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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE LETRAS E ARTES: FACULDADE DE LETRAS MESTRADO EM LETRAS NEOLATINAS TAINÁ DA SILVA MOURA CARVALHO NANA (1880) DE ZOLA; DESCRIÇÕES PICTURAIS DA VIDA MODERNA RIO DE JANEIRO 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE LETRAS E ARTES: FACULDADE DE LETRAS

MESTRADO EM LETRAS NEOLATINAS

TAINÁ DA SILVA MOURA CARVALHO

NANA (1880) DE ZOLA; DESCRIÇÕES PICTURAIS DA VIDA MODERNA

RIO DE JANEIRO

2018

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Tainá da Silva Moura Carvalho

Nana (1880) de Zola; descrições picturais da vida moderna

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-graduação em Letras

Neolatinas da Universidade Federal do

Rio de Janeiro como quesito para a

obtenção do título de mestre em Letras

Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos

- Literaturas de Língua Francesa).

Orientadora: Profa. Dra. Celina Maria

Moreira de Mello

Rio de Janeiro

2018

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Carvalho, Tainá da Silva Moura

C331n Nana (1880) de Zola; descrições picturais da vida

moderna / Tainá da Silva Moura Carvalho. -- Rio de

Janeiro, 2018.

120 f.: il. color.; 30 cm.

Orientadora: Celina Maria Moreira de Mello.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do

Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós

Graduação em Letras Neolatinas, 2018.

1. Zola, Émile, 1840-1902. Nana - Crítica e

interpretação. 2. Literatura e sociedade - França. 3.

Arte e literatura - França. 4. Análise do discurso

literário. 5. Pintura francesa. I. Mello, Celina

Maria Moreira de, orient. II. Título.

CIP - Catalogação na Publicação

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ

com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

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NANA (1880) DE ZOLA; DESCRIÇÕES PICTURAIS DA VIDA MODERNA

TAINÁ DA SILVA MOURA CARVALHO

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas da

Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do título de mestre em

Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos - Literaturas de Língua Francesa).

RIO DE JANEIRO, 21 DE FEVEREIRO DE 2018

EXAMINADA POR

PROFA. DRA. CELINA MARIA MOREIRA DE MELLO (UFRJ)

PROFA. DRA SABRINA BALTOR DE OLIVEIRA (UERJ)

PROF. DR. FABIANO DALLA BONA (UFRJ)

PROFA. DRA. SONIA CRISTINA REIS (UFRJ) – SUPLENTE

PROF. DR. IRINEU EDUARDO JONES CORRÊA (FBN) - SUPLENTE

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DEDICATÓRIA

A minha mãe,

Selma, meu maior exemplo

e

refúgio.

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AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à minha orientadora Profa. Dra. Celina Maria

Moreira de Mello pela paciência, atenção, cuidado e orientações sem as quais esse trabalho

não teria nascido.

Aos membros da banca pela gentileza de terem aceito o convite em participar desta etapa.

À Patrícia, minha maior companheira e amiga, pela eterna paciência, amor, carinho e por estar

comigo desde antes desse processo. Sem você, esses dois anos teriam sido imensamente mais

difíceis.

Aos meus amigos Bárbara, Matheus, Marina, Monique, Carolina e Beth por sempre estarem

dispostos a me ouvir falar da vida acadêmica, por mais repetitiva que eu soasse.

A Godot, pelo afeto sempre presente.

À CAPES, que possibilitou a dedicação exclusiva para essa pesquisa.

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CARVALHO, Tainá da Silva Moura. NANA (1880) DE ZOLA; DESCRIÇÕES

PICTURAIS DA VIDA MODERNA. 2018. Dissertação (Mestrado em Letras

Neolatinas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2018.

RESUMO

O presente estudo tem como proposta uma leitura estética e discursiva das descrições picturais

de locais de sociabilidade no romance Nana, publicado em 1880, de autoria de Émile Zola. O

corpus dessa dissertação são as descrições dos locais parisienses de sociabilidade presentes na

narrativa, tendo como recorte três espaços, a saber: o Théâtre des Variétés, o Passage des

Panoramas e o hipódromo de Longchamp. O romance Nana narra a vida e morte de uma

cortesã nos três anos finais do Segundo Império francês (1851-1870) e apresenta uma

narrativa que registra a vida moderna parisiense, desenvolvida por meio de descrições que

podem ser lidas como descrições picturais (LOUVEL, 1997), identificadas através de

determinados elementos de picturalidade como cor, luz e referências a técnicas pictóricas.

Como estratégia metodológica de análise das descrições picturais, foi construído um quadro

teórico que buscou compreender a trajetória (BOURDIEU, 1996) de Émile Zola no campo

literário francês (BOURDIEU, 1996), evidenciando a estreita relação deste campo com o

campo pictórico, principalmente a relação de Zola com os pintores impressionistas. A

trajetória do autor de Nana teve como resultado uma escrita pictural cujas características

estéticas foram analisadas neste trabalho. Além disso, buscou-se também relacionar certos

traços - como tema e técnica - da escrita de Zola a telas impressionistas que registram

momentos da vida moderna, de pintores que compartilham preceitos estéticos com o

romancista, em destaque Édouard Manet, Auguste Renoir e Jean Béraud. Este estudo se

propôs a reflexão sobre o papel das descrições picturais na construção do enredo do romance

Nana, compreendendo as descrições picturais como parte do enredo, pois estas têm uma

função narrativa além da ornamental e estética.

Palavras-chave: Zola, Nana, descrição pictural, locais de sociabilidade.

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CARVALHO, Tainá da Silva Moura. NANA (1880) BY ZOLA; PICTURAL

DESCRIPTIONS OF MODERN LIFE. 2018. Dissertation (Masters in Neo-Latin

languages) – Languages Faculty, Federal University of Rio de Janeiro, 2018.

ABSTRACT

The present study proposes an aesthetic and discursive reading of the pictorial descriptions of

places of sociability in the romance Nana, published in 1880, by Émile Zola. The corpus of

this dissertation is based on the descriptions of the Parisian sites of sociability present in the

narrative, focusing on three spaces, such as: the Théâtre des Variétés, the Passage des

Panoramas and Longchamp Racecourse. The novel Nana recounts the life and death of a

courtesan in the final three years of the Second French Empire (1851-1870) and presents a

narrative that records modern Parisian life, developed through descriptions that can be read as

pictorial descriptions (LOUVEL, 1997), which can be identified by specific elements such as

color, light and references to pictorial techniques. As a methodological strategy for the

analysis of pictorial descriptions, a theoretical framework was developed which sought to

understand the trajectory (BOURDIEU, 1996) of Émile Zola in the French literary field

(BOURDIEU, 1996), showing the close relationship between this field and the pictorial field,

mainly Zola's relationship with the Impressionist painters. The trajectory of Nana’s author

resulted in a pictorial writing whose aesthetic characteristics were analyzed in this work. In

addition, we sought to relate certain traits - as a theme and technique - of Zola's writing to

Impressionist canvases, which record moments of modern life, of painters who share aesthetic

precepts with the novelist, Edouard Manet, Auguste Renoir and Jean Béraud. This study

proposed a reflection on the role of pictorial descriptions in the construction of the plot of the

novel Nana, including pictorial descriptions as part of the plot, since they have a narrative

function besides ornamental and aesthetic.

Key-words: Zola, Nana, pictorial description, places of sociability.

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CARVALHO, Tainá da Silva Moura. NANA (1880) DE ZOLA ; DESCRIPTIONS

PICTURALES DE LA VIE MODERNE. 2018. Mémoire (Master en Lettres Néolatines)

– Faculté de Lettres – Université Fédérale du Rio de Janeiro, 2018.

RÉSUMÉ

Cette étude propose une lecture esthétique et discursive des descriptions picturales des lieux

de sociabilités dans le roman Nana, publié en 1880, dont l’auteur est Émile Zola. Le corpus

de ce mémoire est composé des descriptions de trois des espaces parisiens de sociabilité

présents dans le récit : le Théâtre des Variétés, le Passage des Panoramas et l’hippodrome de

Longchamp. Le roman Nana raconte la vie et la mort d’une courtisane pendant les trois

dernières années du Second Empire en France (1851-1870) et présente la vie moderne

parisienne, au moyen des descriptions qui peuvent être lues comme des descriptions

picturales (LOUVEL, 1997), celles-ci pouvant être identifiées par quelques marqueurs de

picturalité, comme la couleur, la lumière et aussi des références à certaines techniques

picturales. Dans le but d’analyser les descriptions picturales, un cadre théorique a été

construit, à fin de comprendre la trajectoire (BOURDIEU, 1996) d’Émile Zola dans le champ

littéraire français (BOURDIEU, 1996), en mettant en relief l’étroite relation du champ

littéraire avec le champ pictural, surtout les rapports de Zola avec les peintres

impressionnistes. La trajectoire de l’auteur de Nana a eu comme résultat une écriture picturale

dont les caractéristiques ont été analysées dans ce travail. De plus, l’on a cherché aussi à

établir un rapport entre quelques traits de picturalité – tels que thème et technique- de

l’écriture de Zola et des toiles impressionnistes -qui fixent des moments de la vie moderne -

des peintres qui partagent les idées esthétiques de Zola, notamment Edouard Manet, Auguste

Renoir et Jean Béraud. Cette étude a tenté de présenter une réflexion sur le rôle des

descriptions picturales dans la construction de l’intrigue du roman Nana. Les descriptions

picturales ont une fonction narrative dans le récit, qui dépasse les fonctions ornementale et

esthétique.

Mots-clés : Zola, Nana, description picturale, lieux de sociabilité.

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 - Árvore Genealógica dos Rougon-Macquart ....................................................... 28

FIGURA 2 - Émile Zola .......................................................................................................... 31

FIGURA 3 - Un atelier aux Batignolles .................................................................................. 33

FIGURA 4 - Un bar Aux Folies-Bergère ................................................................................ 38

FIGURA 5 - Círculo Cromático .............................................................................................. 41

FIGURA 6 - Bal du moulin de la Galette ................................................................................ 50

FIGURA 7 - Nascita di Venere ............................................................................................... 61

FIGURA 8 - DESENHO DA MESA DA CEIA DE NANA................................................... 70

FIGURA 9 - MENU DO JANTAR DOS FREYCINET ......................................................... 74

FIGURA 10 - CROQUI DA FACHADA DO THÉÂTRE DES VARIÉTÉS ......................... 78

FIGURA 11 - Représentation dans le Théâtre des Variétés ................................................... 81

FIGURA 12 - Boulevard des Capucines ................................................................................. 85

FIGURA 13 - Portrait de Charles-Edme Vernet ..................................................................... 91

FIGURA 14 - Portrait-charge de Charles-Edme Vernet ........................................................ 91

FIGURA 15 - Nana ............................................................................................................... 100

FIGURA 16 - Les courses au Longchamp ............................................................................ 110

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 12

2. APORTES TEÓRICOS DA PESQUISA: TEORIA DOS CAMPOS, CENA DA

ENUNCIAÇÃO, DESCRITIVO E DESCRIÇÃO PICTURAL ......................................... 15

2.1. A teoria dos campos de Pierre Bourdieu .................................................................... 15

2.2. Cena da enunciação e tribo de Dominique Maingueneau........................................ 19

2.3. Elementos da descrição segundo Philippe Hamon ................................................... 21

2.4. Descrição pictural e saturação de efeitos de picturalidade ...................................... 22

3. TRAJETÓRIA E O FAZER LITERÁRIO DE ÉMILE ZOLA..................................... 26

3.1. A trajetória de Émile Zola, relações com o campo artístico .................................... 26

3.2. A escrita pictural de Zola em Nana ........................................................................... 35

3.3. A preparação do romance Nana................................................................................. 44

4. A SOCIABILIDADE DO SEGUNDO IMPÉRIO EM NANA........................................ 48

4.1. Representações do Segundo Império francês em Nana ........................................... 48

4.2. Théâtre des Variétés, o teatro no romance naturalista ............................................ 51

4.3. A sociabilidade parisiense através da vida privada: a soirée na casa do Muffat e a

ceia na casa de Nana ........................................................................................................... 59

5. A PICTURALIDADE NAS DESCRIÇÕES DE LOCAIS DE SOCIABILIDADE EM

NANA ....................................................................................................................................... 77

5.1. Descrição do Théâtre des Variétés ............................................................................. 77

5.2. Descrição do Passage des Panoramas e retrato de Nana ......................................... 96

5.3. Descrição do hipódromo de Longchamp ................................................................. 103

6. CONCLUSÃO ................................................................................................................... 113

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................... 116

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1. INTRODUÇÃO

A ideia inicial dessa pesquisa de mestrado foi a leitura do romance Nana (1880)

durante a elaboração da monografia intitulada Uma leitura do trágico em Nana de Zola e Édipo Rei

de Sófocles (2015), que despertou meu olhar para o caráter plástico e imagético das descrições deste

romance, principalmente as descrições dos locais de sociabilidade inseridos nessa narrativa.

A proposta original do trabalho era realizar uma análise comparativa das descrições de locais

presentes em Nana com quadros de Edouard Manet. No entanto, ao longo desses dois anos de

pesquisa, foi percebido que a escrita de Zola evoca quadros de outros pintores, principalmente

aqueles que representam a estética impressionista. O tema deste trabalho é o estudo das

representações picturais de espaços e personagens e escolhas estéticas, no romance Nana

(1880) de Émile Zola, dando destaque às representações dos locais de sociabilidade

parisienses. A construção desse tema foi desenvolvida através de uma revisão bibliográfica

que visava compreender leituras já feitas sobre a relação de escritores, principalmente Zola,

com as artes visuais.

Dentre as principais leituras realizadas, cito as mais relevantes: Descrição pictórica:

A influência da pintura impressionista na literatura francesa do século XIX (CRISTOVÃO,

2009); As descrições picturais em Jettatura de Théophile Gautier (2002) e Literatura plástica

e Arte pela Arte nas narrativas de Théophile Gaitier: descrição pictural e posicionamento no

campo literário (2007) de Baltor; e o artigo de PATIÑO: La couleur en tant que symbole

impressionniste dans l'écriture d'Émile Zola (1993).

O primeiro trabalho aborda a estética pictural impressionista na literatura francesa do

século XIX. A autora realiza análises textuais a fim de atestar que as descrições em romances

naturalistas projetam a estética pictórica impressionista e compara as descrições de Émile

Zola com quadros impressionistas. Apesar de discordar de certos pontos da análise feita pela

autora, não há como negar que Zola conhece amplamente os recursos estéticos e temáticos do

impressionismo, na pintura. Contudo, considero que o autor buscou ir além desses

conhecimentos adquiridos e criou uma estética visual própria em seus romances.

A dissertação de mestrado e a tese de doutorado de Sabrina Baltor (2002, 2007)

trouxeram uma melhor compreensão de certos conceitos (a função da descrição na obra

narrativa de Théophile Gautier e a descrição pictural) que fundamentam este trabalho de

pesquisa. A autora realiza uma leitura clara dos aspectos plásticos da obra narrativa de

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Théophile Gautier e traz análises de descrições picturais em sua relação com a posição de um

autor no campo artístico.

Por último, cito Patiño (1993) cujo artigo aborda a maneira pela qual Zola se

constituiu enquanto um autor de olhar impressionista e como aplicou seus conhecimentos de

pintura em seus romances.

O quadro teórico desta pesquisa é constituído principalmente de três conceitos: o

conceito de campo, formulado por Pierre Bourdieu (1992), a descrição enquanto objeto

teórico como Philippe Hamon (1997) assim a apresenta e, finalmente, o conceito de descrição

pictural definido por Liliane Louvel (1997, 2002).

O problema de investigação pode ser formulado na seguinte pergunta: de que forma

plástica Zola representa a sociabilidade parisiense do Segundo Império francês e quais as

funções que essas representações, classificadas como descrições picturais, desempenham na

construção do enredo da obra Nana?

Para responder a esses problemas foram desenvolvidos quatro capítulos. O primeiro -

Aportes teóricos da pesquisa: teoria dos campos, cena da enunciação, descritivo e descrição

pictural- tem por objetivo apresentar e explicar o quadro teórico-metodológico que foi

utilizado para essa pesquisa.

O segundo capítulo intitulado -Trajetória e o fazer literário de Émile Zola-

apresenta a trajetória de Émile Zola como romancista, crítico de arte e sua proximidade com

os pintores impressionistas. Ainda neste capítulo é abordado como o resultado da trajetória de

Zola no campo literário e sua relação com o campo artístico repercutiram em sua escrita no

romance Nana. Por fim, ainda neste capítulo é discutida a preparação deste romance, feita por

Zola através de observação e documentação em forma de um dossiê preparatório (BECKER,

2006).

O terceiro capítulo da dissertação intitulado -A sociabilidade do Segundo Império em

Nana- propõe uma leitura dos espaços sociais em que circulam personagens da narrativa

Nana, representados através de alguns eventos como um baile, uma soirée, uma ceia na casa

de Nana e o Théâtre des Variétés.

O último local citado também é objeto de análise do último capítulo da dissertação, -A

picturalidade nas descrições de locais de sociabilidade em Nana-, que tem como objetivo

analisar a picturalidade das descrições de locais inseridos nessa narrativa. Neste capítulo da

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dissertação serão abordados os elementos picturais presentes nessas descrições, e também será

efetuada uma leitura comparativa de alguns iconotextos com diferentes manifestações das

artes visuais.

A pesquisa para a dissertação foi feita utilizando duas fontes principalmente: a edição

de referência do romance Nana (1983) publicada pela editora Gallimard, na coleção da

Pléiade e a versão do dossiê preparatório (2006) dessa obra organizada e transcrita por Colete

Becker. A leitura do dossiê foi fundamental para perceber o que Zola previu para este

romance, permitindo assim uma comparação com a versão final. Além disso, através do

estudo do dossiê foi possível atestar algumas características da escrita de Zola, tais como: as

fontes às quais o autor recorreu para se documentar e o fato de que as descrições dos locais

eram fundamentais, segundo a redação do autor, para a narrativa. Além dessas duas obras,

outras fontes de pesquisa foram imprescindíveis para a realização dessa dissertação, tais como

os portais da Gallica (acervo digital da Biblioteca Nacional da França), Persée (site que reúne

artigos e diversos documentos), J-Stor (sistema online estadunidense de periódicos

acadêmicos) e os artigos publicados na coleção dos Cahiers Naturalistes.

No intuito de ampliar o alcance desse estudo todas as citações em língua estrangeira

estão acompanhadas por traduções, inseridas nas notas de rodapé. A tradução da obra na qual

foi recortado o corpus dessa pesquisa foi realizada por Marcela Vieira e publicada em 2013.

Apesar de ser a mais recente tradução de Nana, ela apresenta alguns equívocos que

prejudicariam a análise de texto, caso esta tivesse sido realizada com a versão em português.

Portanto, a tradução que, às vezes, virá acompanhada de pequenas correções serve apenas de

apoio para o leitor, deixando claro que as análises de texto foram feitas a partir do original em

língua francesa.

