticas e discursos sobre cooperação para o

desenvolvimento a partir dos anos 90. 43 O argumento era de que o debate a respeito de

políticas de cooperação no sistema internacional teria sido revitalizada pela crise

promovida por desequilíbrios ambientais, os quais Leis e Viola chamaram de “desordem

global da biosfera”, na medida em que sua solução pressupunha ações coordenadas.44 A

renovação do debate, pautada então pelo conceito de desenvolvimento sustentável,45

ampliava o campo de atuação de agências e organismos internacionais, e colocava em

evidência a ecologia como um parâmetro diferencial para definir as experiências de

políticas governamentais e não-governamentais entre países do “norte” e do “sul”.

Esta opinião é corroborada por alguns autores que propõem que exista uma

relação direta entre a cooperação para o desenvolvimento e o crescimento do debate em

torno de questões ambientais, sobretudo aquelas de dimensões globais,46 em fóruns

políticos e econômicos internacionais, particularmente a partir dos anos 90.

43 Valente, R. O meio ambiente em pauta: uma abordagem da cooperação internacional entre Europa e Brasil. Dissertação de mestrado, IRI/PUC, Rio de Janeiro, 1997. p.30. 44 Leis & Viola. “Desordem global da biosfera”. In: Ecologia e política mundial. Petrópolis: Editora Vozes/FASE/AIRI, 1991. 45 Ainda que amplamente divulgado, o conceito formal de “desenvolvimento sustentável” promulgado pela Conferência é “aquele que atenda às necessidades das gerações do presente sem comprometer a capacidade de gerações futuras atenderem também às suas”. CMMAD, 1988, p.9, apud Pareschi, A.C. Desenvolvimento sustentável e pequenos projetos: entre o projetismo, a ideologia e as dinâmicas sociais. Tese de doutorado, DAN/UnB, Brasília, 2002. p.71. 46 Alguns dos autores que defendem esta argumentação são: Caldwell, L.K. International environmental policy. London: Duke University Press, 1990; Russell, Robert. “La agenda global en los años 90. Antiguos y nuevos temas”. In:_______. La agenda internacional en los años 90. Buenos Aires: RIAL/Grupo Editorial Latinoamericano, 1990; French, H. Partnership for the planet. Washigton D.C: Worldwatch Papers 126,.1995; Mármora, L. “A ecologia como parâmetro das relações Norte-Sul: a atual discussão alemã em torno do ‘desenvolvimento sustentável’”. Contexto Internacional, vol.14, nº1, jan/jun/1992; entre outros.

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Para analisar tal afirmação, tomamos como objeto de investigação a

implementação do PPG-7 no Brasil como eixo que consolidou as práticas de execução de

projetos que foram adotadas por agências estrangeiras na administração pública

brasileira. O PPG-7 pode ser considerado uma etapa importante no processo de formação

do Estado brasileiro; ele marca uma atualização na direção da “modernidade”, o resultado

de alianças de forças políticas internas com uma lógica transnacional. Analisaremos

como o PPG-7 pode ser um exemplo interessante para se pensarem o conceito e as

práticas de cooperação para o desenvolvimento e o desempenho de uma relação

particular entre os governos do Brasil e da Alemanha na área de meio ambiente.

Para compreender o que levou a isso, abordaremos a seguir alguns aspectos do

processo de institucionalização de políticas ambientais no plano internacional a partir de

fóruns multilaterais.47

A Eco-92 e o desenvolvimento sustentável

Ainda que tivesse havido outras iniciativas anteriormente, a Conferência das

Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano - CNUMAH, realizada em 1972 na cidade

de Estocolmo, Suécia, foi um dos mais importantes fatos internacionais em relação a

políticas para o meio ambiente, porque foi a primeira iniciativa em grande escala e a que

legitimou a questão ambiental como tema de política internacional, colocando em

evidência a estruturação de normas e as instituições para regulamentar a sua execução.

Posteriormente, entre 1983 e 1987, um trabalho de pesquisa científica promovido pela

ONU, a Comissão Brundtland,48 resultou no Relatório Nosso Futuro Comum, que

47 Os anos 90, particularmente a primeira metade da década, foi marcada pela intensa articulação internacional, por meio de conferências internacionais organizadas sobretudo pelas agências da Organização das Nações Unidas sobre questões que envolviam áreas como meio ambiente, questões de gênero, crianças, racismo, de certa forma articulados à questão do desenvolvimento. Em 1990, foi realizada em Nova York a Conferência das Nações Unidas sobre Crianças; em 1992, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento no Rio de Janeiro; em 1993, a Conferência sobre Direitos Humanos, em Viena; em 1994, a Conferência das Nações Unidas sobre População e Desenvolvimento no Cairo; em 1995, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Social em Copenhagen e a Conferência mundial sobre Mulher, em Pequim, somente para citar algumas. 48 A Comissão Brundtland foi um organismo independente criado em 1983 pela Assembléia Geral da ONU, composta por 21 países-membros e chefiada pela Primeira-Ministra norueguesa, sra. Gro Harlem Brundtland. Durante o período de 1983 a 1987, a Comissão Brundtland circulou pelos continentes,

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propunha, entre outros pontos, a maior cooperação entre os povos como estratégia para

lidar com questões ambientais globais.

Os resultados apresentados pelo Relatório Brundtland, como ficou conhecido,

promoveram a articulação de dois campos até então divergentes em tese: meio ambiente e

desenvolvimento, na definição que ficou amplamente conhecida como desenvolvimento

sustentável.49 O tema da cooperação volta às discussões internacionais nos anos 1990, no

contexto pós-Guerra Fria quando seria realizada no Rio de Janeiro, em junho de 1992, a

Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, pautado por

este referencial de “desenvolvimento sustentável”.50

Vinte anos depois de Estocolmo, a Conferência Mundial sobre Meio Ambiente e

Desenvolvimento, a CNUMAD ocorreu no Rio de Janeiro entre os dias 3 e 14 de junho

de 1992, sendo a primeira grande negociação global pós-Guerra Fria estruturada pela

ONU. Foi considerada um marco na abordagem dos problemas globais e na definição da

agenda internacional.

Presenciou-se naquele momento no Brasil uma onda de debates e manifestações,

além de programas de financiamento e projetos de cooperação técnica e científica em

torno de questões ambientais: mudanças climáticas, perda de biodiversidade,

desmatamento da Amazônia e da Mata Atlântica, poluição, esgotamento dos recursos

naturais, fenômenos que ocorriam no Brasil mas também se revelavam em escala global.

Resultaram como documentos de referência internacional para temáticas

ambientais da Eco-92 a Declaração do Rio de Janeiro, a Agenda 21, o Tratado sobre

Mudanças Climáticas e a Convenção sobre Biodiversidade. A Agenda 21 foi um

programa de ações integradas para o desenvolvimento sustentável a ser assumido pelos

Estados participantes da conferência, envolvendo temas como desertificação,

biodiversidade, pobreza, padrões de consumo, entre outros. Nele, a proposta de

pesquisando dados e realizando audiências públicas a respeito da relação entre pobreza, desenvolvimento e devastação ambiental. 49 UN Agenda 21 Draft Text, Section I, Social and Economic Dimensions, Chapter 2, 1992. 50 A Conferência que ficou mais conhecida por ECO-92, foi precedida por encontros de seus Comitês Preparatórios em Nova York, Genebra e Nairóbi e por Encontros Regionais (continentais) de chefes de governo entre 1990 e 1992. Os PrepComs, como eram chamados os encontros das delegações oficiais, eram assistidos por membros de movimentos e organizações não governamentais de todo o mundo, que faziam fóruns paralelos, ao mesmo tempo em que tentavam influenciar nas decisões e acordos que as delegações oficiais estabeleciam.

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cooperação internacional foi apresentada como central, uma estratégia de aliança política

e articulação financeira internacional. Dedicou-se ao tema um capítulo inteiro, o de

número dois, que tem o título “Cooperação internacional para acelerar o desenvolvimento

sustentável dos países em desenvolvimento e políticas internas correlatas”.51 Dizia-se no

Preâmbulo que a Agenda 21 refletia o consenso global e o compromisso político com a

cooperação para o desenvolvimento e para o meio ambiente. Na abertura do capítulo:

In order to confront the challenge of environment and development, States decided to establish a new partnership. This partnership commits all States to engage in a continuous and constructive dialogue inspired by the need to achieve a more efficient and equitable world economy. It is recognized that, for the success of this new partnership, it is important to overcome confrontation and to foster a climate of genuine cooperation and solidarity. It is equally important to strengthen national and international policies and multilateral cooperation to adapt to the new realities (grifos meus).

Nesta passagem, vimos que há uma aposta na construção de um cenário futuro,

idealizado em relações de parceria entre os Estados. O discurso da cooperação é

normativo: estabelece diretrizes a serem seguidas, compromissos a serem cumpridos,

com base em fundamentos morais, implícitos em categorias de solidariedade, diálogo,

justiça, superação de confrontos, parceria, entre outros freqüentemente utilizados. É

também prescritivo, na medida em que exige mudanças nas estruturas administrativas de

governo para que se alcancem os objetivos sintetizados na expressão desenvolvimento

sustentável.

Assim, contribuiu para ampliar espaços de atuação de organizações internacionais,

agências internacionais e ONGs em órgãos da administração pública de Estados

Nacionais, pelo fato de que a formulação crítica do ambientalismo adota uma abordagem

sistêmica e universalizante, caracterizando-se a cooperação para o desenvolvimento na

administração pública dos países como um processo de alcance global.52

Nesse mesmo contexto de intensos debates no Brasil promovidos pela realização

da ECO-92, também o tema sobre a participação da sociedade civil nas discussões sobre

políticas governamentais entrou em pauta, observando-se já neste momento a capacidade

51 UN Agenda 21, opus cit. 52 Pareschi, A.C., opus cit., p.66.

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de articulação internacional das ONGs. Rubem César Fernandes argumenta que as

iniciativas civis – participação de grupos da sociedade civil, movimentos sociais e

associações civis na vida pública – não seriam um fenômeno novo. Elas de fato

remontariam à tese de “sacerdócio universal” proclamado pela reforma protestante do

século XVI, passando no século XIX pela organização de classes trabalhadoras no século

XIX em movimentos sindicais, chegando mais recentemente, nos anos 1970-80, com

novo impulso na forma institucional mais conhecida por ONG.

A diferença qualitativa observada nos movimentos recentes - argumenta o autor -

é que eles não se restringem mais às fronteiras nacionais, são internacionais, neles se

afirmando a consolidação do espaço de agentes privados que atuam com fins públicos,

para além do mercado e do Estado.53

A articulação política e a discussão que foram se consolidando aos poucos no

Brasil com a redemocratização, nos anos 80, criou uma dinâmica interna nesse espaço de

reflexão acerca das práticas da cooperação, sendo estas e o próprio surgimento das ONGs

processos inter-relacionados. Os debates centravam-se em torno da participação de

organismos da sociedade civil no que dizia respeito às políticas ambientais e às

negociações políticas e econômicas para o “desenvolvimento”. No entanto, a

preocupação estabeleceu-se, sobretudo, quanto à autonomia das ONGs do “sul” em

relação às agências e aos organismos estrangeiros que financiavam sua atuação. Na ECO-

92, o espaço que se criou para este debate foi o Fórum Global das ONGs, paralelo à

Conferência oficial, que se caracterizou pela pluralidade de setores da sociedade civil ali

representados.54

Em entrevista, um antropólogo cuja trajetória profissional foi marcada por cargos

de direção em ONGs nacionais e internacionais, bem como em órgãos de governo,

chamou a atenção para o processo de discussão sobre a relação das ONGs com projetos

de cooperação internacional, debate este já em andamento no Brasil desde o início dos

anos 1990:

53 Fernandes, R. C. Privado porém público: o terceiro setor na América Latina. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p.18. Esta afirmação da separação de um espaço autônomo das ONGs é bastante questionada hoje em dia por vários autores, entre eles Trouillot, em: Trouillot, Michel-Rolph. “The anthropology of the state in the age of globalization. Close encounters of the deceptive kind”, Current Anthropology, 42 (1): 125-138, 2001. 54 Valente, R., opus cit., p.44.

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era superinteressante porque a gente pensava sobre isso, o porquê da cooperação. [...] nesses momentos, entre as ONGs, essas sempre foram questões importantes. O que é cooperação? Até onde se discute agenda? Por que cooperação? Por que a intenção de cooperar? Então isso é um campo de debate. Você vai ver na ABONG, na Rede Brasil, em vários encontros, seminários, isso aí era pauta, agenda, mesas. Tem uma série de reflexões sobre isso. 55

Aquele momento teria sido propício para a constituição de um amplo debate, que

se deu do final dos anos 1980 ao início de 1990 entre as principais organizações não-

governamentais brasileiras, como a FASE, o Instituto de Estudos Sócio-Econômicos -

INESC, o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas - IBASE, a rede de

ONGs Rede Brasil e a ABONG. Para Vianna, haveria uma relação direta entre o

crescimento do debate sobre cooperação internacional no Brasil e a crescente atuação de

setores organizados da sociedade civil: “Comecei a me envolver com cooperação

internacional quando fui a trabalhar com ONGs e, trabalhando com ONGs,

inevitavelmente você está trabalhando com cooperação”.56

Apesar de haver uma intensa comunicação e articulação entre as ONGs

mencionadas, o que garantiu a participação e a organização de alguns dos eventos e

publicações, este não era um campo homogêneo, mas caracterizado por múltiplos temas e

múltiplas vozes. Este espaço, em que estavam presentes representantes de movimentos

sociais, intelectuais e acadêmicos do Brasil e do exterior, ampliou-se no contexto das

reuniões preparatórias, em fóruns e encontros paralelos à ECO-92. O eixo de articulação

entre eles se dava em função das críticas à falta de participação das organizações não-

governamentais e dos movimentos sociais nas decisões de políticas ambientais da Eco-

92, particularmente quanto às relações entre organizações não-governamentais, governos

e agências internacionais de cooperação internacional.

Este debate prolongou-se por toda a década de 90 e prosseguiu ainda em 2000,

tendo sido destacadas apenas algumas situações para ilustrar um processo que estava em

55 O informante é doutor em Antropologia Social pelo PPGAS/Museu Nacional/UFRJ e atualmente trabalha no escritório da Fundação Ford no Rio de Janeiro como assessor do Programa de Meio Ambiente e Desenvolvimento. Quando concedeu a entrevista, em 13 de outubro de 2003, em Brasília, acabava de deixar a coordenação do Programa Piloto, o PPG-7, tendo sido antes secretário executivo da Rede Brasil, um dos articuladores deste debate a que faço menção. 56 Idem.

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andamento. As trocas de idéias trouxeram à tona processos de construção de espaços de

intervenção, desenvolvidos por profissionais ligados a organizações governamentais e

não-governamentais alemãs, nas políticas sociais e ambientais para a Amazônia, isto em

início dos anos 90. Atuaram de forma pouco visível, por meio do suporte financeiro, as

ONGs locais nomeadas como parceiras, ficando eximidas de críticas. As discussões

revelaram uma dinâmica intensa de novos processos e formas de organização do espaço

público, com a inclusão de agências internacionais.

Uma das primeiras publicações57 em que este debate se apresentou de forma clara

foi o documento “Desenvolvimento, cooperação internacional e ONGs”, que resultou do

“Primeiro Encontro de Ongs e Agências do Sistema ONU”, realizado no Rio de Janeiro

em 1991.58

É usual, nas auto-representações adotadas por dirigentes de ONGs, bem como em

suas publicações, que as ONGs ocupem espaços políticos autônomos, distintos, por ser

esta uma esfera que não depende de recursos orçamentários do governo nem também de

empresas do setor privado, mas que se constituem a partir de recursos externos, sem

comprometimento com forças políticas ou sociais locais. É um lugar diferenciado de

denúncia e de produção crítica, onde apresentam posturas políticas, de denúncia do

vínculo de dependência instituído nos financiamentos internacionais, de crítica ao

desenvolvimento e à cooperação. O lugar de ação das ONGs é definido como aquele em

que as relações entre países do “norte” e do “sul” se estabelecem com base em ideais de

solidariedade e parceria, como espaço alternativo ao sistema formal deste tipo de vínculo,

aí refletidas relações históricas de dominação e exploração. Um de seus principais

organizadores, Herbert de Souza, então secretário executivo do IBASE, assim se

expressou:59

57 UNDP/IBASE. Development, international cooperation and the NGOs meeting publication (English version). Rio de Janeiro: IBASE/PNUD, 1992. 58 Muitos dos convidados para as palestras eram estrangeiros que representavam agências da Organização das Nações Unidas, redes de Ongs ou ONGs internacionais, como Third World Network (Malásia), Crocevia (Itália), NOVIB (Holanda), e também acadêmicos de universidades estrangeiras (The New School of Social Research) e nacionais (USP), além de representantes das ONGs brasileiras que organizavam o evento, particularmente o IBASE, o Centro Ecumênico de Documentação e Informação - CEDI, o Instituto de Estudos da Religião - ISER e o Instituto de Ação Cultural - IDAC. 59 IBASE/PNUD, opus cit., p.9.

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Este livro resume uma história de décadas de relações de cooperação internacional que foi debatida no seminário. Aqueles que participaram tiveram a oportunidade de refletir sobre as várias formas de solidariedade internacional que marcaram a vida, a existência e a sobrevivência de organizações não-governamentais do norte e do sul, bem como os novos problemas e perspectivas para as relações entre ONGs e Estados, e ONGs e agências internacionais, particularmente da ONU.

As posições apresentadas dizem respeito muitas vezes ao ponto de vista dos

países que são alvo das intervenções, sendo discutidos não somente os aspectos

econômicos, mas sobretudo os culturais, como um processo que refletisse a continuidade

de relações coloniais. Em parte, a forma de definir a cooperação dos países desenvolvidos

para com os países em desenvolvimento é vista como o fortalecimento do controle sobre

recursos por meio da transferência de um modelo de desenvolvimento, de cultura e de

modo de vida ocidental, como assinala o representante de uma rede de ONGs da

Malásia:60 from a third world perspective, the present state of international cooperation is certainly not bright. The northern powers have managed the transition from a colonial to a post-colonial world in a manner that has actually tightened their control over the use of world resources whilst transmitting the western model of development, culture and lifestyle to the newly independent countries.

Outra iniciativa foi o Núcleo de Animação Terra e Democracia, um programa de

diálogo e intercâmbio entre ONGs do Brasil e da Alemanha promovido por um conjunto

de organizações não-governamentais brasileiras, entre elas FASE, IBASE, INESC e

KOINONIA, juntamente com a Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil -

IECLB, e coordenado na Alemanha pela Associação Evangélica de Cooperação e

Desenvolvimento (Evangelische Zentralstelle für Entwicklungshilfe - EZE).

O Núcleo foi fundado em 1988 propondo-se a refletir sobre as práticas de

cooperação, especialmente no que se refere a experiências de desenvolvimento rural e

seus significados políticos, tendo como enfoque privilegiado a democratização dessas

relações.61 Foram organizados encontros, como o Seminário Terra e Democracia - Em

60 Idem, p.59. 61 Inoue, C.Y. & Apostolova, M. A Cooperação internacional na política brasileira de desenvolvimento. São Paulo: ABONG; Rio de Janeiro: Núcleo de Animação Terra e Democracia, 1995. p.7.

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busca de novas bases para cooperação internacional à luz da experiência alemã-brasileira,

realizado em 1992 no Rio de Janeiro, e também foram viabilizadas publicações.

O foco das discussões ali promovidas se direcionou para as relações entre

organizações do Brasil e da Alemanha, explorando um campo institucional de ação

política, eclesiástica e de educação muito vasto e pouco visível. Apesar de já naquele

momento apresentarem intensas relações com ONGs brasileiras, conforme mostraram os

resultados do estudo de Rubem César Fernandes e Leandro Piquet Carneiro,62 em que

60% das ONGs brasileiras entrevistadas mantinham vínculos com agências da Alemanha,

não havia visibilidade deste cenário. Também Luciano Wolff, como cooperante brasileiro

do programa IBASE-EZE, desenvolveu uma pesquisa sobre o trabalho destas instituições

alemãs no Brasil, a partir da qual publicou pela ABONG, em 1994, o guia Cooperação e

Solidariedade Internacional na Alemanha. Neste trabalho apresentou um mapeamento

das principais instituições e de temas voltados para a cooperação da Alemanha, sobretudo

com organizações não-governamentais brasileiras.A publicação teve uma repercussão

enorme, esgotando em pouco tempo, o que refletiu o amplo interesse e a escassez de

informações disponíveis sobre a atuação das instituições governamentais, não-

governamentais, fundações políticas e instituições eclesiásticas no Brasil.63

Muitos foram também os seminários estruturados por organizações não-

governamentais para discussão sobre o PPG-7. Em fevereiro de 1993, FASE e IBASE

promoveram no Rio de Janeiro o Seminário de Estudos sobre o Programa Piloto para

Amazônia. Ele foi marcante porque se propôs a reunir um conjunto de atores sociais –

membros da FASE, organizações de trabalhadores (seringueiros, agricultores), de defesa

da Amazônia, de proteção aos índios, de direitos humanos e algumas pastorais – para

discussão das políticas para a Amazônia, dentre elas as propostas do PPG-7.

Na abertura do seminário, Jean-Pierre Leroy64 destacou que ele tinha um caráter

relativamente fechado e centrado na construção de uma reflexão comum das ONGs sobre

as políticas definidas pelo PPG-7, já que considerava totalmente insuficiente a

62 Fernandes, R.C. e Carneiro, L.P. As ONGs nos anos 90: A opinião dos dirigentes brasileiros. Rio de Janeiro: ISER, Série Textos de Pesquisa 1, 1991. 63 Wolff, Luciano A.; Kaiser, W. (coord.) & Mello, F.V. Cooperação e solidariedade internacional na Alemanha. 2.ed. Rio de Janeiro: IBASE/EZE; São Paulo: ABONG, 1995. p.17-22. 64 Educador, coordenador na época da Área de Meio Ambiente e Desenvolvimento da FASE.

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participação da “sociedade civil” no processo de discussão do programa.65 “É um

seminário de estudos, de trabalho; ONGs, organizações populares e sindicais e Fóruns se

juntam para reflexão comum. Isto explica o caráter relativamente fechado do encontro e a

ausência de setores governamentais”.

Leroy considerou que o programa centralizava os debates em torno da

Amazônia:66

O Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais Brasileiras tem adquirido centralidade, tem sido o polarizador dos debates – pelo menos na Amazônia – no campo de entidades e movimentos preocupados em procurar contribuir para um desenvolvimento adaptado à região Amazônica e que tenha como sujeitos as suas populações.

O seminário foi um dos eventos que contaram com número expressivo de

representantes de organizações alemãs: entre os 12 representantes de organizações

internacionais, 10 eram de instituições alemãs, entre eles, Thomas Fatheuer,67 então em

um convênio entre FASE e DED,68 e Monika Grossman,69 na época vinculada a um

convênio entre universidades como pesquisadora da Universidade Federal do Pará.

Posteriormente, ambos assumiriam a função de “peritos técnicos” da agência GTZ.

Este encontro teve o apoio financeiro de EZE, SACTES e Fundação Heinrich

Böll, tendo sido mencionado nos créditos que o governo alemão é quem mais investe no

Programa Piloto”.70 Vale destacar também que a revista publicada pela FASE, na época

chamada Cadernos de Proposta, tinha apoio de duas instituições alemãs: o DED e a

Fundação Heinrich Böll.

Em 1994, novamente a FASE aparece como uma das organizadoras de outro

encontro envolvendo a discussão sobre Amazônia e programas de cooperação para a

65 FASE/IBASE. Anais do Seminário de Estudos sobre o Programa Piloto para Amazônia. Rio de Janeiro, 1993. p.4. 66 Idem, p.134. 67 Thomas Fatheuer é um sociólogo alemão que trabalhava na época em um convênio entre o Deutscher Entwicklungsdienst - DED, atribuição atual no Brasil para SACTES, Serviço Alemão de Cooperação Técnica e Social e FASE, que mais tarde foi ser perito da GTZ. 68 Já mencionado anteriormente nas págs. 33 e 34. 69 Monika Grossmann é uma agrônoma alemã que neste momento estava ligada ao Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA), da UFPA. Posteriormente trabalhou em uma ONG (Operação Amazônia - OPAN), por meio de um convênio com o DED ao qual estava vinculada. Mais recentemente, atua na GTZ como perita responsável pelo projeto PDA. 70 Anais do Seminário de Estudos sobre o Programa Piloto para Amazônia, idem.

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região, particularmente o PPG-7, desta vez junto com outra instituição, a Federação das

Organizações da Amazônia Oriental - FAOR. O Encontro Internacional de Trabalho:

Diversidade Ecossocial e Estratégias de Cooperação entre ONGs na Amazônia, que

aconteceu em Belém do Pará, entre 13 e 16 junho de 1994, apresentou-se como um

esforço de dar continuidade ao debate iniciado no evento de fevereiro de 1993, e

estruturou-se em torno de cinco blocos, 71 com ênfase na questão relativa à cooperação

internacional por ter dois blocos sobre organizações internacionais: um tratava-se de uma

oficina sobre a participação de ONGs em programas e debates internacionais, e outro que

focalizou determinados programas multilaterais na Amazônia.

O encontro reuniu alguns representantes de organizações alemãs, como Manfred

Wadehn, da Evangelische Zentralstelle für Entwicklungshilfe (Central Evangélica de

Ajuda para o Desenvolvimento – EZE); Helmut Hagemann, da ONG Urgewald, Thomas

Fatheuer, do convênio entre FASE e DED; e Monika Grossmann, pesquisadora alemã

vinculada ao NAEA da Universidade Federal do Pará.

Constatamos que esta ênfase resulta de uma discussão em andamento entre os

atores sociais envolvidos no debate sobre políticas para a Amazônia, como foi declarado

na “Apresentação”:72

De outro lado, por sua importância como principal reservatório da biodiversidade e por sua contribuição ao equilíbrio climático mundial (sem esquecermos a sua enorme riqueza mineral – mas aí estranhamente ninguém se preocupa com uma possível internacionalização da região), a Amazônia é hoje tema internacional e objeto de políticas internacionais e intervenções de cooperação multilateral e bilateral. Nossa convicção é que a preservação da Amazônia passa pela viabilização do futuro de seus povos e populações, por seu acesso à cidadania econômica, social e política, e que o futuro da Amazônia deve ser construído por eles em primeiro lugar. Entidades da sociedade civil dos países do Norte, solidários com as populações da região, são nossos aliados nessa empreitada. [...] Por isso, é importante chamá-los para acompanhar nossos esforços de entendimento da nossa própria realidade e dialogar conosco sobre cooperação.

Neste caso, a discussão sobre a atuação de agências internacionais “do norte” foi

central no contexto de aprofundamento do debate sobre a participação da sociedade civil,

71 FASE/FAOR: Anais do Encontro Internacional de Trabalho: Diversidade Ecossocial e Estratégias de Cooperação entre ONGs na Amazônia. Belém do Pará, 13-16 junho de 1994. 72 Idem, p.5.

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ou seja, de organizações sociais e ambientais da Amazônia na negociação e na

implementação das políticas para a região em função do PPG-7.

Mais recentemente, no Encontro de Parceiros da Fundação Heinrich Böll,

realizado no Rio de Janeiro entre 13 e 14 de março de 2001, o eixo organizador da

discussão se deu em torno de uma “plataforma” de apoio, ou seja, instituições que foram

apoiadas por uma mesma agência ou organização internacional. As questões levantadas

obviamente giraram em torno de um conjunto de ações e formas de intervenção

associadas àquela instituição enquanto “doadora”.73

Estavam presentes como palestrantes, entre outros, Emir Sader, da Universidade

do Estado do Rio de Janeiro, Isabel Carvalho, da Universidade Federal do Rio Grande do

Sul, Silvia Camurça, do convênio entre a ONG SOS-Corpo e o DED, Jean-Pierre Leroy,

da FASE, Aurélio Vianna, do Instituto de Estudos Sócio-Econômicos- INESC, Jorge

Eduardo Saavedra Durão, da Associação Brasileira de Organizações não Governamentais

- ABONG, Antonio Martins e Peter Wahl, respectivamente das ONGs alemãs Attac e

Weed, sendo a festa de encerramento no ISER.

Não obstante a contribuição que vários artigos tenham prestado ao esclarecimento

e ao aprofundamento dos procedimentos de cooperação técnica alemã adotados no Brasil,

os textos produzidos sobre cooperação internacional ainda são históricos bastante

didáticos, muito pouco críticos, e colaboram para a construção discursiva da cooperação

como parte das estratégias de desenvolvimento. Reproduzem e reverberam os mesmos

tons, da mesma forma que ocultam ou excluem de sua abordagem os mecanismos de

poder encobertos pela lógica discursiva.

Como vimos aqui, foi no espaço de articulação entre ONGs no contexto da

realização da Eco-92, particularmente em relação às políticas de proteção da Floresta

Amazônica, que observamos se desenharem as primeiras linhas de atuação de

representantes de organizações alemãs quanto a esta questão. Não havia anteriormente

uma tradição de sua ação no Brasil referente a este assunto, como veremos mais à frente,

já que trabalhavam mais as questões relativas ao desenvolvimento rural nas regiões

Nordeste e Sul do Brasil. A entrada de organizações alemãs na região Norte,

73 Fundação Heinrich Böll. I Encontro dos Parceiros da Fundação Heinrich Böll, edição das palestras. Rio de Janeiro: FHB, 13 e 14 de março de 2001.

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especialmente nas políticas de proteção da Floresta Amazônica, deixou sua marca nesse

espaço de debates, de articulações políticas e intervenções, promovido pelas organizações

não-governamentais brasileiras na Eco-92. Também aí se intensificaram os fluxos de

recursos internacionais para a implementação de políticas ambientais governamentais na

região amazônica. Segundo informações divulgadas na imprensa da época, os projetos

que resultaram da Conferência envolveram crédito e doações na ordem de US$ 1 bilhão,

como o projeto de despoluição do rio Tietê e da Baía de Guanabara, além do Programa

Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil, o PPG-7.74

Nas declarações de José Lutzenberger:

O Secretário de Meio Ambiente, José Lutzenberger, anunciou ontem que, finalmente, o país vai começar a fazer investimentos de grande porte na ecologia. Para isso, vai utilizar-se do dinheiro oferecido pelos países industrializados, de empréstimos já liberados por instituições multilaterais como o BID e o Banco Mundial e a formalização de projetos de proteção ambiental financiados por operações de conversão de dívida. Só a Alemanha já nos ofereceu 250 milhões de marcos (cerca de 150 milhões de dólares) para aplicação em projetos agrícolas que prevêem o manejo racional da floresta amazônica, revelou Lutzenberger.75

As articulações que se estabeleceram naquele momento entre as redes ligadas ao

ambientalismo e as redes de representantes de organizações governamentais e não-

governamentais alemãs consolidaram-se nas políticas oficiais adotadas pelo governo

brasileiro no PPG-7.

Um modelo de cooperação internacional em ação

O PPG-7 foi definido formalmente como um programa piloto para a conservação

das florestas tropicais do Brasil, cujo objetivo era o de tornar-se um modelo de gestão de

florestas tropicais e de “cooperação internacional”. Uma das particularidades deste

programa governamental brasileiro é o fato de “ser considerado um dos mais importantes

74 Gazeta Mercantil, 05/06/1995. 75 Brito, Manoel Francisco. “Países ricos vão socorrer a Amazônia”. Jornal do Brasil, 20/06/1991.

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instrumentos de cooperação internacional na área ambiental”.76 Os projetos do PPG-7

foram formulados para representar uma ruptura em termos de políticas públicas para a

Amazônia, um ponto de inflexão em relação às políticas públicas existentes

anteriormente, as quais se baseavam em uma concepção geopolítica de segurança

nacional, com as inovações que implementaria enquanto projeto piloto.77

A questão apontada no contexto de formulação do PPG-7, um programa

multilateral para as florestas localizadas no Brasil, ou seja, territorialmente circunscrito a

um Estado Nacional, levou a refletir sobre a abertura dos processos de formulação e

execução de políticas governamentais de um determinado Estado Nacional, o que gerou

muitas reações no Brasil, particularmente nos meios militares.

Nos anos 90, a Amazônia passou a ser citada na mídia internacional como

patrimônio global ou patrimônio da humanidade por líderes internacionais, presidentes de

países ricos, representantes de organismos internacionais. Dados sobre o ritmo de

desmatamento da Amazônia veiculados em mídias internacionais promoveram a

mobilização da sociedade civil e de líderes políticos internacionais em torno do objetivo

de proteção da floresta amazônica. A preocupação com a conservação da floresta

amazônica e com os povos indígenas passou a ser motivo de alianças internacionais,

governamentais ou não, mobilizadas por denúncias de todos os tipos contra o governo

brasileiro de infringir os direitos indígenas, ser negligente com o genocídio dos povos

indígenas e permitir o desmatamento desenfreado da floresta.

A Amazônia é parte das representações simbólicas do nacionalismo brasileiro,

quer pela grandiosidade territorial, quer pela sua imensa diversidade. O discurso

nacional-desenvolvimentista adotou a Amazônia como um símbolo da nacionalidade, um

“emblema” do próprio Estado brasileiro: a Amazônia é uma questão de soberania

nacional. 76 MMA. Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil, apresentação, p.7, sem data. 77 Em entrevista com diplomatas no MRE, pude constatar que desde a Conferência de Durban sobre o racismo e outras formas de discriminação, realizada em 2001, e também devido a outros encontros e fóruns internacionais sobre povos indígenas, tem havido um maior diálogo entre a diplomacia e os representantes indígenas, revelando uma maior abertura à participação indígena nas reuniões internacionais que envolvam questões que lhes digam respeito. Tem havido também uma maior proximidade entre representantes da diplomacia brasileira com representantes de outros países amazônicos, principalmente no que se refere a questões indígenas, crescendo o número de viagens de reconhecimento de diplomatas às regiões onde há maior concentração de populações indígenas, principalmente aos estados da região Norte.

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As grandes tradições de pensamento no Brasil sobre a região amazônica

constituíram-se historicamente na geografia, sendo muito influentes as teorias

geopolíticas. Um dos principais pensadores e formuladores da geopolítica foi o alemão

Friedrich Ratzel (1844-1904), que teria sido, na Alemanha, um dos fundadores da

geografia como um campo científico independente. No Brasil, a geopolítica encontrou

espaço nos meios militares, principalmente em assuntos ligados à defesa e ao

desenvolvimento territorial. Os estudos de geopolítica consolidaram no Brasil um

pensamento nacionalista, tanto nos meios acadêmicos, quanto na formação de uma

concepção ou “política de Estado Nacional” durante o período de autoritarismo no Brasil.

Golbery do Couto e Silva foi um dos grandes mentores intelectuais desta visão, tendo

publicado em 1957 Aspectos geopolíticos do Brasil, pela Biblioteca do Exército. No

livro, definiu a importância que assumiu a geopolítica no pensamento político brasileiro,

desde o Barão do Rio Branco a Euclides da Cunha, passando por Cândido Rondon, entre

muitos do Exército brasileiro: 78

Sobretudo no Brasil, país de continentalidade – mais no sentido de ilhas culturais de um grande arquipélago pan-brasileiro – a geopolítica pede um meditado e realista sistema de idéias, ou de doutrinas flexíveis, que venha a ajudar na solução dos problemas nacionais, na orientação racional, serena, eqüitativa das questões ditadas pela conjuntura internacional.

O general Carlos de Meira Mattos, utilizando-se de textos históricos para justificar

o que seria, segundo ele, a defesa da região amazônica como parte do espaço “nacional”

do Brasil, argumentou, a partir do princípio geopolítico, que a presença e a ocupação

física do Estado e da população definem a soberania de um espaço. Ele afirma: 79

Graças à ação de governo de Lisboa, protegendo a cobiçada foz do Amazonas, expulsando os aventureiros ingleses, holandeses e franceses que se atreveram rio acima; e expandindo os marcos da ocupação lusa até as proximidades das nascentes andinas do grande rio e seus principais afluentes da margem norte, foi possível aos demarcadores da fronteira assente através do Tratado de Madri (1750) firmado no princípio do uti possidetis comprovar a antecipação de

78 Couto e Silva, Golbery do. Aspectos geopolíticos do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1957. 79 Mattos, Carlos de Meira. Uma geopolítica pan-amazônica. Biblioteca do Exército, 1980.

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ocupação lusa do imenso leque norte e oeste do grande rio e seus afluentes, dando nascimento ao atual delineamento da fronteira da Amazônia brasileira.

O PPG-7 foi e ainda é um dos programas de maior repercussão nas políticas

públicas para a Amazônia e tem como meta fundamental promover mudanças neste

contexto. Seus principais objetivos foram assim definidos: a) demonstrar que um

desenvolvimento harmônico entre economia e meio ambiente pode ser obtido em

florestas tropicais; b) obter a conservação dos recursos genéticos; c) reduzir a

contribuição das florestas tropicais brasileiras na emissão global de gás carbônico; d)

proporcionar um exemplo de cooperação entre países desenvolvidos e em

desenvolvimento.

O PPG-7 envolveu um conjunto bastante complexo de atores, sendo um dos mais

representativos cenários de arranjo multilateral direcionados para questões ambientais

internacionais no processo de constituição e desenvolvimento de mecanismos de

administração pública federal. Dele participam o Banco Mundial, por meio do Fundo

Fiduciário para Florestas Tropicais - RFT (Rain Forest Trust Fund) como “administrador”

geral, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD, e as agências de

cooperação técnica e financeira da Grã-Bretanha, Estados Unidos, Alemanha, Países

Baixos, Japão, França e Itália. Foi desenhado como um programa “piloto”, o que lhe

atribui um caráter experimental no que concerne ao objetivo de representar um exemplo

mundial de cooperação internacional e um modelo de gestão de florestas tropicais.80

Para geri-lo, foi criada uma instância superior de coordenação, a Comissão

Coordenadora formada por representantes de cinco ministérios participantes do programa

e de três representantes de ONGs, que seria apoiada técnica e administrativamente por

um secretariado executivo. São dois os instrumentos de financiamento: o Rain Forest

Trust Fund - RFT, administrado pelo Banco Mundial, e a cooperação bilateral

diretamente financiada por recursos governamentais dos países doadores envolvidos no

programa.

80 Os atores da cooperação internacional são funcionários, representantes e peritos técnicos tanto de agências da cooperação multilateral, Banco Mundial e Nações Unidas (PNUD), como de agências da cooperação bilateral, como Dfid (Department foi International Development) ou KfW e GTZ, por exemplo.

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O PPG-7 foi representado como modelo de cooperação internacional a partir da

idéia de eficiência, relacionada à lógica de administração pública moderna, de boa

governança81, como um processo de “desburocratização” ou “reforma no modo de gestão

de Estado”, definições estas presentes no campo do desenvolvimento, compartilhadas e

difundidas por organismos multilaterais e governos de países estrangeiros.

A cooperação internacional passou a ser considerada a “fórmula” mágica a ser

adotada pelos órgãos de administração pública para promover uma dinamização no

processo de transformação conceitual das políticas públicas para a região. Por meio dela,

estaria se buscando uma flexibilização da administração pública com a abertura de um

espaço de negociação e articulação, de disputa e de cooperação.

A partir da análise dos projetos do PPG-7, foi possível visualizar a relevância da

atuação do governo alemão nas políticas ambientais no Brasil desde os anos 90,

principalmente para a região amazônica, de forma especial nos projetos orientados para a

conservação das florestas tropicais. Para a vice-ministra alemã Uschi Eid, o PPG-7

assume ser:82

[o] maior programa mundial para a proteção de florestas tropicais e para o manejo de recursos naturais em um único país, [de forma a] encorajar a aplicar em outros países e regiões este bem-sucedido modelo de cooperação para a preservação do futuro comum da humanidade.

Os alemães no PPG-7 - Intervir e conceder

81 O Banco Mundial difundiu a idéia de “Good Governance” como gestão eficiente, moderna e transparente. Podemos ver presente também nos discursos das agências alemãs “de desenvolvimento” este princípio. Uschi Eid, na conferência "Assisting Good Governance and Democracy: a learning process – reflections on developments in Africa", na GTZ House Berlin, em 27 de maio de 2002, organizada pelo BMZ/IDEA, afirmou que: “Democracy and good governance are, however, also a fundamental precondition for development. Even though some examples exist of economic success stories in authoritarian regimes, it is my view that the best foundation for sustainable development is a democratic foundation. Democracy and good governance belong together. Good governance, after all, means more than mere efficiency in the government machinery. It is a matter of the "rules of the game" in a society, the possibilities for citizens to develop their own creative powers, it is a matter of the relationship between those governing and those governed, and of the acceptance of state policies”. Ver em www.bmz.de/en/media/speech, acesso em 16/06/2003. 82 Palavras da vice-ministra do Ministério Federal de Cooperação Econômica e Desenvolvimento da Alemanha, Uschi Eid, em “Cooperação entre Brasil e Alemanha nas Florestas Tropicais Brasileiras”. Publicação do grupo KfW e GTZ, sem data.

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As referências históricas sobre as origens do PPG-7 usualmente remetem à

atuação da liderança alemã na proposição de “responsabilidade global” sobre a questão

climática. Desde o seu surgimento, a história do programa tem relação com o chanceler

alemão Helmut Khol, que teria proposto o envolvimento da comunidade internacional na

proteção da maior floresta tropical do mundo, através de um programa internacional para

a cooperação das florestas tropicais no Brasil, durante o encontro dos países do G7 em

Houston, Estados Unidos, em 1990. 83

Presidentes e primeiros-ministros do G-7, Houston, EUA, 199084

Nessa ocasião, Kohl fez um discurso em que comprometeu publicamente um

volume de recursos financeiros a ser doado individualmente pela Alemanha ao PPG-7,

como também recursos para o RFT, gerenciado pelo Banco Mundial. A quantia proposta

de recursos financeiros colocou o governo alemão como o maior contribuinte individual

em termos de cooperação financeira, chegando a algo em torno de 47% do total dos

recursos disponíveis.85

Alguns representantes de ONGs alemãs têm uma versão diferente sobre o

empenho de um volume tão alto de recursos financeiros e sobre a “adesão” do governo

alemão à causa ambientalista. Argumentam que a construção discursiva da liderança do

governo alemão em relação às questões ambientais internacionais não refletia a posição

ideológica própria do governo alemão de então, representado pelo chanceler Kohl. Para

eles, têm diferentes visões sobre a “adesão” do governo alemão da época à causa

83 MMA. “Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil do G-7”. Sem data. 84 GTZ: Futuro da Floresta Tropical: a cooperação técnica alemã com o Programa Internacional de Conservação da Floresta Tropical no Brasil (PPG-7). Folder, sem data, p.5. 85 MMA. “Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil do G-7”. Folder, sem data.

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ambientalista e apresentam uma versão diferente sobre o empenho de um volume tão alto

de recursos financeiros

Em duas ocasiões escutei esta versão contrária ao discurso oficial de duas pessoas

que atuavam, na Alemanha, em movimentos ambientalistas de defesa da Amazônia,

sendo uma da Universidade Livre de Berlim e a outra da Fundação Heinrich Böll,

fundação política vinculada ao Partido Verde alemão que fazia oposição ao CDU, de

Helmut Kohl. Na época, ambas – já envolvidas com o programa na Alemanha –

revelaram que o valor declarado teria sido o resultado de um equívoco do então chanceler

com os números, o que é uma versão dos fatos que compromete em absoluto todo o

discurso de compromisso dos alemães com a questão climática. No entanto, as duas

explicações foram muito aproximadas. Relato de uma delas:

o volume de dinheiro do lado alemão aconteceu por causa de um erro do nosso chanceler Kohl, na época, porque ele falou 400 milhões para florestas tropicais no Brasil e eram 400 milhões para florestas tropicais no mundo todo. Ele não tinha lido o que as pessoas tinham preparado para ele. Mas como ele tinha dito isso na reunião de cúpula do G7 em Bruxelas, não deu mais pra voltar atrás. Esse erro explica que a Alemanha tenha este peso no PPG-7. A idéia era de criar uma rede do G7 com o Brasil e com o Banco Mundial, em que cada um tivesse uma participação mais ou menos igual para ter “governança global”, multilateral. Mas por causa desse erro do Kohl, desde o início você tem este desequilíbrio na coisa.86

O compromisso dos alemães com o programa estaria expresso no volume de

recursos disponibilizado como doação. O volume inicial a ser colocado no programa era

bem superior ao que efetivamente foi posto: dos US$ 400 milhões declarados, foram

alocados US$ 295 milhões no total de recursos para o programa – cerca de 47% vêm de

doações do governo alemão, ou seja, aproximadamente US$ 139 milhões. 87

86 Em entrevista na FASE, no Rio de Janeiro, em 27 de maio de 2003. 87 Essa informação está presente em todos os documentos oficiais do Programa Piloto, inclusive em “Conceitos básicos para a execução de projetos de cooperação técnica recebida bilateral”, da ABC/MRE. No entanto, em uma conversa informal com uma representante da cooperação não-governamental alemã, foi dito que houve um engano no anúncio do valor dos recursos disponibilizados pelo Primeiro Ministro, que seria dez vezes inferior. Por essa razão, os outros países do G-7 não quiseram se comprometer com doações muito elevadas, sobrando para a própria Alemanha a maior parte da contribuição financeira ao Programa. Não há provas desse fato mas, segundo a informante, “todos sabem disso”, mas não querem revelar, até porque o “erro” reverteu em ganhos políticos.

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Mas foi sobretudo com a realização da ECO-92, no Rio de Janeiro, que

apareceram de forma contundente as representações da Amazônia como um espaço de

importância global. A problemática do meio ambiente no Brasil, de maneira especial o

papel atribuído à Amazônia no imaginário científico e ambientalista internacional, inseriu

o país de forma definitiva no cenário de políticas ambientais internacionais, quando

foram projetadas internacionalmente imagens sobre questões particulares da Amazônia,

situando-se estas situações locais em termos de uma dinâmica ambiental “global”. 88

O motivo que mobilizou governos e organizações internacionais para agir em

defesa da Amazônia, considerado “pulmão do mundo” não são as questões locais, mas a

criação de um fato discursivo de alcance e impacto internacional, que vai gerar uma

elevada sensibilidade junto à opinião pública internacional. A preocupação com a

conservação da Amazônia se deu particularmente em função do risco do aquecimento

climático, com ecos e repercussões no país. As florestas tropicais, mais do que todas a

Floresta Amazônica devido à sua dimensão, teriam uma função de equilíbrio da

temperatura global.

Clima e biodiversidade

A elaboração de um discurso que relacionava o risco de mudanças climáticas

globais à destruição das florestas, fundamentado na tese de que as florestas tropicais

seriam o “pulmão verde” do mundo já havia sido identificado criticamente por um

cooperante alemão:

Os grupos de solidariedade tentam demonstrar em suas argumentações que a destruição das florestas tropicais também tem a ver “conosco”, ou seja, com as pessoas do Norte. Foi difundida a lenda de que as florestas tropicais seriam o “pulmão verde do mundo”. Uma imagem figurativa sugestiva que infelizmente não resistiu a uma verificação científica, mesmo que ainda surja em algumas publicações. Aparece ainda, por exemplo, nos folhetos do Ministério de Cooperação Econômica da Alemanha sobre meio ambiente e desenvolvimento de 1991. No prefácio, o Ministro Spranger escreve: “O tempo urge. No Terceiro Mundo se delineia o início de uma catástrofe ecológica, cujo impedimento se

88 Foram analisados jornais disponíveis nos arquivos da FUNAI entre 1991 – quando foram estabelecidas as bases para a Eco-92 e negociados os projetos que iriam fazer parte do PPG-7 – e 1996, quando se iniciou a implementação do PPTAL.

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torna uma questão de sobrevivência para a humanidade. Um exemplo concreto são as florestas tropicais, o pulmão verde da terra que se torna cada vez menor”.89

A definição do clima como uma questão global presente nos discursos

internacionais criou politicamente a “necessidade” de participação de todos os países,

principalmente dos mais industrializados, aqueles que historicamente tinham sido os que

mais poluíram o planeta. Estava em jogo a incapacidade ou a negligência dos governantes

locais em proteger a Amazônia, “patrimônio global”. Consolidava-se, assim, a noção de

que os países industrializados deveriam assumir uma “responsabilidade global” para a

situação ambiental do mundo.90

As florestas também desempenham outros papéis vitais: elas ajudam a manter o clima local, protegem as bacias hidrográficas e fornecem matéria-prima para o artesanato e a indústria. Através da armazenagem de carbono, elas ajudam a controlar o efeito estufa.91

A questão do clima, neste contexto discursivo, articulava-se a outros pontos

relacionados à Floresta Amazônica e que teriam apelo junto à opinião pública

internacional, como direitos humanos e proteção contra a ameaça às culturas indígenas,

promovendo a questão da conservação das florestas tropicais do Brasil a uma

“preocupação global” que, por sua vez, exigiria ação global. Nesse campo, os países

industrializados teriam se envolvido em uma cruzada para a sobrevivência da

humanidade.

[...] já se pode identificar a queimada das florestas como um fator responsável por algo em torno de um quinto da emissão atual de CO2, gás que provoca o aquecimento da atmosfera mundial (além disso, existe uma preocupação com as ameaças às culturas indígenas e a violação dos direitos humanos no processo muitas vezes violento de ocupação da “fronteira”). O Brasil contribui com cerca

89 Fatheuer, Thomas. “Novos caminhos para a Amazônia? O Programa Piloto do G-7: Amazônia no contexto internacional”. Cadernos de Proposta, nº 2, Rio de Janeiro, FASE/DED-SACTES, 1994, p.13. 90 Invoca-se um sentido de culpa histórica dos países desenvolvidos, implicado nos impactos ambientais gerados pela industrialização nos países em desenvolvimento.Veja-se também publicações como State of the World, do Worldwatch Institute, entre outras, que adotam o tom de denúncia em relação aos governos/sociedades de países ricos ou industrializados. 91 Banco Mundial. Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil. Brasília: Rain Forest Unit, Banco Mundial/Secretaria Executiva do PPG-7. Folder, sem data, p.2.

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de 5 a 7% da emissão de CO2, maior do que, por exemplo, a emissão de CO2 da Alemanha ou de vários países europeus.92

A preocupação da Alemanha com a destruição das florestas tem se pautado, em

termos discursivos, no efeito de mudanças climáticas, relativo ao problema do

aquecimento global, mais conhecido pela expressão “efeito estufa”. Segundo as palavras

de Helmut Kohl:93 “A defesa do clima é uma das tarefas prioritárias para a política

ambientalista do governo federal”.

A construção da “problemática do clima” coloca as florestas tropicais do Brasil no

centro das preocupações globais.

Os problemas ambientais não respeitam fronteiras e as grandes mudanças globais provocam um processo de regulamentação internacional. [...] Uma das duas convenções da Rio 92 abrange a questão da biodiversidade e assim está intimamente ligada à Amazônia onde existe a maior riqueza de biodiversidade do mundo. A Amazônia está no foco do debate internacional, mas este debate não é mais sobre questões específicas da região, é um debate sobre problemas estratégicos globais que também atingem a Amazônia. 94

A perspectiva usualmente adotada em documentos de instituições alemãs define a

problemática da Amazônia como assunto de responsabilidade global, em função do que

pode representar a ameaça de extinção das florestas tropicais para a humanidade. A partir

do conceito de desenvolvimento sustentável, o risco se constrói em torno da idéia de

insustentabilidade, a impossibilidade de haver condições adequadas para a sobrevivência

do homem na terra. Podemos identificar alguns desses aspectos nas falas de alemães, não

sobretudo atuantes no campo governamental:

A cada ano desaparecem florestas em todo o mundo numa extensão equivalente a um terço do território da Alemanha.

92 Hagemann, Helmut. Exposição sobre “O Programa Piloto no contexto internacional: o caso da Alemanha – A posição dos governos e da sociedade civil européia”. In: Anais do Seminário de Estudos sobre o Programa Piloto para a Amazônia. FASE/IBASE, 1993. p.89. 93 Ministério de Relações Exteriores da Alemanha. Deutschland: Fórum de Política, Cultura e Economia. Frankfurt am Main: Frankfurter Societäts-Druckrei GmbH, 1995. p.1. 94 Fatheuer, Thomas. “Cooperação Internacional de ONGs na Amazônia”. Oficina em Diversidade Ecossocial e Estratégias de Cooperação entre ONGs na Amazônia. Anais do Encontro. Fase/FAOR, 13-16 de junho de 1994. p.85.

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As florestas tropicais brasileiras são de vital importância para a sobrevivência da humanidade. A sua destruição contribui claramente para o efeito estufa e, por fim, para o aquecimento climático local e global. 95

A questão do clima tem um apelo todo especial no plano internacional e foi um

dos primeiros fatores que promoveram a mobilização “coletiva” em torno de questões

ambientais. O risco de insustentabilidade associado a inesperadas transformações

advindas de mudanças climáticas justifica a mobilização internacional.

É importante analisar a questão do risco de aquecimento global em função de

como ele é apreendido pelos diferentes atores envolvidos; mais ainda: quais os

significados que este risco tem para cada um deles e quais serão as suas formas de ação e

intervenção?

Em documentos publicados por agências alemãs, as referências históricas ao PPG-7

sempre indicam a liderança alemã em discussões ambientais e na proposição de

“responsabilidade global” quanto à questão climática.

Na Alemanha você não pode realizar nenhum projeto economicamente viável que não seja ecológico. Essa é uma tendência do pós-guerra. A legislação européia está seguindo os líderes.E a Alemanha está financiando 30% do orçamento europeu (CE), então, sua influência é muito grande. Agora, em todas as publicações das políticas definidas pelo BMZ, o meio ambiente vem em primeiro lugar, em segundo, vem a pobreza, depois, pequenas e médias empresas. São os grandes temas declarados; isso também tem reflexos internos. Em certos aspectos, o Brasil e a Alemanha estão na mesma situação, de fazer grandes reformas – fundos de pensão, previdência, reforma tributária, saúde, então, desde o entre-guerras, define “economia social de mercado”. O capitalismo na Alemanha é um capitalismo meio controlado; popular no sentido de que faz programas; controlado no sentido de assegurar certa distribuição de riquezas. Não evita que o rico fique mais rico, mas procura melhor distribuição. Por exemplo: trabalhador que cai na desgraça do desemprego, fica com 2/3 do último salário e isso é um dos fatores que dificultam em termo de caixa. Tem cada vez menos contribuintes e cada vez mais consumidores.96

O risco de mudanças climáticas e a ameaça à biodiversidade se articulariam a

outros temas, como a ameaça às culturas indígenas, através da responsabilidade sobre a 95 GTZ. Futuro da Floresta Tropical: A cooperação técnica alemã com o Programa Internacional de Conservação da Floresta Tropical no Brasil (PPG7). Folder, sem data, p.3. 96 Entrevista concedida em Belo Horizonte, em 08/01/2007.

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conservação da Floresta Amazônica, assunto que tem forte apelo junto à opinião pública

internacional. A partir do enfoque dos direitos humanos, as populações indígenas

ganharam visibilidade internacional97 enquanto grupos culturalmente distintos, que têm

direitos reconhecidos à terra e à diferença cultural e também como grupos socialmente

vulneráveis, cujas condições de sobrevivência encontram-se ameaçadas.

Giddens e Beck apresentam a discussão a respeito dos riscos ambientais de ampla

escala – os riscos globais – como resultantes negativos de processos de intensificação da

interdependência humana através da industrialização, da “tecnologização” e da

comercialização em escalas mundiais. Um outro ponto importante diz respeito à

“redefinição da esfera pública”, trazida pela transnacionalidade da temática ambiental e

pela transnacionalidade dos atores envolvidos em tais políticas ou programas. 98

A própria noção dos financiadores do risco ambiental relacionado à Amazônia é

construída em diferentes bases que são externas à problemática local. O risco está

vinculado ao possível aquecimento global do planeta associado ao desmatamento da

Floresta Amazônica, a maior floresta contínua do mundo e, por isso, considerada

patrimônio da humanidade. Para as populações locais, no entanto, é provável que não

haja uma percepção clara desse risco, mas de outros, como uma epidemia, a invasão de

suas terras ou a poluição de determinado igarapé por mercúrio usado por garimpeiros.

Diante de um risco que ameaça toda a humanidade, temos um cenário que parece

desalentador. A cooperação internacional, a ação conjunta de um grupo que tem

interesses em comum, torna-se a redenção para este problema global, a possível única

solução com a qual todos têm que se comprometer. Aparentemente, este é um cenário

promissor, porque está previsto que se alcancem objetivos comuns e que a ameaça seja

efetivamente combatida.

Outra abordagem freqüentemente encontrada nas publicações alemãs sobre as

florestas tropicais e a Amazônia em particular, além da questão climática, refere-se à

97 Conferência de Viena, em 1993, com a declaração da Década das Populações Indígenas para 1994-2004 pela ONU. 98 Calhoun, C. “Introduction: Habermas and the public sphere”. In: ______. (org.). Habermas and the public sphere. London: MIT Press, 1993. No que diz respeito especificamente à questão da participação, ver Lopes, J.S.L.; Antonaz, D.; Silva, G.O. & Prado, R. “Papel do Estado e meio ambiente: algumas instâncias em foco”. In: Do local ao internacional: práticas políticas, relações pessoais, facções”. Cadernos do NUAP, vol.4, Rio de Janeiro, 1999.

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biodiversidade desse tipo florestas e ao potencial farmacêutico associado a elas. Além da

estabilização do clima e da regulação do ciclo hídrico, as florestas tropicais são apontadas

como os maiores “reservatórios” de biodiversidade, possuindo cerca de 1/5 das espécies

existentes no mundo. A Floresta Amazônica, assim como com a Mata Atlântica, é

reconhecida pela sua reserva genética como uma farmácia viva, associada, a partir de

uma concepção utilitarista e cientificista, às inúmeras potencialidades de utilização e

beneficiamento desta biodiversidade. Há uma clara correlação entre tal potencialidade em

termos da biodiversidade, “cujo acervo ainda está longe de ser integralmente pesquisado

e catalogado pela ciência”,99 e o que isto pode representar em termos de valor econômico,

tanto para indústria farmacêutica quanto para a alimentação.

Aqui crescem valiosas plantas medicinais, além de plantas da produção agrícola. [...] A sua reserva genética faz da Amazônia e da Mata Atlântica uma verdadeira farmácia viva, cujo acervo ainda está longe de ser integralmente pesquisado e catalogado pela ciência. Aqui crescem valiosas plantas medicinais, além de plantas da produção agrícola.100 [...] o Brasil dispõe hoje de um amplo conhecimento técnico único no campo do gerenciamento de recursos naturais, com a participação das populações locais, bem como em nível de cooperação internacional. Deve-se agora refletir como o êxito brasileiro poderá beneficiar outros países amazônicos vizinhos. Programa de florestas tropicais em execução e planejamento em regiões como Burma, Indonésia, Papua-Nova Guiné e Tailândia poderão aproveitar-se das experiências e dos resultados do PPG-7. O Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil sozinho não conseguirá resolver os problemas climáticos globais. Contudo, a construção de parcerias e alianças locais, nacionais e globais têm mostrado caminhos que contribuirão para assegurar o nosso futuro comum (grifos meus).101

Em outra fonte, encontramos um projeto desenvolvido a partir de um convênio

entre a Universidade Federal do Amazonas, a GTZ e o Departamento de Botânica da

99 GTZ. “Futuro da Floresta Tropical: a cooperação técnica alemã com o Programa Internacional de Conservação da Floresta Tropical no Brasil (PPG-7)”. Folder, sem data. p.5. 100 Idem, p.4. 101 Idem, p.25.

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Universidade de Ulm.102 No texto que justifica o projeto, fica clara a importância do

acesso a informações de biodiversidade para uso em biotecnologia, farmacologia, etc.

Estas informações estão organizadas em um banco de dados, na Alemanha, onde o acesso

precede ao acesso no Brasil, e parece ser distinto. Caso haja uma tecnologia disponível e

informação disponíveis sobre o projeto, é possível ter acesso aos dados que estão na

Alemanha. Na página da internet103 consta o seguinte texto:

A intensa colaboração entre o Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), em Manaus, e o Departamento de Botânica Sistemática e Ecologia da Universidade de Ulm, Alemanha, resultou na assinatura de um convênio de cooperação entre as duas universidades, em 1996. As pesquisas desenvolvidas pelos dois grupos evidenciaram a importância do acesso às informações sistemáticas sobre plantas e animais para o futuro desenvolvimento socioeconômico dessa região da Amazônia Central. Ficou claro que é imprescindível dispor de informações taxonômicas sobre a diversidade das plantas para o uso sustentado dos recursos biológicos das florestas tropicais na agricultura, silvicultura, farmacologia e biotecnologia. Há muitas informações sobre os usos potenciais dessa diversidade de plantas que, no entanto, estão espalhadas nos herbários, nas publicações científicas e na memória dos especialistas locais e indígenas. É necessário juntar os dados sobre a biodiversidade regional e torná-los disponíveis aos pesquisadores e tomadores de decisões políticas. Para isso, o sistema de banco de dados taxonômicos desenvolvido na Universidade de Ulm foi instalado no Laboratório de Botânica do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade do Amazonas. [...] Os dados registrados no banco de dados SysTax em Manaus serão acessíveis aos usuários em geral, como já ocorre em Ulm. [...] Já é possível, mediante autorização e instalação de um programa adicional grátis, acessar via Internet as informações armazenadas em SysTax em Ulm. O objetivo deste projeto é disponibilizar todas as informações sobre plantas potencialmente úteis e a documentação completa de todas as futuras coleções de jardins botânicos e herbários da Amazônia (grifos meus).

Conforme consta na própria apresentação do projeto na Internet, a GTZ continua

participando, embora seja a Universidade de Ulm a executora junto com a UFAM.

Apesar de a justificativa ser para viabilizar as informações referentes às plantas

medicinais na região amazônica, as diretrizes são todas tomadas pela Alemanha e na

102 O projeto chama-se: “Salvaguarda e disponibilização de Informações de herbários sobre a biodiversidade vegetal da Amazônia na Amazônia Uma medida no âmbito do projeto setorial Implementação da Convenção sobre Biodiversidade”. Um projeto de cooperação Brasil-Alemanha. 103 http://www2.gtz.de/biodiv/download/p_bras_herb_1102.pdf , consultado em 11/06/2003.

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Alemanha, inclusive a criação da versão do sistema em português. Usuários desse país,

em Ulm, provavelmente acessam mais rapidamente e com maior exatidão o programa do

que no Brasil. Sobre o acesso das informações no Brasil, a página na Internet relata que:

A versão do programa em idioma português, inclusive seu manual, foi produzida em Ulm e instalada em hardware destinado ao herbário em Manaus. O equipamento foi despachado para Manaus em fins de 1999 e instalado em março de 2000. A instrução operativa dos funcionários do herbário sofreu considerável atraso por causa de uma descarga elétrica (raio) que danificou o equipamento e por conta das greves na universidade, só podendo ser concluída em fins de 2001.

As publicações alemãs conferem um caráter dramático ao processo de construção

da gestão ambiental no Brasil, principalmente das florestas, associando-o a um problema

de “cultura política do país”. As publicações de órgãos e agências de cooperação para o

desenvolvimento, meio ambiente ou relações exteriores do governo alemão afirmam

serem as áreas de florestas “de vital importância para a sobrevivência da humanidade”.104

Na construção do problema da “destruição das florestas tropicais brasileiras”, as

origens desta situação são atribuídas ao continuado e inadequado uso das florestas, que

está relacionado à política de colonização que envolveu a exploração dos recursos

naturais e minerais de forma insustentável.

As políticas de desenvolvimento regional, implementadas nas últimas décadas, voltadas para integração territorial e rápida modernização da sociedade e da economia brasileira, geraram um acelerado crescimento econômico e demográfico. [...] A Amazônia, como o Brasil, não é mais a mesma dos anos 70: industrializou-se e urbanizou-se.105

A proposta do PPG-7 fundamentou-se na questão do clima, particularmente no

que diz respeito ao risco de aquecimento global. Ele foi elaborado como um programa

experimental destinado a frear o desmatamento da maior floresta do mundo, considerado

um “patrimônio global”, e foi elaborado para ser modelo de cooperação internacional a

ser executado no Brasil. Ao entrar em contato com o PPG-7, optei por entrar neste campo

104 GTZ. “Futuro da Floresta Tropical: a cooperação técnica com o PPG-7”, opus cit., p.4. 105 MMA. Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil, opus cit., p.6.

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das políticas de cooperação técnica internacional, um lugar privilegiado para observar um

conjunto de práticas que se instituiu com ele na administração pública.

Foi a partir dele que iniciei a reflexão a respeito do que se estabelece como

cooperação internacional, no sentido de desnaturalizar uma prática ainda pouco explorada

nos campos das ciências sociais, particularmente, da antropologia.

Procuro neste capítulo salientar um processo que vinha em andamento desde o

final dos anos 80, mas que se intensificou com a realização da ECO-92 no Brasil,

caracterizada pela constituição de uma área de discussão e de atuação política referente às

práticas de atores, sobretudo agências e organizações não-governamentais estrangeiras,

em projetos sociais e ambientais no Brasil. Destaquei alguns aspectos próprios às formas

de receptividade às políticas de cooperação técnica para o desenvolvimento no Brasil, no

que diz respeito à estruturação da crítica e da denúncia, mas com acolhimento aos ideais

de solidariedade e às parcerias internacionais. A entrada de instituições governamentais

alemãs em políticas ambientais no Brasil se deu por meio de redes consolidadas entre

ONGs em um espaço de atuação e de debate promovido durante a realização da Eco-92,

no Brasil, para depois dar entrada nas redes governamentais relacionadas às políticas de

proteção da Floresta Amazônica. A participação do governo alemão no PPG-7 como

maior doador isolado garantiu a afirmação de sua liderança política internacionalmente,

como um catalisador na implementação e na formulação conceitual nas iniciativas

políticas ambientais.

Para o próximo capítulo, busquei fazer um exercício de distanciamento em

relação a um contexto específico em que foi analisada a “cooperação técnica

internacional”, e tratei o conjunto de definições e formas de abordagem sobre este campo

de práticas e discursos, chamados de cooperação técnica para o desenvolvimento, na

literatura acadêmica das ciências sociais e, mais especificamente, nas contribuições da

antropologia sobre o tema. Foram analisados diferentes tipos de documentos publicados

sobre o assunto,106 dentre eles, teses, artigos de revistas especializadas em política

internacional, artigos de jornais, resenhas de política externa, discursos presidenciais e de

106 Foram identificadas mais de 450 publicações referentes ao tema no Núcleo de Documentação do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, atualmente integrado à biblioteca central da instituição, bem como no Instituto de Economia da Praia Vermelha da UFRJ, além de intensa pesquisa pela Internet.

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ministros de Estado, tratados, acordos e avaliações institucionais que sugerem algumas

idéias para a formulação conceitual.

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Capítulo 2 - Desvendando a cooperação técnica para o desenvolvimento

O primeiro desafio ao tratar de cooperação técnica para o desenvolvimento se

apresenta à dificuldade de sua definição. A expressão cooperação internacional é usada

para designar as mais distintas situações, adquirindo diferentes sentidos semânticos,

sendo uma expressão de escopo flexível e amplo, tão amplo quanto suas possibilidades e

fins.

Relações internacionais e cooperação internacional como ordem

Cooperação internacional é tema que suscita discussão sobre as condições do

sistema internacional de Estados, tendo sido explorado inicialmente por autores de

diferentes escolas teóricas na área de relações internacionais. Eles analisaram como se

estabelece uma ordem no sistema internacional, o que define seu padrão e como os

Estados e outras organizações se comportam uns em relação aos outros, considerando a

posição que ocupam em uma estrutura de distribuição de poder. Conflito e cooperação

são temas sempre presentes no estudo e na interpretação da disciplina de relações

internacionais, parte fundamental do debate em torno dos mecanismos de ordenamento

do sistema internacional, o que ocorre desde a origem da disciplina, entre os anos 20-30,

até os dias de hoje. 107

Para os realistas,108 como Hans Morgenthau, a ordem internacional é anárquica;

nela está ausente uma autoridade supra-estatal e é caracterizada por conflito e competição

entre atores unitários, os Estados Nacionais. Essa ordem não pressupõe mecanismos de

107 Viotti, P.R. & Kauppi, M.V. International relations theory: realism, pluralism, globalism. New York: MacMillan Publishing Company, 1993 (ed. revisada); Aron, Raymond. Paz e guerra entre as nações. Brasília: UnB, 1981. 108 O Realismo é uma das escolas fundadoras da área de Relações Internacionais e uma das mais influentes. Argumenta-se haver não um, mas vários “realismos”, sendo o principal eixo de argumentação a idéia de “auto-ajuda”, em que os atores dependem exclusivamente de seus próprios recursos; da centralidade dos Estados Nacionais e da luta pela sobrevivência e soberania, o que explica o comportamento dos Estados Nacionais em um sistema anárquico. Um de seus mais expressivos expoentes, Hans Morgenthau, escreveu em 1948 Politics among nations: a struggle for power and peace, uma referência na área. Ver: Baylis, J. & Smith, S. The globalization of world politics: an introduction to international relations. Oxford: Oxford University Press, 1997.

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regulação, porque os realistas têm como pressuposto que os Estados são atores racionais

agindo individualmente para realizar seus próprios interesses, pois não contam com

nenhuma outra instituição supra-estatal, mas somente com seus próprios recursos de

poder.109 O objetivo mais fundamental dos Estados é garantir, por meio da auto-ajuda, a

soberania, o que implica assumir que a cooperação entre os Estados é uma situação pouco

provável de ocorrer, pois envolve a cessão de parte de suas soberanias.110

Para outros autores, mais afinados com idéias liberais, os chamados “liberais-

institucionalistas”, como Peter Haas e David Mitrany, entre outros, a cooperação

internacional seria uma opção viável no sistema internacional.111 Ela resulta da

construção normativa desenvolvida por um grupo de atores internacionais – Estados,

empresas e organismos governamentais e não-governamentais – para resolver problemas

comuns. Nela as instituições internacionais teriam um papel central na construção de

políticas coordenadas e normas comuns para os Estados soberanos, com livre circulação e

troca de conhecimentos e mercadorias que envolvem interesses comuns entre esses

Estados e que estão relacionados à idéia de promoção do bem público, o que é contrário à

lógica competitiva de livre mercado que leva ao conflito.

A ênfase em seus trabalhos está na identificação dos fatores que levam à

consolidação de uma ordem internacional propícia ao desenvolvimento econômico, por

meio de condições de paz e harmonia internacional, o que pressupõe alguma forma de

construção normativa coletiva em que as instituições têm um papel fundamental. A este

conjunto de normas elaboradas chama-se de regimes internacionais: “um conjunto de

princípios implícitos e explícitos, normas, regras e procedimentos relativos a decisões

para uma determinada área de relações internacionais em torno dos quais as expectativas

dos atores convergem”, segundo a definição de Krasner.112 Para John Ruggie, regimes

referem-se mais a “um conjunto de expectativas, regras e regulações, planos e

109 Idem, p.113. 110 Morgenthau, Hans. Politics among nations: a struggle for power and peace. New York: Knopf, 1984. 111 A definição de “pluralistas” abrange um conjunto de correntes associadas a idéias liberais. Para citar alguns autores: Arthur Stein, Kenneth Waltz, Robert Keohane, James Rosenau, Oran Young, David Mitrany, um dos pioneiros da teoria da integração Peter Haas, John Ruggie, entre outros. 112 Krasner, Stephen. International regimes. New York: Cornell University Press, 1983.

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compromissos sociais que foram aceitos por um grupo de Estados” e se voltam para

normas de defesa de interesses e bens comuns, coletivos ou globais, como meio

ambiente, direitos humanos, segurança internacional, narcotráfico, entre outros.113

É muito freqüente entre autores que adotam uma abordagem liberal-

institucionalista que cooperação internacional seja definida como um processo de

interdependência entre os atores do sistema internacional.114 Keohane e Joseph Nye

argumentam que esta crescente interdependência se deve ao desenvolvimento de novas

tecnologias e a uma maior integração econômica mundial e que tem por objetivo a

realização de “interesses comuns”. No entanto, para estes autores, a idéia de

interdependência não exclui a de assimetria. Supõem, neste sentido, a existência de

condições de desigualdade em termos de distribuição de poder entre os Estados, e

explicam o fato de que, embora se obtenham ganhos absolutos em uma relação de troca,

os ganhos relativos podem ser distintos e acentuados com as relações de cooperação.

Para Robert Keohane, conflito e cooperação são, no sistema internacional,

condições interligadas e não incompatíveis ou contraditórias. Para ele, não existe

cooperação sem a eminência do conflito e seria uma opção que os atores internacionais

teriam diante de uma situação de conflito real ou potencial. Ele assim define a

circunstância em que a cooperação ocorre: “cooperação não significa harmonia e não

significa que não haja conflito. Sem o espectro do conflito, não há por que cooperar.

Cooperação é uma situação política”.115

Para Arthur Stein,116 conflito e cooperação são processos intrinsecamente

interligados que resultam de interações entre os Estados no sistema internacional.

Segundo ele, não devem ser analisados isoladamente, pois são as conseqüências das

escolhas dos Estados soberanos, baseadas nas percepções dos elementos do contexto

maior que determina a posição e a inserção de cada um deles no sistema internacional.

113 Ruggie, John (1975), appud Keohane, R. After hegemony, 1984. p.53. 114 Alguns teóricos de relações internacionais que adotam uma abordagem liberal-institucionalista, como Robert Keohane e Joseph Nye, compartilham das idéias de que a maior integração econômica mundial, novas tecnologias, atores não-governamentais e organismos internacionais são fatores que têm contribuído para a interdependência mundial. 115 Keohane, R. After hegemony: cooperation and discord in the world political economy. Princeton: Princeton University Press, 1984. p.63. 116 Stein, A. Why nations cooperate: circumstance and choice in International Relations. London: Cornell University Press, 1993.

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Estes elementos não são inerentes aos Estados, mas sim características do sistema, mais

precisamente da estrutura do sistema que define a distribuição de poder. Da mesma

forma, Kenneth Waltz, considerado um representante do “realismo estrutural”, explora o

conceito de estruturas políticas como forma de definir os princípios ordenadores que

expressam a distribuição de capacidades ou recursos no sistema internacional, sendo o

sistema de Estados uma analogia ao mercado que reconhece a existência de assimetrias

no plano internacional.117

Os aspectos de desigualdades e assimetrias das estruturas de poder no sistema

internacional foram amplamente denunciados pelos chamados teóricos da dependência,

representados por autores que adotam uma visão sistêmica fortemente influenciada pela

teoria do imperialismo e por uma preocupação com as assimetrias decorrentes da

distribuição de poder. Esta visão sobre diferenciais de poder no sistema internacional

também é observada por outra corrente de relações internacionais, a teoria sistema-

mundo,118 caracterizada pela herança marxista e por contribuições marcadamente

sociológicas das estruturas de poder. Entre os autores, encontramos Celso Furtado, André

Gunder Frank, Fernando Henrique Cardoso e Immanuel Wallerstein.

Antropologia e cooperação para o desenvolvimento

Em sua concepção contemporânea, o termo cooperação internacional está

fortemente vinculado aos Estados Nacionais e à idéia de desenvolvimento119 que,

principalmente entre os anos 70 e 80, gerou uma produção de artigos acadêmicos sobre

antropologia aplicada e a atuação de antropólogos em projetos de desenvolvimento.

Das publicações e dos trabalhos acadêmicos envolvendo a categoria cooperação

para o desenvolvimento, no que diz respeito à produção no campo da antropologia no

Brasil, nota-se um espaço ainda aberto para a abordagem antropológica no que se refere

às práticas efetivamente em exercício na execução de projetos e programas, nos rituais da

117 Waltz, Kenneth. “Man, State and War”. In: Theory of International Politics, 1979, p.79-106. 118 Baylis, J. & Smith, S., opus cit., p.125-145.

119 Arturo Escobar (1995), Gilbert Rist (1999), Lucy Mair (1984), James Ferguson (1994), Frederick Cooper & Randall (1997) são alguns dos autores que contribuíram para este debate.

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cooperação e nas representações discursivas, denominada cooperação técnica

internacional.

Diante de um universo amplo e complexo, essas práticas estão intrinsecamente

relacionadas às estruturas jurídicas e burocráticas de determinados setores dos governos

(Relações Exteriores, Ciência e Tecnologia, Planejamento e Economia, Meio Ambiente,

Educação, entre outros, que variam em função da especificidade do tema envolvido),

através de contratos que expressam o conjunto permitido de normas e regras.

Neste sentido, o presente trabalho tem como propósito, particularmente na

abordagem adotada nesta parte, analisar certas modalidades de intervenção em outras

administrações públicas e o arcabouço institucional e conceitual da administração pública

alemã correspondente. Espero estar contribuindo com a sugestão, há muito apresentada

por Nader, de focalizar as próprias estruturas de poder na nossa sociedade:120

Ethnographic reports would describe the communications industries, the agencies which regulate them, the institutions that undergrid the industrial sector [...] It is appropriate that a reinvented anthropology should study powerful institutions and bureaucratic organizations in the United States, for such institutions and their network systems affect our lives and also affect the lives of people that anthropologists have traditionally studied all around the world.

Em trabalho na mesma linha, Ferguson121 tratou das operações do “aparato” do

desenvolvimento internacional e não das pessoas a serem desenvolvidas, objeto central da

maioria dos trabalhos antropológicos. Ferguson desenvolve ainda que esta mudança de

enfoque envolve uma abordagem descentralizada, em que a inteligibilidade deste

“problema antropológico” refere-se ao processo, à série de eventos e às transformações, e

não a uma determinada instituição; está na natureza sistemática da realidade social que

resulta dessas ações.

120 Nader, Laura. “Up the anthropologists: perspectives gained from studying up”. In: Hymes, Dell. Reinventing anthropology. New York: Pantheon Books, 1972. p.292. 121 Ferguson, J. The anti-politics machin.“Development”, depolitization and bureaucratic power in Lesotho. Minneapolis and London: University of Minnesota Press, 1994. p.17-19.

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Arturo Escobar, em estudo a respeito da construção do “Terceiro Mundo” a partir

dos discursos sobre desenvolvimento, argumentou que o trabalho sobre instituições é uma

das forças mais poderosas na criação do mundo em que vivemos. Para ele: 122

This objetification and transcendence of local historicity are achieved in the process of inscription. [...] In this process, the organization’s perception and ordering of events is preordained by its discursive scheme and the locally historical is greatly determined by nonlocal practices of institutions, embedded in turn in textual practices.

O primeiro trabalho em antropologia produzido no Brasil sobre cooperação

internacional no Brasil a que tive acesso foi a tese de doutorado de Ludmila Lima, 123

defendida no Departamento de Antropologia (DAN) da UnB em 2001, que tratava dos

conflitos, rivalidades e disputas freqüentes entre a agência alemã GTZ e o governo

brasileiro em um projeto de cooperação, o PPTAL.124 Lima era dona de um olhar

privilegiado em relação aos conflitos cotidianos em um órgão público porque trabalhava

como consultora na equipe do projeto, o qual passou a tratar metodologicamente como

“aldeia”.

Seu trabalho sofreu críticas da representante alemã da GTZ no projeto, entre

outras coisas, por ela não ter aceitado as críticas às relações existentes entre ela e os

funcionários da Funai, fato que “reverberou”. Quando fui em 2002 a Brasília, os

comentários feitos particularmente pela “perita” alemã e também pela equipe do projeto,

mas até mesmo por alguns que ainda não haviam lido o trabalho eram bastante severos

em relação aos “problemas” da tese.

Este projeto foi coincidentemente o tema que eu havia escolhido inicialmente para

a minha investigação no doutorado, e que havia sido apresentado em projeto de pesquisa

pouco antes da defesa de Lima, de forma que não tive acesso à leitura da sua tese antes da

minha candidatura. Após lê-la, vi-me diante do desafio de redefinir minha abordagem e o

tema a investigar. 122 Escobar, Arturo. Encountering development. The making and unmaking of the Third World. Princeton: Princeton Studies in Culture/Power/History - Princeton University Press, 1995. p.108. 123 Lima, L.M. M. “Se a FUNAI não faz, nós fazemos”: conflito e mudança no contexto de um projeto de cooperação. Tese de doutorado, Departamento de Antropologia - UnB, Brasília, 2000. 124 A tese de doutorado de Ludmila M. Lima sobre a análise do PPTAL enquanto “aldeia”, espaço de conflito e socialização, apresenta uma abordagem detalhada de como se dão esses conflitos no interior de uma instituição que se depara com “o novo”, com mudanças. Ver Lima, L.M.M., idem.

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Posteriormente, em 2002, Pareschi defendeu sua tese, também no Departamento

de Antropologia da UnB, sobre a relação entre o que definiu por projetismo e

desenvolvimento sustentável. Circunscreveu-se à análise de um projeto que envolvia

agências multilaterais e bilaterais de cooperação internacional, o Projeto Frutos do

Cerrado, dos Projetos Demonstrativos - PDA. Ambos, PPTAL e PDA, eram projetos que

faziam parte de um programa mais amplo para a Amazônia, o PPG-7.

As pesquisas realizadas não se limitaram, no entanto, a projetos desenvolvidos no

Brasil enquanto país “receptor” de cooperação, mas também como agente de cooperação

no exterior. Em 2005, o trabalho de Kelly Cristiane da Silva analisou as missões da ONU

no Timor Leste, ou seja, visou ao deslocamento do olhar para fora, às atividades de

“cooperação” realizadas pelo Brasil, agora em outra posição, como um dos “doadores”

para a “reconstrução do Estado” no Timor.

Notamos que os esforços iniciais de discussão sobre o que era denominado

“cooperação técnica” partiram mais claramente posicionados do Departamento de

Antropologia da UnB, não sem explicação. A proximidade existente dos escritórios de

organismos e agências internacionais, como Banco Mundial, PNUD, GTZ etc. – centros

de decisão dos projetos – as conversas informais com antropólogos e outros que

participam como consultores de projetos de cooperação e de órgãos do governo que

desenvolvem projetos, os comentários sobre novos editais de recursos, enfim, todo um

conjunto de situações que diz respeito à administração pública, às políticas

governamentais e à cooperação internacional, perpassam as condições corriqueiras e

cotidianas da vida privada, acontecendo de forma “naturalizada” em Brasília, e

entretecem-se no espaço acadêmico da UnB.

A rede de antropólogos que tem sua base de referência e ponto de partida na UnB,

no Departamento de Antropologia, compõe-se de alunos e ex-alunos formados pelo

DAN-UnB, constituindo um dos grupos mais firmes, coesos e gregários no meio

universitário e acadêmico de Brasília. A formação desta sólida rede começa pela

disponibilidade de um espaço de convívio social e de discussões acadêmicas para os

alunos – a Catacumba – que se estende para as festinhas da antropologia pela cidade. Ao

entrevistar um antropólogo que trabalhava em um projeto dentro de um órgão público, ele

comentou sobre a rede de antropólogos de Brasília:

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[...] bem, eu conheço o pessoal, já escutava as coisas. Quem é que não sabe quem é quem aqui? Brasília é pequena, a aldeia de antropólogos então, menor ainda. Todos os antropólogos de Brasília se conhecem. Qualquer um que você falar aí, eu conheço.

Em Brasília os antropólogos têm um elemento a mais que define o seu status

social tanto em relação a vários grupos profissionais, como diante de outros antropólogos:

a proximidade com o centro simbólico e administrativo do Poder Federal, que os coloca

em estrita ligação com “políticas públicas sociais”, garantindo a eles destaque no meio e

possibilidades concretas de trabalho, seja em consultorias temporárias, seja em cargos

públicos. Esta proximidade de oportunidades de trabalho, especialmente em

“consultorias”, e certo tipo de “engajamento” político em questões sociais e de direitos

humanos dão aos antropólogos de Brasília uma posição privilegiada em função da prática

de uma aparente antropologia “aplicada”. Esta prática vai desde a atuação em projetos

sociais em ONGs, em consultorias de curto prazo prestadas a órgãos públicos, como no

caso das identificações de terras, até diretamente no serviço público, em órgãos como

Funai, Ministério da Educação (MEC), Fundação Nacional de Saúde (Funasa), ou ainda

como especialistas, analistas periciais do Ministério Público. Nem sempre uma

antropologia “militante” garante reflexão antropológica, mas o fato é que a experiência

em campo, etnográfica, associada às políticas de Estado ou não, são características

bastante comuns de uma “antropologia de Brasília”.

Um antropólogo que trabalha no PPTAL reportou sobre as ofertas de trabalho

para quem é de Brasília: “Quem é de Brasília tem mais [...] Pô, eu nasci aqui, né? Eu

conheço todo mundo por aí. A gente conhece um bocado de gente que trabalha na

administração pública e aí eu fiquei avaliando [a oferta de trabalho que fizeram].”

Um outro grupo de pesquisadores, particularmente preocupados com questões

relativas a políticas de governo, ações de Estado, formas de arquivamento e memória e

formas de classificação de populações, tem desenvolvido trabalhos em áreas afins e

próximas a um campo próprio da cooperação e do desenvolvimento.

Alguns pesquisadores, sob a orientação de Antonio Carlos de Souza Lima, têm

produzido trabalhos instigantes envolvendo o tema cooperação e desenvolvimento a

partir da ótica de uma antropologia do Estado ou antropologia da administração pública,

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buscando compreender as “tradições de conhecimento” de administração de territórios e

de populações.125 Entre eles, citamos a dissertação de mestrado de Roberto Salviani, a

tese de doutorado de J.P.M. Castro, e duas teses em andamento: a de Maria B. Hoffman e

a de Natacha Nicaise.126

Ao analisar os trabalhos que vêm sendo produzidos, podemos dizer que foi

basicamente a partir de 2000 que se intensificou o interesse pelo tema, em função de uma

renovação metodológica em direção a questões pertinentes à cooperação internacional,

como desenvolvimento e administração pública, em processo de discussão na como

desenvolvimento e administração pública, em processo de discussão na antropologia

desde os anos 70, ganhando força ainda maior nos anos 80 e 90.

Cooperação como ação social comum (Práticas)

Além da abordagem que toma cooperação como uma forma de ordenamento,

outros são os sentidos do termo. Segundo o Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de

Aurélio B. de Hollanda127, o sentido do termo cooperar é, “operar simultaneamente”;

colaborar; “prestar colaboração, serviços; trabalhar em comum”; “ajudar; participar,

auxiliar”. O conceito resulta de ação prática não-individual, mas caracterizada pela

interação entre indivíduos ou grupos, envolvendo interesses em comum, condição para

que haja colaboração.

125 Alguns dos trabalhos de Souza Lima marcam a abordagem sobre o tema, analisado através do prisma do indigenismo como um conjunto de saberes associados a formas de gestão de desigualdades. Entre eles, citaremos Souza Lima, A.C. “O indigenismo no Brasil: migração e reapropriações de um saber administrativo”. In: LÉstoile, Benoit de, Neiburg, Federico e Sigaud, Lygia (org.) Antropologia, Impérios e Estados Nacionais. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/ FAPERJ, 2002. p.160. Também adota reflexões sobre o tema em: Souza Lima, A.C. “Tradições de conhecimento na gestão colonial da desigualdade: reflexões a partir da administração indigenista no Brasil”. In: Bastos, C.; Almeida, M.V. & Feldman-Bianco, B. Trânsitos coloniais: diálogos críticos luso-brasileiros. Lisboa: ICS, Universidade de Lisboa, Estudos e Investigações nº 25, 2002. p.1 126 Quanto à produção de alunos de Antonio Carlos de Souza Lima, vale destacar a dissertação de mestrado de Roberto Salviani, As propostas para participação dos povos indígenas no Brasil em projetos de desenvolvimento geridos pelo Banco Mundial: um ensaio de análise crítica, publicada em 2002, e a tese de doutorado de J.P.M. Castro sobre a atuação da UNESCO em projetos sociais no Brasil, envolvendo as categorias “juventude, violência e cidadania”, defendida em 2005. Dentre as pesquisas de doutorado em andamento, valem ser mencionados o trabalho de Maria Barroso-Hoffmann sobre a atuação da NORAD com populações indígenas e a de Natasha Nicaise sobre a política de comunicação da União Européia. 127 Ferreira, A.B.H. Dicionário Aurélio Eletrônico Século XXI, versão 3.0, 1999.