Ao longo desses dois anos de pesquisa o tema foi adquirindo novas formas. Porém,

desde a etapa inicial a ideia era realizar uma análise das descrições ditas naturalistas, tentando

entender seu papel na construção da narrativa e é claro compreender de que forma a estreita

relação entre a pintura e a literatura se manifesta nas obras naturalistas. A hipótese de leitura

norteadora da pesquisa é a de que essa relação se manifesta nas descrições.

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2. APORTES TEÓRICOS DA PESQUISA: TEORIA DOS CAMPOS, CENA DA

ENUNCIAÇÃO, DESCRITIVO E DESCRIÇÃO PICTURAL

2.1. A teoria dos campos de Pierre Bourdieu

Este trabalho tem por objetivo compreender o sistema descritivo e o papel das

descrições picturais na composição do romance Nana. Neste sentido, para alcançar este

objetivo foi necessário buscar aportes teóricos que auxiliassem na análise dessas descrições

levando em conta a composição do discurso estético proferido por Émile Zola.

Esta pesquisa é suportada primeiramente pela teoria dos campos formulada pelo

sociólogo Pierre Bourdieu. Em seu livro O poder simbólico (2010), o autor apresenta a

justificativa para a criação de sua teoria, indicando que em primeiro lugar este termo – campo

– foi adotado como uma estratégia para direcionar sua pesquisa sobre análise textual. Pois,

segundo o sociólogo, este não era um conceito novo, já que:

(...) a noção serviu primeiro para indicar uma direção à pesquisa, definida

negativamente como recusa à alternativa da interpretação interna e da explicação

externa, perante a qual se achavam colocadas todas as ciências das obras culturais,

ciências religiosas, história da arte ou história literária. (BOURDIEU, 1996 A, p.64)

Como observado no trecho em destaque, o outro motivo da adoção do termo foi uma

recusa a alternativas de interpretações internas e explicações externas que estavam presentes

em estudos de todo tipo de ciência cultural. A interpretação interna é aquela análise pura do

texto que exclui o momento, afiliações e fatores externos da obra. Enquanto que a análise

externa efetua um caminho contrário integrando somente fatores externos. Sendo assim, o

sociólogo refuta essas análises e propõe a teoria dos campos.

A teoria dos campos diz respeito às lutas simbólicas ocorridas dentro de microcosmos

sociais, os quais são denominados por Bourdieu como campo, este que normalmente possui

dois polos, um lado dominado e outro, um lado dominante. Essas duas posições implicam em

instâncias de poder que estão relacionadas a conflitos duplos, principalmente partindo

daqueles que estão no polo dominado do campo buscando ocupar posição dominante.

Esclarecendo que as posições no campo não são solidificadas, o autor contextualiza sua teoria

utilizando o século XIX em que a poesia, “arte pura”, ocupava posição dominante no campo,

mas era economicamente dominada. No recorte temporal feito pelo sociólogo francês, a

poesia não era tão lucrativa quanto o romance popular, o romance folhetim e o vaudeville1.

1 O vaudeville foi um gênero de teatro popular a partir da segunda metade do século XVIII.

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Além disso, a teoria faz referência aos microcosmos sociais, os campos e estes têm suas

próprias leis e estruturas.

Em outro livro, Razões práticas (1996), Bourdieu explica o caráter inovador da teoria

dos campos ao cunhar o conceito de grupo, e este pode ser compreendido como o produtor de

um produto cultural, isto é, uma obra. O grupo pode ser representado por um conjunto de

clérigos, advogados, escritores ou artistas. Cada grupo produz seus próprios produtos

seguindo as leis e estruturas dentro do campo em que estão inseridos. O romance Nana, por

sua vez, escrito por Émile Zola, é um produto cultural resultante das ações do grupo em que

estava inserido esse autor. O grupo do qual fazia parte Émile Zola se constituía por escritores

naturalistas, como Joris-Karl Huysmans (1848-1907) e os irmãos Edmond (1822-1896) e

Jules (1830-1870) de Goncourt; escritores de outas estéticas como Sthéphane Mallarmé

(1842-1898) e pintores como Paul Cézanne (1839-1906), Édouard Manet (1832-1883) e

Auguste Renoir (1841-1919); e seu editor Georges Charpentier (1846-1905).

Cada grupo apresenta um espaço de possíveis, uma determinada possibilidade da

criação de produtos culturais dentro das leis e estruturas daquele campo. Para Bourdieu “esse

espaço de possíveis é o que faz com que os produtores de uma mesma época sejam ao mesmo

tempo situados, datados, e relativamente autônomos em relação às determinações do ambiente

econômico e social” (BOURDIEU, 1996 A, p.53). O espaço de possíveis é o responsável pela

criação e circulação de uma obra e levará em conta um determinado discurso e possíveis

escolhas estéticas. A maneira pela qual a obra Nana foi escrita está inserida dentro do espaço

de possíveis, ou seja, utilizando todas as possibilidades estéticas das quais Zola dispunha para

elaborar esta obra da forma tal como ela foi feita.

Todo campo se coloca dentro do espaço social ao se opor, isto é, através de suas

diferenças. Essa relação opositora define a própria existência de um escritor, revista ou

estética, tendo em vista as diferenças que separam um escritor naturalista de um simbolista

por exemplo. São pelas diferenças que distintos campos existem, como o campo literário.

O campo literário comporta todos os agentes responsáveis pela criação e circulação de

uma obra literária, principalmente os escritores e editores. O campo literário possui regras e

estruturas como outros campos existentes dentro da esfera social, como o jurídico, o artístico

ou o religioso. Sendo assim, este microcosmo social implica em relações objetivas entre

posições, isto é, nas diferenças causadas por diferentes posições dentro do campo. A posição

determina a localização de um agente. Para entender esta relação deve-se situar cada agente

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ou cada instituição em suas relações objetivas com todos os outros agentes/instituições. Cada

agente vincula-se a capitais específicos, estes a que se refere Bourdieu, representam valores

dos agentes dentro do campo. Os capitais podem ser vários, como o econômico (dinheiro,

bens, obra de arte), social (boas relações profissionais e políticas), simbólico (reconhecimento

e prestígio) e cultural (diplomas, conhecimentos artísticos ou enciclopédicos). A posição no

campo ocupada por Émile Zola durante a elaboração do romance Nana será tema do

subcapítulo 3.1.

Pierre Bourdieu contextualiza a situação do campo literário no final do século XIX,

que durante a época mencionada apresentava uma luta complexa entre “arte pura”, a poesia, e

a comercial -teatro tradicional e arte industrial-. A “arte pura” apesar de ocupar a posição

dominante no campo é comercialmente dominada. Acontece o inverso com a arte comercial

que ocupava posição economicamente dominante, mas era simbolicamente dominada. É o que

ocorre, por exemplo, com a produção literária de Émile Zola e seu grupo de escritores

naturalistas cujo sucesso de público e venda era expressivo, porém o valor simbólico perante a

Academia francesa era praticamente nulo. Bourdieu esclarece que os intelectuais atuantes no

campo do poder e literário normalmente são ricos em capital cultural e pobres em capital

econômico.

O campo literário apresenta relações próximas com outros campos, como o campo

artístico2 e o campo do poder, esses estão inseridos dentro de um mesmo local, o espaço

social. Na obra Razões Práticas (1996), Bourdieu insere um diagrama (BOURDIEU, 1996,

p.67) que auxilia na compreensão da posição que o campo artístico ocupava em relação ao

campo do poder. O campo artístico ocupava uma posição dominante dentro do campo do

poder, este que está situado no polo dominante do espaço social. Segundo Bourdieu, o campo

do poder é:

(...) o espaço das relações de força entre agentes ou instituições que têm em comum

possuir o capital necessário para ocupar posições dominantes nos diferentes campos

(econômico ou cultural, especialmente). Ele é o lugar de luta entre detentores de

poderes (ou de espécies de capital) diferentes que, como as lutas simbólicas entre os

artistas e os “burgueses” do século XIX, têm por aposta a transformação ou a

conservação do valor relativo das diferentes espécies de capital que determina, ele

próprio, a cada momento, as forças suscetíveis de ser lançadas nessas lutas.

(BOURDIEU, 1996 B, p. 244)

Assim como o campo do poder e o campo artístico, lutas ocorridas em outros campos

podem interferir nas posições ocupadas dentro do campo literário. Um campo cujas lutas

2 A relação estreita entre o campo literário e o campo artístico será tema do subcapítulo 3.1.

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interferem no campo literário é o campo de produção cultural. Dentro deste campo, há dois

subcampos: o subcampo de produção restrita, no qual os produtores têm como clientes apenas

outros produtores e o subcampo de grande produção cultural que não precisa do

reconhecimento dos pares.

As posições no campo podem sofrer mudanças, isto é, em um determinado momento

um agente pode estar em posição dominante durante uma certa época e em outra, ocupar

posição dominada dentro do campo. Além disso, um agente pode decidir por própria vontade

mudar sua posição perante o regimento do campo, essa mudança pode ser denominada como

tomada de posição, esta pode ser realizada através de obras, manifestos ou manifestações

políticas. Certas tomadas de posição podem significar transformações radicais, as quais

Bourdieu nomeia como revoluções literárias ou artísticas.

Dentro do campo literário há lutas literárias, as tomadas de posição, cuja existência

está ligada à posição ocupada dentro da estrutura do campo. Ainda assim, toda tomada de

posição está inserida num espaço de possibilidades herdado de lutas anteriores. Bourdieu

define a tomada de posição da seguinte maneira:

(...) cada autor, enquanto ocupa uma posição em um espaço, isto é, em um campo de

forças (irredutível a um simples agregado de pontos materiais), que é também um

campo de lutas visando conservar ou transformar o campo de forças, só existe e

subsiste sob as limitações estruturadas do campo (por exemplo, as relações objetivas

que se estabelecem entre os gêneros); mas também que ele afirma a distância

diferencial constitutiva de sua posição, seu ponto de vista, entendido como vista a

partir de um ponto, assumindo uma das posições estéticas possíveis, reais ou

virtuais, no campo de possíveis (tomando, assim, posição em relação a outras

posições). (BOURDIEU, 1996 A, p.64)

Em outras palavras, as lutas literárias, as tomadas de posição, implicam em mudanças

que podem gerar inclusive uma revolução simbólica nas estruturas e leis de um campo. A

mudança nas posições ocorre através de tensões entre as posições e o resultado dessas lutas

nunca é completamente independente de fatores externos. As lutas no campo são percebidas

como um combate dicotômico entre inovadores (aqueles que querem modificar a estrutura do

campo) e conservadores (os agentes que buscam manter seu regimento), ou seja, aqueles que

ocupam posição dominante e aqueles que ocupam posição dominada respectivamente.

Durante uma vida, um escritor situado no campo literário pode ocupar diferentes

posições. Este caminho percorrido por um agente dentro dos espaços possíveis do campo

corresponde à trajetória; esta define-se como a série de posições sucessivamente ocupadas

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por um mesmo agente ou grupo dentro do campo. Nas palavras de Bourdieu, a trajetória3

apresenta o seguinte significado:

Toda trajetória social deve ser compreendida como uma maneira singular de

percorrer o espaço social, onde se exprimem as disposições do habitus; cada

deslocamento para um nova posição, enquanto implica a exclusão de um conjunto

mais ou menos vasto de posições substituíveis e, com isso, um fechamento

irreversível do leque dos possíveis inicialmente compatíveis, marca uma etapa de

envelhecimento social que se poderia medir pelo número dessas alternativas

decisivas, bifurcações da árvore com incontáveis galhos mortos que representa a

história de uma vida. (BOURDIEU, 1996 B, p. 292)

Ou seja, cada escolha seria uma renúncia oriunda do habitus que exclui outras

ramificações e outras possibilidades. Há diferentes tipos de trajetórias, as trajetórias

ascendentes que podem ser diretas (daqueles escritores provenientes das classes populares ou

classe média) ou cruzadas (escritores saídos da pequena burguesia). O habitus mencionado

por Bourdieu se refere ao comportamento, gestos, atitudes nem sempre conscientes realizadas

por um agente. O habitus é individual, pois ele reflete a educação e a inserção de um agente

dentro de um sistema de valores.

Enfim, uma análise de uma obra baseada na teoria dos campos significa um estudo

que leva em consideração a trajetória do escritor, o grupo do qual este escritor faz parte, ou

seja, é entendido que o preparo de uma obra não é um produto cultural resultante de uma

inspiração instantânea, tampouco ela reflete somente o período histórico durante o qual foi

produzida.

2.2. Cena da enunciação e tribo de Dominique Maingueneau

O linguista francês Dominique Maingueneau propõe dois conceitos que serão úteis

para esta pesquisa: cena da enunciação e tribo.

Um conceito que será utilizado para a fundamentação desta pesquisa é a cena da

enunciação, que compreende três partes: a cena genérica, a cena englobante e a cenografia.

A cena englobante corresponde àquilo que se costuma entender por tipo de discurso,

por exemplo, tendo em vista que o romance Nana é uma obra naturalista, cria-se uma

expectativa sobre o enredo, já que durante o século XIX romances como L’Assommoir (1877)

também de autoria de Émile Zola, causaram espanto ao serem recebidos pelo público devido a

sua trama considerada imoral para os valores da época.

3 A trajetória de Émile Zola será tema do subcapítulo 3.1.

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Já a cena genérica está relacionada com o gênero. Dessa forma, Nana apresenta uma

cena genérica de romance escrito em prosa, caso ele tivesse sido escrito através de poemas, a

cena genérica seria outra.

Há ainda, a cenografia que corresponde à grafia da cena e de que forma a cena do

texto é composta. A cenografia não se designa, ela se mostra correspondendo dessa forma ao

caráter teatral da cena. O romance Nana apresenta uma cenografia de um narrador

extradiegético4 que frequentemente delega o ponto de vista da narração a um personagem do

enredo, principalmente nos momentos em que é iniciada uma descrição.

Portanto, segundo o verbete cena da enunciação retirado do Dicionário de Análise do

discurso, este conceito tem segundo Maingueneau o seguinte significado:

(...) ao falar em “cena da enunciação”, acentua-se o fato de que a enunciação

acontece em um espaço instituído, definido pelo gênero de discurso, mas também

sobre a dimensão construtiva do discurso, que se “coloca em cena”, instaura seu

próprio espaço de enunciação. (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2008, p.95)

A cena da enunciação seria então a soma de três elementos: a cena englobante, a cena

genérica e a cenografia. Esta pesquisa tem por objetivo a compreensão da cenografia das

descrições picturais do romance (cena genérica) naturalista (cena englobante) Nana.

O segundo conceito de Maingueneau útil para esta pesquisa é o de tribo, este que

corresponde a um grupo de literatos com os quais um determinado escritor tem relações

próximas e outros inseridos por ele em seu panteão pessoal.

Ao contrário do conceito de grupo proposto por Bourdieu, cuja teoria não corresponde

a uma análise transhistórica, permitindo que um grupo seja composto por escritores, pintores,

jornalistas, editores entre outros, o conceito de tribo é estritamente literário e pode

corresponder a escritores não contemporâneos. Citando Maingueneau, a tribo seria:

A existência de uma tribo não implica necessariamente frequentar sempre os

mesmos lugares; ela pode resultar de trocas de correspondências, de encontros

ocasionais, de semelhanças nos modos de vida, de projetos convergentes. Há assim,

certo número de “tribos invisíveis”, que desempenham um papel na arena literária,

sem por isso assumirem a forma de um grupo constituído. Além disso, todo escritor

se situa numa tribo escolhida, a dos escritores passados ou contemporâneos,

conhecidos pessoalmente ou não, que ele inclui em seu panteão pessoal e cujo modo

de vida e cujas obras lhe permitem legitimar sua própria enunciação.

(MAINGUENEAU, 2006, p. 96)

Para Émile Zola, sua tribo corresponderia à aquela dos escritores de Soirées de Médan,

os escritores cujas reuniões eram feitas na casa de Zola, em Médan; Os frequentadores do

4 Segundo Genette (1972), o narrador extradiegético não é um personagem da história, tampouco está inserido

nela.

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jantar Boeuf nature5; o romancista Honoré de Balzac (1799-1850), escritor inserido por Zola

em seu panteão pessoal cujo projeto literário, La Comédie Humaine (1829-1850) teria

servido de modelo para o projeto literário de Zola, Les Rougon-Macquart (1871-1893); e

outros dois escritores que foram amigos de Zola e lhe inspiraram admiração devido a sua

escrita, os irmãos Goncourt. Em um artigo publicado no jornal Le Messager de L’Europe,

em outubro de 18756, Zola escreveu que os irmãos Goncourt são mestres cuja escrita dá à

descrição de objetos, paisagens e dos seres um teor sensível, afirmando assim que os irmãos

Goncourt são os produtores do naturalismo da sensação. (MITTERAND, 2001, p. 282)

2.3. Elementos da descrição segundo Philippe Hamon

O terceiro aporte teórico importante para esta dissertação é o trabalho de Philippe

Hamon que sustenta a descrição enquanto objeto teórico no livro Du Descriptif publicado em

1981. Nesta obra, o autor efetua um esforço teórico ao advogar o descritivo enquanto objeto

teórico tendo em vista a preterição da descrição em relação à narração. Ainda neste trabalho, o

autor aponta a percepção que esse recurso narrativo obteve durante a história. Por muito

tempo, a descrição foi percebida como uma função narrativa subordinada à narração, ou como

uma prática que não contribuía para o enredo da narrativa. Hamon pontua que o naturalismo

por sua vez sofreu críticas exatamente por causa de suas descrições, consideradas extensas e

infundadas.

Hamon também esclarece o significado de sistema descritivo. Este conceito auxiliou a

compreensão deste sistema formulado por Zola em Nana. Neste romance, as descrições, em

especial aquelas que interessam este trabalho, as de locais, têm um espaço específico na

narrativa. Elas estão, em sua maioria, sempre situadas no início de cada capítulo,

apresentando-se assim como um portal estratégico para o enredo daquela parte da diegese7.

A leitura da descrição também é abordada por este autor, que nos leva a entender por

que muitos leitores saltam uma descrição por avaliarem que elas são entediantes. Hamon

caracteriza o tempo de leitura, este que pode variar caso o leitor esteja lendo um diálogo

(tempo de leitura menor) ou uma descrição (tempo de leitura maior).

5 Jantar mensal cujos frequentadores incluíam vários escritores naturalistas, como Zola, Huysmans, os irmãos

Goncourt, Paul Aléxis e outros. Este jantar será melhor detalhado no subcapítulo 4.2. 6 Não obtive acesso direto a este jornal, porém trechos deste artigo foram publicados na biografia de Zola escrita

por Henri Mitterand (2001) 7 Termo utilizado por Gerard Genette (1972) para definir o universo da narrativa.