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Como vimos no Dicionário de Ciências Sociais,128 a bibliografia referente ao

tema enfatiza sobretudo a cooperação de grupos e não de indivíduos, sendo que suas

definições apontam para uma mesma linha centrada na idéia de “ação comum que visa à

realização de metas desejadas por todos os interessados”. Cooperação seria ainda uma

“ação conjunta e de comum acordo ou qualquer união de esforços semelhantes”. Nestes

sentidos acima observados, a palavra refere-se sempre a uma ação, a um processo social

entre grupos.

Kelly Silva define o sistema de doação envolvido na relação de cooperação em

Timor-Leste como um fato social total:129

Os recursos que têm como origem os parceiros do desenvolvimento são depositados em nome de Timor-Leste na qualidade de doações, pelo que esses atores são também denominados doadores. O sistema de doação pode ser tomado como um fato social total quando tratamos de analisar o processo de construção do Estado em Timor-Leste.

Para a autora, que analisa a pluralidade de atores que estão ligados à disputa do

processo de construção do Estado em Timor-Leste, o foco se dá antes no funcionamento

do campo da cooperação, que denomina de “o conjunto de práticas, valores e atores

envolvidos na gestão da assistência externa”130, relacionando as políticas de doação

adotadas a uma corrida por status político, “no qual a dádiva é a moeda de troca e fonte

de poder e prestígio”.

Como argumenta a autora, a abordagem sobre um conjunto de práticas, valores e

atores envolvidos na gestão de assistência externa caracteriza um campo de ação política,

mais do que simplesmente as ações em si. A noção desenvolvida por Bourdieu sobre

“campo” é muito adotada para análise da atuação de instituições em projetos de

cooperação.131 O conceito de campo para Bourdieu está imbricado na definição do modo

de produção de uma ordem observada e na construção de uma teoria da prática. Para ele,

128 Dahlke, H. Otto. “Cooperação”. In: Silva, Benedito (coord.). 2.ed. Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: FGV, 1987. p.271. 129 Silva, K.C. da. Paradoxos da autodeterminação: a construção do Estado-Nação e práticas da ONU em Timor-Leste. Tese de doutorado, DAN/UnB, Brasília, 2005. p.12. 130 Silva, K.C. da, opus cit., p.41. 131 Alguns dos trabalhos já citados o fazem, como Silva, K. (2005); Lima, Ludmila (2000), para citar alguns.

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campo é “espaço estruturado de posições cujas propriedades específicas dependem das

relações entre essas posições e que são passíveis de análise independente de seus

ocupantes” 132 e, ainda, campo como um local onde se trava uma luta concorrencial que

opõe o novo que força sua entrada e o dominante que procura excluir a concorrência,

defendendo seu monopólio.133

Neste mesmo sentido, Cristiana Bastos explorou o universo das redes de atores do

Brasil e do exterior envolvidos nas “respostas” ao fenômeno de disseminação da AIDS

como epidemia global, caracterizando um campo definido por um conjunto de atores e

pelos fluxos de conhecimentos sobre AIDS que se estabelecem entre eles. Como o título

de seu trabalho diz, a autora abordou as respostas enquanto práticas locais para o combate

à AIDS, para o que foi necessário articular processos e agentes financiadores, o que

podemos caracterizar como “campo”. Ela nos diz: 134

In Brazil, as in many other settings, the bulk of responses to AIDS, from the government to the grass-roots level, coincided with internationally sponsored efforts to promote a global action against AIDS. Sponsors included the World Health Organization, several donor agencies from the developed countries, and international coalitions involving people from developed and developing nations.

Há autores que tomam a expressão cooperação internacional mais precisamente

como práticas resultantes de determinados grupos ou agentes sociais, centralizando o

enfoque nos atores sociais. O trabalho de João Paulo Macedo Castro135 analisa a

consolidação de um espaço da UNESCO na construção de conhecimentos sobre

juventude e violência no Brasil e na articulação de agentes para elaborar e executar

políticas correlatas no país, caracterizando-a como agente político de um processo que

introduziu uma nova lógica de relacionamento entre Estados Nacionais e especialistas

132 Bourdieu, P. 1983(b), p.65, appud Souza Lima, A.C. Aos fetichistas, ordem e progresso: um estudo do campo indigenista no seu estado de formação. Dissertação de mestrado, UFRJ/PPGAS, Rio de Janeiro, 1985. p.227. 133 Ortiz, Renato. “Introdução”. ______. (org.). Pierre Bourdieu: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983. p.19. 134 Bastos, Cristiana. Transnational responses to AIDS and the global production of science: a case-study from Rio de Janeiro. Dissertation for the Degree of Doctor on Philosophy, University of New York, 1996. p.128. 135 Castro, J.P.M. UNESCO educando jovens cidadãos e capturando redes de interesses: uma pedagogia da democracia no Brasil Tese de doutorado, UFRJ/PPGAS, Rio de Janeiro, 2005.

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internacionais, que se pode entender como parte das relações de cooperação

internacional.

Alguns autores, cujos trabalhos refletem sobre projetos desenvolvidos por ONGs

e outras organizações da sociedade civil, também tratam o termo a partir das instituições

que desempenham essas atividades internacionalmente. Neste sentido, a tese de Benjamin

Buclet sobre a atuação das ONGs em um “mercado” da solidariedade situa

historicamente o surgimento das ONGs no Brasil como um lugar de atuação profissional

a partir de um enfoque que privilegia a diversidade de componentes e as propriedades do

campo. 136

Também neste mesmo sentido, Karin Urschel, ex-diretora da Fundação Heinrich

Böll no Brasil, em apresentação sobre o trabalho desenvolvido pela fundação neste país,

frisou em sua fala a importância de posicionar as atividades de cooperação não como

resultado da ação de uma entidade abstrata, mas em relação ao agente específico que a

pratica: 137

a idéia agora é abordar o tema da cooperação especificamente e não deixá-la aparecer aqui como se fosse mais uma ONG. É preciso nos definirmos um pouco e ressaltarmos a atuação específica da Fundação Böll. Primeiro temos que entender que assim como não existem as ONGs em geral, como foi falado aqui ontem, também não existe a cooperação em geral (grifos meus).

Quando analisado de uma perspectiva mais ampla, o discurso da comunidade e da

solidariedade pressupõe que indivíduos e grupos de diferentes origens nacionais se

compreendam como parte de um mesmo grupo, em função de interesses e objetivos em

comum, apesar das diversidades existentes entre eles. Este discurso passou a ser adotado

internacionalmente por representantes de organizações não-governamentais em

discussões políticas e em movimentos sociais.

A definição de cooperação não-governamental para caracterizar aquelas formas

específicas de desenvolvimento de projetos internacionais também denota a centralidade

dos atores sociais como determinantes não exatamente pelos agentes, mas sim pela

136 Buclet, B. Le marché international de la solidarité: les organizations non-gouvernementales en Amazonie Brésilienne. Thése pour obtenir le titre de Docteur en Sciences Sociales, EHESS, Paris, 2004. 137 Souza, H. de. “Forward”. In: IBASE/PNUD. Development, international cooperation and the NGOs. First International Meeting of NGOs and the United Nations System Agencies. IBASE, Rio de Janeiro, 1992. p.9.

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configuração em rede (networks) que caracteriza sua articulação. Algumas abordagens

adotam a hipótese de deslocamento dos centros de autoridade dos Estados para novas

esferas de poder e discutem a permanência dos Estados como instâncias de governo,

questão que remete às discussões contemporâneas sobre a permeabilidade dos Estados em

relação a processos decisórios. Organizações transnacionais, movimentos sociais e

organismos multilaterais vêm ganhando legitimidade no plano da política internacional,

de forma que novas e velhas agências de cooperação internacional têm participado nas

definições de políticas públicas no contexto mundial.

Alguns autores, como James Rosenau e Ernst Czempiel, Oran Young, Robert

Keohane e Joseph Nye abordam a participação das instituições internacionais em

questões que ultrapassam fronteiras nacionais, como aquelas relativas a meio ambiente,

direitos humanos ou terrorismo internacional.138

Ribeiro define transnacionalismo como a integração não-excludente entre

realidades sociopolíticas; um eixo transversal que recorta outros níveis de integração, no

qual está ausente uma realidade territorial139 e os aspectos políticos e ideológicos são

privilegiados.140 Seu espaço é difuso, disseminado em uma malha que vai do local

regional nacional ao internacional, por isso, um termo recorrente entre instituições da

“sociedade civil”, das redes de organizações, das associações e as pessoas articuladas

pelo ativismo político, ações e movimentos sociais que promovem atividades chamadas

de cooperação internacional ou solidariedade internacional.141

As formas de relações entre organizações não-governamentais definidas por

cooperação ocorrem prioritariamente por meio de redes de organizações, associações e

pessoas, articuladas e mobilizadas pelo “ativismo” político, por ações e movimentos

sociais. Ainda assim, a inter-relação entre os campos governamental e não-governamental

merece uma apreciação cuidadosa, já que são inúmeras as sobreposições e interseções

entre essas áreas, seja no que diz respeito à elaboração do aparato conceitual, seja quanto

aos profissionais que circulam de um campo ao outro, ou nas próprias funções em 138 Rosenau, J. & Czempiel, E. Governança sem governo: ordem e transformação na política mundial. Brasília: Editora UnB, 2000. 139 Ribeiro, Gustavo Lins. Cultura e política no mundo contemporâneo. Brasília: Editora UnB, Coleção Antropologia, 2000. p.14. 140 Idem, p.173 141 Idem, idem.

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atividades realizadas pelas organizações, muitas vezes de complementação ou mesmo de

competição na área social.142

Outra proposição também é encontrada em alguns trabalhos sobre cooperação,

tendo sido sistematizada pelo Dicionário de Ciências Sociais como uma forma de

organização social: “em economia e história social, o termo é empregado para descrever

qualquer forma de organização social e econômica que tem por base o trabalho

harmônico em conjunto, em oposição à concorrência”.

Para alguns autores, como André Gueslin, cooperação e solidariedade seriam

termos que estariam associados a uma determinada forma de organização social ou

configuração social, que teria tido a sua origem no final do século XIX, associada à

discussão em torno de temas sociais – a pobreza, as relações de trabalho e as relações

salariais.143 Através de uma análise histórica do surgimento da economia social na

Europa, mais precisamente na França, Guéslin argumenta que o conceito de cooperação

teria surgido em meados do século XIX, ganhando preponderância a partir de 1860. Para

ele, seu surgimento estaria associado ao contexto do desenvolvimento do setor de

proteção social, de redes de solidariedade da sociedade européia diante dos efeitos da

Revolução Industrial. As redes seriam as intermediárias entre as dinâmicas do Estado e

do mercado, tais como a formação de estruturas confraternais e corporações, confrarias

mercantis e artesanais, em sua maioria nos centros urbanos. O autor aborda aspectos do

processo de construção de conceitos e práticas de solidariedade, cooperação e

associação, explorando as várias formas de organização da sociedade civil, como

instituições intermediárias “entre o indivíduo e o poder”. Tais iniciativas teriam surgido

nos meios laicos ou religiosos como efeitos dos processos de organização social e

econômica da Revolução Industrial.

Estruturas relacionadas à organização dos trabalhadores foram criadas na Europa

a partir de 1870, revelando que a tomada de consciência da questão social não foi um

142 Somente para dar um exemplo, um perito da GTZ no PDA, antes de assumir este cargo, trabalhava como cooperante do SACTES/DED em uma organização não-governamental brasileira, a FASE. Depois de passar alguns anos no projeto PDA, assumiu a direção da representação da Fundação Heinrich Böll no Brasil, situada no Rio de Janeiro. Muitos outros casos podem ser encontrados deste mesmo tipo. 143 Guéslin, André. L’invention de l’économie sociale – Le XIX eme siècle français. Paris: Ed. Econômica, 1987. p.214.

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projeto exclusivo da Igreja, mas por ela coordenado. Além disso, foram movimentos que

não se restringiram a um determinado Estado, mas ocorreram de forma semelhante e

simultaneamente em vários lugares. Os círculos operários da Alemanha católica, criados

desde 1870 pelo padre Kilping (Sindicato de Friburg – L’Union de Friburg), teriam

contribuído, de maneira geral, para o processo de conscientização e articulação dos

trabalhadores na Europa. Segundo André Gueslin, tais iniciativas foram decisivas para a

reflexão sobre os caminhos da Igreja católica, e parecem ter se institucionalizado com a

Encíclica Rerum Novarum, em 1891, quando a Igreja passou a atuar de forma mais direta

no apoio à formação das corporações contra os abusos aos trabalhadores.144 Para ele, a

Igreja católica teria dado a sua contribuição na formação de estruturas de solidariedade –

organizações que colaborariam para um projeto global de sociedade – quando deixou de

controlar as obras de caridade no Antigo Regime e passou a apoiar estas organizações a

partir de 1870.

Para autores como Gueslin e Robert Castels,145 a argumentação sobre processos

de sociabilidade primária ou de construção de redes de solidariedade e cooperação

dirige-se à análise das questões domésticas entre grupos sociais relacionados ou

subordinados a um Estado Nacional, e não exatamente sobre cooperação internacional. A

construção da cooperação se dá por meio de laços de sociabilidade146 entre “iguais”, em

idêntico contexto nacional, como forma de suporte a grupos de uma mesma sociedade,

laços estes que abrangem os diferentes membros de uma coletividade. Esta é

caracterizada por indivíduos, grupos sociais e nações que, conscientes das diferenças e

das desigualdades, se empenhariam em garantir grupos menos favorecidos ou atendê-los.

Em alguns casos, a concepção centrada no grupo que implementa políticas ou

práticas de cooperação pode remeter à idéia da existência de uma “comunidade”. O

conceito de comunidade, no entanto, é passível de muitas críticas. Para Thornton e

Ramphele, comunidade é um ideal, uma expressão praticamente inócua, como

argumentam:

144 Ibidem, p.214. 145 Castel, Robert As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. 4.ed. Petrópolis, Ed. Vozes, 1998. 146 Idem.

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community is the ideal for the future, the structure of utopia, the expectation of heaven, the legitimate goal for a truly democratic politics. […] the term is also used to describe loose entities like the international community or business community. These usages imply that community so designated is static and wholly distinct from other social entities. If community is the political term today, it is also one of the most stereotyped and obscure. 147

Segundo estes autores, o termo comunidade teria surgido em sociedades ou

grupos religiosos cristãos medievais, sendo originalmente definido por Santo Agostinho.

Argumentam que apesar de a ideologia cristã enfatizar o compromisso voluntário dos

indivíduos com as comunidades, estas eram submetidas ao poder de nobres e reis que

garantiam sua segurança e proteção. As comunidades, por sua vez, legitimavam o poder

autoritário dos reis e dos nobres por meio de justificativas religiosas, e ofereciam assim

um modelo de comunidade política que seria reelaborado em outras situações ao longo da

história. Um exemplo são os movimentos missionários de igrejas, que se basearam em

estruturas sociais de comunidades como modelos de ação política no trabalho de

conversão religiosa no mundo. 148

Cooperação governamental

Nosso propósito aqui, no entanto, não é o de abordar cooperação como uma forma

de expressão da ordem internacional; não é também o de enfocá-la como uma ideologia

do desenvolvimento. O nosso objetivo é abordar as práticas de setores ou órgãos da

administração pública de Estados Nacionais em territórios estrangeiros por meio de

projetos. Neste sentido, o foco recai sobre a análise antropológica de determinadas

organizações do setor público de um Estado a respeito de organizações públicas de outro

Estado, não que isto exclua organizações não-governamentais, ao contrário, estas fazem

parte desse conjunto de interações em jogo. Nosso propósito é menos centrado nas

articulações, o que nos levaria à abordagem do “campo”, como mencionamos acima; de

fato, priorizamos a atuação de uma determinada organização, a GTZ, no Brasil. Para isso,

recorremos primeiramente a uma abordagem histórica, visando situar a sistematização

147 Thornton, R.J. & Ramphele, M. “Community, concept and practice in South África”. In: Critique of Anthropology, (9) 1, London: Sage Publications, 1989, p.75-87. 148 Idem, p.84-85.

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dessas práticas no processo de formação dos Estados no pós-guerra, particularmente os

casos da Alemanha e do Brasil, pois como argumenta Steinmetz: 149

the study of state formation is inherently historical, because it focuses on the creation of durable states and the transformations of basic structural features of these states. (…) But states are never “formed” once and for all. It is more fruitful to view state-formation as an ongoing process of structural change and not as a one-time event. Structural features of states involve the entire set of rules and institutions that are involved in making and implementing policies.

Sobre a persistência de análise do poder do Estado, que diz que o Estado pode ter

perdido algumas de suas capacidades de controle sobre movimentos de capitais nas

fronteiras, mas ainda é um ator-chave em um grande número de aspectos relacionados à

governança, tendemos a concordar com a opinião de George Steinmetz: 150

the state may have relinquished some of its earlier capacity to control the movement of capital across its own borders, but it is still the key actor in a number of arenas, including the definition of access to citzenship and its benefits, the control and production of violence, and the matacoordination of the diverse nongovernmental institutions involved in “governance. (…) The state still has crucial advantages over other actors in the effort to construct hegemonic identities and to unify the centripetal identifications within any given territory along nationalist lines.

Neste mesmo sentido, Bourdieu argumenta que é no domínio da produção

simbólica que se faz sentir a influência do Estado: as administrações públicas e seus

representantes são grandes produtores de problemas sociais, os quais a ciência social

apenas ratifica, retomando-os por sua conta como problema sociológico.151

E é exatamente neste sentido da construção de mecanismos específicos, objetivos

e subjetivos, enquanto esquemas de percepção e pensamento que se impõem de um

Estado sobre outro, que nos interessa pensar a cooperação como uma política adotada por

149 Steinmetz, G. (ed.) State/culture: State formation after the cultural turn. Ithaca, London: Cornel University Press, 1999. p.8-9. 150 Idem, p.11. 151 Bourdieu, P. “Espíritos de Estado”. In: Bourdieu, P. Razões práticas sobre a Teoria da Ação. Campinas: Papirus Editora, 1996. p.95.

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Estados Nacionais. No caso de se tratar de mecanismos, práticas e discursos de um

Estado sobre outro ou outros, a produção simbólica tem efeitos amplos e disseminados,

não necessariamente iguais, mas certamente fundamentados em uma mesma referência

ideológica ou cultural de origens nacionais, a partir das quais são elaboradas e produzidas

tais práticas e discursos.

Em políticas governamentais, como parte das ações orientadas para política

exterior de um país, a expressão cooperação para o desenvolvimento refere-se a um

conjunto de práticas administrativas a ser executado em Estados, territórios e populações

estrangeiras.

As chamadas agências de cooperação técnica internacional são órgãos de

governos que atuam em solo estrangeiro enquanto vinculadas às embaixadas de seus

países de origem; não têm uma personalidade jurídica própria, mas adotam a

personalidade jurídica da embaixada no local. Organismos internacionais são

organizações de direito público internacional com personalidade jurídica própria,

autonomia administrativa e mandato específico.152

As atividades de cooperação para o desenvolvimento implicam acordos e

compromissos jurídicos que regulamentam a transferência de recursos públicos

internacionais e estabelecem formas de atuação no exterior, as quais se expressam por

meio de trocas e intercâmbios (fluxos e contrafluxos) de múltiplas e diferenciadas

naturezas, envolvendo recursos financeiros, equipamentos, conhecimentos, idéias e

pessoas.

Entre as diferentes formas que as práticas de intervenção assumiram no contexto

contemporâneo, destacam-se algumas definições formais na lógica da administração

pública. A política governamental de cooperação para o desenvolvimento engloba as

várias maneiras pelas quais são adotadas certas práticas da administração pública em

territórios estrangeiros, formas de intervenção em escala global. São elas: cooperação

técnica, cooperação financeira, cooperação científica, cooperação acadêmica,

cooperação humanitária, entre outras, que no caso da Alemanha se encontram agrupadas

152 MRE. “Diretrizes para o desenvolvimento da cooperação técnica internacional multilateral e bilateral”. 2.ed., p.19: www.abc.mre.gov.br/abc/abc_historico.asp. Acessado em 12 de fevereiro de 2005.

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em uma mesma estrutura administrativa de governo, um mesmo ministério, o que nem

sempre acontece na maioria dos países.

Cooperação financeira refere-se aos fluxos de recursos financeiros e

investimentos. Na cooperação acadêmica e científica, são estabelecidos projetos de

pesquisa e desenvolvimento tecnológico entre centros de pesquisa, universidades e

fundações para intercâmbio de conhecimentos, experiências e aprimoramento científico.

No campo cultural, os programas de cooperação podem ser estabelecidos através dos

incentivos a determinadas expressões ou eventos culturais importantes, intercâmbio entre

artistas, grupos musicais, teatrais ou projetos culturais e outros. Em alguns casos, no

entanto, a cooperação científica insere-se no contexto de uma relação de cooperação

chamada técnica, sendo esta a mais flexível e fugidia definição que há entre as tantas de

cooperação.

Deste conjunto diferenciado de formas de ação governamental em territórios

estrangeiros, a cooperação técnica oferece alguns desafios, particularmente para a análise

antropológica, na medida em que se apresenta como práticas baseadas na transferência de

conhecimentos e na “capacitação”, educação ou formação de quadros de profissionais,

em grande parte os que pertencem a órgãos públicos, e na formação de saberes fundados

nas ciências sociais aplicadas – antropológico, sociológico, geográfico, econômico,

administrativo – associados a formas de intervenção de Estados Nacionais voltados para a

construção de Impérios.

Cooperação técnica

A primeira definição formalmente reconhecida para a expressão cooperação

técnica internacional, estabelecida na Resolução nº 200 da Assembléia Geral da ONU de

1948 (CTI), afirma ser:

Transferência não comercial de técnicas e conhecimentos, através da execução de projetos em conjunto, envolvendo peritos, treinamento de pessoal, material bibliográfico, equipamentos, estudos e pesquisas entre atores de nível desigual de desenvolvimento (prestador e receptor).

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Ainda hoje, esta definição tem validade, de modo geral, entre as diferentes

agências e organismos internacionais envolvidos no tema. Entende-se por cooperação

técnica as trocas de conhecimentos, metodologias, know-how que se dão entre dois

países, o que usualmente envolve a vinda dos chamados peritos técnicos estrangeiros para

implementar tais metodologias e conhecimentos através de projetos ou programas.

Toda iniciativa de cooperação técnica internacional governamental (CTI), seja

em termos de programas ou de projetos, é criada a partir da assinatura de um acordo

internacional, que pode ser tanto bilateral como multilateral. No caso de ser bilateral, é

feito entre os governos de dois países através de órgãos de suas respectivas

administrações públicas. No caso de ser multilateral, é assinado entre uma agência ou

organismo internacional e uma agência ou órgão da administração pública de Estado

Nacional. No caso brasileiro, a atribuição de celebrar tratados, acordos, atos

internacionais é da competência privativa do Presidente da República, devendo ser

submetido à aprovação do Legislativo, observadas as normas jurídicas do direito interno

dos Estados envolvidos, bem como as do direito internacional.

Na administração pública brasileira, nos chamados Acordos Básicos de

Cooperação Técnica, são definidas as linhas gerais de atribuições e responsabilidades de

cada um dos Estados e organismos internacionais participantes do acordo, as instituições

da administração que devem executar as atividades, conforme designadas pelos

respectivos governos, e os objetivos das relações diplomáticas entre os países envolvidos.

Vinculados e condicionados aos termos estabelecidos no Acordo Básico de

Cooperação Técnica, estão os chamados Ajustes Complementares, que também são atos

jurídicos internacionais – estes mais específicos no que se refere a determinar os critérios

próprios de cada projeto negociado no âmbito de um mesmo acordo de cooperação. Para

cada projeto específico é assinado um acordo complementar diferente.

Em relação a quaisquer mudanças ou emendas nos textos dos acordos

complementares, faz-se uso da Troca de Notas, documento com formato próprio,

intercambiado entre o Ministério de Relações Exteriores do Brasil e a outra parte, seja ela

um organismo internacional ou uma agência de outro Estado.153 Os projetos são, por sua

vez, os instrumentos por excelência de operacionalização da cooperação técnica entre

153 MRE, opus cit., p.18, parágrafo 24.

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duas ou mais instituições executoras dos dois países envolvidos, neles estando contidos

os objetivos e os meios para alcançá-los e o planejamento do trabalho.

Um projeto de cooperação técnica deve ser temporário e seus objetivos revelam o

enfoque pedagógico, educativo, da cooperação técnica, particularmente orientada para

órgãos da administração pública de países do chamado Terceiro Mundo: 154 “capacitar e

instrumentalizar órgãos públicos para que estes possam implementar, por seus próprios

meios e de forma mais eficiente e com maior impacto e sustentabilidade, políticas e

programas públicos”.

As atividades de cooperação técnica são apresentadas na forma de consultoria

especializada, treinamento de recursos humanos e aquisição de equipamentos destinados

a capacitar órgãos públicos, a fim de que estes possam implementar por seus próprios

meios, de forma mais eficiente e com maior impacto e sustentabilidade, políticas e

programas públicos.155 Como instrumento de capacitação de órgãos públicos, essas

atividades não substituem, no entanto, as ações de Estado e, portanto, não devem ser

confundidas com políticas públicas em si, mas sim como ações subsidiárias a elas.

Distinguem-se ainda de ações humanitárias, assistenciais, de investimento em infra-

estrutura ou aquelas realizadas por órgãos militares, filantrópicos e eclesiásticos. 156

Para o caso deste estudo, algumas definições estabelecidas pelo governo brasileiro

e pelo governo alemão, selecionadas a partir de publicações oficiais, elucidam as

variações e as ênfases entre elas, revelando muito acerca de onde a definição partiu: se de

um país que recebe recursos, ou de um país que doa recursos.

No texto abaixo, vemos a definição formal do governo brasileiro para cooperação

técnica para o desenvolvimento como uma intervenção para promover mudanças:157

uma intervenção temporária por meio do desenvolvimento de capacidades técnicas de instituições ou indivíduos destinada a promover mudanças qualitativas e estruturais em um dado contexto socioeconômico, para sanar ou minimizar problemas específicos identificados naquele âmbito; para explorar oportunidades e novos paradigmas de desenvolvimento (grifos meus).

154 Idem, p.9, parágrafo 6. 155 Idem, idem. 156 Idem, p.8, parágrafo 3. 157 Idem, p.7, parágrafo 1.

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Para o governo brasileiro, o pressuposto para haver um acordo de cooperação

técnica para o desenvolvimento é de que este contribua para os objetivos de

desenvolvimento estabelecidos por ele, governo, o que se avalia em três níveis: o da

instituição que atuou como executora do projeto; o de uma melhor formulação e execução

de programas públicos ou de projetos, e o da participação da sociedade civil nas políticas

públicas. 158

Como orientação para assinatura de acordos com outros países para projetos de

“cooperação”, são adotados alguns critérios pelo governo brasileiro: a ênfase em

prioridades nacionais; o impacto macro-micro (nacional, regional, local); os efeitos

multiplicadores em outras áreas e outros setores; a capacitação de instituições através de

transferência de conhecimentos e sua internalização, ou seja, adequação nos processos

dos órgãos nacionais aos procedimentos instaurados com os projetos, permitindo que não

mais se dependa de instituições estrangeiras.

Para o governo alemão, a definição de cooperação técnica caracteriza-se por ser

uma atividade que consiste em: 159

capacitar os indivíduos e as organizações dos países parceiros para melhoramento das suas condições de vida sob sua própria responsabilidade e mediante seus próprios esforços. Para este fim, proporcionam-se capacidades e conhecimentos técnicos, econômicos e organizacionais, [por meio de atividades que envolvem]: disponibilidade de consultores, instrutores, especialistas peritos e outros técnicos qualificados, fornecimento de equipamentos e materiais, treinamento de técnicos e quadros executivos locais no próprio país, em outros países em vias de desenvolvimento ou na Alemanha, e contribuições financeiras para os projetos e os programas.

Como nos reportou uma antropóloga que fazia parte da equipe do PPTAL:160

A cooperação técnica da GTZ por definição significa isso: capacitar as pessoas dos projetos das instituições nessas metodologias para poder desempenhar, para poder tocar pra frente esses temas de monitoria [...] para poder tocar pra frente essa coisa de você planejar ações, de você acompanhar ações, de você avaliar o que fez. E aí, é o planejamento de pacote fechado, é isso, a metodologia. É como

158 Idem, idem. 159 GTZ. Compêndio do vocabulário da GTZ. Eschborn: GTZ, 1997. p.39. 160 Juliana Sellani, responsável pela monitoria do projeto PPTAL .

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eu te contei, eu fui à Alemanha fazer um desses cursos e percebi que no mundo inteiro onde existe cooperação técnica alemã o formato é esse mesmo, tá todo mundo trabalhando através das oficinas chamadas oficinas participativas, vivendo essas técnicas que eles chamam de Metaplank, que é essa técnica de visualização com aqueles murais e fichinhas, e existe uma justificativa até ideológica para esse uso, para esse tipo de coisa que você pode fazer em qualquer lugar, em qualquer contexto, sem a questão de se o público ali da comunidade que você está envolvido tem alguma tecnologia ou não tem, se tem dinheiro ou não tem, se sabe escrever ou não [..] (grifos meus).

Ressaltam-se as diferenças entre ações humanitárias, assistenciais ou de

investimento em infra-estrutura das atividades de “cooperação técnica”. Da mesma

forma, são estabelecidas diferenças em relação às políticas públicas.

Ao partirmos da afirmação de Weber de que “administração burocrática significa

dominação em virtude de conhecimento”,161 também relação entre conhecimento e poder,

como nos aponta Foucault, supomos que a cooperação técnica para o desenvolvimento

consiste em diretrizes e práticas de intervenção associadas a programas e a projetos de

governos que visam, por sua vez, à expansão de conhecimento sobre territórios e

populações. Isto vai garantir, em conseqüência, maior capacidade de administração e

influência sobre eles. A visibilidade de certas práticas e discursos encobre as práticas de

poder.

161 Weber, M. Economia y sociedade. México: Fondo de Cultura Economica, 1983.

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Parte II. Supostos e contextos da intervenção alemã no Brasil

Esta parte trata de situar, em determinado momento da história contemporânea, as

condições políticas e conceituais que viabilizaram a implementação, em vários Estados

Nacionais, de um conjunto de normas e instituições de intervenção para administração de

populações e territórios em outros Estados por meio de projetos, promovendo a

circulação – envio e recebimento – de recursos em fluxos distintos dos comerciais e de

investimentos no setor produtivo. Pretendia-se historicizar este campo usualmente tratado

por abordagens funcionais que se prendem aos discursos naturalizados dos projetos ou

programas em jogo. A análise deste contexto nos permite ter maior clareza sobre a

intensificação das relações entre os governos destes dois países em diferentes momentos

da história, a partir da assinatura do acordo básico de cooperação técnica de 1963, que

analisaremos na parte final da tese.

O surgimento das práticas de cooperação técnica internacional, entre os anos 50 e

meados dos 70, não pode ser pensado separadamente do contexto em que elas se deram,

caracterizado pelo marco ideológico da Guerra Fria, quando se fazia presente um sistema

de alianças entre a União Soviética e os Estados Unidos na concorrência por zonas de

influência. A partir da recuperação de alguns países europeus, a bipolaridade própria da

Guerra Fria deu espaço à crescente atuação de outros países, como Alemanha e Japão,

que já nos anos 60 passaram a desempenhar o papel de países doadores e não mais

receptores de recursos internacionais, caracterizando uma alteração dos diferenciais de

poder, desestabilizando uma certa dinâmica de distribuição de poderes existente.

Para isso, no capítulo três que se segue, recorremos a um enfoque histórico do

pós-guerra, visando abordar tanto o contexto mais geral de política internacional,

sobretudo os processos históricos de formação de estruturas e órgãos específicos da

administração pública ocorridos no Brasil. Abordamos o contexto em que se

institucionaliza esta forma específica de intervenção de instituições estrangeiras na

administração púbica brasileira nas duas primeiras décadas do pós-Segunda Guerra, em

que notamos a primazia dos setores militar e diplomático, chegando , em fins dos anos

80, com a consolidação de um sistema organizado e regulamentado com a criação da

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Agência Brasileira de Cooperação, quando houve o ressurgimento de variados fluxos

internacionais. Tais práticas fazem parte de um processo de expansão e consolidação de

novas formas de intervenção mundialmente, com arcabouço conceitual e institucional do

aparelho de Estado para atuar no exterior, estabelecendo fundamentos discursivos e de

atuação prática com base na lógica do desenvolvimento.

No capítulo quatro, focalizamos os processos históricos de surgimento de

organizações governamentais e não-governamentais no final da Segunda Guerra Mundial

na Alemanha, criadas para receber recursos estrangeiros destinados à recuperação de sua

economia e passaram a atuar no mundo na administração e intervenção em territórios

estrangeiros, particularmente países “em desenvolvimento” ou países do “Terceiro

Mundo”. Considerado por alguns autores162 como “um dos sistemas de cooperação mais

complexos e perfeitos, servindo de modelo a outros países” , apresenta uma variedade de

organismos, agências e fundações que atuam tanto como concorrentes ou

complementares na implementação de diretrizes e concepções de políticas do Estado

alemão.

A Alemanha, embora participando inicialmente como um elemento quase passivo

em função da correlação de forças que se consolidou no pós-guerra com a sua derrota, foi

capaz, em menos de uma década, de alterar sua posição de receptora de fundos

internacionais à de doadora, categoria que lhe coube pelos recursos oferecidos ao

desenvolvimento de outros países. Isto foi possível, dentre outras razões, pela

estabilização de uma estrutura institucional e de uma dinâmica financeira que foram

montadas para recebimento dos recursos do Plano Marshall.163

O propósito deste capítulo é priorizar os processos de resposta específicos de cada

contexto nacional, brasileiro e alemão, no que diz respeito à montagem de condições

institucionais para a promoção de políticas para o desenvolvimento a partir de convênios

internacionais. Recorrer aos primórdios de seu estabelecimento e às formas que foi se

desenvolvendo é fundamental para compreendermos como a discussão atual sobre

cooperação técnica no Brasil é polêmica e envolve críticas em função de uma suposta

162 Camargo, Sonia de. “Brasil e Alemanha: Uma Parceria Desejada”, em: Moniz Bandeira, L.A. e Pinheiro Guimarães, S. Brasil e Alemanha: A Construção do Futuro. Brasília: IPRI, 1995, p.177-193. 163 Inoue, Cristina . “Bases para um novo pacto de cooperação”. Cadernos Abong , no17, julho 1997, p.10.

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“perda de soberania” quando envolve assuntos considerados estratégicos, como a questão

relativa aos cuidados com populações e terras indígenas pelo Estado brasileiro.

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Capítulo 3. Origens da cooperação técnica: uma história oficial

O objetivo deste capítulo é analisar algumas das formulações que postulam a

história das origens da cooperação técnica para o desenvolvimento no sistema

internacional. Em primeira mão, adiantamos que publicações disponíveis sobre o tema

não são muitas; o que existe é em grande parte produzido por profissionais que trabalham

em instituições governamentais de Estados Nacionais – órgãos diplomáticos, ou agências

e organismos internacionais: agências da ONU, como o Programa das Nações Unidas

para o Desenvolvimento (United Nations Development Program - UNDP), Comissão

Econômica para América Latina e Caribe - CEPAL, Organização para Cooperação e

Desenvolvimento Econômico - OCDE, Organização Internacional do Trabalho - OIT,

Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura - UNESCO,

Banco Mundial, além de agências governamentais, como a Canadian International

Development Agency – CIDA, ou a GTZ, e não-governamentais, como a Fundação

Heinrich Böll ou a OXFAM. Se considerarmos a posição de muitos dos autores que

trabalham sobre o tema, poderemos argumentar que grande parte do que se produz sobre

cooperação técnica enquadra-se na definição da “história oficial” e reproduz

pressupostos e prerrogativas do discurso desenvolvimentista, sendo a cooperação técnica

um de seus instrumentos.

Observamos que a concepção das políticas para o desenvolvimento e a

institucionalidade têm origem nos países desenvolvidos (centrais), particularmente nos

Estados Unidos, país que assumiu a posição de liderança política e econômica no pós-

guerra. Muitos autores consideram que as diretrizes de uma política para o

desenvolvimento e as ações destinadas à cooperação em tal campo – nesse período

embrionário chamadas de assistência ao desenvolvimento – teriam sido promovidas a

partir do Point Four de Harry Truman e pelo Plano Marshall. Este último havia sido

lançado em abril de 1948 pelo secretário de Estado e seria assumido pela Administração

de Cooperação Econômica dos Estados Unidos (Economic Cooperation Administration

of United States).

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Os países receptores de recursos acompanharam os movimentos e os processos de

configuração e estruturação em suas respectivas administrações públicas, de forma a

poderem dialogar em uma mesma linguagem institucional para a recepção de recursos e a

execução de projetos. Veremos como isto se processa no Brasil, com a estruturação de

um sistema institucional na administração pública para regulamentar e implementar os

meios para recebimento de recursos técnicos, tecnológicos e financeiros.

Os processos de intervenção e administração de determinados Estados sobre

outros não são novos nem especificamente governamentais, mas têm relação com uma

dinâmica anterior, localizada no século XIX, que se refere ao colonialismo e às formas de

administração de territórios de além-mar, e também com o interesse na expansão

comercial.164 A intervenção no mundo em desenvolvimento vem garantindo

historicamente uma forma particular de acúmulo de conhecimentos, os quais se originam

de pesquisas científicas realizadas por expedições financiadas pelos governos dos países

centrais nas áreas de agronomia, biologia, botânica, e de pesquisas sociais.

Nos últimos cinqüenta anos, no entanto, a complexidade nas relações de trocas e

intercâmbios entre diferentes atores internacionais e nacionais intensificou-se em termos

de freqüência e diversidade de formas na política contemporânea.

No período entre 1945 e 1951 foram criados os principais organismos

multilaterais – a ONU, em 1945, e suas agências especializadas, o Fundo Monetário

Internacional - FMI e o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento - BIRD

(também conhecido como Banco Mundial), na Conferência de New Hampshire, e a

Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE, a partir da

Organização para Cooperação Econômica Européia - OEEC, em 1947.165 No caso das

agências da ONU, os temas internacionais eram debatidos nos encontros internacionais e

nas reuniões das agências, como a UNESCO, criada em 1945; a World Health

Organization - WHO, em 1946; a International Civil Aviation Organization - ICAO, em

1947; a World Metheorological Organization - WMO, em 1951; a International Atomic

164 Lucy Mair, Arturo Escobar, James Ferguson, somente para citar alguns entre outros antropólogos que vêm discutindo a relação entre antropologia e desenvolvimento. 165 Tickner, Fred. Technical cooperation. United Nations Special Projects Office. New York: Praeguer Publishers, 1966. p.12.

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Energy Agency - IAEA, entre outras. Foi nesse contexto que começou a se consolidar

uma política multilateral de cooperação internacional.

Esta “história oficial” está fortemente conectada a uma ideologia da dominação,

dos vencedores da guerra, do progresso e do desenvolvimento. Políticas sociais para o

desenvolvimento, associadas à educação básica, à saúde pública, à agricultura familiar e,

mais recentemente, à questão ambiental por meio do conceito do desenvolvimento

sustentável, têm sido o foco dos programas de cooperação técnica internacional

destinados aos chamados países em desenvolvimento. Okongwu e Mencher argumentam

que se deve analisar criticamente a relação entre ideologia e políticas públicas e afirmam: 166

“No longer is social policy on the local, national or international level shaped solely by

legitimate governmental bodies; it is now necessary to take into account the role of such

agencies as the World Bank, regional banks […]”.

A cooperação internacional no pós-guerra

Na concepção usual sobre o processo histórico de institucionalização da

cooperação técnica para o desenvolvimento, ela teria se iniciado formalmente na política

internacional no final dos anos 40, intensificando-se nos anos 60 até meados dos 70,

quando foram criadas e consolidadas internacionalmente suas bases normativas e

institucionais, precisamente com os arranjos multilaterais e bilaterais que se organizaram

com o fim da Segunda Guerra Mundial. Para Inoue e Apostolova, bem como para Cervo,

a cooperação técnica internacional foi introduzida formalmente no sistema internacional

em 1948, com a Resolução nº 200 da ONU, que veremos em detalhe mais à frente.167

Ao se considerarem as referências mais evidentes que atribuem o surgimento da

cooperação internacional ao contexto da Segunda Guerra Mundial e, em especial, ao

Plano Marshall, teríamos mais de sessenta anos de práticas reproduzidas e disseminadas

166 Okongwu, Anne & Mencher, Joan. “The anthropology of public policy: shifting terrains”. Annual Review of Anthropology, 29, p.109, 2000. 167 Inoue, Cristina Y.A. & Apostolova, M.S. A cooperação internacional na política brasileira de desenvolvimento. São Paulo: ABONG; Rio de Janeiro: Núcleo de Animação Terra e Democracia, 1995; Cervo, Amado Luiz. “Socializando o desenvolvimento: uma história da cooperação técnica internacional do Brasil”. Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, Ano 37, nº 1, p.39, 1994.

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na política internacional, o que implica, em caráter global, a mobilização de pessoas, o

investimento de recursos e as intervenções para aplicação de métodos e técnicas em

espaços nacionais.

Para Fred Tickner,168 no entanto, o processo de institucionalização da chamada

ajuda técnica (technical aid) – expressão que será substituída por cooperação técnica –

enquanto uma prática regular entre países, seria uma atividade cujo surgimento antecedeu

à Segunda Guerra Mundial, ao contrário do que usualmente se propaga. Para ele,

particularmente nos casos da Grã-Bretanha e da França, a “gestão administrativa” das

colônias por órgãos da Metrópole representou um meio pelo qual variados fluxos de

transferências ocorreram, desde recursos de pessoal, recursos técnicos, científicos e

financeiros até conhecimentos e valores.

Embora as colônias, em sua maioria, tenham conquistado a independência, muitas atitudes imperiais concomitantes à conquista colonial ainda persistem.169 Por razões apenas em parte enraizadas na experiência imperial, as velhas divisões entre colonizador e colonizado ressurgiram naquilo que muitas vezes é denominado de relação Norte-Sul.170

Tickner relata em trabalho histórico do período inicial de atuação das Nações

Unidas, entre os anos 40 e 60, a experiência vivida como seu funcionário, abordando o

papel das agências especializadas da ONU em comparação com a atuação individualizada

dos Estados Unidos. Segundo ele, as Nações Unidas teriam contribuído, a partir do final

da Segunda Guerra Mundial, para a mudança de mentalidade em relação ao

desenvolvimento mundial e ao processo de institucionalização da cooperação

internacional como prática regular entre países.

O autor destaca particularmente a continuidade existente no fornecimento de

serviços públicos da Grã-Bretanha no que dizia respeito às práticas coloniais, havendo

para ele um fluxo nas relações Metrópole-Colônia, assim como entre as funções de

instituições coloniais e agências designadas para exercer funções características de uma

política de desenvolvimento. O Colonial Office, o Foreign Office e o Commonwealth

168 Tickner, F., opus cit., p.120. 169 Said, E. Cultura e imperialismo. São Paulo: Cia. das Letras, 1999, p.48. 170 Idem, p.49.

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Relations foram assumidos pelo Ministério de Desenvolvimento do Ultramar (Overseas

Development Ministry), que vai operar com fundos do Colonial Welfare and

Development Acts. 171

A Grã-Bretanha, o maior império colonial, foi o primeiro país a implementar uma

política de assistência por meio de transferência de conhecimentos técnicos e científicos,

de pesquisa científica e de consultoria técnica da Inglaterra para as suas colônias,

reconhecendo em 1929 o Colonial Development Act. Esses serviços especializados – uma

prática que antecedeu e deu origem ao que posteriormente se instituiu como uma forma

de cooperação técnica e científica internacional – eram feitos em várias áreas: de saúde

animal e agricultura, de medicina tropical e educação superior, no desenvolvimento de

conhecimentos específicos científicos sobre populações e espaços nacionais estrangeiros.

Eles eram realizados por conselhos universitários (University Council), por instituições

de pesquisa (Research Board), ou por comitês de aconselhamento (Advisory Committee),

tendo sido o Colonial Advisory Council for Agriculture and Animal Health a primeira

instituição a ser criada em 1929, ano de estabelecimento do Colonial Act.172 Estes

representavam um conjunto de instituições da metrópole que atuavam para controle do

conhecimento sobre regiões que ocupavam ou intervinham que atendiam à lógica de

Estados metropolitanos.

A listagem de organizações consultivas do império britânico era extensa, o que

justificou, do ponto de vista administrativo, a criação do Colonial Office como instituição

que centralizou posteriormente todas essas funções, substituindo os conselhos. Com o

processo de descolonização, foram feitas mudanças na forma de classificação (na

nomenclatura) das instituições responsáveis pela função de promover o desenvolvimento

das colônias, a fim de dissociá-las da tradição colonial. No entanto, na prática, quase nada

mudou no caráter funcional das instituições e naquele que se referia aos recursos

financeiros disponíveis para tais atividades. Mudavam-se os nomes e as siglas, mas

mantinham-se as práticas.

Em 1964, funções do Colonial Office, do Foreign Office e do Commonwealth

Relations seriam assumidas pelo Overseas Development Ministry (Ministério de

171 Tickner, F., opus cit., p.89. 172 Idem, idem.

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Desenvolvimento do Ultramar), que passaria a operar com fundos do Colonial Welfare

and Development Acts. Em 1970, novamente, extingue-se o Overseas Development

Ministry, e suas funções são transferidas para a Secretaria de Estado de Assuntos

Exteriores e do Commonwealth (Secretary of State for Foreign and Commonwealth

Affairs), passando o trabalho a ser executado pelo Overseas Development

Administration, parte do Foreign and Commonwealth Office.

Também o trabalho desenvolvido por Helen Lackner sobre a administração

indireta (Indirect Rule), adotada pela Grã-Bretanha na Nigéria, e o processo de formação

do Estado nigeriano, em final do século XIX e início do XX, é bastante elucidativo no

que diz respeito a se estabelecer uma correlação entre as formas de administração do

período colonial e as de implementação das atividades de cooperação técnica

internacional.173 Lackner, que fez uma análise criteriosa e rica em detalhes da

particularidade da administração da Grã-Bretanha, coloca-nos diante de questões

históricas referentes àquele contexto, mas que explicam determinados aspectos gerais da

administração indireta como um feitio de administração colonial. Esta última surgiu

como resultado da dificuldade em administrar física e financeiramente vastos territórios

conquistados ao redor do mundo. A existência de instituições, autoridades locais e

estruturas de poder hierarquicamente bem definidas era condição que favorecia uma

forma de transmissão de ordens e regras por meio das forças e das autoridades

tradicionais locais existentes.174

A guerra e a diplomacia

Uma outra vertente originária da cooperação técnica internacional está associada

aos contextos de guerra e à lógica militar, surgida mesmo antes da Segunda Guerra

Mundial na forma de assistência, mas que ficou amplamente conhecida nessa guerra.175

173 Lackner, H. “Social anthropology and indirect rule. The colonial administration and anthropology in Eastern Nigéria: 1920-1940”. In: Asad, Talal (ed.). Anthropology and the colonial encounter. New York: Humanities Press, 1973. p.24-151. 174 Ela argumenta que a teoria funcionalista da escola britânica vincula-se à administração indireta adotada pela Grã-Bretanha em suas colônias e protetorados e à relação dos antropólogos com esta estrutura administrativa. O que se produziu tem conexão com o que se observava e com a forma com a qual os antropólogos se inseriam na administração colonial. Lackner, H., 1973, p.148. 175 Ver Tickner, F., opus cit., p.3.

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As funções do aparato institucional militar de envio de alimentos, remédios e suprimentos

para populações afetadas por guerras ou conflitos, desabrigadas e refugiadas – com o

início, inclusive, de trabalhos de reassentamento de populações – marcariam

definitivamente as práticas que seriam depois desempenhadas por departamentos

diplomáticos dos Estados Nacionais. Igrejas, hospitais e outras instituições de assistência

social teriam papel central na consolidação de uma lógica de auxílio fundamentada na

idéia de solidariedade, a qual integraria uma “comunidade internacional”.

As práticas voltadas para a reconstrução de países destruídos pela Segunda.

Guerra Mundial ganharam força, em um primeiro momento, através do Plano Marshall,

com a prestação de ajuda e assistência, fundamentalmente militares, a populações

atingidas pela guerra.

A cooperação aparece aqui como um dos eixos centrais da diplomacia, condição

para que ocorra negociação para a resolução de conflitos como uma alternativa à guerra.

O contexto militar e as práticas de assistência ou ajuda humanitária em situações de

guerra caracterizam uma das mais antigas experiências referidas como technical aid e

technical assistance (ajuda técnica e assistência técnica).

A ajuda humanitária durante e após as guerras, particularmente nos anos 40, com

a Segunda Guerra Mundial, antecedeu o que viria a ser chamado de cooperação técnica

para o desenvolvimento. Com a difusão de princípios de reconhecimento da soberania

dos povos e da igualdade de direitos, estabelecidos na Carta das Nações Unidas logo após

a Segunda Guerra Mundial, instaurava-se um contexto internacional de paz e crescimento

econômico sob a hegemonia americana, o que estaria sinalizando uma mudança de

mentalidade em meados dos anos 40:176 “at the same time it has become generally

accepted that the less fortunate countries also have the rights to share in the benefits to be

derived from progress […] these changes in thinking all have their implications in the

Charter of the United Nations”.

176 Tickner, F., opus cit., p.3.

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Como extensão e complementaridade das práticas militares, a diplomacia

refletiria também os interesses de poder dos Estados Nacionais, associados ao território e

a questões políticas, nas relações com outros Estados em tempos de paz.177

Em trabalho desenvolvido como consultor da Divisão de Comércio Internacional

e Transporte da CEPAL, Luciano Tomassini178 realizou um levantamento dos

significados da diplomacia em dicionários especializados, como o Dicionário Littré, que

nos remete ao papel da cooperação internacional. Diplomacia é, segundo Tomassini: “la

acción de solucionar los diferendos públicos, sobre todo los internacionales”.179 Já no

Dictionnaire Diplomatique, ela é: “negociación y cooperación son la razón de ser, no

solamente del agente diplomático en cuanto jefe de misión, sino de la diplomacia en su

conjunto”.

Foi no campo da diplomacia que pioneiramente as práticas da cooperação

internacional se formalizaram de maneira mais avançada e onde ganharam suas

características mais conhecidas, como a política de relações exteriores de um Estado.

Uma das instituições que colaboraram para o avanço das discussões sobre

cooperação técnica internacional foi, segundo alguns autores como Tickner, a United

Nations Relief and Reabilitation Administration – UNRRA, que atuou entre 1943 e 1949

na ajuda às populações desabrigadas e aos refugiados de guerra.180 A UNRRA atuava com

recursos provenientes principalmente da Grã-Bretanha e dos EUA, mas perdeu força à

medida que o Plano Marshall despertava interesse por seus programas.181 Na verdade, o

Conselho Econômico e Social - ECOSOC da ONU exigiu da Assembléia Geral que se

retirassem da UNRRA as funções de “assistência ao bem-estar social”, e solicitou um

comprometimento do secretário geral no sentido de que tomasse medidas para a

promoção da cooperação internacional para reconstrução do pós-guerra. Nesse contexto,

177 De acordo com as definições do Dicionário de Ciências Sociais (opus cit., p.505-508, apud Silva, B.; Miranda Netto, A.C. et all., p.351), um dos problemas principais em qualquer tentativa de definir diplomacia é sua ligação com a guerra, ficando evidente que a relação entre assuntos que dizem respeito ao campo militar estão fortemente vinculados a negociações no campo da diplomacia. Para alguns, diplomacia representa a alternativa pacífica e negociada à guerra que, uma vez ocorrendo, expressa o fracasso da diplomacia. 178 Tomassini, Luciano. Desarrollo económico y cooperación internacional. Santiago: CEPAL, junho, 1993. p.2. 179 Idem, idem. 180 Tickner, Fred, opus cit., p.10. 181 Idem, p.12.

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atribuía-se a este tipo de intervenção internacional o termo assistência técnica ao bem-

estar, relacionado às políticas do Estado de Bem-Estar Social (Welfare State), entre elas,

a technical assistance, expressão que teria sido mencionada pela primeira vez em 1946,

pelo ECOSOC.182

Em 1946, a Assembléia Geral da ONU autorizou a contratação de recursos

humanos para atuar na área de “bem-estar social” e estabeleceu as diretrizes de

assistência técnica das Nações Unidas: ajuda através do envio de experts (especialistas)

ou assessores técnicos especializados (expert advice). Dessa forma, os primeiros ensaios

de assistência técnica foram estabelecidos com o envio de peritos ou especialistas e

também com a provisão de equipamentos para uso dos oficiais, o que era objeto de

demonstração de projetos-piloto. Além disso, eram práticas comuns às metrópoles

colonialistas a oferta de bolsas de estudos (fellowship awards) e o recebimento de

estudantes das colônias nas suas instituições de formação.

A Resolução 200 do ECOSOC

Na segunda sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 1947, foi

aprovada a Resolução 52 que recomendava ao ECOSOC estudar os meios para colocar

em prática as diretrizes estabelecidas anteriormente sobre assistência técnica.183

Essas decisões contribuíram para a assinatura da Resolução 200, em 1948, que

criou o Programa de Assessoria das Nações Unidas. De acordo com a Resolução 200,

assistência técnica envolveria, além do envio de especialistas (experts e peritos) para

atuarem nos países, a educação no estrangeiro de especialistas dos países

insuficientemente desenvolvidos (bolsas de estudo no exterior), a organização da

formação de técnicos locais, a ajuda aos governos com recursos humanos, material e

equipamentos técnicos necessários (fornecimento de equipamentos) e a estruturação de

seminários e intercâmbio de informações atualizadas (atividades pedagógicas de

formação).184 A Resolução 200 ampliou os termos em que se definia assistência técnica

182 Idem, p.3. 183 Tomassini, L. opus cit., p.4-5. 184 Idem, p.4.

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em relação ao que fora estabelecido na Assembléia Geral de 1946 e seria considerada

decisiva para o desenvolvimento de atividades de assistência técnica, tendo instituído a

expressão e criado os fundos apropriados a essa modalidade de assistência.185

A definição de critérios para prestação de assistência técnica deixava clara a

preocupação em definir um campo estritamente técnico de relações e o fato de que tais

relações não poderiam servir de pretexto para a ingerência econômica ou política do país

estrangeiro em assuntos internos do país interessado. Como critério, esse tipo de

assistência seria consolidado exclusivamente com governos ou através da sua condução,

sendo eximidas as atividades de caráter político. Neste sentido, tal assistência deveria

responder às necessidades do país interessado e ser proporcionada na forma desejada pelo

país receptor até onde fosse possível, objetivando os mais altos níveis de qualidade e

competência técnica.186

O Plano Marshall e o Ponto Quatro

Lançada pelo presidente Harry Truman em março de 1947, a Doutrina Truman

visava a uma política de investimentos em infra-estrutura para os países europeus

destruídos pela guerra e foi formulada como uma operação econômico-ideológica para a

contenção do comunismo. Sua finalidade seria restaurar a prosperidade européia187 após a

guerra, particularmente as economias destruídas, evitando que se aliassem ao mundo

comunista.188 A reconstrução européia e o desenvolvimento econômico decorrente dos

investimentos norte-americanos pareciam as principais bandeiras para impedir tal

processo.

A Doutrina Truman reforçou a lógica da ajuda para o desenvolvimento ao

expressar a idéia segundo os padrões dos Estados Unidos e dos países mais ricos e não-

comunistas. O discurso do crescimento envolveria os países em desenvolvimento através

de uma política de “boa vizinhança”, de ampliação dos laços de amizade e de relações

185 Tomassini, L, opus cit., p.4-5. 186 Idem, p.4. 187 O Plano Marshall deu ao Ministro de Estado norte-americano, general George Marshall, o Prêmio Nobel da Paz em 1953. 188 Tomassini, L. opus cit., p.9.

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econômicas, sociais e culturais, e caracterizaria o estabelecimento de áreas de influência

que expressavam vínculos históricos, culturais e lingüísticos muitas vezes associados a

relações coloniais.

Como parte desta doutrina, o Plano Marshall foi colocado em prática a partir de

abril de 1948 por meio de um órgão do Estado norte-americano, a Administração de

Cooperação Econômica (Economic Cooperation Administration). O Plano não foi

destinado somente aos países derrotados, mas também aos Aliados, no sentido de

fortalecer a economia européia como um todo e, em conseqüência, a economia mundial.

O Plano Marshall tinha como princípios, entre outros, estimular a economia européia e a

cooperação transatlântica, promover as importações européias de produtos americanos,

conceder empréstimos para investimentos em reconstrução das contrapartes e propagar a

solidariedade americana, particularmente na Alemanha derrotada, como uma propaganda

ideológica.189

Na sua posse, quando eleito para o segundo mandato em janeiro de 1949, Truman

apresentou um discurso com três pontos, os quais seriam a base de atuação dos Estados

Unidos em relação a uma política de desenvolvimento. Esta política pretendia liderar a

sustentação das Nações Unidas, o Plano Marshall e a criação da Organização para o

Tratado do Atlântico Norte - OTAN. Havia, no entanto, um quarto item que chamou a

atenção, o Ponto Quatro, que dizia:190

Pela primeira vez na história a humanidade possui o conhecimento e a habilidade para aliviar o sofrimento dessas pessoas. Os Estados Unidos são preeminentes entre as nações no desenvolvimento de técnicas industriais e científicas. Os recursos materiais que podemos nos dar ao luxo de usar para a assistência de outros povos são limitados. Mas os nossos recursos inestimáveis de conhecimento técnico estão crescendo constantemente e são inesgotáveis. Eu acredito que devemos disponibilizar aos povos amantes da paz os benefícios do nosso depósito de conhecimento técnico para ajudá-los a realizar as suas aspirações a uma vida melhor. E na cooperação com outras nações, devemos incentivar os investimentos de capital em áreas que precisam de desenvolvimento (grifos meus).

189 Quanto a este ponto, Harries argumenta que o efeito do Plano Marshall na Alemanha serviu como exemplo para confirmar o sucesso de seus objetivos de refrear a expansão comunista e restabelecer a força econômica do “Ocidente”. Harries, H. Financing the future: a german bank with a public mission. Frankfurt am Main: Fritz Knapp Verlag, 1998. p.45. 190 Lopes, Carlos. Cooperação e desenvolvimento humano: a agenda emergente para o novo milênio. Anexo 1. São Paulo: UNESP, 2005. p.195.

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Neste discurso aparecem todos os elementos que posteriormente iriam caracterizar

as formas de intervenção adotadas por governos de países “mais desenvolvidos” em

governos de países “menos desenvolvidos”: a assimetria exposta em termos de diferenças

de conhecimentos técnicos e tecnológicos, industriais e científicos; a ênfase na

necessidade de ajudar em função da carência e do padecimento de “outros” povos

(sofrimento dessas pessoas); a ênfase na capacidade dos Estados Unidos de ajudar

(nossos recursos inestimáveis de conhecimento técnico estão crescendo constantemente e

são inesgotáveis); a disponibilidade de recursos materiais e financeiros; a definição de

condições para recebimento de recursos pelos que eram “de paz”, ou seja, aliados

ideologicamente ligados aos Estados Unidos; a caracterização da ajuda (financeira e de

transferência de conhecimento) para o desenvolvimento entre as nações, como uma

prática desejável a ser implantada.

Assim, ficou conformado um amplo modelo de programa de ação destinado a

promover o desenvolvimento de países que não o tivessem. Era uma iniciativa que partia

dos Estados Unidos que, enquanto liderança política e econômica, anunciava as diretrizes

mais amplas que não se restringiam à sua política externa. Os fóruns internacionais das

Nações Unidas – Assembléia Geral da ONU – prestaram-se a ser um espaço de

interlocução e de repercussão das propostas norte-americanas em relação ao

desenvolvimento e à cooperação técnica.

Segundo Tickner, as ações de cooperação estabelecidas no Ponto Quatro

deveriam ser implementadas pela ONU e por suas agências especializadas, mas não era

possível fazê-lo administrativa ou politicamente. Em 1948, as Nações Unidas não tinham

muitos recursos para a assistência técnica ao desenvolvimento econômico, o que

caracterizava a instituição de ter “princípios admiráveis, mas sem suporte econômico”,

considerando-se que tinha somente US$ 288 mil.191 Além disso, o programa de

assistência técnica da ONU teria encontrado dificuldades de organização pela falta de

pessoal, problemas em relação aos impactos em função da atuação dos peritos técnicos

191 Tickner, F., opus cit., p.15.

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nos locais. Dessa forma, a improvisação teria marcado os primeiros esforços de

cooperação técnica da ONU.192

Em agosto de 1949, o ECOSOC193 aprovou o Programa Ampliado de Assistência

Técnica, que contaria com recursos de um fundo formado por doações de seus membros,

fora do orçamento da instituição, e com a criação de um departamento para administrá-lo

– o Technical Assistance Board – e um Comitê de Assistência Técnica.194 Este programa

foi o predecessor do PNUD, também oferecido pelas Nações Unidas.

Os Estados Unidos tiveram que assumir o programa Point Four como uma

determinação de sua política externa, passando a coordená-lo através da Administração

de Cooperação Técnica (Technical Cooperation Administration of United States),

estabelecida no Departamento de Estado Norte-Americano em 1950.

Segundo Tickner, ainda que instituições multilaterais tivessem sido criadas nos

anos 40 para promover maior coordenação entre políticas dos Estados Nacionais, e assim,

a administração da ordem internacional, até meados dos anos 60 grande parte dos

recursos financeiros, de equipamentos e de pessoal circulantes internacionalmente eram

orientados por meio de relações bilaterais, entre Estados Nacionais, sendo os Estados

Unidos de longe o principal ator na promoção dessas atividades.195

No entanto, apesar de os recursos orçamentários destinados a países chamados

“em desenvolvimento” revelarem a primazia das relações bilaterais, Tickner argumenta

que as organizações internacionais ganhavam progressivamente força e autoridade no

plano internacional pós-guerra, e contribuíam para um “fórum” multilateral de articulação

política em que eram estabelecidas “agendas internacionais”, legitimando certas práticas

adotadas individualmente pelos Estados.

Neste sentido, outro organismo que teria grande importância na

institucionalização da cooperação internacional, além da ONU, seria a Organização para

Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, formada por um grupo de

potências industriais, produtores de 60% dos bens e serviços mundiais. Ela surgiu a partir

192 Tickner, opus cit., p.24-34. 193 “ECOSOC 222 {IX} de 14 e 15 de agosto de 1949”. Lopes, Carlos, opus cit., p.196. 194 Tickner, idem, p.15-16. 195 Os recursos do programa de cooperação técnica das Nações Unidas, representavam em 1963 cerca de 10% dos fluxos de fundos públicos para assistência técnica internacional. Ver: Tickner, idem, p.7.

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da Organização para Cooperação Econômica Européia (Organisation for European

Economic Co-operation - OEEC), que se estabeleceu em 1947, com suporte dos Estados

Unidos e do Canadá, para coordenar o Plano Marshall na reconstrução da Europa no final

da Segunda Guerra. Criada como contraparte econômica da OTAN, a OCDE desligou-se

da OEEC em 1961, e apresentava-se como uma organização não-excludente, afirmando

que a condição para tornar-se membro limitava-se a um compromisso do país com a

economia de mercado e uma democracia pluralista. Os não-membros eram convidados a

participar dos acordos e dos tratados da OCDE,. Os países donatários agrupados no

Comitê de Assistência ao Desenvolvimento (Development Assistance Committee, DAC)

contabilizavam mais de 90% da Assistência Oficial para o Desenvolvimento - ODA no

mundo.

O fato é que foi nas duas primeiras décadas posteriores à Segunda Guerra, entre

final dos anos 40 e final dos 60, que foram estabelecidos os pilares dessas políticas pelos

Estados Unidos, influenciando a criação de instituições multilaterais. Nos planos

nacionais, resolvemos analisar mais longamente as mudanças em relação às instituições,

mas não no plano de políticas mais amplas.

Quanto à política dos Estados Unidos para o desenvolvimento, imediatamente

posterior a Truman e já na era de Eisenhower, houve um retrocesso quanto às políticas de

financiamento público para o desenvolvimento propostas no Ponto Quatro. O novo

presidente priorizou investimentos privados e fortaleceu o papel do Banco Mundial em

relação à América Latina.

Foi ainda nos anos 70 que as Nações Unidas adotaram o conceito de cooperação

entre países em desenvolvimento, ou cooperação horizontal, que redefiniria as bases

sobre as quais se sustentavam os princípios de cooperação para o desenvolvimento,

particularmente de assimetria em termos de níveis de desenvolvimento. A reação a esta

premissa foi esboçada, em primeiro lugar, em uma série de conferências para o

desenvolvimento realizada nos anos 70, a United Nations Conference on Trade and

Development - UNCTAD. Em 1978, em Buenos Aires, aconteceu a Conferência Mundial

sobre Cooperação Técnica entre Países em Desenvolvimento, instituindo uma prática que

o Brasil passaria a adotar com crescente interesse a partir de então, de forma especial, em

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relação aos países africanos e latino-americanos.196 Já havia acordos de cooperação

horizontal do Brasil com esses países desde 1972, a maioria deles diretamente entre

governos, mas em alguns casos envolvendo um grupo de países, como o Acordo sobre

AIDS, para a América Latina e os países de língua portuguesa.197

Os primórdios da cooperação técnica no Brasil

No Brasil, mudanças na estrutura da administração pública em relação a acordos

de cooperação técnica têm sido feitas desde os anos 50, e intensificaram-se nos anos 60 e

70 com a assinatura de “acordos básicos de cooperação técnica”, os quais vigoram até os

dias de hoje. Nesse período, foram criadas instituições que viabilizariam no Brasil, por

meio de organismos internacionais, as políticas de “promoção do desenvolvimento”, que

seriam denominadas políticas de “assistência técnica” para o desenvolvimento.

Este processo reflete tendências que vinham ocorrendo de forma mais geral no

mundo capitalista. No plano internacional, estavam sendo criadas as primeiras agências

ligadas à Organização das Nações Unidas, além de outros organismos internacionais que

estimulavam o fluxo de recursos financeiros e de conhecimentos especializados entre

fronteiras nacionais para promover o desenvolvimento. No Brasil, após oito anos de

ditadura do Estado Novo, entre 1937 e 1945, o período em que Eurico Gaspar Dutra

assumiu a presidência ficou conhecido pela redemocratização e pelo renascimento dos

partidos políticos. No que diz respeito às orientações de política externa, alguns autores

argumentam que, até a Política Externa Independente - PEI, inaugurada por Jânio

Quadros em 1961, a atuação do Brasil em fóruns internacionais tinha se guiado pela regra

de seguir o voto dos Estados Unidos em todas as questões, supondo os dirigentes

brasileiros que o Brasil ocupava a posição de aliado especial no continente americano.198

196 Cervo, Amado Luiz. “Socializando o desenvolvimento: uma história da cooperação técnica internacional do Brasil”. Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, Brasília (BR). Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, Ano 37, n º1, p.44, 1994. 197 Em: www.abc.mre.gov.br/ctpd/ctpd/htm Acessado em 24/3/2007. 198 Esta é a visão de Moura, Gerson. Sucessos e ilusões: relações internacionais do Brasil durante e após a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: FGV, 1990. Também em Besserman Vianna, S. “Política econômica externa e industrialização”. In: Abreu, M. de P. (org.). A ordem do progresso: cem anos de política econômica republicana 1889-1989. Rio de Janeiro: Ed.Campus, 1990. p.105-122; e em Abreu, M.

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A idéia de segurança hemisférica foi aos poucos se constituindo nos quadros de

referência ideológica da Guerra Fria. Segundo Moura, a consolidação da proposta de

segurança hemisférica, que foi lançada na Conferência de Chapultepec, no México, em

1945, exigiria mudanças no quadro institucional dos países.

Várias reformas foram iniciadas a partir de 1946, especialmente no Exército,

seguindo os modelos norte-americanos. Entre os exemplos, vale citar a criação do Estado

Maior das Forças Armadas, a reorganização do Ministério da Guerra e a concepção da

Escola Superior de Guerra, o que revela os efeitos desencadeados a partir do momento

em que são assumidos compromissos internacionais. Quanto à cooperação multilateral,

foi criada em 1953 a Comissão Nacional de Assistência Técnica - CNAT, que fez parte

do Ministério das Relações Exteriores.199

No que se refere às relações bilaterais diretas entre governos, o Brasil já havia

assumido compromissos com o governo dos Estados Unidos em 1950, quando assinou o

Acordo Básico de Cooperação Técnica com aquele país.200

Durante o governo Dutra, havia uma expectativa de obtenção de recursos

externos, particularmente de assistência financeira oficial do governo dos Estados

Unidos, bem como de capitais privados internacionais para projetos de desenvolvimento

em infra-estrutura, o que se esperava consolidar com a Comissão Mista Brasil-Estados

Unidos - CMBEU, instituída em dezembro de 1950.201 No entanto, em 1953, a CMBEU

ruiu, segundo Besserman Vianna, em função de mudanças de orientação da política

norte-americana, sendo abandonada, como sinalizamos, a política do Ponto Quatro com a

entrada de Eisenhower como presidente.202 Para Orestein e Sochaczewski, a CMBEU

teria deixado algumas conseqüências importantes no que diz respeito a uma política de

desenvolvimento, como a criação, naquele momento, do Banco Nacional de

de P. “Inflação, estagnação e ruptura”. In: _____. (org.). A ordem do progresso: cem anos de política econômica republicana 1889-1989. Rio de Janeiro: Ed.Campus, 1990. p.197-212. 199 A CNAT foi regulamentada pelo Decreto 34.763/1953. 200 Em: www.mre.gov.br/abc . Acessado em 24/3/2007. 201 A CMBEU foi criada como resultado das propostas da Missão Abbink, constituída entre Brasil e Estados Unidos em 1948, destinada a estudar as condições de desenvolvimento do país. A CMBEU vigorou de 19/07/1951 a 21/12/1953, tendo sido aprovados neste contexto 41 projetos. 202 Vianna, S.B. “Duas tentativas de estabilização: 1951-1954”. In: Abreu, M. de P. (org.). A ordem do progresso: cem anos de política econômica republicana 1889-1989. Rio de Janeiro: Ed.Campus, 1990. p.123-150.

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Desenvolvimento Econômico - BNDE, em 1952.203 Em 1956, foi formado o Conselho de

Desenvolvimento, órgão subordinado diretamente à Presidência da República,

encarregado de traçar uma estratégia de desenvolvimento para o país.204

Em 1959, o Escritório do Governo Brasileiro para Coordenação do Programa de

Assistência Técnica foi criado pelo decreto 45.660 em março de 1959 e o Conselho de

Cooperação Técnica da Aliança para o Progresso - CONTAP, em 1965, pelo decreto

56.979, o que reflete o alinhamento com as decisões norte-americanas.

No Brasil, até o final dos anos 60, as práticas de assistência técnica internacional

eram descentralizadas em diferentes órgãos do aparelho da administração pública

brasileira, apesar de algumas instituições nacionais destinadas a lidar com programas

multilaterais e bilaterais já terem sido criadas nos anos 50.

No que diz respeito às relações entre Brasil e Alemanha, alguns autores

argumentam que até meados dos anos 60 não havia uma política clara de aproximação

entre os dois países.205 Tendo sido iniciadas em maio de 1962 as negociações

intergovernamentais entre Brasil e Alemanha, somente em 1963 foi assinado o Acordo de

Cooperação Técnica entre os dois países, o que iria promover a intensificação de suas

relações, como argumenta Lohbauer.206

Anos 60-70

Apesar de serem observadas iniciativas de criação de instituições orientadas para

programas de assistência técnica já nos anos 50, alguns autores como Amado Cervo207 e

Inoue e Apostolova,208 consideram que a assinatura do Decreto 65.476, de outubro de

203 A incorporação do “social” à sigla do BNDE veio posteriormente; naquela época era somente Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico - BNDE. 204 O Conselho de Desenvolvimento formulou o Plano de Metas em 1956, cujos projetos se basearam nos diagnósticos e nas definições da CMBEU e nas propostas do Grupo Misto CEPAL/BNDE, criado em 1953 também como conseqüência da CMBEU. Ver: Orestein, L. & Sochaczewski, A. C. “Democracia com Desenvolvimento: 1956-1961” . In: Abreu, M. de P., idem, p.171-195. 205 Lohbauer, C. Brasil-Alemanha: fases de uma parceria (1964-1999). São Paulo: Fundação Konrad-Adenauer, 2000. p.29. 206 Lohbauer, C., idem, p.37. 207 Cervo, Amado Luiz, opus cit., p.37-63. 208 Inoue, Cristina Y.A. & Apostolova, M.S., opus cit., p.22.

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1969, foi o marco da fundação de um sistema interministerial para coordenação da

cooperação técnica bilateral e multilateral no Brasil.

O decreto 65.476/69 discorria sobre atividades de cooperação técnica

internacional e determinava que os órgãos competentes para tratar de assuntos referentes

à cooperação técnica internacional seriam a Subsecretaria de Cooperação Econômica e

Técnica Internacional - SUBIN, do Ministério do Planejamento e Coordenação Geral, e a

Divisão de Cooperação Técnica do MRE.209 O Ministério do Planejamento e

Coordenação Geral estabeleceria a formulação da política interna de cooperação técnica e

a coordenação de sua execução, e caberia ao Ministério de Relações Exteriores a

formulação de política externa de cooperação técnica, a negociação dos seus instrumentos

básicos e o encaminhamento de solicitações de agências e de organismos estrangeiros.210

Ainda assim, todos os ministérios tinham suas assessorias internacionais, as quais

intervinham na aprovação dos projetos, como afirmam Inoue e Apostolova.211

De acordo com o texto do decreto, a Comissão Nacional de Assistência Técnica -

CNAT, bem como o Escritório do Governo Brasileiro para Coordenação do Programa de

Assistência Técnica e o CONTAP foram extintos, e suas atribuições passaram à SUBIN e

à Divisão de Cooperação Técnica do Ministério de Relações Exteriores, que assumiram a

responsabilidade de tratar de assuntos de cooperação técnica internacional a partir de

então. Estava sendo estruturado um sistema interministerial para a coordenação da

cooperação técnica internacional bilateral e multilateral, tendo o Itamaraty o seu papel

fortalecido em razão da sua capacidade negociadora pela via diplomática, da mesma

forma que a SUBIN. Isto porque a Secretaria de Planejamento tinha a função de

determinar quais os projetos de cooperação internacional que atendiam aos objetivos e às

prioridades de desenvolvimento nacional.

Como veremos depois, nessa época institucionaliza-se a lógica de divisão entre

um departamento “técnico” e outro financeiro para análise dos programas encaminhados:

de um lado, a Coordenação da Cooperação Técnica no Ministério das Relações Exteriores

209 Idem, Artigo 4º. 210 MRE. Decreto 65.476, de outubro de 1969. In: http://www6senado.gov.br/legislacao/listapublicacoes.action?id=196112, Acessado em 24/3/2007. 211 Inoue, Cristina Y.A. & Apostolova, M.S., idem.

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analisava os projetos, como o próprio nome diz, sob o ponto de vista técnico; a

Coordenação da Cooperação Financeira, no Ministério do Planejamento, por sua vez,

avaliava as condições de viabilidade dos projetos do ponto de vista financeiro. Os

mesmos critérios permanecem até os dias de hoje, tendo havido apenas mudança nos

nomes dos departamentos.212 Tomavam-se por referência os Planos Nacionais de

Desenvolvimento, ou planos regionais, estabelecidos como diretrizes das políticas

públicas nacionais.

A diferença qualitativa que se atribuía à assinatura do Decreto 65.476/69 em

relação ao desenvolvimento de um “sistema de cooperação técnica no Brasil” era, além

da centralização institucional, a presença do aperfeiçoamento dos mecanismos existentes

destinados aos programas de cooperação técnica internacional, com a elaboração de um

manual de normas e procedimentos relativos à tramitação de projetos, que objetivava a

padronização da formulação desses mesmos projetos até a sua execução e a elaboração de

relatórios.213

O Decreto 65.476/69 não foi instituído pelo Presidente da República, mas sim

pelos ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, que faziam

parte da Junta Militar que entrou em 31 de agosto de 1969, com o agravamento da saúde

do então presidente Costa e Silva. A Junta Militar ficou no poder até 30 de outubro de

1969, assinando neste interregno o Decreto, em 21 de outubro do mesmo ano.

Nos anos 70, as relações políticas e econômicas entre Brasil e Alemanha se

intensificaram. Segundo Lohbauer: “o Brasil se tornaria assim, depois da Segunda Guerra

Mundial, e especialmente no começo dos anos 70, o “Eldorado” dos investidores

alemães.”214 Segundo o autor, o país recebeu mais de 2/3 dos investimentos alemães na

América do Sul. Em termos políticos, algumas visitas mútuas entre meados e final dos

anos 1960, marcaram a aproximação entre os dois países, sendo o Acordo Bilateral de

Cooperação Nuclear Brasil-Alemanha a consolidação desta aproximação.215

212 Inoue, Cristina Y.A. & Apostolova, M.S., idem, opus cit., p.21. 213 Inoue, Cristina Y.A. & Apostolova, M.S., ibidem., p.23. 214 Lohbauer, C. ibidem, p.52. 215 Em maio de 1964, veio ao Brasil o presidente da Alemanha, Heinrich Lübke, destacando em seu discurso a importância da cooperação alemã no desenvolvimento do Brasil; em setembro de 1968, foi a vez de Willy Brandt, em uma primeira visita realizada por um Ministro do Exterior ao Brasil, que foi seguida

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Nos anos 70, no quadro das relações exteriores do Brasil, marcado pelo

Pragmatismo Responsável, Alemanha Ocidental tornou-se uma alternativa aos Estados

Unidos, caracterizando a intensificação das relações entre os dois países no que se usou

chamar de “aliança especial”.216 Foram significativos os investimentos privados no

período entre 1970-1975, sendo o Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, assinado em junho

de 1975, considerado como a formalização desta aproximação.217

Durante a década de 1980, argumenta-se que as atividades de cooperação técnica

internacional entraram em declínio com a segunda crise do petróleo, em 1979, que atingiu

as economias dos países desenvolvidos, caracterizando esse período como de retração das

atividades de cooperação técnica internacional.218 No que concerne à conjuntura

econômica internacional, esta não seria a mais favorável em termos de disponibilidade de

recursos. A crise econômico-financeira internacional refletiu-se diretamente nos fluxos de

recursos destinados à cooperação internacional, marcando de 1981 a 1987 uma fase de

relativa estagnação no que diz respeito à cooperação internacional. No caso específico do

Brasil, a economia brasileira revelou instabilidade e depreciação monetária constante, em

uma crise inflacionária que acarretou para o período a denominação de década perdida.

A criação da ABC

Em 1987, foi criada a Agência Brasileira de Cooperação, ABC, fato que é

considerado por muitos autores como um passo importante em relação à consolidação de

um sistema de cooperação internacional no Brasil.219 A ABC teve origem no decreto

94.973, de setembro de 1987, e estava vinculada à Fundação Alexandre de Gusmão -

FUNAG, do Ministério das Relações Exteriores - MRE. Para Inoue e Apostolova, a

criação da ABC marca a reorganização da estrutura institucional da cooperação

internacional.

pela visita do Ministro de Relações Exteriores, Magalhães Pinto, a Alemanha para consolidar o programa bilateral de cooperação técnico-científica na área nuclear. 216 Lohbauer, C. idem, p.58. 217 Lohbauer, C. idem, p.52. 218 Inoue, Cristina Y.A. & Apostolova, M.S., ibidem., p.25-28. 219 Cervo, Amado Luiz. opus cit., p. 37-63.

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A experiência de alguns cientistas e peritos técnicos que desenvolveram projetos

de cooperação técnica, mesmo nos anos 80, nos confirma que havia uma descentralização

das instâncias decisórias da cooperação técnica no Brasil: “[...] antes da ABC, cada

ministério tinha seu departamento internacional. [...] então esses departamentos nos

ministérios negociavam com o MRE os projetos. Depois, foi criada a ABC, então, toda a

negociação foi feita através da ABC”.220

Uma brasileira que foi perita em projeto da GTZ no Brasil também confirma que

antes da criação da ABC os procedimentos referentes a projetos internacionais ainda

estavam muito soltos e dispersos em vários departamentos: 221

[...] já tinha alguma coisa, só colocamos em ordem e eu apresentei. Não existia a GTZ no Brasil, não havia ABC, eu mandei isso pro diretor, ele aprovou, foi pra Secretaria de Agricultura; aí, o projeto começou a ir e a voltar, ir e voltar, cada vez parecia que eles... a Secretaria inventava alguma coisa, até que um dia eu fui com o meu diretor lá, a coisa enrolada, e tinha uma pessoa, que depois eu vim a saber que era do SNI, lendo um jornal. O secretário na época e o coordenador enrolaram, até que essa pessoa se levantou e disse: “olha, mande pra frente, o máximo que pode acontecer é eles dizerem não”. E aí o projeto seguiu para Brasília. E em Brasília, cada dia eles queriam uma coisinha diferente. E isso levou três anos. [...] Nessa época ainda existia a SUBIN, não era ABC, e os formulários, as coisas da SUBIN eram uma coisa complicadíssima, e eu acabei dando assessoria pro meu diretor na parte de planejamento de projetos pro exterior, porque ninguém mais sabia lidar com aqueles formulários, era uma coisa assim..., e todo mundo caía na minha sessão pra eu explicar como que fazia. [...] Em 84, por aí, eu fui à Alemanha negociar a continuidade do projeto. Não existia a ABC, não existia escritório da GTZ.

A ABC tem a atribuição de ser o órgão normatizador da cooperação técnica

internacional do governo brasileiro, sendo responsável pela execução e coordenação da

cooperação técnica por meio dos processos de operacionalização dos acordos, nos quais

ficam definidas as atribuições de cada participante. Nesta agência, é possível obterem-se

todos os documentos que regulamentam as relações do governo brasileiro com outros

220 Entrevista concedida por um dos pioneiros na atuação da GTZ no Brasil, atualmente aposentado. Belo Horizonte, 08/01/2007. 221 Entrevista concedida em São Paulo, em 22/01/2007.

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governos ou organizações internacionais. Hoje em dia, os projetos de cooperação técnica

e financeira são assinados entre o ministro das Relações Exteriores do Brasil e o

embaixador de outro país enquanto representante de governo, estando sujeitos à

aprovação dos Congressos Nacionais dos respectivos países.222

Para estabelecer relações de cooperação com o Brasil, o procedimento para

viabilizar a entrada de recursos financeiros e técnicos passa necessariamente pela

Secretaria de Assuntos Internacionais - SEAIN, do Ministério do Planejamento, no caso

de cooperação financeira, e pela ABC. A ABC coordena a elaboração de programas de

cooperação técnica, centralizando o recebimento, a seleção e o encaminhamento às fontes

externas (agências de cooperação financeira internacional, sejam multilaterais ou

bilaterais), da mesma forma que recebe demandas internacionais para encaminhar a

organismos nacionais que prestam cooperação internacional.

A ABC é a instância que fornece as instruções para a formulação de um projeto de

cooperação técnica por meio do Manual de orientação para formulação de projetos de

CTI (Cooperação Técnica Internacional). Para que um órgão do governo desenvolva um

projeto de cooperação técnica, ele deve adotar o seguinte procedimento: apresentar à

ABC um formulário de solicitação de cooperação técnica, especificando qual agência de

cooperação técnica é por ele solicitada, e o país de origem. Assim, nos trâmites dentro da

ABC, a solicitação é encaminhada a um “técnico”, funcionário de um departamento

específico: cooperação técnica multilateral (CTRM) ou bilateral (CTRB).

– se bilateral, ou– e a um assessor específico do país em questão. O responsável

na ABC pela área da cooperação correspondente faz uma avaliação do projeto de acordo

com critérios domésticos de desenvolvimento e de impacto nacional ou regional, efeitos

multiplicadores, capacidade institucional, entre outros.

Como a ABC é um órgão intermediário para a adequação dos pedidos de apoio a

projetos para órgãos públicos, caso o projeto necessite de ajustes, ele retorna à instituição

que o formulou para ser redefinido conforme a proposta indicada. Sendo aprovado no

âmbito da ABC, satisfazendo os critérios de exigência do Brasil, ele segue para a

embaixada do país em questão, e é então encaminhado para a análise da agência de

cooperação técnica; no caso da Alemanha, para o Ministério BMZ. Este solicita à GTZ

222

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uma avaliação preliminar dos projetos brasileiros apresentados. Junto com o órgão

público solicitante, esta avaliação é feita pela GTZ, que prepara uma proposta própria

para a participação alemã, enviada então ao BMZ que, por sua vez, formaliza o projeto ao

encomendar sua execução para a GTZ. Assim explicou um ex-perito alemão da agência

alemã:223

Você sabe como funciona o sistema para conseguir um projeto de cooperação no Brasil. Alguém aqui tem que fazer o pedido. Esse pedido vai para a ABC, a ABC encaminha isso para a embaixada alemã. A embaixada encaminha ao BMZ. O BMZ aprova e encarrega o KfW, o DED ou a GTZ. Então, isso funciona bem. Não é assim que a gente pressiona, não. A GTZ fala: “nós queremos fazer um projeto”. Até seria até bom, porque tem algumas coisas que a gente deveria empurrar.

Se ambas as partes entram em acordo, o projeto é considerado aprovado e

encaminhado para execução, conforme fluxograma simplificado abaixo:

223 Entrevista concedida em Belo Horizonte, em 08/01/2007.

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Fluxograma simplificado do ciclo de projetos Brasil-Alemanha

Encaminha demanda à ABC

Em caso negativo ou de reformulação, retorna à instituição

em caso negativo ou de reformulação, retorna à instituição Análise e discussão entre fonte externa e ABC Negociação Aprovação com a fonte do projeto externa

Execução

Conclusão do Projeto

ABC

ABC: 2ª. Fase – análise técnica

para formatação e conteúdo

Embaixada da Alemanha

ABC: 1ª. Fase – enquadramento em relação às diretrizes de CTI e de compatibilidade

programática

Instituição Nacional Órgão do Governo

Brasileiro

Órgão nacional

BMZ

GTZ

GTZ

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A estrutura administrativa da ABC organiza-se de forma correspondente às

categorias em que são pensadas as relações de cooperação, sendo estas as unidades:

Cooperação Técnica Multilateral Recebida - CTMR, Cooperação Técnica Bilateral

Recebida - CTBR e Cooperação Técnica para Países em Desenvolvimento - CTPD. Tanto

a CTMR quanto a CTBR são áreas que tratam de relações de cooperação do Brasil com

países “desenvolvidos”, o Brasil assumindo o papel de receptor. No caso da CTPD, que

se caracteriza por relações sul-sul, ou seja, entre países de condições similares de

desenvolvimento, ela indica a posição do Brasil ora como doador, prioritariamente, ora

como receptor.

A ABC é também a instância no governo que tem comunicação com as

embaixadas estrangeiras e com os organismos internacionais no que concerne a projetos

de cooperação internacional. É o elo entre o Itamaraty e o Ministério de Relações

Exteriores dos outros países, estando freqüentemente em contato com as agências

estrangeiras de cooperação técnica: em reuniões, na seleção e no acompanhamento de

projetos, na troca de comunicações e documentos e na assinatura de acordos.

Com intermediação da ABC são realizadas as negociações entre países, chamadas

negociações intergovernamentais, realizadas de dois em dois anos, nos casos de relações

de cooperação bilateral.

Negociações intergovernamentais: Brasil e Alemanha

A assinatura de programas e de projetos de cooperação técnica entre Brasil e

Alemanha resultou de uma série de negociações entre os dois países, tendo como

referência o Acordo Básico de Cooperação Técnica, assinado em 1963 e redefinido em

1996.

As chamadas “negociações intergovernamentais” são reuniões feitas com

representantes dos órgãos dos dois governos para estabelecer o diálogo político e definir

objetivos e prioridades para a atuação no chamado Programa de Cooperação Técnica

Brasil-Alemanha. Até 2001, as reuniões ocorriam anualmente, sendo alternados os locais

de sua realização entre Bonn, na Alemanha, e Brasília, no Brasil. Depois de 2001, as

reuniões passaram a ser de dois em dois anos, ora no Brasil, ora na Alemanha.