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Hamon define também o que seria a competência descritiva. Um personagem, a fim de

obter a capacidade de descrever, deve passar por certas etapas. Ele deve → querer ver →

saber ver → poder ver → ver → para finalmente descrever. Ou seja, em primeiro lugar, o

personagem deve ter a vontade de ver algo, relacionando este aspecto com o aporte teórico de

Liliane Louvel, o personagem deve estar em posição de voyeur. Em seguida, o personagem

deve poder ver, isto é, ele deve ter os saberes específicos a fim de descrever determinado

cenário. Um exemplo que ilustra bem a competência narrativa é a cena em que o Capitão

Nemo na obra Vingt mille lieues sous les mers8(1870), de Jules Verne, descreve a partir da

janela do submarino Náutilus, a imensidão de peixes presentes no oceano. O capitão Nemo,

um conhecedor dos mares, tem a capacidade descritiva para descrever aquela cena. Além

disso, a janela a partir da qual ele descreve a cena citada está ligada ao poder ver e para o

personagem ter essa habilidade ele deve estar em um espaço privilegiado para a visão, para

poder ver e finalmente descrever.

A visão de um personagem determina a composição de uma descrição, o que Hamon

contextualiza como o olhar descritor. Há momentos durante a narrativa em que o narrador

delega a descrição a um personagem que através de seus olhos assumirá aquela descrição.

Através do olhar deste personagem, uma cena pode tornar-se um espetáculo, vista, cena ou

quadro. Toda cena ou quadro implica uma mise en scène, uma cenografia. O olhar do

personagem deve ser justificado, pois a descrição não deve ser arbitrária. Como exemplo, é

possível utilizar a cena em que, na obra Nana, o Conde Muffat observa Nana se observando

no espelho. A descrição delegada à personagem masculina é justificada, pois Muffat

apaixonado por Nana quer a todo instante vê-la. Além de tudo, a descrição feita através de

seus olhos não é arbitrária, pois define não somente a aparência física da protagonista, como

também, sua personalidade e sua função dentro da diegese.

2.4. Descrição pictural e saturação de efeitos de picturalidade

Como mencionado anteriormente, esta pesquisa utiliza o conceito de descrição

pictural, explorado pela autora Liliane Louvel no artigo La description picturale; pour une

poétique de l’iconotexte (1997) e no capítulo Modalités du pictural de seu livro Texte Image:

images à lire, textes à voir (2002).

8 Em português Vinte Mil Léguas Submarinas.

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No artigo, Liliane Louvel ressalta alguns pontos discutidos por Hamon, principalmente

o ponto que esclarece a preterição da descrição em relação à narração. Ainda neste artigo, ela

faz uma revisão da literatura que discorre sobre a descrição pictural, principalmente os

trabalhos de críticos como Viola Winner e Jon Hastrum que definem a descrição pictural com

argumentos subjetivos, da ordem da interpretação pessoal. A autora questiona esses

argumentos e propõe uma outra maneira de identificar uma descrição enquanto pictural.

Segundo este artigo a análise deve ser feita com elementos do texto, esses que ela define

enquanto indicadores de picturalidade.

Portanto, a descrição pictural é definida da seguinte forma por Liliane Louvel:

Estabeleçamos que uma descrição será dita “pictural” quando a predominância de

“marcadores” da picturalidade, aquilo que faz com que uma imagem seja artística,

seja um artefato, será irrefutável e que passarão a segundo plano a intenção didática,

as referências aos saberes matésico, mimésico, etc.9 (LOUVEL, 2006, p. 195)

Ainda segundo a autora, a descrição pictural interrompe a narrativa num efeito de

expansão, de dilatação, um ponto também abordado por Hamon que define esta instância

como tempo de leitura. A descrição classificada enquanto pictural recorre ao imaginário, em

sua capacidade de memorização. Ademais, a função deste tipo de descrição não é didática ou

pedagógica: sua principal função é a poética.

Outro ponto do artigo de Louvel que pode ser relacionado com o trabalho de Hamon é

o da competência. Assim como Hamon, Louvel assinala que a descrição testemunha a

competência linguística do narrador, pois ela é um lugar das articulações do querer, saber,

poder dizer, ver e fazer. Pois, os saberes convocados pela descrição pictural fazem apelo à

capacidade do personagem.

Como mencionado, Louvel estipula uma nova forma de analisar a descrição, através

de dispositivos específicos, denominados marcadores de picturalidade. São eles:

o O personagem deve poder ver. Se achar face a um espaço que seu olhar deve estar em

condições de atravessar. Um topos10 como janela, portas, sacadas, frisas e balcões de

teatro, situações elevadas e outros lugares privilegiados.

9 Tradução de Márcia Arbex. Original : « Posons qu’une description sera dite “picturale” lorsque la

prédominance de « marqueurs » de la picturalité, ce qui en fait une image artistique, un artefact sera irréfutable et

que passeront à l’arrière-plan l’intention didactique, les références aux savoirs mathésique, mimésique, etc. »

(LOUVEL, 1997, p. 477) 10 Um lugar-comum retórico na literatura e nas artes visuais.

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o Quando localizadas em início ou fim de capítulo, as descrições picturais marcarão sua

importância como portais estratégicos no texto. Esse ponto está relacionado à

tipografia do texto.

o Inserção de um personagem pintor, pois o olhar desse personagem familiarizado com

o pictórico irá descrever uma cena de maneira excepcional, como é o caso do

personagem Claude Lantier, irmão de Nana, que no romance Le Ventre de Paris

(1873) visualiza a região dos Halles de maneira completamente vívida e pictural, ao

contrário do personagem que o está acompanhando, Florent.

o Os dêiticos: acima, baixo, esquerda, direita, ao fundo, perto, longe e outros. Eles

servem para apontar o quadro como tal, designam lugar e tempo da imagem.

o Efeito de enquadramento: operadores de abertura e fechamento da descrição pictural.

o Personagem em posição de voyeur (está ligado ao querer ver, como Hamon também

esclarece.)

o Descrição de um objeto enquanto artefato.

o Tempos e aspectos: a narrativização da descrição pictural aparece através de verbos

conjugados no pretérito imperfeito e particípios passados utilizados com valor de

adjetivo. Esses tempos e aspectos são os responsáveis por causar o efeito de dilatação

no texto.

o Uso da comparação: “Como se fosse um quadro”, “Como um quadro”. Essas

metáforas exigem que o leitor recorra às imagens de quadros em sua memória.

o Cores, formas e diferentes formas de iluminação; efeitos de claro-escuro, esfumato.

o Léxico pictórico: pincelada, nuances.

o Referências a gêneros pictóricos.

o Material do pintor: óleo, cavalete, paleta, pincel.

A partir da quantidade de marcadores de picturalidade, as descrições picturais podem

ser classificadas de acordo com a saturação do pictural em sete categorias: efeito-quadro, vista

pitoresca, hipotipose, quadro-vivo, arranjo estético ou artístico, descrição pictural e écfrase. A

partir de análises já realizadas anteriormente, as descrições picturais de locais presentes na

obra naturalista Nana podem ser classificadas em descrição pictural efeito-quadro ou

tableaux-vivants.

A descrição pictural de efeito-quadro pode ser definida da seguinte maneira:

O efeito-quadro, o resultado do surgimento dentro da narrativa de imagens-pinturas,

produz um efeito de sugestão de tal força que a pintura parece assombrar o texto,

mesmo na ausência de alguma referência direta seja à pintura de modo geral seja a

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um quadro particular. O pictural se impõe mimetizando o retorno do recalcado. A

impressão pictural será, então, da ordem do índice ou de um rastro, uma evocação, a

sombra do texto, como seu duplo. (LOUVEL, 2002, p.34)11

A descrição pictural de efeito-quadro está relacionada à recepção do leitor, ao ler este

tipo de descrição ele pensa “parece um quadro” ou “essa descrição parece impressionista”.

Esta forma de descrição é a forma mais diluída da inserção do pictural no texto.

Por outro lado, a descrição pictural classificada enquanto tableau-vivant se apresenta

quando um personagem é visto estático numa pose percebida como artística, mimetizando as

posturas que as pessoas faziam a fim de criar os tableaux-vivants, um gênero pictórico teatral

cujas manifestações artísticas eram feitas por humanos que reproduziam telas famosas.

(LOUVEL, 2006, p.39)

11 Tradução nossa. Original : « L’effet-tableau, résultat du surgissement dans le récit d’images-peintures, produit

un effet de suggestion si fort que la peinture semble hanter le texte en l’absence même de toute référence directe

soit à la peinture en général soit à un tableau en particulier. Le pictural s’impose, mimant le retour du refoulé.

L’impression picturale serait alors de l’ordre de l’indice ou de l’empreinte, une évocation, l’ombre portée du

texte, comme son double. » (LOUVEL, 2002, p.34)

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3. TRAJETÓRIA E O FAZER LITERÁRIO DE ÉMILE ZOLA

3.1. A trajetória de Émile Zola, relações com o campo artístico

Émile Zola (1840-1902), nos dias atuais, é lembrado como um dos escritores mais

eminentes da literatura francesa. Um fato curioso, pois o autor, filho de pais italianos, apenas

conseguiu nacionalidade francesa em 1862, vinte e dois anos após seu nascimento em Paris.

Apesar do autor de Nana ter nascido na capital francesa, cresceu na cidade de Aix-en-

Provence região sulista da França. Lá, Zola conheceu Paul Cézanne, o que se tornaria o

primeiro episódio na sua trajetória enquanto um escritor, crítico de arte e que deu apoio aos

pintores “recusados”12.

Um detalhe da vida de Zola parece destoar da biografia de escritor, pois ele foi

reprovado duas vezes no baccalauréat13 por causa da língua francesa, avaliada como

insatisfatória. No entanto, Zola demonstrava afinidade com o desenho, o que lhe rendeu um

prêmio.

A carreira literária de Zola começa muito cedo, porém seu registro oficial é o ano de

1864 com a publicação de Les Contes à Ninon (1874), um livro de contos que ainda não

apresenta longas descrições e que não é resultado de observação e documentação, traços esses

que são características expressivas do movimento que Zola viria integrar, o naturalismo.

Antes de dar início ao seu projeto literário, Zola trabalhou na livraria Hachette, onde

aprendeu estratégias de publicidade editorial, pois ele ocupava o cargo de diretor de

publicidade (BECKER, 2007, p.3). Essa experiência na livraria Hachette teria sido

fundamental para o sucesso dos livros de Les Rougon-Macquart.

Concomitantemente ao seu ofício de diretor de publicidade, Zola publicava artigos

sobre diversos assuntos, como arte, teatro e corridas de cavalos. A relação de Zola com os

jornais é outro ponto relevante para sua trajetória no campo literário, pois todos as obras de

Les Rougon-Macquart foram publicadas em jornais antes da publicação em volume, fato que

fez com que os romances de Zola fossem amplamente comentados pela população, o que por

consequência gerou uma alta tiragem dos volumes de Les Rougon-Macquart.

Em 1869, Zola envia a Albert Lacroix, seu primeiro editor, o primeiro esboço de Les

Rougon-Macquart. No entanto, ele o modificará em 1872 quando Georges Charpentier se

12 Utilizaremos o termo “recusados” para nomear os pintores cujas telas não foram aceitas no Salão Oficial de

Pintura e Escultura e decidiram, então, expor seus quadros em um salão intitulado “Salon des refusés” em 1863. 13 Um exame que equivale ao diploma nacional na França, que é realizado após a conclusão dos estudos

secundários. Caso o resultado deste exame seja satisfatório, o aluno titular de um diploma de baccalauréat pode

ingressar na faculdade.

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torna seu editor. Esse editor exerce um papel de grande importância na carreira do romancista,

pois além de incentivar a produção literária de Zola, ele lhe informa detalhes necessários para

a documentação de seus romances. O primeiro livro de Émile Zola publicado pelo editor

Charpentier é Le ventre de Paris (1873), uma obra que apresenta as características estilísticas

e temáticas que Zola retomaria em todas as outras obras, como longas descrições,

apresentação de regiões parisienses e inserção das tramas em um momento específico do

Segundo Império francês (1852-1870).

Les Rougon-Macquart é título do projeto literário de Émile Zola, através do qual o

romancista buscou representar diferentes vivências dos membros de uma família ao longo de

um determinado período político, o Segundo Império francês. Para atingir seu objetivo, Zola

planejou vinte romances, que foram publicados entre 1871 e 1892. Ao longo das vinte obras,

alguns personagens são recorrentes, o que é uma característica similar ao projeto literário de

Honoré de Balzac, La Comédie Humaine (1829-1850), colocando-o na tribo de Zola, seu

panteão pessoal. Entretanto, os projetos de Zola e Balzac têm algumas diferenças; Zola

enfocou os membros de uma única família e inseriu um aspecto fundamental, a

hereditariedade, como o autor explicou no prefácio da primeira obra desse projeto, La Fortune

des Rougon (1871):

L’hérédité a ses lois, comme la pesanteur. (…)

Je tacherai de trouver et de suivre, en résolvant la double question des tempéraments

et des milieux, le fil qui conduit mathématiquement d’un homme à un autre homme.

(ZOLA, 1960, p.3)14

Além da hereditariedade, dois outros fatores são importantes para Zola: o

temperamento e o meio. Zola, através do método experimental, vai descrever de que forma a

hereditariedade se manifesta num membro da família Rougon-Macquart, de acordo com o

meio onde ele está inserido e seu resultado é o seu caráter e o seu comportamento. No

romance Nana, a protagonista, filha de pais alcoólatras e pobres, desenvolve um caráter

indiferente ao sofrimento dos homens com quem se relaciona e destrutivo em relação a

objetos e pessoas.

A configuração da família de Les Rougon-Macquart sofreu algumas modificações ao

longo das publicações dos vinte romances. A última versão da árvore genealógica,

posicionada abaixo, da família foi publicada em 1892 junto com o último volume da série, Le

Docteur Pascal (1893).

14 Tradução livre: A hereditariedade tem suas leis, como a gravidade. Eu me empenharei em achar e seguir,

resolvendo a dupla questão dos temperamentos e dos meios, o fio que conduz matematicamente de um homem a

outro.

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FIGURA 1

Árvore Genealógica dos Rougon-Macquart

(ZOLA, 1893, p.172)

Émile Zola foi um dos escritores do movimento literário naturalista, do qual também

fizeram parte, entre outros, os irmãos Edmond e Jules de Goncourt, Guy de Maupassant e

Alphonse Daudet. O movimento literário naturalista tinha por preceito principal a observação

e documentação do comportamento dos seres humanos e privilegiou como gênero, o romance.

Porém, como David Baguley afirma, não havia um consenso em relação à teoria

naturalista, nem um acordo em relação ao seu nome, pois enquanto Zola preferia o termo

naturalista, Edmond de Goncourt apreciava o termo naturista (BAGULEY, 1995, p.31). Os

desacordos iam além de qual nome adotar para o movimento literário formado por esse grupo

de escritores. No entanto, Zola foi o responsável por fazer uma ligação do naturalismo com a

filosofia positivista, ideais que ele adquiriu através da sua relação com Hippolyte Taine.

Há, ainda, dois eventos importantes na trajetória de Émile Zola enquanto escritor

naturalista: o jantar Trapp e a publicação do compêndio Les soirées de Médan (1880). O

primeiro foi um evento gastronômico, em 1877, no qual participaram Zola, Joris-Karl

Huysmans, Paul Alexis, Guy de Maupassant e Octave Mirbeau. Este evento foi marcado

como a inauguração da escola naturalista (BROWN, 1995, p.19). Já, a publicação das Soirées

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de Médan é o resultado de jantares rotineiros na casa de Zola, em Médan, que era frequentada

semanalmente por jovens escritores, como Paul Alexis, Marius Roux, Léon Hennique, Henri

Céard, Huysmans e Maupassant, os quais junto com Zola publicaram contos reunidos nesse

volume em 1880.

Zola, em Le roman expérimental (1880), declara que a origem do método literário

experimental vem da medicina experimental, cujo método foi proposto por Claude Bernard.

Este método visa -através da observação e documentação voltadas para a interação social e

visita de locais- a construção de narrativas que representem o comportamento da sociedade

francesa do Segundo Império francês. Para Baguley, o método experimental literário de

Émile Zola é uma combinação das teorias de Hippolyte Taine e Claude Bernard:

La théorie de la méthode expérimentale, ou plus précisément cette combinaison des

idées de Taine et de Bernard, a pour Zola, deux avantages majeurs. Taine lui permet

d’appliquer la méthode scientifique à la sphère sociale, domaine du romancier,

tandis que Bernard lui permet d’aller au-delà, du simple réalisme. (BAGULEY,

1995, p. 40)15

O principal resultado do método experimental literário foi o já citado projeto de Zola

Les Rougon-Macquart, cujo subtítulo Histoire naturelle et sociale d'une famille sous le

Second Empire16, já expressa os objetivos principais do autor: representar e explicar, em uma

perspectiva científica, o que a observação dos vários membros de uma família permite

deduzir a respeito de características hereditárias e comportamentos resultantes de seu meio

social.

Les Rougon-Macquart é composto de vinte romances, dos quais vários alcançaram um

alto número de tiragens, tais como L’Assommoir (1877), Germinal (1885) e Nana (1880).

Todos os volumes literários de Émile Zola abordam uma característica comum a um grupo de

personagens. L’Assommoir, por exemplo, trata de um grupo de operários e também do

alcoolismo. Germinal acompanha o desenrolar de uma greve de mineradores de uma mina de

carvão. E Nana, o mundo das cortesãs e de um teatro parisiense.

Nana narra a vida de uma personagem que já havia sido introduzida em L’Assommoir,

cuja protagonista é Gervaise Macquart. Gervaise é a mãe de Anna Coupeau, a Nana da obra

homônima. A circulação de personagens nos vinte romances que compõem Les Rougon-

Macquart é frequente, pois todas as obras tratam de uma mesma família e do modo como a

neurose, uma condição hereditária, se manifesta em cada um dos seus membros. Para compor

15 Tradução livre: A teoria do método experimental ou, mais precisamente, esta combinação das ideias de Taine

e de Bernard, teve para Zola, duas grandes vantagens. Taine lhe permite aplicar o método científico à esfera

social, enquanto que Bernard lhe permite ir além do simples realismo. 16 História natural e social de uma família sobre o Segundo Império.

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o romance Nana, Zola registrou em seu dossiê preparatório as pessoas que entrevistou, os

locais que frequentou e estudos que fez a fim de que esta obra obedecesse, o máximo

possível, ao método experimental.

Este trabalho se interessa especificamente pelas descrições presentes no romance, pois

elas representam os locais por onde transita Nana, como o Théâtre des Variétés, o Passage des

Panoramas e o hipódromo de Longchamp. Trata-se de descrições picturais (LOUVEL, 2006),

que podem ser lidas como uma expressão da integração de Émile Zola num grupo de agentes,

conceito proposto pelo sociólogo Pierre Bourdieu (1996).

O conceito de grupo de agentes definido por Bourdieu se aplica a um grupo de pessoas

que atuam em campos convergentes, como a estreita relação dos campos literário e artístico

no século XIX. O conceito de grupo de agentes compreende um conjunto de indivíduos que

compartilham interesses, preceitos estéticos, trocam correspondência e frequentam os mesmos

lugares. O grupo de agentes do qual fazia parte Émile Zola compreendia escritores, como os

naturalistas já citados, editores como Georges Charpentier e pintores como Paul Cézanne,

Edgar Degas, Claude Monet, Henri Fantin-Latour e Edouard Manet.

A relação de Émile Zola com pintores começa desde a infância e adolescência vivida

em Aix-en-Provence, onde o romancista se torna amigo de Cézanne. Ambos compartilhavam

interesses como o romantismo e o desenho, este inclusive, como já referido, rendeu a Zola um

prêmio. Aliás, sua habilidade com o desenho lhe será útil na pesquisa e elaboração dos

romances de seu projeto literário, pois ele fazia croquis de certos lugares que inseriria em suas

narrativas. A amizade de Émile Zola e Cézanne durou por décadas e é possível que essa

relação tenha trazido ao romancista uma facilidade em estreitar laços com outros pintores,

principalmente os impressionistas como Manet.

A relação de amizade de Zola e Manet tem início quando Antoine Guillemet, um

jovem pintor, leva o naturalista para conhecer o ateliê de Manet (HEMMINGS, 1958). É a

partir desse momento que Zola se mostrará um defensor dos quadros deste pintor, que

segundo as palavras do escritor, na crítica M.Manet (1866), será um dos mais célebres artistas:

Como ninguém diz isso, vou dizê-lo eu, vou gritá-lo. Tenho certeza de que o sr.

Manet será um dos mestres de amanhã, que se eu tivesse dinheiro, penso que faria

bom negócio comprando hoje mesmo todas as suas telas. Daqui a cinquenta anos

elas custarão de quinze a vinte vezes mais caro, enquanto outros quadros de quarenta

mil francos não valerão nem quarenta. (ZOLA, 1989, p.39)

A profecia de Zola estava correta, pois muitos pintores contemporâneos de Manet e

celebrados pela Academia Real de Pintura e Escultura foram esquecidos com o passar dos

anos. E o pintor de Olympia (1863) é um dos artistas mais reconhecidos atualmente.

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Por longos anos, Zola continuou a dedicar várias críticas a Manet e nessas o

romancista e crítico de arte sempre elogiava o pintor, chamando-o de “mestre” e “gênio”

(ZOLA, 1989). Edouard Manet, por sua vez, retribuiu a atenção recebida com um retrato de

Émile Zola, exposto no Salão Oficial de Pintura e Escultura de 1868. O retrato, que pertence

ao acervo do Museu d’Orsay, em Paris, informa ao observador vários detalhes sobre Zola,

Manet e a relação dos dois. Outrossim, a tela além de legitimar o próprio autor serve também

para legitimar o próprio grupo.

FIGURA 2

Émile Zola (1868)

Edouard Manet,

óleo sobre tela. 1,46 x1,14 m

Musée d’Orsay

Em primeiro lugar, há elementos na tela que fornecem informações sobre o próprio

Manet, como a presença de uma reprodução do quadro O triunfo de Baco (1669) de

Velásquez. É possível que Manet tenha inserido uma reprodução de uma obra espanhola para

anunciar sua própria identificação com os pintores espanhóis. A proximidade da obra de

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Manet com os espanhóis, e sua originalidade, foi apontada por Zola em seu estudo biográfico

dedicado ao pintor, no qual Zola declara que “... suas telas têm um acento por demais

individual para que se possa considerá-lo apenas um bastardo de Velásquez e de Goya”

(ZOLA, 1989, p.71)

Outro elemento do quadro que informa ao observador sobre a autoria desta tela é a

inserção de uma reprodução de Olympia (1863). Nesta reprodução, a personagem central

direciona seu olhar para Zola, ao contrário da tela original, na qual a figura feminina olha

diretamente para o observador. A mudança de direção do olhar da personagem para Zola

implica num diálogo entre o romancista e o quadro de Manet. Aliás, a inserção de Olympia no

retrato de Zola representa uma assinatura pictórica através da própria pintura, e com esse

recurso Manet assina o quadro e nele se insere.

O terceiro elemento que cria um laço entre o modelo do quadro e o autor é a presença de

duas gravuras japonesas, um índice que marca a participação da cultura japonesa na sociedade

francesa do século XIX, principalmente nos campos artísticos e literários. Uma delas -

posicionada na parte superior à direita - é a estampa Sumô Wrestler Ônaruto Nadaemon of

Awa Province (1860), de Utagawa Kuniaki II. O ar japonês das telas de Manet foi exaltado

por Zola, conforme salienta Ives:

Zola had been the first critic on record to link Manet's art to Japanese prints when, in

1866, he defended Manet's style against a torrent of public criticism. Countering the

popular comparisons of Manet's paintings to the vulgar, crudely colored sheets

printed at Épinal, Zola suggested that "it would be much more interesting to

compare this simplified style of painting with Japanese prints which resemble

Manet's work in their strange elegance and splendid color patches!” (IVES, 1974,

p.23)17

Para Zola, os traços da pintura de Manet marcados pela gravura japonesa é uma das

características mais interessantes da estética desse pintor, pois é no colorido que o

“japonismo” de Manet se manifesta. E o trabalho com a cor de Manet é um dos pontos mais

salientados por Zola nas críticas que faz sobre o pintor.

O quarto ponto deste quadro que traz informações sobre Manet e Zola é a brochura

azul posicionada em frente a Zola. A brochura azul é cópia da primeira crítica de Zola

dedicada a Manet intitulada M. Manet, um artigo publicado no jornal L’événement, em 1866.

Neste detalhe, em destaque, do retrato de Émile Zola, é perceptível o que mais chamou a

17 Tradução nossa: Zola foi o primeiro crítico de que se tem conhecimento que realizou uma conexão entre a arte

de Manet e as gravuras japonesas quando, em 1866, ele defendeu o estilo de Manet contra uma enxurrada de

críticas públicas. Contrariando as comparações populares das pinturas de Manet com as estampas vulgares,

cruamente coloridas chamadas de Épinal, Zola sugeriu que, “seria muito mais interessante comparar este estilo

simplificado de pintar com as gravuras japonesas, que lembravam o trabalho de Manet por causa de sua estranha

elegância e esplêndidas manchas de cores”.

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atenção de Zola nesta tela, a mão. A forma como a mão do próprio Zola foi pintada é

comentada pelo escritor:

Mas peço uma particular atenção para a mão pousada sobre o joelho do personagem:

é uma maravilha de execução. Finalmente vemos aí a pele, a verdadeira pele, sem

“trompe l’oeil” ridículo. Se o retrato por inteiro tivesse conseguido chegar ao ponto

aonde chegou essa mão, o próprio público teria gritado que ele era uma obra-prima.

(ZOLA, 1989, p. 106)

A execução das telas de Manet e o cuidado que o pintor parece ter com suas telas

sempre é mencionado por Émile Zola em suas críticas de arte. O escritor, durante algum

tempo, deixará de escrever sobre Manet, aliás deixará de escrever sobre arte em geral. Apenas

em meados de 1880, Zola utilizará sua pena para discorrer sobre o pintor mais uma vez,

enaltecendo Manet um ano após a sua morte 1884.

Apesar de amizade entre Zola e Manet ter sido amplamente divulgada, o romancista

era próximo também de vários outros pintores como Monet, Degas, Frédéric Bazille, Auguste

Renoir e Fantin-Latour. Este último inclusive representou uma prática comum a esse grupo de

agentes: a frequentação dos ateliês de pintura.

FIGURA 3

Un atelier aux Batignolles (1870)

Henri Fantin-Latour,

óleo sobre tela, 2,04 m x 2,74 m

Musée d’Orsay

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A tela acima representa o ateliê de Edouard Manet localizado no bairro Batignolles,

região frequentada por um grupo de pintores que trocavam interesses estéticos, como alguns

já citados no parágrafo anterior, além de Alfred Sisley, Camille Pissaro e o fotógrafo Félix

Nadar. Esse grupo frequentava o café Guerbois regularmente, um café localizado em

Batignolles, que é o mesmo bairro onde se encontrava o ateliê de Manet, que ficou conhecido

por reunir escritores, pintores e amantes da arte. Este café reunia os artistas que se intitulariam

o grupo de Batignolles, e que em sua maioria viriam a ser chamados de impressionistas.

O quadro de Fantin-Latour representa alguns artistas que visitavam o ateliê de Manet,

que na tela aparece pintando uma tela. Emoldurado está Renoir de chapéu e a sua esquerda,

Zola com barba. Essa tela é o registo de um hábito de Zola e marca sua relação estreita com o

campo artístico, com o qual o romancista adquiriu preceitos estéticos que utilizaria em seus

romances18.

O artigo “A pintura” publicado no Le Figaro, em 1896, é um dos últimos textos de

Émile Zola sobre o mundo artístico e, nele, o autor faz um breve resumo de seu percurso

enquanto crítico de arte e suas relações de afinidade com os pintores impressionistas:

Sim, trinta anos se passaram e eu me desinteressei um pouco pela pintura. Cresci

quase no mesmo berço que meu amigo, meu irmão Paul Cézanne, de quem só hoje

resolveram reconhecer o lado genial de grande pintor abortado. Convivia com todo

um grupo de artistas, Fantin, Degas, Renoir, Guillemet e ainda outros, que a vida

dispersou e semeou nas diversas etapas do sucesso. Eu também continuei meu

caminho, afastando-me dos ateliês amigos, carregando minha paixão para outros

lugares. Acho que há mais de trinta anos não escrevo nada sobre pintura (...)

(ZOLA, 1989, p. 318)

O último ensaio de Zola registra que muito cedo ele conviveu com o mundo artístico,

graças ao amigo de infância Cézanne. Zola, em vida, foi conhecido por declarar abertamente

sua opinião sobre assuntos da política e da sociedade francesa. Dois anos após a publicação

do artigo A pintura, Zola publica, no periódico L’Aurore, uma carta ao presidente da república

francesa cujo título J’Accuse (1898) já indica seu teor acusatório, pois afirma que a república

foi injusta na condenação de Alfred Dreyfus, um oficial judeu de artilharia do exército

francês, acusado de espionagem.

Quatro anos após a publicação de J’Accuse, Émile Zola foi encontrado morto em seu

apartamento. A causa da morte foi identificada como inalação de monóxido de carbono, cuja

fonte não foi identificada. Alguns biógrafos da vida de Zola sugerem que o romancista foi

assassinado por causa de sua atuação no caso Dreyfus.

18 Essa parte será mais elaborada na seção seguinte.

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3.2. A escrita pictural de Zola em Nana

Inúmeros artigos que analisam a produção literária de Émile Zola afirmam uma

identificação deste autor com o impressionismo, dos quais saliento dois: A propos de

l’impressionnisme de Zola (1967), escrito por Philippe Hamon e Émile Zola impressionniste

(1967), de Joy Newton. Ambos dissertam sobre aspectos da escrita de Zola na série Les

Rougon-Macquart, que se aproximam da estética pictórica impressionista.

Como já referido, Zola mantinha uma relação de amizade com pintores impressionistas,

como Cézanne e Manet. Mas, caso comparemos somente esses dois pintores veremos que há

muitas diferenças entre eles, principalmente no que concerne ao traço. O traço de Manet, por

exemplo, caracteriza-se por contornos finos e suaves. Já as telas de Cézanne, por outro lado,

apresentam contornos espessos e demarcados. As telas de Manet parecem conter um traço

mais acadêmico -principalmente pelo uso constante do pigmento preto- do que aquele que é

apresentado nas telas de Cézanne.

Os pintores impressionistas, tais como Degas, Pissarro, Fantin-Latour, Monet, Cézanne e

Manet não apresentam os mesmos tipos de traços, mas compartilhavam, em sua maioria, três

características: o tema, principalmente cenas do quotidiano; a manipulação das cores e estudo

da luz, isto é, de que forma um determinado tipo de iluminação reflete nos objetos e nas

pessoas e também como a iluminação interfere na percepção das cores.

Sendo assim, afirmar que Zola é um escritor impressionista pressupõe que se considere o

fato de que a estética impressionista assume traços e temas diversificados, na obra de

diferentes pintores e escritores. Além da amizade com esses pintores, quais são as

características do texto de Zola que podem comprovar que o escritor representaria a estética

impressionista na literatura? A resposta estaria nos pontos comuns entre os quadros dos

impressionistas e a obra de Zola: o tema, as cores e a iluminação.

O objetivo deste trabalho não é afirmar que Zola é um escritor impressionista, o contrário

não será feito aqui tampouco. Desenvolvemos a hipótese de que Émile Zola apresenta uma

escrita pictural cujas características foram definidas através de duas etapas: suas relações de

amizade com os pintores impressionistas e, também, sua própria técnica de escrita romanesca

vinculada ao naturalismo, principalmente, o romance experimental - método científico

literário desenvolvido por Émile Zola cuja teoria foi explicada pelo próprio autor Le roman

experimental (1880).

Os traços da escrita pictural de Zola que destacaremos, em algumas descrições do

romance Nana, são quatro: o tema, o olhar do personagem, a paleta de cores e a iluminação.

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Esses traços foram privilegiados por acreditarmos ser os que aparcem esm destaque nas

descrições de Zola. Além disso, nas críticas de arte de sua autoria são esses os pontos que

mais lhe chamam a atenção, o tema, o olhar sobre a cena representada na tela, as cores e a

iluminação.

A primeira característica da escrita de Zola que se aproxima da estética impressionista na

pintura é o tema. A maioria dos pintores impressionistas como Manet e Degas se dedicaram a

pintar temas do quotidiano da sociedade contemporânea, como a tela La Musique aux

Tuileries (1862) de Manet que representa um concerto de música ao ar livre. Zola, por sua

vez, no romance Nana, também dedicou sua escrita a descrever, de maneira pictural, temas da

sociedade moderna parisiense como o teatro, as corridas de cavalo no hipódromo de

Longchamp e o Passage des Panoramas.

Para compreender melhor a função do olhar do personagem, adotaremos aqui o

conceito de olhar descritor de Philippe Hamon, abordado em Du Descriptif (1993). Nesta

obra, Philippe Hamon discorre sobre a importância do olhar descritor, isto é, o olhar do

personagem encarregado de uma descrição. Hamon esclarece esse conceito ao explicar que

diferentes competências, isto é, distintos saberes modificam o resultado de uma descrição. Por

exemplo, um personagem jornalista não descreverá um teatro da mesma maneira que um

operário. Além disso, o olhar descritor é o responsável pela organização e focalização de uma

cena descrita. É através da perspectiva do personagem descritor que o leitor será informado

dos detalhes que compõem uma cena.

Ilustraremos um contraexemplo do olhar descritor através de uma cena em que a

perspectiva é centrada em um personagem no capítulo VII, iniciado por uma descrição do

Passage des Panoramas, localizado no bairro de Montmartre, na cidade de Paris. Na descrição

que abre este capítulo, uma hipotipose, o Conde Muffat percorre este espaço repleto de

objetos, cores e luzes:

Trois mois plus tard, un soir de décembre, le comte Muffat se promenait dans le

passage des Panoramas. La soirée était très douce, une averse venait d’emplir le

passage d’un flot de monde. Il y avait là une cohue, un défilé pénible et lent, resserré

entre les boutiques. C’était, sous les vitres blanchies de reflets, un violent éclairage,

une coulée de clartés, des globes blancs, des lanternes rouges, des transparents bleus,

des rampes de gaz, des montres et des éventails géants en traits de flamme, brûlant

en l’air ; et le bariolage des étalages, l’or des bijoutiers, les cristaux des confiseurs,

les soies claires des modistes, flambaient, derrière la pureté des glaces, dans le coup

de lumière crue des réflecteurs ; tandis que, parmi la débandade peinturlurée des

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enseignes, un énorme gant de pourpre, au loin, semblait une main saignante, coupée

et attachée par une manchette jaune.19

(ZOLA, 2013, p.211)

Na primeira oração da descrição há duas informações que situam o leitor: trata-se de

uma noite de dezembro, ou seja, uma noite de inverno parisiense e a cena será descrita a partir

da presença do personagem Muffat. As duas informações referentes a esta descrição já

haviam sido planejadas por Émile Zola, por causa do seu método de escrita, resultante de três

etapas: pesquisa, observação e preparação. No dossiê feito antes da redação do romance

Nana, o autor já havia previsto que o início do capítulo VII seria uma cena noturna de

inverno, na qual o personagem central seria o personagem Muffat, conforme anotado pelo

próprio Zola: “décembre très froid. 2 mois après.... Muffat dans le passage des Panoramas”20

(ZOLA, 2006, p. 248)

Neste capítulo, em destaque, são apresentadas ao leitor informações sobre os

sentimentos que o Conde Muffat nutre por Nana, uma paixão que beira a obsessão. Isto cega

o personagem, que não vê nada à sua frente, pois seus sentidos estão focados em Nana: “Il ne

voyait rien, il songeait à Nana” (ZOLA, 2000, p.212)21. Ou seja, a cena descrita neste capítulo

é apresentada como se o leitor pudesse ver o que está no campo de visão de Muffat, porém, ao

contrário do personagem, nós, os leitores, percebemos as inúmeras informações visuais

oferecidas pela descrição do Passage des Panoramas.

Caso pensemos em termos de perspectiva é como se houvesse um grande espelho

posicionado atrás do personagem Muffat, pois ao mesmo tempo em que, de fato vemos o que

ele pode ver e não o faz, nós, os leitores, também estamos cientes de sua cegueira perante

aquela cena. É possível comparar esta construção discursiva nesta cena com o quadro Un bar

aux Folies Bergères (1882) pintado por Édouard Manet.

19 Tradução: “Três meses mais tarde, numa noite de dezembro, o conde Muffat caminhava pela “Passage des

Panoramas”. A noite estava amena, uma tempestade acabava de encher a passagem com uma maré de gente.

Havia, ali, um tumulto, um cotejo penoso e lento, comprimido entre as lojas. Sob os vidros embranquecidos

pelos reflexos das luzes, a iluminação era gritante, um fluxo de claridades, de abajures brancos, lâmpadas

vermelhas, transparências azuis, bocas de gás, relógios e gigantescos leques, com traços de fogo, ardendo o ar. E

a variedade das cores das vitrines, o ouro dos joalheiros (sic), os cristais dos confeiteiros, as claras sedas dos

modistas flamejavam, atrás da pureza dos espelhos, no raio de luz crua dos refletores; enquanto, entre a confusão

sarapintada dos letreiros, uma enorme luva de cor púrpura, ao longe, parecia uma mão sangrando, cortada e

amarrada por um punho amarelo “. (ZOLA, 2013, p. 235) 20 Tradução nossa: dezembro muito frio. 2 meses depois. Muffat no Passage des Panoramas. 21 Tradução: Ele não via nada; pensava em Naná. (ZOLA, 2013, p.236)

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FIGURA 4

Un bar aux folies-bergère (1887)

Edouard Manet

óleo sobre tela. 96 cm x 1,3 m

Courtauld gallery

Na tela acima, o observador vê uma personagem cuja face expressa uma mistura de tédio

e tristeza, sentimentos que se opõem aos do ambiente no qual a personagem está inserida –

um local festivo em que uma multidão desfruta um momento de sociabilidade alegre–. É fato

que é somente possível que o observador consiga ao mesmo tempo ver a expressão

introspectiva da personagem e o que está acontecendo perante os seus olhos, devido ao grande

espelho localizado atrás da personagem que reflete seu campo de visão.