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Participam dessas reuniões os representantes dos órgãos governamentais

destinados à formulação política e à execução da política de cooperação técnica e

financeira dos dois países. Os representantes do lado brasileiro são funcionários da ABC

e da SEAIN, responsáveis pela cooperação bilateral com a Alemanha, acompanhados,

eventualmente, por funcionário de um outro órgão de governo, cuja função tenha relação

com o assunto a ser tratado, por exemplo, um representante do Ministério do Meio

Ambiente - MMA, quando a discussão envolve um programa ou um projeto ambiental.

Do lado alemão, é usual que compareçam representantes do BMZ vindos diretamente da

Alemanha – os responsáveis por grandes regiões e por temas específicos. Neste sentido,

quando as reuniões acontecem no Brasil, podem ser deslocados da Alemanha um

representante da diretoria geral da região que envolve América Latina e Caribe, Norte da

África e Oriente Médio; outro representante responsável pela coordenação da América do

Sul; um do departamento de cooperação técnica e financeira da embaixada alemã no

Brasil, além dos diretores da GTZ e do KfW no Brasil.

As atas das reuniões revelam a formalidade dos eventos, que ocorrem em uma

mesma programação. Nelas são ressaltados os princípios da relação entre os dois Estados,

particularmente definidos por categorias de entendimento e harmonia: “As negociações

intergovernamentais transcorreram em clima de cordialidade, compreensão mútua e

colaboração construtiva, refletindo as tradicionais relações amistosas entre os dois países”

(grifos meus).

São colocados também em pauta, fatos e aspectos da política internacional,

assuntos de política interna que dizem respeito aos temas em discussão no programa entre

os dois países, além de novos temas a serem incluídos. Este ritual é cumprido por ambos

os chefes das delegações. No caso da delegação alemã, acrescenta-se a apresentação de

questões que interferem na disponibilidade orçamentária para as atividades de

cooperação técnica e financeira e suas possíveis variações para mais ou para menos.

Após essa etapa, são analisados cada um dos projetos dos programas em andamento.

Desde a assinatura do Acordo Básico de Cooperação Técnica, a Alemanha vem

atuando em áreas bem distintas, muitas vezes até contraditórias, como a implantação da

Usina Nuclear de Angra dos Reis, principal eixo de negociações técnicas entre os dois

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países nos anos 70, e projetos para pequenos agricultores direcionados ao cooperativismo

e à geração de renda.

Outra área em foco da cooperação técnica alemã no Brasil foi historicamente a do

desenvolvimento científico e tecnológico. Mais recentemente, desde o início dos anos

1990, a questão ambiental, principalmente a proteção de florestas, tem sido o principal

eixo temático da atuação da cooperação técnica alemã no Brasil. Desde os anos 90, os

quatro programas estratégicos entre Brasil e Alemanha são: Meio Ambiente Urbano e

Florestal; Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável; Geração de Renda;

Empreendedorismo.

O Acordo Básico de Cooperação Técnica entre o Brasil e a Alemanha foi um dos

primeiros pactos bilaterais a serem assinados, precedido somente por outro realizado com

os Estados Unidos em 1950. Com a Alemanha, após negociações que se iniciaram em

1962, o acordo foi firmado em 1963, ainda no governo de João Goulart, exatamente um

ano após a consolidação formal do Ministério de Cooperação Econômica e

Desenvolvimento da Alemanha, o BMZ, em 1962. Promulgado o acordo pelo decreto nº

54.075, de 30/07/64, nele foram estabelecidas as diretrizes que fundamentam as linhas

gerais da cooperação bilateral e os objetivos amplos das relações diplomáticas entre

Brasil e Alemanha e, ainda, as atribuições de cada um dos governos e de suas instituições

executoras. Este instrumento jurídico define os itens de custeio por parte dos alemães

(remuneração de técnicos enviados e contratados locais, alojamento, viagens dos técnicos

a serviço, aquisição e transporte de equipamentos), e garante os meios de apoio por parte

do governo alemão.

O Acordo Básico de 1963 foi substituído por um outro, assinado em Brasília em

17 de setembro de 1996 por Luiz Felipe Lampreia, então ministro de Relações Exteriores,

e por Carl Duisberg, membro do governo da Alemanha unificada, a República Federativa

da Alemanha. O acordo foi aprovado por decreto legislativo nº 87, de 12/12/1997, e

promulgado pelo decreto nº 2.579, de 06/05/98. Tinha vigência de cinco anos, o que vem

sendo automaticamente prorrogado por períodos sucessivos de um ano, não havendo até o

momento qualquer interesse dos governos em rompê-lo. O rompimento de um acordo

internacional se faz por meio de uma denúncia ou declaração, com antecedência de três

meses em relação ao término do prazo de vigência do acordo.

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Nos 11 artigos relacionados no acordo de 1996, foram definidos os termos da

cooperação técnica: o tipo e os instrumentos de apoio, a definição das despesas custeadas

pelo governo alemão, as questões referentes às contribuições financeiras e as isenções de

encargos e impostos concedidas pelo governo brasileiro, como forma de estimular essas

atividades, o que incluía a isenção de impostos e facilidades fiscais, de licença de

importação, direitos de importação e de reexportação, de encargos fiscais sobre

importação e sobre os equipamentos adquiridos no Brasil, entre outros.

O detalhamento de todos os acordos de cooperação técnica assinados entre os

governos da Alemanha e do Brasil, seus objetivos, suas contribuições e as instituições

executoras enquadram-se em Ajustes Complementares.

No capítulo anterior, recorremos a um enfoque histórico das duas primeiras

décadas do pós-Segunda Guerra. Visamos abordar os processos históricos de formação de

estruturas e órgãos específicos da administração pública ocorridos no Brasil em face do

contexto internacional em que se institucionalizou esta maneira específica de intervenção

de instituições estrangeiras na administração pública brasileira. Tais práticas fazem parte

de um processo mundial de expansão e consolidação de formas de intervenção, que teve

como resposta o desenvolvimento de estruturas conceituais e institucionais no aparelho

de Estado brasileiro. Estas consolidaram-se com o estabelecimento de um sistema

organizado e regulamentado a partir da criação da Agência Brasileira de Cooperação -

ABC, no final dos anos 80.

No próximo capítulo, focalizaremos os processos históricos de articulação de

organizações governamentais e não-governamentais alemãs que surgiram no final da

Segunda Guerra Mundial com o propósito de receber recursos estrangeiros destinados à

recuperação de sua economia, passando a atuar no mundo “em desenvolvimento” através

de práticas de intervenção para administração de territórios estrangeiros.

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Capítulo 4. Aparato de intervenção alemã em administrações estrangeiras:

O BMZ e as instituições implementadoras

A abordagem anteriormente adotada teve como propósito traçar algumas linhas

gerais, em um nível mais amplo, do contexto histórico que consolidou a constituição de

um “sistema de cooperação para o desenvolvimento”, no qual ocorreram os projetos de

cooperação técnica em certo local. Para o presente capítulo, buscamos focalizar uma

determinada dinâmica, aquela que caracterizou a atuação particular da Alemanha no

campo do desenvolvimento e nas formas de intervenção em espaços estrangeiros a ele

associadas.

Veremos aqui que a própria estrutura da administração da política de cooperação

para o desenvolvimento da Alemanha, ao estabelecer um núcleo de formulação de

políticas e várias organizações executoras, refletiu complexidade e multiplicidade

institucional em áreas de atuação específica: técnica, financeira, social, acadêmico-

científica, entre outras.

Tratamos de abordar a história da organização burocrática, da constituição de uma

estrutura institucional conformada pelo propósito de concentrar os meios de controle e a

decisão de administrar intervenções em territórios estrangeiros, o que fez através de

projetos e programas de cooperação para o desenvolvimento, tanto os financeiros como

os técnicos, os científicos e mesmo os considerados não-governamentais.

A finalidade aqui, a partir fundamentalmente de análise documental e de

entrevistas com profissionais alemães que atuam nesse campo do desenvolvimento, é a de

contemplar processos históricos e sociológicos mais amplos que possam dar sentido a

situações de intervenção de instituições alemães que atuam no Brasil, sejam

governamentais ou não. Neste sentido, situaremos o contexto ao qual a GTZ está

conectada.

Em outro sentido, o capítulo pode elucidar também questões referentes a um

campo em que profissionais atuam e se especializam enquanto “especialistas em

desenvolvimento”, consultores, peritos e administradores vinculados às agências

governamentais e às ONGs alemãs, o que veremos em capítulo posterior.

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Esta proposta segue o desafio a que se propuseram Victoria Goddard, Joseph

Llobera e Chris Shore, o de mapear o conjunto de estudos em antropologia sobre “a

Europa”, trabalhos que foram desenvolvidos principalmente a partir da Segunda Guerra

Mundial, com foco em políticas para o desenvolvimento.224 Apesar de os trabalhos em

antropologia se interessarem primordialmente por estudos sobre “comunidades” e

“camponeses”, Goddard, Llobera e Shore argumentam que houve uma crescente

conscientização de seus vínculos com atores e processos mais extensos em função da

crescente interdependência e internacionalização das economias, apesar do

reconhecimento das dificuldades envolvidas.

Estes autores argumentam que o trabalho de Jeremy Boissevain (1975), Towards

a social anthropology of Europe, teria sido a primeira tentativa de sistematização de uma

antropologia da Europa emergente. Na visão de Boissevain, seriam necessários novos

métodos de pesquisa e outros conceitos que situassem eventos e processos locais em um

contexto regional, nacional e histórico, em suma, que permitisse aos antropólogos

examinar os nexos entre diferentes níveis de organização. Os estudos sobre burocracias

têm muito a dever ao trabalho de Weber, que aponta, para além do Estado,225 formas de

administração racional em estruturas de controle, como o Exército e a empresa capitalista

centralizada

Para compreendermos o desenvolvimento dos processos históricos e sociológicos

que contribuíram para a formulação da política de cooperação para o desenvolvimento

da Alemanha, analisaremos a seguir alguns aspectos do contexto internacional do pós-

Segunda Guerra.

Segunda Guerra Mundial e cooperação para desenvolvimento

Dados disponíveis sobre os primórdios desta história são raros se procuramos em

acervos no Brasil. No escritório de representação do KfW no Brasil, que fica em Brasília,

foi possível ter acesso a publicações, como relatórios anuais do banco e o livro de

224 Goddard V.; Llobera, J. & Shore, C. “Introduction: the anthropology of Europe”. In: ______. The anthropology of Europe: identities and boundaries in conflict. Oxford, Washington D.C.: Berg, 1996. p.1-40. 225 Weber, M. “Burocracia”. In: Gerth, H.H. & Wright Mills, C. (orgs.). Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1963. p.257-259.

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Heinrich Harries, Financing the future: KfW a german bank with a public mission - 1948-

1998, que retrata a “história oficial” do KfW, qualificando-o como um “banco com uma

missão pública”. O livro revela variedade de dados históricos e uma análise criteriosa da

história da economia alemã, a despeito de sua abordagem ser pouco crítica. Para Harries,

o histórico da reconstrução econômica e política da Alemanha Ocidental no pós-guerra e

sua posterior política para o desenvolvimento estão muito ligados ao papel desempenhado

pelo KfW para políticas públicas alemãs e para investimentos estatais.226 Harries analisa

de forma bastante positiva a fase de surgimento do KfW e a de construção de um espaço

no mundo financeiro do pós-guerra, considerando que o sucesso garantiria maior

estabilidade política para assumir a função de fornecedor de recursos para países em

piores condições econômicas que a sua na década de 60.

O livro é uma auto-representação da instituição alemã financeira para o

desenvolvimento e divide a sua história em capítulos que marcam a rápida “evolução” da

economia alemã desde a reconstrução, entre 1948 e 1960; passa pelo processo de

crescente atuação global, com a expansão do comércio e da “ajuda para o

desenvolvimento”, até 1970; enfoca a reorientação econômica e a queda do Muro de

Berlim nos anos 80; e relata a unificação alemã nos anos 90. É um trabalho bastante

minucioso sobre o papel do KfW na economia e na política alemãs, sempre situando-as

em relação às mudanças e à inclusão de novos temas na política e na economia

internacionais, destacando nesse processo a eficiência alemã em superar restrições. De

maneira geral, em todo o livro são enfatizadas as próprias estratégias alemãs para

ultrapassar limites, inovar, empreender, tanto no país quanto no exterior.227

O livro destaca o papel do KfW também em relação ao cenário da cooperação

internacional, que foi modificado quando a Alemanha, de receptor de recursos

(especialmente do Plano Marshall) passou a assumir funções de país doador no âmbito da

cooperação para o desenvolvimento. Depois de ter sua estrutura econômica e industrial

completamente destruída, em pouco mais de uma década o país estava atuando como 226 Harries, Heinrich. Financing the future: KfW a german bank with a public mission. Frankfurt am Main: Verlag Fritz Knapp GmbH, 1948. Foi publicado em 1998 simultaneamente em inglês e alemão. Apesar da intensa participação do banco alemão em programas e projetos de cooperação internacional no Brasil, são praticamente inexistentes publicações no Brasil referentes ao banco KfW e à sua atuação no campo do desenvolvimento. A única fonte a que tive acesso foi através de Dietmar Weinz, diretor do KfW, quando o entrevistei em julho de 2002, na sede do banco em Brasília. 227 Harries, Heinrich, ibidem, p.76-104

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exportador de recursos financeiros, tecnológicos, científicos e de planejamento regional e

administração pública. A recuperação da economia alemã, com os fluxos de recursos do

Plano Marshall, levou o país a competir com outros neste campo de múltiplas

oportunidades de investimentos estrangeiros que a cooperação internacional para o

desenvolvimento significava.

Para Harries, o Plano Marshall estimulou, sem dúvida, o desenvolvimento

industrial na Alemanha e acelerou consideravelmente o seu processo de reconstrução,

cuja economia, já em 1951, apresentou um superávit na balança comercial.

O KfW foi fundado em novembro de 1948, poucos meses antes da criação da

República Federal da Alemanha, com o objetivo de ser o principal instrumento financeiro

para atender a investimentos estatais destinados ao reaquecimento da produção

econômica alemã, sobretudo industrial, completamente destruída ao fim da Segunda

Guerra.

O pós-guerra foi um momento importante de redefinição das posições políticas da

Alemanha no cenário internacional, o que foi liderado por Konrad Adenauer, primeiro

chanceler da Alemanha Ocidental que ficou no poder por 14 anos consecutivos, entre

1949, quando terminou a guerra, até 1963. Adenauer, ligado à União Democrata Cristã -

CDU, partido que ajudou a fundar em 1945, promoveu o estreitamento das relações da

Alemanha Ocidental com os Estados Unidos e com a Europa, mas particularmente com a

França. Ao final de 1966, foi formada uma grande coalizão com Kurt Kiesinger e Willy

Brandt, como vice-chanceler, entre os partidos CDU, CSU (União Social Cristã) e SPD

(Partido Social Democrata), este último envolvendo-se pela primeira no governo federal.

Em 1969, foi feita com Brandt uma coalizão social-liberal com o SPD e o FDP (Partido

Democrata Liberal) para as eleições do Parlamento alemão, o “Bundestag”.

Segundo Harries, a fase inicial de atuação do KfW, entre 1948 e 1960, dependeu

em grande medida da disponibilidade dos recursos do Plano Marshall. Quanto aos

recursos do Banco Mundial, apesar de ter se tornado membro do banco em 1952, a

Alemanha não teve acesso aos seus empréstimos, o que foi apontado por Harries como

motivo de grande consternação. Sua visão crítica também se estendia aos aspectos de

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“autopropaganda” dos Estados Unidos, particularmente baseados em ações de “ajuda” do

Plano Marshall para a Alemanha, como podemos ver na seguinte passagem:228

The Marshall Plan had four aspects: first, fostering European and trans-atlantic economic cooperation via the OEEC and the European Payments Union; second, external Marshall Aid, i.e., foreign exchange assistance for European imports (specially from the USA); third, internal Marshall Aid, i.e. investment loans for reconstruction from the counterparts; fourth, the propaganda effect of American solidarity, particulary in defeated Germany (grifos meus).229

Aos poucos, o KfW foi ganhando dinâmica financeira própria através da

participação no mercado de capitais com emissão de títulos do governo,230 o que lhe

garantiu reconhecimento como instituição financeira internacional e permitiu, na década

seguinte, financiar exportadores e investidores alemães no exterior, principalmente em

países em desenvolvimento. Financiamentos de longo prazo para exportação foram,

segundo o autor, uma das mais bem-sucedidas linhas de negócios do KfW.

Em meados dos anos 50, a economia alemã já mostrava sinais de aquecimento; a

Alemanha tornou-se, em 1951, um dos membros fundadores da Comunidade Européia do

Carvão e do Aço - CECA (European Coal and Steel Community - ECSC) e, em 1952, do

Banco Mundial e do FMI (Fundo Monetário Internacional), o que revelava confiabilidade

internacional na sua economia.231

O ano de 1951 representou a reversão dos indicadores da balança comercial

alemã, apresentando superávits pela primeira vez depois da guerra em função do

esgotamento das capacidades dos outros países com a Guerra da Coréia. Os exportadores

alemães estavam interessados em estabelecer contatos comerciais e manter presença na

Europa Ocidental, especialmente nas recém-independentes ex-colônias.

Alguns anos mais tarde, o banco passou a ter responsabilidade sobre a chamada

ajuda financeira para o desenvolvimento de países do “Terceiro Mundo”,232 sendo a

primeira instituição a exercer a função de agência alemã de cooperação financeira no

228 Harries, H., ibidem, p.45. 229 Organization for European Economic Co-operation - OEEC. 230 Os ERPs eram papéis ou títulos do governo, fundos especiais que foram os principais instrumentos de autofinanciamento econômico regulamentado pelo Parlamento alemão em 1953. 231 Harries, H., ibidem, p.48. 232 Idem, p.65.

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fomento a programas em países em vias de desenvolvimento. Assim, o cenário da

cooperação internacional para o desenvolvimento modificou-se com a crescente

participação da Alemanha nessa área.

Nos anos 60, o KfW começou a atuar de forma significativa em negócios

internacionais por meio do financiamento de longo prazo para exportação. O sucesso dos

exportadores alemães aumentava o interesse em expandir seus mercados no exterior e

demandava maior suporte financeiro. Os americanos pressionavam os alemães para

participarem da ajuda internacional que visava combater a expansão do comunismo no

Terceiro Mundo. O ano de 1961 marcaria, segundo Harries, o início da ajuda do banco ao

desenvolvimento como representante da RFA.233

Por meio do banco KfW, o governo alemão disponibilizou recursos financeiros

em condições de competir com instituições financeiras do porte do Banco Mundial e de

outros organismos internacionais atuantes no mundo do desenvolvimento, notando-se em

discursos de seus membros uma disputa explícita com outras instituições financeiras que,

segundo eles, eram menos interessantes para a tomada de empréstimos. Esta ambição

estratégica do Banco KfW talvez explique a lógica de atuação do aparato do

desenvolvimento alemão, que se estruturava como contraponto às formas de ação de

instituições norte-americanas.

Esta foi a marca não só no período inicial de atuação do KfW no campo do

desenvolvimento, mas também a característica da sua atuação até os dias de hoje, pois o

banco continua a oferecer juros mais baixos aos países com os quais têm relações de

cooperação. Uma situação específica poderia ilustrar esta observação: em entrevista, um

funcionário do KfW pediu que eu desligasse o gravador para que ele comentasse que a

opção de fidelidade da parte do governo brasileiro a determinadas instituições

financeiras, como o FMI e o Banco Mundial, representa uma atitude de dependência

política, e não a melhor escolha econômica que ele possa fazer, apontando vantagens do

KfW em termos de juros em relação àquelas instituições.

No que diz respeito à “formação” de um quadro de profissionais do banco

orientados para o financiamento de projetos de desenvolvimento, Harries destaca que em

princípio atraídos por desafios de aprender com a variedade que este tipo de trabalho

233 Ibidem, p.66.

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apresentava, jovens funcionários envolveram-se na construção deste campo de “ajuda ao

desenvolvimento”, orientados mais pelo pragmatismo e pela criatividade do que por

critérios e princípios rígidos. Intérpretes, tradutores, economistas, advogados,

engenheiros e outros especialistas foram se unindo ao quadro do banco, que passou de

menos de 200 funcionários em 1960 para mais de 500 em 1970.234

As mudanças no contexto do banco em relação à crescente atuação em projetos de

desenvolvimento no exterior desencadearam outras mudanças mais amplas na

administração pública alemã. Em agosto de 1961, o Parlamento alemão aprovou uma

emenda na lei do KfW para a criação de uma “agência executora” para a cooperação

bilateral. Esta proposta já havia sido feita em 1956 por um grupo do SPD do Parlamento,

sendo justificada como necessidade de “estabelecimento de um corpo para implementar

política e medidas promocionais para países economicamente subdesenvolvidos”. É

importante destacar que embora o governo federal seja o ator principal na política de

desenvolvimento alemã, o Parlamento exerce uma função de co-gestão, em função da

separação horizontal de poderes da RFA. A instância parlamentar competente é a

Comissão de Cooperação Econômica, cujas recomendações são a base para a maior parte

das resoluções plenárias relevantes do ponto de vista da política de desenvolvimento

tomadas pelo Parlamento alemão.

O governo federal, em sua maioria, optou pela proposta de encarregar o KfW da

função de financiar projetos de ajuda ao desenvolvimento e de conceder empréstimos ao

público e aos novos mercados mundiais que se abriam com a independência de ex-

colônias, ao invés de criar uma nova instituição. Naquele momento, esta discussão se

dava no Subcomitê para Desenvolvimento Econômico de Povos Estrangeiros, que

antecedeu o atual Comitê do Parlamento para Cooperação Econômica - AWZ.235

O KfW tornou-se de fato uma instituição de crédito do governo federal,236 mas a

decisão de estabelecer um ministério específico para cooperação só foi tomada depois

que a emenda da Lei do KfW, de 1961, tomou força em outubro-novembro de 1961. Mais

de uma década depois de o KfW estar em pleno funcionamento para fins domésticos de

234 Harries, H., ibidem, p.73-74. 235 GTZ. Compêndio do vocabulário da GTZ, p.51. 236 Harries, H., idem, p.68.

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reconstrução da economia alemã com recursos do Plano Marshall, foi criado o BMZ,

passando o KfW a atuar como o seu braço financeiro.

A criação do BMZ foi facilitada em função do papel político e econômico

desempenhado pelo KfW na Alemanha e no exterior. A estrutura administrativa do

ministério passaria a concentrar todo o núcleo decisório político e orçamentário da

política de cooperação para o desenvolvimento”, de forma que os recursos do orçamento

governamental passassem a ser destinados às instituições executoras da política de

cooperação para atividades específicas de cooperação financeira, técnica ou científica.

O BMZ iniciou sua atuação prática no início de 1962, com o mandato de elaborar

as diretrizes da política de cooperação para o desenvolvimento e de implementá-la

nacional e internacionalmente.237 Antes de entrar na discussão mais detalhada da

organização institucional do BMZ, optamos primeiramente por enfatizar os “dizeres” que

expressam os significados do que seja cooperação internacional do ponto de vista do

governo alemão, baseando-nos no que se produziu institucionalmente a partir do BMZ.

A análise das categorias e das declarações afirmadas de maneira textual e visual

pelo Estado alemão e propagadas para o mundo em desenvolvimento torna-se aqui um

elemento importante para identificarmos os processos de produção simbólica enquanto

mecanismo de poder que, neste caso, gera efeitos sobre outros Estados. Bourdieu afirmou

que um dos poderes principais do Estado é o de produzir e impor as categorias de

pensamento que utilizamos espontaneamente em todas as coisas do mundo e no próprio

Estado. Para ele, “é no domínio da produção simbólica que particularmente se faz sentir a

influência do Estado: as administrações públicas e seus representantes são grandes

produtores de problemas sociais que a ciência social apenas ratifica, retomando-os por

sua conta como problemas sociológicos”.238

No caso das organizações da administração pública com atribuição de atuar no

campo da cooperação para o desenvolvimento, produz-se o problema dos outros: a fome,

a falta de saneamento, a poluição, o desmatamento florestal, a poluição de águas, as

desigualdades sociais, entre outros.

237 Embaixada da República Federal da Alemanha em Brasília: 40 anos de cooperação para o desenvolvimento Brasil-Alemanha. Brasília: Embaixada da República Federal da Alemanha, 2003. p. 12. 238 Bourdieu, P. “Espíritos de Estado”. In: Bourdieu, P. Razões práticas sobre a Teoria da Ação. Campinas: Papirus Editora, 1996. p.91-95.

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Discursos do desenvolvimento

A partir da leitura de textos produzidos por instituições governamentais alemãs de

cooperação, procurei observar a relação entre os enunciados que caracterizam o objeto do

desenvolvimento. Meu propósito era analisar as formas com que se constrói o objeto,

sobre ele incidindo a intervenção que é definida como ajuda, e também avaliar de que

modo é reforçada a idéia da sua necessidade.

As imagens traduzem a sensibilidade do olhar daqueles que trabalham com a

cooperação e visam tocar a quem as vê, sensibilizar. As imagens chamam a atenção para

os pobres, fracos e descalços africanos e indianos; revelam, de forma dura, a antiga

floresta cortada e queimada; mas também propagam a beleza, a esperança, a possibilidade

de um futuro a ser construído através da cooperação, no sentido de admiração em relação

àqueles que têm compaixão pela humanidade.

Os documentos publicados pelo governo da Alemanha e por fundações e

associações que atuam na área de cooperação internacional para o desenvolvimento

apresentam de várias formas os significados atribuídos a este tipo de atividade. A partir

da leitura integrada e atenta de um conjunto disperso e desencontrado de documentos, foi

possível identificar alguns dos vínculos diretos e indiretos entre essas instituições e outras

no Brasil onde há a presença de organizações alemãs.

O universo de documentos pesquisados não se restringiu, no entanto, somente às

publicações oficiais do BMZ. Levantei uma diversidade de publicações de outras

instituições alemãs, em que são divulgados os trabalhos que a Alemanha faz no mundo,

como nos jornais de fundações políticas, nas revistas publicadas pelo Ministério de

Relações Exteriores e de Meio Ambiente, nas revistas da Câmara de Comércio Brasil-

Alemanha, entre outras, em que são discutidos temas como drogas, AIDS, problemas

climáticos globais, guerras civis, violência urbana etc. São publicações muito coloridas,

em papéis de ótima qualidade, muitas delas feitas com papéis recicláveis, o que

demonstra a preocupação em relação à imagem associada a custos elevados, alta

qualidade das imagens e dos meios de comunicação.

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O conjunto de enunciados discursivos que apresenta tanto a política de cooperação

para o desenvolvimento, como o trabalho das instituições alemãs no mundo em

desenvolvimento presta-se, sem dúvida, a ser um canal para veicular a boa imagem da

Alemanha e faz parte de uma “política de comunicação” que poderia ser um objeto em si.

Por discurso entendo aqui tanto linguagem como aquilo que está representado

pela linguagem, tal como argumenta Ralph Grillo. A discussão sobre discursos do

desenvolvimento, compilada por Grillo, apresenta uma importante contribuição a respeito

de cooperação internacional, esta como um atributo presente no campo do

desenvolvimento. Grillo argumenta que o trabalho de Arturo Escobar é uma das

referências no que se refere à análise de discursos, fundamentada largamente em idéias

desenvolvidas por Michel Foucault e Edward Said, especificamente na medida em que

pensar em termos de discurso permite manter o foco nos aspectos de dominação. Para

Grillo:239 “A discourse (e.g. of development) identifies appropriate and legitimate ways

of practicising development as well as speaking and thinking about it”. Segundo o autor,

os discursos do desenvolvimento são baseados em uma vitimização dos sujeitos, e ele

acrescenta: “The development myth proposes that there are developers and victims of

development”, estabelecendo como objeto de ajuda “os mais carentes”, “os mais

necessitados”, os pobres, os subdesenvolvidos, os incapazes, os necessitados de ajuda.240

Mark Hobart,241 por sua vez, aponta o fato de que não existe um, mas múltiplos

discursos do desenvolvimento coexistindo. Preston242 menciona pelo menos três deles:

um da ordem estatal, associado a uma ideologia intervencionista, à cientificidade técnica

e à afirmação etnocêntrica do Ocidente; outro da ordem liberal, que se instaura com o

colapso do intervencionismo estatal nos anos 70, que repassa para a dinâmica de mercado

a razão do desenvolvimento; por fim, aquele que é centrado na definição de esfera

pública, que afirma o otimismo da modernidade e dos novos arranjos entre mercado e

Estado

239 Grillo, R.D. “Discourses of development: The view from anthropology”. In: Grillo, R.D. & Stirrat, R.L. (ed.). Discourses of development: anthropological perspectives. Oxford, New York: Berg, 1997, p.12. 240 Idem, p.20-21. 241 Hobart apud Grillo, R.D., idem, p.20. 242 Preston apud Grillo, R.D., idem, p.22.

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A abordagem iconográfica de todos os documentos – em alemão ou não – que

foram analisados encontra-se em um Anexo a este capítulo. Isto se deve à importância

central que têm esses documentos na composição da representação do desenvolvimento e

na forma de designar seus problemas e suas carências, mas também no efeito dramático

do discurso do desenvolvimento, e no humor que revela aspectos das práticas de

intervenção a ele associadas.

É possível identificar algumas publicações voltadas para um debate presente na

Alemanha sobre a política de cooperação para o desenvolvimento, como é o caso da

revista Entwicklungs Politik Zeitschrift das organizações eclesiais, na qual há uma

avaliação mais crítica e questionadora do trabalho da cooperação, por meio de charges

humorísticas, como as que vimos abaixo:

O debate sobre desenvolvimento na Alemanha

O debate oficial do governo alemão em torno do conceito de desenvolvimento foi

iniciado na Alemanha em meados dos anos 50. No entanto, a sistematização de um

documento formal definindo as diretrizes de uma política de cooperação para o

desenvolvimento do governo federal alemão tem sua origem em um decreto do Conselho

de Ministros datado de março de 1986.243 O documento, intitulado “Diretrizes da Política

de Desenvolvimento do Governo Federal Alemão”, apresentou os objetivos e os

243 GTZ. Compêndio do vocabulário da GTZ, opus cit., p.31.

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princípios fundamentais da cooperação alemã para o desenvolvimento, seus setores

prioritários e os campos de ação.244

As diretrizes da Política de Desenvolvimento do Governo Federal Alemão têm sua origem num decreto do Conselho de Ministros de 19 de março de 1986. [...] Com sua concepção de política de desenvolvimento (na versão de outubro de 1996), o BMZ adaptou a política de desenvolvimento alemã às alterações ocorridas nas condições gerais internacionais.

Duas outras edições de textos de formulação de uma política de desenvolvimento

foram organizadas e publicadas com algumas mudança; em junho de 1993, o documento

foi reeditado e, em outubro de 1996, o BMZ adaptou-se às condições gerais

internacionais e formulou uma proposta própria, a “Concepção da Política de

Desenvolvimento”.245

De acordo com documentos oficiais, a “cooperação para o desenvolvimento

constitui uma tarefa da sociedade como um todo e é levada a cabo por entidades privadas

e públicas nos países industrializados e nos países em vias de desenvolvimento”. Baseia-

se em princípios de responsabilidade ética, humanitarismo e política, assim como em

interesses próprios.

A concepção é considerada um instrumento fundamental das Relações Exteriores

da Alemanha, e é caracterizada por diretrizes elaboradas pelo ministério do governo, o

BMZ. Tais diretrizes complementam a política exterior do país, mas mantêm autonomia

em relação a ela.246 “A política de cooperação para o desenvolvimento é um componente

essencial das relações exteriores da Alemanha e um importante instrumento da política de

promoção da paz”.

Entre os objetivos da política de cooperação para o desenvolvimento destaca-se:

“melhorar as condições de vida dos indivíduos nos países com os quais têm relações

diplomáticas, sobretudo dirigindo-se às camadas populacionais mais pobres”. Aqui há a

244 Idem, idem. 245 Wolff, Luciano A.; Kaiser, W. (coords.) & Mello, F.V. Cooperação e solidariedade internacional na Alemanha. 2.ed. Rio de Janeiro: IBASE / EZE; São Paulo: ABONG, 1995. p.13.; GTZ. Compêndio do vocabulário da GTZ, ibidem, p. 31. 246 GTZ, idem, p.29; Embaixada da Alemanha no Brasil/Bmz/Gtz. Política de cooperação para o desenvolvimento Brasil-Alemanha. Folder, sem data, p.2.

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ênfase em relação aos pobres, aos mais necessitados e carentes como objetivo principal a

ser atendido pelas ações da cooperação para o desenvolvimento.247

Mais recentemente, a política de cooperação para o desenvolvimento passou a ser

entendida como uma política estrutural global que faz parte de uma abordagem

abrangente sobre segurança. Após os atentados de 11 de setembro nos Estados Unidos, a

discussão sobre a coordenação de políticas de segurança internacional tem sido uma

prioridade. De acordo com a afirmação da ministra Heidemarie Wieczorek-Zeul:248

A cooperação para o desenvolvimento [é] condição necessária para a paz [...] Devemos coadjuvar para que os seres humanos de todo o mundo possam viver seguros, do contrário a insegurança virá até nós. A cooperação para o desenvolvimento constitui-se em uma tarefa da sociedade como um todo e é levada a cabo por entidades privadas e públicas nos países industrializados e nos países em vias de desenvolvimento.249

Os documentos da GTZ afirmam ter sido substituído o antigo termo ajuda ao

desenvolvimento, utilizado nos anos 60 e 70,250 pela expressão cooperação para o

desenvolvimento. Os termos aid e charity ou ajuda e assistência internacional foram

utilizados em documentos de agências e organismos internacionais para atividades

humanitárias em contextos de extrema pobreza, ou naqueles caracterizados por destruição

pela guerra ou por catástrofes naturais.

A construção da problemática do desenvolvimento e de desafios que ameaçam a

paz mundial e o futuro da humanidade é fundamental para atribuir um sentido de valor

moral à participação do governo alemão no compromisso de solucioná-la. Uma questão

que não se esperava era que, situada como perdedora, devedora, a Alemanha se

recuperasse economicamente e passasse a atuar como “país doador” no campo do

desenvolvimento e, ainda, utilizando-se deste campo como meio para difundir pelo

mundo uma imagem renovada do país, tendo como base valores, como a proteção do

meio ambiente e o respeito aos direitos humanos. A cooperação foi assim de enorme

247 GTZ, idem, p.33. 248 Entrevista com a ministra do BMZ Heidemarie Wieczorek-Zeul. D+C Revista Desarrollo Y Cooperación nº 1/2002, p.4-5. 249 GTZ, ibidem, p.29. 250 GTZ, idem, idem..

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importância interna como instrumento diplomático da reforma moral da Alemanha

expressa para o mundo. Na fala de uma perita brasileira: 251

A cooperação com a Alemanha, a criação da GTZ, quando ela foi criada, foi com esse espírito, porque no pós-guerra, eles começaram [...], não foi só a Alemanha. A Alemanha foi muito beneficiada pelo Plano Marshall, então, ela se recuperou logo muito rapidamente; sentiu a necessidade dessa ajuda, que ela prestaria a outros países, até um pouco como certa forma de purgar sua consciência por tudo o que aconteceu na guerra. Não que todos tivessem o espírito, o mesmo espírito nazista, aquela coisa toda.

No caso da política alemã de cooperação para o desenvolvimento, ela está sujeita

ao controle dos contribuintes alemães, como vimos em publicação da própria GTZ:252

A cooperação alemã para o desenvolvimento depende de objetivos políticos e está sujeita ao controle público. A cooperação alemã para o desenvolvimento é financiada pelos contribuintes. Ela depende de objetivos políticos e de critérios de atribuição, e está sujeita à prestação de contas e ao controle público. Os objetivos prioritários da política de desenvolvimento do governo alemão são o combate à pobreza e à injustiça social, a proteção do meio ambiente e dos recursos naturais, assim como o melhoramento da situação das mulheres. Os contribuintes têm a expectativa de que a ajuda para o desenvolvimento melhore a situação dos indivíduos nos países parceiros.

Na representação das próprias instituições e dos organismos de cooperação da

Alemanha sobre o seu trabalho,253 o termo cooperação é utilizado de forma mais

sistemática quando relacionado a ações e a intervenções com objetivos de promoção do

desenvolvimento. A construção da problemática do desenvolvimento e de desafios que

ameaçam a paz mundial e o futuro da humanidade é fundamental para atribuir um

sentido de valor moral à participação do governo alemão no compromisso em solucioná-

la. Para Ferguson, o termo desenvolvimento é orientado atualmente por uma diretriz

moral, como argumenta na passagem abaixo:254

251 Entrevista em SP, janeiro de 2007. 252 GTZ. ZOPP Planejamento de Projetos Orientado por Objetivos: um guia de orientação para o planejamento de projetos novos e em andamento. Eschborn: GTZ, 1998. p.5. 253 Embaixada da Alemanha no Brasil/BMZ/GTZ. Folder, opus cit.; GTZ, ibidem. 254 Ferguson, J. opus cit., p.15.

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It is clear in reading scholarly literature on development that the word ‘development’ is used to refer to at least two quite different things – on the one hand, is used to mean the process of transition toward a modern capitalist industrial economy. The second meaning much in vogue from the mid 70`s onward defines itself in terms of quality of life, standards of living and refers to the reduction or amelioration of poverty and material want. The directionality implied in the word development is in this usage no longer historical but moral. Development is no longer a movement in history but an activity, a social program, a war on poverty on a global scale.

Os temas do desenvolvimento

Os objetivos e as prioridades da política de cooperação para o desenvolvimento da

Alemanha variam em função de mudanças no discurso mais geral – internacional – do

campo do desenvolvimento. Em termos temáticos, a sua política de cooperação para o

desenvolvimento, a partir dos anos 90, vem se orientando para três áreas específicas:

combate à pobreza; proteção do meio ambiente e preservação dos recursos naturais;

educação e formação profissional.255 Estes são os eixos temáticos centrais que situam a

política de desenvolvimento no conjunto das políticas da administração pública alemã e

se reproduzem para todas as agências sob a sua institucionalidade, mas que devem ser

compreendidos como orientações mutáveis a cada redefinição da política alemã diante de

situações de política internacional. Nota-se em diferentes publicações que estas

definições variam. Encontramos no site do BMZ outras prioridades explicitadas como

objetivos da política alemã de cooperação para o desenvolvimento: a redução da pobreza,

a paz e a globalização justa:256 “The aim of the development policy is to reduce poverty

worldwide, to build peace and to promote equitable forms of globalisation”.

O combate à pobreza é, no entanto, um objetivo primordial, uma das categorias

centrais que têm justificado por décadas intervenções para o desenvolvimento. A pobreza,

como aponta Escobar, é um problema social que se tornou objeto de conhecimento e de

intervenção, porque fundamentado na crença de superação evolutiva por meio da

transformação para melhor situação.

255 GTZ. Compêndio do vocabulário da GTZ, opus cit., p.35; e Embaixada da Alemanha no Brasil/BMZ/GTZ, ibidem, p.3. 256 Ver: www.bmz.de. Acesso em 14/05/2004.

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A ênfase no tema da pobreza foi confirmada mais recentemente com a prioridade

para as ações do desenvolvimento na Conferência do Milênio.257

Os objetivos e princípios fundamentais da política de desenvolvimento alemã, os quais incluem particularmente o melhoramento da situação econômica e social dos indivíduos nos países em vias de desenvolvimento, ou seja, a satisfação das necessidades básicas da população como requisito fundamental para uma vida digna.258

Outros temas discutidos na Conferência do Milênio, como direitos humanos, meio

ambiente, paz e segurança internacional, as duas últimas enfatizadas com o crescimento

do terrorismo após o atentado de 11 de setembro de 2001, têm influenciado o governo

alemão na elaboração de sua política de cooperação para o desenvolvimento: “As we

enter the 21st Century, the role of development policy has changed, partly in the aftermath

of the terrorist attacks of 11 September 2001. Today, development cooperation is seen as

global structural and peace policy”.259

Assim, outro eixo da política de cooperação da Alemanha cuja importância tem

aumentado é o de desenvolvimento sustentável, como um ideal para assegurar

modificações nas condições de desenvolvimento sem prejudicar as chances das gerações

futuras.260

Além das diretrizes temáticas que caracterizam as áreas de atuação das agências

alemãs de cooperação, o BMZ define ainda princípios éticos e morais que são comuns a

todas as atividades relacionadas ao “desenvolvimento”; são diretrizes gerais e comuns a

todas as agências alemãs que operam no campo do desenvolvimento e representam as

bases em função das quais sua política de cooperação se fundamenta: o respeito aos

direitos humanos; a participação da população; o princípio do Estado de direito; a

economia social de mercado e a orientação do Estado para o desenvolvimento.

257 A Conferência do Milênio foi realizada em 2000 e promoveu o debate em torno de medidas a serem tomadas por países desenvolvidos em relação à pobreza mundial, as Metas do Milênio (United Nations Millennium Development Goals). São oito metas: erradicação da pobreza e da fome; universalização da educação primária; promoção da igualdade entre gêneros; redução da mortalidade infantil; melhoria da saúde materna; combate à AIDS e outras doenças; promoção da sustentabilidade ambiental; criação de parcerias para o desenvolvimento. O BMZ assumiu estas prioridades, incorporando-as aos seus objetivos. 258 GTZ. Compêndio do vocabulário da GTZ, ibidem, p.31. 259 Ver: www.bmz.de. Acesso em 15/07/2003. 260 Idem.

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A seguir, veremos os princípios que fazem parte da orientação específica da

cooperação técnica adotada pela GTZ: princípio da intervenção mínima; ajuda para a

auto-ajuda; gênero; participação; empowerment e ownership.

O princípio da intervenção mínima

O princípio de intervenção mínima estabelece que os projetos devem ser

planejados e executados pelos próprios países em vias de desenvolvimento. Este princípio

faz parte das normas da cooperação técnica alemã desde 1984. Os efeitos na prática

apareceram a partir dos anos 90, como argumenta um perito alemão:261

A tendência dos anos 90 pra cá foi assim. A Alemanha disse que nos países já existe know-how tecnológico suficiente, ou seja, já tem engenheiros, já tem agrônomos, já tem veterinários. Então, não precisa mais fazer esse trabalho: “Como vou combater a peste suína”, por exemplo, porque nos países já tem know-how disponível. Então, nós temos que ajudar a levar esse know-how disponível, para que o governo crie condições, leis, soluções etc. para esse know-how disponível, em nível local, estadual, federal.

A ajuda para a auto-ajuda

Usual nos documentos alemães é a associação da expressão auto-ajuda com

cooperação para o desenvolvimento, expressando a forma de intervenção que se limita

quase a um “estímulo” e que atribui ao receptor a responsabilidade sobre as ações, o

assumir a “propriedade” (ownership). Ela não se caracteriza como imposição, mas sim

como colaboração (cooperação). Estabelecem-se motivadores e transmissores de um

modo de ser, de um modo de gerir, distinguindo-se, assim, de outras formas de atuação

no campo do desenvolvimento: “A cooperação para o desenvolvimento é uma ajuda para

auto-ajuda. [...] As contribuições externas devem impulsionar e estimular as iniciativas

locais e nunca substituí-las”.262

261 Entrevista concedida em janeiro de 2007, em Belo Horizonte. 262 Embaixada da Alemanha no Brasil/Bmz/Gtz, opus cit. p.2.

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Gênero

Outro eixo central da política de cooperação para o desenvolvimento do ministério

é sobre as questões das mulheres. Neste aspecto, a ministra personaliza a força e o poder

de direção das mulheres e revela sua sensibilidade quanto ao peso do trabalho das

mulheres para o desenvolvimento em países pobres.

Podemos ver este critério personificado na imagem da ministra Heidemarie

Wieczorek-Zeul,263 que desde 1998 é ministra de Cooperação Econômica e

Desenvolvimento, uma personalidade que tem muita empatia na mídia. Sua imagem é

construída nos meios de comunicação do BMZ e das agências oficiais de cooperação da

Alemanha de uma forma muito cuidadosa – uma mulher moderna, atuante, trabalhadora,

ao mesmo tempo sensível aos problemas sociais, sempre sorridente e simpática, muito

freqüentemente cercada por crianças e mulheres. Muitas das fotografias em que a

ministra aparece são na África e, como vemos a seguir, está no meio de crianças e

mulheres negras. Mostra-se à vontade, afetuosa e próxima ao povo, sem qualquer tipo de

proteção ou segurança, demonstrando interesse por seus problemas e por questões

próprias às suas vidas.

As fotografias divulgadas dialogam com os textos nas publicações do ministério

de forma a representar visualmente os valores éticos e morais que o Ministério Federal

para Cooperação Econômica e Desenvolvimento adota em suas políticas. Elas retratam

263 Heidemarie Wieczorek-Zeul é historiadora e professora e tornou-se membro do Parlamento alemão pelo Partido Social-Democrata (SPD) em 1979. Foi membro do Parlamento Europeu entre 1979-1987: membro do Comitê em Relações Econômicas Externas com foco em comércio exterior e do Comitê sobre Direitos da Mulher, Gênero e Igualdade. Em 1984 tornou-se membro do Comitê Executivo do SPD e, a partir de então, assumiu uma série de compromissos com o partido, inclusive junto à União Européia.

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viagens feitas pela ministra para visitar os locais onde são realizados projetos e conversar

com as pessoas.

Fonte: www.bmz.de. Acesso em 16/06/2006

A participação

Define-se a participação do grupo-alvo na escolha, no planejamento, na execução

e no controle das medidas como “princípio transcendental da cooperação alemã para o

desenvolvimento”.264

O elemento que sublinha a diferença é o destaque atribuído à participação como

meio de cooperação para o desenvolvimento para que se alcancem resultados mais

eficazes, de forma a indicar que a “participação ativa das pessoas no processo é essencial

para que se obtenham resultados eficazes e duradouros”.265 Nesse sentido, a participação

é um meio, um instrumento que deve ser aplicado de maneira pragmática para se

alcançarem as metas estabelecidas em planejamento.

No entanto, esse instrumento deve passar por todas as etapas do projeto de

cooperação e precisa “envolver as pessoas, principalmente as populações carentes e

discriminadas nas decisões políticas, econômicas e sociais”.266

264 Embaixada da Alemanha, opus cit., p.2. 265 Idem, idem. 266 Idem, idem.

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Participação é uma das palavras-chave na cooperação técnica alemã, bem como

em outros organismos, como o Banco Mundial. Segundo Salviani, o início da eleboração

de técnicas participativas no Banco Mundial data de 1946, com a introdução de métodos

de “Pesquisa-ação”, tendo sido desenvolvida, nos anos 70, por Paulo Freire, a “Pesquisa-

ação Participativa”, que se dirige mais à emancipação social do que à pesquisa.267 No

Banco Mundial, o desenvolvimento de conceitos e formulações sobre participação seria

devedora sobretudo dos trabalhos de Michael Cernea, a partir de 1983, cujo estudo se

baseou na experiência particular do Programa Integral para el Desarrollo Rural -

PIDER, que foi iniciado em 1973 como um vasto programa de pequenos projetos locais

no México.268

A participação, na política alemã de cooperação para o desenvolvimento, é

considerada um tema transetorial, ou seja, está presente em todos os objetivos e

prioridades de atividades da cooperação para o desenvolvimento. Ela é definida como

“um processo através do qual os diferentes agentes compartilham e negociam o controle

sobre iniciativas de desenvolvimento”.269 E este é um aspecto avaliado positivamente

pelos alemães, como uma marca de sua forma de atuação:

The people in Germany’s partner countries are actively involved in the design of their projects. They have a decisive voice in how the cooperation should develop. That also means that they are themselves responsible for their project from the outset. This ensures that the project can continue after BMZ support has ended.270

É recorrente nos documentos e nos depoimentos de membros das agências alemãs

a caracterização da cooperação alemã como essencialmente participativa, tendo a

inovação e a eficiência como definidoras de seus objetivos de gestão pública.

Empowerment e ownership

267 Salviani, Roberto. As propostas para participação dos povos indígenas no Brasil em projetos de desenvolvimento geridos pelo Banco Mundial: um ensaio de análise crítica. Dissertação de mestrado, PPGAS/MN- UFRJ, Rio de Janeiro, 2002. 268 Idem, p.22. São mencionados trabalhos de Cernea de 1983, 1991 e 1992. 269 GTZ. Compêndio do vocabulário da GTZ, opus cit., p.77. 270 www.bmz.de . Acesso em 15/07/2003.

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De acordo com a definição formal de empoderamento, o termo está associado à

distribuição ou à redistribuição mais justa do poder, e tem sua origem na sociopedagogia

e no trabalho de assistência social.

Na política de cooperação para o desenvolvimento, o termo designa “formas de

atuação coletiva de grupos marginalizados e desprivilegiados, os quais querem melhorar

sua posição nos processos de decisão sociais, econômicos e políticos, através da

articulação e organização de seus interesses, e influenciar neste sentido as condições

gerais estruturais”. Tal processo de organização deve, por princípio, levar à

autodeterminação, ao aumento da auto-organização e ao papel mais ativo de

determinados grupos marginalizados em processos sociais.271

O termo ownership (Liderança-Responsabilização), na política alemã de

cooperação para o desenvolvimento, é empregado para designar a identificação do grupo

ao qual se destina um projeto com os seus objetivos. É categorizado como um dos

principais indicadores de qualidade na CT, requisito fundamental para eficiência e

sustentabilidade de processos de desenvolvimento, porque caracteriza a motivação do

grupo para assumir a responsabilidade por iniciativas de desenvolvimento e processos de

mudança. 272

O cooperativismo dos alemães

As idéias cooperativistas na Alemanha têm um peso histórico considerável. A

primeira experiência de uma associação de apoio à população rural foi criada por

Friedrich Willhelm Raiffeisen, em 1847, para enfrentar uma crise agrícola que se abatera

sobre o campo e a população do povoado de Weyerbusch/Westerwald.273 Em 1864,

Raiffeisen criou a primeira cooperativa, uma associação de caixas de empréstimo de

Heddesdorf. Também em 1847, Hermann Schultze-Delitzsch instituiu as primeiras

associações para artesãos (sapateiros e carpinteiros) nos centros urbanos. As idéias

cooperativistas implementadas por Raiffeisen e por Schultze-Delitsch continuam tendo

271 GTZ, idem, p.85. 272 GTZ. idem, p.83. 273 Armbruster, Peter & Arzbach, Mathias. O setor financeiro cooperativo na Alemanha. Bonn; San Jose; São Paulo: Confederação Alemã das Cooperativas, 2004.

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espaço, estando Raiffeisen até hoje associado às cooperativas agrícolas e Schultze-

Delitsch, às cooperativas industriais.274 O objetivo principal das cooperativas consiste em

obter melhores resultados no mercado e menor dependência da ajuda estatal. Elas têm

importante papel nas áreas rurais da Alemanha.

Esta concepção “cooperativista” da relação entre mercado e pequenos produtores,

na sua maioria agrícola, foi transmitida aos formuladores de propostas de cooperação

para o desenvolvimento do “Terceiro Mundo”, orientadas prioritariamente a contextos

agrícolas, base das economias dos países ditos em desenvolvimento. Neste sentido,

princípios de ação em um contexto de crise agrícola poderia ser aplicado a contextos de

subdesenvolvimento. É possível inferir que a experiência da auto-ajuda, de auto-

responsabilidade, de organização coletiva para o mercado, que fazem parte dos princípios

do cooperativismo, tenham sido, em certo sentido, modelos e diretrizes ideológicas para

as propostas pedagógicas implementadas pelas agências de cooperação.

A visibilidade da necessidade de cooperar

A construção do “problema do desenvolvimento” utiliza-se não só de discursos

textuais, mas também de imagens com grande força simbólica. As publicações de

instituições alemãs expõem de forma intensa imagens em que se retrata o trabalho da

Alemanha na política de cooperação para o desenvolvimento pelo mundo,

particularmente centradas nas populações que são definidas como “beneficiários”, alvo

das intervenções da cooperação.

Fica evidente que são priorizadas as imagens que representem a carência de

desenvolvimento associada aos aspectos identificados com a pobreza: falta de

saneamento (esgotos abertos e lixões), de asfaltamento nas ruas, de eletrificação, e

abastecimento de água (bicas d’água, água em balde), ausência de planejamento urbano,

de ordenamento espacial (caos urbano, trânsito mal administrado, poluição, queimadas) e

de mercados organizados (feiras livres).

274 De acordo com dados da Confederação Alemã das Cooperativas, os bancos cooperativos na Alemanha representam a mais alta porcentagem em relação ao mercado bancário, excluindo-se os bancos especializados, como os hipotecários e os de incentivos, como o KfW, entre outros.

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São imagens estereotipadas, que se caracterizam pela idéia de espaço selvagem,

inexplorado e de carência, em última instância, pela idéia que poderíamos qualificar de

“carência de desenvolvimento”. São retratos de privações estruturais.

Muitas vezes estes aspectos aparecem em um mesmo quadro, em uma mesma

fotografia, simultaneamente, e registram florestas e ambientes selvagens, com matas,

alagados, animais perigosos. Quando aparece o homem, ora está envolvido em atividades

agrícolas, ora na pesca ou no pastoreio. As muitas crianças retratadas denunciam o

crescimento demográfico elevado. Mulheres aparecem simplesmente sorrindo; são

muitas, na aldeia, na agricultura, perto dos filhos. Os indígenas surgem como os

representantes dos “homens selvagens”, puros, “naturais”.

Normalmente, as fotografias reproduzem tipos humanos bem simples, com roupas

tradicionais, descalços, lavando roupa, pegando água. As publicações apresentam fotos

em que se ressalta o aspecto do ambiente e das diferentes culturas: são camponeses

andinos, indianos, africanos, asiáticos, evidenciando um envolvimento diferenciado da

Alemanha nas questões do desenvolvimento. Nota-se uma preocupação em pontuar o

respeito às diferenças culturais, às formas de vida de cada local e aos direitos humanos.

Observa-se em alguns documentos a adoção de perspectivas particularizadas, em

observância às características específicas de cada país, no sentido de que

“desenvolvimentos diferentes em diversas regiões do mundo exigem também reações

diferentes na cooperação”.275

De maneira mais ampla, a preocupação com as populações indígenas do Brasil e

da América do Sul reflete esta abordagem centrada nos direitos humanos e no respeito à

pluralidade cultural.

Idealistas ou heróis?

Alguns trechos do discurso de Heidemarie Wieczorek-Zeul, ministra federal para

Cooperação Econômica e Desenvolvimento (BMZ) indicam o papel que mais

recentemente se atribui à política de cooperação para o desenvolvimento: um

275 Michels, C. “Política de desenvolvimento cooperação Brasil-Alemanha”. Internationes Press RB 4068 (12-95), 1995. p.6.

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compromisso, uma responsabilidade orientada pelas diretrizes de redução da pobreza,

construção da paz, globalização justa e preservação do meio ambiente.276

Germany will play its part as an international player in development cooperation and will take into account its responsibilities on the basis of the following principles: justice in globalization, poverty reduction – as ever the overarching goal of our development cooperation is its orientation towards poverty reduction – securing or building peace and preserving the environment and vital natural resources. At this point I would like to particularly thank the Federal Chancellor, who, in her speech this morning, very clearly underlined once more the timetable for gradually increasing the funds for development cooperation. Germany stands by its word, now and in the future. At this point I would like to say once more: Many people in Germany who would like to help - we have seen that again and again - want an end to the scandal of 30,000 children dying every day from avoidable diseases. Let us do everything we can to achieve this! Let us combine our efforts! What are we doing in our development cooperation? What are we already doing that we want to step up? We are helping with the reintegration of fighters into civilian life. We are helping to combat Aids. We are helping child soldiers find their way back to a life without violence. We are supporting the provision of clean drinking water. We are helping with the protection and management of natural resources (grifos meus).

Neste discurso, a ministra assume a visão da sociedade alemã (“many people in

Germany”) como representante e porta-voz daquilo que concerne a assuntos públicos,

mas também presta contas das atividades que são monitoradas pela população alemã. Em

vários momentos do discurso, enfatiza a ajuda prestada pela Alemanha (“we are helping”)

às vítimas do desenvolvimento e às vítimas de guerras e conflitos civis. A violência é

freqüentemente associada à falta de desenvolvimento, no sentido de civilização; é a

barbárie de povos sem civilização que gera ainda maiores problemas de desenvolvimento.

Em muitos momentos, o discurso é tomado por um tom dramático, que destaca

dados estatísticos populacionais no sentido de evidenciar, em nome de questões da

humanidade, a urgência da necessidade de intervenção direta. Sentimentos pessoais e

276 Heidemarie Wieczorek-Zeul, discurso de 29/03/2006, na ocasião da leitura do orçamento federal de 2006, em: http://www.bmz.de/en/press/pm/pm_20060616.html Acesso em 16/06/2006.

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uma linguagem que é descolada do tom impessoal, institucional e político são usados,

direcionando a sensibilização para os aspectos humanos, para o direito à vida.277

Every day 30,000 children die from avoidable diseases. What person with a heart, a soul and a mind does not want to react to that by standing up and saying "I want to put a stop to this scandal"? […] And it is in order to put a stop to it that the countries of the world have committed themselves to achieving the Millennium Development Goals. That will demand of us hard work, courage – and money. Amongst others, the issue is to fight child mortality and AIDS in a massive way. There are four dimensions to the global tasks facing our generation: poverty reduction, justice in globalization, peacebuilding and environmental protection (grifos meus).

O texto utiliza-se de perguntas retóricas para construir não somente os objetos de

intervenção – as vítimas do progresso – mas também a si próprios como heróis,

salvadores do desenvolvimento. A trilogia de qualidades heróicas: trabalho duro,

coragem e sentimento humanitário. Neste sentido, a intervenção coloca-se como uma

obrigação moral da qual não se pode fugir, como um princípio ideal de comportamento.

Este tom mais pessoal, mais emotivo é um traço particular da atual ministra, que

faz questão de deixar claro seu envolvimento pessoal nas questões do ministério:278

I visited Congo in 2004. Our development workers have been operating there since 2003. They are doing a truly splendid job. The people there with whom I spoke - and I am not talking about the politicians now - said: “We want to use our vote to help put an end to the violence”. Four million people in this region fell victim to internal fighting in the 1990s. Yet many ask: Is it in Germany's interest to intervene? The world made some serious mistakes when it did nothing to stop the genocide in Rwanda. Rwanda will only know lasting security if Congo is stable. We all believe that we must do all that we can to put an end to the bloodshed. It is an obligation for us all and it is - let me say this quite clearly - not something that depends on skin colour (grifos meus).

Por meio da política de cooperação para o desenvolvimento, há o interesse em

popularizar a Alemanha mundialmente e propagar a imagem de um país que superou as

277 Heidemarie Wieczorek-Zeul, discurso na Conferência de Paris sobre Instrumentos Inovadores de Financiamento, em 28/02/2006, primeira sessão plenária, em sítio: http://www.bmz.de/en/press/speeches/ministerin/rede22072003.html Acesso em 22/07/2003.

278 Heidemarie Wieczorek-Zeul, discurso de 29/03/2006, na ocasião da leitura do orçamento federal de 2006, em sítio : http://www.bmz.de/en/press/pm/pm_20060616.html Acesso em 16/06/2006.

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barreiras impostas pelo nazismo, particularmente em relação à tolerância racial e cultural,

como vemos nesta capa da Deutschland.279

Postula-se, assim, uma “Alemanha global”, que apresenta um pensamento aberto,

cosmopolita, pacifista, ecológico, um discurso que se afina com a política de

desenvolvimento e a política de relações exteriores da Alemanha, particularmente pela

divulgação de seu compromisso com a proteção ao meio ambiente, o respeito aos direitos

humanos e a ênfase na educação e na cultura. No entanto, nota-se o detalhe cuidadoso em

apresentar crianças de diferentes origens étnicas em torno de uma alemã, clara de pele e

loura, praticamente segurando o “mundo”.

Como dissemos anteriormente, as atividades de cooperação para o

desenvolvimento que a Alemanha passou a desempenhar junto a outros países tornou-se

uma política oficial a partir da criação do BMZ, em 1962, sendo parte de uma política de

expansão e promoção de sua economia e cultura no exterior, junto com o comércio e a

diplomacia.

Diferente da grande maioria dos países, em que as agências bilaterais de

cooperação para o desenvolvimento, subordinadas a ministérios de Relações Exteriores,

de Assuntos Exteriores (Foreing Affairs), do Ultramar (Overseas) ou de Finanças, 279 A revista Deutschland, publicada pelo Ministério de Relações Exteriores da Alemanha, é uma destas revistas que têm uma linha editorial orientada para a divulgação da cultura alemã, seus hábitos, refinamento, alta tecnologia, entre outras qualidades, como um panorama de uma civilização moderna, avançada e globalizada.

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assumem a responsabilidade pela formulação e pela execução da política de cooperação

para o desenvolvimento, no caso alemão, o BMZ é um ministério que tem a atribuição de

formular políticas, mas não de executá-las. Outras instituições, as agências, executam sua

política, ficando o BMZ com o dever de coordenar essas ações. O ministério é

responsável pelas tarefas de planejamento, coordenação, financiamento e negociação dos

programas e projetos de cooperação para o desenvolvimento, com atividades nas áreas

social, econômica, tecnológica, educacional, acadêmica e cultural. No que se refere à

execução desta política, as duas principais instituições executoras do BMZ são o Banco

KfW e a GTZ: “The development policy of the Federal Republic of Germany is an

independent area of German foreing policy”.280

A institucionalização que veremos em detalhe no caso da Alemanha ressalta o

processo de centralização em um órgão de governo, a partir dos anos 60, de uma imensa

diversidade de conhecimentos sobre regiões geográficas e populações, com a criação de

um ministério, o BMZ, especificamente responsável por determinadas formas de

intervenção em espaços estrangeiros. Esta centralização administrativa garantiu maior

controle de informações sobre as intervenções, como também sobre as populações e os

territórios objetos de tais intervenções.

As instituições do BMZ

Para um antigo funcionário da embaixada que trabalha há anos com a área de

cooperação, o fato de um ministério separado do Ministério de Relações Exteriores, com

autonomia decisória e orçamentária para coordenar a política de cooperação na

Alemanha, é muito próprio da história da Alemanha no pós-guerra. Ele explica:281

O BMZ tem uma divisão setorial e regional. Não sei se você sabe, mas a Alemanha é o único país que tem um ministério de cooperação internacional, criado em 1962. [...] porque até o nosso desenvolvimento, o milagre alemão, sem a ajuda do Plano Marshall, o nosso milagre econômico não teria sido possível. [...] então, no momento em que a Alemanha estava em condição de oferecer ajuda a outros países, no mesmo momento se criou o ministério. Um pouco

280 Ver: www.bmz.de Acesso em 22/07/2003. 281 Sr. Rainer Willingshoffer, em entrevista na Embaixada da Alemanha em Brasília, em 26/09/2003.

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também para mostrar nossa dedicação a esse tema. No caso do DFID [Department for International Development] dos britânicos, ele é ligado à chancelaria, à diplomacia; a USAID [United States Agency for International Development] é ligada ao Ministério de Assuntos Exteriores; a JAICA [Japan International Cooperation Agency] é ligada ao Ministério de Economia do Japão. A Alemanha tem um Ministério de Relações Exteriores e um de Cooperação, separados. O BMZ fica em Bonn e o Ministério das Relações Exteriores em Berlim.

Uma característica marcante do ministério é sua lógica de “atuação em rede ou em

malha, tanto no que concerne à sua estrutura organizacional, como em relação à forma de

execução de suas políticas.

A sede do ministério fica em Bonn, antiga capital, tendo sido criada outra sede em

Berlim depois da unificação. Além da sede, há vários escritórios localizados em

diferentes países, além de haver representação nas embaixadas e nos consulados e em

organismos internacionais, como o Banco Mundial e o BID.

Em relação à distribuição de seus funcionários, cerca de 600 no total, grande parte

deles fica no escritório de Bonn (aproximadamente 80%), enquanto no escritório de

Berlim há em torno de 60 funcionários (10%), segundo dados do BMZ de 2005.282 Os

outros 10% estão atualmente em “Escritórios Federais no Exterior” (Federal Foreign

Office), nas organizações internacionais e em países considerados “parceiros

prioritários”, onde trabalham nas embaixadas e nos consulados alemães.

A organização administrativa do ministério divide-se entre três diretorias gerais

com atribuições distintas. A primeira delas é responsável pelas tarefas administrativas dos

escritórios centrais de Bonn e Berlim, além de assumir atividades de cooperação com

organizações da sociedade civil e com as fundações políticas. A segunda é responsável

por diretrizes e pelo diálogo político da cooperação bilateral e das ações executadas pelo

ministério com os diferentes países e regiões; este diretório geral coordena medidas de

política de desenvolvimento e monitora todos os projetos e programas de cooperação

técnica e financeira com países, em negociações bilaterais, além de elaborar políticas de

cooperação para a paz.283 A terceira é responsável pela cooperação com organizações

282 Ver www.bmz.de Acesso em 22/07/2003. 283 É um representante deste Diretório Geral que vem ao Brasil participar das Negociações Intergovernamentais entre representantes do governo brasileiro e alemão.

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internacionais e pela coordenação de países doadores, estando a seu cargo a elaboração

dos princípios fundamentais e dos conceitos para o trabalho de política de

desenvolvimento (sistemas econômicos e financeiros, meio ambiente e recursos naturais,

redução da pobreza e desenvolvimento social).284

O escritório de Berlim, mais recente, tem função política junto ao Parlamento e à

imprensa, entre outros, sendo a principal responsabilidade de seus funcionários dar

suporte à formulação de planejamento político. Em 2003, o BMZ assumiu temas como a

globalização e o comércio, a prevenção de crises, a ajuda de emergência a refugiados, que

demandam relações mais próximas com o Banco Mundial e a União Européia.

Na América Latina, há funcionários do BMZ em Brasília, La Paz e Lima. Outros

60 funcionários do ministério são deslocados para trabalhar de forma rotativa nas

embaixadas e nos consulados de alguns países, circulando para assumir compromissos da

política de cooperação alemã para o desenvolvimento.

Quanto à execução de suas políticas, o ministério repassa a diferentes

organizações a atribuição de efetuar ações concretas das políticas definidas de cooperação

técnica, científica, acadêmica e financeira, as chamadas implementing organizations, que

são as agências implementadoras, as instituições que apresentam crescente autonomia e

que investem uma parte de recursos próprios para a execução das políticas formuladas

pelo BMZ.285 São agências de cooperação técnica, bancos de desenvolvimento, fundações

políticas, instituições eclesiásticas e de voluntários e ONGs. É uma ampla e diferenciada

malha administrativa, cujas instituições e pessoas se propõem a realizar atividades que

vão desde orientação política, formação profissional e organização trabalhista até

assistencialismo.

A estrutura de operacionalização da política de cooperação para o

desenvolvimento no mundo é marcada por uma diversidade, uma multiplicidade de atores

interconectados por meio do BMZ, enquanto centro de decisões políticas e orçamentárias

de uma ampla malha administrativa.

284 Há uma grande divisão interna nos diretórios gerais: o diretório geral 1 possui 14 divisões divisões internas, o 2 tem 15 e o 3 tem 18. 285 As fontes que tenho de coleta de dados – de documentos até entrevistados – são a agência CT governo (GTZ), o banco alemão (KfW), a embaixada alemã, os consultores em órgãos de governo, os profissionais de ONGs e redes de ONGs e os professores universitários.

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Para o governo alemão, do ponto de vista administrativo e de execução da política

de cooperação para o desenvolvimento, é atribuído um sentido restrito e um sentido

amplo para a definição de cooperação. No primeiro caso, refere-se às atividades

desempenhadas pelas agências oficialmente vinculadas ao BMZ, ou seja, as organizações

governamentais. São definidas como implementing organizations e, de acordo com o site

do BMZ,286 são elas: o KfW, a GTZ, o DED (este, como já dissemos, é o Deutscher

Entwicklungsdienst, conhecido anteriormente no Brasil por Serviço Alemão de

Cooperação Técnica e Social - SACTES), o InWEnt (Aperfeiçoamento Profissional e

Desenvolvimento Internacional) e o DEG (Deutsche Investitions und

Entwicklungsgesellschaft mbH ou Sociedade Alemã para o Desenvolvimento e

Investimentos), sendo também incluídos em algumas referências o Instituto Federal de

Geociências e Recursos Nacionais - BGR e o Instituto Federal de Física e Metrologia -

PTB.287

Além destas, o governo alemão vem ampliando sua atuação por meio do apoio a

outras instituições que não são diretamente ligadas ao BMZ, mas que recebem parte de

seus recursos do ministério, sendo consideradas também executoras de suas políticas.

Neste sentido amplo da cooperação para o desenvolvimento, estão envolvidas

organizações privadas, organizações não-governamentais ou redes de ONGs, além de

fundações políticas e organizações vinculadas às igrejas ou a instituições eclesiásticas. A

atuação dessas organizações não tem relação direta com as diretrizes definidas nas

negociações intergovernamentais,288 como no caso das agências ligadas diretamente ao

BMZ, mas sim aos princípios da própria organização. Os recursos que lhes são destinados

diferem do título orçamentário específico para atividades de cooperação bilateral entre

organizações oficialmente vinculadas ao BMZ. Assim nos relatou um funcionário da

Embaixada:289

286 Refiro-me especificamente ao documento Embaixada da República Federal da Alemanha. Brasil-Alemanha: 40 Anos Cooperação para o Desenvolvimento, 2003. Também consultamos o Compêndio do vocabulário da GTZ, opus cit., p.43, em que são incluídos o Instituto Federal de Geociências e Recursos Nacionais - BGR e o Instituto Federal de Física e Metrologia - PTB. 287 GTZ, idem. 288 GTZ, idem. 289 Sr. Rainer Willingshoffer. em entrevista citada.

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[...] as tradicionais – a Misereor, por exemplo – elaboram projetos; são projetos de 1 milhão, 2 milhões de euros, onde eles botam um terço e o BMZ, dois terços. É muito dinheiro que o BMZ está liberando para essas atividades, mas controladamente, porque também tem inspeções, tem que se fazer um Relatório Final, como se fosse um projeto normal de cooperação técnica. [...] Nós diferenciamos cooperação técnica de sentido estrito, que são as instituições que foram criadas com o BMZ, de cooperação técnica no sentido amplo, que envolve outras instituições que não são necessariamente ligadas diretamente ao BMZ (grifos meus).

Alguns profissionais alemães, principalmente aqueles que têm uma trajetória de

atuação em ONGs, redes de ONGs e movimentos da sociedade civil na Alemanha, fazem

questão de destacar a distância das formas de trabalho e da visão política a respeito do

desenvolvimento em países do chamado “Terceiro Mundo” entre organizações não-

governamentais e governo, sobretudo quanto a temas como meio ambiente:

Na Alemanha, tenho outra impressão: os grupos lutaram muito contra os governos, brigaram para conseguir algumas coisas, mas aqui isso mal aparece. Temos que deixar bem claro que os governos do Norte e as ONGs não têm as mesmas posições e, muitas vezes, os governos atuam de certa maneira porque eles foram forçados pela sociedade civil.290

Cooperação no sentido restrito

Como mencionamos acima, entre as organizações governamentais, as principais

instituições alemãs que atuam no Brasil, são a GTZ, que analisaremos

pormenorizadamente no próximo capítulo, o DED, o DEG, o InWENT, o BGR e o PTB.

O DED, antes chamado de SACTES, é usualmente conhecido entre os alemães

como serviço de voluntários e de pessoal para projetos de demandas sociais, tendo sido

criado em 1963. Ele atua como um braço oficial da cooperação alemã com organizações

não-governamentais de países parceiros. Apesar de referir-se a “voluntários”, os alemães

290 Apesar de trabalhar naquele momento no DED, uma agência governamental, este profissional alemão nos informou que trabalhou em contato com redes de ONGs da Alemanha que atuavam no campo do desenvolvimento, sobretudo na América Latina. O DED tem um trabalho orientado para o fortalecimento institucional de ONGs dos “países em desenvolvimento”. In: Diversidade ecossocial e estratégias de cooperação entre ONGs na Amazônia: Anais do Encontro. Fase/FAOR, 13-16 de junho de 1994. p.93.

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enviados para atuar em projetos recebem um pagamento (um salário mínimo, muitas

vezes) da instituição local onde trabalham e uma complementação do próprio DED.

O DED é uma organização definida como “sociedade mista”, composta pelo

governo alemão e por um grupo de ONGs alemãs. Ele não trabalha em projetos próprios,

mas atua na implementação dos projetos de desenvolvimento e apóia organizações da

sociedade civil e as iniciativas populares através, basicamente, do envio de alemães com

formação técnica291 ou superior para os chamados “países em desenvolvimento”.

Normalmente atuam em projetos pequenos. Segundo Wolff, o DED é uma “entidade de

perfil progressista e sua política freqüentemente distoa do discurso desenvolvimentista

oficial, o que não se dá sem a ocorrência de conflitos”.292 Tais projetos envolvem

atualmente 13.000 assistentes ao desenvolvimento e 10.000 técnicos locais em resposta a

demandas de organizações ou instituições estatais em mais de 45 países na África, na

Ásia e na América Latina. A instituição acaba sendo uma base de formação “prática” para

jovens alemães em países do “Terceiro Mundo”, uma espécie de “estágio”. Mas não

somente. Muitos profissionais alemães de grande experiência com as dinâmicas de

trabalho e articulação não-governamental ou “da sociedade civil”, na Alemanha e em

países “em desenvolvimento”, são muito valorizados e considerados.293

No Brasil, o escritório-sede do DED fica em Recife, o que reflete a prioridade

atribuída à questão da pobreza, fator que orientou a maior parte dos projetos para a região

Nordeste e, mais recentemente, para a região Norte. São três linhas temáticas que

trabalham no Brasil: desenvolvimento urbano, desenvolvimento rural e meio ambiente e

geração de emprego e renda. Conforme relatório de julho de 2004, os projetos são

classificados de acordo com as diferentes fases em que se encontram: em execução com

perito de longo prazo; em execução sem perito de longo prazo; em implantação. De um

total de 35 projetos do DED em todo o Brasil, 23 estavam sendo realizados na região

Nordeste, sendo a maior concentração em Recife, e o restante dos projetos destinados à

região Norte.

291 Neste caso, especificamente, o termo técnico refere-se à formação em escolas técnicas. 292 Wolff, L.; Kaiser, W. & Mello, F. Cooperação e solidariedade internacional na Alemanha. São Paulo:ABONG; Rio de Janeiro: Núcleo de Animação Terra e Democracia, EZE/Ibase, 1995. p.14. 293 DED. Relação dos projetos do DED – Serviço Alemão de Cooperação Técnica e Social no Brasil, julho de 2004.

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O DED coopera com cerca de 90 ONGs no Brasil, entre elas a ABONG e a “SOS

Corpo, Gênero e Cidadania”, em Recife; o Centro de Estudos, Articulação e Referência

sobre Assentamentos Humanos - CEARAH, em Fortaleza; a FASE, o Fórum da

Amazônia Oriental – FAOR e o NAEA, em Belém; o Centro de Trabalho Indigenista -

CTI, em Carolina, Maranhão; o Grupo de Trabalho Amazônico - GTA, em Brasília, entre

outros.

Define sua atuação como orientada por princípios de justiça social, democracia,

solidariedade, preservação da natureza, igualdade de direitos e inclusão social. São

projetos do DED no Brasil: Assessoria às Entidades Populares, executado pelo Centro de

Estudos e Pesquisa Josué de Castro, de Pernambuco; Mulheres e Desenvolvimento na

Zona da Mata de Pernambuco, desenvolvido pela ONG SOS Corpo, Gênero e Cidadania;

Produção Agrícola Sustentável, no Pará, executado pelo NAEA/UFPA; Consumo

Popular e Produção Familiar, no Pará, desenvolvido pela FASE, para citar alguns.294

No setor privado, algumas instituições têm a atribuição de promover e incentivar

pequenas e médias empresas e cooperativas nos países em desenvolvimento. Entre elas, o

DEG, que é um dos maiores institutos alemães de financiamento de longo prazo e

consultoria, com a atribuição formal de “promover a formação e a expansão do setor

privado em países em desenvolvimento”.295 Desde 1962, quando foi criado, até 2001, o

DEG co-financiou um total de 1.025 empresas em 121 países.296 Ele promove a

cooperação entre empresas de países em desenvolvimento e empresas alemãs e outras

européias. Investe em projetos sustentáveis e rentáveis, estando o seu foco no Brasil na

área de financiamento de projetos e empreendimentos para empresas brasileiras,

financiamento de pequenos e médios empreendimentos de infra-estrutura, programa de

microcrédito e programa de parcerias público-privadas (PPP), além de acompanhar

empresas alemãs que atuam nos países com os quais a Alemanha tem programas de

cooperação.

294 DED. Relação dos Projetos do DED, ibidem.. 295 KfW. Annual Report 2001, p.89. 296 Idem.

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Em 2001, o DEG foi comprado pelo banco KfW do governo federal297 e passou a

fazer parte do Grupo KfW, formado pela consolidação financeira do banco KfW, do KfW

International Finance Inc., Delaware (EUA), do Finanzierungs-und Beratungsgesellschaft

mbH (Berlin) e pelo DEG.298

No que se refere a cooperativas, a Confederação das Cooperativas da Alemanha

Federal (Deutscher Genossenschafts und Raiffeisenverband e.V. - DGRV) é uma

organização que reúne nacionalmente as instituições do setor cooperativo alemão, sendo

responsável por dar assessoria e apoio a organizações cooperativas em questões de

política econômica e fiscal, além de participar de projetos de desenvolvimento e

assessoria em âmbito internacional com a finalidade de fortalecer organizações

cooperativas, promover transferência de conhecimentos cooperativos através de

atividades de capacitação, fortalecer cooperativas de poupança e crédito em zonas rurais.

Existe uma forte relação entre instituições de execução da política de cooperação para o

desenvolvimento da Alemanha e empresas privadas, cooperativas e serviços de

especialistas (consultores).299

O Internationale Weiterbildung und Entwicklung gGmbH (Aperfeiçoamento

Profissional e Desenvolvimento) - InWENT300 é uma instituição que tem por propósito o

aperfeiçoamento e o desenvolvimento internacionais. Surgiu da fusão da Sociedade Carl

Duisberg (Carl Duisberg Gesellschaft) - CDG com a Fundação Alemã para o

Desenvolvimento Internacional (Deutsche Stiftung für Internationale Entwicklung,) -

DSE e presta serviços de formação, intercâmbio e aprimoramento profissional, técnico e

intercultural.

O CIM, dentro da GTZ, é um grupo de trabalho que executa o Programa de

Peritos Integrados. Formalmente, “o CIM organiza a colocação de peritos alemães ou

europeus junto a empregadores que exercem suas atividades em ramos e setores

importantes do ponto de vista da política de desenvolvimento”. É um programa

importante para que possamos compreender a abertura de um espaço para a GTZ em 297 Idem, p.10. 298 KfW. Annual Report 2001, p.116. 299 SES – Senior Experten Service. Emprega técnicos especializados aposentados (consultores seniores) em formação profissional, aperfeiçoamento e qualificação de pessoal técnico e de direção dentro do país e no exterior, sendo priorizadas as áreas técnica e econômica das pequenas e médias empresas. 300 Ver www.inwent.org; www.cdgbrasil.com.br Acesso em 17/06/2006.

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projetos no Brasil. Os peritos alemães selecionados são profissionais que dispõem de

“conhecimentos técnicos especializados” em atividades da política de

desenvolvimento.301

Os profissionais do CIM são contratados como peritos de curto prazo –

nomenclatura para profissionais que atuam em projetos com prazo de três meses,

renováveis – para prestar consultorias para a GTZ e avaliar a condição de viabilidade de

um projeto no qual a GTZ pretende atuar e, a partir da avaliação, indicar a sua execução

para a GTZ.302 O CIM fornece a curto prazo as condições para o deslocamento de

peritos.303 É uma forma talvez mais ágil para a contratação de peritos sem que haja

formalmente um projeto no qual eles estejam engajados, porque o processo de negociação

de um projeto pode levar até anos. Como o CIM, o Senior Experten Service (Serviço de

Peritos Seniores) - SES, emprega consultores técnicos sêniors, entre eles, aposentados,

para atuarem na formação profissional, no aperfeiçoamento e na qualificação de pessoal

técnico e de direção dentro do país e no exterior, priorizando-se as áreas técnica e

econômica das pequenas e médias empresas.

Cooperação no sentido amplo

Além destas organizações diretamente ligadas ao BMZ, as agências

governamentais vêm ampliando sua atuação no campo da cooperação internacional com

apoio às organizações não-governamentais, às fundações políticas, às igrejas e às

organizações eclesiásticas alemãs. A percepção do benefício que o governo poderia ter

com a atuação da sociedade civil alemã levou o BMZ a incluir as organizações não-

governamentais e as igrejas no seu orçamento para a política de cooperação para o

desenvolvimento.

O governo alemão tem como princípio a idéia de “prescindir ao máximo da ação

governamental e explorar outros meios de implementação mais rápida e mais eficaz dos 301 Há dois critérios para a “colocação de um perito” (na verdade, são critérios da própria atividade de cooperação internacional): se não forem encontrados peritos nacionais no mercado de trabalho local; o dever de contribuir para o desenvolvimento econômico e social do país parceiro. 302 Supostamente não deveriam permanecer nos projetos, mas há casos de peritos de curto prazo que renovam seus vínculos por longos e contínuos períodos. 303 Este foi o caso de Augo Knoke, que veio para o PPTAL nestas condições e acabou ficando por um ano.

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objetivos de políticas de desenvolvimento”, considerando fundamental o trabalho dessas

instituições na complementação das atividades das instituições governamentais de

cooperação internacional, no sentido amplo atribuído pelo próprio ministério ao

termo.304

Neste sentido, vale notar que se torna difícil desvincular a ação governamental da

ação não-governamental, e poderíamos mesmo afirmar que o governo alemão conta com

um aparato de atuação no campo do desenvolvimento que vai além de suas instituições

estatais, abarcando das agências e instituições governamentais até as não-governamentais.

Os projetos executados pelas organizações não-governamentais alemãs são

subsidiados pelo governo alemão através do financiamento às organizações eclesiásticas,

aos centros de pesquisa, às universidades e aos centros de capacitação técnica. Há, na

verdade, uma pluralidade de fundações e instituições atreladas ao BMZ que executam

diferentes tipos de cooperação entre a Alemanha e os países “em desenvolvimento”,

como grupos de solidariedade a crianças carentes, movimentos de igrejas, suporte a

cooperativas de produção, suporte a cursos de formação política, entre outras. Atuam

basicamente com recursos do governo alemão e recursos próprios complementares. Ainda

que muitas instituições não-governamentais obtenham fundos de outras fontes e

mantenham autonomia em relação ao governo federal, desde os anos 60 organizações

não-governamentais, organizações eclesiásticas e fundações políticas têm seus

orçamentos fortemente sustentados por verbas do BMZ. A maior parte dos recursos do

orçamento do ministério é, no entanto, consumido pelas duas principais instituições

governamentais, a GTZ e o KfW, que fazem parte do já mencionado “sentido estrito” da

cooperação para o desenvolvimento, que abrange somente as instituições governamentais.

Organizações eclesiásticas

Na Alemanha, a liberdade de crença, de confissão e de exercícios de cultos

religiosos é garantida pela Lei Fundamental.305 Não há, por definição, qualquer controle

304 GTZ. Compêndio do vocabulário da GTZ, opus cit., p.41-43. 305 A Lei Fundamental, como é chamada a Constituição alemã, foi formulada em maio de 1949 por um Conselho Parlamentar composto por membros de partidos políticos e presidido por Konrad Adenauer. Foi concebida em caráter provisório para uma fase de transição no imediato pós-guerra, sendo prevista sua

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das igrejas pelo Estado e, da mesma forma, o Estado é laico na Alemanha, não havendo

nenhum vínculo entre a administração eclesiástica e a estatal.

As igrejas e as instituições eclesiásticas da Alemanha têm o direito de cobrar

impostos de seus membros, recolhidos pelo Estado contra o reembolso de despesas. Cada

membro de confissão cristã, independente de freqüentar missas ou cultos nas igrejas, é

obrigado a pagar este imposto, que é devido pela declaração de crença e não pela prática

religiosa. Cerca de 80% da população na Alemanha pertencem a uma confissão cristã e

estão divididos entre 55% de protestantes e 45% de católicos, sendo o restante da

população formado por outras religiões, como muçulmanos ou judeus.306

Os recursos desses impostos são destinados ao apoio a atividades pastorais e

sociais que fazem das igrejas o segundo maior empregador da Alemanha, ficando atrás

apenas do próprio Estado. As atividades de instituições religiosas na sociedade alemã

destinam-se à assistência em hospitais, casas de misericórdia, asilos, escolas e centros de

formação. Para atuação em projetos sociais no mundo, os recursos vêm em parte desses

impostos, como também da arrecadação de doações dos fiéis em datas religiosas

importantes.307

Wolff argumenta que as igrejas cristãs (católica e protestante) na Alemanha são

entidades influentes devido ao volume de recursos que elas arrecadam anualmente através

do chamado “imposto das igrejas”, oficializado em lei e administrado pelo Estado.308

O papel de instituições eclesiásticas alemãs na estruturação das instituições

democráticas na Alemanha no período pós-guerra é considerado muito importante, como

fica ressaltado em publicação do Ministério de Relações Exteriores:

Através de seu engajamento no Estado e na sociedade, as duas grandes igrejas cristãs deram uma contribuição decisiva na reconstrução das estruturas democráticas após 1945. Na transformação política pacífica da RDA, as Igrejas, em especial a Igreja Evangélica, também tiveram uma participação importante. Sob sua proteção, formaram-se inúmeros grupos de oposição na RDA e ela abriu suas portas em 1989, como também a Igreja Católica, para abrigar os protestos e

redefinição após a reunificação, o que veio a acontecer somente em 1990, quando foram reformulados o prâmbulo e o artigo final. 306 Ministério Federal das Relações Exteriores. Perfil da Alemanha. Berlim: Media Consulta Deutschland GmbH, 2003. p.383-384. 307 Idem. 308 Wolff, Luciano A.; Kaiser, W. (coords.) & Mello, F.V., opus cit., p.17.

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as discussões pacíficas. Muitos representantes da oposição desempenharam um papel importante nos diversos grupos do movimento popular.309

Tem sido intensa a atuação de organizações eclesiásticas em programas para os

“países em desenvolvimento”. Entre 1962 e final de 2001, o governo da Alemanha

transferiu aproximadamente 480 milhões de marcos alemães para apoiar 1.011 projetos

de igrejas alemãs no Brasil, sendo a grande maioria deles (74,6%) desenvolvidos pela

Igreja católica, num total de 754 projetos, enquanto somente 25,4% (257) foram de

responsabilidade da Igreja protestante.310

Segundo Wolff, desde os anos 60, desenvolvimento ocupa lugar importante nas

discussões sobre ética das igrejas, sendo um tema já de certa “tradição” em conseqüência

de suas atividades missionárias. A partir dos anos 70, nota-se a produção de documentos

fundamentais que orientam politicamente o trabalho das igrejas nessa área,

particularmente elaborados pela Câmara das Igrejas Evangélicas para Assuntos de

Desenvolvimento, um conselho que assessora a cúpula das igrejas.

As igrejas protestantes alemãs, também chamadas evangélicas, atuam na área de

cooperação para o desenvolvimento através de uma estrutura institucional denominada

Grupo de Trabalho sobre o Serviço das Igrejas para o Desenvolvimento

(Arbeitsgemeinschaft Kirchlicher Entwicklungsdienst) - AG-KED, que compreende

cinco instituições. De acordo com algumas publicações dessas malhas de instituições,

aquelas ligadas à Igreja protestante são: Associação Evangélica de Cooperação e

Desenvolvimento (Evengelische Zentralstelle für Entwicklungshilfe) - EZE; Pão para o

Mundo (Brot für die Welt); Serviços em Ultramar (Dienste in Übersee) - DU; Serviço das

Igrejas para o Desenvolvimento (Kirchlicher Entwicklungsdienst) - KED; Obra

Missionária Evangélica (Evangelisches Missionwerk) - EMW.