Tendo explorado a cena construída a partir do não-olhar descritor de Muffat,

passaremos ao segundo elemento da escrita pictural de Zola, no romance Nana: a paleta de

cores. Este é o elemento da escrita de Zola que mais se aproxima da técnica impressionista,

pois o manejo das cores era uma tarefa à qual os pintores impressionistas dedicavam muito

estudo. Édouard Manet, em especial, foi um dos pintores que mais explorou a relação entre

cores, visando um efeito de realidade, conforme mencionado por Pedrosa:

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A pintura encaminhava-se rapidamente para uma posição científica. Em resposta às

acusações de que em seus quadros detinha a dinâmica natural da paisagem para

estudá-la, Manet afirmara: “Matamos para dissecar”. Daí à ciência pura da cor,

como arte, foi um passo. (PEDROSA, 1995, p.128)

Em outras palavras, para Manet e para outros pintores impressionistas, a cor não era

somente um pigmento a ser utilizado no quadro, era também uma forma de inserir na tela a

percepção da visão da cor- a forma pela qual o colorido é percebido pela retina e suas

diferentes implicações, como a alteração por causa da luz e a diferença de efeito caso uma cor

seja colocada ao lado da outra. E este cuidado com a utilização das cores foi também tomado

por Zola.

No artigo Rouge, jaune, vert, bleu. Etude du système des couleurs dans « Nana »

(1975), Alain Pagès realiza um estudo das cores que compõem a paleta do romance Nana.

Segundo este autor, são quatro as cores principais presentes na obra: vermelho, amarelo,

verde e azul. Entretanto, o autor deste artigo esclarece que há variações dessas cores, como o

dourado e o violeta, por exemplo.

Pagès explica que Zola teria composto sua paleta de cores devido à sua aproximação

com pintores que faziam um estudo das cores a partir do trabalho do químico Michel-Eugène

Chevreul intitulado De la loi du contraste simultané des couleurs et de l'assortiment des

objets colorés (1839). Nesta obra, o químico explica que um mesmo pigmento pode

apresentar um efeito diferente dependendo do fundo onde for colocado. Pagès esclarece que

Zola nunca mencionou em suas críticas de arte ter conhecimento sobre esse estudo do

químico Chevreul. Porém, o romancista usava frequentemente termos como gama de matizes,

multicolorido do prisma, e utilizou um conceito abordado por Chevreul, em sua obra, a lei dos

valores das cores22.

O que em primeiro lugar chama a minha atenção nesses quadros é uma justeza

delicada nas relações entre os tons. Vou me explicar. Sobre uma mesa há frutas, que

se destacam de um fundo cinza; há entre as frutas, conforme elas estejam mais ou

menos próximas, valores de coloração que formam toda uma gama de matizes. Se se

partir de uma nota mais clara que a nota real, encontrar-se-á uma gama cada vez

mais clara; e o contrário deverá acontecer, quando se partir de uma nota mais forte.

Isto é o que se chama, assim o creio, a lei dos valores. (ZOLA, 1989, p. 68)

Sendo assim, é possível afirmar que a forma como Zola compôs a paleta de cores em

Nana é uma soma de seu método de observação e documentação com a sua integração no

grupo de agentes do campo literário e artístico (BOURDIEU, 1996 B), uma rede de afiliados

que compartilham saberes, interesses e preceitos estéticos.

22 Émile Zola faz menção à lei dos valores das cores em um estudo biográfico e crítico de Edouard Manet,

publicado em1867, na revista La revue du XIXe Siècle.

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A paleta de cores no romance Nana pode ser percebida como uma paleta simples,

contendo poucas cores primárias. Porém, o autor utiliza muitas nuances de cores e faz uso,

também, do efeito causado por uma cor posicionada ao lado de outra.

Na citação destacada no início desta seção, com exceção do branco, aparecem as

seguintes cores: vermelho, azul, dourado, violeta e amarelo. Ou seja, uma paleta de cores

formada majoritariamente por cores primárias: vermelho, azul e amarelo; uma variação de

uma cor primária: o dourado; e por fim uma cor secundária: o violeta. As cores da cena em

destaque não compõem uma cena imensamente colorida, porém uma cena com pontos de cor

e forte iluminação como será mostrado mais à frente.

Outro recurso utilizado por Zola, no romance Nana, é a sobreposição de cores, uma

técnica baseada na teoria dos valores das cores. É o que ocorre no exemplo a seguir, em que é

descrita parte da primeira casa de Nana no romance: “Une lueur glissait sous un rideau, on

distinguait le meuble de palissandre, les tentures et les sièges de damas broché, à grandes

fleurs bleues sur fond gris23.” (ZOLA, 2000, p.57). Há a sobreposição do azul, cor primária,

sobre um fundo cinza, uma cor neutra. A junção dessas duas cores destaca a crueza da cor

azul, pois um fundo cinza não torna uma cor mais ou menos vibrante.

Outra técnica utilizada por Zola, no romance Nana, em relação às cores é a justaposição

de tons. Há cenas descritas na narrativa nas quais a cor complementar é a utilizada a fim de

descrever um objeto posicionado ao lado de outro, como no exemplo a seguir: “Les velours

grenat des sièges se moiraient de laque, tandis que les ors luisaient et que les ornements vert

tendre en adoucissaient l’éclat, sous les peintures trop crues du plafond.”24 (ZOLA, 1983,

p.1102). Nesta cena, duas cores são destacadas: o grená25 das cadeiras e o verde claro dos

ornamentos. Há ainda, entre essas duas cores, um tom dourado que suaviza a transição da cor

grená para o verde. O que Zola faz aqui é respeitar o círculo cromático das cores, composto

pelo químico Chevreul, conforme é ilustrado na imagem a seguir:

23 Tradução: “Uma claridade intensa trespassava a cortina, e era possível ver a mobília de jacarandá. As

tapeçarias e as poltronas bordadas com flores azuis sobre um fundo cinza.” (ZOLA, 2013, p.43) 24 Tradução: “O veludo escarlate dos assentos se frisava com o efeito da laca, o ouro luzia e os ornamentos

verde-claros ganhavam um brilho mais suave sob as pinturas cruas do teto. “(ZOLA, 2013, p.15) 25 Na tradução utilizada deste trecho, a tradutora traduziu a cor grenat por escarlate (ZOLA, 2013, p. 15).

Utilizaremos o termo grená por acreditarmos que transmite o verdadeiro tom da cor.

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FIGURA 5

Círculo Cromático

CHEVREUL, 1855, p.9

No círculo cromático, composto pelo químico Chevreul, é possível ver que os tons verdes

estão posicionados de maneira oposta aos tons avermelhados, o que configura que o vermelho

é a cor complementar ao verde. Além disso, os tons amarelos e alaranjados são os que

realizam a transição entre essas duas cores. Ou seja, ao escolher o grená, o verde e o dourado

para compor uma cena, Zola demonstra uma intenção estética com a sua paleta de cores, no

romance Nana. E é possível afirmar que a composição da paleta de cores foi construída a

partir de sua afinidade com os pintores que estudavam a teoria de Chevreul e seu próprio

método de observação e pesquisa.

Ao longo de todo o romance, a cor também parece ter valor simbólico para a narrativa.

Quando a personagem Nana se torna uma mulher “chique” é através das cores e texturas de

seu quarto que ela demonstra seu novo status, conforme a citação a seguir:

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Elle remontait vite, elle vivait au premier étage, dans ses trois pièces, la chambre, le

cabinet et le petit salon. Deux fois déjà, elle avait refait la chambre, la première en

satin mauve, la seconde en application de dentelle sur soie bleue ; et elle n’était pas

satisfaite, elle trouvait ça fade, cherchant encore, sans pouvoir trouver. 26

(ZOLA,

1983, p. 1348)

Conforme a citação acima, a personagem Nana, neste momento da narrativa, uma

mulher rica, gosta de gastar dinheiro com inúmeras atividades, uma delas é reformando seus

aposentos. Em uma primeira reforma, Nana refaz um cômodo de sua casa utilizando cetim na

cor malva, um brilho frio. Posteriormente, a personagem refaz novamente o quarto, dessa vez,

aplicando renda sobre seda azul. As duas cores, azul e malva, que Nana utiliza para reformar

este cômodo implicam em uma vontade da personagem em se identificar com valores da

classe alta e nobre, pois essas duas cores frias, principalmente o azul, estão historicamente

ligadas à nobreza, conforme Pedrosa afirma: “Pela ideia de superioridade em comparação

com as outras cores, o azul foi escolhido como a cor da nobreza” (PEDROSA, 1995, p. 114).

A textura dos tecidos também implica num valor sensorial e sensual desta cena, pois o cetim é

um tecido mais luminoso que a renda, o que mais uma vez enuncia uma intenção pictural e

crítica de Zola.

Outro ponto referente à cor está relacionado à iluminação, o quarto traço que caracteriza a

escrita pictural de Zola. A cena que inicia o capítulo VII, apesar de curta, informa ao leitor

alguns elementos importantes para a composição da descrição. Além de ser informado ao

leitor que se trata de uma noite de dezembro, ou seja, uma cena noturna, são referidas,

também, as várias fontes de luz que iluminam a cena, identificadas através de dois elementos

textuais; a cor branca e a descrição de refletores. Há, por exemplo, no sintagma - les vitres

blanchies de reflets, un violent éclairage (sob os vidros embranquecidos pelos reflexos das

luzes, a iluminação era gritante) - duas informações sobre o tipo de iluminação nesta cena; em

primeiro lugar, a luz causa um reflexo nos objetos, fato que os torna esbranquiçados, vide o

adjetivo – blanchies (embranquecidos) –. Em segundo lugar, é informada a intensidade da

luminosidade através do adjetivo intensificador -violent (gritante)-, este que é seguido do

próprio substantivo referente à iluminação – éclairage (iluminação). Ainda nesta cena,

também são descritos objetos que são fonte de iluminação, tais como – globe (abajur)–, –

lamparine (lâmpada)– e –rampes de gaz (bocas de gás). A presença desses objetos intensifica

a luminosidade da cena, informando ao leitor que a cena é repleta de pontos de luz, mas

26 Tradução: “Já reformara o quarto duas vezes, a primeira forrando-o de cetim cor malva a segunda com

aplicações de renda sobre seda azul; mas ainda não estava satisfeita, achava aquilo sem graça (sic), e continuava

procurando sem encontrar solução.” (ZOLA, 2013, p. 360)

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também que esses pontos de luz são distintos uns dos outros, pois o material que cobre essas

fontes de iluminação é diferente, o que resulta numa percepção distinta da luz.

A maioria das cenas descritas no romance Nana que constituem descrições picturais

(LOUVEL, 1997) são cena noturnas que registram um momento de sociabilidade e além

disso, se configuram como representações da modernidade.

Todavia, há cenas no romance que também descrevem momentos ao ar livre banhados

pela luz natural como na citação, a seguir, retirada do capítulo VI:

Le temps avait brusquement changé, un ciel pur se creusait, tandis qu’une lune

ronde éclairait la campagne d’une nappe d’or. C’était une paix souveraine, un

élargissement du vallon s’ouvrant sur l’immensité de la plaine, où les arbres

faisaient des îlots d’ombre, dans le lac immobile des clartés. (ZOLA, 1983, p.11238) 27

A paisagem descrita acima representa uma cena noturna. Porém, ao contrário, da

descrição do Passage des Panoramas, esta imagem é a de uma paisagem, tendo como fonte de

iluminação a lua cheia identificada através da oração - qu’une lune ronde éclairait la campagne

d’une nappe d’or (uma lua cheia iluminava o campo com uma toalha dourada)-. Outro ponto

em destaque desta oração é a cor da luz – d’or –, ou seja, uma luz dourada banha todo a

campanha, o que sugere em uma implicação estética na caracterização da luz.

Nesta cena iluminada pela luz da lua, há, ainda, a descrição das sombras causadas pelas

árvores –où les arbres faisaient des îlots d’ombre–. A sombra das árvores informa ao leitor

sobre um jogo de claro-escuro causado pelo contraste da luz dourada da lua com as sombras

das árvores. Esta técnica fica ainda mais perceptível, pois a luz que inunda a campanha cria a

ilusão de um lago imóvel - dans le lac immobile des clartés-. Essa imagem criada por Émile

Zola, na descrição, se aproxima da técnica pictórica do claro-escuro, que, numa tela, provoca

um contraste entre uma área intensamente iluminada e outra parte sombreada e escura.

Por fim, a escrita de Émile Zola, vista como pictural e impressionista pela crítica,

apropria-se de algumas técnicas dessa estética, principalmente aquela relacionada às cores,

temas e iluminação, fixando-se, desta forma, como uma escrita pictural própria; uma escrita

que parte da observação e documentação, que é marcada pela afinidade com a obra de certos

pintores e, por fim, se concretiza na redação final do texto.

27 Tradução: “O tempo mudara bruscamente; um céu puro se abria, enquanto uma lua cheia iluminava o campo

com uma toalha dourada (sic). Era uma paz soberana, um alargamento do vale se abrindo na imensidão da

planície, onde as árvores projetavam ilhotas de sombra no imóvel lago da área iluminada. (ZOLA, 2013, p.205)”

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3.3. A preparação do romance Nana

O romance Nana foi publicado inicialmente no espaço folhetim do jornal Le Voltaire

de 16 de outubro de 1879 até 5 de fevereiro do ano seguinte. No mesmo mês da última

publicação em periódico, o romance foi publicado em volume pela editora de Charpentier.

Apesar de ter sido um sucesso econômico, pois a venda rendeu a Zola no primeiro momento

200.000 francos, Nana não foi bem recebido pela crítica, que em sua maioria afirmou que a

obra era “falsa” (HEMMINGS,1958) Todavia, escritores como Flaubert e Maupassant

escreveram ao romancista relatando o prazer que a leitura da obra lhes trouxe.

Essa obra narra ao longo de quatorze capítulos a trajetória de Anna Coupeau,

conhecida como Nana, durante os três anos finais do Segundo Império francês, ou seja, entre

abril de 1867 e julho de 1870. No início do romance, Nana tem 19 anos e é a “estrela” do

Théâtre des Variétés, ela é a novidade que instiga a curiosidade de todos. Ao longo da

diegese, a protagonista sempre estará envolvida em ações que envolvem seu corpo; mesmo

quando ela deixa de ser cortesã temporariamente, ela ainda o usa para ganhar dinheiro para o

amante.

Com o desenrolar dos capítulos, Nana torna-se cada vez mais irresponsável em relação

ao dinheiro e ao sentimento dos outros. Nada comove a protagonista a não ser ela própria,

mesmo quando todos os homens com quem se relaciona começam a ruir, a personagem não se

importa, preferindo passar seu tempo observando-se e decorando seu quarto. Na maior parte

do romance, ela é descrita pelos olhos de outras personagens que a observam e a desejam e

nós, os leitores, lemos o romance sob essa perspectiva, como se fossemos um voyeur

espreitando a vida privada da personagem.

O último capítulo do romance reúne vários finais, o fim da protagonista, da obra e

também do Segundo Império francês. Na última cena do romance, enquanto o rosto de Nana é

descrito, acontece, simultaneamente, o início da guerra franco-prussiana:

Et, sur ce masque horrible et grotesque du néant, les cheveux, les beaux cheveux,

gardant leur flambée de soleil, coulaient en un ruissellement d’or. Vénus se

décomposait. Il semblait que le virus pris par elle dans les ruisseaux, sur les

charognes tolérées, ce ferment dont elle avait empoisonné un peuple, venait de lui

remonter au visage et l’avait pourri.

La chambre était vide. Un grand souffle désespéré monta du boulevard et gonfla le

rideau.

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— À Berlin ! à Berlin ! à Berlin ! (ZOLA, 1983, p. 1485)28

Nos dois últimos parágrafos do romance, Zola utiliza três palavras que servem como

sinônimos para a função de Nana ao longo da narrativa: “fermento”, “envenenado” e

“apodrecido”. A personagem é como um fermento, vai aumentando tudo o que há de pior nos

outros e vai além, os envenena e os apodrece, causando-lhes, às vezes, até a morte. Há ainda,

no trecho acima, uma figura de linguagem utilizada frequentemente por Zola ao longo de todo

o romance, a prosopopeia que indica que os gritos “A Berlim, A Berlim, A Berlim” vem dos

boulevards e não das pessoas que lá estão.

Segundo o biógrafo de Émile Zola, Frederick Brown, a preparação do romance Nana

começou quando, em 1869, o romancista enviou o primeiro plano geral para sua série de

livros Les Rougon-Macquart. Neste plano, Nana tinha o nome Louise Duval e seria a

personagem principal do romance de boudoir de Zola (BROWN, 1995, p. 403). Porém, ela

recebe o nome de Nana apenas quando Zola escreve L’Assommoir (1877), obra na qual

aparece, pela primeira vez, a personagem que ilustraria a vida privada de um boudoir de uma

cortesã.

Para juntar informações necessárias ao preparo de Nana, Zola recorre a várias fontes,

principalmente Henry Céard, Antoine Laporte e Ludovic Halévy. De cada um Zola obtém

informações, narrações ou episódios que serão utilizados para a redação do romance. Laporte,

um editor por exemplo, foi o responsável por informar a Zola sobre os ritos de beleza de uma

cortesã, descritos detalhadamente no segundo capítulo de Nana. O editor também foi quem

contou a Zola a visita do príncipe britânico ao camarim do Théâtre des Variétés, episódio

narrado no quinto capítulo do romance. Céard, por sua vez, foi o encarregado de detalhar ao

romancista comportamentos incomuns, como o desespero pela perda de um lenço e a vontade

de derramar champanhe no piano, cenas descritas no quarto capítulo. O romance Nana

apresenta também três capítulos destinados inteiramente ao mundo teatral: o primeiro, o

quinto e o nono; estes que Zola conseguiu representar com o auxílio de Ludovic Halévy, um

libretista, que lhe forneceu o livreto da peça La Grande-Duchesse de Gérolstein (1867).

Estes são alguns exemplos de como Zola agiu em relação à preparação de Nana, pois o

romancista teria se enclausurado em sua casa para redigir os capítulos da obra. E, como não

28 Tradução: “E, naquela terrível e grotesca máscara de nada, os cabelos, os lindos cabelos, conservavam a

chama do sol e escorriam em um esplendor de ouro. Vênus se descompunha. Parecia que o vírus contraído por

ela nas sarjetas, nas carcaças toleradas, aquele fermento com que envenenara tanta gente, acabava de subir ao

rosto, apodrecendo-o.

O quarto estava vazio. Um grande sopro de desespero subiu do bulevar, inflando a cortina.

— A Berlim! A Berlim! A Berlim!” (ZOLA, 2013, p. 554)

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saia de casa, pedia frequentemente a sua rede de afiliados que o auxiliasse com dados que,

segundo Zola, eram necessários para a composição de Nana. Brown explica na biografia do

naturalista que os pedidos de Zola beiravam o extremo: para descrever a última cena do

romance -em que Nana aparece morta e desfigurada por causa da varíola- pediu a um amigo

para ir pessoalmente ver um cadáver de uma pessoa morta por causa dessa doença. (BROWN,

1995, p.434)

Toda a documentação, registro e observação para o romance Nana são organizados

num dossiê preparatório, no qual há também outras informações, como o esboço de capítulos,

desenhos, lista de personagens com idade e as anotações que lhe foram enviadas por terceiros.

O dossiê preparatório de Nana comporta 343 folhas, algumas preenchidas na frente e no

verso.

Logo na primeira página do dossiê preparatório, Zola insere o número de capítulos

pretendidos e a ideia central do romance:

Nana, l’idole centrale, une chienne qui n’est pas en folie et qui se moque. -Le poème

des désirs du mâle. (…) Nana centrale, écrasant tout, Nana, c’est la pourriture d’en

bas, l’Assommoir29

, se redressant et pourrissant les classes d’en haut. Vous laissez

naître ce ferment, il vous remonte et vous désorganise ensuite. La mouche d’or.

(ZOLA, 2006, p.166)30

Ou seja, desde a elaboração do romance, Zola percebia Nana como o centro do

romance, um tipo de heroína que vingaria os menos favorecidos, destruindo aqueles que estão

no topo da escala social. Nana é a mouche d’or, uma mosca de ouro, bela, cara e reluzente por

fora, mas que carrega podridão e a espalha por onde passa. Toda a ação do romance é

engendrada por Nana, a protagonista. E, até mesmo, nos momentos em que ela está ausente,

ela ainda é evocada em diálogos de outros personagens.

A maneira pela qual Zola fez todo o preparo de Nana ilustra o método do romance

experimental, explicado pelo autor em um ensaio considerado como o “manifesto naturalista”.

Como referido anteriormente, o método experimental aplicado aos romances de Les Rougon-

Macquart é, segundo Zola, uma adaptação literária do método científico experimental do

médico e cientista Claude Bernard. O romancista cita o tratado de Bernard para dissertar sobre

seu próprio fazer literário, que segundo ele se desenvolveu através do seguinte processo:

29 Grifo do autor. 30 Tradução livre: Nana, o ídolo central, uma cadela, que não está no cio e que zomba. – O poema dos desejos do

macho. (...) Nana central, esmagando tudo, é a podridão vinda de baixo, de L’Assommoir, se erguendo e

apodrecendo as classes de cima. Vocês deixaram nascer esse fermento, ele os reconforta e em seguida os

desorganiza. A mosca de ouro. (ZOLA, 2006, p.166)

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Dá-se o nome de observador àquele que aplica o processo de investigações simples

ou complexos ao estudo de fenômenos que não faz variar e que recolhe, por

conseguinte tal qual a natureza lhos oferece; dá-se o nome de experimentador àquele

que emprega processos de investigações simples ou complexos para fazer variar ou

modificar, com um objetivo qualquer, os fenômenos naturais, e fazê-los aparecer em

circunstâncias ou condições nas quais a natureza não os apresentava. (BERNARD

apud ZOLA, 1988, p.29)

Basta trocar o termo experimentador por romancista que o procedimento de Zola é

esclarecido. O escritor observa um fenômeno e, a partir dessa etapa, cria um evento, ou

melhor dito, um romance. Como já mencionado, todos os romances de Les Rougon-Macquart

têm duas características em comum: a centralização da trama em um personagem e a

manipulação de um fenômeno, normalmente narrado através do declínio de um personagem,

causado pelo alcoolismo, pela greve, pela arte e no caso de Nana, por seu próprio sexo e

condição social.

Não é possível afirmar que Zola tenha obtido informações sobre o comportamento de

prostitutas de boulevards, como a personagem Satin, amante de Nana, através de experiências

próprias. Segundo Frederick Brown, o romancista teria se familiarizado com esse “meio”

através de alguns amigos que tinham o hábito de frequentar cortesãs e prostitutas, como Guy

de Maupassant e Henry Céard (ZOLA, 2006).

Um dos resultados da aplicação do método experimental é a obra Nana, uma narrativa

que centraliza sua ação numa cortesã e em tudo o que a rodeia, os homens, os locais de

sociabilidade que percorre, e o teatro. O que interessa principalmente a este estudo é o fruto

do deslocamento espacial da protagonista, ou seja, os locais por onde ela passa e de que forma

eles são representados.

A relação Émile de Zola com o campo literário e o campo artístico pode ser lida nas

representações dos locais por onde transita a personagem, que são feitas através de descrições

picturais. Isto ocorre porque a escrita pictural de Zola, tema do capítulo anterior, é resultante

de todos os saberes adquiridos por ele em sua trajetória, das quais destacamos suas visitas a

ateliês de pintores.

As descrições para Zola eram parte necessária para a diegese, pois ele as considerava o

instrumento apropriado para representar o meio onde os personagens estão inseridos. Em

todos os esboços dos capítulos do romance, Zola planeja descrições curtas ou longas que

servirão como o cenário para a ação do romance, como a descrição do Théâtre des Variétés

onde Nana se torna a Vênus loira; ou na descrição do Passage des Panoramas, onde se torna

legível o tamanho da obsessão sentida por Muffat e na descrição do hipódromo de

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Longchamp onde se torna nítido que Nana é a engrenagem que movimenta o enredo e todos

os personagens da narrativa.

4. A SOCIABILIDADE DO SEGUNDO IMPÉRIO EM NANA

4.1. Representações do Segundo Império francês em Nana

No romance Nana encontramos representações parisienses dos anos finais do Segundo

Império francês em descrições que constituem uma série de imagens, descrições que

funcionam como um portal estratégico de abertura de um capítulo, como é o caso dos

capítulos I, III e V. Já em outros, a descrição mescla-se com a narração criando uma

sequência de cenas.

O Segundo Império francês foi o período monárquico inaugurado em 1852,

constituído através de um golpe de estado dado por Luis-Napoléon Bonaparte que fora eleito

presidente da república, em 1848, de forma democrática, seguindo os moldes do governo

americano. O sobrinho de Napoléon I orquestrou um golpe para se manter no governo e, além

disso, argumentando estar salvando o país de um perigo revolucionário (YON, 2004), se

autoproclamou o imperador Napoléon III.

O Segundo Império foi marcado inicialmente por um período ditatorial no qual a

imprensa, em especial os jornais republicanos, fora impedida de expressar-se livremente.

Porém, após um certo tempo, este regime político adquiriu um aspecto liberal através do qual

várias transformações sociais, políticas e urbanas aconteceram.

Uma das mudanças mais notáveis ocorridas durante o Segundo Império foram as

reformas urbanas na cidade parisiense, sob o mandato de Georges-Eugène Haussmann (1809-

1891). No romance Nana são apresentadas várias dessas reformas, como a demolição de

certas ruas a fim de dar espaço a amplas avenidas. A personagem Nana mora no boulevard

Haussmann, um marco da modernidade parisiense, construído em 1857.

Em Nana também são abordados problemas relacionados à saúde pública. Na obra Le

Second Empire: politique, Société, culture (2004), Jean-Claude Yon aponta que a taxa de

mortalidade infantil e juvenil apresentava um alto indíce no território francês, o que é

registrado em duas obras de Zola: Nana e L’Oeuvre. Em ambos os romances os filhos dos

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protagonistas morrem ainda crianças, o filho de Nana por causa de varíola e o filho de Claude

Lantier, protagonista de L’Oeuvre, morre por causa de hidrocefalia.

O aspecto do Segundo Império francês mais abordado em Nana é uma parcela da

sociabilidade deste regime político. No romance citado, quatro eventos de sociabilidade são

inseridos: a cena teatral, a questão da vida privada, um baile de casamento e as corridas no

hipódromo de Longchamp.

Em Nana é representada uma parcela da população parisiense, composta por

burgueses, nobres e cortesãs. Há personagens que ocupam o topo da esfera social mesclados a

personagens de cortesãs, como a protagonista da obra, além de Gagá, Tantan e Blanche.

Um dos eventos de sociabilidade descritos no romance, no qual está presente um

grupo seleto de indivíduos detentores de capital econômico e social é o baile de casamento

dos personagens Daguenet e Estelle no capítulo XII. Daguenet, um dos amantes de Nana se

casa com Estelle, filha de outro amante de Nana, o conde Muffat. A união entre as duas

famílias é celebrada com um baile oferecido no salão dos pais da noiva.

A descrição do baile permite que o leitor conceba uma imagem, o que ocorre

principalmente por causa do trecho que será destacado a seguir:

Déjà l’on dansait. L’orchestre, placé dans le jardin, devant une des fenêtres ouvertes,

jouait une valse, dont le rythme souple arrivait adouci, envolé au plein air. Et le

jardin s’élargissait, dans une ombre transparente, éclairé de lanternes vénitiennes,

avec une tente de pourpre plantée sur le bord d’une pelouse, où était installé un

buffet. Cette valse, justement la valse canaille de la Blonde Vénus, qui avait le rire

d’une polissonnerie, pénétrait le vieil hôtel d’une onde sonore, d’un frisson

chauffant les murs. Il semblait que ce fût quelque vent de la chair, venu de la rue,

balayant tout un âge mort dans la hautaine demeure, emportant le passé des Muffat,

un siècle d’honneur et de foi endormi sous les plafonds. 31

(ZOLA, 1893, p.1420)

Recortamos aqui um momento do baile, um instante, que projeta uma imagem, que

não é completamente estática, pois as pessoas se movimentam e dançam uma valsa. Este

registro social não representa um evento que se adeque aos valores morais de uma família

identificada como cristã e honrada, caso da família Muffat, no romance. É possível afirmar

que a valsa da Blonde Vénus pontua a corrupção daquele meio, penetra aquela moradia

gelada, como um vento carnal vindo dos jardins na primavera, que parece assombrar e afastar

os valores morais daquela família construídos através dos anos.

31 Tradução: “Já se dançava. A orquestra, instalada no jardim, diante de uma das janelas abertas, tocava uma

valsa, cujo ritmo leve chegava adocicado, carregado pelo ar livre. E o jardim se alargava em uma sombra

transparente, iluminado por lustres venezianos, uma tenda de cor púrpura erguida a um dos cantos do gramado,

onde haviam instalado um bufê. Aquela era a mesma valsa canalha de A vênus loira, de riso zombeteiro, e

adentrava o velho palacete com uma onda sonora, em frêmito que aquecia as paredes. Era como um vento de

volúpia, vindo da rua, que varria toda a geração defunta daquela nobre residência, arrastando consigo o passado

dos Muffat, um século de honra e fé adormecidos sob o teto.” (ZOLA, 2013, p. 462)

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A descrição, em destaque acima, quando lida junta a outro trecho do mesmo capítulo

forma uma série de imagens:

Le bal s’était encore animé. Un nouveau quadrille donnait au plancher du salon un

léger balancement, comme si la vieille demeure eût fléchi sous le branle de la fête.

Par moments, dans la pâleur brouillée des têtes, se détachait un visage de femme,

emporté par la danse, aux yeux brillants, aux lèvres entr’ouvertes, avec le coup du

lustre sur la peau blanche. 32(ZOLA, 1893, p. 1426)

Um leitor familiarizado com a estética impressionista poderá associar tais descrições a

um quadro de Auguste Renoir, como Bal du moulin de la Galette (1876), como apresentado

abaixo:

FIGURA 6

Bal du moulin de la Galette (1876)

Auguste Renoir

óleo sobre tela131x175cm

Musée d’Orsay

32 Tradução: “O baile continuava animado. Uma nova quadrilha dava ao tablado do salão uma ligeira vibração,

como se a velha casa se envergasse com o tremor da festa. Em alguns momentos, na palidez confusa das

cabeças, destacava-se um rosto de mulher embalado pela dança, os olhos brilhantes, os lábios entreabertos, o

brilho do lustre na pele branca.” (ZOLA, 20013 p.470)

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A descrição de Émile Zola representa um baile da nobreza do Segundo Império e o

quadro de Renoir tem como tema um baile popular. A tela de Renoir indica movimento

através das poses dos personagens posicionados no lado esquerdo da tela, que dançam ao som

de uma música que quase consegue ser ouvida. Na descrição de Zola, o movimento é

representado através de verbos de ação, em sua maioria conjugados no pretérito imperfeito ou

no particípio presente como -dansait (dançava), jouait (jogava), s’élargissait (se aumentava) e

balayant (balançando). Todavia, o elemento que mais chama atenção tanto no quadro quanto

na descrição é a face de uma mulher com semblante alegre, no quadro, posicionado no canto

central esquerdo da tela, e na descrição através da oração -se détachait un visage de femme,

emporté par la danse, aux yeux brillants, aux lèvres entr’ouvertes, avec le coup du lustre sur

la peau blanche (destacava-se um rosto de mulher embalado pela dança, os olhos brilhantes,

os lábios entreabertos, o brilho do lustre na pele branca). Os olhos brilhantes e o tom pálido

da pele parecem ser quase gêmeos em ambas as manifestações artísticas.

Não é possível afirmar que Zola teria se inspirado no quadro de Renoir para descrever

esta cena do baile. No entanto, o romancista viu essa tela, pois teceu um breve comentário a

seu respeito, numa crítica publicada em 1877: “O Sr. Renoir também expõe um Baile do

Moinho da Galette, grande tela com extraordinária intensidade de vida” (ZOLA, 1989, p.236).

4.2. Théâtre des Variétés, o teatro no romance naturalista

Em Nana, Zola buscou representar o Théâtre des Variétés sob diferentes perspectivas,

tais como a arquitetura, isto é, a estrutura física do local, a decoração do ambiente, sua função

social, e o gênero de peças encenadas. Neste ambiente, os espectadores não exercem uma

função passiva, mas são agentes da representação da vida social parisiense.

Em 1872, o autor já escrevia artigos sobre temas que encontramos no romance, um

que discorre sobre as corridas de cavalos em Longchamp e outros sobre a cena teatral

parisiense, isto é, temas que aparecem em destaque no romance Nana. Dessa forma, quando

começou a se documentar sobre o Théâtre des Variétés para escrever o romance, o autor já

estava familiarizado com os bastidores do teatro (MITTERAND, 2001). Na mesma época da

elaboração do romance Nana, L’Assommoir, também de autoria de Zola, estava sendo

adaptado para o teatro, fato que levou o naturalista a discorrer sobre as diferenças entre a

literatura romanesca e a arte dramatúrgica.

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Para Zola, a dramaturgia apresentava alguns problemas “Nós fomos emparedados na

arte dramática atual, tão estreita, parecida com um porão onde faltam o ar e a luz? ”33 (ZOLA,

1881, p.4). Comparar o teatro do seu tempo com um porão mal iluminado contrasta com a

representação que Zola faz do Théâtre des Variétés, em que descreve as diferentes nuances de

iluminação e espaço.

Através das descrições, Zola aponta para o fato de que o romance consegue apresentar

a realidade da “coisa viva” de uma maneira que a dramaturgia não alcança. Em outras

palavras, faltavam à dramaturgia técnicas e tecnologias que ainda não haviam sido

desenvolvidas na época e sem as quais não era possível montar uma peça que representasse a

estética naturalista tanto quanto no romance.

A insatisfação de Zola com as adaptações de seu romance para o teatro, mesmo com o

sucesso de público, levou o autor a publicar, em 1881, a obra Le Naturalisme au théâtre: les

théories et les exemples, em que o autor discorre sobre uma dramaturgia que seguiria os

preceitos da tradição aristotélica.

O Théâtre des Variétés é retratado através de descrições que registram as

transformações da iluminação antes e durante o espetáculo. No caso da arquitetura e da

decoração34, as descrições podem ser categorizadas como descrição pictural, como Liliane

Louvel define em A descrição Pictural, por uma poética do iconotexto (2006).

O Théâtre des Variétés é cenário de três capítulos no romance Nana. No primeiro

capítulo, todo o enredo é descrito a partir dos olhos de um espectador na plateia. Já no quinto

capítulo, o ângulo muda e o narrador descreve o enredo pelos olhos daqueles que estão nos

bastidores. Há ainda, o nono capítulo que registra o teatro pelos olhos dos atores.

O primeiro capítulo do romance Nana terá toda a sua ação centrada no Théâtre des

Variétés. Logo na primeira cena do romance, há a descrição do teatro nos momentos antes da

estreia, a peça La Blonde Vénus, começar.

Tanto a arquitetura quanto a decoração do Théâtre des Variétés ilustram um microcosmo

da esfera social parisiense do Segundo Império. Frequentar um teatro de boulevard35, tal como

o Théâtre des Variétés, desempenhava uma função social, pois este teatro acolhe um público

de diferentes níveis sociais: desde jornalistas (Fauchery), políticos (o príncipe da Inglaterra),

nobres (Conde Muffat) e é claro, as atrizes como a protagonista Nana.

33 Tradução nossa. Original : « Nous a-t-on muré dans cet art dramatique actuel, si étroit, pareil à un caveau où

manquent l’air et la lumière ? » (ZOLA, 1881, p.4) 34 A picturalidade do Théâtre des Variétés será abordada na seção -5.1. Descrição do Théâtre des Variétés-. 35 Utilizamos o termo teatro de boulevard para identificar os teatros pequenos e privados, contrapondo-os aos

grandes teatros subvencionados como o Ópera e o Comédie Française.

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Destaco o trecho em que o leitor é situado no momento de frisson causado pela

entrada dos espectadores. A noite representada no romance Nana é uma noite de estreia, ou

seja, um evento que atrai um público seleto. Assim que a sala se enche, podemos perceber

como é composto esse público que foi assistir à primeira encenação de La Blonde Vénus:

Cependant, le chef d’orchestre levait son archet, les musiciens attaquaient

l’ouverture. On entrait toujours, l’agitation et le tapage croissaient. Parmi ce public

spécial des premières représentations, qui ne changeait pas, il y avait des coins

d’intimité où l’on se retrouvait en souriant. Des habitués, le chapeau sur la tête, à

l’aise et familiers, échangeaient des saluts. 36

(ZOLA, 1893, p.1103)

O trecho acima apresenta a composição de um público que vai a uma estreia; um

público especial, detentores de capital social e cultural. Os personagens que compõem este

coletivo trocam cumprimentos e saudações, o que indica uma certa familiaridade entre elas,

que por sua vez, implica que são personagens “seletos” que frequentam assiduamente os

mesmos lugares.

Como mencionado anteriormente, o grupo especial da noite de estreia da peça La

Blonde Vénus, protagonizada pela personagem Nana, era um grupo composto de jornalistas,

algumas mulheres honestas e homens de finanças e das letras, o que pode ser percebido no

trecho a seguir:

Paris était là, le Paris des lettres, de la finance et du plaisir, beaucoup de journalistes,

quelques femmes honnêtes ; monde singulièrement mêlé, fait de tous les génies, gâté

par tous les vices, où la même fatigue et la même fièvre passaient sur les visages.

Fauchery, que son cousin questionnait, lui montra les loges des journaux et des

cercles, puis il nomma les critiques dramatiques, un maigre, l’air desséché, avec de

minces lèvres méchantes, et surtout un gros, de mine bon enfant, se laissant aller sur

l’épaule de sa voisine, une ingénue qu’il couvait d’un œil paternel et tendre. 37

(ZOLA, 1893. p.1103)

Ir ao teatro não se limita a buscar uma forma de entretenimento, significa também ver

quem ali estava presente e ser visto pelos outros. Zola faz um contraponto entre a descrição do

teatro em seus ambientes internos e o movimento das ruas. O leitor presencia um momento de

uma Paris moderna, onde as pessoas podem sair para realizar atividades noturnas, algo

impossível anteriormente, por causa da precária iluminação noturna urbana.