As igrejas católicas concentram-se em torno de duas instituições: a Misereor e a

Associação Católica para Cooperação e Desenvolvimento (Katholische Zentralstelle für

Entwicklungshilfe) - KZE. Os recursos com os quais a Misereor financia seu trabalho no

campo do desenvolvimento são provenientes de doações dos católicos alemães e de

309 Ministério Federal das Relações Exteriores. Perfil da Alemanha, idem, p.384. 310 ABC/MRE. Ata de Negociações Intergovernamentais 2001. Brasília, 19 e 20 de novembro de 2001.

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fundos dos orçamentos diocesanos colocados à disposição pela Associação das Dioceses

da Alemanha. Quanto aos fundos públicos do governo alemão, eles são aplicados pela

KZE, sendo que a maior parte do trabalho administrativo da KZE é executado na sede da

Misereor que, fundada em 1958, representa um dos braços da Confederação dos Bispos

Alemães, consistindo em um subdepartamento de uma área chamada “Igreja em Nível

Mundial”, referente às atividades de igrejas cristãs no exterior.311 Ela está voltada para as

atividades de serviços sociais e pastorais para pobres do “Terceiro Mundo”, tendo como

base motivações cristãs e espirituais. Define sua missão como a de oferecer cooperação

“para combater a pobreza em nível mundial, abolir estruturas de injustiça, promover a

solidariedade com os pobres e perseguidos e contribuir para a construção de ‘um

mundo’”.312

Os pedidos de financiamento que a Misereor recebe são analisados por

departamentos regionais que decidem com que fundos o projeto pode ser financiado,

passando por diferentes níveis de decisão, inclusive pela diocese local.313 No caso de

fundos provenientes de doações ou arrecadação de impostos, a aprovação passa por uma

comissão de cinco bispos.

Além das instituições citadas, ainda haveria ONGs alemãs sem vínculos

diretamente religiosos, mas que são em sua maioria ligadas às Igrejas protestante e

católica da Alemanha, como a Fundação Agrária Alemã (Deutsche Welthungerhilfe), a

Associação de Amparo às Necessidades da Criança (Kindernothilfe), a Comunidade de

Ação Mundo Solidário (Aktionsgemeinschaft Solidarische) e o Serviço para a Paz

Mundial (Weltfriedensdienst).314

A referência ao trabalho das ONGs alemãs no Brasil não aparece nas conversas ou

nas entrevistas realizadas com funcionários de órgãos governamentais alemães ou

brasileiros, mas quando investigamos as organizações ou as redes não-governamentais no

311 “Igreja em Nível Mundial” é uma “fraternidade” de mais de 300 igrejas de diferentes tradições cristãs em mais de 100 países nos cinco continentes, e que se organizou formalmente no Conselho Mundial de Igrejas - CMI, fundado em 1948 em Amsterdã. A Igreja Católica Romana não é membro do CMI, mas colabora com o conselho. Seu órgão decisório máximo é a assembléia que se reúne a cada 7 anos. Em: www.wcc-coe.org/ Acesso em 04/11/2007, às 11h22. 312 Em www.misereor.org/pt/sobre-nos.html Acesso em 04/11/2007, às 12h:45. 313 Wolff, L.A. et al., opus cit., p.21. 314 Idem, p.17-22.

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Brasil – entre elas INESC, IBASE e FASE ou ABONG, Rede Brasil ou FAOR (Fórum da

Amazônia Oriental) – vimos que há uma correlação entre a atuação das ONGs alemãs

religiosas e os movimentos sociais no Brasil. Desde a ditadura militar, tem sido freqüente

o apoio a projetos sociais por parte das igrejas desse país, assim como a vinda de

alemães, principalmente na área de direitos humanos e de organização popular de

trabalhadores e de cooperativas.

Fundações políticas

As fundações políticas são instituições vinculadas aos partidos políticos que

desenvolvem atividades na Alemanha e no exterior. Elas têm um papel importante nesse

tipo de trabalho, assim como na constituição de uma cultura política democrática e de

solidariedade, o que fazem por meio de institutos em que dão treinamento e cursos para

formação de valores políticos e democráticos, além de programas de estudo na Alemanha

para bolsistas dos vários países onde atua.

Particularmente quanto a critérios de democracia e participação, as fundações

políticas trabalham estes valores no sentido de promovê-los internacionalmente, dando

suporte a organizações promotoras de auto-ajuda, sobretudo nas áreas rurais, de educação

de adultos e de capacitação para pesquisas sociológicas em países em

desenvolvimento.315

As fundações políticas trabalham em estreita colaboração com sindicatos,

partidos, cooperativas e outros grupos políticos ou sociais semelhantes, sendo sua função

fortalecer sindicatos de trabalhadores e partidos políticos. Várias delas foram criadas

antes do ministério, já tendo certa experiência nas práticas da cooperação para o

desenvolvimento antes mesmo de sua institucionalização.316 No exterior, segundo Wolff

suas atividades são enquadradas como projetos de cooperação para o desenvolvimento.317

315 Wolff, L. A. et al., ibidem. 316 A partir de 1966 foi proibido financiar diretamente o trabalho de formação política na linha dos partidos dentro da Alemanha, o que passou a ser feito então pelas fundações políticas. Atividades como seminários, encontros, debates, cursos, bolsas de estudo contribuem para o debate político no país. No plano internacional, o trabalho das fundações seria identificado como o de cooperação para o desenvolvimento, sendo financiado com recursos do BMZ. 317 Wolff, L. A. et al., idem, ,p.16.

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O trabalho das fundações no exterior é financiado exclusivamente por fundos do governo

federal, principalmente do BMZ, do Ministério de Relações Exteriores e do Ministério de

Ciência e Tecnologia.

O governo alemão transferiu para as fundações políticas, entre 1962 e final de

2001, um total de 225 milhões de marcos alemães. No caso da cooperação para o

desenvolvimento do setor privado (DEG), foi transferido um total de 300 milhões de

marcos alemães para 23 projetos.318

Várias fundações políticas foram criadas cerca de uma década antes do ministério

e têm tradição nas práticas da “cooperação para o desenvolvimento”, marcantes ainda

hoje.319 O quadro abaixo sistematiza a relação entre as fundações políticas e os partidos

políticos na Alemanha:

A mais antiga fundação política, a Friedrich Ebert - FES, ligada ao Partido Social-

Democrata - SPD, foi fundada em 1925. Define sua atuação como orientada “para o

incentivo a estruturas e processos democráticos e para a cooperação com seus parceiros,

para fortalecer o desenvolvimento político”. Atualmente possui cerca de 600 funcionários

que desenvolvem projetos em mais de 100 países na África, na Ásia, nas Américas e na

Europa e concede bolsas de estudos para 240 estudantes no exterior, de um total de 1.700

318 Ata de Negociações Intergovernamentais 2001, Brasília, 19 e 20 de novembro de 2001. 319 A pesquisa desta como das outras fundações políticas foi realizada em grande parte por meio digital na Internet. Os sites têm informações sobre a estrutura e os dados atualizados de projetos e programas em andamento. Os sites foram: www.fes.org; www.hss.org ; www.boell.org ; www.kas.org

FUNDAÇÕES E PARTIDOS POLÍTICOS

CONSERVADORES

KAS – Fundação Konrad-Adenauer União Democrata Cristã (CDU)

HSS – Fundação Hans Seidel União Social Cristã (CSU)

FNS – Fundação Friedrich Naumann Partido Democrático Liberal (FDP)

DE OPOSIÇÃO

Fundação Friedrich Ebert (FES) Partido Social-Democrata (SPD)

Fundação Heinrich Böll (HBS) Partido Verde (DG)

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bolsas. A FES está no Brasil desde 1976, quando veio primeiramente para o Rio de

Janeiro e estabeleceu-se com o nome de Instituto Latino-Americano de Desenvolvimento

Econômico e Social - ILDES, sendo transferida em 1986 para São Paulo. Tem fortes

relações com sindicatos e incentiva pesquisas e seminários orientados para trabalhadores

e sindicalistas.

A Fundação Konrad Adenauer (Konrad Adenauer Stiftung) - KAS, associada à

CDU, atua na área de “direitos humanos, democracia representativa, do Estado de

Direito, da economia social de mercado, da justiça social e do desenvolvimento

sustentável” e desenvolve trabalhos em áreas carentes no Brasil em articulação com a

Cáritas320 e com a Arquidiocese do Rio de Janeiro.

A Fundação Konrad Adenauer focaliza seu trabalho primordialmente no campo

acadêmico no Brasil, particularmente em relação às áreas de filosofia e ciência política,

contribuindo não só para a organização de seminários, como também a publicação de

textos e livros de análises políticas. Além disso, incentiva pesquisas no Brasil e no

exterior por meio de bolsas de estudo e intercâmbio de pesquisadores na Alemanha.

Possui um instituto próprio de formação política, o Instituto Internacional,321 e ainda um

centro de estudos de “formação política” no Rio de Janeiro.

A Fundação Hans Seidel - HSS, ligada à CSU, tem cerca de 200 funcionários e

atua em 57 países; como a KAS, possui um instituto próprio para atividades de

“cooperação internacional”, o Instituto para Confraternização e Cooperação

Internacional, com formação “democrática e cidadã, educação e capacitação”, promoção

de “consciência internacional” e “ajuda ao desenvolvimento”.

Há um conjunto de fundações ligadas ao Partido Verde que refletem sua

característica pluralista. A Bundstift é formada por uma série de associações regionais,

sendo de caráter mais descentralizado; a Frauen(an)stiftung caracteriza-se pelo trabalho

320 A Cáritas Brasileira faz parte da Cáritas Internationalis, rede da Igreja Católica de atuação social composta por 162 organizações presentes em 200 países e territórios, com sede em Roma. A Cáritas Brasileira é um organismo na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), criada em 12 de novembro de 1956, na ocasião da 3ª. Assembléia da CNBB, presidida então por D. Hélder Câmara. A Cáritas Brasileira desenvolve um trabalho orientado para populações excluídas, visando, nos próprios termos, “contribuir para a superação da miséria e pobreza, testemunhando que Deus é caridade” por meio da promoção da “solidariedade libertadora”. Em: www.caritasbrasileira.com.br Acesso em 30/05/2007. 321 Wolff, L. A. et al., opus cit., p.16.

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exclusivo em questões de gênero, particularmente mulheres; a Fundação Arco-Íris

consiste apenas em uma instância de coordenação de trabalho entre as três fundações; e a

Fundação Heinrich Böll (Heinrich Böll Stiftung) - HBS, com sede em Colônia, tem uma

estrutura mais parecida com as fundações políticas que vimos, mas adota uma linha

alternativa, abordando temas relativos a desenvolvimento sustentável, questões de gênero

e sexualidade, direitos humanos, entre outros. É uma fundação não-governamental,

porém não se pode desconsiderar sua relação política com Schröder, por ocasião da

coalizão com Os Verdes (Die Grünen - DG) e com o SPD, no governo desde 1998.

De acordo com dados de 2007, a Fundação Böll possui 130 projetos correntes em

60 países da África, da Ásia, da América Latina, tendo também um escritório em

Washington. A Fundação Heinrich Böll estabeleceu sede no Rio de Janeiro em 1990 e

desenvolve projetos com algumas ONGs brasileiras, como FASE, INESC, SOS-Corpo,

CEMINA, REDEH, entre outras.

O BMZ, com a sua forma de operacionalizar a política alemã de cooperação para

o desenvolvimento, apresenta a dimensão de uma estrutura equivalente a uma grande

corporação transnacional ou de uma rede de organizações. Nem sempre é desejável, do

ponto de vista das instituições alemãs, que se tenha a real dimensão da sua atuação, para

não despertar reações contrárias e críticas. Apesar de estarem vinculados a um mesmo

ministério, os trabalhos destas instituições são independentes.

O diagrama abaixo apresenta uma visão resumida e simplificada das instituições

que fazem parte da política oficial de cooperação para o desenvolvimento e suas

atribuições em relação ao BMZ.

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Diagrama de instituições da política alemã de cooperação para o desenvolvimento322

Sentido restrito da cooperação para o desenvolvimento

(Organizações governamentais)

Sentido amplo da cooperação para o desenvolvimento

(Organizações governamentais e outras)

Fonte: Lossack, Harald Cooperação Técnica Brasil-Alemanha, Projeto MMA/PD-A-GTZ, 1995

322 Troppenwaldnetzwerk é rede da Floresta Amazônica, uma rede da Alemanha para a proteção da Floresta. Katalise e KOBRA, que significa “Kooperation-Brasil”, também são redes.

BMZ – Ministério Federal de Cooperação Econômica e

Desenvolvimento

Organizações de Cooperação:

KfW, GTZ, DED, DEG, InWENT, BGR e PTB

Responsabilidade política e financeira

Responsabilidade de execução

Organizações governamentais

Organizações eclesiásticas

Fundações políticas

ONGs

Fundação Konrad-Adenauer, Fundação Heinrich Böll, Fundação Friedrich Ebert, Fundação Friedrich Naumann, Fundação Hans Seidel

Misereor, KZE (Católica), EZE (Protestante), Brot für die Welt (Pão Para o Mundo), KED (Serviço das Igrejas para o desenvolvimento), EMW (Obra Missionária Evangélica) , EMW (Protestante)

KfW, GTZ, DED, DEG, InWENT, BGR e PTB

Katalyse, Tropenwaldnetzwerk, KOBRA *

Outras organizações de “solidariedade”

Deutsche Welthungerhilfe, (Fundação Agrária Alemã), Kindernothilfe (Associação de Amparo às necessidades da Criança) Aktionsgemeinschaft Solidarische) (Com. de Ação Mundo Solidário e Weltfriedensdienst (Serviço para a Paz Mundial)

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O que buscamos destacar neste capítulo é que, independente e paralelamente às

agências de Estado, há toda uma ampla e disseminada rede de instituições da sociedade

alemã que historicamente atua no campo do desenvolvimento. Estas redes nem sempre

são mencionadas pelos profissionais da GTZ quando os entrevistamos, ou aparecem em

publicações institucionais. Quando citada a sua existência em textos impressos do BMZ,

não há referências mais detalhadas sobre as formas de relação do Estado com as suas

práticas.

No entanto, quando avançamos na leitura de uma abordagem mais abrangente,

como a adotada por Wolff e na qual me baseei, vemos as múltiplas correlações existentes

entre a instância governamental e a não-governamental, em situações que vão desde o

orçamento até valores e princípios de orientação para o trabalho no exterior e a forma de

atuação com base em projetos, entre outros.

A formalização de um “campo governamental” de cooperação para o

desenvolvimento, que se estabeleceu entre os anos 1950-60, baseado no desenvolvimento

como “motor” de impulsão de práticas de intervenção para administração de territórios

estrangeiros, adquiriu muitos dos aspectos da atuação não-governamental. No entanto,

aquilo que se refere às instituições religiosas diz respeito a uma concepção cristã de

solidariedade e não exatamente de desenvolvimento que move as práticas em territórios

estrangeiros.

Depois de uma incursão nos processos históricos que promoveram arranjos bem

estabelecidos e aceitos sobre uma idéia de cooperação técnica em política internacional e

da apresentação das instituições que estão envolvidas, nós nos propomos, nesta segunda

parte, a voltar o foco para as práticas efetivamente observáveis em contextos muito

restritos e elitizados e que envolvem representantes de diferentes governos naquilo que se

define por cooperação técnica internacional.

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Parte III. Modos de intervenção da GTZ

How and why did people come to develop collective, nation-wide and compulsory arrangements to cope with deficiencies and adversities that appeared to affect them separately and to call for individual remedies?323

Em primeira instância, recorrer a este conjunto de situações que observamos

refletiu o interesse em buscar os princípios de produção de uma ordem observada e

construir a teoria da prática, do modo de engendramento das práticas, ou melhor, como

argumenta Bourdieu, ir do opus operatum ao modus operandi.324 Visa contribuir para o

que Bourdieu aponta como a necessidade de abandonar todas a teorias que tomam

explícita ou implicitamente a prática como uma reação mecânica, diretamente

determinada pelas condições antecedentes e inteiramente redutível ao funcionamento

mecânico de esquemas preestabelecidos, modelos, normas ou papéis, como o são as

configurações fortuitas dos estímulos capazes de desencadeá-los.325

Alem disso, observar tais práticas implica analisar as estruturas constitutivas deste

meio, as quais produzem sistemas de disposições como princípio gerador e estruturador

dessas mesmas práticas e das representações que podem ser objetivamente reguladas e

regulares, e não como produto de um regente.

Segundo Ortiz, para Bourdieu, o campo se particulariza como um espaço onde se

manifestam relações de poder, o que implica afirmar que ele se estrutura a partir da

distribuição desigual de um quantum social que determina a posição que um agente

específico desempenha em seu seio. A este quantum Bourdieu denomina de “capital

social”.

323 Swaan, Abram. In care of the State – health care, education and welfare in Europe and the USA in the modern era. New York: Oxford University Press, 1988. p.2. 324 Bourdieu, P. “Esboço de uma Teoria da Prática.”. In: Ortiz, R. (org.). Pierre Bourdieu. Sociologia. São Paulo: Ática, 1983. p.60. 325 Bourdieu, P., idem, p.64.

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Como argumenta Ortiz, Bourdieu denomina “campo” este espaço onde as

posições dos agentes encontram-se a priori fixadas. O campo se define como lócus onde

se trava uma luta concorrente entre os atores em função de interesses específicos que

caracterizam a área em questão. Para ele, o autor resolve desta forma o problema da

adequação entre ação subjetiva e objetividade da sociedade, uma vez que todo ator age no

interior de um campo socialmente predeterminado. 326

Assim, está implícita no conceito de campo e das práticas sociais apresentado por

Bourdieu a noção de poder.

Refletir sobre Estado e poder envolve uma série de cuidados, como nos previne

Foucault. Para ele, é preciso desvencilhar-se do modelo de Leviatã, para além da

soberania jurídica e de uma visão meramente institucionalista do Estado, o que envolve

uma nova metodologia de pesquisa e análise das técnicas e táticas de poder, além de

estratégias de luta. Ele afirma que poder só existe em ato. Sugere que se analise o poder

não no nível da intenção ou da decisão, mas em suas práticas reais e efetivas, nos

processos sociais que constituem relações de poder, abarcando suas formas e instituições,

nas técnicas e nos instrumentos de intervenção, para além das normas. Para ele, ainda, o

poder deve ser analisado como algo que circula e só funciona em cadeia, e não apossado

como coisa: “poder é algo que se exerce, que circula, que forma rede”.327

Ao levarmos tal afirmação a sério, buscamos nesta parte analisar as formas através

das quais a cooperação técnica efetivamente se institui – práticas consideradas como

procedimentos administrativos normais, usuais e, portanto, descaracterizados de aspectos

de poder. Na medida em que o Ministério de Cooperação e Desenvolvimento Econômico

- BMZ é uma instância política mas não de execução, as práticas devem ser observadas a

partir das instituições às quais o BMZ delega as funções executivas das políticas de

cooperação. Como nosso interesse recai sobre as práticas de cooperação técnica, voltamo-

nos para a GTZ, com a proposta de analisar a organização enquanto produtora e

transmissora de determinado tipo de conhecimentos – o de administração em territórios

estrangeiros.

326 Ortiz, R. ”Introdução”. In: Ortiz, R. (org.), ibidem, p.19. 327 Foucault, Michel. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.32-40.

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O campo de atuação da GTZ é um “espaço de fronteiras nacionais”; por ser uma

instituição internacional, envolve atores de diferentes nacionalidades, além de indivíduos

em diversas posições, como funcionários técnicos, peritos ou diretores, além de

brasileiros com os quais as agências estabelecem vínculos através dos projetos.328 Por ser

um espaço de múltiplos sentidos, visões e nacionalidades, é também o de reconfiguração

de representações a partir do contato. A essas representações são conferidos valores

distintos e hierarquicamente estabelecidos.

Diante das múltiplas dimensões da atuação da agência GTZ no Brasil, a proposta

desta parte refere-se aos modos de intervenção tanto por meio das relações informais

entre funcionários e consultores no escritório e com outros indivíduos de organizações

nacionais, como no que se refere aos critérios formais – hierarquias, regras e normas de

funcionamento, divisão das atividades, critérios de contratação e plano de carreira.

As formas de administração em territórios estrangeiros adotadas pelas agências

internacionais de cooperação técnica, pelas quais se produz e se dissemina um

determinado tipo de conhecimento são, principalmente: programas ou projetos

desenvolvidos junto com órgãos de governo local; a estrutura administrativa daquela

instituição, um escritório “filial” no qual a agência centraliza as atividades

administrativas das várias instâncias de atuação no país; ou ainda os eventos e os grandes

encontros (comemorações, seminários, oficinas, entre outros), considerados aqui rituais

das agências e dos organismos internacionais, organizados em parceria com a área

diplomática local.

O desconhecimento sobre um “modo de fazer” projetos sociais e ambientais e um

conjunto de conhecimentos administrativos e de planejamento passados por uma atuação

continuada e com propósitos multiplicadores de disseminação é, provavelmente, uma

característica também em outros locais onde são implementados pela Alemanha os

projetos de cooperação para o desenvolvimento. Este é o desafio do presente trabalho.

Uma vez explorados os aspectos formais que definem as relações entre os países

com acordos de cooperação internacional, nos próximos capítulos buscaremos abordar a

cooperação técnica na prática, a partir de três frentes de atuação da GTZ como agência

328 Wright, Susan. “Culture in anthropology and organizational studies”. In: Wright, Susan (org.). Anthropology of Organizations, London: Sage Publications, 1994. p.19.

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governamental de cooperação técnica: primeiro observaremos um projeto enquanto

construção social, produto por definição da cooperação técnica e lugar do

disciplinamento, da “educação”, do “treinamento”, de valores, de comportamentos, de

uma concepção de vida social; em seguida, analisaremos o local de produção, reprodução

e disseminação de comportamentos, o escritório “no estrangeiro”, lugar da exaltação do

nacional alemão, um dos pontos de estabelecimento de fronteiras claras entre o que se

define e se institui como autenticamente “alemão” e os outros; por fim, seus rituais de

produção de imagens e de difusão de conceitos.

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Capítulo 5. A GTZ no Brasil e a produção de saberes administrativos no exterior329

Neste capítulo, abordaremos dois aspectos formais da atuação da GTZ no Brasil.

A observação participante no escritório da GTZ das práticas de seus funcionários em

tarefas cotidianas, das regras a serem seguidas, das hierarquias funcionais e também

sociais permitiu dar visibilidade ao trabalho do governo alemão no campo da

solidariedade e da cooperação internacional a partir de um levantamento etnográfico

muito pontual. As trajetórias particulares da GTZ na política da cooperação técnica em

países como o Brasil devem ser compreendidas como parte de estratégias do BMZ para

as organizações alemãs, sendo ela a que tem o maior peso político de representação do

ministério no exterior.330

O propósito aqui não é o de retratar a GTZ enquanto um “ente” dotado de

intenções ou decisões, mas de enfatizar as manipulações, pelos agentes envolvidos, na

prática de certas normas, que acabam por constituir e dar sentido à “organização” GTZ

enquanto agência estatal de cooperação técnica alemã. Não queremos sequer denunciar

ou constatar obviedade, mas descrever maneiras de agir que por vezes contradizem as

próprias normas pelas quais se pautam.

A observação participante no escritório da GTZ foi um dos eixos centrais a partir

dos quais desenvolvi esta tese. Dediquei grande parte dos esforços de pesquisa em

traduzir como funcionava esta instituição, o que me permitiu ver, de diferentes lugares,

como a GTZ se apresentava e como era vista.

Se por mais de quarenta anos a GTZ tem atuado em projetos em áreas sociais e

junto a instituições governamentais no Brasil, e pouco ou quase nada há em termos de

análises independentes sobre as implicações de seu trabalho sobre políticas e populações,

a sua relativa invisibilidade, que se não pode ser qualificada, por vezes, como intencional, 329 No presente trabalho, optei por mudar os nomes dos funcionários da GTZ como maneira de preservar suas identidades pessoais, ainda que sejam facilmente identificáveis para quem conhece a instituição ou os projetos em que a GTZ está envolvida. 330 A ressalva aqui é importante: o que chamamos de “aparato” governamental não se restringe necessariamente à esfera de “governo” ou “Estatal” no sentido estrito. Neste caso, isto de fato não ocorre, pois inclui também instituições não-governamentais. O uso do termo “governamental” refere-se mais à idéia da existência de um “governo”, de uma esfera pública de decisão que se orienta, no mundo, para atividades chamadas de cooperação internacional.

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serve em outras como estratégia de ação que tem funcionado plenamente no Brasil.

Apesar de haver nas formas de atuação da GTZ pelo mundo um propósito de dar

visibilidade ao trabalho do governo alemão no campo da solidariedade e da cooperação

internacional – com a organização de eventos, a promoção de festas e encontros, as

publicações e, principalmente, a contratação de pessoal especializado para trabalhar nos

projetos em diversos países – o fato é que no Brasil, de onde observei o campo de atuação

da GTZ, a impressão que se tem é de haver uma névoa que embaça a visão das múltiplas

conexões existentes entre os vários projetos e programas desenvolvidos.

A identidade desconhecida da GTZ

A identidade institucional da GTZ, tendo em perspectiva um dos países onde atua

e não a Alemanha, parece gerar confusões pelas múltiplas atribuições que a ela se faz,

tanto por parte da mídia, como de funcionários de órgãos governamentais e não-

governamentais que com ela se relacionam por meio dos projetos. Como nos reporta um

ex-funcionário da GTZ:331 “Eu acho que em nível regional, em nível de projetos, a gente

deve cooperar [da forma] mais abrangente possível, porque muitas vezes a GTZ era vista

na cooperação só como financiador de algum projeto (grifos meus).

Em fragmentos selecionados de vários artigos de jornais publicados no Brasil em

que aparecem referências à GTZ, é visível o desconhecimento de quais são as suas

atribuições e os seus limites. O tom alarmista está presente, de modo geral, nos veículos

de comunicação:

O Senador Mozarildo Cavalcanti (PPS-RR) vai propor no Senado uma devassa sobre o uso de financiamento de organismos internacionais, como a Agência de Cooperação Alemã (GTZ), destinados a ações sociais e de demarcação de terras indígenas no país.332

Neste caso, no próprio título do artigo nota-se a referência à GTZ como um

investidor alemão, atribuindo-lhe uma definição indevida de banco internacional de 331 Entrevista concedida em Belo Horizonte, em 08/01/2007.. 332 Araújo, Chico. “Funai sofre ingerência de investidor alemão”, Jornal de Brasília, 07/03/2004, p.7.

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investimentos. Além do equívoco, esta atribuição à GTZ de papel de organismo

financeiro favorece a construção da sua imagem negativa por alguns grupos no Brasil que

a associam a instituições capitalistas e exploradoras de recursos naturais da floresta.

Associam-na também ao perfil já desgastado do Banco Mundial enquanto organismo

multilateral de financiamento com experiência na área ambiental, sendo seus projetos

muito criticados por falta de transparência e de participação da sociedade civil.

Em outra reportagem, notamos mais uma vez a confusão de associar o

financiamento do processo de demarcação Waiãpi à GTZ, quando na verdade o

financiamento refere-se a atribuições da chamada “agência alemã de cooperação

financeira”, ou banco alemão de desenvolvimento, o KfW:333

A Alemanha, através da GTZ – Sociedade de Cooperação Técnica, empregou um milhão e meio de marcos na demarcação da área. Este financiamento faz parte de um acordo internacional entre o Grupo dos sete países mais ricos e o Brasil para execução do Programa Piloto de Proteção das Florestas Tropicais.

Os recursos empregados na demarcação da terra indígena Waiãpi foram

disponibilizados pelo governo alemão através do banco KfW, e o acompanhamento

“técnico” do processo foi feito pela GTZ, sendo neste caso, como em todos os outros

projetos do PPG-7, recursos de doação e não de financiamento, estes últimos incorrendo

no pagamento de encargos financeiros e juros. No entanto, tais esclarecimentos não são

feitos nas reportagens de jornais ou mesmo em alguns trabalhos acadêmicos, nos quais

também encontramos referências à GTZ como instituição financiadora de projetos e

programas:

A Sociedade Alemã de Cooperação, GTZ, financiadora do projeto de demarcação Waiãpi, por exemplo, estimulou a criação de uma organização que representasse “os Waiãpi” como um todo e com a qual poderia negociar diretamente enquanto “representante da comunidade indígena”. 334

Nesta afirmação, vimos que a GTZ não tem um papel stricto sensu de

financiadora, mas sim um papel político ativo de negociação direta com os grupos locais, 333 Cavalcanti, Alcinéia. “Índios do Amapá demarcam suas terras”, Folha do Meio Ambiente, Brasília, maio de 1996, p.15. 334 Tinoco, Silvia. “Joviña, cacique ou presidente? Uma aproximação ao Conselho das Aldeias Waiãpi”. In: Arquivos do Museu Nacional. Rio de Janeiro: Museu Nacional, vol. 61(2), p.81-87, abril/junho de 2003.

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no caso, os Waiãpi, o que bem reflete aquela que se define em sua função oficial como

agência de cooperação técnica do governo alemão.

Deutsche Gesellschaft für Technische Zusammenarbeit traduz-se no Brasil por

Sociedade Alemã de Cooperação Técnica, mais recentemente denominada de Agência de

Cooperação Técnica Alemã. A GTZ não é uma ONG nem financia projetos, mas define-

se em termos legais como pessoa jurídica na forma de uma sociedade de responsabilidade

limitada (em alemão a sigla para sociedade limitada, Ltda., é GmbH), uma empresa

pública de direitos privados cujo único sócio é o governo federal da Alemanha. Pelas

atribuições a ela delegadas por este governo, presta serviços de cooperação técnica em

projetos públicos, além de outros particulares visando ao lucro. Muitas podem ser as

indefinições ou definições da GTZ quanto ao seu aspecto público ou privado, no entanto,

quanto à sua orientação global, não restam dúvidas de que o apoio a projetos públicos

seja o elemento central de sua função do ponto de vista do governo alemão. Temos,

então, uma instituição de identidade múltipla.

A GTZ foi criada em 1975 com a fusão de duas instituições, a Corporação Alemã

para Assistência Técnica a Países em Desenvolvimento (German Corporation for

Technical Assistance to Developing Countries) - GAWI e a Agência Federal para Ajuda

ao Desenvolvimento (Federal Agency for Development Aid) – BfE, cujas atribuições

quanto à assistência e ajuda ao desenvolvimento já estavam definidas e postas em

prática, sendo diretamente transferidas à nova organização criada.335

Como foi dito, o ponto central que caracteriza a GTZ como agência pública é a

sua atuação em setores de governo através de programas, mantendo-se legalmente, no

entanto, como uma organização de direito privado, uma empresa de grande porte que

vende serviços de administração, planejamento e execução de projetos para o governo

alemão e para governos de Estados estrangeiros, além de atuar também junto a

organismos internacionais e no setor privado.

Por meio de um contrato geral de execução dos projetos de cooperação técnica, o

BMZ, seu principal cliente, transferiu-lhe a atribuição dos serviços de cooperação técnica

para o desenvolvimento em todo o mundo, utilizando recursos do orçamento federal. Este

acordo geral constitui a base para a sua atuação como agência específica de um setor da

335 Embaixada da Alemanha, opus cit., p.12.

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administração pública responsável pela cooperação para o desenvolvimento, uma política

conexa à política externa do governo alemão, e para a sua remuneração pelo BMZ, de

acordo com as disposições do direito aplicável às ordens públicas.336 Alguns relacionam

os objetivos de política externa ao papel desempenhado pelas instituições do BMZ, como

a GTZ, como se elas favorecessem, na execução da política de cooperação para o

desenvolvimento, os objetivos da política externa alemã. Sobre isto, diz um antigo

funcionário da GTZ: “Sempre foi falado: a cooperação técnica da Alemanha não tem

nada a ver com a política externa da Alemanha, não. Teoricamente. Porque se realmente

na prática isso fosse aplicado, então a GTZ teria projetos em Cuba. E não tem”.

A GTZ não possui um CNPJ que possa utilizar para contratação de serviços,

compra de equipamentos ou contratação de pessoal nos serviços que presta, atuando

conexa à embaixada da Alemanha, que é a instância jurídica representativa da GTZ no

Brasil, e cria, juntamente com o escritório do KfW, um quadro institucional

representativo dos interesses do BMZ neste país, na medida em que são estas as

instituições diretamente responsáveis pela execução da política deste ministério no

exterior.

O vínculo da GTZ ao CNPJ da embaixada da Alemanha não é temporário, ou

resultado de uma fragilidade institucional da GTZ no Brasil, mas uma característica da

constituição da estrutura organizacional da política de cooperação para o

desenvolvimento da Alemanha. O fato de a GTZ não ter no Brasil um CNPJ é, em alguns

casos, motivo de consternação. Os recibos apresentados por prestação de serviços ou por

ocasião da contratação de serviços locais não têm CNPJ e algumas empresas no Brasil

criam embaraços em função das normas brasileiras referentes à prestação de contas e ao

pagamento de impostos por empresas privadas de serviços. A autonomia jurídica da GTZ

em relação à embaixada tem sido discutida na sede da agência no Brasil, o que exigiria o

registro de um CNPJ independente; no entanto, esta não foi, até o término de minha

pesquisa, uma prioridade.337

336 GTZ, Compêndio do vocabulário da GTZ, opus cit., p.90-91. 337 Soube por um funcionário da GTZ que há uma demanda para que se regularize a situação do CNPJ da empresa, mas afirmou que muitas vezes ele tem que interromper esse trabalho para atender a outras solicitações da diretoria, que “não está interessada em mexer nisso”.

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A GTZ não se configura, portanto, como uma estatal, mas seu caráter público se

deve ao fato de ser propriedade da República Federal da Alemanha e de atender às

demandas do governo federal prestando serviços de “utilidade pública”, estando isenta no

Brasil de IRPJ e de outras tributações, com exceção da aplicação de taxa reduzida de

imposto ICMS. Não é permitida a distribuição de lucros em seu contrato social e afirma-

se que os recursos obtidos com lucro em serviços prestados a terceiros, ou seja, outras

instituições que não o BMZ, são revertidos para os projetos de cooperação técnica

executados.

Paralelamente aos serviços que presta ao BMZ, a GTZ dá consultoria privada para

empresas ou órgãos públicos, serviços que são cobrados, o que é chamado de atividades

“contra pagamento”, concorrendo com outras empresas no mercado internacional de

consultorias técnicas privadas na área de planejamento e execução de projetos

ambientais, agrícolas, sociais, de saneamento, de planejamento urbano, de organização

institucional, entre outros.

Tanto em serviços públicos como em consultorias remuneradas é exigido o

consentimento prévio do BMZ, como no caso dos contratos com o governo federal

diretamente estabelecidos com este ministério. As chamadas medidas autofinanciadas são

atividades de pequeno porte, executadas com recursos advindos de lucros reinvestidos, já

que a GTZ não pode distribuir os lucros eventualmente obtidos com suas atividades de

utilidade pública ou não.338

Há uma forte analogia dos termos empregados pela GTZ e o tipo de serviço que

presta stricto sensu a empresas, como o uso de clientes, denominação que pode ser dada a

todos aqueles que contratam os seus serviços.

Outro termo freqüentemente usado pela GTZ é comitentes, para referir-se à

organização executora do projeto no país parceiro, normalmente, órgãos de governo. Do

mesmo modo, uma expressão que vem da área de marketing empresarial é grupo-alvo,

referente ao grupo para o qual se direcionam as ações e as atividades de programas e

projetos.

São, pois, clientes da GTZ governos nacionais e organismos internacionais, como

UE, BM, BID e agências das Nações Unidas. Neste último caso, ela teria um perfil mais

338 GTZ, Compêndio do vocabulário da GTZ, opus cit., p.135.

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agressivo, concorrendo em licitações nos países, visando ao lucro e à competitividade

internacional. Os contratos são realizados diretamente entre empresas, não passando pelo

BMZ, segundo um de seus representantes no Brasil.339 Nos serviços internacionais, os

consultores enviados têm contratos de curto prazo e não têm imunidade diplomática, o

que se dá na cooperação técnica, na qual os peritos têm passaporte e visto oficial.

Nem sempre a GTZ desenvolve esses serviços internacionais, como foi o caso do

Brasil, em que se tentou implementá-los mas a demanda por tais serviços não foi

suficiente, de acordo com as expectativas da sede da GTZ na Alemanha. Foi estabelecido

um teto mínimo para viabilizar as negociações de projetos, funcionando o escritório em

Brasília, entre 2002 e 2003, como ponto de interlocução, o que não foi possível. Em outra

passagem, esta informação me foi confirmada por um antigo e experiente funcionário da

GTZ que, ao ser consultado pela diretora da agência sobre como alcançar a meta de

implantar os chamados serviços de terceiros no Brasil, disse de forma direta o que

pensava em relação a isso:340

Você não vai conseguir isso nunca, porque não tem tempo, não tem gente e a GTZ não é credenciada no Brasil como empresa de consultoria. Então jamais vai concorrer com empresas grandes, Andrade Gutierrez, que tem uma gama de gente que, quando é uma concorrência internacional, o povo trabalha 24 horas por dia para conseguir fazer a proposta. Não vou dizer que a GTZ não consegue fazer isso, mas até que consiga juntar o pessoal para fazer isso, a GTZ vai demorar e tinha que ter uns quatro, cinco caras bons em Brasília, que ficassem sempre ligados onde houvesse novos projetos, BM, BID, empresas privadas. Aí ela falou: “então você acha que eu não vou conseguir nada?” Olha, se você consegue migalha, pode ficar satisfeita. Dois milhões de dólares. Conseguiu 500 mil dólares em um projeto do ICA no projeto no nordeste. Consultoria é assim, quando apita você tem que correr, quem chegar primeiro é considerado, não é como na GTZ, aquele pessoal tranqüilo, de gravata.

339 Entrevista com o vice-diretor do escritório da GTZ no Brasil, em sua sala na sede da GTZ, Brasil, junho de 2004. 340 Ern entrevista concedida em Belo Horizonte, em 08/01/2007.

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A estrutura internacional da GTZ

A GTZ opera de forma discreta em relação à sua identidade de agência estatal

alemã, como também quanto ao seu tamanho e capacidade de atuação. O organograma da

GTZ apresenta a estrutura da empresa e os países em que possui escritório.341 São oito

diretorias, assim definidas: Tecnologia de Informação, Comunicação Corporativa,

Auditoria, Desenvolvimento Corporativo, Assuntos Legais/Seguro, Centro para Migração

Internacional e Desenvolvimento (Centrum für Internationale Migration und

Entwicklung) - CIM, AgenZ (Market-oriented concepts) e Avaliação. Além destes, são

sete os departamentos, divididos por região e por temas: Departamento de Países da

África, Depto. de Países da Ásia, Pacífico e América Latina e Caribe, Depto. de Países do

Mediterrâneo, Europa e Ásia Central, Depto. de Planejamento e Desenvolvimento,

Assuntos de Comércio, Depto. Pessoal e Serviços Internacionais. Entre os 67 países que

têm escritórios da GTZ, 29 estão na região da África, a que concentra o maior número de

escritórios, 11 entre os países da Ásia e Pacífico, 14 na América Latina e Caribe, entre os

quais está Brasília, e nove na região do Mediterrâneo, Europa e Ásia Central.

Apesar de uma apresentação discreta nos países onde atua por meio de um

pequeno escritório de representação, quase invisível na verdade, é uma agência estatal

que trabalha como uma grande corporação e emprega atualmente mais de 10 mil

funcionários em 130 países da África, da Ásia, da América Latina e dos países da Europa

Oriental. Nestas regiões, a GTZ possui escritórios próprios de representação em 63

países, como no caso do Brasil, e elabora aproximadamente 2.700 projetos e programas

de desenvolvimento no mundo, nos quais os seus funcionários desempenham as

atividades de coordenação dos programas em andamento.342

Na Alemanha, seu país de origem, a GTZ possui três bases: a sede da GTZ é em

Eschborn, mas tem escritórios também em Bonn, antiga capital, e em Berlim; além

destes, possui um escritório na Bélgica, em Bruxelas, aberto em 1993 para acompanhar o

trabalho junto à Comissão Européia, sendo que mais de 1 mil funcionários trabalham na

sede da Alemanha, em Eschborn. 341 Ver http://www.gtz.de. Acesso em 15/07/2004. 342 GTZ A GTZ no Brasil. Folder, sem data, p.1. Ver Organograma da GTZ em folha anexa a seguir, sem numeração

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Cooperação técnica

Como foi colocado anteriormente, o trabalho desenvolvido pela GTZ no Brasil

define-se pela expressão cooperação técnica. De maneira geral, o sentido que é atribuído

ao termo técnico pelas publicações da GTZ343 relaciona-se ao fato de que nas atividades

desenvolvidas são priorizados o desenvolvimento e o aperfeiçoamento das práticas, das

atividades entendidas enquanto procedimentos, métodos, modo de fazer, de executar. O

objetivo das atividades seria o aumento da produtividade nos diferentes setores, da

agricultura e da pecuária à indústria e aos serviços.

Além disso, o termo “técnico”, que qualifica e especifica que tipo de cooperação é

feita, tem também o sentido de aplicação a atividades de ensino de técnicas de

intervenção no plano prático, e não teórico, bem como o de neutralização da aparência de

qualquer ”efeito de poder”. A execução de atividades práticas reforça a priorização

atribuída aos procedimentos, aos modos de fazer, às técnicas, como podemos ver na

menção que se faz ao desenvolvimento de oficinas de capacitação no projeto Pindorama,

em Alagoas: “Além de capacitação para os agricultores, foram construídas inúmeras

oficinas (por exemplo, marcenaria, serralheria), pequenas empresas (por exemplo, fábrica

de saibro) e o centro de formação da cooperativa”.344

Formalmente instituída pelo Acordo Básico de Cooperação Técnica assinado

entre Brasil e Alemanha, a cooperação técnica oferecida por uma agência estrangeira

deve ocorrer por meio de:

envio de instrutores, consultores, peritos, especialistas, assistentes de projetos, pessoal auxiliar e outros técnicos (técnicos enviados); contratação de técnicos locais, pessoal administrativo e pessoal auxiliar (contratados locais); fornecimento de equipamentos (material, bibliografia e veículos automotores); formação e aperfeiçoamento de técnicos no Brasil, na Alemanha ou em outros países; contribuições financeiras concedidas em caráter excepcional a órgãos executores de projetos acordados. 345

343 Embaixada da Alemanha. 40 anos de Cooperação para o Desenvolvimento Brasil-Alemanha, opus cit. 344 Idem, p.18. 345 “Acordo Básico de Cooperação Técnica entre Brasil e Alemanha”, 1996, Artigo 3º.

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A atribuição da GTZ para a política de cooperação para o desenvolvimento é, em

síntese, a transferência de know-how.346 Como disse uma ex-perita da GTZ: 347 “Eu acho

que a coisa mais importante nos projetos de cooperação técnica é a transferência de

conhecimento, de técnicas, tecnologias, de conhecimento, não é só dar o equipamento. Se

você não transferir conhecimento, não adianta nada”.

Outro antigo perito alemão, já aposentado, define o termo como “troca de

experiência”: 348 “Nós cooperamos muito bem com eles, sem problema nenhum, sabe, uma

cooperação sadia, troca de experiências, planejamento, planejamento em conjunto”.

As atividades da cooperação técnica para o desenvolvimento são o gerenciamento

na execução de projetos e programas destinados a capacitar os indivíduos e as

organizações por meio de treinamentos de técnicos e quadros executivos locais no Brasil

e no exterior, principalmente na Alemanha. Para isso, promovem o deslocamento de

consultores, peritos e outros profissionais em cargos ditos técnicos, além do fornecimento

de equipamentos e materiais.349

Em alguns outros casos, há menção à atribuição de a GTZ ser a responsável pela

implementação da contribuição alemã, através dos recursos da cooperação financeira

vindos através do KfW, como ocorreu no caso do PPTAL. Neste caso, houve um acordo

formalizado entre governo brasileiro, KfW e GTZ para que esta controlasse o fluxo de

recursos financeiros para a instituição brasileira, de forma que este controle fosse feito

segundo metas e princípios acordados previamente. Isto não nos permite, de forma

nenhuma, afirmar que não tenha sido uma imposição da instituição financeira alemã

como mecanismo de poder e controle das atividades, justificada com o argumento de que

instituições brasileiras não têm competência para gestão de recursos financeiros de

projetos. Para uma experiente perita alemã que atuava em um projeto com populações

indígenas, esta não é uma regra: 350

346 Embaixada da Alemanha no Brasil/Bmz/Gtz. Política de cooperação para o desenvolvimento Brasil-Alemanha. Folder, sem data, p.11. 347 Em entrevista concedida em São Paulo, em 22/01/2007. 348 Ern entrevista concedida em Belo Horizonte, em 08/01/2007. 349 GTZ. Compêndio do vocabulário da GTZ, opus cit., p.39-43. 350 A perita é doutora em Antropologia, com vasta experiência junto a GTZ, mas com pouco tempo trabalhando no Brasil. Entrevista em Manaus, em 2 de setembro de 2005.

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O PPTAL e o PDPI são dois projetos que têm a especificidade de a GTZ assumir os compromissos da cooperação financeira do KfW. Não acontece assim em todos os projetos e não acontece assim em todos os países. Normalmente, a GTZ trabalha sozinha. É complicado que o perito da GTZ controle os recursos do KfW.

Seu objetivo geral é atuar junto a instituições e pessoas, procurando expandir sua

capacidade de ação no contexto das metas de desenvolvimento. O objetivo específico visa

fortalecer as iniciativas por tempo limitado, até que os beneficiados alcancem uma

situação que lhes permita prescindir do aporte externo.

Enquanto agência de cooperação técnica, a GTZ transmite conhecimentos, desenvolve capacidades, mobiliza e melhora condições para uso dos países parceiros, além de fortalecer a iniciativa própria dos grupos-alvo, para que eles possam melhorar suas condições de vida por esforço próprio.351

Em publicações da própria GTZ, define-se a sua atribuição institucional como:

“Um instrumento de aprendizagem conjunta; apoio a iniciativas inovadoras de

desenvolvimento”.352

De maneira geral, o sentido que é atribuído ao termo técnico pelas publicações da

GTZ353 relaciona-se ao fato de que nas atividades desenvolvidas são priorizados o

desenvolvimento e o aperfeiçoamento das práticas.

Diretrizes e princípios da cooperação técnica alemã

As áreas temáticas centrais que definem o trabalho da cooperação técnica alemã

seguem uma orientação mais ampla estabelecida pelo BMZ, como vimos anteriormente.

Elas se pautam pelos princípios de respeito aos direitos humanos; participação da

população; princípio do Estado de direito; economia social de mercado e orientação do

Estado para o desenvolvimento. São estas orientações, mutáveis a cada redefinição da

351 Embaixada da Alemanha no Brasil/BMZ/GTZ, ibidem. 352 Idem. 353 Embaixada da Alemanha. 40 anos de cooperação para o desenvolvimento Brasil-Alemanha, opus cit.

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política alemã diante de situações da política internacional, que se reproduzem para todas

as agências sob a sua institucionalidade.

A maioria dos documentos disponíveis a um público externo no escritório da GTZ

no Brasil é produzida pela própria agência ou pelas equipes dos projetos. São folders

institucionais de apresentação de programas e projetos, livros de divulgação de seus

resultados e de metodologias adotadas nos trabalhos da agência, ensaios e avaliações de

consultores da própria GTZ. Esses documentos promovem a visibilidade e a difusão dos

trabalhos que a agência desenvolve, representando-os com resultados cuidadosamente

construídos como meritórios. Utilizei nessa análise especialmente os documentos oficiais

da BMZ e da GTZ que apresentam formulações e definições sobre cooperação para o

desenvolvimento, e outras expressões usuais no léxico deste campo de políticas para o

mundo em desenvolvimento, como revistas especializadas produzidas pela GTZ e o site

do BMZ, que somente a partir de agosto de 2005 foi atualizado para o inglês, mas ainda

hoje com algumas páginas sem tradução para esta língua.

Não foram encontradas muitas publicações dos projetos desenvolvidos nos anos

60 e 70, sendo mais freqüentes as publicações recentes, dos anos 80 em diante,

especialmente as dos anos 90 até 2005. A área em que há maior concentração de

publicações é a do meio ambiente – urbano e florestal – já que esta se tornou uma

prioridade da atuação da agência no Brasil nesse período.

No contexto deste processo de reestruturação, a GTZ, como empresa que atua em nível internacional, atribui grande importância à compreensão comum e à utilização unívoca da linguagem. Por um lado, esta linguagem constitui a base e, ao mesmo tempo, também é a expressão de uma cultura empresarial comum e, por outro lado, ela é o instrumento do nosso trabalho. Neste sentido, o Compêndio do vocabulário da GTZ deverá contribuir para a orientação dos colaboradores e a facilitação da comunicação entre estes e os nossos parceiros.354

Com o objetivo de estabelecer uma linguagem administrativa comum entre os

funcionários da GTZ, ao se considerar que sua área de atuação tem abrangência global,

facilitando a comunicação entre os funcionários e a central e orientando-os, assim como

os “parceiros”, foi produzido o Compêndio do vocabulário da GTZ, publicação que serve

como manual de consulta aos funcionários e é um dos documentos centrais para a análise

354 Donner, Franziska. “Apresentação”. In: GTZ Compêndio do vocabulário da GTZ, opus cit., p.3.

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dos conceitos que balizam a cooperação técnica alemã, de grande relevância para uso

interno nos escritórios da GTZ em todos os países onde atua. O Compêndio foi publicado

na Alemanha, em Eschborn, em 1997, para divulgar o trabalho da GTZ.

Fonte: GTZ. Compêndio do vocabulário da GTZ, opus cit..

Em função da maior atribuição de responsabilidade aos escritórios locais, foi

exigida uma padronização da linguagem, no sentido de termos, verbetes, conceitos

usados, considerada fundamental para a consolidação de uma cultura empresarial. Esta é

uma chave para entendermos a lógica administrativa de uma organização que gerencia

globalmente, e de consolidar práticas e valores comuns. Como argumenta Wright, uma

das formas de se abordar cultura nos estudos de organizações é aquela que se refere aos

valores e às práticas organizacionais formais que são impostas pela administração – a

cultura da empresa – uma espécie de elemento aglutinador que faria com que o quadro de

funcionários respondesse às mudanças internacionais como um conjunto. Uma “cultura

da organização” bem estruturada é considerada uma condição de sucesso no setor

privado, sendo atualmente adotada também em órgãos governamentais e ONGs.355

Segundo relatos da própria ABC e de pessoas envolvidas nos projetos em que há

cooperação técnica alemã, as metodologias participativas são um mérito da cooperação

alemã e vêm sendo aplicadas nas equipes de órgãos de governo e nas populações com as

355 Wright, Susan. “Culture in anthropology and organizational studies”. In: ______. (org.). Anthropology of Organizations, opus cit., p.2-3.

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quais se trabalha, os chamados grupos-alvo. A participação seria a marca da cooperação

alemã em face das outras, o que seria uma forma de se diferenciar quanto à qualidade do

trabalho e de se posicionar em situação hierarquicamente superior no quadro das agências

de desenvolvimento. A cooperação alemã é representada a partir de seu caráter

essencialmente participativo, sendo atribuído aos alemães o desenvolvimento de uma

metodologia com esse perfil: o Planejamento de Projetos Orientado por Objetivos (Ziel

Orientierten Projekt Planung) - ZOPP.356

A discussão sobre planejamento levou a GTZ a desenvolver, em 1970, uma

metodologia de planejamento e gerenciamento de projetos orientada por objetivos

baseado em “logical framework approach”357, uma ferramenta utilizada pela maior parte

dos organismos que atuam na cooperação para o desenvolvimento, que tem por finalidade

básica enquadrar toda a estrutura de um projeto em uma matriz lógica, o que em si

obscurece toda a face de negociação, conflito e conciliação permanentes em qualquer

atividade social.

Fonte: Embaixada da Alemanha. 40 anos de cooperação para o desenvolvimento Brasil-Alemanha, opus cit., p.82.

O ZOPP é aplicado por meio de cursos ou oficinas junto a integrantes de um

mesmo projeto, de uma equipe de trabalho, de uma repartição, de uma mesma área ou de

356 O método ZOPP deve ser compreendido como estrutura básica de planejamento da GTZ. Muitos de seus peritos argumentaram que os guias de orientação ZOPP foram publicados há quase 10 anos e que a própria metodologia já não corresponde mais à atualidade. Mais recentemente, utiliza-se o termo ZOPP em um sentido mais amplo, isto é, ele já não se limita mais à mera descrição de uma determinada seqüência de operações prescritas. 357 GTZ/DSE. Programa de Métodos e Técnicas de Gerenciamento de Projetos – 1993, p. 2.

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áreas afins em uma empresa, órgão de governo ou comunidade de pessoas. A proposta do

ZOPP é fazer com que os participantes até mesmo os mais tímidos ou críticos,

participem e se expressem, utilizando cartões nos quais escrevem suas opiniões. Adota-se

o método Metaplan, em que se colocam em um grande painel fichas referentes aos

objetivos e às metas que se pretende alcançar com o planejamento, um dos métodos de

“dinâmicas de grupo”que tem origem franco-alemã e que adota instrumentos de

visualização, de trabalho e de moderação de grupos. Para estimular a comunicação e a

visualização de “problemas”, usam-se fichas nos quais os participantes escrevem o que

pensam sobre os problemas e as soluções, as quais serão colocadas em exposição em

quadros e painéis para que todos os participantes vejam Um moderador, profissionais de

consultoria independente que prestam serviço à GTZ, coordenam a dinâmica de grupo

para que dali saia um planejamento orientado por objetivos, em síntese, o ZOPP.358

Através do ZOPP, mas não somente, a GTZ é identificada com os princípios da

participação. É considerado um instrumento para planejamento participativo, na medida

em que se orienta para as necessidades dos parceiros e permite a exposição de suas

opiniões e contribuições de forma clara.

Há muitas críticas no Brasil à metodologia de participação aplicada em oficinas e

seminários com as fichas e painéis por serem muito indutivos e sistemáticos diante da

informalidade do Brasil. Alguns dizem que “serve pros alemães”.

Muitas críticas vindas não só do Brasil, referentes à eficácia dos modelos até

então adotados pela cooperação bilateral e à falta de flexibilidade de gerenciamento dos

projetos da GTZ levou ao desenvolvimento, a partir de 2003, de um outro formato de

projetos, uma nova metodologia, chamada AURA, em que os procedimentos orientam-se

para impactos, mudanças de estado resultantes de uma intervenção intencional, o que visa

garantir maior flexibilidade em relação aos resultados e assim maior sucesso com os

projetos desenvolvidos.359.

358 Franziska Donner “Questões Fundamentais do Desenvolvimento Empresarial”, em: GTZ. ZOPP Planejamento de Projetos Orientado por Objetivos: Um Guia de Orientação para o Planejamento de Projetos Novos e em Andamento, Eschborn, Frankfurt am Main: GTZ, 1998. 359 Diante de uma maior complexidade dos projetos de cooperação internacional, entende-se que os modelos lineares de inovação (pesquisa-disseminação-aplicação) simplificam demais os processos de inovação, que passam a ser entendidos a partir do conceito de “redes de inovação”, resultantes de processos de interação social.

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Além das metodologias referentes a planejamento de projetos, há também aquelas

de desenvolvimento participativo, criadas em função do reconhecimento da importância

da participação dos grupos-alvo (beneficiários) nos processos de implementação dos

projetos no campo para que se obtenha resultados eficazes e duradouros. Afirma-se que

as contribuições externas devem impulsionar e estimular as iniciativas locais e nunca

substituí-las. Algumas metodologias citadas pela GTZ são: Diagnóstico Rural

Participativo (DRP), e suas variações (diagnóstico Urbano Participativo, Diagnóstico

Organizacional Participativo), Diagnóstico Rural Rápido (DRR), entre outros.360

Tais esforços, no entanto, não foram suficientes para que a GTZ obtivesse

resultados positivos em desenvolvimento rural. No entanto, um argumento que

fundamenta a lógica do contínuo investimento das agências internacionais de cooperação

técnica seria o fato de que os projetos de cooperação técnica para o desenvolvimento são

experiências “de laboratório”, onde as inovações são testadas em “projetos-piloto” nos

chamados países em desenvolvimento. A partir de avaliações de resultados e de impactos,

as agências disseminam experiências e implementam as metodologias e princípios de

ação em outras regiões e realizam estudos comparativos. As práticas e discursos

garantem a essas agências o know-how, o conhecimento que é instrumento de poder e

capacidade de inserção em projetos de cooperação técnica no mundo todo.

Se o foco deste trabalho não se define por uma abordagem geral das categorias

usadas pelas agências alemãs no mundo, estas nos interessam, no entanto, na medida em

que possam contribuir para a compreensão daqueles conceitos que são particularmente

usados para balizar as intervenções e os projetos de cooperação com o Brasil. Assim,

entre esses temas gerais, o governo alemão estabelece alguns particulares para o caso

brasileiro. Isto se dá não só porque o Brasil venha a representar no futuro um lugar de

intervenção nas relações internacionais como a principal reserva de biodiversidade,

recursos hídricos e minerais do planeta, mas também pelo que historicamente vem se

construindo nas relações diplomáticas, comerciais e científicas com a Alemanha e outros

países.

Na sua fase inicial (anos 60-70), a cooperação técnica alemã transmitia

tecnologias e experiências de pequenos produtores alemães para produtores em países

360 Idem, p.293-294.

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africanos e asiáticos, principalmente como apoio a empresas rurais e visando à utilização

de máquinas.361 A preocupação com a participação das populações (beneficiários dos

projetos) no desenvolvimento já apareceria em 1982, baseada em duas décadas de

experiência em projetos de desenvolvimento agrícola e rural nessas regiões, promovendo-

se assim a noção de desenvolvimento rural regional, em que estariam presentes a

participação, a integração e a sustentabilidade e a flexibilização dos procedimentos de

cooperação. No relato de um perito alemão que acompanhou os projetos da GTZ no

Brasil desde os anos 70, a sua percepção sobre a forma de atuação da GTZ aponta

mudanças em relação à maior participação da população local em atividades dos projetos,

devido em grande parte às críticas dos próprios grupos locais:362

O povo falava: “Bem, vocês fizeram aqui, com apoio do governo, dentro da estação funciona, mas no nosso campo, funciona?” Então, a GTZ e o BMZ saíam. Isso foi nos primeiros 20 anos da cooperação. Depois eles chegaram à conclusão que não dá. Tanto que o primeiro projeto em que trabalhei no Brasil já era de “Ownfarmer Research”. Você já fazia experimentação em nível da propriedade rural, saía da estação experimental. Porque o agricultor quer ver o que você faz, ele quer presenciar. Porque se você faz na estação experimental, eles dizem: “Não, porque vocês têm alguém que espanta os passarinhos, tem alguém que espanta os ratos. Tem dinheiro para aplicar fungicidas e herbicidas e inseticidas”. Então, ele não acredita muito. Agora, se você faz na propriedade dele, faz dias de campo pra mostrar: isso aqui é arroz irrigado, isso tá dando 5 mil kg, 10-12 mil. Ele acredita mais. [...] A cooperação chegou a evoluir para mostrar, pra trabalhar junto e não para trabalhar só com uma elite e depois tentar passar para os, vamos supor, usuários (grifos meus).

Dessa forma, a participação pode ser considerada, de maneira essencial, um

instrumento para atingir a eficácia dos resultados e alcançar os objetivos de um projeto.

Mais recentemente, a noção de participação dos beneficiários de um projeto (ou grupo-

alvo) tem sido adotada para todas as etapas do ciclo do projeto, e deve fomentar

iniciativas já existentes. Participação é, portanto, um fator de apropriação do projeto e de

maior probabilidade da sua sustentabilidade após a interrupção dos fluxos de cooperação

para o desenvolvimento.

361 GTZ-BMZ. Desenvolvimento rural regional: princípios de orientação. Sonderpublikation der GTZ, nº 193. Eschborn: BMZ, 1987, p.10. A publicação apresenta como documento de referência a Resolução Comum dos grupos parlamentares, datada de 05/03/1982, sobre o 4o. Relatório de Política de Desenvolvimento do governo alemão. 362 Entrevista concedida em janeiro de 2007, em Belo Horizonte.

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Mas se a participação é um termo central no vocabulário da GTZ e uma noção

operacional central, como podemos avaliar a sua atuação no Brasil?

A visão sobre a GTZ no Brasil

No Brasil, encontram-se registros de projetos desenvolvidos antes mesmo da

assinatura do “Acordo Básico de Cooperação Técnica entre Brasil e Alemanha”, de 1963,

que estabeleceu as bases fundamentais desta relação. Entre eles, foram destacados em

publicação que celebrava a memória da cooperação para o desenvolvimento com o Brasil

alguns projetos, talvez exemplares: os de cooperação técnica com a Escola Técnica de

São Bernardo do Campo, SP, em 1961; o da Cooperativa de Assentamento e Colonização

Pindorama, 1962, em Alagoas; o de formação do Grupo de Trabalho Cartográfico, com a

Sudene, 1962, em Pernambuco; o da Missão Hidrogeológica e projetos associados, 1962,

também em Pernambuco. A maioria dos projetos é dos nos anos 60, entre 1964-1969, e

são relacionados à agricultura – organização de associação agrícola, implantação de

estação experimental para a agricultura, desenvolvimento de técnicas agrícolas, entre

outros, todos em estados do sul do país.363

Fonte: GTZ A GTZ no Brasil. Folder, sem data.

363 Embaixada da Alemanha. 40 anos de cooperação para o desenvolvimento Brasil-Alemanha, opus cit., p.161.

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No livro publicado nas comemorações dos 40 anos de cooperação, que conta a

versão oficial alemã desta história, a referência aos projetos é narrada de forma

romantizada, em capítulos que abrangem uma década cada um. Em relação à década de

60, o livro menciona que:364

o início da cooperação se deu antes da assinatura do acordo básico, no final do ano de 1963, e se caracterizou pela concentração das forças no acompanhamento e apoio à agricultura. Concentrou-se no sul do Brasil, onde as condições eram semelhantes às condições na Europa Central. Além disso, a cooperação alemã encontrou no sul parceiros brasileiros cujos antepassados emigraram da Europa Central para o Brasil.

Nota-se nesta passagem que projetos para o desenvolvimento voltados para

melhorias técnicas na agricultura foram uma prioridade nos anos 60, o que seria

progressivamente reduzido no caso brasileiro.365 O fato de haver descendentes de alemães

no sul do Brasil parece não ter sido um critério determinante para o direcionamento de

projetos para a região Sul do país, mas pode ser considerado um “facilitador”, na medida

em que havia uma afinidade cultural que contribuía para alimentar as expectativas de que

os projetos fossem bem executados. No entanto, não foi mencionada a existência de

descendentes de alemães no sul do Brasil. Quando perguntei a um antigo perito da GTZ

se havia, nessa fase inicial, alguma relação entre os projetos para esta região e a maior

concentração ali de alemães, registramos, a princípio, a sua negativa e, depois, a

confirmação de haver certo direcionamento para este grupo. Enfatizou, todavia, que era

um processo soberano, “baseado na solicitação brasileira”, recorrendo aos argumentos

institucionais de praxe utilizados por aqueles que trabalham nesta área em agências

brasileiras ou alemãs, como podemos atestar:

Nunca a GTZ fez isso, muito menos as igrejas. Porque poderíamos falar assim: “no sul do Brasil tem mais alemães, vamos ajudar eles lá”. Isso não, a GTZ não fez isso não, quer dizer, não a GTZ, o BMZ. Mas não foi assim, não. Era uma coisa bem soberana. Porque isso tem que falar. Lógico, dentro dos projetos, quando se podia atender a esses grupos, sim. Nós tínhamos um projeto lá que era

364 Idem, p.21 365 Na África e na Ásia, onde há uma enorme carência no que se refere à questão alimentar e a produtividade agrícola ainda é baixa, projetos orientados para a agricultura ainda mobilizam muitos recursos financeiros e profissionais.

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de intercâmbio, até hoje funciona: são jovens brasileiros de origem alemã que se profissionalizam na Alemanha, ficam lá um ano e voltam pra cá. O governo da Alemanha custeia. Mas isso era um projetinho. Você tinha projetos nas áreas mais diversas, em todas as áreas tecnológicas, você tinha uns 70 projetos: área de normas, de pesquisa científica, de universidade, agricultura, geologia, alimentação. Então, tinha de tudo e tudo logicamente baseado na solicitação brasileira (grifos meus).

Cooperação menos técnica?

Nos primeiros anos de implementação no Brasil da política de cooperação técnica

alemã para o desenvolvimento, era priorizada a transmissão de técnicas, métodos,

metodologias, para o que se contratavam profissionais de formação em áreas técnicas

específicas. Havia diretrizes do BMZ para implementar “fazendas experimentais”, que

eram espaços fechados e tratados para que tudo no projeto funcionasse, mas esse método

não foi muito para a frente, porque as pessoas questionavam se fora das fazendas

experimentais também funcionaria.

Segundo ex-funcionários da GTZ, até os anos 90, a ABC considerava a

cooperação alemã quase que exemplar, bastante eficiente, séria e transparente, porque nas

reuniões eram apresentadas tabelas e material estatístico que mostravam os resultados dos

projetos.

Alguns exemplos que foram mencionados por um antigo funcionário da GTZ, que

acompanhou esse processo histórico, referem-se a projetos que tinham por objetivo

aumentar a produção agrícola em tantos por cento, combater uma determinada praga do

café, implantar a produção de maçã ou de soja no Brasil, introduzir novas espécies de

porcos, frangos ou arroz na produção brasileira, desenvolver normas técnicas para a

indústria local. Segundo o funcionário, “este foi o auge da GTZ, quando transferia

tecnologias e não “politicagem”. Para ele: “Agora é trabalhar na distribuição de renda ou

então ajudar a redução da pobreza do Brasil,. Então, você não pode mais medir os efeitos

dos projetos. Você não pode medir se você trabalha no objetivo comum que até o

governo tem, né? É vago”.

Mais recentemente, passaram a valorizar profissionais de formação da área de

humanas, como sociólogos, pedagogos e até teólogos. Para alguns, isto reflete mudanças

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que acompanham uma visão mais abrangente sobre a cooperação internacional; para

outros, reflete uma perda da qualidade do trabalho, porque é menos técnico e de poucos

resultados quantificáveis. “Então eu falei, já que vocês não querem fitopatólogos,

agrônomos, médicos, engenheiros... manda só teólogos, sociólogos, pra ver como é que o

projeto vai”.

Isto mostra uma tendência de reorientação dos objetivos e das propostas da

política de cooperação alemã: a de priorizar cada vez menos os projetos estritamente

técnicos, cujos resultados podem ser quantificáveis e apresentados em tabelas formais.

Esperam-se mais mudanças nos processos, o que nem sempre é perceptível para um

funcionário que tenha uma formação muito técnica no sentido estrito do termo, ou seja,

das ciências exatas ou biológicas.

Temas

Em relação à abrangência de temas e áreas de atuação da GTZ no Brasil, os seus

projetos e programas de desenvolvimento abarcavam diferentes temas, de saneamento

básico à capacitação profissional, passando por formação de cooperativas agrícolas e

assentamentos rurais, desenvolvimento de técnicas agrícolas e apoio ao planejamento em

órgãos e instituições governamentais.

Apesar de haver uma restrição à diversidade de temas, em termos geográficos a

atuação da GTZ vem se diversificando nos últimos tempos: de uma concentração inicial

nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste, a GTZ se expandiu para as regiões Norte e Centro-

Oeste de forma definitiva, sendo possível afirmar que foram desenvolvidos pela agência

projetos em praticamente todas as regiões do Brasil.

Atualmente, o Programa de Cooperação Técnica Brasil-Alemanha tem duas

grandes áreas como prioridades para o Brasil: a área temática de Meio Ambiente e a de

Desenvolvimento Regional Integrado em Áreas Menos Favorecidas.366 É válido

mencionar que a partir de dezembro de 2000, na reunião de negociações

intergovernamentais entre Brasil e Alemanha, a delegação alemã propôs a concentração

de sua atuação nestes dois programas mais amplos, que chamam de “programas guarda- 366 Segundo documento cedido pela ABC, intitulado “Programa de Cooperação Técnica Brasil-Alemanha”, sem data, mas que contém dados de junho de 2002.

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chuva”, concentrados em duas áreas temáticas que denominam os programas:

Desenvolvimento Regional Integrado em Áreas Menos Favorecidas e Proteção Ambiental

e Manejo de Recursos Naturais. O primeiro programa incluiria os programas ProRenda e

Pequenas e Médias Empresas, enquanto do Programa de Proteção Ambiental fariam

parte o PPG-7 e o programa de Gestão Ambiental Urbana e Industrial. Esta proposta foi

justificada pelo interesse em promover maior integração entre os projetos dos respectivos

programas, além de ampliar a visibilidade da cooperação entre os dois países, com o foco

em somente duas linhas.

Trusen, C. e Pinheiro, M.R.Bitar (orgs.). GTZ. “Cooperação entre Brasil e Alemanha Planejando o Desenvolvimento Local: nas Florestas Tropicais Brasileiras.” Folder, Conceitos, Metodologias e Experiências, sem data. Belém: Prorenda Rural, p.107, 2002

A linha de ação para a área ambiental divide-se entre o Programa PPG-7,

orientado prioritariamente para a região amazônica e áreas de ocorrência de Mata

Atlântica, visando à conservação das florestas tropicais, e o Programa de Gestão

Ambiental Urbana e Industrial. No primeiro caso, o foco está na conservação de

ecossistemas florestais e, no último, dirige-se à redução dos impactos poluentes

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associados às vastas concentrações urbanas e ao manejo de resíduos poluentes dos

grandes centros industriais. Ambas as áreas têm um amplo reconhecimento internacional

da qualificação da produção de conhecimentos técnicos e científicos da Alemanha.

Em relação à chamada área temática de Desenvolvimento Regional Integrado em

Áreas Menos Favorecidas, ela se divide entre o Programa Prorenda, denominação que a

partir de 2002 foi substituída pela expressão Desenvolvimento Local Integrado

Sustentado (ou DLIS) e o Programa Indústria, destinado ao aumento da produtividade e

da competitividade das pequenas e médias empresas indústrias.

De acordo com informes oficiais da Alemanha, o Brasil é atualmente o principal

país no programa de cooperação alemã para a América Latina.367 Afirma a ministra do

BMZ, Heidemarie Wieckzorek-Zeul, em publicação recente:368

o trabalho de cooperação com o Brasil se reveste de especial importância, pois o país não é apenas a maior nação em escala regional, mas integra hoje o grupo das dez maiores potências econômicas do planeta, participando decisivamente na condição de ator global na configuração de processos internacionais em benefício dos países em desenvolvimento. Ao mesmo tempo, o contingente ainda muito grande de pobres no Brasil, bem como a ameaça de destruição da floresta tropical úmida nos desafiam ao engajamento.

Como foi salientado pela ministra, apesar de o Brasil não mais se enquadrar entre

os países “em desenvolvimento”, mas sim como “país emergente”, tendo como base as

estatísticas da OCDE,369, ainda assim a questão da pobreza é um tema em função das

desigualdades sociais.

Nesse sentido, a ênfase dos programas para o Brasil está migrando daqueles

tradicionalmente definidos como de “cooperação para desenvolvimento”, destinados à

367 Ainda que não estejam explicitadas nos documentos oficiais da cooperação alemã as razões de ser o Brasil o principal país na América Latina, algumas hipóteses podem ser sugeridas, como a continuidade de condições de pobreza e desigualdades sociais, principalmente fundiárias. A existência das desigualdades sociais justifica a intervenção e a cooperação de agências internacionais, pois estariam associadas a barreiras estruturais internas (políticas, econômicas e sociais). A hipótese que acredito contribuir para a definição do Brasil como prioridade entre os países da América Latina nas relações de cooperação alemãs, embora seja ainda um país “emergente”, se deve à perspectiva de abertura futura de novas frentes de intercâmbio, inclusive comerciais. O histórico das relações diplomáticas entre os dois países também é sublinhado como forte razão para novos acordos de cooperação entre os países; posteriormente, será feita uma abordagem mais específica sobre este assunto. 368 GTZ. 40 anos de cooperação para o desenvolvimento Brasil-Alemanha, opus cit., p.6-7. 369 Estas informações foram obtidas por meio de entrevista com uma importante funcionária da ABC responsável pela cooperação técnica recebida da Alemanha (CTRB), em julho de 2002, em Brasília.

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redução de pobreza, à infra-estrutura (transporte, energia, indústrias de base), à

agricultura e à educação, para projetos direcionados especificamente para a área de meio

ambiente e desenvolvimento sustentável, particularmente tendo como principal destino

para os projetos a Amazônia. Como atesta uma perita alemã:

A América Latina não tem recebido muita atenção como os países africanos e asiáticos, tanto que reduziu o número de assessores nos últimos três anos de 90 para 60.[...] O Brasil não é país-ênfase. Um país-ênfase é classificado assim se tiver três setores de atuação. No Brasil, a ênfase é em meio ambiente. A única justificativa para [a GTZ] estar no Brasil é a floresta, a biodiversidade, a preocupação com isso. No Brasil, o foco não é reforma de Estado, [...] na Bolívia sim, mas não no Brasil (grifos meus).370

A única referência que apresenta os dados sistematizados consta da publicação de

comemoração dos 40 anos entre Brasil e Alemanha.371 O documento, no entanto,

menciona que os projetos listados no livro foram “selecionados” entre os mais

representativos, não sendo, portanto, o número exato de projetos que realmente foram

executados no país. Considerando que esta era a listagem disponível que abrangia larga

extensão temporal e também um número significativo de projetos e, portanto, uma

amostragem representativa, tomei-a como referência para elaborar algumas considerações

sobre os projetos de responsabilidade da GTZ no Brasil, as quais apresento em seguida.

A partir de um total de 139 projetos listados no período que vai desde 1961 a

2003, organizei o quadro abaixo, que mostra uma dispersão dos projetos por década e por

região dos projetos, sendo baseado nos dados que tive disponíveis.

Quadro 1: Número de projetos da GTZ por década e por região (1960-2003)

Década Sul Sudeste Norte Nordeste Centro-oeste Nacional Total 1960 8 3 0 3 0 0 14 1970 18 13 4 7 0 7 49 1980 7 10 1 9 0 3 30

1990-2003 6 10 11 11 1 6 45 Fonte: Embaixada da Alemanha. 40 anos de cooperação para o desenvolvimento Brasil-Alemanha, Brasília: Embaixada da República Federal da Alemanha, 2003, p.160-164.

370 Sondra Wentzel, em entrevista em 2 de setembro de 2005, em Manaus. 371 Embaixada da Alemanha. 40 anos de cooperação para o desenvolvimento Brasil-Alemanha, ibidem, p.160-164.

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Em um primeiro momento, nos anos 60, foi registrado um total de 14 projetos,

concentrados prioritariamente na região Sul (oito deles) e nas regiões Sudeste e Nordeste

em menor escala (três projetos em cada). Nesse período, a agricultura e as cooperativas

agrícolas eram os temas centrais, como também as áreas técnica e de tecnologia. Não

havia projetos destinados para a região Norte e Centro-Oeste. Neste período, os projetos

se dirigiam fundamentalmente para associações agrícolas e cooperativas, escolas técnicas

e universidades, em especial nas áreas de técnicas agrícolas, geologia e hidrologia.

Nos anos 70, houve um aumento de mais de três vezes do total de projetos,

chegando a 49, cuja distribuição regional mantinha um padrão semelhante ao da década

anterior. A região Sul mantinha-se ainda como a mais importante, sendo para ela

destinados 18 projetos. A região Sudeste, de grande importância também, contava com 13

projetos, mas foi para a região Norte que vimos um aumento significativo, para onde

foram destinados cinco projetos, enquanto havia sete projetos para a região Nordeste.

Neste momento, o interesse para a região Norte orientava-se para as áreas de geoquímica,

geofísica, estudo de solos e de produção agrícola, não se relacionando, portanto, às

questões de proteção florestal. A região Centro-Oeste ainda não existia nesta década

como espaço de intervenção para a GTZ.

Durante esta década, e as áreas técnica e tecnológica mantiveram-se como

prioritárias, assim como planejamento urbano, agricultura e pesquisa agrícola, pesca.

Maior incentivo foi dedicado para a cooperação científica e acadêmica, com o

estabelecimento de convênios entre universidades.

Neste período foram elaborados 7 projetos de âmbito nacional no apoio à criação

e desenvolvimento de instituições, como a ESAF (Escola de Administração Fazendária),

criada em 1975 aos moldes de escolas alemãs e o apoio ao DNPM (Departamento

Nacional de Pesquisa Mineral).372

Nos anos 80, o número de projetos regrediu à praticamente a metade da década

anterior, sendo esta tendência apresentada de maneira geral em relação a todas as regiões,

372 Segundo a publicação comemorativa dos 40 anos de cooperação entre Brasil e Alemanha, a ESAF foi criada a partir da idéia de um grupo de bolsistas brasileiros treinados na Alemanha em auditoria fiscal, sendo as negociações encaminhadas pelo Ministério da Fazenda do Brasil e o BMZ. Ver: Embaixada da Alemanha. 40 anos de cooperação para o desenvolvimento Brasil-Alemanha, opus cit., p.31.

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exceto a região nordeste, que apresenta um aumento do número de projetos de 7 para 9

projetos; quanto aos projetos nacionais, estes diminuem de 7 para 3, enquanto no sul, há

uma queda sensível de 18 para somente 8 projetos, no sudeste, de 13 para 10 e na região

Norte, que apresenta somente um projeto durante toda a década.373 Em relação aos

temas, destacam-se a área de planejamento regional e urbano, o apoio a instituições de

pesquisa e centros de formação técnica, além de projetos na área de meio ambiente

urbano e industrial e de proteção de recursos naturais, notando-se uma redução de

projetos para a área agrícola, o que viria a ser a tendência nas décadas seguintes.

Nos anos 90, observamos uma mudança significativa em relação ao interesse para

a área ambiental por parte da GTZ, sendo que dos 46 projetos destacados no período, 20

foram orientados para a temática ambiental, sendo sua orientação para proteção de

recursos naturais. Neste sentido, os projetos foram redefinidos em termos geográficos

para a região Norte em função da prioridade atribuída dada à conservação de florestas.

Como registramos no primeiro capítulo, inserção da GTZ em projetos destinados para a

região amazônica ocorreu particularmente na década de 90, com os projetos do PPG-7.

No Brasil, a questão ambiental, especificamente a conservação da Floresta

Amazônica, assumiu o centro das atenções e, neste sentido, também os povos indígenas,

enquanto habitantes da floresta e detentores de conhecimentos tradicionais sobre os usos

de seus recursos e sobre a gestão de seus territórios. Como o foco destinou-se à questão

ambiental, os projetos e programas para geração de renda em regiões mais pobres, como

o nordeste, foram reduzidos.

Vale destacar que mais recentemente, junto com o florescimento da área

ambiental, particularmente de proteção de florestas, o apoio ao Ministério da Saúde

voltado para políticas de combate à AIDS e doenças sexualmente transmissíveis

surgiram, como reforço às iniciativas da GTZ. Estas têm sido experiências de alcance

regional que repercutem para outros países da América Latina.

373 Esta retração deve-se a fatores de ordem mais geral, em função da crise do petróleo que provocou neste período instabilidades econômicas e a redução mais ampla de recursos internacionais para programas de cooperação internacional. No entanto, quanto ao Brasil, o crescente endividamento externo e processo inflacionário não sinalizavam para um contexto favorável ao desenvolvimento de projetos. Ver: Lohbauer, C. Brasil-Alemanha: fases de uma parceria (1964-1999). São Paulo: Fundação Konrad-Adenauer, 2000. p.94-108.

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Estes programas adotados no Brasil seguem orientações gerais da política de

desenvolvimento ou política de cooperação para o desenvolvimento da Alemanha a partir

dos anos 90 que, como vimos, vem se dedicando cada vez mais a três áreas específicas:

combate à pobreza; proteção do meio ambiente e preservação dos recursos naturais; e

educação e formação profissional.374

Análise dos projetos no Brasil por programa

Com base em relatórios anuais da ABC de 1995, 1996 e 1997, em um Relatório

sintético de 1990-2002 e nas Atas das Reuniões de Negociações Internacionais entre

Brasil e Alemanha realizadas entre 1995 e 2003, fizemos uma análise setorial de cada um

dos programas, o que nos permite ver nuances e tendências da atuação da GTZ no Brasil

desenhadas a partir de 1995. 375 Seguindo a nomenclatura de ação que é estabelecida pela

GTZ na definição das linhas de ação dos seus programas e projetos, critério adotado

também nas análises da ABC, buscamos identificar algumas especificidades que marcam

os projetos da GTZ no Brasil.

O Programa ProRenda

O ProRenda foi concebido na década de 80, sendo um dos programas mais

antigos desenvolvidos pela GTZ no Brasil. O programa se subdivide entre ProRenda

Rural e ProRenda Urbano, sendo seus objetivos definidos em termos de melhoria da

qualidade de vida de populações de baixa renda por meio do fortalecimento do exercício

da cidadania, adequação de serviços públicos à demanda dos usuários, criação de

oportunidades para atividades produtivas”. 376

374 GTZ.Compêndio do vocabulário da GTZ, opus cit., p.35; Embaixada da Alemanha no Brasil/BMZ/GTZ, opus cit., p.3. 375 As reuniões de negociações intergovernamentais são feitas entre representantes dos governos dos dois países para estabelecer as diretrizes de projetos a serem realizados, com intermediação de representantes da Agência Brasileira de Cooperação. Até 2001, eram anuais, sendo a partir de então realizadas de dois em dois anos, alternando o local de ocorrência entre o Brasil e a Alemanha. 376 Ata das Negociações Intergovernamentais Brasil-Alemanha, 1996, p.19

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O programa ProRenda tem inspiração nos valores e ideários cooperativistas, de

auto-ajuda, de expressão da responsabilidade individual e da associação de forças da

economia e da sociedade, como vimos no capítulo anterior, ideais estes de organização

social que têm forte expressão na Alemanha.377

A proposta do programa se baseia no trabalho orientado para pequenos

produtores, rurais e urbanos, de forma a estimular a produção econômica e garantir

acesso ao mercado. De acordo com os termos usados em relatório da ABC, as atividades

de cooperação técnica no programa ProRenda são definidas como de capacitação

empresarial, fortalecimento das associações de agricultores, além de planejamento,

implantação de unidades produtivas e sistemas agroflorestais, autogestão, planejamento

participativo, microcrédito e organização comunitária, com ênfase nas ações orientadas

para ensino e formação: cursos de treinamento e de capacitação, seminários de

treinamento, oficinas, capacitação empresarial, cartilhas e manuais e planos de

desenvolvimento. Assim, um dos eixos conceituais de referência para o programa é

participação ou gestão participativa, o que na prática ainda é considerado um aspecto

pouco assimilado.378

Para Albert, considerado um dos mais experientes e competentes peritos que

trabalharam na GTZ em programas do ProRenda, quando perguntado se há relação entre

a cooperação alemã e o cooperativismo, ele argumenta que:

[o cooperativismo] foi o carro-chefe, porque o cooperativismo no mundo se criou na Alemanha e os alemães tinham maior experiência nisso. As cooperativas brasileiras tiveram muito apoio através da cooperação alemã, inclusive o banco das cooperativas. Sabe aquele banco Krahenbank, em Bangladesh, que o diretor, o fundador desse banco recentemente recebeu o Nobel da Paz? Ele teve apoio da Alemanha. Só que quando foi publicado, ninguém falou nada. Eu conheço a turma que estava lá. Banco do povo. Aqui [no Brasil] tem banco do povo. Também no Peru e, por exemplo, na Bolívia.

377 Armbruster, Paul & Arzbach, Matthias. O setor financeiro cooperativo na Alemanha. Bonn, San José e São Paulo: DGRV, 2004. p.7. 378 Duchrow, A. “Construindo as bases para o desenvolvimento Local Sustentável: Reflexões a partir de uma experiência no Ceará.” In: Trusen, Christoph e Pinheiro, Maria Rosa Bitar (orgs.). Planejando o Desenvolvimento Local: Conceitos, Metodologias e Experiências, Belém: Prorenda Rural, p.107, 2002.

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GTZ. “Cooperação para o desenvolvimento da

República Federal da Alemanha com o Nordeste do Brasil”, Folder, sem data.

Pequenas e médias empresas

O programa para Pequenas e Médias Empresas apresenta, dependendo da

publicação, denominações distintas: “Programa Indústria”, ou ainda, “Programa de

Aumento da Produtividade e Competitividade da Pequena e Média Indústria”.

Este programa orienta-se para a implementação de cursos de pós-graduação,

cursos de curta duração, pesquisas, reestruturação de modelo educacional, intercâmbio de

técnicos, desenvolvimento de materiais didáticos e metodologias para cursos, workshops

e projetos de consultoria para a montagem de sistemas de informação, sistemas de

qualidade, difusão de tecnologia industrial, formação de instrutores, formação de

supervisores, assistência, apoio, formação de operários, pesquisa de mercado.

Como o ProRenda, este programa também teve grande impulso entre os anos 60 e

70, ambos decrescendo significativamente entre as décadas de 1990 e 2000.

Particularmente, o programa Pequenas e Médias Empresas tem mostrado uma tendência a

acabar a partir de 2000, em 2003 somente 4 projetos em todo o país. Uma das razões para

a perda de interesse da GTZ neste programa se deve ao fato de que instituições como o

SENAI e SEBRAE já tenham um papel consolidado no apoio a pequenas e médias

empresas.

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Como dissemos, a partir de 2001, este programa passou a ser contemplado

juntamente com o ProRenda como parte do programa Desenvolvimento de Áreas Menos

Favorecidas.

Assim, a atuação do programa de cooperação técnica o que seria uma explicação

para a redução dos projetos, com a concentração da atuação da GTZ em somente duas

áreas, visando torná-la mais eficiente. No entanto, em 2003, o programa foi citado

novamente como um projeto próprio, com o que nos faz crer que de fato o apoio a

pequenas e médias empresas seja um objetivo de pouca importância na avaliação da

atuação da GTZ no Brasil.

Meio ambiente

O Programa de Meio Ambiente da GTZ divide-se entre Meio Ambiente Urbano e

Industrial e Meio Ambiente Florestal, sendo as atividades para áreas urbanas mais antigas

do que as da área florestal, estas última iniciadas somente com o PPG-7 nos anos 90.

Desde 1995 o BMZ vem priorizando, no Brasil, o campo das políticas ambientais,

particularmente florestais. Neste sentido, como “executor” da política do BMZ, a GTZ

está presente em quase todos os projetos do PPG-7.

Como vimos, entre todos os programas, a área de meio ambiente tem prioridade

desde 1995, mantendo-se superior o número de projetos em relação a todos os outros.

Estes valores agregam tanto os programas para meio ambiente urbano e industrial como

para florestas, o que vem se tornando foco de crescente interesse da Alemanha no Brasil,

uma tendência que, parece, irá se manter – de acordo com Nota Conceitual de 2005,

elaborada pela GTZ – como a “futura contribuição à proteção das florestas tropicais da

Amazônia Brasileira (2007-2014)”. A Nota diz:

Depois de mais de dez anos de implementação, o Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais Brasileiras (PPG-7) está sendo transformado em uma iniciativa de apoio às políticas e aos programas brasileiros para a Amazônia. [...] Para estes fins, está se buscando apoio internacional, incluindo-se neste escopo a cooperação técnica alemã. As negociações intergovernamentais Brasil-Alemanha de 2005 procuraram atender a esta demanda através da definição conjunta de linhas temáticas e marcos estratégicos para a futura cooperação. Pelo

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acordado, a cooperação alemã deverá apoiar a política brasileira de conservação e uso sustentável dos recursos naturais renováveis da Amazônia.379

O programa de meio ambiente focalizou primeiramente as áreas urbanas e

industrializadas, ainda nos anos 70 e 80, muitas vezes associando cooperação técnica a

projetos com financiamentos e empréstimos alemães para melhoramento do controle

ambiental de prefeituras e secretarias estaduais de meio ambiente, visando

basicamente:ao tratamento de recursos hídricos e saneamento básico; ao enfoque em

áreas de risco por contaminação; ao potencial e aos mecanismos de controle de poluição

industrial; ao cadastro de áreas; à formação de banco de dados.