36 Tradução: “Então, o maestro levantou a batuta e os músicos atacaram a abertura. As pessoas continuavam

entrando, e a agitação e o falatório eram crescentes. Entre o público especial das estreias que era sempre o

mesmo, havia recantos íntimos onde alguns espectadores habituais se encontravam sorridentes, de chapéu à

cabeça, à vontade como se estivessem em família, e trocavam cumprimentos.” (ZOLA, 2013. P.17) 37

Tradução: “Paris inteira estava ali, a Paris das letras, das finanças e do prazer, vários jornalistas, alguns

escritores, homens da Bolsa, mais raparigas que mulheres honestas; um mundo singularmente heterogêneo,

composto de todos os talentos, corrompido por todos os vícios, e com o mesmo cansaço e a mesma febre

corroendo as feições. Fauchery, a quem o primo fazia algumas perguntas, apontou os camarotes dos jornais e dos

círculos literários e, em seguida, nomeou os críticos de teatro, um magro, meio ressequido, de lábios finos e

sarcásticos, e um gordo, com cara de bom menino, que se inclinava sobre o ombro de sua vizinha, uma mulher

ingênua em quem ele pousava um olhar tenro e paternal.” (ZOLA, 2013. p.17)

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Ao longo do primeiro capítulo do romance, algumas perguntas se repetem “Quem é

Nana?”, “Quem a conhece?” e “Onde ela foi descoberta?”. A única informação presente no

início deste capítulo é que Nana será a protagonista da peça a ser encenada naquela noite: La

Blonde Vénus.

No trecho abaixo é descrito o primeiro ato da peça cujo enredo apresenta uma trama

que gira em torno de maridos que discutem sobre a possível infidelidade de suas esposas,

concentra-se no Olimpo, “um Olimpo de papelão”:

Derrière eux, on cria: “Silence!” Ils durent se taire. Maintenant, une immobilité

frappait la salle, des nappes de têtes, droites et attentives, montaient de l’orchestre à

l’amphithéâtre. Le premier acte de La Blonde Vénus se passait dans l’Olympe, un

Olympe de carton, avec des nuées pour coulisses et le trône de Jupiter à droite.

C’étaient d’abord Iris et Ganymède, aidés d’une troupe de serviteurs célestes, qui

chantaient un chœur en disposant les sièges des dieux pour le conseil. De nouveau,

les bravos réglés de la claque partirent tout seuls ; le public un peu dépaysé,

attendait. Cependant, la Faloise avait applaudi Clarisse Besnus, une des petites

femmes de Bordenave, qui jouait Iris, en bleu tendre, une grande écharpe aux sept

couleurs nouées à la taille. (ZOLA, 1893. p. 1105)38

Segundo o dossiê preparatório de Zola, o primeiro capítulo da obra se passa em abril

de 1867 (ZOLA, 2006). Nesta época, a maioria das peças encenadas no Théâtre des Variétés

eram as opéras-bouffe, operetas de bufonaria que satirizavam algum tema da sociedade, ou da

própria literatura universal. Segundo Thomasseau, as operetas se tornaram um gênero

importante durante este regime político como expõe a seguir:

Esse é o caso também com a opereta, que se torna um gênero de importância durante

o Segundo Império. Em um primeiro momento com a dupla Crémieux e Offenbach,

com a peça Orphée aux enfers (1858), e num segundo momento com o trio Meilhac-

Halévey-Offenbach, com La Belle Hélène (1864). 39

(THOMASSEAU, 2006, p. 175)

A peça no romance Nana é uma paródia encenando os deuses do Olimpo, o que

aproximamos da intriga de uma peça que teve sua primeira representação em 1864 no Théâtre

des Variétés, La Belle Hélène. Esta opereta composta por Jacques Offenbach e escrita por

Henri Meilhac e Ludovic Halévy também realizava uma paródia de um episódio da mitologia

38

Tradução: “Atrás deles gritaram “Silêncio!”. Precisaram se calar. Agora, uma imobilidade tomava a sala, um

mar de cabeças eretas e atentas ia da orquestra ao anfiteatro. A primeira cena de A Vênus Loira acontecia no

Olimpo, um Olimpo de papelão, com nuvens que serviam de bastidores, e o trono de Júpiter à direita. Íris e

Ganimedes entraram na frente acompanhados por uma trupe de servidores divinos que cantava um coro enquanto

preparava os assentos dos deuses para a assembleia. Mais uma vez, os aplausos da claque foram ouvidos

isoladamente; o público, ainda desambientado, continuava esperando. La Faloise, porém, aplaudiu Clarisse

Besnus, uma das raparigas de Bordenave, que fazia o papel de Íris, com um traje azul-claro e uma comprida

faixa de sete cores presa à cintura.” (ZOLA, 2013. p.19) 39Tradução nossa. Original : « C’est aussi certainement le cas avec l’opérette, devenue un genre majeur sous le

second Empire. Dans un premier temps avec le couple Crémieux e Offenbach et Orphée aux enfers (1858), dans

un deuxième avec le trio Meilhac-Halévy-Offenbach et La Belle Hélène (1864) » (THOMASSEAU, 2006, p.

175)

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grega. Entretanto, os personagens de La Blonde Vénus não são os mesmos que aqueles

presentes em La Belle-Hélène, cujos personagens são mortais ou semideuses: Hélène, Pâris,

Ménélas, Agamennon, Calchas, Oreste, Achille, Ajax Primeiro entre outros. Os personagens

do Olimpo presentes na peça La Blonde Vénus encenada no romance Nana são deuses: Vênus,

Júpiter, Iris, Ganymède, Diane, Vulcain e outros.

Outra peça também de autoria de Meilhac-Halévey-Offenbach é La Grande-duchesse

de Gérolstein cuja primeira representação foi em 1867, ou seja, no mesmo ano da peça

encenada no romance Nana, segundo o dossiê preparatório de Zola. De acordo com uma

biografia de Émile Zola, de autoria de Henri Mitterand, o naturalista teria pedido a Labarre o

livreto desta peça para preparar o primeiro capítulo do romance Nana, conforme descrito a

seguir:

Dois homens, durante o verão de 1878, completam a rede de informantes. Labarre,

caixa da Biblioteca Charpentier, et Henry Céard. Para Labarre, Zola pede em 10 de

julho um guia de ambientes de Paris e um exemplar do livreto de Meilhac e Halévy

da peça La Grande-duchesse de Gérolstein: este lhe servirá para dois objetivos. O

primeiro para sua crônica de teatro do dia 13 de agosto, publicada no jornal Le

Voltaire, e dedicada a Offenbach. O segundo objetivo é para escrever o primeiro

capítulo de Nana, que narra o triunfo da heroína na peça La Blonde Vénus, no

Théâtre des Variétés. (MITTERAND, 2001, p. 464-465)40

Ou seja, Zola buscou representar uma peça similar àquelas encenadas no período

representado no romance: de 1867 a 1870. Contudo, a peça La Blonde Vénus apresenta um

enredo próprio, cujos temas principais são o ciúme e a traição, isto é, temas que estarão

presentes em toda a narrativa de Nana.

O capítulo V apresenta toda a sua ação centrada nos bastidores do Théâtre des

Variétés, onde além de existir uma mistura de classes ainda maior do que a apresentada na

plateia; encontram-se desde atores a homens ricos, atrizes, figurinistas e até mesmo um

príncipe.

Logo no início do capítulo, o leitor torna-se ciente da decoração e mobília daquele

teatro. Enquanto que na plateia, apresenta-se um falso luxo através do veludo escarlate das

poltronas e das pilastras douradas, nos bastidores ocorre o inverso, onde não há sequer um

esforço para simular o luxo, considerando-se, por exemplo, a poltrona na qual senta um dos

40

Tradução nossa. Original :“Deux hommes, pendant l’été de 1878, viennent compléter le réseau de ses

informateurs : Labarre, qui est le caissier de la Bibliothèque Charpentier, et Henry Céard. À Labarre, Zola

demande, le 10 juillet, un guide des environs de Paris et un exemplaire du livret de Meilhac et Halévy pour La

Grande-duchesse de Gérolstein : celui-ci lui servira à deux fins, d’une part pour sa chronique dramatique du 13

août dans Le Voltaire, consacrée à Offenbach, d’autre part pour le premier chapitre de Nana, qui raconte le

triomphe de l’héroïne dans La Blonde Vénus, au Théâtre des Variétés. (MITTERAND, 2001, p. 464-465)

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atores: « Puis, il s’allongea dans un vaste fauteuil à oreillettes, dont le velours vert, usé par

quatre générations de comédiens, avait pris des tons jaunes »41(ZOLA, 1983, p.1196). A

poltrona é uma metonímia da frente do teatro, um local já frequentado por quatro gerações

cujo luxo original se desbotara com o tempo.

Aliás, caso chamemos o teatro da forma como Bordenave, seu dono insiste,

utilizaríamos a palavra bordel ao invés de teatro, como apresentado num diálogo entre o

diretor do teatro, Bordenave e, um novo frequentador, Hector:

Hector crut qu’il devait chercher une phrase aimable.

— Votre théâtre…, commença-t-il d’une voix flûtée.

Bordenave l’interrompit tranquillement, d’un mot cru, en homme qui aime les

situations franches.

— Dites mon bordel. (ZOLA, 1893, p.1097)42

Não é por acaso que Bordenave intitula seu teatro dessa forma, pois nos bastidores

ocorre uma forma de mercantilização das atrizes sustentada por homens ricos e nobres que

frequentam aquele local. No romance Nana, Zola registra que era costume que esses homens

esperassem no camarim pelas atrizes deste teatro, como é demonstrado na seguinte

cena: « D’ailleurs, la loge était toujours pleine de messieurs, gantés, corrects, l’air soumis et

patient. Tous attendaient, en se regardant avec gravité. »43 (ZOLA, 1983, p.1219). Esses

homens usando luvas, corretos e de ar submisso revelam uma outra faceta do teatro: o desejo

de homens nobres e ricos de “frequentar” atrizes de teatro.

Um dos homens nobres apresentados neste instante da narrativa é um príncipe, que

apresenta um comportamento que seria inadequado para um nobre, o que é avaliado por Satin,

prostitua e amiga de Nana, num momento dentro do camarim da protagonista:

Et, sans une goutte de sueur, madame Jules attendait de son air raide, tandis que

Satin, étonnée dans son vice de voir un prince et des messieurs en habit se mettre

avec des déguisés après une femme nue, songeait tout bas que les gens chic n’étaient

déjà pas si propres. 44

(ZOLA, 1983, p.1211)

A personagem Satin, nessa cena, tem a função de apontar que aquela ação vai contra o

que é considerado moral e correto, pois um homem -en habit-, ou seja, de casaca, portando

41 Tradução: “Depois, estirou-se numa poltrona bergère, cujo veludo verde, usado por quatro gerações de

comediantes, ganhara tons amarelados.” (ZOLA,2013, p.146) 42 Tradução: “Hector pensou que deveria encontrar uma frase simpática.

-Seu teatro... – começou, em voz flautada.

Bordenave interrompeu-o tranquilamente, no tom ríspido de um homem que gosta de situações francas.

-Diga meu “bordel”.” (ZOLA, 2013 p.8) 43 Tradução: “O camarim, aliás, estava sempre cheio de homens enluvados, corretos, com ar submisso. E

pacientes. Todos aguardavam, entreolhando-se com seriedade.” (ZOLA, 2013, p.179) 44 Tradução: “E, sem uma única gota de suor, Madame Jules aguardava com seu ar empertigado, enquanto Satin,

surpresa em ver um príncipe e homens de casaca metidos com aquela gente fantasiada, ao lado de uma mulher

quase nua, pensava que as pessoas finas já não eram muito decentes. ” (ZOLA, 2013, p. 167)

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trajes que o identificam como pertencendo à alta classe social, não deveria estar no mesmo

ambiente ocupado por uma mulher nua, nem por ela estar interessado. Mas durante todo o

capítulo, o príncipe que percorre os bastidores do teatro age com naturalidade diante das

coisas que presencia.

Também é retratada com certa naturalidade a relação entre o marido de Rose Mignon,

uma das principais atrizes do Théâtre des Variétés, e o amante de sua esposa, o jornalista

Fauchery. Uma relação que inicialmente parece amigável, pois o marido de Rose

aparentemente não se incomoda quando sua esposa é beijada pelo amante na frente de outras

pessoas, como demonstra a seguinte cena:

C’étaient là ses dédommagements. Mignon ne parut même pas remarquer ce baiser ;

tout le monde embrassait sa femme au théâtre. Mais il eut un rire, en jetant un mince

coup d’œil sur le journaliste ; sûrement celui-ci allait payer cher la bravade de Rose. 45

(ZOLA, 1983, p. 1200)

O trecho acima descreve uma ação que aparentemente não acarretaria em nada, afinal,

todos beijavam Rose Mignon. Porém, o marido de Rose, enciumado, provoca uma cena digna

de uma opereta de bufonaria, gênero encenado no palco, como é descrito numa cena seguinte:

Rose, immobile, regardait toujours les deux hommes.

— Mais ne regarde donc pas ! lui souffla furieusement Bordenave dans le cou. Va

donc ! va donc !… Ce n’est pas ton affaire ! Tu manques ton entrée !

Et, poussée par lui, Rose, enjambant les corps, se trouva en scène, dans le

flamboiement de la rampe, devant le public. Elle n’avait pas compris pourquoi ils

étaient par terre, à se battre. Tremblante, la tête emplie d’un bourdonnement, elle

descendit vers la rampe avec son beau sourire de Diane amoureuse, et elle attaqua la

première phrase de son duo, d’une voix si chaude, que le public lui fit une ovation. 46

(ZOLA, 1893, p. 1216)

Rose Mignon, o motivo da briga entre os dois homens, salta por cima dos corpos se

batendo no chão e entra no palco, incorporando a personagem Diane e acaba ainda por ser

ovacionada pelo público. A cena construída por Zola é quase um espelho da ação representada

no palco. Palco e bastidores se misturam -a mesma peça parece ser encenada no palco e atrás

dele-, pois os maridos traídos e enciumados no palco se confundem com homens tomados

pelos mesmos sentimentos atrás da ribalta.

45 Tradução: “Era daquele modo que ela descontava. Mignon nem pareceu ter notado aquele beijo; todos, no

teatro, beijavam sua mulher. Mas riu, lançando um lânguido olhar para o jornalista, certamente, este pagaria caro

pela bravata de Rose.” (ZOLA, 2013, p. 152) 46 Tradução: “Rose imóvel, continuava a olhar para os dois homens.

— Não fique aí olhando! — assoprou-lhe furiosamente Bordenave ao ouvido. — Anda! Anda!.... Isso não lhe

diz respeito. Está perdendo sua entrada em cena!

E, impelida por Bordenave, saltando por cima dos corpos, Rose viu-se em cena, no clarão da ribalta, diante do

público. Não compreendera por que eles estavam no chão, a se bater. Trêmula com um zumbido tomando conta

da cabeça, ela desceu em direção à rampa com seu belo sorriso de Diana apaixonada, e deu início à primeira

frase de seu dueto, com uma voz tão calorosa que o público a ovacionou.” (ZOLA, 2013, p. 175)

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Toda a ação narrada no capítulo V é percebida principalmente através dos olhos do

Conde Muffat, um voyeur, cujos olhos devoram tudo aquilo que nunca lhe fora apresentado.

Ao longo do capítulo, o personagem Muffat enfrenta uma batalha consigo mesmo: a moral

católica e social contra o desejo carnal. Mas com o transcorrer do capítulo, o desejo carnal

vence e o personagem cede a sua vontade de ver, como é descrito na cena a seguir:

Chaque soir, le même effet se produisait à l’entrée de Vénus, dans sa nudité de

déesse. Alors, Muffat voulut voir ; il appliqua l’œil à un trou. Au delà de l’arc de

cercle éblouissant de la rampe, la salle paraissait sombre, comme emplie d’une

fumée rousse ; et, sur ce fond neutre, où les rangées de visages mettaient une pâleur

brouillée, Nana se détachait en blanc, grandie, bouchant les loges, du balcon au

cintre.47

(ZOLA, 1983, p.1220-1221)

A cena acima apresenta-se quase como um clichê do que seria um voyeur, pois o

personagem admite que ele quer, de fato, ver – voulut voir- e, em seguida, posiciona os olhos

sobre um buraco -trou- a fim de olhar uma mulher que não têm ciência de estar sendo

observada. A cenografia da descrição produz uma cena emoldurada pelo buraco e com um

campo de visão limitado por causa do arco de circunferência -l’arc de cercle-, que não

permite que o personagem veja toda a plateia. Além disso, uma névoa avermelhada impera no

palco, tornando a visão da cena embaçada com exceção de Nana, que impera, poderosa e

branca no meio do palco.

A movimentação social que ocorre nos bastidores do Théâtre des Variétés revela o

verdadeiro comportamento dos homens de elite do Segundo Império, pois o que ocorre atrás

da ribalta descortina a hipocrisia da elite.

Toda a função e significação social do teatro podem ser resumidas através de uma

ponderação do narrador, que sintetiza: “Ce monde du théâtre prolongeait le monde réel, dans

une farce grave, sous la buée ardente du gaz.”48(ZOLA, 1983, p. 1210).

Émile Zola, através de seu método composto de observação e documentação,

representou, no romance Nana, o Théâtre des Variétés. No que tange à função social e à

encenação no palco, o naturalista buscou representar de maneira verossímil o que registrou

em seu dossiê preparatório, revelando, assim, uma fresta do comportamento da sociedade

parisiense do Segundo Império francês.

47 Tradução: “Todas as noites, produzia-se o mesmo efeito à entrada de Vênus, com sua nudez de deusa. Então

Muffat também quis olhar, e aproximou os olhos de um buraco. Para além do arco de circunferência ofuscante

dos refletores, a sala parecia sombria, como que tomada por uma fumaça avermelhada; e sobre aquele fundo

neutro, onde as fileiras de rostos adquiriam uma palidez enevoada, Naná destacava-se de branco, poderosa,

tapando a vista dos camarotes, do balcão à balaustrada.” (ZOLA, 2013, p. 181) 48 Tradução: “Aquele mundo do teatro prolongava o mundo real, numa farsa grave, sob a ardente claridade do

gás”. (ZOLA, 2013, p. 166)

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4.3. A sociabilidade parisiense através da vida privada: a soirée na casa do Muffat e a

ceia na casa de Nana

A leitura de eventos que ocorrem na casa de personagens -registros da vida privada- na

literatura pode constituir-se em um instrumento de análise da sociabilidade de um grupo de

personagens. Esses que, no romance Nana, apresentam-se na forma de uma soirée49 ou ceia

ilustram de que forma indivíduos interagem e se comportam em um evento que à primeira

vista tem a alimentação como objetivo principal. Mas em segundo plano, é visível a

sociabilidade: identificada através de índices como a roupa, a classe social, o nome, os

assuntos discutidos e é claro a comida e bebida ingeridas. No tocante à literatura francesa da

primeira metade século XIX, a refeição, principalmente o banquete é uma imagem metafórica,

um símbolo, mas raramente um motivo literário, isto significa que ela não é descrita ou

narrada, ela é somente evocada (SICOTTE, 2003, p.5).