A cooperação na área de conservação de florestas praticamente se resume ao

PPG-7. Além desses, há também os chamados projetos “bilaterais associados” ao PPG-7,

como o Doces Matas. O programa do PPG-7, como se sabe, foi iniciado a partir do

encontro do G-7 em 1990, em Houston, e entrou em execução em 1995.380

379 GTZ. Nota Conceitual para a futura contribuição à proteção das florestas tropicais da Amazônia Brasileira (2007-2014) – Apoio ao desenvolvimento de capacidades no nível federal, regional e local para uma política brasileira de conservação e uso sustentável dos recursos naturais renováveis na Amazônia. 380 Alguns dos programas do PPG7: Promanejo, Provárzea, PDA, PPTAL, AMA, Corredores Ecológicos, SPRN-OEMAS, Doces Matas (bilateral associado), Agricultura Familiar, no Pará, Produtores Rurais - IDAM-AM, Amapari - Perimetral Norte - AP.

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Na região Norte, os estados de Amazonas, Pará e Amapá são os maiores

contemplados, contando com 14 projetos (10% do total), destes somente dois destinados

aos povos indígenas no Brasil, o que significa 0,1%.381 É neste contexto que aparecem os

primeiros projetos no Brasil para povos indígenas desenvolvidos pela GTZ, como o

PPTAL, em 1996, junto à Funai e ao PDPI e, a partir de 1999, no âmbito do MMA.

Este levantamento e análise do conjunto de projetos desenvolvidos pela GTZ teve

como propósito buscar sinalizar para as tendências de atuação da GTZ no Brasil, a partir

de um panorama talvez simplificada dos projetos desenvolvidos por década, o que foi

realizado fundamentalmente com base em documentação obtida na ABC e na própria

GTZ.

No próximo item, por meio de pesquisa etnográfica, procuramos nos aprofundar

nas dinâmicas das relações sociais em meio às estruturas de organização administrativa

do escritório da GTZ em Brasília.

O escritório da GTZ no Brasil e a produção de um saber administrativo no exterior

A sede da GTZ no Brasil foi inaugurada em Brasília no final dos anos 80, quando

ficava na embaixada alemã no Brasil. Posteriormente, nos anos 90, foi montado o

escritório próprio, situado em uma área comercial importante da cidade, o Setor

Comercial Norte. Ele se localiza em um prédio de construção moderna, mas discreta, de

vidro fumê marrom, junto com outros escritórios comerciais e consultórios médicos. É

um endereço comercial, sem qualquer exagero na segurança interna, além de um controle

de identidade e fornecimento de um crachá. No térreo, há lojas para atender ao público

eventual que passe pela rua, uma papelaria, um restaurante e um café, o que garante uma

diversidade de freqüência. Esta caracterização parece demonstrar que o fato de a GTZ ser

uma agência internacional não determina maiores restrições ao acesso, como é o caso de

outros organismos internacionais, cujos prédios onde estão instalados intimidam pela

extravagância e pelas normas restritivas ao acesso na portaria.

381 Embaixada da Alemanha. 40 anos de cooperação para o desenvolvimento Brasil-Alemanha, opus cit., p.160-164.

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Este é o caso do Banco Mundial e do PNUD, cujos escritórios ficam bem em

frente ao prédio da GTZ, no Financial Corporate Center, um dos prédios de arquitetura

mais arrojada de Brasília, com formas irregulares e acabamento externo todo em espelho

dourado. A arquitetura por si só já apresenta uma ostentação que afronta seus

freqüentadores,382o que implica uma forma de elitização. Além disso, o Corporate Center,

como é chamado, possui um sistema de vigilância muito rigoroso que limita, seleciona e

controla o público que o visita. São vários seguranças, entre homens e mulheres, que

fornecem um crachá do prédio e registram uma fotografia na entrada. Ao subir, no hall de

entrada da instituição, mais seguranças estão em guarda e trocam o crachá do prédio pelo

da instituição, de forma que não se perde o visitante de vista, o que não acontece no

prédio da GTZ.

No mesmo prédio da GTZ fica também a sede do banco alemão KfW, situado

alguns andares acima. A proximidade entre os escritórios da GTZ e do KfW não é

aleatória, mas faz parte de uma estratégia de imagem que o ministério adota em relação

ao setor de cooperação para o desenvolvimento, o que facilita os trâmites burocráticos e a

comunicação entre os funcionários na execução de projetos em que participam as duas

instituições. De acordo com documento oficial da GTZ:383

com o intuito de assegurar uma imagem tão homogênea quanto possível da cooperação alemã para o desenvolvimento, as instituições alemãs que trabalham neste setor nos países parceiros cooperam debaixo do mesmo teto em escritórios de cooperação para o desenvolvimento, mantendo, todavia, sua autonomia.

Organização administrativa e física do escritório

O escritório da GTZ no Brasil tem uma estrutura administrativa de funcionamento

bastante pequena para o número e a variedade de tipos de projetos em que atua no Brasil.

382 O público que freqüenta o Corporate se veste de forma bastante padronizada, refinada e rica, com ternos escuros e gravatas, tailheurs e saltos altos. 383 GTZ. Compêndio do vocabulário da GTZ, opus cit. p.185-186.

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De acordo com as definições formais da GTZ para funções no exterior, há um

conjunto de categorias que corresponde às atribuições específicas para cada profissional

do escritório e dos projetos no exterior.

Argumentam os funcionários mais antigos que a estrutura de organização

administrativa, no que concerne particularmente aos processos decisórios na GTZ, é

bastante hierárquica. As decisões passam por várias instâncias e o perito, responsável

pelo projeto, perde competência de decisão. Na avaliação de um ex-funcionário alemão

da GTZ:384

[...] Fui o único a criticar as hierarquias na GTZ. Nós sempre lutamos para reduzir as hierarquias dentro da GTZ, para fazer as coisas mais ágeis. Sabe o que a GTZ fez? Tirou as hierarquias na Alemanha e construiu aqui. [...] Depois da diretora da GTZ no Brasil, tem quatro Programleiter, os gerentes de programas. Nós não tínhamos Programleiter. Nós não tínhamos nenhum responsável. A responsabilidade principal era do diretor e dos técnicos aqui no Brasil. Então, o Programleiter é superior tanto técnico quanto pessoal, ele tem muita força, a diretora nem se mete. Ele ajuda no apoio à contratação e à descontratação e tem muita força. Então, todos os técnicos são subordinados ao Programleiter, que é o superior deles, dos peritos, tanto de serviço como de pessoal. Por exemplo, se o perito quer tirar férias, ele tem que acertar com o Programleiter. Qualquer coisa ele tem que acertar com o Programleiter. Então, a hierarquia que tiraram na Alemanha botaram aqui. Sem o Programleiter, eu assumo como chefe do projeto toda a responsabilidade por ele. Tanto que, no início do projeto, eu tenho que assinar um termo. Era assim. E eu fui um dos lutadores em nível internacional da GTZ para conseguir isso. Nós assumimos a responsabilidade – técnica, financeira, pessoal. Tanto que na GTZ central só tem uma pessoa responsável por nós. Quando a gente não conseguia contornar, você tinha uma pessoa. Aí fizeram depois o quê? Nós tínhamos a responsabilidade, agora a responsabilidade é do Programleiter, não é nossa. Hoje, nós somos simples executores, sabe, tiraram a nossa competência de decisão (grifos meus).

A criação de cargos intermediários no processo decisório tem sido um processo

recente na GTZ, e tem relação com as suas mudanças e reestruturações como um todo, a

partir de diretrizes da agência na Alemanha. Para este mesmo ex-funcionário alemão da

GTZ, o processo não tem dado bons resultados, mas trouxe o que ele definiu como perda

de qualidade do trabalho dos peritos:385 “Porque, se eu sou responsável, técnica,

financeira e administrativamente pelo projeto, então, o governo alemão, através da GTZ,

pode cobrar de mim. Se eu faço bobagem, eu sou responsabilizado e mais ninguém.

Automaticamente, caiu a qualidade do nosso trabalho”. 384 Entrevista em janeiro de 2007, em Belo Horizonte. 385 Idem.

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Esse processo de reestruturação da GTZ, em andamento desde 2003, estaria

colocando em discussão algumas bases de organização, como o princípio de gestão mais

descentralizada, com maior autonomia dos escritórios onde são desenvolvidos os

projetos. A gestão se definiria por meio de liderança, espírito de parceria, auto-

responsabilidade, confiança, respeito a acordos estabelecidos e a decisões tomadas,

aproveitamento das capacidades e das habilidades dos colaboradores, e conhecimento das

expectativas e necessidades dos parceiros.

Os princípios nem sempre são verificados; na prática, o processo decisório ainda

está muito baseado nas relações hierárquicas, conforme observado no escritório da GTZ

em Brasília. Nem sempre os “parceiros” se sentem parceiros, ou tampouco clientes, mas

sujeitos às organizações de cooperação e, portanto, não se satisfazem com o processo. A

projeção discursiva de trabalhar orientado pelo princípio de auto-responsabilidade nem

sempre se cumpre.

O processo seletivo de cargos mais altos de direção, coordenação de programas e

dos peritos de longo prazo é todo feito na Alemanha, com a supervisão dos planejadores

do Departamento de Planejamento e Desenvolvimento. Outros cargos administrativos e

auxiliares, ou de consultorias de curto prazo para projetos, podem ser determinados no

Brasil por meio dos superiores hierárquicos diretamente acima do cargo pretendido.386

No escritório, o diretor, também conhecido por “chefe do escritório”, é o

responsável por todas as decisões políticas tomadas no país. É ele quem faz a ponte entre

as decisões do BMZ e da GTZ na Alemanha e os funcionários do governo local. Ele é

responsável pela administração financeira do escritório e decide sobre a contratação de

pessoal local. Auxiliando-o em funções mais administrativas do escritório, na relação

direta com os funcionários, está o diretor adjunto ou “chefe administrativo”, que é o

superior hierárquico do pessoal local empregado no escritório. Os coordenadores de

programas atuam também em nível político, sendo responsáveis diretos pela contratação

de pessoal para os projetos vinculados ao programa sob a sua responsabilidade,

participam de reuniões para negociações relativas ao programa, enfim, atuam como os

superiores hierárquicos de todos os colaboradores de projetos vinculados a um mesmo

386 GTZ.Compêndio do vocabulário da GTZ,opus cit., p.197.

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programa. Estes são os cargos mais elevados na hierarquia da GTZ e, no Brasil, são

ocupados por alemães.

Os assessores de projetos, que também se distinguem entre aqueles com mais

experiência e tempo de serviço, trabalham tanto no escritório como nos projetos nos

órgãos brasileiros executores. Além desses, também chamados de “pessoal local”, há

outras funções administrativas, como de secretaria, de contabilidade dos projetos e do

escritório e o trabalho realizado pelo pessoal auxiliar, que é o de serviços de entrega, de

transporte (motorista), de recepcionista e de limpeza. Estes são todos brasileiros. No caso

do pessoal administrativo, há a condição de falarem o alemão, o que não ocorre com os

auxiliares.

Por fim, destacam-se aqueles que, no Brasil, são os mais conhecidos por terem

contato direto com os órgãos de governo brasileiro; são os responsáveis do lado alemão

pela coordenação e pelo planejamento (gerenciamento) na execução de projetos – os

peritos enviados. Estes, por definição, são alemães genuínos, uma condição que, na

lógica operacional da agência, se justifica pelo distanciamento exigido para que não

sejam naturalizadas certas práticas locais que são consideradas viciadas e ineficientes,

sendo os projetos o veículo através do qual elas devem ser mudadas.

Há, no entanto, uma distinção entre dois tipos de peritos em função da

responsabilidade assumida no projeto no exterior, o que se reflete no tipo de contrato que

é assinado entre o profissional e a GTZ: há o perito de longo prazo e o perito de curto

prazo. Os peritos de longo prazo, também chamados de “consultor principal”, são

responsáveis pela coordenação de projetos e têm o seu contrato assinado para um período

superior a 12 meses, renováveis enquanto o projeto não se encerrar. Os peritos de curto

prazo, cujo contrato é inferior a seis meses, assumem funções de consultorias específicas,

como desenvolvimento de oficinas, treinamentos e cursos, avaliação de projetos em suas

várias fases e outras formas de atuação no país, por terem experiência no tema em

questão e nas relações junto aos órgãos locais ou às comunidades.

Os peritos de longo prazo da GTZ, todos, sem exceção, são alemães, não havendo

sequer um de nacionalidade brasileira. Quando a empresa necessita de um perito para

atuar em um projeto em qualquer parte do mundo, há uma convocação mundial para o

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envio de currículos pelos funcionários interessados, e a escolha se dá na sede, em

Eschborn, Alemanha.

A justificativa para a não-contratação de peritos nacionais de longo prazo se

justifica pela importância do “estranhamento” com as formas de organização da

sociedade com a qual passam a trabalhar, o que pode ocasionar maior possibilidade de

transformações estruturais do que se o cargo fosse ocupado por alguém mais adaptado à

lógica local. No caso de peritos que atuam há muitos anos em um mesmo país, há um

incentivo para a sua remoção para outra região, porque o “elemento surpresa ou de

estranhamento”, tão valorizados para a implementação de novas diretrizes de gestão de

projetos e políticas nos países parceiros, já não existiria mais.

Como a função desses peritos de longo prazo é prestar assistência às instituições

governamentais locais, a importância atribuída pelo lado alemão ao retorno à pátria

poderia ser uma forma de manter a própria consciência da alteridade e a capacidade de

utilizá-la de forma instrumental e eficaz.387

Segundo as agências alemãs de cooperação para o desenvolvimento, todos os

projetos de cooperação técnica estão sujeitos a um controle de resultados, com vistas a

garantir a continuidade do processo de aprendizagem e a reaproveitar as experiências

bem-sucedidas. Adicionalmente aos projetos bilaterais, há duas modalidades de

cooperação realizadas pelo governo alemão: o Pool de Peritos, as consultorias de curto

prazo, que duram entre três e 12 meses e o apoio às ONGs por intermédio do DED.

Há ainda, o perito local, que são profissionais do país onde está sendo

desenvolvido o projeto e que atuam na assessoria ao perito alemão enviado. No caso do

Brasil, não há um projeto que seja desenvolvido unicamente por consultores locais, sendo

o “princípio da intervenção mínima”, que vimos anteriormente, uma norma que não tem

vigência na prática.

O desenho administrativo do escritório

387 Partiu-se aqui de uma analogia com a idéia de conquista desenvolvida por Lima (1995), em que destaca, na página 47, que “o ponto de partida fundamental e operador da conquista é a própria consciência da alteridade e a capacidade de utilizá-la instrumentalmente para prever os passos e manipular o inimigo”.

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O escritório da GTZ em Brasília, no que diz respeito à divisão das salas e à

distribuição dos funcionários no espaço, refletia, de certa forma, a noção de

administração e de divisão hierárquica observada em relação aos cargos da agência no

exterior, separando aqueles de maior responsabilidade, exercidos por alemães, do restante

do grupo, exercidos em grande parte por brasileiros.

O escritório ficava no 15º andar do prédio, onde havia duas salas da GTZ e mais

uma terceira ocupada por outra empresa. Na sala principal, avistava-se da porta de vidro

da entrada um hall bastante confortável, com sofás, uma mesa de canto e, na frente, uma

estante com divisórias para a exposição de material publicado pelas instituições alemãs –

revistas, jornais, folders, material de divulgação de projetos e publicações sobre questões

de interesse geral. Estes últimos envolvem temas que dizem respeito às áreas da política

de cooperação para o desenvolvimento da Alemanha: segurança, guerra, meio ambiente,

saúde e tecnologia. Encontram-se publicações em português, inglês ou alemão.

Nesse mesmo ambiente, havia um balcão alto onde ficavam dois recepcionistas

que, além de atenderem aos eventuais visitantes, também faziam uso de interfone,

telefone, fax e computadores, aos quais tinham acesso na mesa por trás do balcão. A

recepcionista era uma moça bem jovem, estudante universitária, que estava há alguns

anos ali e já tinha bastante desenvoltura no tipo de trabalho necessário à agência. O rapaz,

além de recepcionista, fazia consertos gerais no escritório, como conexão de redes de

computadores, ligações elétricas, além de pagamentos no banco, transporte de materiais

entre a agência e a embaixada, trabalhando também como motorista da diretora ou de

algum alemão que precisasse deste tipo de serviço. Ambos eram brasileiros, não falavam

o alemão e não tinham qualquer treinamento para poderem mudar a sua condição no

trabalho. Por trás desse balcão, separada por uma divisória com vidro, ficava a salinha da

secretária da diretora, como vimos em Planta Esquemática do Escritório da GTZ.388

Do hall distribuíam-se as salas: do lado direito, uma parede separava salas

divididas por paredes de alvenaria, onde ficava a sala da diretora, usualmente de portas

fechadas, e um corredor que dava acesso a um espaço reservado aos funcionários de mais

388 Segue a planta em anexo na página seguinte (página sem numeração).

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alto escalão: coordenadores e assessores sêniores de programas.389 Do lado esquerdo, um

grupo de salas era separado por divisórias de vidros emolduradas por fórmica. Através

dos vidros era possível ter uma visão geral, desde a entrada, do conjunto de funcionários,

e estes viam-se uns aos outros desde a sala do diretor adjunto, a primeira à qual se tinha

acesso a partir do corredor. Em seguida à sala do diretor, dois funcionários trabalhavam

na contabilidade do escritório, em contato direto com o diretor adjunto. Ao fundo, na

última sala, ficava o pessoal de assessoria administrativa aos projetos, e com ligação

direta com ela estava a sala de contabilidade, a qual era feita por uma funcionária que

controlava não somente as contas do escritório, mas as de todos os projetos da agência: a

disponibilidade de recursos para despesas e o relatório financeiro dos gastos realizados

nos projetos.

O diretor adjunto ficava situado em uma posição estratégica no escritório: de sua

sala, via-se todo o escritório, desde a sala dos funcionários até a portaria, além do

movimento na sala da diretora.

Para se chegar às salas, passava-se por um longo corredor que tinha presas em um

mural na parede notícias e propagandas: eram anúncios de padarias, chopperias e

restaurantes alemães – um “roteiro alemão em Brasília”, provavelmente freqüentado

pelos alemães da GTZ – e notícias e dicas de saúde e bem-estar para quem trabalha em

escritórios e burocracias.

Ao fim do corredor, chegava-se a uma ampla sala que acomodava sete

funcionários, seis assessores de projetos, uma perita alemã do projeto AIDS-DST e suas

mesas, telefones e computadores, um ao lado do outro. Dali se tinha acesso à biblioteca

de consulta interna, onde ficava um bibliotecário em um pequeno cômodo anexo, com

uma porta que o separava da sala mais ampla. Foi nesta sala que entrei em contato mais

direto e constante com os funcionários. Ali, cada um deles tem um computador e um

ramal telefônico em sua mesa e resolve suas atividades praticamente sem se levantar. São

discretos e silenciosos, realizam suas tarefas no computador, com documentos e,

eventualmente, ao telefone, falando quase sempre em alemão. A rotina do escritório é 389 A definição de “assessores seniores” não consta no Compêndio da GTZ como uma significação administrativa, mas é comumente adotada no Brasil pelos funcionários da GTZ para se referirem àqueles que têm maior tempo de experiência e de trabalho na assessoria e no acompanhamento de projetos. Neste caso, era uma função exercida por duas funcionárias brasileiras que trabalhavam praticamente desde a implantação do escritório da GTZ no Brasil.

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monótona e silenciosa. De quando em quando, levantam-se para alcançar um documento

na impressora, comum a todos, ou para pegar algum outro que fica em uma estante

repleta de pastas em cores distintas identificadas com os nomes dos projetos.

A separação das salas por divisórias com vidros garantia que todos

compartilhassem de tudo, criando um efeito pan-óptico, em que praticamente não há

“espaços de fuga” para se conversar mais particularmente. Esta transparência entre as

salas era agradável à primeira vista, porque dava uma sensação de amplidão ao ambiente

de trabalho pela luminosidade que entrava, já que as paredes externas do prédio também

eram de vidro. Por outro lado, no dia-a-dia, era possível sentir que todos ficavam muito

expostos à “observação” uns dos outros, inclusive do diretor adjunto. Havia uma idéia de

controle implícito nessa disposição, o que não acontecia nas salas da direção, que ficavam

à direita da recepção. Somente a cozinha, um pequeno compartimento onde se tomava

café, leite ou chá, era um lugar possível de serem colocados numa conversa os assuntos

cotidianos e pueris. Talvez por tudo isto os funcionários tenham um rigor muito grande

na forma de se comportarem no escritório. Olhares desconfiados e excludentes em

relação ao que se está fazendo ali são o normal.

A língua da burocracia

A GTZ adota um padrão de funcionamento administrativo em que todos os

documentos dos projetos sejam feitos em alemão, desde os comunicados entre os

funcionários até contratos de serviços, inclusive de consultorias, além da contabilidade,

dos documentos de avaliação interna sobre os projetos e dos relatórios periódicos de

peritos. Considerando sua atuação em mais de cem países, a prerrogativa do alemão como

língua de referência tem que ser instituída para controle administrativo por parte da

central. Todos os documentos de projetos e programas no mundo inteiro são enviados à

Alemanha. E, como conseqüência, todos os seus funcionários obrigatoriamente devem ter

conhecimentos amplos da língua alemã.

Assim, também as comunicações internas dos escritórios com a central da GTZ na

Alemanha e a totalidade dos relatórios periódicos (mensais, semestrais e anuais) de

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acompanhamento de projetos enviados pelos peritos que coordenam projetos da GTZ são

feitos em alemão. Da mesma forma, a documentação interna, a maneira de arquivar

documentos, o sistema de computador, as pastas de organização de arquivos e a Intranet

estão em alemão.390 É um único código sem fronteiras; a fronteira é, de fato, a língua

alemã. Em suma, todos os funcionários da GTZ estão interconectados por meios

disponíveis de comunicação para melhor administração e controle de pessoal, desde os

que desempenham funções mais administrativas no escritório até os peritos técnicos, que

atuam diretamente nos projetos.391

A discussão que Benedict Anderson apresenta sobre o desenvolvimento das

línguas impressas e seus efeitos na formação da consciência nacional revela elementos

interessantes para se pensar como “consciências nacionais” são manipuladas através dos

signos lingüísticos em contextos nos quais se cruzam diferentes fluxos transnacionais,

processos orquestrados por comunidades nacionais “imaginadas” deslocadas na

contemporaneidade.392 Particularmente interessante é a sua abordagem sobre o

desenvolvimento de uma linguagem como fator de centralização administrativa, que neste

caso é precisamente eficaz quando todos os que estão na GTZ (no mundo inteiro) devem

falar, obrigatoriamente, o alemão.393 As exigências para contratação de pessoal em

escritórios no exterior variam conforme os cargos e as responsabilidades: no escritório da

GTZ no Brasil, a diretora é alemã e os peritos que trabalham no Brasil são também

alemães.394 No entanto, para cargos administrativos, a exigência é que se fale, leia e

escreva o alemão (nem sempre bem), mas não é preciso ser alemão.

Anderson ainda analisa a formação de “linguagens de poder” na distinção entre

classes, estabelecendo hierarquias. Ao se considerar o peso que o aspecto lingüístico tem 390 Intranet é a rede interna da GTZ que conecta todos no mundo inteiro. 391 Não necessariamente o fato de ser alemão é o elemento de aproximação de um grupo de profissionais que trabalha nos programas de cooperação da GTZ. Suas trajetórias pessoais podem ser muito distintas e de forma nenhuma proporcionar a eles a idéia de que fazem parte de um mesmo grupo. Imagino haver uma multiplicidade de alemães que atua na cooperação e não exatamente pertencem a uma comunidade. Mas ainda assim, a idéia da identidade nacional alemã aproxima-os como parte de uma comunidade imaginada tanto por eles, como também pelos outros, aqueles com quem lidam, que os classificam compulsoriamente como um grupo: “os alemães”. 392 Anderson, B. Comunidades imaginadas Reflexiones sobre el origen y la difusion del nacionalismo. Mexico: Fondo de Cultura, 1993. p.72-73. 393 Idem, p.68. 394 Alguns brasileiros, que são chamados peritos locais, fogem à regra de serem alemães. No entanto, não têm atribuições de coordenação de projetos, a qual é usualmente assumida por alemães.

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na definição de identidades, e pensando, por analogia, na argumentação de Anderson para

classes, falar ou não uma língua assume um peso na distinção hierárquica entre grupos. O

uso proposital da distinção lingüística, como uma ruptura de comunicação, pode ser uma

estratégia de poder para distinção e hierarquização de grupos em condição de múltiplas

nacionalidades.

Somando-se a isto o fato de ser uma empresa de origem alemã, que administra na

sua própria língua – língua esta e cultura não tão disseminadas quanto são a inglesa ou a

francesa – com normas, formulários, relatórios, cartas e memorandos todos em alemão,

inclusive nos escritórios espalhados pelo mundo, isto se torna ainda mais importante para

consolidar uma maneira de administrar, uma forma de se colocar no mundo que é

“alemã”.

Ao se levar em conta que tais relações “de cooperação” se inserem em uma

estrutura internacional assimétrica de poder, cujos efeitos e dimensão não podemos

negligenciar, o desconhecimento fluente do idioma dos “doadores” alemães dirigiu o meu

olhar para as formas em que a língua era acionada enquanto um dispositivo de poder, de

segregação, tanto nas experiências observadas nas relações pessoais, como também nas

publicações institucionais.

Do ponto de vista administrativo, a organização atua como uma grande

corporação, na qual o escritório funciona como a sede para onde convergem todas as

informações das atividades dos projetos, formatadas em modelos de relatórios

simplificados, e de onde partem as diretrizes e as decisões políticas e financeiras. Em

todas as bases internacionais, sejam os escritórios de representação ou os projetos da

GTZ, há normas e padrões de administração que são uniformizados e coordenados pela

GTZ central em Eschborn, na Alemanha, cujo conteúdo, por definição, não está vedado

ao acesso do público, sejam pesquisadores ou funcionários dos órgãos nacionais. Na

prática, no entanto, essas informações não estão exatamente disponíveis, nem mesmo há

veiculação da sua existência. O acesso passa pela autorização de instâncias hierárquicas

superiores da GTZ, que consentem ou não no acesso, justificando a restrição ao caráter

empresarial da GTZ e à competição existente entre agências de desenvolvimento. Além

do mais, muitos documentos são produzidos em alemão, sem tradução para as línguas

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locais, nem mesmo para o inglês, o que sem dúvida representa um elemento a mais de

dificuldade para a sua leitura.

A “marginalidade” da língua alemã é uma questão em fóruns e em debates

internacionais, e a importância da tradução de textos e publicações para outras línguas é

reconhecida como forma de se estabelecer diálogo com parceiros, como consta em

publicação da GTZ/BMZ: “existem versões da edição alemã nas línguas inglesa, francesa

e espanhola, a fim de serem eliminadas as barreiras lingüísticas no diálogo com os

colegas nos países parceiros da GTZ”.395

Apesar de muitas publicações em português, inglês ou espanhol, os livros e os

periódicos em alemão revelam para o público científico e acadêmico uma determinada

escolha de dialogar com os próprios pares de língua alemã, ou mesmo de restringir

informações, reflexões e interpretações sobre a realidade social e política a um público

não-alemão. A publicação nesta língua poderia ser entendida como uma opção que

contradiz alguns dos princípios de horizontalidade das diretrizes do BMZ.

Quanto à organização documental, cada projeto tinha pastas que arquivavam todos

os contratos de serviços e compra de bens para uso da equipe no projeto. Havia uma

grande estante com pastas em forma de fichário, e lá estavam os documentos

administrativos relativos aos projetos: currículo e contrato de pessoal, como contratação

de serviços, compra de material, pagamentos e outros. Na rede interna do computador,

havia um banco de pastas de modelos de documentos da GTZ, os quais eram acessados

para dar andamento aos procedimentos do projeto. Nestes modelos colocava-se o nome

da empresa contratada, os valores e o tempo de serviço, ou então quaisquer dados sobre

novos contratos, novos funcionários ou consultores. Emitiam-se quatro cópias de cada

documento, que ficavam em pastas e arquivos organizados por projeto, além de uma

cópia concedida à empresa ou à pessoa contratada.

A experiência de observação participante no escritório, contando com a sorte da

realização do evento dos 40 anos, permitiu colocar em prática o que Susan Wright

propõe, ao argumentar que é no processo contínuo de atribuição e negociação de

significados no dia-a-dia, nas rotinas diárias, nas roupas, nas carreiras dos funcionários

que são consolidados os valores de uma organização.

395 BMZ/GTZ, Desenvolvimento rural regional: princípios de orientação. Eschborn, 1987. p.7.

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Deste processo participam os próprios funcionários e ex-funcionários alemães da

GTZ, consultores de curto e longo prazo. Assim, além do caminho usual de analisar o

escritório e os procedimentos administrativos formais da organização, sua estrutura e seu

caráter institucional, optei para o próximo capítulo abordar a formação do quadro de

funcionários e as relações entre eles mesmos e com os brasileiros com os quais

trabalham, para superar, neste sentido, a concepção fechada de uma organização como

entidade com uma cultura própria, com limites estabelecidos.396

O corpo de profissionais alemães da GTZ é formado pelos portadores de saberes e

de conhecimentos específicos de Estado e são eles os transmissores desses conhecimentos

para órgãos de governo de outros Estados. Articulam-se por meio de redes sociais

estabelecidas não somente por ideais terceiro-mundistas, mas também por fundamentos

de solidariedade, de cristianismo e de princípios ambientalistas e conservacionistas. Neste

sentido, busquei também pensar a GTZ como instituição a partir da compreensão de

quem são os funcionários que atuam em seus projetos.397 Entrar no universo das relações

pessoais dos peritos e tentar desvendar suas visões sobre o trabalho que desempenham

poderia revelar uma determinada perspectiva “de dentro” da organização.

Como disse, a importância atribuída ao desempenho de um profissional no

sucesso ou no fracasso de um projeto reflete a importância que tem para a empresa a sua

atuação, o seu conhecimento, a sua capacidade de construção de relações interpessoais

com a equipe local. Além disso, as diferentes formas desses profissionais se definirem

como um grupo, de se constituírem como uma “comunidade transnacional” seria um dos

principais aspectos a serem destacados por mim no enfoque sobre as intervenções alemãs

no Brasil como parte de uma “antropologia do desenvolvimento”.

396 Wright, S. (org.). Anthropology of Organizations. London/New York: Routledge, 2002. p.18-19. 397 Como mencionado anteriormente, foram realizadas 24 entrevistas com um grupo de alemães falantes da língua portuguesa, cuja prática profissional se deu, em algum momento de suas experiências na GTZ, em projetos desenvolvidos na América Latina e no Brasil, além de alguns representantes de outras instituições alemãs, como do KfW, da Fundação Heinrich Böll, de Ongs e pesquisadores de universidades alemãs, estes últimos por e-mail.

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Capítulo 6: Os funcionários da GTZ

Para compreender a dimensão simbólica do efeito do Estado, especialmente o que podemos chamar de efeito universal, é preciso compreender o funcionamento específico do microcosmo burocrático. É preciso analisar a gênese e estrutura deste universo de agentes do Estado, particularmente os juristas que se constituíram em nobreza de Estado ao instituí-lo e, especialmente, ao produzir o discurso performativo sobre o Estado, que sob aparência de dizer o que ele é, fez o Estado ao dizer o que ele deveria ser, logo, qual deveria ser a posição dos produtores desses discursos na divisão do trabalho de dominação. 398

Seguindo a proposta que Bourdieu apresenta na citação acima, nos propusemos

neste capítulo a analisar a GTZ a partir de seus funcionários, em suas atribuições

funcionais e relações hierárquicas no escritório em Brasília. Como forma de tentar

desvendar aspectos pessoais, referentes às trajetórias e especificidades das experiências

particulares dos peritos, que atuam nos projetos, selecionamos alguns casos para analisar.

Apesar da pesquisa no escritório não ter sido fácil para mim, ela foi ainda mais

difícil para os que trabalham ali. No seu próprio local de trabalho, tiveram que lidar com

a presença de um pesquisador que os via como objeto de estudo. Ainda mais difícil

quando sabemos haver pressões internas na GTZ, freqüentes avaliações de rendimento e

qualidade do profissional, procedimentos usuais em grandes empresas. Realizar o

trabalho sob o constante olhar de um “estranho” não deve ser agradável. Entendo também

a responsabilidade, do ponto de vista institucional, dos diretores em relação à abertura,

ainda que parcial, de informações e dados que são considerados “segredos de Estado” ou

“da empresa”. Pertencem a uma organização cujo maior bem e valor é a informação,

particularmente em se tratando de agência de cooperação técnica cujo produto principal é

o conhecimento (know-how). Como bem argumenta Weber:

toda burocracia busca aumentar a superioridade dos que são profissionalmente informados, mantendo secretos seu conhecimento e intenções. A administração

398 Bourdieu, P. “Espíritos de Estado”. In: Bourdieu, P. Razões práticas sobre a Teoria da Ação. Campinas: Papirus Editora, 1996. p.121.

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burocrática tende sempre a ser uma administração de “sessões” secretas.: na medida em que pode, oculta seu conhecimento e ação da crítica.399

Aqui tratamos um grupo que também se constitui como uma espécie de nobreza

de Estado: os cooperantes, profissionais de Estado que se situam entre diplomatas,

profissionais especializados, administradores e politólogos que atuam na representação

do Estado para fora, para o exterior, no sentido de exercerem uma forma de dominação

externa, mas cotidiana, em escala média e pequena, e não só no plano das representações,

mas também no controle de fluxos financeiros.

No escritório da GTZ ficam principalmente os funcionários de cargos

administrativos e gerenciais que acompanham a execução burocrática dos projetos. Os

coordenadores de programas e os coordenadores de projetos, que fazem um trabalho mais

burocrático e têm sua base na sede em Brasília, são auxiliados por uma equipe de

“administradores” que atuam na intermediação com as bases locais e com a sede. O

objetivo é que tudo corra dentro dos padrões, das normas e regras, que são muitas e

extremamente cheias de detalhes, para que os projetos andem. Novos recursos não podem

ser liberados para os projetos locais se não preencherem tais requisitos, que todo membro

da GTZ deve decorar.

No total, havia 19 funcionários no escritório durante o período em que fiz a

pesquisa, sendo três na recepção, contando com a secretária da diretora, cinco na área

mais reservada ao “alto escalão” e 11 entre o diretor adjunto, o pessoal da contabilidade e

o grupo da assessoria de projetos, que compartilhava uma mesma grande sala, além da

perita alemã e do bibliotecário.

Na GTZ no Brasil, as mulheres ocupam cargos variados, desde funções auxiliares

até administrativas e políticas: no atendimento na portaria, ficava uma estudante

universitária brasileira; na contabilidade, uma brasileira de formação superior e de

ascendência alemã; na secretaria da direção, outra brasileira, formada em comunicação

social. A maioria das funcionárias que trabalhava na assessoria técnica de projetos era de

399 Weber, Max. “Burocracia”. In: Ensaios de Sociologia, Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1963, p.269.

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brasileiras, mas tinham algum vínculo, conjugal ou de ascendência, com a Alemanha.400

Um nível hierárquico acima destas, também duas mulheres brasileiras bastante

experientes assumiam responsabilidades maiores de supervisão e acompanhamento de

projetos vinculados a um mesmo programa.401 Na coordenação de programas nacionais,

também mulheres dirigiam as funções, sendo que neste caso a responsabilidade era

daquelas de nacionalidade alemã, da mesma forma, a direção geral do escritório no

Brasil.

Ao se observar o grupo no que concerne à categoria de gênero, constata-se que a

maioria dos funcionários do escritório era de mulheres: 13, de um total de 19 pessoas.

Além de prevalecerem em termos numéricos, também o faziam quanto à

responsabilidade: os cargos de direção e coordenação de programas estavam nas mãos de

mulheres. Conforme uma funcionária indicou, há uma orientação por parte do governo

alemão que é veiculada pelas agências governamentais e não-governamentais alemãs,

como a Fundação Heinrich Böll, de priorizar a contratação de mulheres e a elaboração de

projetos que sejam orientados por elas. Na Fundação Böll, chamam de gender democracy

a inclusão de temas sociais que envolvam a participação das mulheres em processos

decisórios como parte de questões prioritárias de trabalho, além de outras como

migração, ecologia, democracia, problemas sociais, emprego, economia, educação, arte,

comunicação, política de desenvolvimento, entre outras.402 A abordagem específica na

questão de “gênero” constitui um critério de qualidade na política de cooperação para o

desenvolvimento da Alemanha, como afirmam em documento:403

a abordagem específica em função do gênero não se restringe exclusivamente à gestão e à execução de projetos em países em vias de desenvolvimento, mas também é relevante para a gestão dos recursos humanos e o desenvolvimento organizacional de instituições e organizações na Alemanha e no estrangeiro que atuam na área de cooperação para o desenvolvimento.

400 A exceção era de uma mulher e um homem, ambos alemães, que também trabalhavam na assessoria de projetos. 401 Como dito anteriormente, o Programa de Cooperação Técnica Brasil-Alemanha tem duas grandes áreas como prioridades para o Brasil: Meio Ambiente e Desenvolvimento Regional Integrado em Áreas Menos Favorecidas 402 Ver www.boell.com.br 403 GTZ. Compêndio do vocabulário da GTZ, opus cit., p.75.

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A maioria dos funcionários administrativos e técnicos de apoio aos projetos chega

cedo ao escritório, em torno das 8h. Não há controle de horário com cartão de ponto, mas

os funcionários pareciam ter internalizado suas obrigações. Trabalhavam todos de forma

muito individualizada, cada um responsável por uma área separada. Na sala maior,

ficavam os técnicos que tinham a incumbência de dar suporte aos projetos desenvolvidos.

Os funcionários não têm um rigor muito grande na forma de se vestirem para ir ao

escritório. Não há exigência de uso de roupas muito formais, como ternos para os homens

e tailleurs e salto alto para as mulheres, como no Banco Mundial, no PNUD ou na

própria ABC, de maneira que eles usam roupas de uma elegância simples, sem

extravagâncias.

Dos 19 funcionários, foram entrevistados convencionalmente sete, além de

conversas informais com todo o grupo. Dos que trabalham no escritório, de um total de

seis alemães, três estavam em funções de comando e decisão, como direção geral e

coordenação de programas, e mais três eram responsáveis pelo acompanhamento de

projetos. Quanto aos brasileiros, 13 exerciam funções mais simples administrativas, de

apoio ao escritório e de acompanhamento de projetos; havia dois responsáveis seniores,

na portaria, na secretaria e na contabilidade. O diretor adjunto era um brasileiro, cujas

atribuições não lhe garantiam muita autonomia decisória, mas dedicava-se

fundamentalmente a repassar à equipe as ordens da direção geral.

No que concerne à relação com a categoria nacionalidade, nota-se que quanto

mais alta é a hierarquia e a responsabilidade da função, maior é a atitude reservada dos

alemães.

A diretora geral do escritório da GTZ, como dissemos, é uma mulher alemã, de

meia-idade, que tem uma personalidade reservada e tímida, pouca simpatia e pouca

conversa. Mal se via quando chegava, muito cedo, e ficava trabalhando todo o tempo em

sua sala, a maior delas, central na disposição do espaço do escritório. Eventualmente, saía

da sala para dar uma ordem à sua secretária, sempre em alemão.

Sua rotina de trabalho envolvia reuniões semanais ou quinzenais com

responsáveis por programas e projetos, além de reuniões externas na Agência Brasileira

de Cooperação, no Ministério de Relações Exteriores, e na embaixada da Alemanha.

Eram freqüentes também as viagens à Alemanha, o que o cargo exigia, na medida em que

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sua atuação no Brasil dependia fundamentalmente de decisões políticas e orçamentárias

adotadas pelo BMZ e pela GTZ central, ambos neste país.

No que dizia respeito às relações com o pessoal que ali trabalhava, não exercia sua

autoridade de forma fácil. Algumas funcionárias relataram a forma brusca e repreensiva

como os tratava, sobretudo os brasileiros, que reclamavam que ela raramente reconhecia

os valores dos funcionários, mas estava sempre pronta para fazer críticas e correções.

Quando eram chamados para reuniões ou conversas em sua sala, não era raro temerem

ouvir repreensões.

De acordo com um informante alemão, a escolha da representante da direção do

escritório da GTZ no Brasil poderia ser atribuída a uma decisão política que ocorre na

Alemanha como resultado de uma distribuição de cargos na administração pública entre

partidos políticos, como nos fala um perito: “O antecessor dela [da atual diretora] falava

três, quatro idiomas, era uma presença, mas queimaram ele também. [...] Lá também tem

política, né? Tem que ver em que partido está”.

O diretor-adjunto era um jovem brasileiro que assumiu o cargo depois de trabalhar

na contabilidade dos Projetos Demonstrativos, o PDA. Apesar de ocupar um cargo de

responsabilidade, como o intermediário entre as decisões da diretora e os funcionários,

não assumia uma postura de arrogância ou de autoridade. Assumira esta função de

supervisão geral dos funcionários e acompanhamento das tarefas realizadas, mas não

tinha uma atribuição efetivamente decisória, o que ficava para a diretora geral. Como

possuía melhores relações com o grupo, por ser mais jovem e mais simpático, era ele

quem repassava as ordens da diretora. Além de falar sempre em português com os

funcionários, costumava fazer brincadeiras e comentários para quebrar a formalidade.

Outra pessoa de grande importância no escritório era Andréa, responsável pelo

acompanhamento de todos os projetos vinculados ao PPG-7.

Aspectos pouco revelados nas conversas mais formais com funcionários da GTZ

eram abertamente mencionados e desenvolvidos por Júlia,404 uma funcionária cearense

404 Júlia é um codinome desta funcionária. Sem formação superior, sua relação com a Alemanha veio por meio de um casamento com um alemão, o que a levou de Fortaleza para este país onde viveu alguns anos. Quando voltou para o Brasil, entrou em um projeto da GTZ em Fortaleza, sendo depois de alguns anos transferida para a sede em Brasília, onde deveria passar somente três meses, mas já estava há mais de cinco anos, atarvés de contratos temporários renovados a cada seis meses.

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que estava há dez anos na agência trabalhando na assessoria a projetos. Júlia era muito

expansiva e muito crítica quanto aos mecanismos de controle da GTZ sobre os seus

funcionários, o que não se intimidou em expor. Ela tinha informações confiáveis sobre as

condições trabalhistas garantidas aos funcionários do Banco Mundial, onde uma irmã sua

trabalhava. Outros funcionários da GTZ também reclamavam dos salários recebidos, que

eram relativamente baixos em comparação aos dos funcionários de outras agências e

organismos internacionais, referindo-se usualmente ao Banco Mundial e ao PNUD. Além

disso, mencionavam as condições de trabalho oferecidas, como benefícios sociais e outras

vantagens, além de um plano de carreira que valorizava a permanência do funcionário no

órgão, o que não era o caso da GTZ, diziam eles.

Em conversas que tivemos, Júlia sempre destacava a irregularidade quanto às leis

trabalhistas no Brasil na forma de contratação dos funcionários locais pela GTZ, que não

tinha vínculo trabalhista, mas ocorria por meio de contratos temporários renovados

continuamente. Nestes termos, os funcionários não tinham garantidos seus direitos

trabalhistas nem a possibilidade de contar tempo de trabalho para a aposentadoria. Esta

era uma grande preocupação sua, considerando haver pessoas que trabalhavam há mais

de cinco anos sem carteira assinada e sem depósito de FGTS, como era o seu caso.

Muitos funcionários são contratados por projetos que, terminados, deixam claro não

haver compromisso por parte da GTZ em mantê-los em suas funções. No entanto, havia

peritos atuando no Brasil há mais de dez anos, com seu contrato renovado de dois em

dois anos, passando de um projeto para outro, mas sempre submetidos a esta forma

incerta e instável de contratação temporária por projeto.

Um ex-funcionário deixou claro que esse tipo de contratação não era específica

dos brasileiros, mas sim um critério usual de contratação entre as “empresas de

consultoria”, sendo que os contratos eram usualmente renovados por anos seguidos.

Como explicou:405

Nós somos o seguinte. A GTZ, quando é autorizada pelo BMZ para fazer um projeto, tem um setor de pessoal que procura as pessoas, faz a seleção e depois convida essas pessoas que contratam, preparam, e elas assinam um contrato com a GTZ por prazo determinado, geralmente são dois anos, que pode ser prolongado se o cara for bem, se o projeto for prolongado. O camarada é pago mensalmente. [...] Não tem garantia nenhuma. O cara prestou serviço dois anos,

405 Entrevista concedida em janeiro de 2007.

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cumpriu, aí recebe uma carta, obrigado pelo seu trabalho, procura agência de trabalho para outra coisa. Não tem fundo de garantia, 13º, nada disso. Nem na lei alemã, porque nós não somos funcionários nem da empresa nem do governo, nós somos como empreiteiros. “Você vai lá por dois anos fazer isso”. Claro, eles pagam sua mudança de volta para a Alemanha. Quando termina o contrato, ele está na rua. Ele não tem nenhuma segurança. Ele é mesmo um contratado. O DED também é assim. Empresas de consultoria também são assim. Lógico que se o cara é bom, ele tem outro trabalho.

Em função destas questões, ouvi de uma funcionária que a GTZ deveria implantar

uma política de pessoal nacional. Conforme informou, havia uma determinação da GTZ

central (da Alemanha) de abril de 2002 para regularizar a contratação de pessoal em toda

a GTZ no mundo até 2004, no máximo, conforme as leis dos países onde atuasse.

Júlia informou ainda que havia 64 funcionários na embaixada da Alemanha e na

GTZ, sendo ela a única sindicalizada no Sindicato dos Trabalhadores das Embaixadas

(SINDINAÇÕES).Apesar de o diretor adjunto da GTZ no Brasil não “achar adequado”,

esta funcionária disse ter trabalhado na elaboração de um documento que foi o resultado

de uma discussão promovida num seminário em 2003 para o qual veio gente de todo o

Brasil. Esta política incluía plano de carreira, diferenças salariais, benefícios,

regulamentação de trabalho e avaliação de pessoal.

Este seminário realizado em 2003 destinava-se à discussão da “política de pessoal

nacional” da GTZ no Brasil que fosse “o mais participativa possível”. Em setembro de

2005, recebi das mãos de uma perita alemã um documento interno sobre esta política, em

elaboração desde novembro de 2002, que definia que os contratos de trabalho seriam

regidos pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) e a contratação com carteira

assinada pela agência da GTZ em Brasília, com jornada de trabalho de 40 horas

semanais, com direito a férias, décimo-terceiro salário e fundo de garantia, além de

benefícios como: seguro de vida por morte, invalidez, despesas hospitalares e um auxilio

ao pagamento de plano de saúde. Esta discussão, no entanto, perdeu fôlego em função

dos preparativos das comemorações dos 40 anos da cooperação entre Brasil e

Alemanha.406

406 GTZ. Política de Pessoal Nacional (PPN). Proposta da Diretoria. Documento Interno, 06/09/2005 (data de impressão), p.1-8.

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Até o momento da pesquisa, em final de 2005, a antiga forma de contratação

permaneceu em vigor, sem incorporar as novas propostas previstas neste documento e

não havia sido assinado nem elaborado um plano de carreira que estimulasse o

funcionário a permanecer no trabalho na agência. Eles não enxergavam, nas condições

existentes, uma oportunidade de ascensão dentro da GTZ. A sua estrutura no Brasil era

pequena, com poucos cargos e, portanto, poucos funcionários.

Júlia destacava ainda alguns aspectos da lógica opressora implícita no

funcionamento do escritório, o que atribuía em grande medida aos mecanismos de

segregação em função na nacionalidade. Para ela, a estrutura hierárquica não se

estabelecia somente pelos atributos do cargo, mas fundamentalmente por uma questão de

nacionalidade, como disse:

Aqui eu não ganho o equivalente a 2 mil marcos. Aqui no escritório parece que o funcionamento é diferente dos projetos. Acho que em Brasília a GTZ tem uma oferta grande de pessoal. O critério é falar alemão. Não há qualificação profissional, mas o perfil é de quem fala alemão e que seja barato. [...] Há uma rotatividade muito grande na central, porque são baixos os salários e pouca há qualificação profissional. [...] Fui muito humilhada quando cheguei aqui. Esperavam que eu fosse arquivar e tirar fotocópias. Eu fiquei muito constrangida aqui (grifos meus).

Alguns funcionários, comentavam que o escritório da GTZ no Brasil privilegiava

a contratação de falantes da língua alemã e não funcionários de formação qualificada.

Uma funcionária brasileira, com formação superior em economia e que tinha experiência

em empresas na Alemanha e na Áustria, quando retornou ao Brasil entrou para a GTZ

através de um conhecido de seu pai para atuar diretamente na organização do evento de

comemoração dos 40 anos, junto com a sua organizadora. De julho a novembro,

trabalhou com empenho nas atividades relacionadas à comemoração, eventualmente se

queixando da forma como tratavam os funcionários ali: lamentava-se da falta de

transparência nas relações de trabalho, pois diziam que iriam assinar sua carteira,

estabelecer contrato, mas a mantiveram por praticamente um ano em sua função por meio

de contratos temporários.

O fato é que na GTZ, a distância entre os salários dos funcionários é abrupta – de

um lado, os alemães, diretores, coordenadores de programas, peritos e assessores de

projetos têm salários elevados, alguns pagos em euros; do outro, funcionários

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administrativos, brasileiros, cujos salários são baseados na moeda local e que,

equiparados ao euro, chegavam a talvez 1 mil euros. Assim, do mais alto ao mais baixo

no nível administrativo havia uma diferença vinte vezes menor, sendo que não existem

praticamente funções intermediárias entre um e outro. Numa estrutura reduzida como são

os escritórios da GTZ, o funcionário administrativo acaba tendo conhecimento a respeito

destas desigualdades em termos de renda.

A categoria “alemães”

A categoria “alemães” é usada entre os funcionários do governo brasileiro e

membros de organizações não-governamentais brasileiras como uma forma de definir o

“outro”, os representantes do governo ou de organizações não-governamentais alemãs,

não necessariamente nativos da Alemanha. O fato é que de modo geral nas organizações

alemãs, e particularmente na GTZ, a maioria dos funcionários é composta de alemães

nativos, de descendentes deles, ou de cônjuges de alemães, o que favorece uma

generalização que explica mais um grupo profissional (relações de trabalho, vínculos

profissionais em uma organização alemã de especialistas), do que exatamente identidades

nacionais pessoais. No entanto, a cultura da organização, ou a organização como cultura,

espaço de formulação e de definição de representações, acaba por imprimir uma lógica de

ver e representar o mundo que é considerada alemã, o que supostamente interfere na

definição de identidades pessoais.

Ainda, a definição do que a categoria “alemão” representa para um grupo de

profissionais vimos que é mais do que uma caracterização de ordem “nacional”. O termo

é acionado em vários momentos pelos diferentes atores, seja como categoria de acusação,

subentendendo-se uma crítica por parte dos brasileiros, como também no sentido de uma

superioridade “qualitativa”.

A categoria, no entanto, não garante que se trate de fato de um grupo coeso,

homogêneo. A expressão usada no contexto em que a analisamos refere-se a profissionais

que na maioria das vezes trabalham nos programas de cooperação da GTZ, assim como

de outras instituições alemãs, especialistas na implementação de uma política do

desenvolvimento, produtores e transmissores de conhecimento, no caso alemão chamados

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de “peritos”. A respeito disso, Josiah Heyman argumenta: “for organizational culture to

be strong, there need to be concrete and efficacious mechanisms by which workers are

socialized into the organization”.407

Profissionais como esses têm freqüentemente trajetórias pessoais muito distintas,

que de forma nenhuma lhes proporciona a idéia de serem parte de um mesmo grupo.

Identifiquei haver entre os chamados “peritos” uma multiplicidade de tipos que não faz

parte exatamente de uma “comunidade”. Em relação à formação e à motivação dos

peritos, há diferentes formas de expressarem o envolvimento, a paixão pelo trabalho que

realizam. Diz uma ex-perita da GTZ:408

Eles são heterogêneos, o pessoal da cooperação. Há os velhos, bem conservadores, que têm uma visão do desenvolvimento [...] e há os novos que muitas vezes vêm do movimento e agora já têm a nossa idade, na faixa dos 40, 50, e estão em cargos mais importantes. O pessoal que entra jovem, tipo 25, 30 anos, eles não têm mais a história política. A nova geração não é política. Eu estou falando daqueles que agora fazem estágio, que vão começar como nós começamos numa época. Eles não têm mais uma história política. Eles terminaram o colégio e vão para a universidade. São eficientes. Deve ser a mesma coisa no Brasil, mas não há aquela coisa da militância.

Ainda assim, a idéia da identidade nacional alemã os aproxima, se não por eles

próprios, mas pelos outros, aqueles com quem lidam, que os classificam

compulsoriamente como um grupo, como uma comunidade imaginada, “os alemães”.

Conhecendo o grupo

Como vimos anteriormente, de todas as diferentes categorias administrativas

adotadas pela GTZ para as funções da política alemã de execução de projetos no exterior,

a mais conhecida e mais usualmente adotada é a de peritos. Outros termos são também

usados, como assessores internacionais, advisors. Uma outra categoria mais geral de

profissionais estrangeiros envolvidos com projetos internacionais de desenvolvimento é

a de cooperante.

407 Heyman, Josiah. “The anthropology of power wielding burocracies”. In: Human organization, vol.63, nº 4, winter, 2004. p.494. 408 Entrevista em 27.05.03, na sede da FASE, no Rio de Janeiro.

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Além da GTZ, o termo perito é adotado em documentos oficiais de órgãos

diplomáticos no Brasil e em outros órgãos de governo com os quais a GTZ desenvolve os

projetos. Dependendo da relação que constroem pessoalmente junto aos grupos com os

quais trabalham nos países estrangeiros, a categoria assume conotações ora pejorativas,

associadas à práticas de intervenção e autoridade, ora de mérito e alta estima.

A adaptação do profissional ao país, tanto nos meios governamentais como na

sociedade civil, foi um fator que fez com que se desenvolvessem normas na GTZ para a

sua não-fixação em um só país.

Como já mencionamos, no Brasil todos os peritos de longo prazo da GTZ são

alemães, contratados a partir de uma convocação mundial e de um processo seletivo que

se dá na sede da GTZ, em Eschborn, Alemanha.

Estes cargos são de grande responsabilidade quanto à coordenação das atividades

de um projeto, com as atribuições diferentes das dos chamados peritos locais. Estes,

subordinados aos peritos de longo prazo, assessoram a administração dos projetos e são,

em grande parte, brasileiros. A não contratação de peritos nacionais de longo prazo, como

já disse, justifica-se pela importância do “estranhamento” com as formas de organização

da sociedade com as quais passam a trabalhar, o que poderia ocasionar maior

possibilidade de transformações estruturais do que no caso de alguém mais adaptado à

lógica local. No caso de peritos que atuam há muitos anos em um mesmo país, há um

incentivo à sua remoção para outra região, porque o “elemento surpresa ou de

estranhamento”, tão valorizado para a implementação de novas diretrizes de gestão de

projetos e políticas nos países parceiros, já não existiria mais.

Dificuldades com os peritos e os funcionários da GTZ e a língua alemã

Sabia desde o início que a aproximação com os atores sociais a serem abordados

nesta pesquisa não seria fácil. As maiores barreiras que encontrei no levantamento de

campo com os alemães da burocracia da cooperação em Brasília foi a reserva ou a

resistência de peritos, funcionários, técnicos, consultores da GTZ no Brasil. Foram muitas

as formas de dificultar uma maior aproximação à sua vida particular que, segundo uma

funcionária da GTZ, é sagrada na Alemanha. Como argumenta Weber: “a organização

moderna do serviço público separa a repartição do domicílio privado do funcionário e,

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em geral, a burocracia segrega a atividade oficial como algo distinto da esfera da vida

privada”.409

Entre o grupo que pesquisava – funcionários da GTZ alemães e não-alemães – fui

identificada socialmente como uma outsider: não sou alemã, não tenho parentes nem tive

cônjuge alemão, não possuo fluência na língua e não morei no país. Nunca trabalhei em

empresas ou agências alemãs e não tinha a experiência prévia do trabalho da GTZ como

consultora, uma possibilidade mais freqüente no caso de pesquisadores. Do ponto de vista

da “comunidade da cooperação internacional”, funcionários que trabalham nesta área, eu

também não me enquadrava: não era funcionária pública nem consultora de agências de

cooperação internacional ou diplomata, profissões afins ao campo das políticas de

cooperação internacional.

Minha relação com os alemães da GTZ restringiu-se a um interesse de pesquisa

antropológica, e esta distância quanto à Alemanha intrigava-os no que dizia respeito aos

meus interesses na pesquisa. Outros trabalhos de antropólogos elaborados anteriormente

foram bastante críticos à GTZ, o que já caracterizava um problema no estabelecimento de

relações de confiança e de troca de informações com os funcionários da agência.

Em primeiro lugar, destacava-se o fato de haver a precedência de dois trabalhos: a

tese de doutorado em antropologia social pela UnB de Ludmila Lima, em 2000, sobre a

atuação da GTZ no projeto PPTAL e sobre as instâncias de conflito entre uma perita da

GTZ e os técnicos brasileiros em um projeto de cooperação. Posteriormente, em 2001,

houve uma “avaliação independente” encomendada pela própria GTZ na forma de uma

consultoria ao antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, chamada “Controle de

Avanço de Projetos”, nos termos administrativos alemães, PFK, em que o autor adotou

uma abordagem muito criteriosa e crítica ao projeto, que não foi publicado. O PFK é uma

forma de avaliação adotada em determinada fase de um projeto para averiguar as

condições para a sua continuidade ou o seu encerramento. Neste sentido, as críticas

tiveram impacto negativo para justificar a continuidade do projeto.

Outro aspecto apontado pelos próprios alemães referia-se à minha falta de fluência

na língua alemã, o que era de grande incômodo para alguns deles que entrevistei, e até

409 Weber, M. “Burocracia”, opus cit., p.230.

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mesmo para funcionários brasileiros da GTZ que me indagavam como pretendia fazer

uma pesquisa sobre alemães sem dominar o seu idioma.

Como já apontei anteriormente, sabia que a língua alemã tinha uma representação

fundamental no que concerne aos procedimentos administrativos da agência, mas era,

sobretudo, o elemento de identificação de um grupo, aquele que define os limites de uma

comunidade deutschland.410 Mas ainda assim não me foi imprescindível dominar a

língua, pois o grupo com o qual lidava na pesquisa era de alemães falantes do português,

fossem aqueles que ainda estavam no Brasil, ou os que retornaram à Alemanha. Além dos

alemães falantes do português, muitos de meus informantes eram brasileiros que

trabalhavam diretamente com os alemães, desde funcionários do escritório central da

GTZ até os dos projetos, que não eram contratados pela GTZ, mas atuavam em órgãos

governamentais e instituições não-governamentais diretamente com alemães nos projetos

em que a GTZ estava presente.

Apesar de não ser indispensável para a pesquisa o domínio do alemão,

compreendi que esta condição de outsider, por não fazer parte de uma comunidade

deutschland, tinha muitos significados, sobretudo no que se referia a uma posição

hierárquica. A compreensão da língua nos distinguia culturalmente, e neste sentido, a

assimetria se apresentou como um elemento marcante.

Por mais que no plano das relações diplomáticas, do direito internacional, sejam

firmados o compromisso de horizontalidade e a simetria nos vínculos contratuais que

formalizam uma relação de cooperação entre dois países,411 as assimetrias culturais

revivem, fortalecem-se e reinventam-se todo o tempo nas relações pessoais entre

profissionais alemães que atuam junto com os brasileiros diretamente nos projetos e,

indiretamente, na rede mais ampla da administração pública brasileira. E uma das formas

mais eficazes de marcar as diferenças e as hierarquias é a língua. Falar o alemão

determina não somente as distintas nacionalidades em questão, mas também a

superioridade hierárquica do outro – o doador, o civilizado, o perito – e os limites até

410 Expressão encontrada em uma revista alemã, “Deutschland” 411 Refiro-me particularmente ao acordo básico de cooperação técnica entre o governo da República Federativa do Brasil e o governo da República Federal da Alemanha; nele, nos primeiros parágrafos, como premissas fundamentais das relações entre os países, as bases são definidas como: “relações amistosas”, “interesses comuns”, “igualdade entre os povos”.

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onde é permitido a nós – receptores, subdesenvolvidos, ignorantes – saber ou participar

de seu grupo.

Esta classificação hierárquica é percebida nas relações com os peritos e até

mesmo com os funcionários administrativos da GTZ. Falar ou não a língua da

organização de cooperação, no caso a alemã, estabelece imediatamente uma linha

divisória e determinante das hierarquias existentes entre brasileiros e alemães.

Pesquisar nestas condições pouco familiares e pouco interessantes para os

“pesquisados” dificultou em muito a aproximação e o estabelecimento dos laços de

confiança necessários para uma pesquisa etnográfica. Como o objetivo inicial da pesquisa

era priorizar os relatos pessoais de profissionais alemães atuando na “cooperação técnica”

da GTZ nos projetos com povos indígenas no Brasil, sobretudo daqueles que tinham uma

trabalho anterior, fosse em igrejas, fosse em organizações não-governamentais nos anos

70, a dificuldade de aproximação com os alemães praticamente inviabilizava o estudo.

De um total de 53 pessoas entrevistadas formal ou informalmente, cerca da

metade foi de alemães falantes do português e que atuavam profissionalmente nas

principais instituições do BMZ: 16 funcionários, peritos e diretores da GTZ, um diretor

do KfW e um da embaixada da Alemanha, além de uma diretora da Fundação Heinrich

Böll. Foram também estabelecidos contatos e solicitadas informações por e-mail sobre

redes de ONGs alemãs a sete membros de redes que apóiam iniciativas na Amazônia e a

pesquisadores de universidades que investigam questões relativas a impactos de grandes

projetos na Amazônia. No Rio de Janeiro, entrevistei ainda um antropólogo alemão que

veio fazer seu pós-doutorado no PPGAS/Museu Nacional, e que conhecia muitas pessoas

que trabalhavam em ONGs e em agências do governo alemão com projetos de

cooperação da Alemanha.

A relação entre alemães e brasileiros nos setores públicos

Os peritos da GTZ trabalham diretamente nas instituições nacionais que executam

os projetos e não no escritório da agência. Esta relação muito próxima cria alguns

conflitos de convivência. Normalmente, nos projetos em que a GTZ participa no Brasil

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junto com órgãos de governo, é criada uma infra-estrutura de equipamentos – mesas,

computadores, telefones, fax, ploter, impressoras, armários, estantes e muitas pastas –

como também de pessoal disponível – secretárias e assessores – para que sejam

estabelecidos em cada ministério, secretaria ou fundação um tipo de “escritório” da GTZ.

Este escritório muitas vezes é equipado com condições que superam em muito as

dificuldades habituais nas repartições públicas onde elas se instalam. Na maioria dos

ministérios, os funcionários compartilham um mesmo espaço amplo, salas comuns, sendo

separados por mesas e divisórias baixas para “melhor comunicação entre a equipe”, as

chamadas “baias”. Esta arrumação segue uma tendência na lógica da administração

“moderna”. A sala da GTZ encontra-se normalmente destacada deste espaço comum,

separada por divisórias, muitas vezes semelhante a uma “sala do chefe”, em que fica o

“perito” da GTZ com seus secretários e assessores. Isto valia para o caso dos projetos do

PPG-7.

Esta disposição de um “escritório à parte” varia, no entanto, de perito para perito,

tendo mais relação com a personalidade da pessoa que ocupa o cargo do que

propriamente com as atribuições do trabalho da GTZ no país. Visitei alguns dos

escritórios de governo em que a GTZ atua em Brasília, e constatei que a disposição das

salas ou dos gabinetes dos peritos variava. No caso do PD/A, o “perito” alemão ocupava

uma pequena sala, separada por uma divisória baixa, como os outros membros da equipe.

O mesmo não ocorria no caso do projeto AMA (Projetos de Avaliação, Monitoramento e

Análise), em que a perita se destacava do restante da equipe, isolada em uma sala

separada por divisórias até o teto, com uma placa na porta indicando ser ali a GTZ,

propriamente, sendo a funcionária a própria representação da agência.

Por que então um “perito” alemão ficaria reservado em uma sala fechada, com

uma porta com placa na qual se lê GTZ? Esta pergunta eventualmente retornava quando

lia nos documentos da GTZ referências ao caráter “participativo” de seus projetos. Era

uma demonstração explícita de uso do poder, mantendo-se em reserva como autoridade,

com segredos que nenhuma área da administração local conhece.

A presença física de escritórios montados da GTZ em salas do Ministério do Meio

Ambiente, no IBAMA e na Funai convencia-me de que a chamada “cooperação

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internacional” alemã diferenciava-se de outras agências de cooperação também presentes

no programa do PPG-7 ou de outras cujos trabalhos se direcionavam para a Amazônia.

A conquista de espaços na administração pública é uma batalha custosa e

delicada. Os mecanismos para cessão de salas ou de mesas ou cadeiras em um

departamento público são complexos e exigem o domínio das regras das instituições, o

proveito de prestígio e influência ou o exercício de poder em função da hierarquia.

Presenciei situações em que alguns funcionários antigos e sabedores das normas da casa

tinham informações sobre a existência de uma mesa disponível e conseguiam que a

transportassem para a sua sala, quando o procedimento indicava que o coordenador

deveria solicitá-la ao departamento de serviços gerais. Em outras, o acesso a salas

amplas, confortáveis, com linhas telefônicas particulares era restrito a funcionários

hierarquicamente superiores ou que gozavam de certo prestígio ou poder na estrutura

burocrática. Em nenhum dos casos a GTZ se encaixaria, considerando-se não fazer parte

da estrutura administrativa, da burocracia em questão, mas de uma outra burocracia,

ainda por cima estrangeira, alemã.

Quanto às formas de relação dos peritos da GTZ com as equipes dos projetos, elas

podem variar bastante, refletindo muitas vezes a história pessoal do próprio “perito”, seu

tempo no Brasil, seu conhecimento da cultura.

Peritos: representações e auto-representações

Sobre o termo perito, alguns alemães que atuaram nesta função o rejeitam, pois na

visão deles tem relação com a idéia de “especialista”. Os que são assim chamados

declaram:

O perito é um cara... Eu não gosto disso, “perito”, “cachorrinho”. Consultor, nós éramos consultores. Só que, naquele tempo, nós tínhamos um cargo, uma denominação. Aqui no Brasil não tem ninguém que seja Regierungsberater(in) – consultor(a) governamental. Esse consultor, em países menos importantes que o Brasil tem mais esse tipo de consultor, na África, por exemplo. Aqui no Brasil não. Não querem ninguém que ajude nas decisões macro.412

Outra funcionária da GTZ argumenta no mesmo sentido:

412 Entrevista concedida em Belo Horizonte, , opus cit.

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Não gosto do termo“perita”. Prefiro usar o termo “assistente”, que é como eu me sinto, prestando ajuda e não numa definição que me coloca como especialista. A equipe do PDPI é toda muito jovem, com pouca prática de projetos. Procuro atuar neste sentido, de ajudar a organizar projetos, dando cursos e capacitação, na elaboração de oficinas, monitoria e administração. Para mim, perito tem uma conotação de expert, e não é isso que busco fazer, mas sim dar orientações.413

O termo perito é adotado pela GTZ no sentido formal para “profissionais liberais

(free lancer) que trabalham para a empresa no âmbito de um contrato de locação de

trabalho ou serviços na Alemanha ou no estrangeiro”.414 Nestes termos, a categoria

encaixa-se àquele profissional sem vínculos formais de trabalho com a GTZ, o que

poderia se definir como consultores eventuais.

A palavra perito tem muitas vezes no Brasil uma conotação pejorativa,

relacionada a uma figura autoritária, intervencionista, distanciada e até mesmo hostil. São

muitas as críticas que escutamos no Brasil em relação ao trabalho de peritos alemães ou

experts, o que não corresponde exatamente às exigências do cargo que desempenham. Há

casos em que o perito não domina o assunto do projeto em que trabalha, mas sim a

atividade de planejamento e a sua execução, além da aplicação das normas e dos

procedimentos da GTZ para as quais são treinados por meio de cursos que recebem na

Alemanha e de estágios práticos que fazem em campo junto a outros peritos mais

experientes.

Origens de uma mesma trajetória em comum: solidariedade e cooperação

A partir de 2003, a ministra Heidemarie Wieczorek-Seul implantou um processo

de reformas no BMZ para melhorar o desempenho de suas políticas, o que implicou o

corte de diretorias e divisões de sua estrutura e a promoção de maior aproximação e

integração entre os trabalhos de suas instituições executoras, forma de melhorar os

resultados da política de cooperação através da complementaridade entre eles. De acordo

com o site do ministério, as reformas vieram em função dos fracos resultados obtidos

413 Entrevista concedida em 2 de setembro de 2005, em Manaus. 414 GTZ. Compêndio do vocabulário da GTZ. Eschborn: GTZ, 1997, p.213.

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diante dos objetivos propostos pela política de cooperação para o desenvolvimento.415

Para um perito experiente da GTZ, atualmente aposentado, este processo tem sido

incorporado facilmente pelas agências:416

Eu acho que a GTZ, ao menos ela, está querendo cooperar com atividades do KfW e com atividades dos serviços de voluntários alemães, do DED, tanto que, sempre que tivemos reuniões, isso foi falado. Chegaram a fazer convênios em nível local... Esses projetos, todos, principalmente os últimos dois, nós cooperávamos com o DED e com outras pequenas empresas que não eram alemães não, eram locais mesmo: igrejas, associações, amigos de certa reunião com quem nós fizemos convênios, trabalhamos juntos. Porque a GTZ inicialmente não fazia muito isso não. Não fazia cooperação com o DED, por exemplo. Até porque o DED e a GTZ foram se aproximando mais porque dirigentes da GTZ foram ser dirigentes do DED e vice-versa. Um dos diretores da GTZ durante muito tempo foi diretor do DED na Alemanha. Então, isso deve ter ajudado a aproximação.

O relato acima nos revela as formas como as interações e as conexões entre um

mesmo grupo de estrangeiros se dão no “campo da cooperação”, não somente no plano

das instituições, mas fortemente consolidada através das relações entre os funcionários de

cada uma dessas instituições nos países onde atuam. Ainda que estejam em cidades

distantes, como acontece no caso do Brasil em que os escritórios das instituições se

dividem entre Brasília, Recife, Rio de Janeiro, Ceará, Porto Alegre e Manaus, ou onde se

localizam as bases de projetos, há um constante contato entre esses funcionários, seja em

eventos e reuniões, seja em comemorações e festividades da embaixada da Alemanha no

Brasil, ou mesmo por motivos pessoais, quando já se conheciam da Alemanha, em função

de atuarem politicamente no “campo do desenvolvimento”. Por motivos profissionais, é

comum também que um funcionário mude de uma instituição para outra ao final de um

projeto para variar sua forma de atuação em um país em que queira permanecer.

É muito comum os profissionais alemães no campo do desenvolvimento

apresentarem uma trajetória que se origina em trabalhos vinculados aos movimentos

sociais organizados e alcança depois os espaços formalizados de uma agência de

cooperação do governo. Mesmo sendo responsáveis por um programa da GTZ no Brasil e

de representarem a agência na articulação política para a organização de um evento de

415 Ver www.bmz.de 416 Entrevista concedida em Belo Horizonte, , opus cit.

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porte internacional, muitos deles ainda se identificam com uma forma de atuar, de

“defender direitos”, de fazer reivindicações e de denunciar que decorre da formação

prática adquirida, principalmente, nesses movimentos sociais. A experiência que advém

de trabalhos desenvolvidos por organizações não-governamentais em várias regiões do

mundo de certa forma “especializa” essas pessoas para o trabalho desenvolvido na GTZ,

em que assumem a posição de peritos ou de gerentes de programas. A trajetória já

trilhada pelo setor não-governamental ou pela sociedade civil sustentou a formação de

um conjunto de saberes associados a uma tradição de ativismo político, realizado por

grupos organizados da sociedade civil e por grupos ligados a igrejas, os quais atuavam

em trabalhos de base com fundamentos socialistas, cristãos, democráticos, de

solidariedade e de defesa de direitos humanos.

No entanto, a quantidade de regras administrativas e muitas escalas de decisão

características de uma estrutura hierárquica verticalizada geram insatisfação entre esses

profissionais oriundos de ONGs, principalmente os mais experientes e mais velhos.

Importante me pareceu um aspecto ideológico de filiação governamental ou não-

governamental, o que incomodava a alguns dos funcionários ou ex-funcionários da GTZ

que entrevistei e que faziam parte do grupo que vinha da militância. Como relatou uma

cientista política que foi da GTZ: “[...] porque nossas redes dentro desses órgãos onde

trabalhamos são diferentes: tem os conservadores, tem os progressistas, tem aqueles com

passado de militância, tudo na mesma organização”.417

Os vínculos existentes entre as instituições alemãs, governamentais e não-

governamentais, não se restringem ao discurso formal do ministério, mas é evidente

mesmo nas práticas dos profissionais que implementam estas políticas localmente, que

acabam colaborando uns com os outros e beneficiando-se mutuamente de uma maior

aproximação entre seus trabalhos. Como argumenta um alto funcionário da embaixada da

Alemanha em Brasília:

Agora, eu acho que em nível regional, em nível de projetos, a gente deve cooperar o mais abrangentemente possível, não é? Porque muitas vezes a GTZ era vista na cooperação só como financiador de algum projeto... o que não era certo não, não era só... Porque nesse projeto, neste último, nós tínhamos até alguns convênios com igrejas na Alemanha; não era Misereor, não, era menor

417 Entrevista em 27.05.03, na sede da FASE, no Rio de Janeiro.

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[esqueceu]. Então, nós cooperamos muito bem com eles, sem problema nenhum, sabe, uma cooperação sadia, troca de experiências, planejamento, planejamento em conjunto.418

Como mencionado acima, as atividades de apoio a movimentos políticos e sociais

pela democracia e as guerrilhas no Brasil e na América Latina, que tiveram grande força

nos anos 60 e 70, promoveram uma articulação entre grupos de organizações da

sociedade civil alemã e brasileira, ora informalmente, ora formalmente, que em muitos

casos se estende até os dias de hoje. Se tais laços não se estabeleceram por meios

institucionais, eles foram construídos por estudantes, ativistas, políticos, jornalistas e

outros profissionais que criaram vínculos com o país.

Esta tradição, pelo que podemos ver no Brasil, tem uma base política de ação

fundamentada no pensamento marxista e na tradição cristã. Os vínculos entre

representantes alemães (os cooperantes) de organizações no Brasil, estruturados por meio

das Comunidades Eclesiais de Base e das organizações não-governamentais – em

gestação ainda no período do regime autoritário – prolongaram-se ao longo de muitos

anos, criando articulações políticas que viabilizaram a entrada de representantes da GTZ.

O trabalho da sociedade civil alemã no Brasil continua ativo e certamente

contribuiu para ampliar as possibilidades de atuação do setor governamental alemão. As

agências internacionais de forma geral e, de forma particular as alemãs, contavam com

um quadro de funcionários ou consultores (peritos, especialistas, ou que nome dessem) já

estabelecidos no país, com conhecimento do “campo”, ou seja, das políticas locais, das

lideranças e dos representantes políticos com os quais iam trabalhar.419

Pude constatar isso no final de 2002 e início de 2003, quando entrei em contato

por meio eletrônico com um conjunto de profissionais alemães atuantes em redes de

ONGs na Amazônia brasileira, como Urgewald, Katalyse, Klimabuendnis e

Tropenwaldnetzwerk (Rede da Floresta Tropical); pesquisadores alemães que estudam

impactos de grandes projetos sobre povos indígenas na Amazônia; também os das

universidades, como Kassel, Marburg, além da Universidade Livre de Berlim.

418 Rainer Willingshoffer, em entrevista em 2003, em Brasília. 419 Este é um know-how que instituições que atuam internacionalmente têm, uma capacidade de identificar, em pouco tempo, quais são as pessoas-chave, os “canais” pelos quais podem navegar e fazer conexões políticas localmente, viabilizando os seus trabalhos no país.

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Pessoalmente, entrevistei no Rio de Janeiro no mesmo período alguns antropólogos que

trabalhavam em ONGs nacionais, bem como o diretor da Fundação Heinrich Böll.

Verifiquei a capacidade de articulação discreta e bem enredada dos alemães no

campo ambiental no Brasil, tanto na esfera governamental como na não-governamental.

Mantêm, além da sua discrição, até mesmo certa invisibilidade no que se refere aos meios

políticos de Brasília, numa construção contínua de relações ao longo de quarenta anos,

consolidada em relações diplomáticas, através dos meios oficiais de “Estado” e de

organizações científicas, acadêmicas, institutos de pesquisa agrícola e escolas de

tecnologia. Estes estruturam-se no Brasil em bases localizadas, distantes muitas vezes dos

centros de poder, em projetos de ONGs alemãs com secretarias municipais ou estaduais,

ou mesmo com outras ONGs brasileiras. Tal forma de inserção no campo social e

ambiental consolidou hoje no Brasil um espaço político para organizações alemãs,

governamentais e não-governamentais.

Trabalhos sobre direitos indígenas à terra e questões relativas a conhecimentos

tradicionais de populações indígenas, percebidos no exterior como algo “tipicamente

brasileiro”, são preocupações de europeus, norte-americanos, de habitantes do mundo

inteiro, conectados por informações veiculadas por meios eletrônicos e televisivos –

Internet, tv a cabo, e-mail.

Desde os anos 60, a mobilização em torno de denúncias sobre problemas sociais

ou ambientais no Brasil e em outros países do “Terceiro Mundo”, provenientes de

brasileiros e estrangeiros, principalmente europeus e norte-americanos, tem sido uma

forma de ação política. O ativismo, ao longo de décadas, de estudantes, jornalistas,

cientistas políticos, sociólogos do Brasil e da Alemanha, visando às relações de apoio a

movimentos políticos e sociais por meio de instituições religiosas, criou vínculos,

estabeleceu relações profissionais e pessoais entre alemães e o Brasil, que até mesmo se

formalizaram profissionalmente em arranjos, programas e convênios institucionais

através das agências de cooperação para o desenvolvimento. Uma perita alemã da GTZ

que entrevistei concorda com esta idéia:

A experiência nas ONGs pode ser considerado um estágio para se trabalhar com a GTZ na cooperação técnica, porque quando se é jovem, o trabalho nas ONGs se

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direciona para atividades no exterior, como voluntários, o que de certa forma se dá quando você trabalha na cooperação técnica. 420

Alguns desses contatos estendem-se até hoje, em relações mais “profissionais”,

através da institucionalidade das agências de cooperação para o desenvolvimento.421

Muitos dos antigos ativistas políticos e participantes de organizações não-governamentais

de apoio a movimentos sociais na América Latina e no Brasil, desde a área de direitos

humanos até trabalhadores rurais e assentamentos, povos indígenas e outros, assumiram

posições importantes na GTZ. Não necessariamente permaneceram lá, mas estiveram em

postos de decisão em momentos importantes da atuação da GTZ em projetos no Brasil.422

O que definimos acima como vínculos entre brasileiros e alemães, que se deram

na forma de arranjos e convênios institucionais, podem ser mais especificamente tratados

por redes sociais, uma estratégia importante de mobilização política desde os anos 1960,

particularmente em regimes autoritários. A sua repercussão no exterior dava legitimidade

a “lutas” políticas por democracia, direitos humanos, civis, culturais e econômicos no

chamado “Terceiro Mundo”.

A idéia de redes sociais me parece adequada para pensar este contexto em que as

relações entre alemães e brasileiros se articularam em torno de uma “ação política” de

defesa dos direitos e da democracia, o que posteriormente iria desencadear programas e

projetos orientados para o desenvolvimento social no Brasil.

As diferentes abordagens sobre o conceito de “rede” foram ampla e claramente

exploradas por Ana Enne em sua tese de doutorado, na qual argumenta que rede é um

tipo de configuração social que se caracteriza por ser fluida, não necessariamente de

contato direto entre seus membros, como ocorre entre “grupos” sociais ou agrupamentos.

Como argumenta:423

[Nas redes] as relações se dão através de links entre os agentes, de forma interpessoal, marcados por um fluxo de informações, bens e serviços que irão

420 Claudia Herlt, em entrevista na GTZ, em 12.09.2003, Brasília. 421 Ex-funcionária da GTZ, em entrevista em 27.05.03, na sede da FASE, no Rio de Janeiro. 422 Alguns deles: Regine Schönenberg, Thomas Fatheuer, Rainer Willingshoffer, Claudia Herlt e

Dietmar Wenz, este último do KfW. 423 Enne, Ana Lucia Silva, opus cit., p.151.

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resultar em processos de interação cujas fronteiras não são estáticas, mas encontram-se em permanente construção e desconstrução.

Em seu estudo, Enne trabalha com as categorias de redes e sub-redes para

descrever o sistema de fluxos e interações entre agentes e agências que lidam com

memória e história da Baixada Fluminense, para o que analisa as contribuições de alguns

dos autores que exploraram a definição do conceito.

Para Epstein, uma rede é feita de pares de pessoas que interagem uma com a outra

em termos de categorias sociais e que se consideram praticamente iguais socialmente,

ignorando pequenas diferenças de status social entre eles.424

Carl Landé425 analisa o conceito de rede partindo de seu par original, o qual

chama de “díade”, unidade da rede. Define díades como a menor estrutura possível de

uma relação, envolvendo alguma forma de interação entre dois indivíduos somente. Uma

rede social seria composta por uma série de relações diádicas, ou seja, seria formada “por

todas aquelas pessoas que estão ligadas umas às outras direta ou indiretamente”. Redes

sociais têm sido definidas como matrizes de relações sociais ou como campos sociais

feitos de relações entre pessoas. Incluem todos os indivíduos que se encontram em um

dado campo e que estão direta ou indiretamente em contato uns com os outros. Isto

significa que inclui todos os indivíduos que estão conectados diretamente com ao menos

um outro membro da rede.

Clyde Mitchell426 aprofunda a conceituação e propõe uma série de critérios

formais e outros relativos à interação em si. Ao sugerir a utilização do conceito de rede

para o estudo de sociedades complexas e urbanas, Mitchell vai apontar a existência de

dois tipos de redes: uma envolvendo a troca de bens e serviços; a outra englobando a

troca de informações, sendo esta segunda um processo de comunicação. Também Epstein

vai adotar esta idéia em seus estudos urbanos, pensando a rede como um sistema de

trocas de informações capaz de gerar padrões normativos para as condutas dos grupos e,

conseqüentemente, padrões de identificação. 424 Epstein, A. L. “Gossip, norms and social network”, opus cit.; Enne, Ana Lucia Silva, idem, p.147. 425 Landé, Carl. “Introduction: the dyadic basis of clientelism”. In: Schmidt, Steffen et alii (ed.). Friends, follower ,and factions. A reader in political clientelism. Berkeley: University of California Press, 1977, p.xxxiii; Enne, Ana Lucia Silva, idem, p.141. 426 Mitchell, J. Clyde. “The concept and use of social networks”. In: ______ (ed.). Social networks in urban situations. Manchester: Manchester University Press, 1969. p.12.

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É neste sentido, de troca de bens e serviços e de troca de informações, que o

conceito de rede deve ser pensado para analisar as relações entre indivíduos que se

envolvem nas chamadas atividades (de cooperação) para o desenvolvimento, o que

implica o seu deslocamento para as mais variadas partes do mundo movidos por ideais de

solidariedade e mudança social.

As redes de ONGs têm um papel fundamental na articulação da sociedade civil

local e no diálogo com organismos internacionais. Essa articulação expressa não somente

uma intensa comunicação e troca de informações entre as instituições e as pessoas que

participam das ONGs, mas também são formas locais de lidar e negociar diante de

processos decisórios que envolvem organismos multilaterais ou bilaterais. Há redes que

são formadas a partir de determinados temas específicos (direitos humanos, meio

ambiente, povos indígenas), em função da própria mobilização política dos seus

membros, mas também podem se definir a partir de uma maneira de atuação orientada

para determinada região geográfica (Amazônia, Nordeste brasileiro, por exemplo), não

sendo raro, no entanto, aquelas que apresentem ambos os aspectos.

Consideramos o argumento de que o trabalho de ativistas e voluntários de

movimentos políticos alemães e brasileiros na década de 1970 foi uma etapa importante

na consolidação de uma rede entre brasileiros e alemães, o que é apontado nesta

declaração de uma perita alemã da GTZ:

Trabalhei, antes de entrar na GTZ, na vice-presidência de uma rede de ONGs alemãs por seis anos e por isso conheço muita gente aqui no Brasil. Conheci nesse tempo o Paul F. Fatheuer (na época perito do PDA, pela GTZ) e o Dietmar Weinz (então diretor do banco KfW), quando éramos ligados a movimentos sociais.

Como vimos, as redes aparecem e suas conexões são esclarecidas conforme

avançamos nos relatos pessoais, nas experiências específicas de cada funcionário da

GTZ, cujas trajetórias, ainda que muito distintas, têm certos aspectos em comum, em

algum momento se cruzam e se tocam umas com as outras, como veremos a seguir.

Trajetórias pessoais

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A seguir, tratarei de quatro casos de peritos que trabalharam na GTZ no Brasil,

pertencentes a duas gerações distintas: de um lado, peritos na faixa dos 70 anos, com

formação em áreas agronômica e biológica; de outro, peritos em torno de 40-50 anos, de

formação na área de humanas, em ciência política e sociologia, experiências que são

muito ilustrativas da variedade de pessoas envolvidas e dos aspectos em comum entre

eles, revelando, desta perspectiva, como é o trabalho da GTZ no Brasil.

1. Albert L.– das bases para altas cúpulas e de volta para as bases

Albert L.é uma referência para muitos profissionais na GTZ, tanto em função de

sua longa experiência na GTZ, mas também por ser um profissional exemplar no campo

da cooperação. Logo ao entrar em contato, por meio telefônico, ele foi receptivo e não

criou dificuldades em conceder a entrevista. Lamster é um senhor alemão oriundo da

Baviera, sul da Alemanha, casado com uma alemã oriental e com três filhos também

alemães, dos quais somente a filha vive no país de origem. Quando o entrevistei, em

início de 2007, tinha 65 anos. Albert mora no Brasil desde 1969 e não parece ter interesse

em voltar a viver na Alemanha. Lá se formou em engenharia agrícola e engenharia

agronômica, e tem mestrado em agricultura. Ficou por mais de trinta anos na GTZ, de

1969 e 2004, trabalhando em todo o Brasil, além de prestar consultorias no exterior para

várias organizações, como Banco Mundial, ICCA, KfW e empresas particulares. Reside

atualmente em Belo Horizonte, (MG), onde vive com recursos de sua aposentadoria.

Em seu relato pessoal, prioriza o fato de ser uma pessoa cujo trabalho é orientado

sobretudo pela sua experiência prática de campo, e não por ideologias. Enfatiza a

formação técnica que teve na área agrícola. Trabalhou no Brasil, durante o período

autoritário, diretamente com os militares na política para a agricultura, mas em nenhum

momento isto foi apresentado como um problema, ao contrário, cita alguns deles dos

quais é amigo pessoal.

Naquele tempo, o Kruger até disse pra mim naquela exposição dos 40 anos: “Albert, nós não podíamos usar fotografia de vocês porque você sempre aparece com os militares”. Daquele tempo eu não posso reclamar de nada. Por exemplo, no programa que nós fizemos, a cada ano nós trazíamos o melhor governador, o melhor secretário o melhor produtor de cada estado, as melhores cooperativas, convidávamos para Brasília e o João Figueiredo recebia essas pessoas no Palácio,

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almoçava com eles. Hoje não sei se... um assessor de política, talvez, convidaria gente pobre, pequeno produtor do interior do Piauí. Então, foi uma época muito produtiva. O Aureliano Chaves é um político muito sério, foi governador de MG e é meu amigo, ele é fantástico. O filho dele eu encontro nos sábados, igual ao pai.

Em sua fala, notamos que Albert não tem uma postura política, como alguns de

seus “colegas” da GTZ, que se posicionam claramente com uma orientação de esquerda.

Albert representa uma geração mais antiga, que tinha uma linha de atuação estritamente

“técnica”, ou seja, centrada nas práticas, nos mecanismos, nas metodologias, e menos nas

ideologias, atuando com o mesmo compromisso e dedicação junto a militares no poder e

junto a pequenas comunidades rurais no interior do país. Ele valoriza, sobretudo, as

relações que estabeleceu com as pessoas com as quais se envolveu no trabalho.

É uma pessoa simpática e acolhedora. Recebeu-me na rodoviária e seguimos para

a sua confortável casa, decorada em um estilo colonial mineiro, com muitos passarinhos e

objetos de decoração do artesanato regional. Preparou ele mesmo um jantar com carne de

porco, e bebeu muita cerveja, sem se alterar. A entrevista transcorreu em tom muito

agradável, sendo ele muito direto em sua narrativa.

Colocou uma música tradicional alemã e falou sobre seus hobbies depois de

aposentado pela GTZ da Alemanha: começou a aprender a tocar viola caipira por conta

própria e a trabalhar em entalhes e pequenas esculturas de madeira e couro, o que

aprendeu na Alemanha. Gosta de fazer particularmente os santos, entre eles vários São

Franciscos. Diz ter fascínio pela arte popular e falou longamente sobre como aprendeu

com o povo em sua vida profissional, sobre a importância que dá à “sabedoria popular”.

Falar sobre isso parecia ser uma forma de legitimar sua própria relação com o trabalho

que fazia, ligado diretamente às comunidades de pequenos produtores rurais. Revelava

não só o prazer que tinha em seu trabalho, mas também o compromisso ético, o que se

refletiu no sucesso dos projetos e, sobretudo, no reconhecimento local. Para ele, o que o

sustentou foi o reconhecimento local, um reconhecimento tanto das comunidades com as

quais trabalhou, como aquele que foi formalizado em condecorações oficiais a ele dadas

por vários estados do Brasil, como afirmou: “Eu sou cidadão honorário do estado de MG

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como primeiro estrangeiro, sou cidadão honorário de Santa Catarina como primeiro

estrangeiro; aqui, em Minas Gerais, sou cidadão honorário de mais de 20 cidades”.

A trajetória de Albert na área de cooperação técnica internacional começou

praticamente junto com a criação do ministério de cooperação, o BMZ, na Alemanha, na

década de 60. Neste período em que ele começou, o trabalho de perito se baseava na

transmissão de técnicas, métodos, metodologias, para o qual eram contratados

profissionais de formação em áreas técnicas específicas. Atualmente, segundo ele, são

valorizados profissionais de formação humanista, como sociólogos, pedagogos,

jornalistas, teólogos, entre outros, o que para ele reflete uma perda da qualidade do

trabalho da GTZ.

Sua experiência profissional no exterior começou no Paraguai, onde trabalhou por

dois anos para um diplomata alemão no noroeste deste país (1963-64), abrindo a primeira

“hazienda”. Em fins de 1964, comprou uma chácara no Paraná, na qual havia uma área

de mata virgem, onde trabalhou, como disse, “igual a um colono”, criando porcos. Havia

pedido um empréstimo do Banco do Brasil para fazer uma suinocultura mas, com o

primeiro surto de peste suína no Brasil, todos os seus porcos morreram. Dessa maneira,

bastante endividado, aceitou de novo um emprego, entre 1965 e 1969, em uma empresa

(M. J. Philip) que estava no sudeste do Paraná fazendo 35.000ha de “projetos de

colonização”. Foi responsável pelo mapeamento e planejamento de duas cidades. Em

1969 voltou para a Alemanha para trabalhar em um projeto de consultoria internacional a

respeito de algodão em Gana, mas antes de embarcar interessou-se mais por um cargo a

ele oferecido por uma pessoa do Ministério da Agricultura da Alemanha para trabalhar

em consultoria técnica em Minas Gerais.427 Segundo ele, naquele tempo, quem contratava

era a GAWI, empresa antecessora da GTZ. Esta foi a porta de entrada nos quadros da

cooperação técnica alemã.

No Brasil, fez homefarmer research (pesquisa sobre agricultura familiar) em MG,

de 1969 até 1974. Entre 1974 e 1977, foi consultor da Secretaria de Agricultura de MG,

na qual foi criado o programa Provárzeas-MG, que visava à utilização de 1,5 milhão de

hectares de várzeas para produção agrícola. 427 Segundo ele, quem comandava a cooperação era um departamento deste Ministério de Agricultura.

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De 1978 a 1986, trabalhou com o então ministro Paulinelli, que foi secretário da

agricultura de MG. Quando foi chamado pelo Gel. Ernesto Geisel para Brasília para ser o

secretário da agricultura, Paulinelli levou Albert para lá, onde foi criado um outro projeto

de assessoria ao ministro da agricultura.

Depois se seguiu o Delfim Netto, que foi um ministro chefe, um superministro de E. Geisel e Figueiredo. Era ainda governo militar. Eu trabalhei com Delfim Netto, para quem escrevi muitas palestras. Cada um queria que eu ficasse; eu fiquei com meu gabinete lá, ficava no 8º. Andar, ao lado do ministro. Sempre fiquei sem que eu pedisse para ficar, eles é que me pediam. E a gente conseguia fazer muita coisa.

Foi considerado nos anos 1975-80 o maior entendido em arroz da América Latina.

Viajava para todos os centros de pesquisa do mundo, foi consultor em assuntos de

várzeas em toda a América Latina. Depois de 1986, quando terminou a assessoria da

GTZ ao projeto Provárzea, trabalhou como consultor independente no Projeto Jari, de

Daniel K. Ludwig, em propriedades rurais na Amazônia, entre 1987 e 1990, onde fez o

levantamento de todas as várzeas do estuário do Rio Amazonas junto com centros de

pesquisa da Embrapa e do Cepatur, em Belém. Em 1990 foi chamado para um projeto de

profissionalização de agricultores de Santa Catarina, onde ficou até 1996. Dali, ocupou o

cargo de consultor do KfW no projeto Proteção da Mata Atlântica de SP.

Ele tinha um status especial entre os peritos da GTZ: era um dos poucos técnicos

que tinha contrato sem vencimentos. Em todas as regiões onde a GTZ atua no mundo, há

somente cerca de cem técnicos com este contrato, o “filé mignon” da GTZ, como disse,

destinado àqueles profissionais mais versáteis, mais competentes e experientes, que eles

usam para diferentes funções. Explica: “Você se compromete a trabalhar na GTZ até se

aposentar. Então, dentro deste contrato, você pega os outros contratos de dois, três, quatro

anos, mas nunca fica desempregado”.

Entre 1998 e 2002, assumiu a coordenação do ProRenda Rural, projetado para

durar doze anos, mas que foi subitamente interrompido ao atingir os quatro anos. Ficou

por mais dois anos assessorando, mas aposentou-se precocemente em 2004 em função de

sérios desentendimentos que teve com seu supervisor. Lamentou muito o contexto que

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marcou sua saída, como se toda a sua trajetória de vida profissional para a qual tanto se

dedicou tivesse perdido o rumo em uma nova e distinta GTZ. Diz:

Eu tive assim, no final na minha vida profissional, dificuldades, porque em todas as reuniões da GTZ, eu estava sozinho com as minhas idéias. Quando eu falava com meus colegas, fora do ambiente de trabalho, todo mundo estava de acordo, mas quando eu colocava minhas idéias no plenário, ninguém me apoiava. Eles tinham medo, sabe, aquele medo de perder o emprego. Isso me... Eu falava: “Vocês são cagões! Por que vocês não lutam junto comigo?”. E depois um monte de coisas. Eu trabalhei muito para a transferência de recursos, para ajudar, para dar engrenagem às coisas. E aqui, no final, eu fiquei assim como se fosse um bobão. Eu mostrava os prós e os contras. Eu lutava sozinho. Eu trabalhava com os agricultores aqui... então, uma das atividades era artesanato. Cada vez que tinha reunião em Brasília, eu levava a van cheia de artesanato, expus lá, levei agricultores. O pessoal falou: Olha o Albert, está querendo ganhar dinheiro com venda de artesanato. Coisa triste, não é? Sabe de uma coisa? Eu falei: “Não, vocês não me merecem mais. Eu não fico mais aqui!”. Eu podia estar trabalhando até hoje, mas eu não encontrei mais ressonância. E todo mundo estava me procurando: “Albert, o que você acha?”, porque eu tinha mais experiência. Todo mundo pegava conselhos meus.

Albert saiu muito ressentido da GTZ em 2004 – depois de trabalhar, entre idas e

vindas, durante trinta e cinco anos em projetos da GTZ no Brasil – por causa da falta de

reconhecimento de sua dedicação à “causa”, especialmente à empresa. Disse sempre ter

lutado para ter uma boa imagem: “ajudar a GTZ, ajudar a cooperação alemã porque eu

acho uma coisa fantástica”, o que parece ter ocasionado muito problema porque gerou

inveja entre os funcionários. Diziam que ele queria subir, projetar-se. “Se pensam assim,

eu não posso fazer nada. Vou ganhar meu dinheiro assim mesmo. Eu tenho contrato com

a GTZ”. Depois de se aposentar, ele teria tido muitos planos, como escrever um livro,

mas parece se satisfazer com seus prazeres artísticos e familiares.

Depois de uma vida dedicada ao trabalho na GTZ, Albert se aposentou pela GTZ

sem ter, pela instituição, o reconhecimento que teve das comunidades com as quais

trabalhou no Brasil.

2. Marisa M.: a cientista brasileira que se tornou perita

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Marisa M. é uma “paulistana de 500 anos”, como diz, uma referência a uma das

mais sólidas e reconhecidas tradições de famílias no Brasil. Filha de um pianista e

concertista que se chama Wagner, seu nome deriva de uma das músicas do compositor

alemão de mesmo nome do pai. Disse ser germanófila desde criança.

Sua formação é na área de biologia, com doutorado em bioquímica, tendo sempre

trabalhado como pesquisadora. Está aposentada desde 1989. Não aparenta os 70 anos que

tem; é muito ativa, falante e guarda na memória nomes ou situações vividas. Como

aposentada, depois de tantos anos trabalhando com as metodologias de planejamento

adotadas pela GTZ, particularmente o ZOPP, abriu em 1998 uma empresa de consultoria

na área de planejamento, que promove oficinas, monitoria e dá cursos de capacitação,

atividade que acabou se tornando sua especialidade. Assim, reproduz para empresas no

Brasil a metodologia que aprendeu e a lógica administrativa à qual se converteu. Afirmou

sempre ter tido boas relações com os alemães e os prefere aos americanos em projetos de

pesquisa com agências estrangeiras. Sua experiência na GTZ começou em 1975, tendo

sido a única brasileira que exerceu ali a função de perita. Segundo ela:

nunca teve perito no Brasil que não fosse alemão. Tem os coordenadores, tem os peritos adjuntos, mas perito, perito mesmo que assinasse e recebesse dinheiro, só alemão. Eu recebia dinheiro no meu nome. Eu fui caso único, acho que na Alemanha toda, eu não conheço ninguém mais.

Sua entrada na GTZ foi o resultado do reconhecimento do seu trabalho de

pesquisa, um trabalho que já havia sido premiado e para o qual não teve qualquer apoio

externo. Em função de indicações de outros pesquisadores, representantes da GTZ foram

ao seu encontro. Ela não acreditou na oportunidade que se apresentava. Como disse:

Não fui eu que descobri a GTZ, foi a GTZ que me descobriu. Depois que a GTZ foi criada, como um órgão governamental, se você olhar daí pra frente, em 1975, exatamente em 1975, eu estava um dia no meu laboratório e entra a diretora da minha divisão, a dra. Vitória Rosseti, com um amigo dela que era alemão e que morava na Nicarágua. Eles com mais um alemão e uma alemãzinha, aliás uma mocinha bem alta, e ela me disse que eles queriam conversar e me perguntou se eu poderia atendê-los. Eu era a chefe da sessão. E eles começaram a fazer perguntas sobre a ferrugem, que era uma doença muito séria do café; é ainda, mas já está controlada. Isso foi logo no começo do ano. Foi em 1974, em fevereiro. Em 1975 foi a segunda vez. E tem uma passagem engraçada, eles

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diziam: “O que você precisa?”; Eu dizia: “Preciso disso”. E eles: “Então põe no papel”. A esta altura já estava uma conta assim de 600 mil dólares. Naquela época, nós estávamos à míngua. Nós não tínhamos dinheiro pra comprar nem um sal qualquer de laboratório e o cara vem me falar de 600 mil dólares... Eles saíram e nós achamos muito engraçado, rimos muito e eu esqueci o caso. Não levei a sério mesmo. Imagina, não sei quem é a GTZ, nunca ouvi falar nisso, vem oferecer milhões! Quando foi no final do ano, um colega meu foi fazer um curso de microscopia eletrônica na Alemanha e em maio de 75 ele voltou e disse pra mim: “Waly eles estão esperando que você mande um projeto”. Eu falei: “Como? Projeto, que projeto?”. “Você ficou de mandar um projeto e eles estão aguardando”. Eu falei: “Mas era verdade?”. Essas coisas, bem de brasileiro. Ai meu Deus, que pateta. Eu disse: “Eu vou fazer”. Então, reuni uma equipe; nós já tínhamos um projeto, porque nós já vínhamos trabalhando na ferrugem do café desde que ela surgiu. E aí, nós estávamos num ponto, com um trabalho importantíssimo em andamento, um trabalho que foi premiado, quer dizer, a gente não começou do zero, já tinha alguma coisa, só colocamos em ordem e eu apresentei (grifos meus).

Seu relato indica uma série de aspectos do funcionamento de uma das dinâmicas

da cooperação internacional. Neste caso, o apoio à pesquisa surgiu a partir de um

interesse econômico internacional da Alemanha, em sua posição como importadora

mundial de café, ao considerar os impactos econômicos que o aumento de seus preços

teriam para a economia alemã. Não foi uma atividade que teve como intuito a capacitação

de um laboratório para que o Brasil tivesse melhores resultados científicos, mas estes

resultados já tinham sido alcançados e, por isso, o laboratório teve o apoio do projeto. O

assunto da pesquisa era desconhecido para a Alemanha e não havia nenhum funcionário

da GTZ que pudesse acompanhar a supervisão do projeto. Assim, na prática, Marisa

assumiu a função de perita da GTZ no projeto, como também a de responsável pela parte

técnica, enquanto coordenadora de um laboratório de pesquisa junto à Secretaria de

Agricultura de SP, que investigava uma praga comumente conhecida por “ferrugem do

café”.

Estes eram papéis contraditórios, porque como perita tinha que supervisionar ela

própria enquanto pesquisadora. Supervisionava a prestação de contas e o planejamento

das atividades ao mesmo tempo em que coordenava a equipe em função de critérios

científicos. Sua situação de contrato, no entanto, era um pouco diferente daquele oficial

de perito. Como era funcionária pública, não podia assinar um contrato normal, então

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recebia como se fosse uma bolsa, um valor inferior ao que se pagava a um perito alemão.

Para que recebesse como perita, teria que deixar o seu emprego, o que não fez na época.

Para exercer sua função de “perita”, teve que receber treinamento na Alemanha. A

gestão de projetos, como informou, segue um manual enorme, repleto de normas para

prestação de contas e para todo o processo de administração, o que considerava ser uma

grande vantagem diante da “desordem” dos projetos no Brasil naquela época. Para ela, as

normas eram uma importante referência para se ter êxito nos resultados. Não havia sido

criada a ABC e não havia normas nem procedimentos para planejamento e controle na

execução de projetos no Brasil.

Olha, trabalhar com a Alemanha, com outra língua, com outro jeito de fazer a parte financeira, tudo, prestação de conta, tudo, foi mais fácil para mim do que com os brasileiros. Primeiro, porque eles têm esse livrão aqui, que é o “Organizacionhandsbuch” para o pessoal de fora do país. Então, a coisa era desse jeito, aqui a gente tinha todas as regras, pra tudo. Se você quiser saber como é que faz qualquer coisa, as explicações, os modelos, estão todos aqui dentro. Então, não é como aqui, isso era um problema terrível no Brasil, porque, por exemplo, um dia você tinha que mandar pra não sei quem da sessão, pro diretor; no dia seguinte, tinha que passar em outro lugar, era por telefone, não valia mais, as normas eram uma loucura. Lá, não! Isso aqui eram os pedidos, não tinha problema nenhum. Eu trabalhava melhor com a Alemanha, com menos problemas do que no Brasil. Quando a gente fazia a prestação de contas, era um livro. Imagina, naquele tempo não tinha computador, tudo era feito à mão... não dava nem pra fazer na máquina, porque era um livro descomunalmente grande.

Para Marisa, o “Zopp foi a melhor coisa que a GTZ trouxe para o Brasil”. Quando

se refere ao ZOPP, significa todo um processo de conversão a um conjunto de

procedimentos e metodologias de planejamento da GTZ que são implementados com ele.

Era uma coisa tão boa, o ZOPP, mudou tanto a minha vida e a vida do meu pessoal, de outras pessoas, que eu achei que aquilo devia ser passado pra outras pessoas. Aí, eu montei inicialmente um curso interno no instituto e convidei o Hans Kruger, um amor de pessoa. Eu organizei todo o curso e ele foi dar o curso no Instituto Biológico. Foi em 1989, foi o primeiro curso de ZOPP que teve no Brasil. Primeiro mesmo. Foi o Hans que deu o curso.

Afirma que é muito criticada pelos brasileiros, que reagem à adoção de normas e

procedimentos de monitoramento e avaliação de projetos. A monitoria é uma das

atribuições dos peritos e um aspecto a que a GTZ dedica particular atenção, sendo uma

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exigência contratual dos projetos de cooperação técnica. Há dois níveis de se

implementar a monitoria: o nível do que está planejado (POA) e efetivamente o que foi

executado; e o nível dos resultados do projeto, a partir dos objetivos. O documento que

permite fazer esta leitura casada é a matriz lógica (Log Frame). A definição de monitoria,

de acordo com documento elaborado pela empresa de consultoria de Marisa M., temos:428

A comparação do plano elaborado com o plano realizado; é a análise dos desvios ocorridos durante a implementação. A monitoria compreende como suas tarefas: estabelecer padrões de desempenho e/ou execução das ações planejadas e implementadas; projetar e operar um sistema de informações do ocorrido no período (documentação); medir o desempenho atual em relação aos padrões definidos nos planos anteriores e verificar, nas datas previstas de monitoria, o grau de realização das ações do projeto a fim de identificar desvios entre o planejado e o realizado (grifos meus).” (Moraes e D’Alessandro: 1999. Unidade IV – 29/30)

Para Marisa, é um ponto de difícil assimilação nas instituições públicas brasileiras

em geral e ela diz ser muito criticada como quem faz propaganda da GTZ:

Por que a monitoria no Brasil não funciona? Eu dou cursos de monitoria, o pessoal fica encantado com o curso. Mas na hora que você vai fazer a monitoria com eles, eles sonegam informação. Porque ainda existe na cabeça do brasileiro a idéia de que monitoria é policialesca. Você vai lá pra vigiá-los, pra ver o que eles fizeram, então eles não entendem a monitoria como alguma coisa que você está fazendo pra corrigir erros futuros, possíveis, desvios ou coisas que já estão acontecendo que podem chegar lá na frente e te inviabilizar um projeto. Eles vêm a monitoria como alguma coisa que a gente vai lá pra fiscalizá-los. Como os alemães fazem a monitoria normalmente, tem muita gente que tem ódio aos alemães porque eles estão fiscalizando. Gente, fiscalizar é uma coisa, monitorar é outra. A função da monitoria é outra.

Antes de qualquer um, o moderador deve estar convencido da importância dessas

normas e dos procedimentos de planejamento a serem adotados, mas este reconhecimento

é resultado de uma longa “formação pedagógica”, a partir de cursos e treinamentos, como

um processo de conversão. Uma vez aceita esta lógica, é possível, então, reproduzi-la.

428 Apresentação de painel de monitoria em encontro do AMA/PPG-7, de Juliana Sellani, baseado em Moraes e D’Alessandro: 1999. Unidade IV, p 29/30.

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Eu fui fazer formação na Alemanha como gestora de projetos. Todos os anos tinha que ir pra lá, passava dois meses, visitava universidades, mandava pessoal para fazer capacitação em pesquisa, recebia convites para dar conferências, trazia o pessoal de lá para dar conferências aqui, cursos de formação do pessoal.

Com a consolidação do trabalho da GTZ no Brasil, com o desenvolvimento de

seus projetos em várias regiões do país, este processo de treinamento estabeleceu-se

como uma prática adotada pelos próprios funcionários da GTZ, os peritos mais

experientes, que passavam por meio de “oficinas de capacitação” as metodologias a

serem implementadas nos órgãos nacionais pelos funcionários “treinados” ou

“capacitados”. Os projetos são instrumentos pelos quais a “formação” enquanto função

pedagógica se concretiza na prática junto aos profissionais “locais”, ou seja, os órgãos

com os quais os alemães trabalham. Através desse processo, com oficinas e cursos, são

selecionados aqueles com melhores condições de adequação e que os são mais “aptos”,

no sentido administrativo, para repassar essa mesma metodologia e toda uma cultura

administrativa; são definidos como os “multiplicadores”.

O Albert treinou o pessoal dele em planejamento e eu fiz todos os planos de gestão para ele, as oficinas. Foram 14 meses. Aí ele foi pra Minas e, lá em Minas, eu dei, acho, 15 cursos. Ele treinou todos os gerentes de Minas Gerais, da Emater, em planejamento, todos. Depois nós selecionamos os melhores para fazer a parte de monitoria e plano operacional e ainda selecionamos um pequeno grupo, bastante seleto, pra fazer a moderação, para serem os multiplicadores. Por exemplo, lá no Provárzea, também se fez isso, então, você tem uma outra qualidade de trabalho, porque o pessoal está capacitado para gestão.

A experiência de Marisa é muito elucidativa quanto ao significado de um

processo de conversão, um exemplo de formação bem-sucedida promovida pela GTZ. Ela

tem admiração pelos métodos alemães e pela cultura alemã e tornou-se uma difusora no

Brasil dessas práticas. Mudou de área de trabalho, sendo prioridade hoje sua atuação na

área de consultoria em empresas, palestras e cursos de treinamento, atendendo ainda a

várias organizações alemãs.

Marisa faz uma avaliação do trabalho dos peritos, dos atributos que são

valorizados em sua atuação, atribuindo às características pessoais na construção de uma

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relação de confiança e de admiração pelos grupo com o qual se trabalha a razão do

sucesso de um projeto. Estes atributos pessoais não são fixos, mas mudam com o passar

dos anos e refletem as mudanças nas próprias concepções de cooperação. [...] você tem as relações com os peritos, com o beneficiário e isso pra mim é mais importante, do meu ponto de vista, do que a relação institucional. Porque a relação institucional tem ainda a GTZ no meio e tal e qualquer coisa, eles se entendem por lá. Agora, a relação do perito com a comunidade, com o beneficiário, é fundamental e é isso que o Albert faz divinamente bem, que poucos realmente conseguem fazer. É você trazer e conseguir fazer uma coisa participativa, criando, vindo da base, criando alguma coisa consistente.429

Finalizamos com um relato em que fala sobre a atuação dos peritos alemães no

estrangeiro:

Então, como eu trabalhei junto dos alemães, na Alemanha, com eles, dentro da GTZ, [...] nas reuniões nossas lá, com outros peritos de outros lugares do mundo, havia sempre a recomendação de que se respeitasse a cultura local: ”não se imponha, você não está lá para aparecer!”. Isto era uma coisa que era repassada. E você vê, a maioria dos peritos (é claro que de vez em quando tem um que escapa, como em qualquer lugar do mundo), é muito discreta quanto a este ponto (grifos meus).

Estes dois peritos, Albert e Marisa, representam uma geração que se dedicou sem

críticas ao trabalho na GTZ. Foram pessoas que prioritariamente tiveram formação em

áreas de ciências exatas e adotam uma atitude pragmática. Repassam nos trabalhos

desenvolvidos as metodologias aprendidas na GTZ, acreditando que estão fazendo o

melhor. Dedicaram toda a vida à GTZ e foi através dela que se constituíram

profissionalmente.

No que se refere aos dois outros peritos que selecionamos, suas trajetórias já são

diferentes, vêm de outra formação, em ciências sociais e ciências políticas. Atuaram

durante anos em organizações não-governamentais na Alemanha e em movimentos

sociais nesse país e no exterior, sempre na defesa de direitos políticos e direitos humanos;

também em movimentos de proteção ao meio ambiente e na mobilização de pobres e

429 Entrevista concedida em São Paulo, em 22/01/2007.

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excluídos, valorizando o trabalho que fazem em função de ideais e valores éticos e

morais.

3. Martha S.

Martha S.é uma alemã de presença forte: é alta e também alto fala, é bastante

expansiva, alegre. Fomos apresentadas por uma antropóloga e pesquisadora da FASE,

Iara Ferraz, sua amiga pessoal. Conversamos na sede da própria FASE no Rio de Janeiro,

tomando um café no último andar, onde há uma cozinha e um refeitório. Tinha vindo ao

Brasil para continuar uma pesquisa que estava fazendo na fronteira entre o estado do

Amazonas e a Colômbia, sobre narcotráfico. Disse que estava com saudades da

Amazônia, especialmente da cerveja Cerpa.430

Martha S.é formada em ciência política e trabalha como professora universitária e

pesquisadora da Universidade Livre de Berlim. Há anos vem trabalhando no Brasil,

particularmente na Amazônia, estando atualmente vinculada ao Museu Emilio Goeldi

como pesquisadora convidada.

Antes de trabalhar no Brasil, Martha S.atuou entre os anos 70 e 80 no apoio a

guerrilhas em movimentos políticos contra a ditadura militar na Guatemala e em outros

países da América Latina.

Eu comecei a militar em 1978, com a guerrilha da Nicarágua e Guatemala. Eu vim desse movimento anti-imperialista de apoio à guerrilha da América Central. Nós tínhamos uma visão totalmente anti-imperialista da cooperação, alguns mais, outros menos.[...] Foi a guerra do Vietnã, depois o golpe militar no Chile, depois a Escola de Frankfurt que misturou tudo com o movimento anti-imperialista, [esta foi] a minha geração. 431

430 Em alguns momentos, nota-se nas falas de profissionais que trabalham na área da cooperação que, além do idealismo e do trabalho político, esta é uma atividade que seduz também porque envolve os prazeres dos viajantes, das descobertas típicas dos lugares, um pouco do turismo. A Cerpa é uma cerveja paraense, de produção restrita, que praticamente não se encontra nos grandes centros. 431 Entrevista concedida em 27.05.03, na sede da FASE, no Rio de Janeiro.

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Em sua trajetória profissional, revela que não tem compromisso com as

instituições, mas com as causas, com os ideais. Nunca se prendeu aos cargos que

conquistou, pois para ela o trabalho em instituições burocráticas acaba levando ao

conformismo, à acomodação, em função de bons salários, de conforto e de vantagens que

elas concedem aos funcionários, mas isto faz com que se perca o foco do trabalho da

cooperação. Ela acredita que as exigências burocráticas, a excessiva quantidade de

normas e diretrizes institucionais a cumprir acabam reduzindo a capacidade crítica do

profissional e gerando uma acomodação.

No entanto, reconhece que a vinculação a uma agência de cooperação, como a

GTZ, seja um caminho muito comum entre aqueles que estão envolvidos com atividades

de apoio aos países do “Terceiro Mundo”. Em suas palavras: Depois de militar na vida estudantil, tem que se viver de alguma coisa. Então, se já trabalhou muito com o Terceiro Mundo, vai se profissionalizando. Minha geração no KfW, BMZ, GTZ, todo mundo tinha esse passado; na nossa turma, mais ou menos com modificações, havia alguns mais radicais, outros menos. Eu vim desse movimento anti-imperialista de apoio à guerrilha da América Central. Nós tínhamos uma visão totalmente anti-imperialista da cooperação, alguns mais, outros menos.

O que este depoimento nos revela é que muitos dos profissionais que passaram a

ocupar funções de diretoria e chefia em organizações “da cooperação” alemã (KfW, GTZ

e DED) tinham estabelecido algum contato entre eles na Alemanha e, de alguma forma,

haviam mantido comunicação com determinadas pessoas no Brasil.

Tem muitos conhecimentos nas redes não-governamentais alemãs e no Brasil.

Conhece e é amiga de Karin Urshel (da Fundação Heinrich Böl) e de Iara Ferraz, da

FASE, entre outros, como podemos ver em sua declaração:

Foi coincidência reunir estas pessoas. Fomos descobrindo pouco a pouco que tínhamos muita coisa em comum. Tinha o Christoph Hauss, que hoje em dia é do BMZ e trabalha no programa da embaixada em Moçambique, o Dietmar Wenz, do KfW, o Gregor Wolf, que agora é do Banco Mundial, o Harald Losak, que era o coordenador do PPG-7 no Brasil, o Thomas Fatheuer, era todo o pessoal. Nós nunca tínhamos divergência política. Nós só brigávamos sobre como fazer. Sobre as finalidades, não tinha briga. Isso é raro. Foi muita sorte. Tem um pouco a ver com o movimento anti-imperialista. A gente não quer trabalhar com outro país de forma imperialista, mas de igual para igual. Essas idéias de cooperação, muita

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coisa vem do “movimento”. Aquela coisa toda do movimento de 68, anti-autoritarismo, a idéia de democracia de base, vem do “movimento”. E isso aqui, o movimento no Brasil, muita coisa vem da teologia da libertação. Então isso casou bem. As pessoas, nós conhecemos das ONGs, muitas vezes do governo também, até mesmo gente da ABC que tem um passado desse. [...]

Por ter uma trajetória no campo da cooperação para o desenvolvimento marcada

pelo trabalho em várias instituições, mas sempre envolvida de alguma forma em

atividades de proteção da Floresta Amazônica e nos movimentos sociais e políticos de

seus habitantes, Martha S. tem uma experiência enorme das especificidades deste campo

e conhece muita gente que faz parte de redes no Brasil e na Alemanha, redes estas que se

encontram e que se apóiam mutuamente em termos de recursos e de informações.

Considerando o argumento de que o trabalho de ativistas e voluntários de movimentos políticos alemães e brasileiros na década de 1970 foi uma etapa importante na consolidação de uma rede entre brasileiros e alemães, a mesma alemã entrevistada complementa:

Você tem que ver que nas instituições dos doadores todo mundo que trabalhava lá, não todo mundo, mas 80% que trabalhavam na GTZ, no KfW, no BMZ, eram do movimento. Todo mundo militava, todo mundo tinha votado sempre no Partido Verde, coisa e tal, todo mundo era da esquerda.

Em outra passagem complementa, argumentando mais especificamente sobre o

projeto PPTAL: Eu acho que é um sucesso das redes que se encontraram, das redes da esquerda da Alemanha com as redes apoiando do lado brasileiro e principalmente os próprios índios.

Nos anos 90, Martha S.entrou para coordenar o programa do PPG-7 na GTZ logo

no início de suas negociações. Trabalhou por alguns anos no período inicial de

negociação de alguns projetos, como o PPTAL, e quando achou que estava na hora,

largou uma função importante na estrutura da agência no Brasil e abriu mão de um alto

salário, para voltar para a área acadêmica e de pesquisa, além de continuar atuando nas

redes não-governamentais, por ter uma visão crítica em relação a política governamental

de cooperação para o desenvolvimento e às motivações que explicam o envolvimento de

alguns peritos neste campo, como argumenta:

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Eu conheço muita gente que está lá por causa de um bom emprego. Mas tem também muita gente que está convencida que tem que fazer alguma coisa para mudar a merda de distribuição de renda. Eu não tenho muita esperança que com essas idéias de desenvolvimento que temos... que dê pra fazer muita coisa.432

4. Paul F.

Conheci Paul F. na sede do Ministério do Meio Ambiente, onde ficava em 2003 o

escritório do projeto PDA. Ele trabalhava em uma pequena salinha, em meio às dos

outros funcionários, na função de perito da GTZ. Ao nos apresentarmos, me fez sentar em

frente à sua mesa, bastante bagunçada com papéis espalhados desordenadamente, a

respeito da qual faz o seguinte comentário: “não liga pra bagunça não, já estou ficando

um pouco abrasileirado”, em uma referência, ao mesmo tempo crítica, mas de admiração,

em relação ao jeito relaxado que supõe ser o dos brasileiros.

Paul F. é de uma geração mais nova que a de Albert e Marisa M.. Nascido em

1953, teve uma formação acadêmica na área de ciências sociais e filologia, tendo feito

doutorado em sociologia na Universidade de Münster, onde também cursou a graduação.

Entre 1988 e 1992, logo após a conclusão do doutorado, em 1987, trabalhou como

assistente na área de publicações do Centro de Pesquisa e Documentação sobre América

Latina - FDCL, em Berlim. Já tinha, naquela época, contato com um grupo de pessoas,

professores universitários e ativistas de organizações não-governamentais, que pensavam

e escreviam sobre condições sociais e políticas dos países da América Latina, entre as

quais citou Clarita Muller-Plantenberg, professora de sociologia da Universidade de

Kassel, onde coordena um centro de documentação sobre América Latina,

particularmente sobre grandes projetos e povos da Amazônia e relações de cooperação

entre Europa e América Latina.

Clarita leciona sobre o assunto, além de ter uma participação intensa em

movimentos sociais e ambientais em vários países da América Latina, como parte da

delegação da EZE, uma das instituições eclesiásticas que desenvolve projetos em países

em desenvolvimento, por meio da qual estabeleceu contatos com muitas ONGs no Brasil,

como CIMI, IBASE e CEDI, já mencionadas anteriormente. Desse contexto, também

432 Entrevista concedida em 27 de maio de 2003, na sede da FASE, no Rio de Janeiro.

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tomou parte Paul F., que em 1992 entrou para o DED, o Serviço Alemão de Cooperação

Técnica e Social junto à FASE no Rio de Janeiro, na área de meio ambiente e políticas

públicas. Em 1995, ainda na FASE, deslocou-se para trabalhar em Belém, onde ficou até

1999 como coordenador do DED. A partir de sua longa experiência em movimentos

sociais na Amazônia, Paul F. foi então contratado para atuar como perito de longo prazo

da GTZ no subprograma PD/A (1999-2003). Voltou ao Rio de Janeiro em 2003 para

assumir a direção da Fundação Heinrich Böll.

Em toda a sua trajetória de trabalho, Paul F. já completou quinze anos

consecutivos em diferentes instituições alemãs envolvidas na política de cooperação

alemã para o desenvolvimento no Brasil. Sua história, ainda que pontuada de diferenças

em relação a Martha S., tem traços em comum, particularmente marcada por uma

ideologia de esquerda que os orienta, por ideais e práticas de defesa de direitos humanos

em relação a populações da Amazônia. Têm vínculos com professores universitários e

pesquisadores, além das igrejas e instituições eclesiásticas.

Procuramos destacar neste capítulo que os próprios peritos fazem uma avaliação,

em suas trajetórias pessoais, dos atributos que são valorizados em sua atuação. Estes

atributos pessoais não são fixos, mas mudam com o passar dos anos e refletem as

mudanças nas próprias concepções de cooperação. As histórias pessoais contam um

pouco da história da GTZ, em aspectos que vão das relações dos trabalhadores com a

organização, insatisfações, expectativas, frustrações e realizações pessoais que foram

permitidas pela experiência de trabalho na organização.

No próximo capítulo, analisaremos alguns eventos organizados pela GTZ no

Brasil, entre 2003 e 2006, todos em Brasília. Estes eventos são rituais modernos de

Estado, e contribuem para explicitar as formas adotadas pela organização para publicizar

seu trabalho no exterior, tanto para os seus “chefes” no país de origem, como para os

representantes do governo local.

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Capítulo 7. Ver e ser visto: as alianças locais e as redes alemãs em

evidência.

Analisaremos dois eventos internacionais organizados pelo governo alemão e

executados pela GTZ no Palácio do Itamaraty, em Brasília, sede do Ministério de

Relações Exteriores do Brasil, ambos em 2003. Foram grandes eventos – muitos

convidados, muitos gastos, pessoas importantes – rituais de poder, de opulência e de

manifestação de uma força quase sagrada do Estado contemporâneo. Não são rituais

religiosos, mas assumem um caráter sagrado, mágico. São momentos em que se

intensifica o usual – são ícones ou diagramas para se detectarem traços comuns a outros

instantes e situações sociais.

A possibilidade de participar desses eventos, quando estive em Brasília entre 2003

e 2005, se deveu em grande parte às condições de pesquisa no escritório da GTZ, onde

soube da sua realização. No entanto, não foi somente a partir da GTZ que tive acesso a

essas situações sociais: as articulações com funcionários de órgãos nacionais, de

universidades ou de ONGs também serviram como vias alternativas para que eu estivesse

presente em eventos oficiais da cooperação internacional. A entrada nesse universo não é

fácil, porque tais solenidades não são abertas ao público nem são divulgadas nos jornais.

No caso das que foram organizadas pela GTZ, são restritas aos funcionários das agências

alemãs, a alguns organismos internacionais, aos funcionários da ABC e dos órgãos

nacionais que executam os programas, além de representantes de ONGs que participam

com regularidade de eventos governamentais nacionais e internacionais.

Os rituais da cooperação

Encontros, seminários, conferências, fóruns, debates, oficinas e cursos são alguns

tipos de atos mais ou menos públicos reunindo pessoas, organizados por agências da

administração pública de Estados Nacionais estrangeiros fora de seus territórios. Distintos

em seus propósitos específicos, coincidem em um aspecto: são os meios, os instrumentos

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rituais comuns para dar visibilidade a um “fato” internacional, a importância atribuída a

um tema e o status de uma determinada questão internacional à qual estão associados

elevados recursos.

Por seu caráter performático, mas também pelo fato de serem um fenômeno

socialmente reconhecido como especial, podemos interpretar os eventos da cooperação

técnica – encontros, seminários, conferências e debates – como os rituais da cooperação,

no sentido que Tambiah os define:

constituem-se de seqüências padronizadas e ordenadas de palavras e atos expressos em meios múltiplos, cujo conteúdo e arranjo são caracterizados em graus variáveis por formalidade (convencionalidade), esteriotipização (rigidez), condensação (fusão) e redundância (repetição).

Os eventos são caracterizados por três traços fundamentais: o fato de que os

nativos marcam esses momentos como distintos dos acontecimentos cotidianos; trata-se

de uma performance coletiva para atingir determinado fim; possuem uma ordenação que

os estrutura. De acordo com esta definição, os rituais modernos e profanos de Estado

(não-religiosos) aqui analisados são aqueles atos públicos de celebração e de debate em

torno de algum tema, organizados por agências ou organismos internacionais em espaços

ou territórios estrangeiros. São atos altamente convencionais, em que as características

nacionais ou corporativas da agência apresentam-se estereotipadas e repetidas.

Na acepção de Tambiah, “os rituais partilham alguns traços formais e

padronizados, mas são variáveis fundadas em construtos ideológicos particulares”. Para

Turner, os rituais definem-se como o lugar privilegiado para se observar os princípios

estruturais de uma sociedade, sendo também apropriados para se detectarem as

dimensões processuais de ruptura, crise, separação e reintegração social.

Em casos de eventos internacionais, de maior porte, normalmente são feitas

apresentações orais mais solenes, o que envolve exposições de cientistas em painéis

eletrônicos, ou apresentações de representantes ou membros de órgãos de governo

(ministros ou secretários).

Brasília é um dos centros mais importantes de eventos internacionais no Brasil, a

par com São Paulo e Rio de Janeiro. Caracteriza-se como espaço urbano privilegiado para

solenidades político-diplomáticas, sendo o Palácio do Itamaraty um dos mais tradicionais

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e disputados salões, com auditórios e toda uma infra-estrutura para este tipo de

acontecimento.

A ordem que estrutura o ritual

Os encontros e seminários internacionais organizados pela GTZ (bem como por

outras agências internacionais) são atos públicos performáticos, normalmente muito

formais. Os encontros são situações que, primeiramente, dão visibilidade à instituição

organizadora, à anfitriã do evento. É ela que gasta, que oferece conforto e que recebe seus

convidados em uma reunião ou festa na qual demonstra seu poder econômico e as boas

relações que consolidou em meios governamentais e não-governamentais no país onde

atua. Este é um dos instrumentos de que faz uso para mostrar o prestígio que goza no país

no que se refere ao reconhecimento de sua capacidade em cooperar.

Os eventos organizados por instituições internacionais ocorrem, de maneira geral,

de acordo com uma estrutura bastante padronizada e regular; são muito conservadores

nos seus procedimentos, da mesma forma que o são os eventos diplomáticos. Maior ou

menor rigor em relação a alguns aspectos revelam o prestígio da agência, seja ela local ou

internacional, ou o tipo de comemoração realizada.

O conservadorismo a que nos referimos tem relação com determinados critérios

de etiqueta diplomática, que vão desde o local escolhido para os eventos até os serviços

oferecidos.

Observei que alguns detalhes são muito importantes, entre eles, a adequada

medida de luxo (de acordo com as dimensões do evento), a suntuosidade e a ostentação

em relação ao hotel escolhido, que vai da decoração até a infra-estrutura dos locais onde

são organizados, com piscina, salões, vista ampla, entre outros aspectos que garantem aos

participantes bem-estar e satisfação durante o acontecimento.

No caso dos encontros e seminários organizados pela GTZ, a grande maioria

acontece em hotéis de alto luxo, de nível internacional, que dispõem de salões de

convenções, com equipamento de som e tradução simultânea, como o Blue Tree

Alvorada, que oferece serviços para congressos e eventos, além de ter um espaço

privilegiado de lazer à beira do Lago Paranoá.

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Algumas reuniões estão voltadas para um grupo restrito, ligado a um projeto ou a

um determinado tema em discussão; nelas a maioria dos participantes já se conhece de

outras reuniões ou negociações, o que geralmente leva à escolha de locais reservados,

discretos, em salões ou auditórios com portas fechadas. No transcorrer deste tipo de

evento, reconhece-se o valor atribuído à discrição, ao “falar baixo” e elegantemente, ao

“bem-vestir” e ao saber se comportar. Muitas são as situações de provocações entre os

participantes, ou aquelas em que colocam suas posições de forma antagônica para marcar

espaço de negociação.

Em geral, seja em encontros pequenos, seja nos internacionais, o grupo de pessoas

convidadas é formado principalmente por representantes de órgãos públicos de ambos os

países, membros de organismos internacionais e de outras agências do mesmo país, além

de intelectuais, cientistas, pensadores e jornalistas. Além dos burocratas e dos

funcionários de Estado, participam os formadores de opinião, cujo papel na construção

de imagens positivas sobre a relação entre os dois países e na consolidação de mútua

confiança e credibilidade entre as instituições envolvidas é fundamental.

Uma das críticas freqüentes às práticas de cooperação técnica internacional gira

mais em torno dos gastos excessivos em atividades intermediárias, cujos recursos acabam

retornando à própria instituição, do que com o atendimento às demandas locais das

populações chamadas “grupos-alvo”. Fukuda-Parr, Lopes e Malik afirmam que um dos

aspectos destacados na publicação do PNUD, Rethinking Technical Cooperation:

Reforms for Capacity Building in África, sobre as atividades de cooperação internacional

é que são atividades muito caras, direcionadas aos doadores e que promovem maior

dependência em relação a profissionais estrangeiros.433

A ostentação, no entanto, parece fazer parte da lógica que, além dos negócios que

são vinculados, garante o retorno em termos de reconhecimento oficial por parte de

representantes do governo brasileiro e o status que este tipo de cerimônia tem como

espaço de produção e reprodução da lógica da cooperação em elementos ideológicos,

rituais e simbólicos. 433 A publicação data de 1993 e foi o resultado de um programa realizado com mais de 30 governos da África, chamado National Technical Cooperation Assessment and Programs, e apresenta as conclusões dos governos africanos. Fukuda-Parr, S.; Lopes, C. & Malik, K. Overview: “Institutional innovations for capacity development”. In: ___________ (eds.). Capacity for development: new solutions to old problems. New York: Earthscan Publications/UNDP, 2002. p.4-5.

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Os eventos a que me refiro orientam-se para consolidar uma imagem de qualidade

e de luxo em todos os itens: do hotel ao serviço de buffet, dos salões acarpetados aos

equipamentos para apresentação, além das pastas e de outros materiais fornecidos. Os

serviços são rigorosamente conferidos, havendo uma preocupação exagerada com o rigor

do cumprimento de tarefas planejadas e a exigência de perfeição nos detalhes. No rigor

imposto às formas da organização do evento, para que tudo ocorra perfeitamente, revela-

se uma forma estrangeira de se comportar. Esta etiqueta social, baseada em critérios

rigorosos e de eficiência, passa a ser identificada com a nacionalidade da agência

organizadora, neste caso uma única agência com a qual o governo brasileiro, a alemã.

Outro aspecto importante refere-se ao serviço de buffet oferecido, o refinamento

dos talheres e dos copos, os canapés e as bebidas apresentados e a elegância dos garçons,

o que é motivo de comentários durante os intervalos, que recebe a denominação

internacional de coffee-break. Caso o evento seja internacional, com participantes de

outras regiões do país e convidados de outros países, coloca-se um grupo de

recepcionistas bilíngües em disponibilidade para ajudar na organização de documentos,

pastinhas e crachás distribuídos aos participantes e no apoio pessoal a eles, o que é

freqüentemente solicitado. Os custos de hospedagem muitas vezes estão incluídos para os

principais convidados, chamados VIPs,434 palestrantes reconhecidos no meio profissional

e acadêmico, e ela acontece freqüentemente no mesmo hotel em que o evento ocorre.

Usualmente estão incluídos os serviços de transporte para o deslocamento dos

participantes entre o hotel e o aeroporto e para restaurantes que fazem parte da

programação estipulada. Os serviços de tradução simultânea são uma constante, e as

recepcionistas bilíngües interagem como facilitadoras; a segunda língua é usualmente o

espanhol ou o inglês. Além disso, em todos os eventos em que estive presente,

particularmente os internacionais, havia sempre disponível serviço de computadores para

o acesso à Internet.

Estes são valores e idéias de uma elite internacional, intelectual, financeira,

empresarial e política que se institui como uma comunidade internacional imaginada, a

comunidade da “cooperação internacional oficial”, que se confunde com a da diplomacia.

434 VIP, abreviação de Very Important Person, em referência aos convidados especiais do evento.

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Nos eventos organizados pela GTZ, bem como no de outras organizações

internacionais, é comum haver uma “bancada”, mesas com toalhas brancas sobre as quais

são expostos folders, documentos, revistas ou outras publicações, e também vídeos e CDs

produzidos pela instituição sobre assuntos afins. Isto faz parte de uma estratégia de

divulgação dos trabalhos e das atividades desenvolvidas pela organização, além de

apresentar a preocupação com a veiculação de publicações, como os “produtos” da

cooperação técnica. Com o mesmo intuito, é usual que participem dessas reuniões

jornalistas e representantes de meios de comunicação contratados pelos próprios

organizadores.

De maneira geral, há uma “recepção”, uma mesa com um ou dois funcionários da

GTZ com a lista dos participantes e dos convidados do evento, que recebem os seus

respectivos crachás e uma pasta com bloco e caneta para anotações. Este material faz

parte das despesas da GTZ.

No caso dos encontros ou seminários pequenos, eles normalmente são conduzidos

da seguinte forma: são encaminhados os convidados para um salão; um moderador toma

a palavra, normalmente contratado pela agência, para apresentar o tema e explicar como

será conduzida a dinâmica do encontro; ele apresenta um ou mais palestrantes, que são

acadêmicos que trabalham em pesquisas patrocinadas pela agência, ou coordenadores de

projetos também desenvolvidos junto à agência; eles abrem o debate com informações e

resultados do projeto em questão; após as suas apresentações, há um tempo para

perguntas, quando são colocados alguns argumentos críticos.

Há outro tipo de encontro, mais restrito, que é feito com os participantes de um

mesmo projeto – o pessoal da chamada “área técnica” que nele trabalha, e outros

funcionários de um órgão cujas atividades tenham a ver com as do projeto em questão.

Esses encontros são uma forma de avaliar o andamento do trabalho em suas diferentes

fases e são organizados pelo pessoal que fica na função de “monitoria” dos projetos em

que a GTZ atua, utilizando a metodologia ZOPP,435 na qual se usam os painéis de

“Metaplan”, normalmente com “dinâmicas de grupo coordenadas por uma equipe de uma

435 ZOPP, como já mencionado anteriormente na página 209 é a sigla para Ziel Orientierten Projekt Planung, o que significa em português Planejamento de Projetos Orientado por Objetivos.

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empresa de consultoria ou por profissionais de consultoria independente que trabalham

neste tipo de avaliação para a GTZ”.

Além das solenidades formais e cansativas, os grandes eventos internacionais

associam também atividades de lazer, turismo e visitas a universidades, para apresentar

programas de intercâmbios acadêmicos e a organização de feiras de negócios.

Os eventos são organizados pelas agências interessadas (doadores), desenvolvidos

em torno de temas que serão constituídos, ou já são, em programas ou projetos;

programas que se pretende implantar; seminários de projetos em andamento para

apresentar resultados do que está sendo ou já foi feito.

A eficácia dos eventos

Eventos públicos organizados por órgãos de Estado são lugares para ver e para ser

visto, para demarcar posições e posturas políticas, para dizer o que se está fazendo ou o

que se pretende fazer. Algumas finalidades observadas nos eventos organizados pela

GTZ: 1. marcar fases de projetos ou programas; 2. comemorar datas históricas; 3. treinar,

capacitar e ensinar.

A eficácia desses acontecimentos varia em função do tipo e da finalidade e

também do momento que ele aponta. De acordo com cada uma destas finalidades,

desenha-se um perfil específico do ato público, como debates e pequenos seminários de

apresentação de resultados.

Os eventos normalmente são realizados com a finalidade de se marcar

determinada fase de um projeto, seja de início, de continuidade ou de encerramento.

Neste caso, é usual que sejam promovidos debates ou seminários com a participação da

equipe que nele trabalha, além de pesquisadores ou representantes de governo convidados

que tenham qualquer tipo de vínculo com o projeto ou com quem pretenda estabelecer

algum. Objetiva-se garantir ainda maior eficácia dos resultados dos projetos das

instituições do governo estrangeiro, aos quais se deseja dar visibilidade.

Quando o propósito é abrir novas oportunidades de programas em determinadas

áreas ainda não exploradas para a agência – o que exige que sejam estabelecidos outros

contatos – usualmente são organizados seminários com especialistas, representantes de

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ONGs e de governo do país em que se está trabalhando. Nestes casos, a intenção é

observar quais são as questões, os problemas apontados e as pessoas importantes no

contexto local, visando à construção de alianças e à conquista do “parceiro”.

Sobre os eventos que marcam o “encerramento” de uma fase de projeto, o que se

pretende mostrar são os bons resultados. Dessa forma, com a exposição do “sucesso”, há

novas oportunidades de projetos, tendo em vista que a lógica da cooperação é de se

reproduzir e nunca acabar. Assim, a prestação de contas é também uma forma de

autovalidação das próprias atividades desenvolvidas.

Acontecimentos festivos e cerimônias formais com discursos e coquetéis são os

mais representativos e os mais raros, pois ocorrem normalmente a cada década. As

comemorações celebram e reafirmam situações e datas históricas, alimentando a memória

institucional da organização no país. A produção de uma memória social coletiva se dá a

partir de situações rituais – comemorações, festividades comunicativas (projeção de

imagens) e definição de marcos históricos. Há a revisão e o ordenamento de fatos

(determinados fatos escolhidos) do passado para configuração de um futuro que se

pretende alcançar. Como argumenta Ana Enne:436

Estas possibilidades de apropriação do passado pela via do presente apontam para uma questão ainda maior: a construção de futuros possíveis. Assim, é no presente que a construção do passado é disputada como recurso para a construção de um futuro que responda às aspirações deste presente. Neste sentido, parece pertinente pensar as estratégicas de armazenamento e esquecimento do passado. A construção dos museus, centros de memória e institutos históricos como depositários de uma concepção e versão da memória são indicativos deste movimento. O que se guarda e armazena é o que se quer lembrar, pois o não mais visto tende ao esquecimento.

Conversando informalmente, um ex-perito da GTZ me disse que “o maior

problema da cooperação alemã é não haver reconhecimento no Brasil dos trabalhos de

cooperação que a Alemanha tinha feito no país”. Para ele, esta era uma questão deles,

alemães, da GTZ, que não investiam em autopropaganda e naquilo que ele chamava de

“acompanhamento pós-projeto”. Definia, assim, o que seria a continuação: tendo

terminado o ciclo de um projeto tal como fora planejado, um novo instrumento ou 436 Enne, Ana Lucia Silva. “Lugar, meu amigo, é minha Baixada”: memória, representações sociais e identidades. Tese de doutorado, UFRJ/PPGAS, Rio de Janeiro, 2005.

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formato de curto prazo seria definido, para dar a ele prosseguimento e finalização. Na sua

opinião, é fundamental nesta fase a consolidação da imagem da instituição responsável

pelo projeto e a sua transição para as instituições nacionais.

Dizia que em seus tempos de funcionário da GTZ, quando teve grande status e

prestígio junto na agência, sempre lutara para que a GTZ implementasse as atividades de

consolidação do projeto e sua passagem para as instituições locais e, ao mesmo tempo,

que fixasse a imagem da instituição associada aos benefícios dele decorrentes.

Normalmente, estes são percebidos posteriormente, depois que o projeto já acabou. Para

ele, a GTZ não sabe promover a sua imagem institucional e este foi um propósito em que

se empenhou, mas que não conseguiu implementar.

O que acontecia, e ainda hoje continua a acontecer, segundo Albert, é que depois

de anos de investimentos em pesquisa, tecnologias, equipamentos e na organização e

capacitação dos grupos, a GTZ saía de campo e deixava um potencial muito grande que

outras agências aproveitavam. O projeto de plantio de maçãs em Santa Catarina foi um

exemplo que citou, desenvolvido ao longo de anos pela GTZ, mas que ficou conhecido

no Brasil como um projeto dos japoneses (a maçã FUJI).

Para ele, a GTZ não sabe colher os louros do trabalho que desenvolve: “Eu não

quero que você como brasileira entenda que eu quero aparecer, que a Alemanha quer

aparecer. A gente tem que fazer as coisas e continuar a fazer as coisas, porque, de

repente, aqui ninguém fala que a Alemanha cooperou. Todo mundo fala que tudo é

Japão”.437

Para uma outra ex-perita brasileira, que há anos trabalha com a GTZ, não há uma

estratégia proposital em se fazer conhecer os projetos e as atividades da GTZ nos países

onde atua. Sua afirmação parece entrar em contradição logo em seguida, quando

argumenta ser um aspecto em que a ABC intervém para que as agências internacionais

não levem o mérito, já que os projetos de cooperação para o desenvolvimento são, por

definição, do governo brasileiro.438

Então, não existe essa preocupação da GTZ de “olha eu, ô aqui, alô, alô, viva!”. Eu posso te garantir que não existe. Pode um ou outro perito ter, mas isso ele

437 Entrevista concedida em Belo Horizonte, em 08/01/2007. 438 Entrevista concedida em São Paulo, em 22/01/2007.

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teria aqui ou em qualquer outro lugar. Mas como filosofia, recomendação, não, não. É gozado, não é propriamente a lógica da cooperação. Eu trabalhei muito tempo com o pessoal da ABC e a ABC, até muito pelo contrário, está sempre com medo de que isso possa acontecer. Eles estão sempre muito atentos para essa coisa. Então, se for pra ficar bonito pra alguém, vai ficar para a ABC, mas não para uma agência externa.

Quando menciona o medo de que as agências obtenham os créditos da

cooperação, parece mais plausível que a visibilidade aos projetos e às atividades das

agências internacionais seja parte central da própria lógica da cooperação.

Para uma funcionária administrativa do escritório da GTZ, a visibilidade é a

finalidade da cooperação, um objetivo que é alcançado através de uma articulação bem

feita localmente, da construção de alianças, de relações de confiança e respeito, como

argumenta: “O interesse da cooperação é ter e fazer boas relações para aparecer. Mas a

GTZ não sabe aparecer, não sabe vender, não aparece tanto”.439

Em todas as publicações, em artigos, discursos políticos e declarações públicas, o

sucesso das relações entre os dois países é constantemente exaltado. Nas palavras da

ministra Heidemarie Wieckzorek-Zeul:440

Apesar de retrocessos inevitáveis, o trabalho conjunto possibilitou a criação de estruturas sustentáveis de ampla visibilidade, que subsistem ainda hoje. Penso neste contexto, nas dinâmicas parcerias entre universidades e também nas cooperativas agrícolas que se transformaram em empresas exportadoras bem-sucedidas.

As questões apontadas acima revelam a importância que se atribui ao

reconhecimento, à visibilidade que as ações de cooperação devem ter. É quase uma

constatação de que não há muito sentido em trabalhar neste campo sem que haja a fixação

da imagem institucional de sucesso quanto ao trabalho desenvolvido. O reconhecimento

“apaga” qualquer problema associado à intervenção que foi feita.

439 Lucia Loebell, em entrevista concedida no escritório da GTZ, Brasília, em setembro de 2003. 440 Embaixada da Alemanha: 40 anos de cooperação para o desenvolvimento: Brasil e Alemanha, opus cit., p.6-7.

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Os encontros

Acompanhei e assisti a seis eventos públicos, alguns de grande porte, outros mais

simples e restritos. Entre estes, estavam quatro seminários internacionais organizados, em

Brasília, pelas instituições alemãs junto com o governo brasileiro, além de dois

seminários internos de avaliação do PPTAL.

O primeiro deles, a “Conferência Regional para América Latina e Caribe sobre

Energias Renováveis”, ocorreu em setembro de 2003, no Itamaraty, do qual participei em

função de um contato com representantes do Departamento de Meio Ambiente - DEMA,

do Ministério de Relações Exteriores - MRE. Posteriormente, em novembro de 2003,

participei da “Comemoração dos 40 anos de Cooperação Brasil-Alemanha”, além de

colaborar com algumas atividades de sua organização junto à GTZ.

Também por meio do contato com os representantes do escritório da GTZ, estive

presente em dois outros eventos realizados em Brasília: um em maio de 2004, o encontro

“Atuais Desafios e Perspectivas dos Sistemas de Saúde na América Latina e Caribe:

Proteção Social Universal e Respostas ao HIV-AIDS”, e o outro, em julho de 2005,

“Estratégias de Desenvolvimento Sustentável no Brasil BRICS - Parte do Processo de

Diálogo Internacional BRICS+G: Sustentabilidade e Crescimento no Brasil, Rússia,

China, África do Sul e Alemanha”.441 Analisaremos antes o primeiro grande evento

internacional organizado pelo governo alemão no Brasil de que participei: a “Conferência

Regional para América Latina e Caribe sobre Energias Renováveis”.

Efeitos de Estado: energias renováveis

Soube deste evento praticamente por acaso, quando tentava marcar uma entrevista

com o chefe do DEMA, do MRE, através do diplomata que me atendeu, apesar de já estar

em contato com o escritório da GTZ, onde ninguém me avisou sobre a sua organização.

O funcionário do MRE disse então que estava sendo estruturado um encontro para 441 Como o próprio título do encontro indica, BRICS é a sigla para o grupo dos países formados por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, primeiramente adotada pelo grupo Goldman Sachs para estes países também chamados emergentes, cujas economias são consideradas potencialmente fortes.

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debater sobre energias renováveis, em Brasília, no auditório do Palácio do Itamaraty, com

recursos de cooperação do governo da Alemanha. Ele informou que o evento não era

fechado e, como havia mostrado interesse em participar, ele me convidou para assisti-lo.

O público era constituído de alguns representantes do governo brasileiro,

funcionários de organismos internacionais e muitos alemães, que pareciam não somente

serem representantes de órgãos do governo alemão, mas também profissionais de áreas

técnicas, provavelmente de empresas ou de instituições científicas, pela atenção que

dedicavam às apresentações que focavam estas áreas. Havia muitos grupos de alemães

reunidos em um dos amplos auditórios localizados no subsolo do Palácio do Itamaraty,

determinando a formalidade diplomática do evento que teve a duração de dois dias.

O programa, disponível em mesas à entrada do auditório, apresentava sua

proposta: no primeiro dia, seria promovido um grande debate entre especialistas da área

de energia no Brasil e na América Latina, ao qual chamaram de “fase técnica”; no dia

seguinte, a fase ministerial, com a presença do Presidente, de ministros e outros

representantes do governo brasileiro.

Para a primeira fase, convidaram professores e pesquisadores de centros

universitários e institutos de pesquisa, representantes de organismos internacionais

(CEPAL, PNUD e PNUMA), presidentes, diretores e gerentes executivos de empresas do

ramo de energia (Petrobras e Eletrobrás), representantes de bancos públicos nacionais

(BNDES) e internacionais (Banco Mundial, e International Finance Corporation) e de

instituições de fomento (FINEP), além de associações industriais, de produtores de

energia, de organizações de base e de movimentos sociais. Este grande fórum de

discussões seria dividido em sessões de trabalho sobre diferentes temas – energia

renovável e desenvolvimento sustentável; políticas públicas e fomento à energia

renovável; o papel do setor produtivo e a contribuição da sociedade civil na inserção da

energia renovável. Os cenários da área de energia na América Latina eram apresentados

em painéis projetados em telão e as palestras aconteciam com tradução simultânea para o

português e o inglês.

O auditório estava lotado e notavam-se vários grupos de alemães não só das

agências de governo, mas também de setores privados. A conferência claramente se

prestava a estabelecer uma nova área de atuação dos alemães na América Latina,

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apresentando panoramas atuais e perspectivas futuras de investimentos, ao mesmo tempo

em que permitia identificar as pessoas-chave com quem negociar para se estabelecerem

alianças. As estratégias pelas quais poderiam ser consolidadas as relações em jogo seriam

definidas em uma reunião mais restrita, com os representantes de governo e da sociedade

civil de ambos os países, como eu havia sido informada pelo funcionário do MRE.

Após as apresentações dos painéis, foi servido um coquetel fora do auditório, em

um amplo salão, uma situação que permite às pessoas presentes estabelecerem uma

aproximação mais informal, construir de forma direta os primeiros contatos. Conhecia

poucos dos alemães presentes, com exceção de um perito da GTZ que já havia

entrevistado anteriormente. Conversamos sobre a pesquisa e sobre o seu projeto, quando

ele me disse que estava saindo da GTZ para trabalhar na Fundação Heinrich Böll. Após

alguns instantes, eu me despedi para seguir em direção à reunião que esperava assistir, no

entanto, sem mencionar para ele que estava indo para lá.442

Segui por uma ponte interna que dá acesso ao prédio anexo ao Palácio do

Itamaraty, mais conhecido como “Bolo de Noiva”, chegando à sala indicada da reunião.

Era um grupo de cerca de 15 pessoas sentadas em torno de uma ampla mesa, onde

alguém falava formalmente sobre determinado assunto pelo qual não me interessei. Notei

que a ministra do BMZ ainda não havia chegado, mas avistei do outro lado da sala o

mesmo perito alemão com quem havia conversado há pouco no coquetel. Logo que abri a

porta, todos, simultaneamente, me olharam surpresos, silenciando o ambiente. Meio

paralisada e provavelmente com cara de susto, fui surpreendida pelo espanto generalizado

dos presentes, que gerou um efeito dramático sem que eu ainda pudesse compreender o

motivo. Aquele meu “conhecido” rapidamente se levantou e correu ao meu encontro na

porta, encaminhando-me para fora da sala de forma delicada, mas determinada. Disse que

eu não poderia participar da reunião, que era fechada para os membros dos respectivos

governos. Insisti que havia sido convidada por um representante do governo brasileiro, e

que soube que a reunião seria aberta para alguns ouvintes, como representantes da

sociedade civil, na qual eu poderia me situar enquanto pesquisadora universitária. Ele

então explicou, sem ceder, que fora decisão da ministra que a reunião fosse fechada,

442 Mencionei anteriormente que a Fundação Heinrich Böll é uma fundação política ligada ao Partido Verde (Die Grünen), que desenvolve projetos na área não-governamental no Brasil.

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ficando com ele o ônus de impedir os representantes de ONGs de participarem, o que

havia sido complicado, porque eram pessoas que ele pessoalmente conhecia e teria que

fazer com elas o mesmo que fizera comigo.

Assim, fora a ministra alemã, que até aquele momento não havia chegado, quem

não quisera a presença de representantes da sociedade civil, segundo este senhor.

Surpreso em ver com que facilidade cheguei à sala, perguntou-me como eu o fizera sem

ser impedida, porque tinha sido criado um esquema de segurança para evitar a entrada na

reunião. Não havia encontrado qualquer controle por parte do MRE, a não ser ali, naquela

porta, por um alemão. Estupefata com a situação, fiquei do lado de fora, pensando como

os papéis atribuídos a esses “atores da cooperação internacional”, que atuam na área não-

estatal com projetos de organizações “não-governamentais”, são facilmente

manipuláveis.

Quando a lógica da hierarquia, a restrição das informações destinadas às elites

empresariais e políticas, a frágil participação democrática e a pouca transparência em

relação às normas das relações diplomáticas compõem um cenário bastante favorável

para este tipo de situação, não podemos deixar de pensar que isto acontece mais

facilmente nos países do “Terceiro Mundo”, particularmente na América Latina. É então

que vemos “peritos técnicos” da cooperação assumirem muitas vezes o papel de chefes

dos projetos, de representantes do Estado alemão e negociarem de forma direta, o que

supostamente não seria uma atribuição “técnica”.

Verifiquei ainda como são definidos os espaços de “Estado” através de restrições

impostas, portas fechadas, definição da confidencialidade e do “segredo de Estado”.

Sendo um processo de negociação entre dois “Estados”, ficou claro como são acionadas,

nas práticas cotidianas, as regras da cooperação bilateral, inclusive quando está em jogo a

participação da sociedade civil.

Esta foi uma das muitas situações em que me deparei com portas fechadas durante

a pesquisa em instituições brasileiras que tinham projetos com a GTZ. Certamente não

são ocorrências exclusivas de quem trabalha com a cooperação alemã. Situações como

esta podem revelar muito mais sobre relações entre “Estados” do que um estudo

exclusivo de normas e procedimentos formais, sendo fundamentais como elementos de

análise antropológica de processos chamados de Estado.

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A seguir, analisaremos um dos mais expressivos eventos organizados pelo

Ministério de Cooperação e Desenvolvimento, o BMZ, que aconteceu nos últimos anos

em Brasília: foi a festa de comemoração dos 40 anos das relações de cooperação entre

Brasil e Alemanha, celebrado em novembro de 2003, em referência à assinatura do

Acordo Básico de Cooperação entre os dois países, de 1963.

Efeitos de visibilidade: a comemoração dos quarenta anos de cooperação

No segundo evento, já havia feito vários contatos com os funcionários da GTZ no

seu escritório. Aguardava, em agosto de 2003, a aprovação dos diretores para poder

pesquisar e fazer observação participante no escritório quando soube que estaria sendo

organizado pela própria GTZ, naquele mesmo ano, um grande acontecimento

comemorativo dos quarenta anos da assinatura do acordo de cooperação técnica entre

Brasil e Alemanha. Ali estariam reunidos todos os profissionais alemães que trabalhavam

na cooperação técnica com o Brasil. Isto significava não somente funcionários engajados

em projetos, mas também aqueles que fizeram parte de projetos e programas realizados

durante esses quarenta anos, desde a assinatura do acordo entre os dois países.

O evento de comemoração de “Quarenta anos de Cooperação para o

Desenvolvimento entre Brasil e Alemanha” tinha, por sua vez, o propósito fundamental

de construção da memória institucional, um acontecimento que representava um marco

nas relações históricas entre Brasil e Alemanha: a comemoração da data de “fundação”

das relações de cooperação técnica entre os dois países, formalmente atribuída à

assinatura do acordo em 1963. Em eventos como este, os fatos do passado são

romantizados, idealizados, como em um romance épico.

Para registrar a data, seria inaugurada uma exposição com painéis, que circularia

pelo país seguindo depois para a Alemanha, e ainda a publicação um livro com

fotografias, relação de projetos e depoimentos de pessoas que participaram ativamente no

decorrer desses quarenta anos. O livro foi publicado em alemão e português e a

organização dos capítulos foi dividida por décadas, dos anos 60 aos anos 2000.

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Na apresentação deste livro, são destacadas443 como características mais fortes da

cooperação entre Alemanha e Brasil a “tolerância, a confiança e o respeito” que

garantiram uma relação de continuidade e flexibilidade, suplantando mudanças históricas

de ambos os países e as dificuldades decorrentes de aspectos culturais distintos:444

Foi preciso encontrar um modo de se acertarem, de se acostumarem um ao outro, encontrar uma linguagem comum e, sobretudo, desenvolver uma estratégia compartilhada para o alcance de objetivos estabelecidos. Obviamente, isso nem sempre aconteceu sem tensões; o relacionamento entre seres humanos, mesmo no próprio meio cultural já é, em si, complicado. Para tornar tudo mais difícil, juntam-se às diferenças naturais as posturas e avaliações profissionais, as questões do status e do salário, e assim por diante. Não se pode esquecer, é claro, o encontro entre a tendência alemã ao perfeccionismo e a improvisação latina.

Era uma celebração importante, particularmente para os “cooperantes” alemães,

os seus promotores. Eram eles os anfitriões de uma festa, ficando na memória das novas

gerações políticas e empresariais do país o quanto foi feito pelos alemães para o

“desenvolvimento do país”, a contribuição dada ao progresso do Brasil. Eram alemães de

várias organizações e de diversas funções: aposentados e antigos funcionários da GTZ

que trabalharam em projetos nos anos 1970 e 1980, atuais diretores de agências e

coordenadores de projetos, peritos e técnicos, representantes de organizações do governo

e de empresas alemãs no Brasil e representantes da Câmara de Comércio. Além destes, os

brasileiros convidados eram funcionários de órgãos públicos que trabalhavam em

projetos com as agências alemãs e representantes de ONGs apoiadas por elas, ex-

estudantes que haviam feito intercâmbio na Alemanha e funcionários de empresas deste

país, além de consultores em projetos do Brasil com a Alemanha.

A GTZ recebeu a atribuição de organizar o evento e de se responsabilizar pelos

recursos financeiros vindos do BMZ. Segundo funcionários da GTZ, houve muito atrito

com outras organizações do BMZ (DED, principalmente) sobre a decisão de a GTZ

coordenar a festividade, porque a instituição organizadora, além de tomar as decisões

443 A redação do livro foi feita por Hans Kruger, com a colaboração de Hans Fiege, Claudia Fix e Ilana Gorayeb. 444 Embaixada da República Federal da Alemanha: 40 anos de cooperação para o desenvolvimento: Brasil e Alemanha, opus cit., p.8.

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sobre tudo, desde a lista seletiva de convidados até o hotel, é aquela que acaba tendo

maior visibilidade, localmente e no exterior.

Para a dimensão do evento, havia uma equipe de organização relativamente

pequena: eram menos de cinco funcionários: os dois organizadores, Claudia Herlt com

sua assistente, Paula, uma brasileira recém-chegada da Áustria, e Hans Kruger, ex-diretor

da GTZ no Brasil e atual coordenador pelo lado alemão de um projeto na Amazônia, que

trouxera duas pessoas de sua equipe de Manaus.

A reduzida equipe se justificava, já que as atividades mais específicas do evento

seriam realizadas por uma empresa independente, contratada pela GTZ. Esta empresa

terceirizada tinha um contrato que envolvia a subcontratação de serviços de outras firmas,

responsabilizando-se por atribuições que iam desde a escolha da gráfica para o livro até

serviços de programação visual, buffet, fotografia, entre outros.

Entre as instituições do BMZ no Brasil, a GTZ foi a escolhida por ser, como me

foi dito, não somente especializada neste tipo de atividades, mas porque era a organização

que mais tinha, naquele momento, projetos no país e, por isso, podia mostrar o quadro

mais amplo da cooperação. Embora o maior volume de recursos tenha vindo do BMZ, a

GTZ também utilizou verbas de alguns projetos para pagar as passagens dos seus

representantes. A organização do evento ficou centralizada em três pessoas que se

responsabilizaram por aspectos diferentes. No plano mais geral das relações políticas e

diplomáticas entre os representantes dos dois países, estava à frente Rainer

Willingshoffer, da embaixada da Alemanha em Brasília. No planejamento da

comemoração e no comando da festa, a responsável era Claudia Herlt, uma médica alemã

que coordenava no Brasil um projeto junto com o Ministério de Saúde sobre DSTs

(doenças sexualmente transmissíveis) e AIDS. Para a redação do livro que seria

publicado, lançado e distribuído no dia da festa, estava Hans Kruger, que já citamos

acima.

Rainer Willingshoffer, um senhor de meia-idade, elegante e de uma simpatia

discreta, recebeu-me em sua sala para uma entrevista, onde notei, sobre sua mesa, uma

fotografia em que ele aparecia beijando a mão do Papa João Paulo II. Indicou que me

sentasse em uma poltrona muito distante de sua mesa, o que não facilitou uma conversa

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menos formal entre nós, mas de toda forma, sua empolgação em relação às

comemorações que se aproximavam era evidente, mesmo à distância:445

Estamos festejando em novembro de 2003 os 40 anos de cooperação. Estamos tomando a assinatura do Acordo Básico de Cooperação Técnica como um ponto de referência e vamos fazer com o Itamaraty uma exposição de imagens, de fotos acessíveis, um evento de participação, de testemunhos, e uma publicação, porque acho que essa cooperação bilateral tem características muito especiais e ela é muito exitosa... muito exitosa, se você pensar na nossa participação em consultorias no INMETRO, ESAF, em 12 universidades... Nós criamos a primeira faculdade de ecologia da América Latina, a Faculdade Florestal de Curitiba.

Claudia Herlt, por sua vez, partia de outra abordagem. Tinha muita facilidade de

comunicação e sabia as regras “da sociedade”, era culta, muito elegante e tinha os

atributos importantes para desempenhar uma função diplomática, mas o fazia de forma

simples e simpática. No Brasil, ela era perita da GTZ e coordenava um programa na área

de saúde, com o Ministério da Saúde.

Ela era dona também de muitos conhecimentos no meio da “cooperação”, o que se

devia aos contatos desenvolvidos na coordenação do projeto, isto lhe permitindo uma

ampla articulação na área de saúde, que ultrapassava o Brasil, estendia-se à América

Latina e envolvia organismos internacionais, como a OMS e ONGs no Brasil e no

exterior. Além disso, era casada com um alto executivo do Banco Mundial e tinha uma

trajetória profissional na Alemanha que revelava a prática de lidar com esse universo de

relações interpessoais. Conhecia muita gente: na Alemanha, presidiu uma rede de mais de

2 mil ONGs por mais de seis anos.

Como dissemos, é comum que os profissionais alemães no campo do

desenvolvimento apresentem uma formação que se consolidou através de trabalhos

vinculados aos movimentos sociais, para depois fazerem parte de uma agência de

cooperação do governo. A experiência adquirida na atuação não-governamental

“especializa” essas pessoas para o trabalho desenvolvido na GTZ.

Este era o caso de Claudia Herlt.446 Ela ironizava a respeito de um estilo de ser

alemão, que dizia ser característico da atuação burocrática: eram pessoas sérias, caladas,

445 Rainer Willingshoffer, em entrevista em setembro de 2003, em Brasília.

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carrancudas, com uma postura de “eficiência”. Ironizava, além disso, os trabalhos

administrativos na sede da GTZ enquanto práticas mecânicas e rotineiras e gostava

mesmo de fazer articulações políticas. Sempre tinha reuniões fora do escritório da GTZ

com representantes do governo brasileiro, de organizações não-governamentais, deixando

para a sua assessora o trabalho “braçal”, administrativo. Marcava uma fronteira

identitária entre ela e o “resto” dos burocratas, como se procurasse enfatizar que, “apesar”

de estar na GTZ, trabalhava com o que gostava, fazendo alianças entre as pessoas e

promovendo a construção de redes da sociedade civil e destas com o governo na área de

saúde. Esta experiência garantiu seu cargo. Sua função era de grande responsabilidade.

Viajava freqüentemente à Alemanha para negociar recursos, para convidar pessoas e

prestar informações, o que lhe proporcionava um salário bastante elevado. Durante esse

período em que foi responsável pela comemorações dos quarenta anos, acumulou

temporariamente duas funções: a de organizadora do evento e a de coordenadora do

projeto DST-AIDS, para o que recebeu duplamente.

Hans Kruger foi, e ainda é, um dos cabeças da GTZ no Brasil, um executivo

extremamente importante na história da agência neste país e referência nas decisões

tomadas. À época da pesquisa, entre 2002-2004, completara mais de quinze anos no país,

já tendo sido diretor da GTZ. Coordenava, então, o projeto Subprograma de Política de

Recursos Naturais, mais conhecido por SPRN,447 e trabalhava com a implementação do

projeto no Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas - IPAAM, órgão estadual de

meio ambiente localizado em Manaus. Kruger fez um trabalho de montagem desta

história, entrevistando pessoas, recolhendo fotografias pessoais e, finalmente,

estruturando o livro “de memórias” desses quarenta anos.

446 Sua postura de militante expressava-se no seu comportamento, no bom humor e também em suas roupas, o que contrastava com o ambiente geral da GTZ. Usava sempre roupas finas, mas de cores muito vivas, diferente do usualmente observado nos executivos dessas organizações. Claudia contou-me sua experiência profissional anterior, particularmente entre as não-governamentais e sua atuação na GTZ, onde se sentia um pouco fora do perfil. Segundo ela, as ONGs organizam-se com base nos estados da federação alemã e, ainda que recebam recursos do governo, têm autonomia e são, geralmente, muito críticas em relação aos governos. 447 O SPRN é um programa do PPG-7 direcionado para as secretarias estaduais de meio ambiente da Amazônia – Acre, Pará, Amazonas e Roraima.

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A organização da festa

Eu tinha interesse em acompanhar de perto tudo o que fosse relativo às

comemorações dos quarenta anos de cooperação. As conferências, os encontros e as

festividades são, como já disse, algumas das formas usuais de expressão pública das

burocracias em geral, sendo particularmente freqüentes entre agências e organismos

internacionais em espaços estrangeiros como parte de sua estratégia de visibilidade,

difusão de imagens e de valores e legitimação do seu modo de intervenção.

Como era a GTZ que estava organizando o evento, fui conversar com seu diretor-

adjunto no Brasil para me informar das possibilidades do seu acompanhamento e da

observação no escritório, quando ele me sugeriu que falasse diretamente com a

responsável, a sra. Claudia Herlt.

A princípio, houve alguma resistência ao meu acompanhamento. Com o tempo e a

minha presença constante como observadora no escritório, me foi permitido estar a par

das atividades de organização, sendo inclusive chamada para ajudar em algumas delas,

mais simples, quando o ritmo se tornou mais intenso nos dez dias anteriores ao evento.

Refleti se acompanhar de perto todo o movimento não iria interferir na minha

própria avaliação, em comparação com manter o distanciamento, mas participaria por

pouco tempo, pois já estávamos a poucos dias das festividades. Na verdade, aquela se

mostrava uma oportunidade única e privilegiada de entender os procedimentos de

organização de seminários e encontros, uma das especialidades da GTZ. Deixei sempre

claro a todos com os quais conversava quais eram os meus objetivos na pesquisa:

observação participante aberta.448 Procurava observar e perguntar sobre as atividades que

cada um desempenhava e, nos intervalos, tomava cafezinho e almoçava com os

funcionários, buscando ter um convívio mais próximo com o pessoal do escritório,

diferente de quando chegara.

448 Nos estudos de organizações desenvolvidos em Manchester, nos anos 60, sob a coordenação de Tom Lupton, como observado por Susan Wright (Anthropology of Organizations, 1994, p. 11), chamavam open participant observation o tipo de pesquisa realizada em fábricas, em que o pesquisador deixava claro para seus companheiros que estava fazendo um estudo com envolvimento nas atividades realizadas pelos funcionários, diferente dos estudos de Hawthorne, em que o pesquisador participava o mínimo possível das atividades que observavam.

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Em pouco tempo, os trabalhos que tinha de desempenhar acabaram exigindo que

pudesse gozar de alguns privilégios que eram somente dos funcionários da GTZ.

Forneceram-me o acesso à rede interna do escritório, à Intranet, que continha todas as

pastas e os arquivos usados nas atividades dos projetos, além de ser um espaço em que se

veiculam mundialmente informações sobre projetos da GTZ, vagas de empregos e as

políticas do BMZ. Além do acesso à Intranet, disponibilizaram um endereço eletrônico

para que eu pudesse me comunicar com a equipe organizadora.

As atividades constituintes do evento estavam voltadas exclusivamente para a

realização da festa: verificar a lista de convidados, contratar os serviços, como o buffet,

fazer a reserva de equipamentos de som e a do salão, além de estruturar a parte visual, a

exposição, com a contratação de produtora de vídeo e de fotógrafos para registrarem o

acontecimento. Minha participação foi inicialmente na colaboração da revisão da

tradução para o português dos artigos escritos por alemães para o livro comemorativo que

seria distribuído para os convidados presentes. Fiz a revisão de cerca de 20 artigos e

entrevistas dos primeiros técnicos alemães que vieram para o Brasil, os quai relatavam a

respeito da organização de cooperativas de produtores rurais, da construção de cisternas,

de um banco popular no Ceará, da organização de mulheres etc. Depois de revisados

alguns textos, atuei diretamente na organização do evento, ajudando em tarefas simples

ligadas à rotina do evento, na organização da listagem dos convidados em geral e dos

convidados especiais, os VIPs, e na elaboração de contratos para serviços, entre outros.

Durante a semana do evento, muitos alemães de outras agências alemãs ou de

outros projetos da GTZ fora da capital já estavam chegando a Brasília, e passavam no

escritório da GTZ para cumprimentar, para conversar e saber das últimas novidades. O

clima já era de festa para os peritos da cooperação alemã, que também conversavam em

tom de negociação política.

Finalmente, chegou o dia da festa: todos no escritório seriam liberados mais cedo

para se arrumarem – marcaram salão de beleza, compraram roupas novas. Havia uma

excitação muito grande.

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A festa

Era 27 de novembro, uma quinta-feira, chovia muito em Brasília. Na entrada

lateral do Palácio do Itamaraty, um longo tapete vermelho se estendia indicando o local

do evento. Uma cobertura plástica, quase inútil, tentava impedir que os convidados, todos

muito arrumados, se molhassem. A organização previra que uma exposição com banners

abriria a festividade, entretendo os convidados que aos poucos fossem chegando. No

entanto, o forte vento que bateu naquela tarde derrubara todos os painéis da exposição.

Em cima da hora, a programação foi redefinida e os convidados orientados a descer

diretamente para o hall do auditório. A exposição seria vista somente no final do evento,

depois que arrumassem tudo. A programação dizia que às 4h da tarde seria iniciada a

comemoração com a abertura da exposição pelos presidentes dos dois países.

A conferência foi realizada no Auditório Embaixador Murtinho, no subsolo do

Palácio do Itamaraty, espaço bastante amplo, com capacidade para 300 pessoas, e que

ficou completamente lotado. Foram reservados pelos organizadores lugares especiais para

as “personalidades” alemãs e brasileiras: nas cadeiras mais à frente, ficariam os ministros

de Estado dos dois países, diplomatas e executivos de alto nível hierárquico das agências

alemãs, os VIPs que citamos anteriormente. Os outros lugares foram totalmente

ocupados, restando ainda muitos convidados em pé nas laterais e nos fundos do auditório.

Havia muitos alemães presentes, mas nesse primeiro momento estavam todos misturados

indistintamente ao público.

Foram convidados para a festa representantes de todas as instituições alemãs e

profissionais que atuaram na construção de um campo de cooperação para o

desenvolvimento do Brasil. Diretores, funcionários e ex-funcionários de agências

governamentais, fundações políticas e cientificas, além de ONGs, estiveram presentes

nesta festa como convidados, o que somou mais de 1.500 pessoas, sendo que cerca de

100 convidados especiais, do Brasil e da Alemanha, com passagens e hospedagem pagas,

entre eles, algumas figuras solenes das instituições e membros do governo brasileiro e do

governo alemão.

Da lista de VIPs, para os quais foram pagas passagens aéreas e hospedagem, os

nomes escolhidos não se basearam em nenhum critério objetivo de representação – por

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região, por importância política, por envolvimento com determinados temas – mas

resultou de indicações pessoais dos três organizadores do evento, de acordo com critérios

pessoais, em função da experiência que tinham no trabalho na GTZ. A lista contemplou

cerca de 70 nomes, destes, aproximadamente 50 em todo o Brasil, tanto da GTZ como de

outras instituições da cooperação; diretamente da Alemanha, vieram cerca de 10

convidados, sendo outros tantos da ABC, de Brasília.

Todas as instituições que fazem parte da relação bilateral Brasil-Alemanha, desde

agências governamentais até fundações políticas e científicas, além das ONGs,

participaram desta festa como convidados, assim como muitos dos que contribuíram para

a construção deste acervo de idéias: profissionais e instituições que são fruto da relação

de 40 anos de cooperação. Na verdade, alguns dos convidados da GTZ e das outras

agências alemãs tiveram que utilizar recursos de que dispunham “dos projetos” para

pagar suas passagens. Assim, parte das verbas destinadas aos projetos foi gasta com uma

festa diplomática, mais precisamente com passagens e hospedagens dos próprios

funcionários da GTZ.

A solenidade foi iniciada em tom muito formal, centrado especialmente na

performance discursiva. A abertura foi feita pelo diretor geral substituto da ABC, que

falou da importância do evento para o MRE e para a ABC, fazendo um histórico dos

quarenta anos da cooperação alemã e destacando sua importância para o

desenvolvimento:

[...] a carteira de ricos e variados projetos de cooperação executados ao longo dos últimos quarenta anos muito contribuiu para o desenvolvimento do país [...] A longa e sólida parceria entre Brasil e Alemanha foi reforçada pela vasta gama de instituições nacionais de excelência, tanto governamentais quanto da sociedade civil, envolvidas na execução de projetos de cooperação técnica e financeira.

Aguardava-se ansiosamente a chegada do Presidente da Alemanha, Johannes Rau,

mas ele não compareceu, porque estava, segundo informações que circularam pelo salão,

reunido com o Presidente Lula em um jantar diplomático. Em seguida, foram escolhidos

três representantes do governo brasileiro e do setor privado para expor suas visões sobre a

cooperação alemã em cada uma das áreas que o governo alemão havia priorizado no

Brasil por quarenta anos: meio ambiente, desenvolvimento rural e urbano, pequenas e

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médias empresas. Discursaram a ministra de Meio Ambiente, Marina Silva, o ministro de

Cidades, Olívio Dutra, e o diretor geral do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial

(SENAI), representando o presidente do Conselho Nacional de Indústrias - CNI.

Para entreter a numerosa platéia depois dos longos discursos e também para

“mostrar um exemplo” das atividades da cooperação alemã no Brasil, apresentou-se a

Orquestra Infanto-Juvenil de Câmara “Encontro das Águas”, do Centro Cultural Cláudio

Santoro, ligado à Secretaria de Cultura do Estado do Amazonas. A orquestra, que tem

apoio do governo alemão, é formada por crianças e jovens amazonenses de famílias de

baixa renda.449 Após a orquestra, muito aplaudida, a diretora do Departamento de Política

de Desenvolvimento com Países e Regiões da Ásia, América Latina, Europa, Garantia da

Paz e Nações Unidas, do BMZ, discursou, seguida pelo secretário geral das Relações

Exteriores do Brasil, Samuel Pinheiro Guimarães, que encerrou a primeira parte do

evento destacando a proximidade entre as comemorações dos 40 anos de cooperação para

o desenvolvimento e dos 180 anos de imigração alemã no Brasil.450

Depois desta solenidade, caracterizada fundamentalmente pela oralidade, com

muitos discursos, finalmente o evento foi aos poucos ganhando informalidade e

assumindo as nuances de uma festa. Todos os presentes foram encaminhados ao

mezanino, onde fora montada uma ampla exposição com fotos em painéis que contavam

a história das relações entre Brasil e Alemanha por décadas, com destaque para a

Amazônia, com sua floresta, seus rios e os índios.451 Além das fotos, houve a transmissão

em uma tela de um vídeo feito com David Kopenawa, uma líder indígena do povo

Yanomami de grande projeção nacional e internacional. De acordo com os organizadores,

Davi Kopenawa havia sido chamado para dar um depoimento no dia da solenidade,

juntamente com os representantes das instituições governamentais que relataram suas

experiências nos projetos com as agências alemãs de cooperação. No entanto, os

449 Crianças carentes mostrando seus dons: são muito bons os efeitos de se mostrarem crianças dançando, representando, tocando instrumentos musicais como resultado da assistência e dos “serviços sociais”. 450 Entre os diplomatas brasileiros, a referência ao evento é sempre feita dando destaque ao caráter formal, “institucional” dessa cooperação, apoiada na regulamentação jurídica do Acordo Básico de Cooperação Técnica, de 1963. Outras formas de cooperação se dão há muito mais tempo, considerando os fluxos de migrantes que há cerca de 180 anos se estabeleceram prioritariamente na região Sul, o que contribuiu para que haja atualmente mais de 12 milhões de descendentes alemães no Brasil. 451 A exposição seguiu para outros lugares, de Berlim ao Acre e a Manaus.

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representantes da ABC não aceitaram esta “informalidade” proposta pelos organizadores

alemães que, como alternativa, gravaram o vídeo, embora Kopenawa estivesse presente

na comemoração como um dos VIPs.452

Serviram um coquetel de pequenos quitutes da culinária brasileira, como vatapá,

acarajé, casquinha de siri, entre outros, seguidos de doces típicos, como cuscuz, cocada e

quindim, acompanhados de muito chopp e caipirinha, numa típica alusão às preferências

do público que ali estava, o que fez com que todos ficassem mais à vontade, mostrando-

se menos tímidos e formais. Depois do coquetel, os presentes foram convidados a uma

churrascaria para jantar. Reservada para o evento, a churrascaria transformou-se em uma

grande festa para os alemães.

Mais de 1 milhão de Euros foram gastos em somente dois dias: 27 e 28 de

novembro de 2003, em festividades, coquetéis, jantares, hotéis, passagens aéreas, um

livro, um vídeo e um CD.

Quanto vale uma festa?

Nos atos públicos, eventos ou rituais da “cooperação internacional” revelava-se de

forma clara um conjunto não homogêneo, mas bem definido, de alemães, funcionários de

um Estado estrangeiro que adotam práticas de intervenção em setores e órgãos de

administração pública no exterior, que fazem parte de uma elite. Têm status de quase-

diplomatas, senão diplomatas propriamente, cujo elo central, a GTZ, empregava um

número maior de técnicos e funcionários administrativos entre as agências alemãs no

Brasil.

Com discrição e pouco alarde, por meio de projetos, o governo alemão foi

construindo uma estratégia de promoção de mudanças sociais através do que eles

denominam de cooperação técnica, com a articulação de redes, a transmissão de

conhecimentos, os valores e as referências ao longo de décadas em projetos no Brasil. O

evento dos quarenta anos deu visibilidade a pessoas que participam ou participaram da

história das atividades que fazem parte de ações governamentais e não-governamentais e

de medidas de intervenção em programas das instituições alemãs no Brasil. 452 O único vídeo realizado para a exposição foi sobre o índio yanomami Davi Kopenawa, que foi um dos convidados de honra do evento, emblemático.

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Os convidados especiais da festa eram os alemães, particularmente aqueles

ligados ao governo. A festa era deles e para eles.453 Eram muitos os que estavam

presentes, alguns provavelmente se conheciam de longa data; uns vinham da Alemanha,

outros continuavam no Brasil, em outras instituições, alguns estavam casados/as com

brasileiros/as, em posições importantes em outras regiões, ou aposentados, e saudavam-se

com entusiasmo.

A concepção desta estrutura burocrática e de redes de relações mais amplas que

interligavam instituições de diferentes naturezas – ONGs, fundações políticas, agências e

bancos – que era o BMZ, ganhou realidade concreta nesta festa. Ao percorrer a

exposição, folhear o livro que fora distribuído no salão e me perceber cercada de todos

aqueles alemães no salão do Palácio do Itamaraty, muitos vindos diretamente da

Alemanha para o evento, me dei conta de fato da existência de um mundo da cooperação

dos alemães no Brasil.

A festa dos “40 anos” foi sem dúvida um ritual de revigoramento da fundação

desta relação, um ritual de renovação, através da representação discursiva e da

performance da celebração, que deu visibilidade à dimensão de um “corpo conexo” de

instituições da cooperação alemã. Acredito que tenha sido este o propósito com o qual a

festa foi concebida, para que os alemães se vissem e fossem vistos por representantes

políticos brasileiros. Alcançar visibilidade no universo político, particularmente em

Brasília, seria razão suficiente para justificar elevados gastos do governo alemão com

passagens aéreas internacionais, passagens aéreas nacionais, hospedagem e diárias dos

muitos convidados especiais alemães e brasileiros, além de todos os serviços da

solenidade diplomática e da festa.

Esta festa foi uma cerimônia de estatuto “diplomático”, um ritual de celebração do

aparato burocrático de Estado, que revelaria a ampla trama de redes sociais e

institucionais do governo (Estado) alemão de alcance internacional.

Os documentos produzidos, seja pela mídia, seja pelas agências organizadoras,

ajudam a prolongar e a fazer ecoar mais longamente a visibilidade dos eventos.

453 O diretor da ABC, Marco César Naslauski, em Despacho ao Memo ABC/1138/CTRB, de 29 de agosto de 2003, afirma que “a Embaixada alemã pretende realçar a comemoração dos 40 anos de CT institucionalizada, inserindo-a no contexto da visita do Presidente Rau”. Prossegue; “Do ponto de vista desta Agência, as referidas solicitações e sugestões parecem-me apropriadas. A ABC só teria a endossá-las”.

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Memória e história

Por fim, os eventos de celebração fortalecem a representação de datas e fatos

históricos, definidos por critérios oficiais de Estado, e são recriações daquele momento

original em que as histórias pessoais são recontadas para fixar e estabelecer uma história

oficial da cooperação internacional. Os convidados da festa caracterizam-se como um

grupo de antigos funcionários e diretores ligados entre si pela profissão ou pela atividade

de cooperantes. Nesses rituais de celebração, são realimentados e reavivados os laços

entre estrangeiros cooperantes que formam, em certa medida e por intermédio da

instituição, uma rede de vínculos profissionais e ideológicos. Essa rede é transnacional,

porque seus membros circulam em diferentes espaços, são estimulados a não se fixarem

em um país específico. Nas redes, diferentes fluxos culturais contemporâneos

transpassam fronteiras nacionais e colocam em evidência uma comunidade de alemães no

Brasil.

A formação desses grupos, dessas comunidades de profissionais da cooperação

internacional, está associada à construção social de um campo no qual se intervém para

capacitar, desenvolver, reduzir a pobreza, enfim, para promover o bem comum de uma

coletividade que ultrapassa cada Estado Nacional em face de riscos percebidos como

globais. Tais processos guardam homologias, em outras escalas, com aqueles de

coletivização nacional que se constituíram historicamente e, no século XIX, foram

adotados pelo aparato estatal de políticas de bem-estar social, só que, neste caso, em

proporções ampliadas, ou seja, em escalas globais.454 Ainda que em contextos alargados,

o aparato estatal permanece, abarcando em suas estruturas diplomáticas ou de relações

exteriores os processos de institucionalização, de forma simultânea à constituição de uma

institucionalidade multilateral.455 Neste sentido, descrevê-las é uma maneira de situar os

contextos em que se deram, as formas que foram desenvolvidas, bem como definir o

grupo de que tratamos nesta tese.

454 Swaan, Abram de. Care of the State – health care, education and welfare in Europe and the USA in the modern era. New York: Oxford University Press, 1988. p.1-12. 455 Referimo-nos às relações bilaterais de cooperação internacional, que se estabelecem entre Estados Nacionais.

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A formação desses grupos, dessas ditas comunidades de profissionais da

cooperação internacional, está associada a construção social de um campo no qual se

intervém para capacitar, para desenvolver, para reduzir a pobreza, enfim, para prover o

bem comum para uma coletividade que ultrapassa os estados nacionais em face a riscos

percebidos também como globais. Tais processos guardam homologias, em outras

escalas, com os processos de coletivização nacionais que foram se constituindo

historicamente e, no século XIX, foram assumidos pelo aparato estatal de políticas de

bem estar social, só que neste caso, em escalas ampliadas, ou seja, escalas globais.456

Ainda que em contextos ampliados, o aparato estatal permanece, abarcando em suas

estruturas, diplomáticas ou de relações exteriores, os processos de institucionalização

simultaneamente a constituição de uma institucionalidade multilateral.457 Neste sentido,

descrevê-las é uma forma de situar os contextos em que passaram, as formas que se

desenvolveram, bem como de definir o grupo de que tratamos nesta tese.

Para o próximo capítulo, analisaremos uma outra situação etnográfica, um projeto

como lugar privilegiado de observação das dinâmicas de articulação entre redes locais e

internacionais para implementação de mudanças na administração pública. Analisamos o

PPTAL, projeto destinado às populações e terras da Amazônia Legal.

456 de Swaan, Abram In Care of the State – Health Care, Education and Welfare in Europe and the USA in the Modern Era, New York: Oxford University Press, 1988, p.1-12. 457 Referimo-nos às relações bilaterais de cooperação internacional, que se estabelecem entre Estados Nacionais.

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Capítulo 8. Disciplina e reprodução de saberes em um projeto de

cooperação técnica, o PPTAL

O propósito deste capítulo é analisar as dinâmicas sociais que promoveram a

inclusão do Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da

Amazônia Legal, o PPTAL, no escopo do programa PPG-7 e na lógica administrativa da

Funai.

Neste sentido, buscamos fazer um recorte histórico do momento inicial do PPTAL

a partir de seus documentos e de entrevistas com pessoas que ocuparam posições de

decisão na administração pública e em organizações não-governamentais, apontando para

grupos e pessoas dentro da administração pública e fora dela articuladas em redes ligadas

a questões ambientais e indígenas que participaram dessas negociações. Além disso, o

desenvolvimento de projetos é uma “especialidade” da GTZ, de forma que analisar um

projeto específico, em cada uma de suas etapas e atividades desenvolvidas, é uma forma

de analisar as práticas da cooperação técnica da GTZ.

A exposição minuciosa do processo de entrada dos “alemães” na Funai por meio

do projeto PPTAL tem por objetivo primeiramente situar como os discursos opostos de

“invasão alemã”, por um lado, e de “salvação do clima”, de outro, não procedem. A

intervenção definida como cooperação técnica internacional resulta de uma articulação

global-local, em que os interesses externos são percebidos e reconfigurados no local

como parte dos interesses daqueles que aí estão. Além disso, o objetivo aqui foi apontar

alguns dos aspectos da operacionalidade da cooperação – como ela se processa na prática.

O KfW e os índios brasileiros, Brasília, 2002

O Banco KfW, como já dissemos, é o banco alemão de crédito para reconstrução,

que financia programas e projetos “de desenvolvimento” dentro e fora da Alemanha,

sendo um dos maiores bancos da Europa e a maior instituição financeira que participa dos

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projetos do Programa Piloto para as Florestas Tropicais do Brasil, o PPG-7, como

representante do governo alemão no repasse de recursos financeiros de doação.458

Entrava pela primeira vez no escritório do KfW no Brasil para entrevistar o seu

diretor, Dietmar Wenz, depois de ser bastante insistente para conseguir uma hora em sua

agenda. Estava um pouco nervosa, confesso, porque não sabia o que me aguardava. Tinha

conhecimento de que o KfW era um dos maiores bancos europeus e o banco de

desenvolvimento do governo alemão, e também que foi a principal instituição financeira

que apoiou o PPG-7, contribuindo com praticamente a metade do total dos recursos. Estas

informações davam à autoridade financeira à minha frente um certo peso, no entanto,

encontrava ali um ambiente bastante simples, sem formalidades ou cerimônias, sem

qualquer “bloqueio à entrada”, usuais nos escritórios de organismos internacionais.459

Fui recebida na porta do escritório por uma secretária muito bonita, alemã, de

meia-idade, que me pediu que aguardasse, pois chamaria assim que o diretor pudesse me

atender. Enquanto esperava, olhei os folders e os panfletos que colocam à disposição no

hall de entrada. As instalações do escritório têm uma decoração elegante, em tons de

marrom, com móveis confortáveis. Após aguardar um pouco, fui encaminhada à sala do

diretor.

Por onde passava, todas as paredes das salas do KfW estavam decoradas com

fotografias de índios emolduradas em quadros. Reconheci aquelas como sendo as fotos

que ilustravam o livro publicado pela GTZ, juntamente com a Funai, sobre o projeto

PPTAL; elas haviam se transformado em um verdadeiro mural de exposição nas

instalações do banco.

As fotografias buscavam retratar uma imagem de povos “selvagens”, homens e

mulheres de todas as idades e etnias, nus, pintados, mascarados, enfeitados com colares,

penas, dançando descalços em suas aldeias, em suas terras. As fotografias transmitiam

uma aura de inocência, como se eles estivessem fora do nosso tempo, sem quaisquer

ameaças, sem laços com o mundo ocidental.

458 O KfW tem muitos projetos de financiamento lucrativos, além de fazer doações. No próprio PPG-7, há os projetos “bilaterais associados”, assim chamados porque, apesar de não fazerem parte das doações destinadas ao conjunto de projetos do PPG-7, mesmo sendo projetos de financiamento, têm os mesmos objetivos considerados por parte do governo alemão. 459 O estabelecimento do KfW no Brasil tem relação com o PPG-7 pelo volume de recursos que o programa dispõe por parte do banco alemão, sendo posterior a 1995.

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Senti um estranhamento diante do contraste das várias fotos, em grandes quadros,

de índias e indiozinhos nus bem atrás daquele senhor que me concedia, tão formalmente,

uma entrevista para falar sobre os rumos financeiros do banco alemão no Brasil. O que

faziam ali aquelas fotografias de índios expostos no escritório de um banco de

desenvolvimento alemão? Imaginei que fosse uma forma de transmitir uma imagem do

próprio banco. Tais representações dispostas na decoração dos escritórios de agências

internacionais de cooperação, ao contrário do que pode se imaginar, são comuns e fazem

parte da sua identidade e legitimidade, sustentam sua razão de ser institucional diante da

existência de situações de carência e pobreza.

Assim, a imagem passada de representação da marca do KfW no Brasil era de um

banco ousado, criativo, inovador, “socialmente responsável”, porque atuava em causas

sociais, particularmente as de “grupos tradicionais”.

Na medida em que parecia não haver qualquer interferência sobre a vida daqueles

indígenas – tão dignamente apresentados, nutridos e enfeitados, como supostamente

vivem em suas aldeias – aquela representação trazia a mensagem subliminar de que a

atuação do KfW contribuía para o processo de demarcação das terras indígenas,

garantindo a preservação da Floresta Amazônica.460

O PPTAL para os alemães

No conjunto dos projetos do PPG-7, o PPTAL é considerado pelos alemães um

dos mais bem-sucedidos, como podemos perceber no depoimento do diretor do KfW, em

julho de 2002:

No relatório de avaliação que a gente fez na época, tinha uma lista de terras indígenas. [...] Essa lista só tinha algo como 55, 56 terras. Achava-se que com os 30 milhões de marcos que a gente tinha, mais RFT e contrapartida brasileira, ia dar pra fazer essas terras. A gente fez [...] e o dinheiro ainda sobrou, sobrou para fazer muito mais do que o projeto inicial previa [...] Nesse sentido, eu vejo esse como um dos melhores projetos do PPG-7. A Funai, com um ritmo meio lento, tudo bem, mas consegue fazer a cada ano, 10, 12, 15 terras dessa lista. E dentro

460 As fotos expostas nas paredes do escritório do KfW fazem parte do acervo de fotografias do PPTAL, as mesmas da publicação Demarcando terras indígenas, organizada pelas técnicas da GTZ Márcia Gramkow e Carola Kasburg, em 1999 e 2001.

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dessas terras, tinha terras indígenas onde a questão política não foi fácil: Javari, Rio Negro; são áreas imensas, muito grandes e com interesses adversos, fortes, que são contra uma demarcação. O fato de conseguir fazer isso razoavelmente dentro do prazo é algo que normalmente você avalia como algo forte, positivo, e o fato de que você conseguiu fazer o que tinha presente na lista e com metade do dinheiro é também algo muito positivo. [...] Nós temos outros projetos no PPG-7 que não estão conseguindo fazer isso com a mesma clareza que o PPTAL.

Apesar de somente ter iniciado as atividades com povos indígenas no Brasil em

1996, com o PPTAL, este não foi o primeiro projeto com populações indígenas em que a

GTZ se envolveu na América Latina.

De acordo com publicação do BMZ, a inclusão das populações indígenas em

projetos e programas da cooperação alemã para o desenvolvimento não constitui um

campo de ação completamente novo.461 Havia alguns casos em que foi desenvolvida a

cooperação financeira e técnica com populações indígenas da América Latina,

principalmente nos países andinos, como Bolívia, Peru e Equador, desde os anos 1970.462

No entanto, a grande maioria dos projetos concentra-se nos anos 1990: dos 45 projetos

destacados nesta publicação, entre cooperação técnica e financeira, somente quatro

começaram nos anos 70, passando para nove na década de 80, chegando a 32 projetos

somente na primeira metade da década de 90 (mais precisamente, até 1996, data de

publicação do documento), marcando uma virada sensível nas tendências apresentadas. É

importante assinalar que outras agências ligadas ao BMZ, além da GTZ e do KfW,

também recebem recursos orçamentários para implementar projetos com populações

indígenas, como o DED, o CIM e o DSE, além das instituições religiosas, que são as mais

antigas atuando nesta área, com projetos com povos indígenas na América Latina desde

os anos 60.463

Os projetos orientavam-se principalmente para as áreas de desenvolvimento rural,

o chamado “desarrollo campesino”, com atividades agrícolas e de irrigação para a

produção de alimentos. Muitos também eram os projetos para educação diferenciada,

461 BMZ. “Concepto relativo a la cooperación para el desarrollo con poblaciones indígenas en America Latina,” BMZ Actuell, 073, novembro de 1996, p.2. 462 Idem. 463 Idem, p.16-18.

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entre eles, educação básica, bilíngüe ou indígena. Neste último caso, o projeto mais

antigo foi implementado no Peru, ainda em 1970.

O aspecto absolutamente inovador que o projeto para populações indígenas no

Brasil em que a GTZ tomava parte era o enfoque territorial. Não havia, ao longo da

história da agência de cooperação técnica, qualquer experiência em projetos envolvendo

demarcação de terras indígenas.

Outras hipóteses podem ser aventadas no que concerne à aproximação de alemães

com populações indígenas, como a tradição do romantismo entre os alemães, de que nos

fala Martha S.:

Para mim, a relação tem a ver com o romantismo. Do meu ponto de vista, tem a ver com Karl May, o escritor de Winetton. São romances para crianças e adolescentes, que depois viraram filmes. Trata-se de índios norte-americanos, e estes livros ele escreveu na Alemanha. Ele nunca saiu para lugar nenhum. Ele formou a idéia do selvagem bom, de que os índios são os portadores dos valores bons e os brancos são ruins e só tem alguns mediadores – brancos – que são bons e o chefe dos índios é o Winetton. E daí, todas as crianças alemãs, todas sem exceção, crescem com os livros do Karl May e brincam de índio. Então, quando você vê um Parlamento de velhos lá na Alemanha, de partidos da direita até os da esquerda, em que todo mundo dá palestras a favor de índios, a minha hipótese é de que isso sai de Karl May, porque eles não têm um conhecimento antropológico mais profundo. Os filmes do Winetton passam no Natal, quando todo mundo tem tempo. Todo mundo adora. Já falei com parlamentares sobre isso, sobre a minha hipótese. Eu acho que tem muito a ver, porque não tem nenhum outro país onde todo mundo adora índio sem saber o que é.

Certamente, o romantismo na Alemanha não surgiu com Karl May. Ele é uma

expressão popular presente na sua literatura, e o fato de surgir um Karl May na Alemanha

explica muito dessa idealização do indígena.

Outras agências alemãs além da GTZ têm atuado nas questões relativas aos povos

indígenas no quadro das “intervenções para o desenvolvimento”, desde os anos 60,

através principalmente das igrejas e das instituições eclesiásticas. Nos anos 70 e 80,

iniciaram a cooperação governamental, mas não havia um direcionamento direto para o

atendimento às demandas dos povos indígenas, mas elas eram incorporadas a outras

políticas sociais através de benefícios indiretos. Essas agências (Brot für die Welt,

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Misereor, entre outras), atuavam como financiadoras de ONGs e da Igreja, mas não

atuavam diretamente nas aldeias com as populações indígenas .

No entanto, a partir dos anos 90, registrou-se uma descontinuidade na forma de se

abordarem as questões indígenas: passou-se a considerá-las um “grupo meta especial

distinto”, o que significa um foco específico em relação a estas populações.

Até 1996, o BMZ não havia formulado uma definição clara sobre a forma de

trabalhar com povos indígenas, quando então buscou cobrir esta lacuna desenvolvendo

uma base conceitual para este trabalho, focalizando exclusivamente tal política na região

da América Latina. Em publicação oficial do BMZ, argumenta-se que com esta

formulação houve uma mudança de orientação conceitual importante, com “o abandono

de concepções paternalistas e integracionistas” e de desenvolvimento induzido de “fora

para dentro” para a concepção de desenvolvimento “desde dentro”, baseada em direitos.

Se antes adotavam categorias de pobres e carentes, subdesenvolvidos e excluídos para se

referirem às populações indígenas, passaram depois a situar a questão indígena no

conjunto de outros grupos, como o dos afro-descendentes, que viveram processos de

colonização e sofreram privação de direitos, ressaltando a importância de compensações

em relação a uma dívida histórica com povos e culturas diferentes.464

Esta nova abordagem seria marcada pela assinatura da Convenção 169 da OIT, de

1989, que é citada no documento do BMZ como uma referência para orientar suas

próprias definições em projetos para povos indígenas segundo novos enfoques

conceituais, destacando-se entre eles o não-assimilacionista em relação aos povos

indígenas.465 Este é um processo que caminha com o reconhecimento de movimentos

indígenas organizados, de auto-afirmação dos representantes indígenas na América

Latina e da noção de que são sujeitos de seu próprio desenvolvimento,466 capazes de

elaborarem um conceito próprio de desenvolvimento. Tais idéias relacionam-se à

definição de etnodesenvolvimento, que se chamou de auto-desenvolvimento.467

464 Ibidem, p.3. 465 BMZ “Concepto relativo a la cooperación para desarrollo con poblaciones indígenas en América Latina”, opus cit., p.9. 466 Idem, p.8. 467 Não há em lugar algum do documento a referência ao termo “etnodesenvolvimento”, no entanto, a definição á qual se referem aqui pode ser entendida através desta categoria.

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A GTZ promoveu entre os dias 28 e 30 de abril de 2002, no Panamá, uma reunião

na qual estiveram presentes representantes indígenas e não-indígenas, entre eles,

membros da equipe brasileira do PPTAL e do PDPI. A idéia da reunião foi a de elaborar

recomendações para inovar as formas de atuação da GTZ em projetos de cooperação

técnica alemã com povos indígenas da América Latina, que eram fundamentalmente

orientados para populações camponesas, sem muita atenção aos aspectos étnicos e

culturais específicos desses povos.

No Panamá, reuniram-se 38 representantes de organizações indígenas, instituições

estatais e internacionais, membros da GTZ que trabalham em Bolívia, Peru, Brasil, Chile,

Costa Rica, Guatemala Equador, Nicarágua e Panamá, representando 19 programas e

projetos na América Latina onde a cooperação com povos indígenas se destaca. Do Brasil

estiveram presentes nessa reunião em Boquete (Panamá), Slowacki de Assis, funcionário

da Funai, como representante do PPTAL, e Gérsen Luciano Baniwa, liderança indígena e

representante do PDPI, que apresentaram documentos sobre os respectivos projetos.

Todo o debate teve também por princípio a contribuição para a discussão do

“Conceito Relativo à Cooperação para Povos Indígenas na América Latina”, do BMZ. A

GTZ elaborou recomendações para melhorar as propostas de atuação em projetos com os

povos indígenas da América Latina, documento este que ficou conhecido como

“Recomendaciones de Boquete”. Entre as 13 recomendações, destacam-se:

Deben aumentarse los recursos financieros para la cooperación con pueblos indígenas, utilizando p.e. las reservas temáticas o elevando el monto de las obligaciones a incurrir en el futuro para América Latina. [...] Dentro de la GTZ debe fortalecerse aún más la competencia para tratar y coordinar asuntos indígenas. Para tal fin se deben tomar las previsiones financieras y organizativas del caso. 468

Além dos aspectos de pobreza intensamente ressaltados para caracterizá-los,

destacaram-se entre os objetivos da cooperação para as populações indígenas também a

questão dos direitos humanos, da participação democrática em processos decisórios e da

gestão ambiental. A cooperação é vista como uma oportunidade de levar a cabo

mudanças sustentáveis em favor de populações indígenas nos países parceiros. Assim, a

468 GTZ. “Recomendaciones de Boquete”, opus cit., p 2.

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cooperação se define como “esforços em assessorar as populações indígenas na

articulação, formulação e implementação de seus direitos legítimos”,469 em que o

destaque à participação é fundamental na garantia dos seus direitos e na defesa de suas

demandas em “processos decisórios de bem-estar social”.

No caso da pobreza, os projetos que apóiam as comunidades indígenas são

baseados em auto-ajuda, desenvolvimento rural, proteção da floresta tropical, educação

primária e saúde. O que diferenciaria, no enfoque das agências alemãs, as relações dos

grupos indígenas com os Estados Nacionais no processo de construção/elaboração de

diretrizes para o desenvolvimento seria a importância de um tratamento baseado na

“multietnicidade” e na “interculturalidade” e o respeito aos valores, à cosmovisão, ou

seja, conceitos (culturalmente) específicos dos povos indígenas.470

Neste sentido, as questões conceituais associadas a uma cooperação mais eficaz

voltada para as populações indígenas foram discutidas com maior intensidade no campo

de projetos de proteção da floresta tropical, como no caso do PPG-7.

O PPTAL foi o primeiro caso de um projeto da GTZ com demarcação de terras

indígenas e tornou-se um laboratório exemplar, pela diversidade cultural dos povos

indígenas localizados na Amazônia brasileira e pela extensão territorial, um desafio sem

precedentes. Neste sentido, a hipótese que aventamos sobre “transferência de

conhecimentos” é que, ao invés do fluxo se dar no sentido da GTZ para o Brasil, na

verdade, sua direção é inversa. Devido à abrangência do projeto, que alcança toda a

Amazônia Legal, como também pela diversidade étnica dos grupos indígenas envolvidos,

o volume de recursos financeiros e de capital humano alemães aplicados no projeto se

justifica pela experiência adquirida e pela maior chance de novos contratos de cooperação

internacional. O desenvolvimento do PPTAL no Brasil garantiria à GTZ expertise para

trabalhar em outros projetos sobre povos indígenas, particularmente sobre questões

territoriais. Os projetos seriam experiências “de laboratório” para verificação da eficácia

do planejamento e de práticas destinadas a essas populações.

A execução de um projeto como o PPTAL abriu um leque de oportunidades e

experiências novas assumidas por peritos e técnicos alemães e criou um acervo de

469 BMZ. “Concepto relativo a la Cooperación”, opus cit., p.5-6. 470 GTZ, idem, p.1.

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documentos e relatórios, estudos e estatísticas na GTZ, que garantem a esta organização

um acúmulo de conhecimento absolutamente novo e um campo aberto de atuação.

O PPTAL

O projeto é, por definição, um lugar privilegiado de observação, lugar de

produção e reprodução de metodologias de planejamento, monitoria e avaliação, cursos e

oficinas enquanto saberes administrativos e formas cotidianas de disciplinamento de

comportamentos adotadas pela agência alemã de cooperação técnica, a GTZ, como parte

da sua lógica de ação. Trata-se, de fato, da unidade de ação básica da agência.

O enfoque orienta-se menos para o que a agência diz realizar, enquanto discurso

oficial, e mais para as intervenções pouco visíveis e pouco ditas do cotidiano, nas quais

aspectos do global estão presentes no local e vice-versa e as assimetrias afirmam-se e

estabelecem-se. Desloca-se, assim, o foco do local ou do global, instâncias de análise

predefinidas, para onde ambos se encontram, isto é, o projeto, que é o resultado do

encontro dessas duas instâncias polares e assimétricas de poder.

Como argumentou Almeida em brilhante análise sobre o projeto PPTAL, a

atuação da GTZ caracteriza-se por uma intervenção quase muda, em que são promovidas

com o projeto formas de disciplinamento e de assujeitamento, a partir da relação da

agência de cooperação com a Funai. A partir da projeção de visibilidades “consensuais”

em discursos reconhecidos, obscurece-se a visão de algo que está nas práticas diárias, na

instituição da rotina, na naturalização de processos burocráticos em diferentes instâncias

de atuação que uma agência internacional é capaz de alcançar.

[o PPTAL] consiste, entretanto, num setor que não pode ser pensado separadamente da cooperação técnica, isto é, da GTZ. Por esta via, ordena mais despesas e tem maior poder de intervenção na ação da FUNAI. Assim funcionando, a organização do PPTAL estabelece no interior da FUNAI um aparato que o diferencia de todos os demais projetos (Planafloro e Projeto Carajás) com os quais a FUNAI interagiu. Os projetos chamados “desenvolvimentistas” ainda que contando com recursos internacionais não demandaram qualquer reestruturação administrativa da FUNAI. 471

471 Almeida, A.W.B. Avaliação independente sobre o PPTAL, Brasília: GTZ, 2001, p.76.

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O trabalho de pesquisa no PPTAL, um dos projetos que fazem parte do PPG-7, foi

minha primeira experiência de observação das práticas definidas como cooperação

técnica da agência alemã GTZ no Brasil.472 Ele figurava entre os dois únicos projetos

orientados para povos indígenas no conjunto dos projetos do PPG-7, sendo que o PDPI

surgiu posteriormente como decorrência de um arranjo entre PPTAL e PDA, pensado

para dar suporte a atividades de sustentabilidade em terras indígenas, um desdobramento

das demarcações realizadas pelo PPTAL.473

Na estrutura do PPG-7, o PPTAL se localiza entre os projetos de Unidades de

Conservação e Manejo de Recursos Naturais, um dos grupos de projetos que fazem parte

dos subprogramas estruturais, além de Política de Recursos Naturais e Ciência e

Tecnologia.474 Os subprogramas estruturais orientam-se para ações que atinjam

“diretamente as deficiências institucionais que inibem a implementação da Política

Ambiental Brasileira na Região Amazônica, além da ampliação dos conhecimentos sobre

os ecossistemas da Amazônia e uso sustentável de seus recursos”.475

Em relação à caracterização geográfica do projeto, restrito à Amazônia Legal,

havia a ressalva de que estariam aí incluídas somente as terras indígenas existentes nos

seguintes estados: Acre, Amazonas, Amapá, Maranhão, Pará, Roraima e Tocantins, sendo

excluídas aquelas dos estados de Mato Grosso e Rondônia pelo fato de terem sido

contempladas em outros projetos em que o Banco Mundial já estava envolvido.476

472 BIRD, Blue Cover, abril de 1994, p.4. 473 O objetivo do PDPI era “melhorar as condições de conservação dos recursos naturais nas terras indígenas e a promoção do bem-estar das populações indígenas através da regularização das terras indígenas e da maior proteção e vigilância das áreas das terras indígenas na Amazônia Legal”. Segundo um de seus técnicos, este projeto orientava-se especificamente às terras indígenas devidamente regularizadas, o que limitava a sua capacidade de atendimento aos diferentes grupos indígenas. Recentemente, a equipe do projeto argumentou sobre a suspensão desta restrição, de forma a poder atender a populações de terras também não regularizadas, o que foi alcançado e reconhecido como uma vitória de demandas sociais indígenas. 474 De acordo com o tipo de política executada, o PPG-7 divide-se entre Subprogramas Estruturais e Subprogramas Demonstrativos. Os demonstrativos destinavam-se a viabilizar o envolvimento de comunidades e ONGs, Estados e municípios em testes e difusão de modelos de desenvolvimento sustentável. 475 FUNAI. PRODOC - Proposta de Cooperação Técnica com o PNUD PNUD/BRA/96/018, maio de 1998, p.18. 476 Idem, p.25.

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Considerando ser um projeto fundamentalmente vinculado a (ou ditado por) uma

lógica internacional e ambientalista, sua abrangência restringia-se à Amazônia,

determinada pelo enfoque exclusivo sobre povos indígenas amazônicos, negligenciando

outras situações indígenas no país.

Tendo em vista o desenho final do projeto, após todas as mudanças pelas quais

passou ao longo de sua negociação e execução, ele foi pensado, em linhas gerais,

considerando-se quatro componentes: “Regularização fundiária das terras indígenas”, o

componente 1, que seria o eixo central do projeto, orientado para implementar as

atividades de identificação, delimitação e demarcação das terras indígenas, de forma a

regularizar a sua situação juridicamente.477 Este componente se dividiria em

subcomponentes de “Identificação”, como o nome diz, visando identificar e delimitar

áreas e atualizar informações; “Demarcação e regularização”, inicialmente realizado por

firmas contratadas pela Funai, sendo adotadas algumas experiências de demarcação

participativa com os próprios indígenas; e “Avaliação ambiental”. Este primeiro

componente absorveu praticamente 80% das verbas do projeto, sendo financiado por

recursos do banco alemão KfW.

O componente 2, “Vigilância e proteção das terras indígenas”, orientava-se para

garantir a proteção daquelas terras já regularizadas através de “planos de vigilância”, uma

atividade posterior que envolveria recursos de US$ 1,6 milhão. O componente 3,

“Estudos e capacitação”, pautava-se no desenvolvimento de cursos e treinamentos para

funcionários da Funai, bem como para os próprios indígenas, como condição para

melhorar a proteção das terras indígenas, sendo destinado para a este componente um

volume de recursos na faixa de US$ 1,6 milhão. As atividades de coordenação,

477 Pacheco de Oliveira, João. “Terras Indígenas: uma avaliação preliminar de seu reconhecimento oficial e de outras destinações sobrepostas”. In: CEDI/PETI Terras Indígenas no Brasil. São Paulo: CEDI/MN, 1987. p.7-32. A classificação das terras indígenas, conforme sua situação ou fase no processo de regularização fundiária, se deu naquele trabalho da seguinte maneira: sem providência, para terras que estivessem fora de qualquer forma de reconhecimento oficial ou do processo regular de demarcação; em identificação, aquelas que tiveram a designação pela Funai de um Grupo de Trabalho (GT), mas que ainda não tivessem concluídos os trabalhos de identificação; identificadas, para terras com sua identificação preliminar concluída por um GT/FUNAI, com relatórios e proposta de delimitação; delimitadas, para as que receberam portaria da Funai declarando área de posse permanente dos indígenas; homologadas, aquelas que receberam decreto homologando a demarcação administrativa realizada pela Funai; regularizada, com registro no Cartório de Registro de Imóveis (CRI), no Serviço de Patrimônio da União (SPU). Esta classificação é adotada usualmente na Funai e de forma generalizada em estudos e trabalhos sobre terras indígenas.

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administração, monitoria e avaliação do projeto, integrantes do “Apoio ao

Gerenciamento”, componente 4, teriam recursos disponíveis de US$ 1,1 milhão.

Ao se observarem não mais os recursos por tipo de atividade, mas em relação aos

doadores do projeto, detectamos que o governo alemão aportou um volume de recursos

financeiros para o projeto de cerca de 80% do total do seu valor, por meio do Banco

KfW, sendo este o maior doador.

Além do total de 30 milhões de marcos alemães, que na época equivaliam a

aproximadamente US$ 17 milhões, o projeto contava com recursos do RFT, uma pequena

parcela de US$ 2,1 milhões, e do governo brasileiro, US$ 2,2 milhões, estes destinados a

indenizações de benfeitorias de boa-fé nas terras indígenas. Os recursos do KfW

direcionavam-se principalmente para a regularização das terras indígenas, vigilância e

proteção, e uma parcela muito pequena para estudos e capacitação, não sendo alocada

nenhuma parte para o componente 4, apoio ao gerenciamento, integralmente coberto por

recursos do RFT.

Se comparados ao volume total de recursos colocados pelo governo alemão no

PPG-7 como um todo, que variava em torno de 45% dos recursos totais, verifica-se o

aporte substancialmente significativo para este projeto, revelando uma atenção especial

dedicada a ele. Esta situação “privilegiada” dos alemães no PPTAL praticamente

caracterizou o projeto como bilateral,478 colocando em pauta um eixo de discussões sobre

a Amazônia de longa vigência histórica, relacionado à perda de soberania nacional e à

internacionalização da Amazônia”.

Além da contribuição financeira do banco KfW, as atividades de planejamento e

monitoramento exercidas pela agência alemã GTZ, junto com a equipe de execução da

Funai, marcaram este projeto e deram visibilidade às práticas de cooperação técnica

alemã.

Abaixo temos o quadro dos componentes do projeto e as participações dos

respectivos doadores:

478 O Projeto PPTAL é, por definição, multilateral, havendo além do Brasil e da Alemanha, a participação do Banco Mundial. No entanto, proporcionalmente, o volume de recursos financeiros aportados pelo banco alemão KfW e a presença da equipe da GTZ diretamente ligada à execução do projeto pela Funai geraram conflitos constantes, que foram abordados na tese de Ludmila Lima já citada.

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Componentes por financiadores

Fonte: BIRD, Blue Cover, abril de 1994, p. 17. (valores em milhões de dólares).

A principal razão que determinou a minha escolha do PPTAL como o projeto para

estudar os procedimentos de cooperação técnica da GTZ foi a contínua explicitação de

conflitos ao longo de sua existência: nas negociações iniciais, em que se gerou uma

polêmica em torno da própria concepção de ser ele um projeto para terras indígenas

desenvolvido com recursos internacionais; nos conflitos posteriores, que seriam

redefinidos como decorrentes da atuação da GTZ junto à Funai. O caso do PPTAL deu

visibilidade particularmente aos procedimentos administrativos e burocráticos da

organização alemã GTZ no Brasil, em função da polêmica que o projeto gerou e também

da repercussão de seus resultados. Até então, pouco conhecida para a grande maioria das

pessoas, inclusive para aqueles que trabalhavam em projetos de cooperação técnica

participava, a GTZ tornou-se objeto de tese, e sua atuação foi avaliada e divulgada em

jornais.

A participação financeira dos alemães, acompanhada da presença de uma

funcionária da agência de cooperação técnica intervindo na administração cotidiana dos

recursos e na elaboração de planejamentos junto à equipe do projeto fizeram ecoar ainda

mais forte as vozes que alertavam sobre a internacionalização da Amazônia e sobre a

invasão de estrangeiros nas terras dos “nossos índios”. Como nos fala uma alemã que

COMPONENTE RFT KFW GOB TOTAL

Componente 1 - Regularização fundiária das terras indígenas 0 0 11,68 84,6% 2,13 15,42% 13,81 Componente 2- Vigilância e Proteção das terras indígenas 0 0 1,33 100% 0 0 1,33 Componente 3 - Estudos e Capacitação 0,87 63,5 0,50 36,5% 0 0 1,37 Componente 4- Gerenciamento do Projeto 0,94 100 0 0 0 0 0,94

Sem alocação 0,29 8,33 3,08 88,5% 0,11 3,1% 3,48

Total 2,10 10% 16,59 79,37% 2,24 10,7% 20,9

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coordenou o programa do PPG-7 na época das negociações iniciais de seus projetos,

inclusive o projeto para populações e terras indígenas: “O PPTAL entrou em muito

conflito no governo brasileiro, porque eles não queriam que os estrangeiros mexessem na

causa indígena. Tem muita resistência por aí.” 479

Esta posição de conflito fica também muito clara na reportagem que apresenta a

visão de um senador particularmente anti-indígena sobre a “ingerência” estrangeira em

assuntos considerados domésticos, como é o caso da demarcação de terras indígenas. O

tom alarmista de toda a reportagem contribuiu para enfatizar a imagem da cooperação

técnica e financeira como a de invasores que ameaçavam a soberania e intervinham na

administração pública. A reportagem tinha o claro propósito de denunciar essas práticas,

daí o uso de termos como “devassa”, “CPI”, “caixa-preta”, “investigar”:

O senador Mozarildo Cavalcanti (PPS-RR) vai propor no Senado uma devassa sobre o uso de financiamentos de organismos internacionais, como a Agência de Cooperação Alemã (GTZ), destinados a ações sociais e de demarcação de terras indígenas no país. [...] Antropólogos e indigenistas ouvidos pelo Jornal de Brasília confirmaram que a agência alemã e sua diretora exercem interferência direta na FUNAI. “Há muito tempo, a FUNAI só faz o que a GTZ e outros organismos internacionais mandam”, diz um ex-assessor da FUNAI, que pediu anonimato temendo represálias. [...] “Vamos abrir esta caixa-preta” de financiamentos externos, avisa o senador Mozarildo Cavalcanti, autor de uma CPI para investigar a demarcação de terras indígenas no país.480

Assim, penso poder escapar de uma concepção maniqueísta em que os projetos de

cooperação técnica internacional resultam de uma aceitação passiva por parte de agentes

locais (funcionários de órgãos de governo) em relação a decisões internacionais, o que

caracterizaria uma intervenção direta e coercitiva.

A hipótese em que nos apoiamos é a de que a abertura para implementar este

modelo de administração pública, que faz uso de recursos financeiros e humanos

internacionais, não suplantou mas utilizou-se de um já existente “clientelismo de Estado”,

expressão adotada por Souza Lima para designar:

479 Entrevista concedida no Rio de Janeiro, em 2003. 480 Araújo, Chico. “FUNAI sofre ingerência de investidor alemão”, Jornal de Brasília, 07/03/2004, p.17.

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certo tipo de arregimentação de redes de clientela baseado na troca de lealdades interpessoais e no estabelecimento de vínculos com base na concentração e na distribuição de “bens” condensados na administração pública federal (cargos, verbas etc.), isto é, dá-se como “privado” aquilo que é, de direito, acessível na qualidade de “público.481

A instauração de condições para um projeto de cooperação técnica e financeira em

políticas de demarcação de terras indígenas no Brasil valeu-se da construção de redes

locais e internacionais que articularam organizações ambientalistas e indigenistas. A

entrada da GTZ no projeto não foi opcional, mas o resultado de um acordo formalmente

estabelecido que se impunha como condição para o repasse dos recursos do KfW,

condição esta aceita pelo governo brasileiro. Tendo aceito, não estava mais em discussão

a sua presença ou não, mas a forma como ela seria realmente efetivada, o que passou pela

relação direta de uma funcionária alemã com os membros da equipe brasileira, e não de

uma “organização”, a GTZ .

A pesquisa foi realizada a partir de fontes impressas, documentos obtidos em

arquivos de órgãos de governo (Funai, Agência Brasileira de Cooperação e Ministério de

Relações Exteriores), de ONGs e de acervos pessoais, além de entrevistas com um grupo

heterogêneo e diversificado de pessoas, o que se associou à observação etnográfica do

projeto. Lembrando que o projeto foi um dos meios pelos quais abordei a atuação da GTZ

no Brasil, tratei primeiramente de contextualizar o “estado das artes” em que a discussão

sobre terras indígenas se encontrava no Brasil e em que medida foi internalizada para os

objetivos do projeto. Procurei, em seguida, apontar as linhas ou os elos de uma corrente –

redes sociais – a qual articulou servidores públicos brasileiros, membros de ONGs e

funcionários da GTZ, muitos entre eles antropólogos, e viabilizou este tipo de

configuração, definida por cooperação técnica, na administração pública brasileira. Por

fim, chegamos ao desenvolvimento da análise documental das práticas e dos

procedimentos efetivamente colocados em execução pela GTZ no projeto, relatando o

481 Souza Lima argumenta que esta proposta “afasta a idéia de uma burocracia meritocrática como horizonte de reflexão para a análise da FUNAI e permite alcançar alguma inteligibilidade além da denúncia do “paternalismo” e da “corrupção” de funcionários e índios quanto às inúmeras crises geradas pelo controle da máquina administrativa da FUNAI.” Souza Lima, A.C. “Sobre gestar e gerir a desigualdade: pontos de investigação e diálogo” em: Souza Lima, A.C.Gestar e Gerir. Estudos para uma antropologia da administração pública no Brasil. Rio de Janeiro: Relume-Dumará:NUAP/UFRJ (Coleção Antropologia da Política), 2002, p.11-22.

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processo de entrada e de administração cotidiana da GTZ nos procedimentos referentes à

regularização das terras indígenas no Brasil.

Antecedentes históricos

Uma questão a ser observada inicialmente em relação ao processo da política

indigenista em que o PPTAL se inseriu refere-se ao caráter emblemático que as terras

indígenas assumiram historicamente na relação entre Estado e povos indígenas no Brasil.

Como argumenta Lisansky, a inclusão de um projeto para povos indígenas no

Brasil, como o PPTAL, em um programa de cooperação internacional, o PPG-7, previsto

para ser um modelo internacional, de forma nenhuma foi bem aceita no contexto de sua

elaboração.482 O que atualmente pode parecer bastante plausível resultou de um longo

processo de negociação desde os anos 80.

Até meados dos anos 80, a discussão sobre povos indígenas no Brasil era vista,

em larga medida, como um assunto doméstico, estratégico e militar, e não internacional.

A discussão do ordenamento territorial da Amazônia e das terras indígenas enquadrava-se

historicamente em um espaço reservado ao “nacional”, sendo a gestão da Amazônia um

símbolo e expressão da soberania nacional. Um projeto que abrisse a discussão sobre

políticas de gestão ambiental e territorial da Amazônia com a participação de organismos

internacionais multilaterais e bilaterais, como o foi o PPG-7 e o PPTAL, contrariava toda

uma tradição do pensamento geopolítico brasileiro, muito influente na política nacional.

Este debate colocou em evidência a permanência de posições nacionalistas que se

colocavam contrárias ao processo de regularização das terras indígenas e tentavam

impedir a garantia de direitos constitucionais aos índios em nome da “defesa da soberania

nacional”.

Como argumentam Pacheco de Oliveira e Souza Lima,483 a idéia de demarcação

de terras indígenas afirmou-se como motor da política indigenista a partir dos anos 70, e

482 LISANKY, J. Fostering Change for Brazilian Indigenous People during the Past Decade: The Pilot Program’s Indigenous Lands Project (PPTAL). In: Hall, Anthony (ed.) Global Impact, Local Action: New Environmental Policy in Latin America. London: Institute for the Study of the Américas:University of London, 2005, p.4. Lisanski, como disse, era a “task manager” do Banco Mundial, ou seja, uma espécie de “perita” ou gerente de projeto do Banco Mundial no PPTAL. 483 Pacheco de Oliveira, J. & Souza Lima, A. C. Política indigenista e políticas indígenas no Brasil: um mapeamento prospectivo. Sugestões para Fomento. Doação 985-0731, outubro de 1999.

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foi nesse momento que se delinearam muitas das bases de articulação política hoje

vigentes.

O processo de transição para a abertura democrática nos anos 80 teve

repercussões importantes que marcaram a política indigenista oficial. Além de se

ampliarem os espaços de articulação entre grupos da sociedade civil e de indigenistas e

antropólogos de ONGs e universidades em uma dinâmica até certo ponto independente,

também o cenário de formulação e implementação de políticas pela Funai parecia

sinalizar para uma abertura à entrada de determinados grupos no diálogo interno quanto

às normas e aos procedimentos referentes à demarcação de terras indígenas.

Não havia naquela época, no entanto, a sistematização e a organização que

tornassem acessíveis – de forma aberta e pública – informações sobre a situação das

terras indígenas, objetivando orientar novos planejamentos para a sua demarcação, como

estava proposto na Constituição. A necessidade de “organizar uma base de dados –

abrangente, consistente e atualizada sobre a situação das terras indígenas” se fazia

urgente diante de um momento muito específico da história do país, em que estava em

curso a elaboração de uma nova Constituição.

Na presente conjuntura histórica, além do conjunto de pessoas usualmente interessadas na problemática indígena por suas atividades profissionais, o volume Terras Indígenas no Brasil privilegia também outros leitores, como é o caso dos Constituintes, em processo de elaboração de uma nova Carta Magna para o país. As lideranças partidárias, os jornalistas, os cientistas, os estudantes, veículos importantes de transmissão de dados e formação de opiniões; os técnicos e os planejadores governamentais, cujas decisões afetam gravemente o destino dos índios.484

Estes são os argumentos de Carlos Alberto Ricardo e João Pacheco de Oliveira

Filho, coordenadores do projeto Estudo sobre Terras Indígenas no Brasil: Invasões, uso

do solo e recursos naturais - PETI. O projeto PETI foi desenvolvido por uma equipe no

Departamento de Antropologia do Museu Nacional/UFRJ, que no seu primeiro ano de

vigência, entre 1985-1986, estabeleceu um convênio com o Programa Povos Indígenas

no Brasil - PIB, do extinto Centro Ecumênico de Documentação e Informação - CEDI,

484 Ricardo, C. A. & Pacheco de Oliveira, J. “Apresentação”. In:. CEDI/PETI. Terras Indígenas no Brasil., opus cit., p.2.

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quando então tiveram um primeiro financiamento da Fundação Ford. O objetivo do

projeto, que seguiu até 1993, era o de fazer o levantamento de informações jurídico-

administrativas e da situação de fato da ocupação das terras indígenas por grupos

indígenas, e gerar dados para o conhecimento da situação.

A documentação oficial nunca esteve organizada de forma sistematizada e acessível aos interessados [...] Os dados obtidos de diferentes fontes e com gêneros e destinações específicas foram reunidos e comparados através de uma avaliação criteriosa complementada por informações provenientes de rede de colaboradores (do CEDI), sendo depurados e/ou explicitados os incontáveis equívocos verificados e explicitadas as dúvidas e ambigüidades que por ora ainda não se conseguiu superar.485

A vasta produção documental sobre a política indigenista da Funai, que se

instaurou nos anos 80, promoveu um campo de discussões entre pesquisadores

acadêmicos e colaboradores do indigenismo pertencentes a organizações não-

governamentais e eclesiásticas no Brasil, o que refletiu as lutas políticas a favor do

reconhecimento pelo Estado dos direitos indígenas a seus territórios.486

A despeito de ainda predominar uma visão nacionalista, xenófoba e tutelar no que

se refere à forma de relação entre Estado e povos indígenas, este espaço ainda

embrionário de articulação política – centralizado entre universidades, centros de

pesquisa de grandes centros urbanos, como Rio de Janeiro, Brasília e São Paulo –

forneceu as bases para a discussão de políticas para povos indígenas, com propostas de

justiça em relação a eles e particularmente à democratização nos procedimentos

demarcatórios. Centrado prioritariamente em torno da questão do reconhecimento dos 485 Pacheco de Oliveira, J. “Terras Indígenas: uma avaliação preliminar de seu reconhecimento oficial e de outras destinações sobrepostas”. In: Terras Indígenas no Brasil. São Paulo: CEDI/MN, 1987. p.7. 486 Almeida, A.W.B. & Pacheco de Oliveira, J. Demarcação e reafirmação étnica (ref.), 1985; CIMI/PORANTIM. “Levantamento da realidade indígena”, Porantim, 37, p. 8-12, Brasília, CIMI, abril de 1982; Souza Lima, A.C.S. & Pacheco de Oliveira, J. “Os muitos fôlegos do indigenismo”, Anuário Antropológico, 1981; Tempo Brasileiro/UFCe, 1983; CEDI; Aconteceu Povos Indígenas Especial, 1984; Pacheco de Oliveira, J. “Terras indígenas: uma avaliação preliminar de seu reconhecimento oficial e de outras destinações sobrepostas”, opus cit., p.7-32; Pacheco de Oliveira, J. Indigenismo e territorialização: poderes, rotinas e saberes coloniais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Contracapa, 1998; Erthal, R. Reconstituição cronológica das normas administrativas da FUNAI relativas ao processo de demarcação das terras indígenas. Rio de Janeiro: PETI, 1987; Kasburg, C. & Gramkow, M. (orgs.) Demarcando terras indígenas: experiência e desafios de um projeto de parceria. Brasília: FUNAI/PPTAL/GTZ, 1999; Santilli, M. “Natureza e situação da demarcação das terras indígenas no Brasil”. In: Kasburg, C. & Gramkow, M., idem, p.23-44; Lima, A.C.S. & Barretto Filho, H.T. Antropologia e identificação: os antropólogos e a definição de terras indígenas no Brasil, 1977-2002. Rio de Janeiro: Contracapa Livraria, 2005.

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direitos indígenas a terra, foi aberto um “espaço de articulação” entre grupos da

sociedade: indigenistas, indígenas e ambientalistas, advogados defensores de direitos

humanos, antropólogos, geógrafos e outros, além de organismos não-governamentais e

órgãos de governo.

Suas pesquisas, partindo da produção de um conjunto de pesquisadores e

defensores de direitos indígenas que atuavam em várias frentes de investigação e de

assessoria e que tinham vínculos institucionais – universidades federais como UFRJ,

USP, PUC-PR, instituições ligadas a movimentos ecumênicos eclesiásticos ou igrejas,

como o CEDI ou o CIMI, ou a Comissão Pró-Índio de São Paulo e o Centro de Trabalho

Indigenista – resultaram na produção de informações úteis para os Constituintes sobre a

situação jurídica e administrativa das terras indígenas no Brasil, tendo em vista a

elaboração da Constituição de 1988 e a revisão das normas e das práticas administrativas

dos aparelhos de governo.487

Diante da proximidade da Conferência das Nações Unidas para Meio Ambiente e

Desenvolvimento - CNUMAD, ou Eco-92, que se realizaria no Brasil em junho de 1992,

as organizações ambientalistas internacionais pressionavam para a adoção de medidas

mais objetivas em relação ao meio ambiente, sendo que a Amazônia centralizava

particularmente as atenções internacionais.

Em junho de 1991, o presidente Fernando Collor de Mello foi aos Estados Unidos

para estabelecer negociações e conversas diplomáticas com o Presidente George Bush

sobre questões políticas envolvendo os dois países. A visita de Collor, no entanto, acabou

se tornando uma oportunidade para que ambientalistas e representantes políticos norte-

americanos expressassem críticas e sugestões em relação à questão ambiental e

indigenista do governo brasileiro. Durante a viagem, Collor recebeu a visita de oito

senadores democratas norte-americanos que assinaram uma carta com críticas à política

ambiental do governo brasileiro quanto a uma “agenda inacabada”, sugerindo mudanças,

em especial sobre três pontos, entre os quais figurava a demarcação das terras ianomâmi,

além da abolição dos subsídios ao desmatamento e à violência no campo.

Esta carta foi baseada em um documento elaborado pela ONG Environmental

Defense Fund, com a colaboração de outras organizações não-governamentais

487 Ver: Pacheco de Oliveira. Ensaios de antropologia histórica, 1999a , p.236-241.

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internacionais ambientalistas, como Sierra Club e World Wildlife Foundation - WWF.

Dizia: “A demarcação das terras ianomâmis é um teste importante do desejo do governo

brasileiro em cumprir suas promessas sobre meio ambiente e direitos humanos na

Amazônia”.488

Este fato foi recebido de forma bastante negativa entre políticos e militares no

Brasil, que acusaram o grupo de senadores de estarem interessados na exploração da

Amazônia. Expressavam sua posição nos meios de comunicação, que apresentavam a

demarcação das terras ianomâmis como uma questão associada às pressões dos senadores

dos Estados Unidos, colocada nos termos da velha máxima de “internacionalização da

Amazônia.”

A posição do presidente Collor, favorável a adotar algumas das mudanças

sugeridas, gerou consternação entre muitos políticos, que se diziam “defensores da

soberania nacional” e protestavam contra intervenções estrangeiras em temas

“nacionais”, como os jornais da época publicaram:

O presidente Fernando Collor de Mello está atendendo uma a uma as reivindicações feitas pela Environmental Defense Fund (Fundo de Defesa do Meio Ambiente) durante sua viagem aos Estados Unidos, na semana passada.489 O senador Pedro Simon foi veemente ao censurar os senadores dos EUA, lembrando que eles não tinham moral para nos dizer como devemos cuidar dos problemas de nossos índios e, particularmente, dos Ianomâmis.490 Estes senadores (americanos) fazem parte de um coro mundial que quer internacionalizar a região amazônica através da criação da “Grande Nação Ianomâmi. [...] é nessa região de Roraima que se descobriram as maiores reservas mundiais de minérios, como o urânio e o nióbio (General Antenor Santa Cruz).491 Os governadores da Amazônia reagiram ontem duramente à proposta do Grupo dos Sete em conceder ajuda financeira ao Brasil para a preservação da floresta amazônica. “Trata-se de um claro plano de intervenção estrangeira na soberania nacional em relação à Amazônia”, denunciou o governador amazonense Gilberto Mestrinho. [...] O tom de denúncia predominou durante todo o dia de ontem em Manaus. O comandante militar da Amazônia, general Antenor Santa Cruz,

488 Brito, M.F. “Senadores dos EUA criticam política ecológica de Collor”, Jornal do Brasil, 18/06/1991, p.3. 489 Dantas, E. “Collor atende pedidos de ecologistas dos EUA”, Folha de São Paulo, 26/06/1991, p.8. 490 “Simon acusa americanos”, Correio Braziliense, 19/06/1991, p.5. 491 Obliziner, A. “Pressão sobre a Amazônia gera revolta”, Correio Braziliense, 19/06/1991, p.5.

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garantiu que a defesa da ecologia e das minorias étnicas, além do combate ao narcotráfico, fazem parte de um plano para difundir mundialmente a pretensa incapacidade do nosso país em gerenciar suas riquezas, destino e território.492

Os militares e os governadores de estados amazônicos condenavam os planos e os

programas de proteção ambiental da Amazônia com base em discursos de defesa do

“desenvolvimentismo” como justificativa. Era usual que adotassem argumentos

favoráveis à exploração das riquezas da região e contrários à onda ecológica como uma

forma de “congelar a região mais rica do mundo para deixá-la como reserva técnica de

riquezas naturais e estoque de matérias-primas capaz de ser utilizado pelos centros

fornecedores atuais quando suas reservas já tiverem alcançado o esgotamento”, como

disse o secretário de Ciência e Tecnologia do estado do Amazonas, José Belfort, em

jornal.493

Também algumas ONGs se posicionaram de forma crítica às formas como os

recursos do G-7 estariam sendo enviados ao governo brasileiro para alocação em projetos

ambientais, sendo suas críticas direcionadas principalmente à falta de diálogo com a

sociedade civil:

Outras organizações rejeitam o programa. O Fórum das ONGs brasileiras para a ECO-92 pediu ao Banco Mundial sua suspensão, até que fosse mais debatido. Carlos Aveline, presidente da União Protetora do Ambiente Natural, condena a entrega de recursos ao governo Collor. Camillo Viana, da Sociedade de Preservação dos Recursos Naturais e Culturais da Amazônia é contra a venda da Amazônia às superpotências.494

As cobranças e as pressões internacionais foram intensas, mas apesar de causarem

constrangimentos diplomáticos entre os dois países, tiveram resultados para a política

adotada pelo governo. Ao voltar dos Estados Unidos, o ministro da Justiça de Collor,

Jarbas Passarinho, respondeu às pressões internacionais demitindo o presidente da Funai,

Cantídio Guerreiro Guimarães por:

492 “Governadores temem por soberania da Amazônia”, Caderno Ecologia, Jornal do Brasil, 19/07/1991, p.9. 493 Correio Braziliense, 18/07/1991. 494 Arnt, Ricardo. “Fundo para Amazônia divide ambientalistas.”, Folha de São Paulo, 08/07/1991, p.4-5

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Não ter providenciado no prazo de 60 dias estudo para demarcação das terras dos índios ianomâmis, em Roraima. [...] O presidente Collor tinha dado a Cantídio um prazo total de 180 dias para a demarcação e não gostou da falta de iniciativa nos primeiros dois meses, por isso, determinou sua demissão.495

Mostrando que respondia de forma a atender aos apelos internacionais e assim

contribuir politicamente para criar condições para receber recursos internacionais para

programas na área de meio ambiente, Collor nomeou Sidney Possuelo para ser o novo

presidente da Funai, indicando aos observadores políticos e ativistas do exterior, e

também ao público de ambientalistas, indigenistas e povos indígenas no Brasil, que

estava buscando atender às suas demandas. Escolheu um nome que, embora polêmico,

conquistara reconhecimento no Brasil e no exterior em sua trajetória no indigenismo,

particularmente com índios isolados. Possuelo era um sertanista com 25 anos de

indigenismo como funcionário do quadro da Funai, onde chefiava a Coordenação de

Índios Isolados. Assumiu a presidência da Funai em 28/06/1991, diante da premência de

demarcar todas as terras indígenas no Brasil até 1993, sendo este prazo estabelecido nas

Disposições Transitórias da Constituição. Tal tarefa exigia não apenas empenho político e

habilidade administrativa, mas sobretudo capacidade de mobilização de recursos

orçamentários do governo federal:496

O sertanista Sidney Possuelo, anunciado ontem no Palácio do Planalto como novo presidente da FUNAI, vai ter ainda este ano CR$ 44 bilhões para dar início à demarcação de terras indígenas em território brasileiro e cumprir o que determina a Constituição: até 8 de outubro de 1993, os índios brasileiros terão todas as suas reservas demarcadas. “A demarcação das terras indígenas será nossa prioridade”, afirmou. “Vamos atacar esse problema com a firmeza necessária”, emendou.

O fato é que a partir de 1991 começaram a ser feitas as primeiras demarcações de

terras indígenas, realizadas por convênios entre ONGs nacionais, agências e ONGs

estrangeiras e o governo brasileiro, por meio da Funai. Segundo Dominique Gallois:

495 “Presidente da FUNAI é demitido”, Jornal do Brasil, 22/06/1991, p.4. 496 “Possuelo assume Funai para demarcar terras dos índios”, Jornal do Brasil, 29/06/1991, p.5.

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“Desde 1991, a Funai vem assinando convênios com ONGs como medida para superar

dificuldades políticas e viabilizar a demarcação de terras indígenas no país”.497

Em fevereiro de 1991, Fernando Collor assinou o decreto nº 22/91 de 14/02/1991,

vinculado à Portaria 239/91, revogando com isso os decretos 94.945 e 94.946/87 e

estabelecendo as normas administrativas para regularização fundiária das terras

indígenas, conforme determina o artigo 13º. Diz o texto do artigo 2º, parágrafo 4º do

decreto: “Outros órgãos públicos, membros da comunidade científica ou especialistas

sobre grupo indígena envolvido poderão ser convidados, por solicitação do Grupo

Técnico a participar dos trabalhos”.

A assinatura do Decreto 22/91 é considerada por alguns como um instrumento que

teria flexibilizado os procedimentos demarcatórios pela Funai, quando abria uma

possibilidade para a contratação de antropólogos de fora da própria instituição,

permitindo que especialistas pudessem estar presentes nas demarcações.498 O termo

flexibilização, para definir uma mudança dos procedimentos demarcatórios, é usado para

caracterizar a rigidez burocrática das práticas da Funai, dando abertura para a

participação de membros de ONGs e da “comunidade científica” em grupos de trabalho

da Funai no processo de regularização fundiária. Entre estes, estavam alguns

antropólogos que faziam parte do Centro de Trabalho Indigenista - CTI; para eles:

“tratava-se de aproveitar os espaços políticos abertos no aparelho do Estado para

introduzir ali conceitos e procedimentos que ampliem a participação dos índios e da

sociedade civil na fiscalização dos atos do governo”.499

Mas esta não era uma opinião consensual. Para alguns autores, como Oliveira e

Leite,500 esta passagem do texto indicava “um exercício mais de retórica do que de

abertura à participação”, não se acreditando no que insinuava ser, uma abertura para a

participação de especialistas e profissionais de outros órgãos em grupos de trabalho de

identificação da Funai. A crítica referia-se mais a dar acesso a determinados grupos do

497 CTI. Projeto Demarcação Waiãpi. Resumo do Relatório Final, agosto de 1996, p.7. 498 Opinião de Maria Elisa Ladeira, como também de Sidney Possuelo, ambos entrevistados. 499 CTI. Projeto Demarcação 92-93 Convênio FUNAI-CTI, sem data, p.4 (arquivo CTI). 500 Pacheco de Oliveira, João & Leite, Jurandyr C.F. “É possível acelerar a regularização das Terras Indígenas?”. In: Resenha e debate: Brasil novo, indigenismo novo? Rio de Janeiro: PETI/Museu Nacional, nº 3, março de 1991. p.4.

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que efetivamente flexibilizar os procedimentos, já que não haviam mudado as normas da

Funai, cujo monopólio sobre questões fundiárias de terras indígenas permanecia.

Desde o primeiro momento de sua gestão, Possuelo disse que optou por adotar

uma estratégia de demarcação direcionada para áreas de grande extensão territorial,

porque imaginava que, sendo feita logo de início a demarcação de uma grande área,

outras menores seriam politicamente mais fáceis de negociar. A primeira experiência,

talvez a mais polêmica, foi a demarcação da terra indígena Yanomâmi, em Roraima.

Posteriormente, com recursos internacionais arrecadados pela Fundação Mata Virgem

(Rain Forest Foundation), por meio de uma campanha organizada por Sting, junto com

Raoni, liderança kayapó, foi realizada a demarcação da T.I. Mekragnoti (Xingu), em

setembro de 1992.

A demarcação da T.I. Kampa, no Acre, foi realizada logo em seguida a esta, em

abril de 1992, com a atuação de membros do Núcleo de Direitos Indígenas (NDI) na

arrecadação de recursos financeiros. Também em 1992, o Centro Magüta, com apoio do

Vienna Institute for Development and Cooperation, uma organização não-governamental

austríaca, promoveu a demarcação de terras indígenas Tikuna.501

Data

Convênios FUNAI Instituições Executoras e Financiadoras

Terras Indígenas

1991 Fundação Mata Virgem (Rain Forest

Foundation) Menkragnoti (PA) 1992 Núcleo de Direitos Indígenas (NDI) Kampa do Rio Amônea (AC)

1992

Centro Magüta + Vienna Institute for Development and

Cooperation Tikuna (AM) 1994 CEDI + governo austríaco Araweté do Igarapé Ipixuna (AM)

501 Veremos que este mesmo padrão de articulação administrativa para execução de projetos, ligando órgãos do setor público, neste caso a Funai, com agências internacionais e ONGs, já em vigor desde o início dos anos 90, seguiu pela década afora, institucionalizando-se no PPTAL. Em 1995, duas outras demarcações foram feitas por meio da participação de organizações não-governamentais. A da terra indígena Araweté do Igarapé Ipixuna, no Amazonas, foi feita com a atuação do CEDI e a da terra indígena Waiãpi, por meio de um convênio que articulou o CTI, a Funai e a GTZ, já no início do PPTAL, sendo esta experiência considerada um projeto-piloto de demarcação chamada “participativa”, porque envolvia os indígenas em decisões diretas, pensada como um modelo a ser adotado. Em 1996, foi a vez das terras indígenas da região da Cabeça do Cachorro, no Alto Rio Negro, envolvendo o Instituto Socioambiental (ISA).

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Neste processo dinâmico e em transformação, a participação de antropólogos no

processo de regularização de todas essas terras foi fundamental para a sua consolidação.

Isto se deu, em um primeiro momento, como colaboradores de um debate que se

consolidou a partir de experiências próprias em consultorias e em grupos de trabalho

(GTs) de identificação de terras para a Funai e também em projetos nas áreas indígenas.

Atuaram ainda como articuladores, negociadores ou captadores de recursos

internacionais, dentro e fora do governo, para a consolidação das condições políticas para

demarcações e, posteriormente, para garantir a implementação de um projeto de

cooperação técnica e financeira para terras e populações indígenas, que foi o PPTAL.

Foi neste contexto de pressões internacionais e de falta de orçamento nacional

para demarcação que surgiu o Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras

Indígenas da Amazônia Legal, o PPTAL, negociado enquanto parte do PPG-7 no

contexto da ECO-92: “O PPTAL nasceu da ECO-92, de um compromisso estabelecido

ali. O Banco Mundial começa com a história e gerencia tudo. O KfW se interessa depois.

A história começa com cinco áreas para piloto”.502

As peças do PPTAL

De acordo com jornais da época, o governo Collor estabeleceu como critério para

demarcação das terras indígenas o efeito publicitário no exterior, visando à ECO-92.

Depois de correr cinco quilômetros em 28 minutos, Collor garantiu ontem na Casa da Dinda, que o Brasil já construiu uma boa imagem internacional por causa das medidas que vem adotando para preservar o meio ambiente. O Presidente frisou que não faltarão recursos para demarcação das reservas indígenas. 503

A pressão internacional e a ampliação da visibilidade em relação às terras

indígenas que a iminência da realização da ECO-92 promoveu, tornaram-se o mote para

adotar mudanças, não fugindo à regularidade de funcionamento em se “administrar por 502 Isa Pacheco, em depoimento de 2003. 503 Jornal Correio Braziliense, 24/06/1991, p. 5.

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crises”, como sustentam Oliveira e Almeida sobre a forma de atuação da Funai. A visão

de Artur Mendes corrobora para este argumento, quando define que uma das justificativas

mais plausíveis para viabilizar o processo de entrada de recursos externos na Funai foi a

pressão dos prazos estabelecidos pela Constituição. A oportunidade vislumbrada por um

grupo dentro da Funai, que apostava no PPTAL e nos recursos internacionais como o

meio viável e possível para sua concretização, aliou-se aos interesses dos alemães no

projeto de demarcação de terras indígenas. Mendes fala de “uma FUNAI”, como se

houvesse aí um consenso em torno da “oportunidade” que representava o projeto para a

regularização fundiária, o que não era fato. Sua posição reflete a daqueles que

participavam na época enquanto funcionários da Diretoria de Assuntos Fundiários, os

quais se articularam no sentido de construir politicamente a existência do projeto. Para ele:

Na época, 1992, nós ainda vivíamos dentro daquele prazo dos cinco anos que a Constituição deu. Então, a FUNAI viu aí uma chance de se ter um aporte substancial de dinheiro, de recursos e também técnico para acelerar a demarcação e, quem sabe, até cumprir com esse prazo. Hoje a gente vê que seria impossível cumprir; mesmo com todo o recurso disponível, você teria problemas de disponibilidade técnica e outros. A demarcação de uma terra, acredito que ela acontece dentro de parâmetros antropológicos seguros quando os índios estão preparados, quando eles entenderam o que é uma demarcação, quando eles discutiram entre si os limites desta área, quando eles têm já uma proposta discutida com o Estado.504

Sua posição é defendida também no artigo publicado em livro que a GTZ e a

Funai editaram juntas: Demarcando Terras Indígenas:

Quando em 1992 a FUNAI foi convidada pela coordenação do PPG-7 a apresentar uma proposta do que viria a ser o componente indígena daquele programa, vislumbrou-se ali a possibilidade de obtenção de meios financeiros e técnicos suficientes para cumprir com o preceito constitucional. Admitiu-se que, se através da cooperação internacional as terras indígenas da Amazônia Legal tivessem a demarcação concluída, os recursos federais normalmente disponibilizados à FUNAI para este fim seriam suficientes para atender ao restante do território nacional.505

504 Artur Nobre Mendes, ex-coordenador da Secretaria Técnica da Funai, em entrevista neste órgão em 3 de julho de 2002. Renata, é preciso tirar estes espaços entre uma nota e outra, o que não se usa; não consegui fazer.

505 Mendes, A. N. “A demarcação das terras indígenas no âmbito do PPTAL”. In: Gramkow, M. & Kasburg, C. (orgs.). Demarcando terras indígenas, opus cit., p.15-19.

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Estes não foram os casos de projetos de demarcação de terras que resultaram de

mecanismos compensatórios decorrentes de impactos sociais e ambientais de grandes

projetos. No entanto, estas foram algumas das iniciativas que precederam à entrada de

recursos externos e aos convênios com agências e organismos internacionais em

procedimentos administrativos de regularização fundiária das terras indígenas. Para

Souza Lima:

No campo específico do processo jurídico-administrativo de reconhecimento de terras indígenas, a entrada de recursos estrangeiros para a regularização fundiária, a partir do ano de 1992, através de organismos multilaterais de desenvolvimento e em convênios com ONGs, na esteira de padrões que remontam aos chamados “grandes projetos de desenvolvimento” – Projeto Karajás, Polonoroeste, PMACI – reportáveis ao fim dos anos 1970, início da década de 1980, associou-se a muitos outros fatores.506

O surgimento de um projeto como o PPTAL, vinculado ao objetivo de

conservação da Floresta Amazônica, deve ser compreendido como parte e resultado deste

debate e desta rede que se formou. As mudanças que se vislumbravam não estavam

circunscritas aos limites do “governamental”, da administração pública, mas envolviam

todo os setores da sociedade, desde colaboradores e pesquisadores até ambientalistas e

indigenistas, que se mobilizavam em um espaço público de discussão política às vésperas

da ECO-92.

A elaboração do projeto foi um processo longo, entre final de 1991 e final de

1992, e que se deu em um período bastante conturbado no que dizia respeito à gestão dos

recursos naturais no país. Algumas mudanças administrativas orientadas para um quadro

institucional para gestão da política ambiental vinham se processando desde 1989,

quando foi criado o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente - IBAMA, vinculado ao

Ministério do Interior, extinguindo a SUDHEVEA, o IBDF, a SUDEPE e a antiga

Secretaria de Meio Ambiente - SEMA.507 Em abril de 1990, o IBAMA passou a ser

vinculado à Secretaria de Meio Ambiente - SEMAM/PR, órgão de assistência direta da

506 Lima, Antonio Carlos de Souza. “Os relatórios antropológicos de identificação de terras indígenas da Fundação Nacional do Índio - Notas para o estudo da relação entre antropologia e indigenismo no Brasil, 1968-1985”. In: Oliveira, J.P. (org) Indigenismo e territorialização, opus cit., p.225. 507 Instituto Brasileiro de Meio Ambiente, criado em 22/02/1989 pela Lei 7.735/89.

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Presidência da República.508 Posteriormente, em novembro de 1992, a SEMAM/PR foi

transformada em Ministério do Meio Ambiente - MMA,509 que em 1993 passou a ser o

Ministério do Meio Ambiente e da Amazônia Legal.510

As bases do PPTAL resultariam de articulação e negociação para a inclusão da

questão indígena no PPG-7, o que foi feito por um conjunto de atores de instituições

brasileiras e organizações internacionais. Quanto às instituições brasileiras, a Funai era

oficialmente o órgão executor do projeto, enquanto a SEMAM/PR, ligada à Presidência,

coordenava o quadro geral do PPG-7, ao qual o PPTAL se subordinava. Além disso,

organizações indigenistas vinham se articulando em torno da questão territorial dos povos

indígenas e constituíram um grupo para elaborar o projeto PPTAL.

O fato é que um grupo bastante afim às práticas de cooperação técnica – com

envolvimento de profissionais que atuavam em ONGs com financiamentos externos, com

certo canal de comunicação com o Banco Mundial por conhecerem a lógica e os

procedimentos da cooperação – agilizou alianças e articulações políticas de forma tão ágil

que restringiu a capacidade dos setores mais conservadores de inviabilizar o projeto.

A entrada e a participação de agências ou órgãos de cooperação internacional ou

de financiamento promoveram mudanças nas práticas administrativas relativas aos

processos de demarcação. Algumas dessas mudanças viriam a favorecer a participação de

ONGs nos procedimentos oficiais de demarcação e a entrada de recursos estrangeiros,

como argumenta Souza Lima:

As práticas administrativas aparentemente sofreram alterações quer pela força de um (auto)conhecimento sobre aparelhos de governo como a FUNAI, [...] quer pela proposta de “reforma do aparelho de Estado” sob o governo Fernando Henrique Cardoso, quer ainda pela presença de órgãos de cooperação internacional ou de financiamento dentro destas mesmas instituições.511

508 A SEMAM/PR foi instituída pela Medida Provisória nº 150, instância à qual o IBAMA passou a ser vinculado pela Lei 8.028. 509 O MMA foi instituído pelo Artigo 21 da Lei 8.490, de 1992. 510 Pela Lei 8.746, de 09/12/1993. 511 Lima, Antonio Carlos de Souza. “Os relatórios antropológicos de identificação de terras indígenas, opus cit., p.224.

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O PPTAL e as redes do indigenismo

Como argumentamos, a CNUMAD ou ECO-92 foi um momento importante de

redefinição de prioridades; a partir dela, as terras indígenas reassumiram importância e

destaque nas práticas administrativas em relação aos povos indígenas, tendo em vista a

sua contribuição na preservação das áreas de florestas. Os mesmos grupos envolvidos no

debate na Constituinte participaram da mobilização da questão indígena no âmbito da

conferência internacional.

A proximidade entre o debate constituinte e a realização da Eco-92 contribuiu

para que as discussões em torno das referências conceituais e das práticas do Estado em

relação aos povos indígenas não perdessem o fôlego. Ao contrário, a oportunidade de se

colocarem em foco as questões do ambientalismo permitiu a inclusão na pauta das

negociações de um projeto para povos e terras indígenas, como argumenta Souza Lima e

Barroso-Hoffmann:

[...] ainda no final dos anos 80, em face da grande visibilidade do movimento de seringueiros e de uma real ligação entre estes e os povos indígenas do Acre, produziu-se e generalizou-se, em especial perante os organismos internacionais de financiamento de diferentes matizes, a idéia de uma aliança entre os povos da floresta, conferindo ênfase a certo utopismo ecologista em razão da generalidade com que foi aplicado. A partir de então, a ampla propaganda feita em torno do tema no exterior se deu em consonância com a crescente repercussão de argumentos ambientalistas variados, tanto nos Estados Unidos como na Europa Ocidental: pouco a pouco a especificidade dos problemas dos povos indígenas, assim como de suas soluções, foi equacionada sob a condição de problemas de conservação e utilização racional e sustentável do meio ambiente, com ênfase quase exclusiva na região e nas populações indígenas amazônicas, em detrimento da pluralidade de situações indígenas e ecológicas existentes no Brasil. Em outras palavras, a esfera fundiária e os problemas de etnodesenvolvimento foram parcialmente reelaborados sob o rótulo de desenvolvimento sustentável, cuja genealogia é outra.512

512 Souza Lima, A.C. & Barroso-Hoffmann, M. (orgs.). “Questões para uma política indigenista: etnodesenvolvimento e políticas públicas. Uma apresentação”. In: ________. Etnodesenvolvimento e políticas públicas. Bases para uma nova política indigenista. Rio de Janeiro: LACED/ Contra Capa Livraria. p.15.

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Consolidou-se assim, por meio desta “oportunidade” que o campo do

desenvolvimento sustentável abriu com a realização da Eco-92 no Brasil, uma rede

composta de membros de ONGs, funcionários de órgãos de governo, pesquisadores e

intelectuais ligados a universidades que contribuíram com propostas conceituais e

passaram a atuar na articulação de políticas para povos indígenas, obviamente contando

com a possibilidade de financiamentos provenientes de agências e organismos

internacionais.

O processo de levantamento de dados sobre as negociações iniciais do PPTAL foi

bastante ilustrativo para que se possa entender a importância que certas pessoas tiveram

na condução das dinâmicas relacionadas ao projeto. A partir da pesquisa etnográfica, do

levantamento dos dados sobre o projeto, foram clareando os elos de uma rede de relações

que consolidou as articulações nacionais e internacionais em torno dele, rede ainda hoje

atuante.

O caminho de pesquisa que percorri para o levantamento de informações sobre as

origens do PPTAL e suas negociações iniciais foi o da identificação de algumas pessoas

que estavam em posições profissionais ou políticas estratégicas naquele momento, no

início dos anos 90, que acompanharam de perto e tomaram decisões no processo de

negociação do projeto. A partir dessas pessoas – elos centrais de uma cadeia de relações –

me foram indicadas outras pessoas de instituições governamentais e não-governamentais.

Não havia informações sobre a história das negociações iniciais do PPTAL e de

sua formulação na secretaria do projeto, nem nos arquivos da Coordenação Geral de

Documentação - CGDOC. Era praticamente inexistente qualquer documento que

guardasse vestígios da memória desse momento de nascimento do projeto dentro da

Funai. Durante algum tempo, dediquei-me a pesquisar e a procurar informações sobre o

PPTAL nos diferentes departamentos, desde os arquivos do CGDOC e da Coordenação

Geral de Patrimônio Indígena e Meio Ambiente - CGPIMA, até a Coordenação Geral de

Projetos Especiais, à qual o projeto inicialmente estava vinculado, mas sem sucesso.

Havia silêncio dos funcionários da Funai, o que revelava uma posição clara de não

envolvimento dos mais antigos em relação ao PPTAL.

No primeiro momento, para me aproximar da equipe do projeto, fui procurar

diretamente Artur Nobre Mendes, que acompanhara desde o início as negociações entre a

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Funai, o Banco Mundial e o governo alemão, representado pela GTZ e pelo KfW.

Mendes havia sido coordenador de Projetos Especiais e mais tarde, por muito tempo, o

coordenador da Secretaria Técnica do PPTAL, de certa forma a memória do projeto. Por

duas vezes eu o entrevistei na Funai, em 2002 e 2003. Na época do primeiro contato, ele

era diretor da Diretoria de Assuntos Fundiários - DAF e estava a dias de assumir sua

presidência; no segundo contato, em 2003, deixara a presidência para voltar à DAF, onde

dizia sentir-se mais confortável, principalmente dadas as diferenças políticas com o PT

(Partido dos Trabalhadores). Mendes é discreto e diplomático, de poucas palavras, uma

figura de reconhecida importância política na Funai.

Tomei conhecimento também que Isa Pacheco atuava como outro elo importante

na relação de pessoas que participaram do momento inicial do PPTAL.513 Isa foi

funcionária da Funai por muitos anos e havia sido diretora da DAF durante a presidência

de Sidney Possuelo na Funai, e a sua sua função foi central para o processo decisório na

negociação do projeto, entre 1991 e 1992. Ela participou de várias reuniões com este fim,

até se aposentar. Quando a entrevistei, em 2003, estava na Secretaria da Amazônia, no

MMA, trabalhando em um programa sob a coordenação de Ana Lange, sua amiga pessoal

e também antiga funcionária da Funai e da SEMAM/PR, órgão ao qual o PPG-7 esteve

vinculado quando da sua formulação, antes da criação do MMA.

Suas relações pessoais com indigenistas e com profissionais da área de meio

ambiente colocavam Isa Pacheco em uma posição central no que dizia respeito à

montagem desta história. Reconheci nela a força que ligava pessoas que se situavam em

posições estratégicas naquele momento, 1991-96, além das instituições envolvidas,

estabelecendo para a minha trajetória de pesquisa o que ela de certa forma traçara para

mim: um mapa de suas relações pessoais. As indicações que me deu de algumas das

pessoas que estavam nas negociações iniciais do PPTAL me levaram a um conjunto de

atores do qual fazia parte Maria Auxiliadora Cruz de Sá Leão, Sidney Possuelo, Maria

Elisa Ladeira e Gilberto Azanha. A partir destas pessoas que Isa me indicou, cheguei ao

Centro de Trabalho Indigenista – CTI. Todos estiveram, ora como consultores, ora como

colegas na Funai, trabalhando juntos no PPTAL e, de certa forma, tinham relações, direta 513 Vim a saber depois que Isa Pacheco faz parte do Conselho Consultivo do CTI. Faz parte da organização, formalmente ou informalmente, em função das relações de amizade antiga com seus outros membros.

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ou indiretamente, com o CTI, onde encontrei a maior parte dos documentos no acervo de

Virgínia Valadão.514

O CTI é uma organização não-governamental “sem fins lucrativos” e foi fundado

em 1979, em São Paulo, por um grupo de antropólogos. Originalmente, pode-se afirmar,

tinha um perfil quase familiar, de amigos e alguns casais em convívio bastante próximo,

sendo a USP e São Paulo seus espaços de convivência. Entre eles estavam os casais

Maria Elisa Ladeira e Gilberto Azanha, Virgínia Valadão e Vincent Carrelli, além de Iara

Ferraz e Dominique Gallois, que entrou depois. Segundo os próprios membros do CTI,

ele teria sido constituído como uma cooperativa de antropólogos e indigenistas.515

Os antropólogos do CTI tinham também boas relações nos meios acadêmicos.

Todos possuíam uma trajetória que passava pela formação essencialmente acadêmica na

Universidade de São Paulo, mas tinham uma participação marcante em organizações da

sociedade civil, como também na Funai. A relação com este órgão iria ser

particularmente distintiva durante a gestão de Sidney Possuelo. Não se pode deixar de

mencionar que, desde o início da instituição, as atividades do CTI com populações

indígenas receberam apoio de organismos e agências alemãs, como a Pão para o Mundo

(Brot für Die Welt), uma organização ligada à Igreja Evangélica.

A principal atividade do CTI ao longo de sua história foi no processo de

regularização fundiária de terras indígenas no Brasil.516 Segundo documentos

institucionais,517 a ONG tem por objetivo “possibilitar aos índios um maior controle sobre

suas terras e valorizações das formas próprias de manejo e aproveitamento não-

predatórios de seus recursos naturais”.518

Entre as várias organizações indigenistas que visitei em Brasília, o CTI é aquela

que tem as instalações mais simples e discretas. São poucos funcionários. Seus membros

têm uma postura bastante politizada e de resistência; são particularmente críticos em

514 Virgínia Valadão, antropóloga, faleceu em 1998 e muitos dos documentos de sua atividade profissional ficaram guardados no CTI. 515 Assim definiu Gilberto Azanha em conversa na sede do CTI, em Brasília, em outubro de 2003. Da mesma forma está posto na Carta aos Amigos da ICCO e PPM, janeiro de 1995. 516 CTI. Centro de Trabalho Indigenista – Informações sobre a entidade, sem data. 517 Foram analisados vários documentos institucionais que visam divulgar a organização, publicados entre 1992 e 2003. 518 Carta aos Amigos da ICCO e PPM, de 11 de janeiro de 1995, p.1.

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relação aos modelos “neoliberais” e empresariais de execução de projetos sociais e às

exigências que são cada vez mais cobradas pelas instituições doadoras internacionais em

termos de prestação de contas e cumprimento de normas. Outras organizações, como o

Instituto Socioambiental - ISA, têm muito mais visibilidade e maior inserção, tanto em

relação às suas publicações, que são referência, como na articulação política de seus

membros.

No caso especifico do PPTAL, observei que alguns antropólogos e antropólogas

do CTI tiveram uma participação continuada e diversificada na malha administrativa na

qual o projeto se institucionalizaria: Virgínia Valadão havia sido consultora do Banco

Mundial, no início das negociações do PPTAL; Maria Elisa Ladeira trabalhara como

consultora na elaboração do projeto e em outros momentos; Gilberto Azanha participou

de reuniões do PPTAL e do PPG-7 como um dos representantes da sociedade civil;

Dominique Gallois coordenou o projeto-piloto de demarcação da Terra indígena Waiãpi

levado a cabo com a cooperação técnica da GTZ no Brasil.

O CTI foi o ponto de partida dos mais antigos rascunhos e documentos sobre as

negociações iniciais do projeto PPTAL. Ali foi possível acompanhar algumas das

mudanças no seu desenho e vislumbrar o grupo de pessoas envolvido na sua viabilização

junto ao governo. Encontrei no CTI muitos dos mais importantes documentos relativos ao

PPTAL, documentos estes que jamais vi na Biblioteca da Funai, na Secretaria Técnica do

PPTAL ou na GTZ, e que faziam parte do acervo de Virginia Valadão. Após seu

falecimento, ficaram intactos, sem tratamento, guardados sem destino certo em caixas de

papelão e em gavetas fechadas da sua antiga mesa. Como ocorre com vários documentos

que contam a história de programas e processos políticos e sociais no Brasil, o acervo era

riquíssimo, guardava não só uma história pessoal, mas também a de outros projetos nos

quais Virginia participara.

Os primeiros desenhos em que figuravam as linhas gerais do PPTAL começaram

a ser elaborados com a disponibilização dos recursos que vieram do Banco Mundial,

instituição que coordenava o PPG-7, para definição de aplicação de verbas e para

contratação de consultores técnicos (as integrantes do CTI), que contavam com a

colaboração de antropólogos do quadro do Banco Mundial.

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A missão de maio de 1992: as redes ambientais do Banco Mundial

Um dos primeiros documentos que fazem referência à existência de um Projeto de

Terras Indígenas, que era o PPTAL, foi a lembrança de uma missão do Banco Mundial

na Funai e na SEMAM, em maio de 1992. Ajuda-Memória é o termo que se atribui a um

relatório-síntese que se faz a partir da reunião ou do evento de um grupo de especialistas

e representantes do Banco Mundial, ou de outros organismos internacionais, em que são

elencados os participantes, os principais pontos discutidos e as resoluções ou decisões

essenciais que foram tomadas, formalizando as bases de um compromisso. Tem o caráter

de uma “ata de reunião”, sendo um documento que comprova os compromissos

assumidos pelos participantes, ainda que seja possível discutir longamente quais as

condições em que são feitas essas memórias, por quem e o quê.

O termo missão é usualmente adotado por organismos internacionais e agências

de cooperação para o desenvolvimento, fazendo parte do léxico do Banco Mundial.

Refere-se à ida de um grupo de especialistas ou decisores de departamentos do Banco,

divididos por critérios de região ou temas específicos, a países que recebem recursos do

Banco para projetos ou programas. É usada também para definir as reuniões promovidas

junto a instituições nacionais que desenvolvem projetos ou programas onde são tomadas

decisões que envolvem os representantes do Banco, e serve para denominar o próprio

grupo de especialistas do Banco Mundial. A finalidade das missões organizadas pelo

Banco é geralmente de negociação de projetos novos ou de acompanhamento de fases de

projetos em andamento.

Realizada entre 12 e 15 de maio de 1992, essa reunião contou com a participação

de funcionários da Funai, como Maria Auxiliadora Cruz de Sá Leão, então coordenadora

de Projetos Especiais,519 Isa Pacheco, na época diretora da DAF, Elias Bigio e Artur N.

Mendes, da área de identificação – DEID/DAF. O último destes assumiria mais tarde a

coordenação de Projetos Especiais e, depois, a coordenação da secretaria técnica do

PPTAL. Da SEMAM vieram Ana Lange, Maria L. D. Freitas e Silbene de Almeida. 519 Posteriormente foi contratada pela GTZ para atuar no projeto Subprograma de Políticas de Recursos Naturais - SPRN, em Brasília, assumindo em 2007 a Diretoria de Assuntos Fundiários, novamente na Funai.

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Como representantes de organizações da sociedade civil participaram Gilberto Azanha

(CTI); Luiz Carlos Pinagé (Fundação Vitória Amazônica - FVA), Eduardo Martins

(Grupo de Trabalho Amazônico - GTA), Pedro Ramos de Souza (Conselho Nacional de

Seringueiros - CNS), além de uma representante da Comunidade Européia, Martine

Delogne (CCE).

Definia-se, nas conclusões daquele documento que o governo brasileiro, por meio

da Funai, se empenharia em elaborar, o detalhamento do projeto em dois meses a partir

daquela reunião. A Funai comprometia-se também, ao longo do processo, a: “Fornecer ao

Banco Mundial todas as informações que se fizerem necessárias a respeito das terras

indígenas objeto de demarcação e os seus procedimentos internos.”

Note-se que já se fazia a ressalva, ainda que em nota de rodapé, da não-inclusão

das terras indígenas situadas nos estados de Mato Grosso e Rondônia como área de

abrangência do projeto, o que se justificava em função de já estarem sendo contempladas

em outros projetos financiados pelo Banco Mundial, o Prodeagro e o Planafloro.520 O

PPTAL seria o primeiro projeto em que o Banco Mundial estaria implicado diretamente

para o trabalho com populações indígenas, e não o resultado de medidas compensatórias,

como foi o caso dos dois projetos citados acima.

Estavam presentes da parte do Banco Mundial Daniel Gross e Virgínia Valadão,

ambos antropólogos, mas somente Gross fazia parte do quadro do Banco Mundial.

Valadão, do CTI, fora contratada temporariamente como consultora do BIRD durante a

fase inicial de negociação para a preparação do PPTAL. Eles atuavam como

“colaboradores”, acompanhando e avaliando os resultados desenvolvidos pela equipe de

elaboração do projeto, junto com grupos da Funai, especialmente da DAF e da SEMAM,

e com representantes de ONGs.521

Daniel Gross já havia trabalhado no Brasil em projetos com populações indígenas

atingidas pela construção da estrada de ferro Carajás. Nessa época, a antropóloga Lux

520 Prodeagro é o Programa de Desenvolvimento Agro-Ambiental do Estado do Mato Grosso; Planafloro é o Plano Agropecuário e Florestal de Rondônia. Ambos foram elaborados como projetos compensatórios ao Programa Polonoroeste, que resultou da construção da BR 364 nos estados de Mato Grosso e Rondônia, com empréstimo do Banco Mundial. Alguns entrevistados mencionaram que a razão da retirada destas terras do PPTAL seria a imagem negativa dos dois projetos que tiveram o envolvimento do Banco. Ver em Banco Mundial/SEMAM/FUNAI. Programa Piloto para a Conservação da Floresta Tropical Brasileira, Projeto das Terras Indígenas, 12-15 de maio de 1992. 521 FUNAI-SEMAM-Banco Mundial: Missão 12 a 15 de maio de 1992.

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Vidal,522 da Universidade de São Paulo, foi indicada para os trabalhos de demarcação de

todo o conjunto de terras relativas às compensações do projeto, com o respaldo da

Associação Brasileira de Antropologia – ABA.523 Lux Vidal, por sua vez, chamou alguns

de seus alunos da USP e outros para colaborarem, sob a sua supervisão, nos trabalhos de

demarcação.524 Entre seus alunos, Maria Elisa Ladeira e Iara Ferraz atuaram como

consultoras no acompanhamento das demarcações das terras indígenas na área de

abrangência do Programa Estrada de Ferro Carajás.525

As relações de trabalho dos membros do CTI com o Banco Mundial vinham dos

anos 80, desde a época em que Valadão e Ladeira já prestavam consultorias para a

Cia.Vale do Rio Doce – CVRD, para o programa de Carajás, em demarcações de terras

indígenas nos estados de Rondônia e Mato Grosso. Ali também esteve presente o Banco

Mundial, o que pode ter sido um dos fatores que favoreceram a indicação de antropólogos

do CTI.

Foi proposta pelo governo a contratação de uma consultoria antropológica para a

elaboração do projeto na Funai, representada pela DAF (DAF/FUNAI). A consultoria

solicitada pelo BIRD para elaboração de um esboço do PPTAL em 1992, para a qual foi

chamada Maria Elisa Ladeira526, antropóloga e amiga do CTI de Valadão, Ladeira foi

contratada em junho de 1992 pelo BIRD como consultora que faria parte da equipe de

preparação do PPTAL na FUNAI.527

522 Lux Vidal é doutora em antropologia social pela Universidade de São Paulo, onde leciona desde 1971 e desenvolve pesquisas sobre os índios Xikrin. Segundo Maria Elisa Ladeira, que fez parte da equipe, sob coordenação de Lux Vidal nos trabalhos de terras indígenas do Programa Grande Carajás - PGC, em entrevista concedida em 10/12/2003, Lux Vidal teria sido indicada por Daniel Gross, mas diante da extensão e complexidade das terras, não aceitou assumir sozinha, formando um grupo de pesquisadores, tendo para isso o respaldo da ABA. 523 Entre 1980 e 1982, a presidência da ABA foi exercida por Eunice Durham, Antonio Augusto Arantes e Peter Fry. Eunice Durham permaneceu vinculada à ABA como presidente da Comissão Especial de Assuntos Indígenas entre 1982 e 1984. 524 Os antropólogos que foram consultores da Cia. Vale do Rio Doce para identificação das terras indígenas nas áreas de impacto da estrada de ferro Carajás foram Maria Elisa Ladeira, Iara Ferraz, Mércio Gomes e Antonio Arantes. 525 Antropólogos e filósofos da Universidade de São Paulo formavam um grupo representativo na articulação do debate sobre terras indígenas nos anos 80, juntamente com o Departamento de Antropologia Social do Museu Nacional, UFRJ, com Lux Vidal e João Pacheco de Oliveira. 526 Maria Elisa Ladeira é antropóloga, com graduação e mestrado na USP e doutorado em Lingüística. É esposa de Gilberto Azanha e irmã de Maria Inês Ladeira, ambos do CTI. 527 Em documento de setembro de 1992, elaborado pelo CTI (presumivelmente, porque não há referência de origem do documento) para a renovação do contrato de Maria Elisa, pede-se a extensão da

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Os antropólogos do CTI participaram de redes integradas que atuaram ao longo

das negociações do PPG-7, juntamente com o Instituto de Estudos Amazônicos - IEA e o

Grupo de Trabalho Amazônico - GTA.528 O IEA foi criado como entidade de apoio ao

Conselho Nacional dos Seringueiros, em 1986, no Acre; em 1991 trabalhou com esta

instituição na implementação do Programa Nacional de Reservas Extrativistas. Em

agosto de 1991, foi transferido do Acre para Brasília, período em que outras ONGs

também estabeleceram sucursais na capital federal. Foi um tempo de efervescência

política na área ambiental, com a criação de um órgão federal de implementação de

políticas ambientais, a SEMAM, já nas proximidades da ECO-92, que abria

oportunidades para a atuação da sociedade civil nas políticas democráticas em

articulação.

O IEA teve atuação importante nas negociações do PPG-7 e contribuiu para a

articulação do Grupo de Trabalho Amazônico. Em documento do projeto, afirma-se que:529

O IEA vinha acompanhando as negociações sobre o Programa Piloto desde a primeira reunião com o governo brasileiro, em 4 de março de 1991, quando foi discutido o primeiro documento governamental sobre o assunto. [...] A proposta apresentada pelo governo brasileiro, com aval e incentivo dos países doadores, era a de realizar um trabalho conjunto governo-ONGs para a implementação do Programa.

O trabalho de apoio e assessoria ao CNS desde 1986 e a articulação estabelecida

com a implantação do Programa Nacional de Reservas Extrativistas deram aos seus

representantes o conhecimento das pessoas e das redes locais da Amazônia, o que

facilitou a articulação de ONGs da região. O GTA foi criado em 1 de junho de 1991 por

um grupo de 11 entidades.530

O Grupo de Trabalho para o Projeto G-7 foi composto, em Brasília, pelo Instituto de Estudos Amazônicos (IEA), Centro de Trabalho Indigenista (CTI), Fundação Mata Virgem (FMV), Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Central

consultoria para a fase final de revisão do projeto. A versão do projeto foi apresentada ao BIRD em 4 de julho de 1992. 528 Arnt, R.”Fundo para a Amazônia divide ambientalistas”, Folha de São Paulo, 08/07/1991, p.5. 529 IEA. Projeto Políticas Públicas para a Amazônia, Relatório Anual. Doação 910-0914 Fundação Ford, Brasília, janeiro de 1993, p.11. 530 IEA. Projeto Políticas Públicas para a Amazônia, opus cit., p.10.

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Única de Trabalhadores (CUT), Movimento pela Sobrevivência da Transamazônica (MPST), Fundação Vitória Amazônica (FVA), Projeto Estudos Sobre Terras Indígenas no Brasil (PETI), Comissão pela Criação do Parque Yanomâmi (CCPY), Instituto de Pré-História, Antropologia e Ecologia (IPHAE), Projeto Saúde e Alegria - CEAPS e Funatura.531

Como publicado no primeiro Boletim Informativo do GTA, de junho de 1992, a

rede GTA participaria como representação da sociedade civil no PPG-7. A organização

desta rede se deu paralelamente à organização da Associação Brasileira de ONGs -

ABONG, cuja posição foi contrária ao PPG-7. No dia 11/06/1991, o IEA enviou um fax

para o CTI comunicando que:

Mary Allegretti esteve presente na qualidade de representante do IEA em reunião ocorrida em Luxemburgo no dia 08/06/1991 em Seminário sobre Responsabilidade da CEE em face da destruição da Amazônia brasileira. [...] A sociedade civil brasileira deve insistir perante a Secretaria Nacional de Meio Ambiente (SEMAM) para que se realize reunião com as ONGs objetivando analisar a versão do PPG-7.532

Ao retornar da viagem ao exterior, Mary Allegretti assumiu a atribuição de

mobilizar organizações não-governamentais para que fossem acompanhadar as

discussões e as negociações dos projetos do PPG-7. A proposta de inclusão das ONGs no

programa do PPG-7 tinha uma forte relação com a atuação dos doadores para a

implementação dos projetos, como vimos em documento do CTI:

Após duas missões do Banco e dos países doadores, realizadas em final de 91 e início de 92, e visando analisar os projetos do governo, os doadores chegaram à conclusão que apenas as propostas oriundas da sociedade civil e a proposta da FUNAI relativa à identificação e à demarcação de terras indígenas estavam suficientemente fundamentadas para receberem os recursos para a primeira fase do PPA.533

531 GTA. Boletim Informativo nº 1, Brasília, junho de 1992. 532 Fac-símile do IEA para CTI, de 11/06/1991, obtido no CTI. 533 CTI. Projeto de Demarcação – 92/93. Convênio FUNAI-CTI, mimeo, sem data, p.7 (arquivo CTI).

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A relação entre o Banco Mundial e as ONGs se deu por meio da contratação de

serviços de consultoria para elaboração de projetos. No caso do PPTAL, o BIRD

contratou consultorias de antropólogos ligados a ONGs que, em conjunto com um grupo

da Funai e da SEMAM, começaram a formular os esboços do projeto, em 1992, para

apresentação dentro dos prazos dados pelos organismos internacionais: 534

Preocupados com a consistência e conceituação dos projetos de terras indígenas da FUNAI em bases mais adequadas para se atingir uma proteção e controle efetivo das áreas indígenas da região amazônica, a missão do Banco Mundial solicitou mais uma vez a participação de antropólogos do CTI enquanto consultores – agora para coordenarem a elaboração propriamente dita do projeto, junto com a FUNAI.

De acordo com a análise de documentos do PPTAL, alguns dos membros do CTI

tiveram participação intensa na fase inicial de negociação e elaboração do PPTAL,

principalmente entre 1991 e 1994, seja na forma de consultorias temporárias, seja

atuando dentro da Funai, como foi o caso de Gilberto Azanha que assumiu cargo

comissionado durante a gestão de Sidney Possuelo no Departamento de Patrimônio

Indígena e Meio Ambiente - DEPIMA. Atuaram particularmente na elaboração e no

planejamento de projetos e na execução e no acompanhamento de demarcações pela

Funai. Primeiro, houve a elaboração da versão inicial do projeto, em 1992, depois, a

demarcação-piloto realizada juntamente com a GTZ na Terra Indígena Waiãpi, em 1994.

Também no PPG-7, alguns membros do CTI participaram como “representantes

da sociedade civil” em reuniões com doadores, particularmente as organizadas pelo

Banco Mundial, como consultores diretos do BIRD ou mesmo consultores para prestação

de serviços esporádicos para a Funai.

A entrada da cooperação alemã: a missão de agosto 1992

534 Idem.

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348

Em agosto de 1992, uma nova missão do Banco Mundial veio ao Brasil para

avaliar o andamento da elaboração do PPTAL. O documento de “ajuda-memória” desta

missão apresentou um esboço do projeto PPTAL, solicitado para ser apresentado após a

revisão do detalhamento feito em julho de 1992.

Fizeram parte desta segunda reunião de missão do Banco Mundial: representando

a Funai: Maria Auxiliadora Cruz de Sá Leão, Artur Nobre Mendes, Mara Vanessa Dutra,

Elias Bigio, Marina Kahn, Isa Pacheco, Maria Elisa Ladeira; pela SEMAM: Ana Lange e

Silbene de Almeida; pelo BIRD: Daniel Gross e Virgínia Valadão, consultora.535

Mantinha-se basicamente o mesmo grupo da reunião anterior de maio, aparecendo

um novo participante, Otto Freiherr Von Grotthuss, representante do banco alemão KfW,

o principal doador. Não tive acesso a qualquer documento que mencionasse as condições

de entrada do banco alemão na composição dos doadores antes desta missão, nem se a

esta altura já se sabia a respeito das participações financeiras de cada doador. No entanto,

uma funcionária da atual Secretaria de Assuntos Internacionais - SEAIN, do Ministério

do Planejamento, Orçamento e Gestão - MPOG, nos esclareceu como se processam ainda

hoje as negociações financeira e técnica de detalhamento das atividades do projeto:

Lá em 1992, quando foi concebido o projeto, ele passou pela COFIEX 536 e foi aprovado o montante de 250 milhões de dólares. O MMA, que é o responsável pela coordenação do grupo, poderia contratar projetos até este valor aprovado pela COFIEX. O valor é aprovado antes dos projetos. A COFIEX aprova a preparação destes projetos. Ela te dá o sinal verde para a partir de então, junto com os doadores, preparar os projetos, elaborar o projeto executivo, o projetão, porque, quando vêm as missões (do Banco Mundial), serão preparados os projetos com mais detalhes.

535 O grupo de pessoas que trabalhava na época na Funai assumiu posteriormente responsabilidades profissionais em diferentes instituições, alguns deles na própria GTZ. Maria Auxiliadora Leão foi para o projeto Subprograma de Políticas de Recursos Naturais - SPRN, trabalhando na GTZ; Mara Vanessa trabalha atualmente em consultorias particulares para cursos de capacitação e oficinas oferecidas, dentre outras, pela GTZ; Marina Khan foi para o Instituto Socioambiental; Ana Lange estava, na época em que fiz o levantamento de dados, no Ministério de Meio Ambiente, junto com Isa Pacheco. 536 A Comissão de Financiamentos Externos - COFIEX é um colegiado composto por membros do Ministério do Planejamento (Secretaria de Assuntos Internacionais, Secretaria de Planejamento e Investimentos Estratégicos, Secretaria de Orçamento Federal e Assessoria Econômica), do Ministério de Relações Exteriores e do Ministério da Fazenda (Tesouro Nacional, Secretaria de Política Econômica e Secretaria de Assuntos Internacionais).

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349

A entrada dos alemães na reunião marcou uma mudança significativa no processo

de negociação, sendo imposta desde o início a aprovação das autoridades competentes do

governo da Alemanha como condição para validar as decisões tomadas:

A missão do KfW chama a atenção para o fato de que tudo o que foi acordado está sob ressalva da posterior aprovação pelas autoridades competentes do Governo da República Federal da Alemanha, conforme normas da cooperação financeira oficial alemã.537

As mudanças no projeto

Na reunião de agosto, algumas mudanças foram observadas quanto às ações

previstas: no lugar de identificação e demarcação, anteriormente apresentadas em dois

itens separados, propôs-se a regularização fundiária das terras indígenas. A partir de

agosto de 1992, nota-se também que o título do projeto passou a incluir “populações”

juntamente com terras indígenas, quando em maio era mencionado exclusivamente

“terras” indígenas, ficando Projeto Integrado de Proteção das Terras e Populações

Indígenas da Amazônia. Esta mudança parece refletir uma preocupação de alguns

membros do grupo em não restringir os objetivos somente a aspectos físicos, como um

projeto de “zoneamento”, mas enfocar a questão da territorialidade como um dos aspectos

culturais e sociais para as populações indígenas. No texto, consta: “o objetivo geral do

projeto é proteger as terras e as populações indígenas da Amazônia contra intervenções

que ameacem sua integridade física e cultural”.

A proposta de capacitação indigenista revelava não somente um dos eixos centrais

de operacionalidade da cooperação técnica, associado à transferência de know-how e aos

“treinamentos” (oficinas, cursos seminários), mas particularmente que aquele grupo não

estava de acordo com a visão e a prática do indigenismo que vinha sendo adotada pela

Funai. A idéia de fazer um “curso” indicava uma avaliação de ineficiência das práticas

deste órgão e falta de capacidade de seus funcionários. Neste sentido, treinar significava

adotar novas práticas, o que justificava uma forma de intervenção direcionada à

537 Aide Memoire: Projeto Integrado de Proteção das Terras e Populações Indígenas da Amazônia, 3-14 de agosto de 1992.

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“formação dos funcionários”. A definição do termo “capacitação” suaviza uma

intencionalidade política neste “treinamento”, uma maneira de transmitir valores e visões

distintas do indigenismo, consideradas “mais modernas”, “mais atualizadas” e mais

eficientes.

A ênfase neste ponto já havia sido colocada na missão de maio de 1992538 como

uma das seis principais linhas de ação para a realização dos objetivos do PPTAL,

reaparecendo no documento de memória da missão. Previa-se, pois, a capacitação de

funcionários da Funai: “apoiar cursos de capacitação de indigenistas da Funai e outros

que trabalham junto a populações indígenas”.539

A Funai contaria com consultores para a execução dos cursos de capacitação, cuja

contratação seria viabilizada por meio de um organismo internacional, sem burocracia, e

com um perfil definido por ela:540

A FUNAI, junto com a coordenação do Programa Piloto, estudará a possibilidade de contratação de pessoal adicional e essencial à coordenação e à execução do projeto indígena, por meio de um organismo internacional de cooperação com representação no Brasil. [...] Os cursos de capacitação seriam planejados e coordenados pela FUNAI e executados pela FUNAI com a colaboração de consultores especializados contratados. [...] A FUNAI definirá o perfil dos consultores necessários à preparação e à execução dos cursos de capacitação.

A atuação pedagógica e “reformadora” das ações de cooperação técnica é clara

neste ponto, central para entendermos as justificativas discursivas que a própria lógica da

cooperação reproduz.

Por fim, entre as ações propostas, foram incluídas a coordenação e a monitoria do

projeto. Esta meta específica reflete o desempenho direto das agências internacionais que

têm neste ponto a preocupação com o controle e o exercício de poder sobre planejamento,

implementação e gerenciamento de projetos – o seu forte – como prestadoras de serviços

de cooperação técnica. Na verdade, a intenção era de que o PPTAL servisse como

laboratório para a reestruturação da Funai, o que nem sempre ficava claro: “A Funai se

538 Documento FUNAI-SEMAM-Banco Mundial: Missão 12 a 15 de maio de 1992. 539 Aide Memoire: ibidem., p.2. 540 Idem, p.2-4.

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compromete a apresentar aos doadores detalhamento, organograma, funcionamento e

custos relativos à coordenação e à monitoria do projeto”.541

Em relação aos projetos de saúde e meio ambiente, foi definido que seriam feitos

projetos-piloto em áreas a serem definidas. A proposta dos “pilotos” baseava-se na idéia

de que seriam uma forma de restringir e dar maior ênfase às ações implementadas, para o

que serviriam de exemplo para serem replicados em outras áreas. Determinou-se o prazo

de 60 dias para detalhamento destes dois pilotos, com o compromisso de se entrar em

entendimento com o Ministério da Saúde e com a SEMAM.542

Pelo que pode ser visto nos textos das missões do Banco Mundial, já estavam

traçadas as diretrizes do projeto. Aquilo que fora colocado nas ajudas-memória das

reuniões, particularmente na de agosto de 1992, já eram as linhas fundamentais do

projeto, que posteriormente figurariam na versão desenvolvida a partir da consultoria de

Maria Elisa Ladeira para a Funai, em dezembro de 1992.

Um aspecto que pode ser ressaltado aqui é o fato de que a participação de

representantes da sociedade civil nessas reuniões alteraria pouca coisa. As decisões eram

prévias e apresentadas de forma concisa e encadeada, o que dificultava o senso crítico e a

capacidade de contestação. Entre os representantes dos grupos, por sua vez, relações de

afinidade colaboraram para consolidar na reunião a premissa de que havia consenso para

aprovação da versão final de um projeto de cooperação técnica.

Uma primeira versão completa saiu em dezembro de 1992; nela já estavam

estabelecidas algumas das linhas que caracterizariam o PPTAL no documento oficial do

Banco Mundial,543 mais conhecido entre os técnicos do projeto como Blue Cover. Ele foi

editado, no entanto, somente em 1994, como documento oficial do governo brasileiro,

oficializado pelo Banco Mundial. De acordo com Mendes, os projetos-piloto eram

exigências do Banco Mundial, sendo proposta do governo brasileiro priorizar a

demarcação, o que acabou prevalecendo posteriormente. A idéia era centrar forças na

demarcação, talvez por perceberem a pouca visibilidade de projetos de capacitação em

541 Aide Memoire, ibidem, p.4. 542 Tal proposta fundamentava-se nos decretos nº. 23/91 e 24/91, que definiam que a assistência à saúde indígena seria competência do MS e que a proteção ao meio ambiente em terras indígenas seria competência da SEMAM. 543 Governo do Brasil/BIRD/CEE. Projeto Integrado de Proteção às Terras e Populações Indígenas da Amazônia Legal, opus cit.

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uma estrutura organizacional que proporcionava a obstinação da defesa do monopólio das

ações indigenistas centralizadas na Funai.

Iniciado o projeto, depois de praticamente dois anos de tramitação burocrática no

Brasil e também na Alemanha, finalmente em 1996, o PPTAL iniciou sua fase de

execução pela FUNAI.

Havia um volume imenso de recursos, e grande interesse para que o projeto se

realizasse, que era compartilhado por meio de uma rede de pessoas em diferentes

instituições governamentais, de grupos dentro da FUNAI e da SEMAM, bem como por

muitas organizações não-governamentais. Foi esta base política e social que consolidou a

concretização do projeto e o reconhecimento posteriormente, inclusive pelos doadores, de

que o projeto foi bem sucedido no que se propôs quanto à demarcação de terras

indígenas.

Como operacionalizar as ações do projeto? Esta pergunta se desdobra em várias

outras, que caracterizam a própria idéia de cooperação técnica: como fazer com que os

recursos fossem internalizados nas instituições? Como contratar uma equipe permanente

para trabalhar no projeto, além de equipes temporárias de consultores? Como comprar

equipamentos? Como organizar cursos?

No caso do PPTAL, foram duas as organizações de cooperação técnica que

estiveram presentes na operacionalização de recursos internacionais: a GTZ, a agência de

cooperação técnica alemã e o PNUD, o Programa das Nações Unidas para o

Desenvolvimento.

A cooperação técnica do PNUD

Iniciado o projeto, depois de praticamente dois anos de tramitação burocrática no

Brasil e também na Alemanha, finalmente em 1996 o PPTAL iniciou sua fase de

execução pela Funai.

Havia um volume imenso de recursos, e grande interesse para que o projeto se

realizasse, o que era compartilhado por uma rede de pessoas de diferentes instituições

governamentais, de grupos dentro da Funai e da SEMAM e por muitas organizações não-

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governamentais. Foi esta base política e social que consolidou a concretização do projeto

e o reconhecimento posterior, inclusive dos doadores, de que o projeto foi bem-sucedido

no que se propôs quanto à demarcação de terras indígenas.

Como operacionalizar as ações do projeto? Esta pergunta se desdobra em várias

outras, que caracterizam a própria idéia de cooperação técnica: como fazer para que os

recursos fossem absorvidos, como dizem, internalizados pelas instituições; como

contratar uma equipe permanente para trabalhar no projeto, além de equipes temporárias

de consultores?; como comprar equipamentos?; como organizar cursos?

No caso do PPTAL, foram duas as organizações de cooperação técnica que

estiveram presentes na operacionalização de recursos internacionais: a GTZ e o PNUD.

O caso de um projeto de “cooperação internacional” era uma situação inédita para

a Funai e havia muitas incertezas quanto aos seus significados e às implicações de se

tomarem recursos externos e de contratação por meio de agências multilaterais, como

PNUD e UNESCO, já que o processo de regularização fundiária era uma atribuição do

Estado. Como afirma Mendes em entrevista:

Quando a gente estava começando o projeto, não tinha muita idéia do que era cooperação técnica internacional, nem mesmo essa cooperação técnica aqui dentro, vamos dizer, tipo PNUD, UNESCO, quanto mais vindo de fora, de outro país. Então, o PPTAL inaugurou este processo para a cooperação técnica dentro da Funai.544

Em setembro de 1996, a Funai formalizou, por meio de ofício, uma proposta ao

PNUD para contratação de pessoal com o fim de “assistência preparatória”. Definem por

“assistência preparatória” uma possível fase que se imaginava de implementação inicial

do projeto na Funai.

A proposta passou pela instância de gerenciamento dos projetos do PPG-7, o

Ministério do Meio Ambiente, que aprovou a solicitação. Diz o documento que a referida

proposta tinha por objetivo: “resolver os problemas atuais através da capacitação de RH e

544 Artur Nobre Mendes, ex-coordenador da Secretaria Técnica da Funai, em entrevista no dia 3 de julho de 2002.

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de prover apoio na identificação, planejamento, implementação e avaliação de

experiências inovadoras no processo de regulação fundiária”.545

Em novembro de 1996, foi assinado o projeto para uma primeira fase preparatória,

de 1996 a 1998, sendo posteriormente renovado até 2000 e, mais uma vez, até 2004, o

que praticamente caracteriza uma década desta mesma situação de contratos temporários

para funções permanentes na administração pública.

O argumento de extensão do projeto se dava em função da constante alteração

proveniente do aumento do número de terras a serem regularizadas, como também da

justificativa de que “a parceria com o PNUD tem demonstrado resultados expressivos ao

abrir um espaço institucional importante que tem permitido avançar na participação

indígena e na colaboração de peritos externos”, como é mencionado em documento do

projeto PPTAL.546

O PNUD canalizou, para a execução dessas atividades, recursos tanto do RFT

como do KfW.547 Em documento de 2003, nota-se que a execução via PNUD ocorre em

praticamente todos os componentes do projeto: identificação, acompanhamento indígena,

planos de vigilância e fiscalização, estudos e capacitação, inclusive levantamentos

etnoecológicos. A única atividade que não exerceu foi a de demarcação.548

Cumpria à Funai justificar o uso de recursos externos, já que o processo de

regularização fundiária era uma atribuição do Estado. A razão para tal solicitação era a de

“haver dificuldades devido à falta de capacidade e experiência da Funai de executar um

projeto deste porte”.549

O mecanismo de contratação de pessoal temporário na administração pública, por

meio de projetos com organismos internacionais, como PNUD e UNESCO, não foi

exclusivo dos projetos do PPG-7, como o PPTAL, mas representou um processo que se

instituiu de maneira geral para suprir uma demanda na administração pública por pessoal;

isto porque não houve contratações de pessoal, muito menos concursos públicos nos

545 MMA. Ofício 605/MMA/SCA/PPG7, de 19/09/96. 546 FUNAI. Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal – Revisão Substantiva Q. junho de 2003, p.5. 547 Idem, PRODOC, Proposta de Cooperação Técnica com PNUD, maio de 1998; a primeira fase, orçada em praticamente US$ 2 milhões e a segunda em US$ 7,6 milhões. 548 FUNAI, idem, Revisão Substantiva Q.. 549 Ofício 605/MMA/SCA/PPG7, de 19/09/96.

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quadros do governo de Fernando Henrique Cardoso, em que vigia uma política de

redução do Estado. Particularmente em relação à regularização fundiária, desde 1993, o

governo tomara providências legais para a formalização da permissão de contratação de

pessoal por tempo determinado.

Em dezembro de 1993, o presidente Itamar Franco sancionou a Lei 8.745 que

instituiu a contratação de pessoal por tempo determinado para atender a que se

denominou de necessidade temporária de excepcional interesse público, que seriam

situações de assistência à calamidade pública (Inciso I, Art.2), combate a surtos

endêmicos (Inciso II, Art.2), admissão de professor e pesquisador substituto, visitante e

estrangeiro (Inciso IV e V, Art.2), e algumas atividades específicas. Entre estas,

destacavam-se a inclusão daquelas relacionadas à identificação e à demarcação

desenvolvidas pela Funai (alínea b do inciso VI, Art.2º) e das técnicas especializadas, no

âmbito de projetos de cooperação com prazo determinado, implementados mediante

acordos internacionais, desde que houvesse em seu desempenho subordinação do

contratado ao órgão ou à entidade pública (alínea h do inciso VI, Art.2º).550

A partir de então, tornou-se possível, na esfera da administração pública, a

contratação de pessoal por meio de consultorias tanto para a contratação de serviços para

elaboração inicial de projeto, como para identificação de terras indígenas. Para isso, parte

do orçamento do próprio governo seria passado para as agências multilaterais, como o

PNUD, para o pagamento dos salários dos funcionários temporários.

Com a Lei 8.745/93 ficou definido que as contratações seriam feitas por meio de

projetos por processo seletivo simplificado, com base em critérios de capacidade técnica

ou científica do profissional mediante análise de currículo, prescindindo de concurso

público. Como praticamente não houve concurso público para contratação de pessoal por

um longo período, que se estendeu pelos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso,

ficou instituído assim um funcionário-pnud no funcionalismo público que, apesar de

definido como temporário, com contratos trimestrais ou semestrais, ficou na

administração pública federal até por dez anos.

550 Magalhães, E. (org.). Legislação Indigenista Brasileira e Normas Correlatas. 2.ed. Brasília: FUNAI/CGDOC, 2003. p.143-145.

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O cargo de consultor PNUD e UNESCO tinha status diante dos funcionários

públicos em geral, sendo a indicação para a sua ocupação determinada pelas relações de

conhecimento. Recebiam salários mais elevados para desempenhar funções idênticas ou

equivalentes às dos funcionários públicos, o que contribuiu para estabelecer uma

hierarquia entre funcionários públicos e “consultores-pnud”.551 Os salários mais elevados

compensavam outras garantias trabalhistas que este tipo de contrato não previa, como

férias, 13º salário, fundo de garantia, entre outros, configurando um cenário de incerteza e

insegurança entre os trabalhadores, o que era recompensado por um reconhecimento

social pelas boas relações de conhecimento em Brasília. O cargo dependia de uma

indicação, e permanecer era decorrente da competência em se manter nele, apesar de

mudanças políticas que eventualmente ocorressem na administração pública.

No que se referia ao PPTAL, o documento da missão vinculava assim a obrigação

da Funai em preparar os “termos de referência” para contratação de consultores nas mais

diferentes etapas e ações do projeto, como:

consultoria especializada que estudará as operações fundiárias da FUNAI e fará recomendações detalhadas sobre os equipamentos que o órgão deverá adquirir, bem como sobre o treinamento de pessoal necessário para a utilização de imagens de satélite, a digitalização de dados cartográficos sob a base de um sistema de Informações Geográficas.

Argumentos sobre a burocracia e a lentidão dos processos de Estado justificariam

a contratação de pessoal através de projetos de cooperação internacional, entendidos

como alternativas à “ineficácia” do Estado, como revela uma funcionária da ABC:

a função do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) seria a de um agente facilitador [voz baixa]. Ele realiza, de forma mais simples e com maior agilidade, o que o governo deveria fazer, sem burocracia. As instituições brasileiras não têm agilidade para a execução de projetos, não têm condições de

551 Não tenho valores para uma comparação que tornem mais evidentes tais afirmações, mas em 2002, quando estive na SETEC-PPTAL entrevistando alguns funcionários, soube que a relação de salários era, para o consultor PNUD, de praticamente o dobro do que ganhava o funcionário da Funai.

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recursos humanos, e o PNUD entra para dar condição para agilizar o andamento do projeto.552

A entrada da GTZ: seminários

Os primeiros sinais de participação da GTZ no PPTAL apareceram a partir de

janeiro de 1993, como resultado de demandas da própria DAF/FUNAI para a realização

do primeiro seminário de planejamento do projeto. Diz o ofício 014/DAF/FUNAI de

Artur Mendes endereçado à GTZ em 20 de janeiro de 1993:

Estamos encaminhando à GTZ, conforme acertado em reunião do dia 14 passado, uma proposta para realização de Seminário de Planejamento para complementar o componente ambiental do Projeto Integrado de Proteção às Terras e Populações Indígenas da Amazônia Legal [...] Certos de que o apoio da GTZ tornará possível a realização do evento proposto, aguardamos resposta de V.Sª.

A solicitação se dá de forma direta, como se fosse uma prática usual na

instituição, mas a referência a uma reunião anterior nos leva a crer que GTZ e Funai

estabeleceram verbalmente os procedimentos a serem adotados quanto à solicitação à

GTZ de recursos para o seminário. Foi apresentada uma proposta com custo de US$ 24 mil.553

Imediatamente depois desta solicitação, em fevereiro de 1993, Maria Auxiliadora

Cruz de Sá Leão, como coordenadora da Coordenação Geral de Projetos Especiais -

CGPE, envia um ofício à ABC solicitando recursos à GTZ para a realização de

seminários da metodologia ZOPP, visando à elaboração dos projetos ambiental e de

saúde indígena que até então faziam parte do PPTAL. A elaboração do seminário e mais

o aprendizado do ZOPP aparecem como pré-condição para que o projeto ambiental seja

definido (Ofício FUNAI/CGPE/003/93, de 09/02/93 e Ofício CGPE/005/93 de 17/02/93).

Este projeto teria sido orçado em US$ 8,7 mil.

552 Melissa de Oliveira, funcionária da ABC em situação de contrato PNUD aponta estas questões. em entrevista em 16/07/2002. 553 Conforme depoimentos de funcionários da ABC que participavam de reuniões de projetos do PPG-7, inclusive do PPTAL, é muito comum nos acordos de cooperação técnica haver concordância verbal quanto a procedimentos a serem adotados, sem a concretização formal em documentos escritos.

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Interessante ressaltar que até então o canal de comunicação com a ABC, e

eventualmente com a GTZ, se dava por intermédio da DAF. Este documento de fevereiro

de 1993 já nos revela a existência de uma nova coordenação, a CGPE. Formalmente, a

CGPE foi instituída por meio da Portaria 542, de 21/12/1993, como órgão de assistência

direta e imediata ao Presidente da República. Na prática, no entanto, vimos que em

fevereiro de 1993 já se assinavam documentos com esta nomenclatura. De acordo com o

depoimento de um técnico do PPTAL,554 a CGPE tinha a responsabilidade de

acompanhamento de projetos em terras indígenas que resultavam de convênios entre

Funai e empresas do setor privado, bem como de bancos multilaterais. Suas atribuições,

no entanto, são vagas:

À Coordenação Geral de Projetos Especiais compete coordenar e controlar a execução de projetos de caráter extraordinário e circunstancial, em áreas indígenas específicas, que passam à responsabilidade da Administração Central.555

Os recursos repassados por empresas ou bancos para administrações regionais ou

departamentos da Funai, alguns bastante altos, tornaram-se um “fundo especial” que a

Presidência dispõe diante de uma situação orçamentária constantemente precária. Como

argumenta uma antropóloga que atuara em um desses convênios com a Funai: “A

Coordenação de Projetos Especiais é um estranho apêndice, é uma caixa em que o

Presidente mexe”.

Em menos de um ano no cargo de coordenadora geral de projetos especiais, Maria

Auxiliadora Leão foi substituída por Artur Nobre Mendes, que vinha da DAF. Em

novembro de 1993, em Ofício 072/93, Artur assinou com o duplo vínculo de coordenador

geral de projetos especiais e secretário técnico do PPTAL. Este foi o primeiro documento

que localizei que aponta para a existência formal de um projeto com cargos específicos

para a sua execução pelo órgão de governo. A CGPE viria a ser a coordenação

554 Slowacki de Assis, atualmente diretor de Administração da Funai, era na época gerente técnico de projetos do PPTAL. Segundo ele, esta função não existe formalmente na estrutura do PPTAL, mas esta teria sido a sua. 555 Portaria 542/93. In: Magalhães, E.D., opus cit., p.116.

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responsável por gerenciar o PPTAL, até que fosse criada a sua secretaria técnica.556 Por

um longo período, na trajetória inicial do projeto, as relações entre DAF e CGPE foram

ainda muito constantes. Era uma fórmula eficiente, uma forma rápida e dinâmica de se

conhecerem os pontos críticos e as qualidades de um grupo da administração pública, um

aprendizado sobre o grupo, os problemas e a possibilidade de se proporem saídas.

A entrada da GTZ nesse momento de negociação não apresenta claramente a

correlação direta com mecanismos de controle e gestão de recursos do KfW, como

veremos mais à frente, ao se confirmar ser esta uma de suas atividades nos projetos do

PPG-7 – condição esta da cooperação financeira – o que marcaria definitivamente as

características do projeto. O texto do documento delibera taxativamente no item 17 da

página 5 como uma das “Providências”: “A FUNAI fará contatos com a GTZ (órgão de

cooperação técnica do governo alemão) para estudar a viabilidade de cooperação técnica

em áreas específicas do projeto”.557 Parecia, no entanto, ser este mais um campo aberto

para a atuação conjunta de organismos do governo alemão, mas não se poderia afirmar

haver interesse em estabelecer sua função de reguladora dos recursos.

A participação dos representantes do banco KfW na reunião de agosto de 1992

estabeleceu suas condições de apoio, condicionando as determinações do Banco Mundial

à análise e à aprovação das “autoridades do governo da República Federativa da

Alemanha”, conforme as normas de cooperação financeira. Apesar de o Banco Mundial

ser a instituição de coordenação do PPG-7 e estabelecer para cada um dos projetos um

task manager, no caso do PPTAL, Judith Lisansky, na verdade as decisões estariam

submetidas ao no objections do BIRD e do governo alemão.

556 Até o momento, não tenho documentos que claramente estabeleçam a data de criação da SETEC-PPTAL. No entanto, em setembro de 1995, o Ofício da Funai para a ABC (Ofício 070/CIRC/CGPE/95), de 05/09/95, foi emitido pela Coordenação Geral de Projetos Especiais. Em novembro de 1993, no entanto, registramos que Artur Nobre Mendes acumula duas funções de coordenador geral de projetos especiais e de secretário técnico do PPTAL, vindo da Coordenação de Identificação e assumindo eventualmente o cargo de diretor substituto da DAF (janeiro de 1993). Registramos sua rápida ascensão política na administração da Funai nesse período imediatamente posterior à ECO-92. 557 Voltaremos a este ponto por ocasião da análise do projeto em implementação, quando veremos que a relação formalizada de gestão financeira dos recursos alemães do KfW pela GTZ vai se estabelecer posteriormente, em 1995, quando da assinatura do acordo de cooperação financeira, aí sim como condição imposta pelo banco de desenvolvimento para participar do projeto.

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A demarcação piloto

Após a solicitação da Funai para o apoio em seminários, em junho de 1993

notamos outra solicitação feita à GTZ por intermédio da ABC. Neste caso, trata-se de um

projeto de demarcação “piloto” que seria realizado na terra indígena Waiãpi, que

anteciparia experiências do subprojeto de identificação e demarcação das terras

indígenas.

Como disse acima, a GTZ entrou nas atividades da Funai como organizadora de

seminários para planejamento e elaboração de projetos, nos quais se aplicava o tão

conhecido método ZOPP. Sua participação, no entanto, estaria apenas começando e não

se restringiria apenas à organização de seminários. Estes eventos marcariam uma fase

inicial, a de reconhecimento de um campo e de seus significados, permitindo em uma

etapa posterior a execução efetivamente do projeto de demarcação de terras indígenas na

Amazônia. Para tanto, contaram com a experiência prática de campo de uma instituição

não-governamental, o que garantiria uma aproximação desvinculada de estruturas

pesadas e burocráticas do Estado. Esta demarcação teria um caráter “experimental”,

caracterizando uma demarcação-piloto, a ser feita na Terra Indígena Waiãpi, no Amapá,

onde o CTI tinha experiência desde os anos 70.

Muitos projetos em terras indígenas, que resultaram de convênios entre Funai e

empresas do setor privado, foram estabelecidos mesmo antes da criação de uma

coordenação de projetos especiais, como os com a Eletronorte (Waimiri-Atroari), com a

Itaipu (PMACI, Prodeagro e Planafloro), com SIVAM e Furnas (Avá-Canoeiro) e com a

GTZ, alguns no âmbito do Departamento de Meio Ambiente e Patrimônio Indígena -

DEPIMA (atual CGPIMA).

Apesar destes casos, isso não era considerado um procedimento usual, ou próprio

da administração pública, e recebia muitas críticas dentro da Funai, onde a pretensão do

monopólio das ações indigenistas se tornava a cada dia mais despida de qualquer

possibilidade concreta. Assim, a demarcação Waiãpi exigia explicações não somente no

que concerne às formas de relação entre ONGs e Funai, mas também quanto à busca de

recursos internacionais alemães, sem experiência prévia nesta área do indigenismo.

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Para tanto, o então presidente da Funai, Cláudio Romero, enviou ofício à ABC

(Ofício 184/93 de 14/06/93), no qual apresentou várias explicações. Primeiramente

quanto aos recursos internacionais:

A necessidade de implementarmos as demarcações das áreas indígenas para cumprirmos o prazo constitucional e sobretudo o fato de várias dessas áreas encontrarem-se aptas à demarcação física [...] levaram a FUNAI a procurar o apoio do governo alemão no sentido de acelerar o processo de demarcação, antecipando, a título de experiência em caráter piloto, ações do subprojeto para identificação e demarcação das terras indígenas.

Em outra passagem do texto, fica claro que o baixo orçamento para demarcação

seria o principal motivo de recorrer a fontes de financiamento alternativas: “No momento,

o único impedimento à demarcação dessa área é a inexistência de recursos orçamentários

neste órgão. [...] Propõe-se a utilização de recursos destinados à preparação do PPG-7”.

Esta situação de dificuldades para captação de recursos para realizar as

demarcações foram relatadas, em entrevista, por Isa Pacheco, referindo-se neste caso à

demarcação- piloto do PPTAL da terra Waiãpi:

Eu era diretora de terras. Nós estávamos passando por uma miséria franciscana. Mas sem recursos não ficaríamos. Corremos atrás de recursos da embaixada [da Alemanha] que repassava para ONGs, e as ONGs faziam os serviços para a FUNAI.558

Neste mesmo documento de Cláudio Romero, vimos que a relação entre certos

setores da FUNAI-ONGs-GTZ não era absolutamente neutra. Certos vínculos pessoais ou

mesmo institucionais precedentes entre organizações alemãs e ONGs, por exemplo,

puderam marcar determinadas escolhas em processos administrativos, particularmente

quando diante de novas situações.559

A área indígena Waiãpi, no estado do Amapá, foi escolhida para esta experiência piloto por encontrar-se pronta para ser demarcada desde 1991, e também por causa de expectativas dos índios quando da visita de representantes do Banco Mundial e do KfW, em agosto de 1992, na Missão de Pré-Avaliação [...] Gostaríamos ainda de explicar que a ausência de mecanismos para internalizar recursos em fase anterior à aprovação final do projeto-piloto e a urgência da

558 Entrevista concedida em 13 de novembro de 2003, às 15h, no MMA. 559 Cláudio Romero.

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demarcação nos levam a propor a realização desta demarcação com apoio de uma organização não-governamental. A FUNAI vem desde 1992 desenvolvendo trabalhos conjuntos com ONGs desse campo através de convênios específicos em que o órgão acompanha e fiscaliza os trabalhos demarcatórios.

Dominique Gallois,560 antropóloga do CTI que atuava na área Waiãpi e que

coordenou os trabalhos da demarcação, afirmou em relatório que: Diante dos entraves para obter apoio financeiro no Brasil, os líderes Kumai e Waiwai seguiram para Nova York e Washington, em maio de 1993, apresentando o pleito Waiãpi a organismos internacionais. Após esta viagem, o governo da República Federal da Alemanha manifestou interesse no projeto. Com base em acordos de cooperação técnica estabelecidos entre os dois países, a FUNAI apresentou o pedido de demarcação física da área à Agência Brasileira de Cooperação que o acolheu em agosto de 1993. Por intermédio do KfW, a demarcação Waiãpi é encaminhada à Sociedade Alemã de Cooperação Técnica (GTZ), em Brasília, para avaliação. Apesar de se tratar da primeira experiência da GTZ com índios no país, o projeto foi aceito pelos peritos alemães. 561

O trecho do relatório da demarcação Waiãpi revela uma outra dimensão da

articulação feita para alcançar os seus objetivos: a dimensão da organização indigenista e

das lideranças indígenas, que diretamente fizeram contatos internacionais para captar

recursos sem a mediação do Estado brasileiro. Parece distante, no entanto, a correlação

entre as viagens a Nova York e Washington e a resposta positiva da Alemanha

interessada em apoiar a demarcação, porque as negociações já estavam em andamento

entre Funai, GTZ e ABC, estando previsto o piloto de demarcação. A viagem, no entanto,

pode ter sido um recurso para dar maior visibilidade e destaque ao projeto e agilizar o

processo mais amplo em que atuava a pesada burocracia do BIRD e que redundaria na

efetiva implementação do PPTAL.

Assim, a articulação entre ONGs e governo, entre agentes e agências

governamentais e não-governamentais é difícil de ser assumida ou reconhecida por ambas

as partes, o que justifica um quase silêncio a respeito desse período dos convênios. No

entanto, vale lembrar que, no que concerne ao PPTAL e aos projetos que naquele

560 Dominique Gallois é doutora em antropologia social pela Universidade de São Paulo, onde leciona desde 1985. Hoje é uma das pessoas à frente da IEPE. 561 CTI. Projeto Demarcação Waiãpi. Resumo do Relatório Final, agosto de 1996, p.5.

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momento eram pensados como partes dele constitutivas – refiro-me aos pilotos ambiental

e de saúde, que posteriormente foram abandonados, e também ao piloto da demarcação,

que foi o Waiãpi – formou-se um conjunto de projetos cujos recursos, fossem do RFT ou

de acordos bilaterais, eram todos “a fundo perdido”, ou seja, recursos de doações. O

Convênio nº 06/94 foi assinado em 25 de julho de 1994 e publicado no Diário Oficial em

1 de agosto de 1994.

A demarcação Waiãpi foi a primeira situação em que a GTZ esteve envolvida em

uma demarcação de terra indígena.

Apoio à SETEC

A partir de maio de 1994, o projeto entrou na fase de negociação, quando foi

assinado o acordo de cooperação financeira. Os vínculos com a GTZ vão se tornar cada

vez mais estáveis e continuados, com a presença física de um funcionário e com a

montagem de um escritório nas instalações da Funai.

O presidente da Funai naquele momento, Dinarte Madeiro, indicou em documento

encaminhado à ABC que seria “fundamental a cooperação técnica da Sociedade Alemã

de Cooperação Técnica, GTZ, oferecida pelo governo da Alemanha com os objetivos de

apoiar a secretaria técnica e apoiar experimentos de manejo sustentado de recursos

naturais”.562 Deveria a agência nacional declarar a necessidade da atuação da agência de

cooperação para o desenvolvimento, por meio da transferência de peritos e de

conhecimentos, para que ficasse caracterizada a condição de cooperação e não de

intervenção. Por isso, o que chamei anteriormente de “intervenção consentida”. No

mesmo documento, declara que o volume de recursos financeiros era, até aquele

momento, orçado em 30 milhões de marcos.

Em função do elevado volume de recursos financeiros disponibilizado a título de

doação ao projeto PPTAL pelo KfW, foi feito em abril de 1995 um acordo entre KfW e

governo brasileiro, no qual a Funai aparece como “beneficiária”, através do MMA, de 30

milhões de marcos alemães não-reembolsáveis. Com base neste acordo de cooperação

562 Ofício 256/94, de 12 de maio de 1994, de Dinarte Madeiro, presidente da Funai, a Sergio Arruda, diretor da ABC.

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financeira é possível afirmar que a exigência de participação da cooperação técnica se

impôs como condição à cooperação financeira.

Foi feito um acordo em separado de cooperação financeira oficial entre Alemanha

e Brasil, de 07/04/1995, complementar ao contrato de contribuição financeira de 30

milhões de marcos alemães, da mesma data. Neste acordo em separado, há uma série de

imposições – condicionalidades – vinculadas aos procedimentos do projeto, como a

obrigatoriedade de a Funai submeter planejamentos operacionais anuais (POA) ao

KfW.563 Ali estão colocadas as atribuições da GTZ de assessoramento na preparação e no

controle das atividades previstas no projeto: elaboração dos POAs e de um sistema de

monitoramento e avaliação; identificação das necessidades de treinamento e capacitação

e apoio à realização das ações correspondentes; implementação de um projeto-piloto

ambiental e serviços de assessoramento específico visando aos regulamentos da

cooperação financeira oficial no que diz respeito, entre outros, às licitações, à adjudicação

e à fiscalização da execução. São exigências referentes ao conteúdo do projeto, ou seja, à

cooperação técnica, o que não deveria estar em um contrato de cooperação financeira. No

item 3 (execução do projeto) consta:

Todos os estudos a serem realizados no âmbito do projeto serão elaborados em estreita coordenação com o KfW, sendo os respectivos detalhes definidos em cada caso. {E ainda:] “dos POAs constarão, entre outros aspectos, as seguintes informações: lista de prioridades de terras, lista de terras com situações conflitantes não solucionadas com Unidades de Conservação e datas referentes a eventos-chave do processo de regularização.564

Neste mesmo item referente à execução do projeto, vimos que a cooperação

técnica é uma atividade que aparece vinculada, como condicionalidade, ao controle dos

recursos provenientes da cooperação financeira:

A entidade executora e o KfW encarregarão a cooperação técnica alemã das funções de assessoramento externo (condição prévia ao desembolso, ver item 7.2.c do contrato de contribuição financeira) que abrangem: serviços de assessoramento à unidade de coordenação da entidade executora [...] e serviços de assessoramento específico visando aos regulamentos da cooperação financeira

563 Acordo entre KfW e governo brasileiro, de 7 de abril de 1995. 564 Acordo em Separado entre KfW, FUNAI e MMA. Cooperação Financeira Oficial Alemanha/Brasil, Contribuição Financeira nº 94 65 774 de DM 30 milhões, de 07/04/1995.

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oficial no que diz respeito, entre outros, a licitações, adjudicação e fiscalização da execução.565

De acordo com publicações que definem as “normas da cooperação alemã”, e

conforme depoimentos de funcionários da GTZ e da ABC, não há nada que vincule

obrigatoriamente os projetos que o KfW financia à atuação conjunta da GTZ como uma

espécie de supervisora no que concerne às despesas e aos usos dos recursos do governo

alemão.566 Isto é procedente no caso do PPG-7, que é um programa que trabalha

integralmente com recursos de doação, também chamados de recursos “a fundo perdido”.

Não vale, no entanto, para todos os projetos como uma regra ou norma da cooperação

alemã, conforme argumenta a coordenadora da área de cooperação bilateral alemã

(CTRB) da ABC:567

A grande diferença em relação ao KfW é que ele coloca dinheiro no orçamento da União, no caso, na Funai. Então, é o coordenador brasileiro que ordena as despesas desse dinheiro e a Carola, o perito, tem que acompanhar como está sendo feito esse desembolso e a prestação de contas desse recurso do KfW. Então, ela tem duas funções. Esse é o único caso; o PPG-7 é o único que tem isso. Normalmente, a cooperação financeira é totalmente separada, é só um projeto com a SEAIN, é só dinheiro; o lado brasileiro coordena tudo, só obedece às regras de prestação de contas, tem auditoria do próprio governo brasileiro, tem auditoria externa. Pode ter a qualquer momento uma auditoria independente, mas o PPG-7 é o único neste caso.

Artur Mendes argumenta que esta dupla função da GTZ, de ser tanto uma agência

de atribuições “técnicas” e ter também funções sobre os recursos financeiros, causa

muitos problemas e resistências no trato com as equipes de execução dos projetos. Ele

relata a experiência da Funai:568

565 Acordo em separado de cooperação financeira oficial Alemanha/Brasil, de 07/04/1995, p.10, item 3.2. 566 Esta idéia não consta do Acordo Básico de Cooperação Técnica entre Brasil e República Federal da Alemanha, nem também no Compêndio do vocabulário da GTZ, que apresenta normas, conceitos e diretrizes da CT. 567 Elke Constanti, em entrevista. 568 Em entrevista concedida na SETEC-PPTAL-FUNAI, em julho de 2002.

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Até hoje há resistência. E com o agravante de, no caso da cooperação alemã, a cooperação técnica ter uma dupla função: ela é tanto uma cooperação técnica, que disponibiliza técnicos para a Funai, viabiliza encontros, discussões, cursos de treinamento, todo esse papel típico que é específico da cooperação técnica, como também é o representante do KfW dentro do projeto, aprova prestações de contas, aprova planos operacionais, termos de referência, tudo em nome da cooperação financeira. Então, ela tem esse duplo papel: sendo que um, de cooperação técnica, é simpático à instituição, e o outro é antipático. É meio esquizofrênica esta função.

A vinda dos peritos

A definição de que a cooperação técnica tinha sido solicitada e acordada entre as

partes, a partir de abril de 94, resultou nos acertos diplomáticos para a vinda de um

funcionário alemão para acompanhar a implantação do PPTAL, os quais se iniciaram em

junho do mesmo ano.569 A proposta encaminhada pela Funai incluía um termo de

referência para contratação de perito de curto prazo em que estariam já definidas suas

atribuições:570

Assessorar a SETEC-PPTAL na elaboração e implementação do modelo e sistemática da gestão do projeto, na elaboração do Plano Operativo Anual (POA) e de um sistema de monitoramento (monitoria do projeto) e de difusão interna do projeto, além de assessorar na implantação de um projeto piloto ambiental; treinamento e capacitação gerencial da FUNAI; assistência à FUNAI para elaboração dos Termos de Cooperação Técnica de Longo Prazo.

Como já mostrei anteriormente, é usual que peritos de curto prazo sejam

deslocados para avaliar ou dar início a projetos da GTZ. No contrato – termo de

referência – estava definido o prazo de um ano para que o funcionário realizasse um

levantamento preliminar das condições institucionais, e outras, que fossem encontradas

para a execução do projeto, o que faria por meio de relatórios e avaliações para a GTZ.

569 Ofício 1486/ABC/CTRB, de 21 de junho de 1994, de Sergio Arruda, diretor da ABC, a Garry Soares de Lima, diretor do DETEC/MMA. 570 Termo de Referência (TR) é uma peça administrativa que estabelece critérios e bases normativas para contratação de pessoal ou de serviços, muito freqüentemente associada a serviços de consultorias ou prestação de serviços por meio de licitação para órgãos de governo.

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A GTZ definiu que a primeira fase do projeto seria financiada através de recursos

provenientes do fundo para estudos e peritos, chamado “Pool de Peritos”, destinado a

cobrir salários e despesas de moradia de um perito de curto prazo, peritos locais,

treinamento e equipamentos para iniciar a execução de projetos.571

O processo de regulamentação da entrada de uma técnica internacional de agência

de cooperação no país não é simples, mas a intermediação da ABC é bastante útil.

Viabiliza desde a documentação de identidade até a renovação de vistos. Fica arquivado

na ABC o currículo do técnico, bem como uma ficha de identificação como “funcionário

estrangeiro” no país. Os técinico possuem passaporte oficial (governamental) diplomático

na categoria de “organização internacional”, numa definição do MRE de “perito técnico”.

As atribuições de Knoke enquanto perito de curto prazo foram definidas como

assessoria à Funai na implementação do projeto, na elaboração e na implementação do

piloto ambiental e na elaboração, no treinamento e no aperfeiçoamento de técnicos

parceiros na concepção do projeto ambiental nas terras indígenas.

Em fevereiro de 1994, o governo alemão comunicou ao MRE que o técnico

designado, Ernst August Victor Knoke, um agrônomo alemão de cerca de 40 anos, estaria

chegando em março de 1995. Augo Knoke, como era chamado, tinha já uma experiência

de sete anos em trabalhos com a GTZ, desde 1988.

Alguns antropólogos da Funai afirmaram ter “tirado o alemão porque ele era

muito incompetente, muito fraco”, argumentando terem força para pedir a substituição do

perito. No entanto, isto não condiz com a documentação que indica um período curto da

presença deste perito, demonstrando mais a xenofobia e a construção de uma imagem de

conflito em função da luta pelo monopólio do controle do projeto, ou seja, das ações no

campo indigenista. A vinda da perita de longo prazo coloca-se, então, como parte do

processo da implantação de um projeto pela GTZ, nada tendo a ver com o imaginário

cotidiano de intrigas políticas vigentes.

Em dezembro de 1996, a ABC solicita parecer da Funai sobre currículo da

funcionária que viria ao Brasil como perita de longo prazo, em substituição a Augo

Knoke. Este parecer seria condição imprescindível para a continuidade do processo no

571 Nota Verbal WE 445 SFF/U/75/95, de 31 de janeiro de 1995, da embaixada da República Federativa da Alemanha ao MRE.

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âmbito da ABC para a vinda da técnica da cooperação técnica, de fato, uma peça a

posteriori. A decisão sobre a escolha da perita já havia sido feita no processo seletivo da

GTZ na Alemanha, sem participação do governo brasileiro. Como formalidade, a ABC

solicitava à Funai aceite para que o trâmite diplomático se desse sem problemas. A perita

de longo prazo, Carola Kasburg, chegou em março de 1996, ficando até maio de 2004 na

coordenação do projeto pelo lado da GTZ.

Em 7 de fevereiro de 1997, Artur Nobre Mendes, como coordenador do SETEC-

PPTAL, responde à ABC não colocando objeções à vinda daquela técnica.572 Em 9 de

fevereiro chegava ao Brasil Carola Kasburg.573

O período de atuação de Carola Kasburg foi amplamente analisado na tese de

Lima, que enfocou particularmente os conflitos decorrentes desta relação que durou até

2004, quando Carola saiu de sua função na GTZ junto ao projeto, em meio a mais uma

crise devido a dificuldades na relação com a equipe brasileira.

O projeto PPTAL até os dias de hoje está em vigência, sendo que a dinâmica de

funcionamento do projeto já está de certa forma incorporada à dinâmica de sua equipe,

basicamente a mesma, com poucas mudanças. A perita alemã responsável passou a ser a

mesma que acompanha o PDPI, acompanhando o projeto de longe, de Manaus, com

visitas eventuais ao projeto. No entanto, manteve-se ali na sede da Funai a mesma equipe

local de apoio, com mais um assessor alemão, que acompanha o dia-a-dia do projeto. Em

relação às propostas de mudanças na organização e administração da Funai, estas

continuam sendo implementadas, não somente por recomendações da GTZ, mas com

participação ativa de determinados grupos da própria Funai.

Em certa medida, em toda esta terceira parte, buscamos explorar diferentes

instâncias de atuação da GTZ no Brasil, por meio de redes alemãs e suas articulações

com redes brasileiras governamentais e nao-governamentais na administração pública

brasileira. O que este capítulo particularmente buscou ressaltar foram as dinâmicas das

articulações políticas na administração publica, entre grupos, os fatores que garantiram

mudanças e processos em instâncias supostamente racionais – as organizações

burocráticas – para garantir uma determinada idéia de Estado. No entanto, este capítulo

572 Fax 008/PPTAL/97 de 07/02/97 do PPTAL/FUNAI para ABC. 573 Nota Verbal da embaixada da Alemanha para MRE de 26/02/97.

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nos mostra que as redes e as dinâmicas sociais que elas instituem nos meios da

administração pública são determinantes para mudanças administrativas, sendo

destacadas aqui as justificativas para a cooperação na FUNAI.

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Considerações Finais: Santo de casa não faz milagre

Mais do que estabelecer um desfecho sintético para a complexidade das questões

sobre cooperação técnica alemã abordadas nesta tese, pretende-se aqui, nesta parte final,

articular alguns pontos que foram analisados ao longo da tese, de forma a contribuir para

a continuidade do debate sobre relações de poder nas práticas de cooperação técnica

internacional. Esperamos que sejam realizadas outras experiências de etnografias em

contextos de cooperação técnica internacional, bem como de suas organizações, uma

forma de revelarmos não só os mecanismos de poder implícitos nas práticas destas

instituições mas, sobretudo, entre determinados grupos nas instituições da administração

pública brasileira, no sentido de promover políticas de gestão de desigualdades.

O desafio deste trabalho foi o de buscar descortinar um conjunto de práticas e

conhecimentos administrativos e de planejamento adotado pela GTZ por meio de arranjos

com órgãos da administração pública brasileira. A questão central que se procurou

responder foi o porquê de o governo brasileiro servir-se de recursos e de profissionais

estrangeiros para implementar políticas na administração pública, já que muitas vezes ele

dispõe de recursos e de profissionais, sejam eles do governo ou de fora dele – uma elite

capacitada técnica e politicamente para desenvolver projetos e implementar políticas.

Esta questão torna-se ainda mais inquietante se considerarmos a área do indigenismo no

Brasil, que tem uma longa tradição de conhecimentos desenvolvidos pela atuação do

Estado e, mais recentemente, por grupos não-governamentais, além de ampla reflexão

crítica elaborada pelos meios acadêmicos, enquanto é praticamente inexistente sua

sistematização entre as organizações alemãs.

São muitas as resistências no Brasil em relação às atividades de agências de

cooperação internacional em políticas governamentais. Um dos propósitos desta tese foi

Renato� 17/11/07 10:44

Renato� 17/11/07 10:44

Deleted: Alguns antropólogos têm se debruçado sobre temas como fluxos culturais transnacionais, a configuração e a dinâmica da cultura e da política no espaço global, sua relação com a mídia e a informática, as comunidades móveis e até mesmo transnacionalizadas, como os peritos técnicos e outros profissionais das agências de cooperação internacional, entre outras questões. Entre eles, o trabalho de Ulf Hannerz como importante referência aqui. Okongwu e Mencher argumentam que o terreno em que as políticas sociais se fazem está em rápida transformação com o processo de globalização,574 e as práticas governamentais que são definidas como cooperação internacional inserem-se no quadro mais amplo das políticas internacionais da “era do desenvolvimento”.575

Alguns antropólogos que analisam o processo de desenvolvimento e as intervenções em escala global como uma indústria, uma máquina antipolítica.576 Lucy Mair afirma que as atividades de cooperação para o desenvolvimento em escala global no mundo pós-colonial entraram, de certa maneira, na moda, envolvendo todas as nações ricas; a ajuda aos países em desenvolvimento aumenta as exportações dos países ricos, e os projetos técnicos dão emprego a quem os contrata. O desenvolvimento em si tornou-se uma indústria do crescimento.577

Deleted: All the rich nations now take part in what can almost be considered a fashionable activity (…) This is not a display of altruism in a global scale. Aid to LDC – less developed countries – increases the exports of the rich countries and specific technical projects give employment to contractors: development itself, one might say, has become a growth industry.578

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desfazer certas predefinições na medida em que buscou mostrar, nos aspectos formais, a

criação de um espaço na administração pública que viabilizou desde pesquisas científicas,

como a demarcação de terras indígenas, até políticas de proteção florestal. A cooperação

técnica, em muitos casos, como na demarcação de terras indígenas no Brasil, é uma

opção de determinados setores ou grupos da administração pública que resolvem adotá-la

como estratégia política, e não como resultado de simples coerção ou imposição externa,

o que a diferencia, neste sentido, do colonialismo. São decisões de determinados grupos

que avaliam as dificuldades de se implementarem políticas através das vias tradicionais,

como articulações e negociações em fóruns fechados, em reuniões que não são públicas e

nem transparentes, envolvendo setores do governo diretamente ligados ao tema e também

a diplomacia. Para aqueles que, no governo local, são excluídos desses arranjos e

negociações – processo que faz parte das próprias dinâmicas da administração pública –

os projetos de cooperação técnica são apontados, em tom acusatório, como resultado de

“intervenção estrangeira” e dominação neocolonial.

Não menosprezando os aspectos de poder envolvidos neste tipo de relação, a

análise do PPTAL, no entanto, apontou as articulações entre grupos do próprio governo

brasileiro como alternativa ao indigenismo tradicional do Estado, adotado historicamente

pela Funai. Como a tentativa de mudanças dessas estruturas de funcionamento

administrativo e político é normalmente malsucedida, adota-se a opção da articulação

com um agente externo, que tem legitimidade para agir sem comprometimentos com

grupos tradicionais locais, implementando assim um novo regime de forças.

A pesquisa priorizou um enfoque histórico que visava contextualizar processos

característicos das relações de cooperação técnica internacional, tão amplamente

difundida entre órgãos da administração pública de Estados Nacionais, como vemos

atualmente. Para isso, recorremos não somente a uma abordagem mais geral de política

internacional mas, sobretudo, à formação das estruturas específicas da Alemanha e do

Brasil, que acabaram contribuindo para a intensificação dos vínculos entre os governos

destes dois países, em diferentes momentos da história, a partir da assinatura do Acordo

Básico de Cooperação Técnica de 1963.

Busquei analisar na presente tese as relações de poder nas práticas de intervenção

para administração de territórios estrangeiros, usualmente chamadas de “cooperação para

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o desenvolvimento”. Tais práticas envolveram não só países mais avançados e com maior

potencial econômico, mas também aqueles mais carentes de recursos, pólos opostos e

complementares de uma relação assimétrica de poder que se estabeleceu historicamente

no imediato pós-guerra, sendo parte, de fato, das condições da guerra, visando garantir o

estabelecimento da transição para um contexto internacional de paz.

A cooperação foi percebida, naquele momento, como forma de viabilizar as

condições para um ordenamento pacífico e de promoção do desenvolvimento econômico

no plano internacional, processo este particularmente dirigido pelas potências vencedoras

da guerra. A cooperação envolveu, e ainda envolve práticas e processos diplomáticos em

seus mecanismos de operação. Criaram-se, assim, instituições e normas jurídicas cada

vez mais complexas e diferenciadas que viabilizam fluxos e contrafluxos de diversas

naturezas entre os Estados em contextos de paz, e não de guerra, como acordos, tratados,

programas e projetos.

Pretendi explorar um dos aspectos relacionados ao exercício do poder de Estados

Nacionais em expansão. Não exatamente de relações coloniais, porque resultam de

arranjos, com consentimento prévio de grupos locais, formalizados em acordos. No

entanto, por serem práticas que projetam determinados poderes estatais em escala

mundial, a cooperação técnica internacional não deixa de ser parte de estratégias

expansionistas dos Estados Nacionais e, com ressalvas ao aspecto ideológico do termo,

imperialistas.

As relações de cooperação, dirigidas ainda hoje por Estados econômica e

politicamente fortes, acirram entre eles diferentes maneiras de competição, como ao

estabelecerem disputas por espaços de dominação, de controle ou de conhecimento

através de formas de intervenção consentidas, porque estabelecidas em acordos, tratados,

programas e projetos entre os Estados “poderosos” e os Estados do chamado “Terceiro

Mundo”. Fica acertada assim uma partilha que define vínculos e dependências em

condições diferenciadas e com duração restrita. Este é um primeiro aspecto que a tese

busca ressaltar como uma estratégia de análise que foge de um dualismo ora deslocado

para o discurso de denúncia, ora para a filiação aos princípios veiculados pelos

mecanismos de autopropaganda das agências.

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Um segundo aspecto que se pretendeu destacar na tese foi a observação das

práticas reais adotadas pela GTZ na sua atuação no Brasil. A proposta de recorrer a este

conjunto de situações que observamos refletiu o interesse em estabelecer os princípios de

produção de uma teoria da prática ou, como argumenta Bourdieu, ir do opus operatum ao

modus operandi das práticas de cooperação técnica, o que usualmente se define pela

expressão “transmissão de conhecimentos” que se dá em três dimensões: no escritório, a

partir das normas institucionais alemãs que visam regularizar seus procedimentos na

implementação das práticas da cooperação; na análise de festas, comemorações,

encontros e seminários promovidos enquanto rituais da cooperação; nas situações

próprias para integrar e articular um projeto, em que ficam explícitos os manejos de

construção das relações para viabilizar sua execução.579

O enfoque sobre cooperação visa à investigação das relações de poder no plano

internacional, mas a partir de uma abordagem distinta, em alguns aspectos que

ressaltaremos aqui, das relações internacionais. Para isso, recorremos a algumas

contribuições de Michel Foucault580 sobre poder. Para ele, poder não se dá, não se troca,

nem se retoma, mas se exerce e só existe em ato. Neste sentido, suas perguntas – o que é

esse exercício?; em que consiste?; qual a sua mecânica? – foram eixos fundamentais aos

quais me ative para investigar a “microfísica do poder” nas práticas de uma relação de

cooperação específica, a saber, a cooperação técnica, envolvendo políticas de meio

ambiente entre Brasil e Alemanha nos anos 90, cuja origem se deve ao acordo básico

assinado entre os dois países em 1963.

Outra argumentação de Foucault também parece conduzir de forma bastante

adequada as reflexões sobre poder nas relações de cooperação, quando afirma que poder,

enquanto relação de força, é a guerra continuada por outros meios. Para ele, as relações

de poder têm como ponto de ancoragem certa relação de força em um momento

historicamente necessário na guerra e pela guerra, o que no caso das estruturas e dos

sistemas de cooperação internacional estabelecidos é absolutamente apropriado.581 Este é

um terceiro aspecto que se desdobra ao adotarmos uma abordagem histórica da

579 Bourdieu, P. “Esboço de uma Teoria da Prática”, opus cit., p.60. 580 Foucault, Michel. Em defesa da sociedade, opus cit., p.21. 581 Foucault, Michel, ibidem, p. 2.

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cooperação técnica internacional. Ainda que houvesse já antes da Segunda Guerra

Mundial situações esporádicas de “ajuda ou assistência internacional”, como aquelas

adotadas por igrejas ou outras instituições religiosas, foi no decorrer da guerra que se

definiram, enquanto parte de processos de formação dos Estados Nacionais, ações

continuadas de consolidação de sistemas de cooperação internacional, com instituições,

normas e procedimentos formulados para serem implementados como forma de governo

e administração no estrangeiro. Para Foucault, sempre se escreveria a história da mesma

guerra, mesmo quando se escrevesse a história da paz e de suas instituições.

Assim, segundo Foucault, o poder não só reprime, mas é também uma força

criativa ou uma rede produtiva que atravessa o corpo social e induz ao prazer, constrói

saberes, produz discursos, exclui e estabelece desigualdades, sendo fundamental, na sua

concepção, orientar o foco de investigação para as formas de sujeição e as conexões e

utilizações dos sistemas locais dessa sujeição no âmbito dos dispositivos de saber. Neste

sentido, é possível afirmar que os mecanismos de implementação das práticas da

cooperação, enquanto mecanismos de poder associados ao quadro do pós-guerra,

constituem um dos modos de expressão dos poderes de Estados e não são neutros nem

despolitizados, mas produzem saberes, discursos, disciplinam comportamentos e

estabelecem desigualdades. São, desta forma, tecnologias políticas.

Pretendemos destacar que, diferente das relações coloniais onde há coerção e uso

de força física, no caso das relações de cooperação faz-se uso de outros mecanismos de

poder que não exatamente a força. Assim, a tese argumenta que cooperação técnica

representa um conjunto de “tecnologias políticas”, no sentido que Foucault atribui ao

termo, historicamente desenvolvido no processo de formação dos Estados Nacionais na

segunda metade do século XX, o que é particularmente constatado no caso da atuação da

GTZ, mas também observado em outras agências e organismos alemães. As práticas de

planejamento, monitoria, avaliações, cursos e treinamentos que são adotadas no

desenvolvimento de projetos, bem como a apresentação dos seus resultados em eventos-

rituais públicos, caracterizam-se como “tecnologias políticas”, porque são formas de

disciplinamento administrativo e social (comportamental) acionados por mecanismos

pedagógicos cotidianos pouco visíveis como mecanismos de poder.

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A partir das referências teóricas mencionadas, a pesquisa orientou-se na direção

do desvendamento de mecanismos e dispositivos de poder envolvidos em práticas

supostamente desprovidas dele, mas presentes em projetos de cooperação técnica entre

dois Estados Nacionais. Foi levada em conta a discrição como marca da atuação alemã no

Brasil, o que a ela garantiu certa invisibilidade, certamente adequada ao pleno

desenvolvimento de suas atividades disciplinadoras.

Os mecanismos implícitos nas práticas supostamente técnicas (e não políticas) da

GTZ, além do que a agência afirma executar – disseminar um “modo de fazer” (uma

metodologia) por meio da transferência de conhecimentos – propaga também valores e

símbolos relacionados à cultura alemã, promovendo uma conversão que se dá em uma

dimensão bem maior do que simplesmente aquela restrita a um projeto.

A transferência de tecnologia, de know-how, no nosso caso é muito importante, inclusive o intercâmbio de pessoal. Eu fiz um cálculo recente e cheguei a 2000 brasileiros que foram treinados na Alemanha no tempo da cooperação. Profissionais de qualquer tipo, não contando os acadêmicos. É muita gente e que depois apareceu em funções importantes. Você já tem um problema de convencer alguém teoricamente. Se pode mostrar isso num sistema já funcionando... Então, minha proposta é sempre a de promover o intercâmbio das pessoas, de levar e dizer, “olha”, como no caso agora de ordenamento territorial e meio ambiente. Nós convidamos, vocês passam em todas as nossas instituições e vocês conhecem, para ver in situ como funciona; isso há 30 anos, de uma forma bastante perfeccionista. Porque é uma coisa que eu falo, falo, falo e uma pessoa não pode imaginar se não vir. Isso é um valor muito grande, o de possibilitar às pessoas que deveriam trabalhar no assunto ver que isso realmente funciona. Muitas coisas aqui da cooperação bilateral do nosso perfeccionismo, da nossa insistência teutônica, foram abrasileiradas. Aí, vão os peritos; aí vamos nós, mas o fio vermelho, o input, ficou. E isso é importante, porque muitos peritos nossos estavam correndo contra o tempo, faltavam recursos do lado brasileiro, faltava gente, flutuação de gente, eles quase ficavam doidos mas, mesmo assim, eles deixaram o trabalho deles e alguém assumiu. Outros desapareceram e depois apareceram em algum lugar muito mais interessante, como políticos, em um posto mais alto, mais influente.582

Os temas que mobilizaram o deslocamento de recursos pelo governo alemão

foram sendo historicamente modificados, acompanhando novas concepções e novas

tendências de investimentos: da ênfase na área rural e na produção alimentar,

582 Rainer Willingshoffer. Entrevista concedida na embaixada da Alemanha em Brasília, em 2003.

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características do período do imediato pós-guerra, passou-se a investir mais recentemente

em sustentabilidade ambiental, com recursos para projetos em indústrias, mas também

para a conservação de florestas e outros ecossistemas ameaçados. Neste sentido, o Brasil,

como detentor de um poder simbólico em função da reserva florestal que detém em seu

território, a Amazônia, tornou-se palco de projetos e programas internacionais, entre os

quais se destacam os de origem alemã.

Nosso argumento segue no sentido de que as práticas de cooperação entre

organizações não-governamentais alemãs e brasileiras, inclusive de igrejas, foi um dos

caminhos seguidos pela GTZ para atuar em políticas ambientais na Amazônia e,

particularmente, em políticas para povos indígenas no Brasil. É importante se fazer aqui a

ressalva de que não são claras as fronteiras entre o governamental e o não-governamental,

pois, na observação empírica, são inúmeros os fluxos existentes em ambos sentidos na

comunicação entre estes campos. Esta conexão existe em muitos planos, que vão desde o

financiamento pelo governo de instituições não-governamentais, até a formação de

quadros governamentais com profissionais vindos da área não-governamental. Da mesma

forma, quando analisamos que as diretrizes políticas do governo orientam as instituições

não-governamentais, vale lembrar que muitas delas foram formuladas em instâncias

alternativas, ocupadas pelas organizações não-governamentais. O engajamento do

governo da Alemanha em políticas de cooperação para o desenvolvimento foi viabilizado

não somente pela disponibilidade de recursos financeiros efetivada no plano

internacional, mas também por sua tradição cultural de movimentos de solidariedade e de

cooperativismo que tem origem no século XVIII, tradição esta que teve continuidade

através da atuação das ONGs em territórios estrangeiros.

Como vimos, as organizações alemãs – governamentais, eclesiásticas, fundações

políticas – estão no Brasil há muitas décadas. Entre os anos 60 e 80, tanto no Brasil como

em outros países da América Latina, organizações não-governamentais alemãs, sobretudo

aquelas vinculadas às igrejas, atuaram de forma intensa no apoio a movimentos sociais e

políticos contra a ditadura militar. Esse histórico de articulação, principalmente por meio

das Comunidades Eclesiais de Base, as CEBs, marcou as trajetórias de alguns dos

profissionais que fazem parte de uma geração mais recente da GTZ, um grupo que se

define como politicamente de esquerda e com uma formação profissional no campo do

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desenvolvimento que se deu na atuação em ONGs. Desenvolveram um know-how sobre

as dinâmicas sociais, políticas e econômicas do país e, particularmente, sobre

determinadas áreas, como a região Nordeste. Esse know-how está presente na sede da

agência estrangeira e também entre estrangeiros de outras instituições da Alemanha,

fazendo circular a informação e articulando diferentes grupos locais e estrangeiros de

mesma origem. Dessa maneira, estabelecem vínculos com alguns desses grupos locais,

sobretudo em diálogos com determinadas pessoas – elos importantes de um conjunto de

relações sociais privilegiadas localmente – o que garante espaços de ação política.

Um momento-chave desta história foi a ECO-92, com foco em políticas para a

Amazônia e na articulação com ONGs, como FASE, IBASE e INESC, com as quais, por

exemplo, fizeram convênios e patrocinaram publicações e eventos. Entre elas, a GTZ

desenvolveu projetos no Brasil, desde a sua criação, em áreas rurais, visando ao aumento

de produtividade alimentar, ao desenvolvimento de novas técnicas agrícolas, à

implementação de escolas técnicas. Também promoveu projetos com populações de

baixa renda em centros urbanos.

Mais recentemente, a questão ambiental tornou-se uma prioridade para a política

alemã de cooperação técnica no Brasil, o que é uma opção que contribui para a

construção de uma imagem de liderança alemã em relação à prioridade ecológica

enquanto capital simbólico moral. Neste mesmo eixo de questões de proteção ambiental

de florestas, passaram a estar integradas nas ações da GTZ as populações indígenas no

Brasil. O PPTAL é exemplar por mostrar o processo inicial de construção tanto deste

know-how como das articulações sociais e políticas de profissionais alemães da GTZ no

campo do indigenismo. Sem relações anteriormente estabelecidas neste campo,

utilizaram-se de outras redes, do ambientalismo e dos movimentos sociais da Amazônia

para a entrada no campo.

A intervenção para administração de territórios estrangeiros viabilizou-se

fundamentalmente com a circulação de profissionais “da cooperação para o

desenvolvimento” por canais e redes sociais na Alemanha, assim como pelos espaços

locais de atuação. Tais peritos, embora sejam os elos de transmissão de saberes

administrativos para o “local” – atuando como educadores e tradutores, formadores de

opinião que estabelecem uma mão dupla no processo de formação de conhecimentos –

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estão submetidos às próprias normas institucionais, ficando presos a processos

burocráticos que exigem muito tempo de dedicação às práticas dos projetos quando

atuam junto aos grupos sociais envolvidos, o que dificulta a sistematização de seus

trabalhos.

Aquilo que os funcionários da GTZ propõem para as equipes dos órgãos da

administração brasileira com os quais trabalham nem sempre conseguem realizar nas

próprias atividades. Estas vão desde a sistematização das práticas cotidianas, até a

concessão de uma maior abertura a intervenções dos grupos locais em procedimentos da

GTZ. Isto reflete, sobretudo, uma lógica administrativa da organização, ou melhor, da

administração pública alemã, e não uma incapacidade inerente aos peritos. O

descompasso entre o dito e o feito tem relação com o controle de informações, as

exigências na elaboração de relatórios, a submissão a estruturas burocráticas com pouca

margem de autonomia, todos estes aspectos criticados quando da análise de órgãos

estrangeiros de administração pública.

A forma de atuação dos alemães em geral, e particularmente da GTZ, é marcada

pelo pragmatismo, pela aplicação direta de conhecimentos, pela sistematização de

informações a partir da prática. O perfil low profile da GTZ, que atua com pouca

propaganda de seus feitos, é delineado pela discrição e pela visibilidade restrita. O

enfoque na trajetória histórica de atuação da GTZ em projetos de cooperação técnica no

Brasil, há mais de quarenta anos consolidando um conjunto de metodologias, de práticas

e de conhecimentos sociais e ambientais enquanto tecnologias de poder – conjunto este

mascarado como “conhecimentos técnicos” – permite-nos ter uma visão mais clara sobre

as diretrizes desta organização e sobre os procedimentos adotados em um país como o

Brasil. Esta visão panorâmica não nos possibilita fazer afirmações gerais sobre uma

conduta-padrão adotada pela GTZ em escala global, mas sim extrair considerações sobre

como atua no Brasil, diante do conjunto de atores e de condições aqui existentes. Este é

um propósito mais do que importante para dimensionarmos as condições políticas e

sociais existentes em espaços de luta de poder. Acreditamos que tais esforços devam ser

empreendidos na direção de outras instituições que trabalham no Brasil por longos

períodos.

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Diante do universo de questões com as quais me deparei ao longo da pesquisa,

observei que muitos dos pressupostos racionais dos órgãos de administração pública, seja

no caso da Alemanha, seja no do Brasil, afirmados em acordos governamentais, em

normas de procedimentos das organizações e em projetos e programas elaborados de

comum acordo entre os governos, não correspondem à efetiva prática por parte da

administração pública, valendo a máxima: “santo de casa não faz milagre”.

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ENDEREÇOS ELETRÔNICOS ACESSADOS

http://www.inwent.org

http://www.cdgbrasil.com.br

http://www.bmz.de

http://www.bmz.de

http://www.gtz.de

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http://www.fnst-freiheit.org

http://www.ffn-brasil.org.br

http://www.fes.org

http://www.hss.de

http://www.boell.org

http://www.kas.org

http://www.worldbank/brazil

http://www.mma.gov.br/port/sca/ppg7

http:://www.abc.mre.gov.br/abc/abc_historico.asp

http:://www.abc.mre.gov.br/ct/oqecoop.htm

http:://www.rededlis.org.br

http://www.amazonia.org

http://www.ibama.gov.br

http://www.gta.org.br

http://www.abong.org.br

http://www.isa.org.br

JORNAIS

Araújo, Chico. “Funai sofre ingerência de investidor alemão”, Jornal de Brasília, 07/03/2004, p.7. Arnt, R. “Fundo para a Amazônia divide ambientalistas”, Jornal Folha de São Paulo, 08/07/1991, p.5. Brito, M.F. “Senadores dos EUA criticam política ecológica de Collor”, Jornal do Brasil, 18/06/1991, p.3. Cavalcanti, Alcinéia. “Índios do Amapá demarcam suas terras”, Folha do Meio Ambiente, Brasília, maio de 1996, p.15. Dantas, E. “Governo quer demarcar terras indígenas para melhorar imagem”, Jornal Folha de São Paulo, 29/06/1991, p.4. Dantas, E. “Collor atende pedidos de ecologistas dos EUA”, Jornal Folha de São Paulo, 26/06/1991, p.8.

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400

Obliziner, A. “Pressão sobre a Amazônia gera revolta”, Jornal Correio Braziliense, 19/06/1991, p.5. “Simon acusa americanos”, Jornal Correio Braziliense, 19/06/1991, p.5. “Presidente da FUNAI é demitido”, Jornal do Brasil, 22/06/1991, p.4. “Possuelo assume Funai para demarcar terras dos índios”, Jornal do Brasil, 29/06/1991, p.5. Tinoco, Silvia Joviña. “Cacique ou Presidente? Uma aproximação do Conselho das Aldeias Waiãpi, em Arquivos do Museu Nacional, Rio de Janeiro: Museu Nacional, vol. 61(2), p.81-87, abril/junho de 2003, p.83.

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Anexo de Documentos:

1) Acordo Básico de Cooperação Técnica entre o Governo da República Federativa

do Brasil e o Governo da República Federal da Alemanha;

2) Planta Esquemática do Escritório de Representação da GTZ no Brasil;

3) Programa da “Conferência Regional para América Latina y El Caribe sobre

Energias Renovables”;

4) Programa do Encontro “Atuais desafios e perspectivas dos sistemas de saúde na

América Latina e no Caribe: Proteção social universal e respostas ao

HIV/AIDS”;

5) Programa do Workshop “Estratégias de Desenvolvimento Sustentável no Brasil”;

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