Entretanto, este já não é mais o caso de eventos gastronômicos na obra do escritor

Émile Zola, que utiliza representações de refeições para descrever maneiras e os

comportamentos de um grupo de pessoas que compartilham interesses, como o teatro. No

romance Nana são ilustrados, através de uma ceia, comportamentos e atributos de um grupo

de personagens que se reúnem em volta da protagonista. Esta seção visa, através de uma

análise comparativa de dois eventos da vida privada presentes no romance Nana, ilustrar

como se comporta um grupo de personagens de diferentes origens sociais em duas

circunstâncias; uma soirée numa casa de uma família nobre e uma ceia oferecida pela cortesã.

A personagem Nana, através de seu corpo, funciona como um instrumento que leva

homens nobres ou da alta burguesia à decadência moral e econômica. Também será

demonstrado que numa soirée oferecida na casa de dois personagens nobres- o conde Muffat

e sua esposa Sabine- os homens nobres se organizam e convidam outros homens da mesma

classe social para a ceia de Nana. Por último, será apresentada a ceia de Nana, presente no

terceiro capítulo, que funciona como um espelho distorcido da soirée nobre posicionada no

capítulo anterior.

No romance L’Assommoir, Anna Coupeau, ainda adolescente, além de se prostituir,

recebe propostas de homens ricos que desejam seu corpo. Logo, no romance Nana, a mudança

da personagem não é radical, pois ela dá continuidade a um comportamento que já foi

apresentado em L’Assommoir. A maior diferença é que na obra homônima, Anna Coupeau se

49 Uma recepção noturna.

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transforma em Nana e se torna uma atriz de sucesso. Seu êxito enquanto atriz no Théâtre des

Variétés não é justificado por suas habilidades artísticas e sim por seu corpo, principalmente

seu cheiro (um índice que animaliza Nana) que é farejado por Bordenave, diretor do teatro

onde Nana atua.

Logo no primeiro capítulo é apresentado ao leitor o modo como Nana é representada

enquanto mulher. Apesar de ter sido escolhida para representar o papel principal da peça La

Blonde Vénus encenada durante o capítulo inicial, a personagem não sabe cantar, atuar ou

dançar, mas ela tem uma qualidade única, como descrita pelo personagem Bordenave; e lemos

o verbo farejar não somente no sentido figurado -adivinhar, intuir-, mas também em seu

sentido próprio, seguir pelo faro um animal.

— Un four ! un four ! cria le directeur dont la face s’empourprait. Est-ce qu’une

femme a besoin de savoir jouer et chanter ? Ah ! mon petit, tu es trop bête… Nana a

autre chose, parbleu ! et quelque chose qui remplace tout. Je l’ai flairée, c’est

joliment fort chez elle, ou je n’ai plus que le nez d’un imbécile… Tu verras, tu

verras, elle n’a qu’à paraître, toute la salle tirera la langue.50

(ZOLA, 1893, p.1098)

A pergunta -Est-ce qu’une femme a besoin de savoir jouer et chanter? (E desde

quando uma mulher precisa saber atuar e cantar?) -, feita por Bordenave, à qual ele mesmo

responde, destaca a qualidade mais atraente da personagem Nana, que só precisa aparecer e é

o que ocorre ao longo do primeiro capítulo numa cena em que ela surge nua no palco coberta

apenas por gazes :

Un frisson remua la salle. Nana était nue. Elle était nue avec une tranquille audace,

certaine de la toute-puissance de sa chair. Une simple gaze l’enveloppait ; ses

épaules rondes, sa gorge d’amazone dont les pointes roses se tenaient levées et

rigides comme des lances, ses larges hanches qui roulaient dans un balancement

voluptueux, ses cuisses de blonde grasse, tout son corps se devinait, se voyait sous le

tissu léger, d’une blancheur d’écume. C’était Vénus naissant des flots, n’ayant pour

voile que ses cheveux. 51

(ZOLA, 1893, p.1198)

O trecho acima é a descrição do modo como a protagonista do romance Nana aparece

pela primeira vez na narrativa: nua, loira e a encarnação da deusa do amor. A descrição acima

50 Tradução: “(…) E desde quando uma mulher precisa saber atuar e cantar? Ah, meu caro, você é mesmo um

tolo... Naná tem algo a mais, pode acreditar! E é algo que vale mais do que muitas outras coisas. Eu farejei isso,

e é extremamente forte nela, ou então sou eu que tenho o nariz de um imbecil. Você vai ver, você vai ver, ela só

precisa aparece para deixar toda a sala boquiaberta.“(ZOLA, 2013, p.10)

51 Tradução: “Um tremor tomou conta da sala. Naná estava nua. Estava nua e com uma audácia tranquila, segura

do poderio de sua bela corpulência. Uma gaze a envolvia; seus ombros redondos, seu colo de amazona, cujos

mamilos róseos se mantinham aparentes e rígidos como lanças, suas largas ancas, que rebolavam em um gingado

voluptuoso, suas coxas de loira robusta; todo seu corpo se deixava adivinhar, sob o tecido leve de uma brancura

de espuma. Era Vênus nascendo das ondas; como véu, tinha apenas os cabelos.” (ZOLA, 2013, p. 37)

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pode se configurar como uma descrição pictural de efeito-quadro, principalmente por causa da

última frase do extrato - C’était Vénus naissant des flots, n’ayant pour voile que ses cheveux

(Era Vênus nascendo das ondas; como véu tinha apenas os cabelos). Essa oração evoca a

imagem de Vênus completamente nua tendo como véu apenas seus cabelos, o que, por sua

vez, pode ser lida como uma alusão à célebre tela de Sandro Botticelli: O nascimento de

Vênus (1486):

FIGURA 7

Nascita di Venere (1483-1486)

Sandro Botticelli

Têmpera sobre tela. 278,5 cm. X 172,5 cm

Galleria degli Uffizi

A tela de Botticelli representa o nascimento de Vênus e nela a deusa aparece nua

coberta apenas por seus cabelos. Outro ponto em destaque do quadro, são as ondas que

ocupam quase metade da tela, indicado a origem do nascimento de Vênus. Essa tela do pintor

renascentista italiano apresenta uma característica muito similar à descrição da personagem

homônima do romance Nana: a nudez de ambas as personagens, que no caso de Nana é

expressa pelo adjetivo – nue (nua); Outro ponto em comum ao quadro e a descrição é o

posicionamento das personagens, pois ambas ocupam posições centrais, a deusa no centro da

tela e Nana no centro do palco.

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Na mitologia latina, a responsável pelo amor e beleza é a deusa Vênus, nomeada

Afrodite na mitologia grega. Logo, a escolha de Nana para interpretar essa deusa não é

arbitrária. É notável a reação do público masculino perante a presença de Nana no placo,

conforme indicado ainda no primeiro capítulo: “Nana avait pris possession du public, et

maintenant chaque homme la subissait”52. (ZOLA, 1893, p.1119)

Em outras palavras, como afirmado por Bordenave no início do capítulo, a atriz Nana

não precisa saber atuar, cantar ou dançar, ela só precisa aparecer, pois seu corpo e sua presença

são seus grandes talentos. Devido à participação de Nana na peça La Blonde Vénus, ela se torna

um grande sucesso e se transformará em uma figura social importante, pois sua casa será

frequentada por personagens proeminentes na sociedade, homens nobres, burgueses e ricos e

outras mulheres que, como ela, também circulam entras as diferentes camadas sociais.

O terceiro capítulo do romance Nana é destinado à descrição de uma soirée oferecida

pelo Conde Muffat e sua esposa Sabine. Este ponto da narrativa inicia-se localizando a casa

desses personagens nobres, situada na rua Miromesnil e em seguida descreve seu interior. Ao

longo da descrição é explicitado pelo narrador que, apesar da existência de uma sala de jantar, a

condessa Sabine decide abrir o salão para o evento daquela noite, pois os convidados, uma

dezena, serão melhor acomodados neste espaço. Segue em destaque a cena mencionada:

Ce mardi, vers dix heures, il y avait à peine une douzaine de personnes dans le

salon. Lorsqu’elle n’attendait que des intimes, la comtesse n’ouvrait ni le petit salon

ni la salle à manger. On était plus entre soi, on causait près du feu. Le salon,

d’ailleurs, était très grand, très haut ; quatre fenêtres donnaient sur le jardin, dont on

sentait l’humidité par cette pluvieuse soirée de la fin d’avril, malgré les fortes

bûches qui brûlaient dans la cheminée. 53

(ZOLA, 1983, p.1144)

A frase - cette pluvieuse soirée de la fin d’avril (daquela noite chuvosa de fim de abril)

- indica que o capítulo descreve uma noite de início de primavera e destaca a atmosfera fria

que impera no ambiente. A temperatura fria da sala reflete o sentimento de tédio que

acompanha a reunião de um grupo íntimo dos Muffat, visto que os assuntos que parecem

ganhar destaque durante os diálogos deste capítulo são comentários sobre homens ilustres, os

quais estão ausentes nesta reunião, e também sobre a ceia que acontecerá na noite seguinte na

casa de Nana.

52 Tradução:”Naná se apossou do público e, agora, todos os homens se rendiam definitivamente a el.a” (ZOLA,

2013, p.38). 53

Tradução: “Naquela terça-feira, por volta das dez horas, havia, se muito, cerca de doze pessoas na sala.

Quando convidava apenas os íntimos, a condessa não abria a sala menor nem a sala de jantar. Assim, ficavam

mais próximos e podiam conversar junto ao fogo. A sala, aliás, era muito grande, muito alta; quatro janelas

davam para jardim, de onde se sentia a umidade daquela noite chuvosa de fim de abril, apesar das grossas achas

que queimavam na lareira.” (ZOLA, 2013, p.73)

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Durante todo o capítulo III os convidados masculinos, entre cochichos, discorrem

sobre a ceia que ocorrerá na casa de Nana. Essa discrição em tratar da ceia que será ofertada

por Nana, e também em tratar das convidadas que lá estarão presentes indica uma distinção

entre a reunião na casa dos Muffat e a refeição que será tema do capítulo seguinte.

O capítulo IV dedica-se exclusivamente à descrição de uma ceia oferecida por uma

atriz que visa celebrar seu sucesso, como é sublinhado pelo narrador no início do capítulo:

“Elle voulait fêter son grand succès d’actrice par un souper”54 (ZOLA, 1893, p.1165). Ao

longo da narração e descrição da cena da ceia, um evento de sociabilidade, é descrito tudo

aquilo que compõe um evento gastronômico: o local em que será oferecido, os convidados, a

decoração da mesa, a disposição de lugares e a comida e bebida servidas.

A ceia de Nana está inserida no não-lugar de onde se extrai a capacidade de deslocar

homens localizados no verdadeiro lugar, a alta sociedade. A personagem Nana não funciona

como um instrumento de subversão completa, pois ela é o centro de uma delicada negociação

entre o lugar, que representa a alta sociedade, e o não-lugar, que representa um mundo similar

àquele da alta sociedade, porém no qual certos comportamentos e valores são invertidos.

Primeiramente, comentaremos o local e a forma como a ceia foi organizada. Como

mencionado, a refeição que celebra o sucesso de Nana enquanto atriz terá como cenário a casa

da personagem, como descrito no início do capítulo: “Elle occupait, boulevard Haussmann, le

second étage d’une grande maison neuve, dont le propriétaire louait à des dames seules, pour

leur faire essuyer les plâtres.”55(ZOLA, 1983, p.1122)

A casa ocupada por Nana é nova e representa um resultado da política de urbanização

parisiense do Segundo Império. O prefeito da região administrativa de Seine, Georges Eugène

Haussmann, durante o Segundo Império francês buscou, em seu mandato, realizar a

modernização de Paris. Para atingir tal objetivo, uma das ações realizadas por ele foi a

abertura de uma larga artéria no centro de Paris, em 1862, que se tornou o Boulevard

Haussmann.

Ao compararmos a casa recém construída de Nana com o apartamento dos Muffat, o

contraste é evidente. A residência dos Muffat, uma casa antiga e grande, representaria a antiga

54 Tradução: “Queria festejar seu grande sucesso de atriz com uma ceia que depois fosse comentada” (ZOLA,

2013, p.104) 55 Tradução: “Ela ocupava, no boulevard Haussmann, o segundo andar de uma casa grande e nova, cujo

proprietário alugava a mulheres para que elas a inaugurassem, ainda com o gesso fresco [fazendo os reparos

necessários]” (ZOLA, 2013, p.42).

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Paris, intocada pelas reformas de Haussmann, e a casa de Nana, a contemporaneidade e

modernização do Segundo Império francês.

A ceia na casa de Nana, apesar de estar localizada em uma região privilegiada, não

reflete a condição de sua dona, pois ela não é rica, muito menos nobre. Ou seja, Nana não

domina os saberes, modos e atitudes de uma mulher de família abastada, ela apenas presume o

que é elegante. Para a personagem, preparar uma ceia com suas próprias mãos não reflete a

posição que ela ocupa naquele momento, isto é, a de uma atriz de sucesso. Por não ter criados

à altura de suas pretensões, ela delega louça, prataria, toalhas e móveis ao maître do Café

Brébant e sua equipe, conforme informa o narrador:

Depuis le matin, Zoé avait livré l’appartement à un maître d’hôtel, venu de chez

Brébant avec un personnel d’aides et de garçons. C’était Brébant qui devait tout

fournir, le souper, la vaisselle, les cristaux, le linge, les fleurs, jusqu’à des sièges et à

des tabourets. 56

(ZOLA, 1983 p.1165)

Fica a cargo então do maître do Café Brébant a responsabilidade de organizar e servir

toda a ceia: a comida, as roupas de mesa, as flores, os cristais e as cadeiras.

O Café Brébant foi um dos restaurantes que hospedou o jantar Bœuf nature57, um

jantar artístico e literário cujos convidados em sua maioria eram escritores naturalistas,

principalmente Zola e seus discípulos. Havia outros convidados nesse jantar como Gustave

Flaubert e Joris-Karl Huysmans. Segundo Lepage em Les dîners artistiques et littéraires de

Paris (1884), o jantar já indicava no nome seu teor naturalista:

Ce dîner a un titre tout naturaliste, il n’est donc pas étonnant que M. Zola et ses

disciples en aient fait partie. Il existe depuis 1864, mais à cette époque il n’avait pas

l’importance qu’il a acquise depuis et ensuite reperdue. On se réunit au café Procope,

ensuite chez Laffitte, rue de Taranne – aujourd’hui boulevard Saint-Germain. Vers

1876 on retourna au Procope que l’on quitta tout à fait pour aller s’échouer chez

Brébant. 58

(LEPAGE, 1884, p. 285)

A escolha do Café Brébant para servir a ceia celebrativa de Nana não foi arbitrária,

pois marca a participação de Émile Zola na tribo de escritores naturalistas, grupo literário do

qual fazia parte este autor. Apesar desse café ser um restaurante frequentado pela classe

artística de Paris, não era elegante como assim presume Nana, ao justificar sua decisão de

56 Tradução: “Desde a manhã, Zoé entregara o apartamento a um maître, vindo do Café Brébant com um serviço

de ajudantes e garçons. Era Brébant quem deveria fornecer tudo, desde a ceia, a louça, os cristais, as roupas de

mesa, as flores, até as cadeiras e os tamboretes.” (ZOLA, 2013, p.104) 57 Uma tradução para o nome desse jantar seria – boi natural ou sem temperos-. 58 Tradução livre: “Este jantar já tem um título inteiramente naturalista, sendo assim, não é surpreendente que o

senhor Zola e seus discípulos tenham participado. Ele (o jantar) existe desde 1864, mas nessa época ele não tinha

a importância que ele assumiu depois e em seguida perdeu. Os convivas se encontravam no café Procope, e em

seguida no Laffitte, localizado na rua de Taranne – hoje conhecida como boulevard Saint-Germain. Por volta de

1876 retornaram ao Procope que foi abandonado para irem aportar no Brébant.” (LEPAGE, 1884, p. 285)

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delegar a organização da ceia para um maître deste café, como comentado por ela: “et, n’ayant

pas encore eu le temps de se monter dans son nouveau lançage, dédaignant d’aller au

restaurant, elle avait préféré faire venir le restaurant chez elle. Ça lui semblait plus chic.”59

(ZOLA, p. 1893, p.1165)

Entretanto, apesar de Nana ter delegado a organização de sua ceia para o maître do

café Brébant, há uma certa dificuldade para preparar a casa da cortesã a fim de receber os

convidados. A casa de Nana não é tão grande como a dos Muffat, portanto sua sala de jantar

não é espaçosa o suficiente: « Comme la salle à manger était trop petite, le maître d’hôtel avait

dressé la table dans le salon, une table où tenaient vingt-cinq couverts, un peu serrés. »60

(ZOLA, 1893, p.1165)

A decisão de receber os convidados no salão ao invés da sala de jantar, que seria o

local apropriado, reflete-se por toda a casa, pois os móveis que antes estavam no salão são

espalhados pelo resto da moradia de Nana. Quando o narrador descreve o desarranjo feito a fim

de organizar a casa para oferecer a ceia, é visível o despreparo de Nana para receber pessoas

em sua casa para uma ceia.

Na noite da ceia celebrativa de Nana, a atriz sai do Théâtre des Variétés, localizado

perto da sua casa, depois da meia-noite. Assim que entra, Zoé avisa que alguns convidados já

chegaram e foram para o salão, que é uma modesta saleta. Os convidados ficam “amontoados”,

conforme descrito pelo narrador: « Un laquais, loué à la nuit, introduisait les invités dans le

petit salon, une pièce étroite où l’on avait laissé quatre fauteuils seulement, pour y entasser le

monde. »61 (ZOLA, 1983, p. 1163). Vemos, mais uma vez, que a casa de Nana não comporta

um número tão grande de pessoas.

Os homens convidados por Nana para a sua ceia celebrativa estavam em sua maioria

presentes na soirée na casa dos Muffat. A grande diferença entre os convidados são as

mulheres, pois os homens não vêm acompanhados de suas esposas. O narrador descreve, em

determinado momento da ceia, o conjunto dos convidados presentes na casa da atriz:

Le matin encore, Nana le disait à sa tante : en hommes, on ne pouvait pas avoir

mieux ; tous nobles ou tous riches ; enfin, des hommes chic. Et, quant aux dames,

elles se tenaient très bien. Quelques-unes, Blanche, Léa, Louise, étaient venues

59 Tradução: “e como ainda não tivera tempo de se promover em sua nova posição, desdenhava ir ao restaurante,

preferia que o restaurante viesse até sua casa. Aquilo lhe parecia mais chique.” (ZOLA, 2013, p. 103) 60 Tradução: “Como a sala de jantar era muito pequena, o maître prepara a mesa do salão; uma mesa para vinte e

cinco pessoas um pouco apertadas.” (ZOLA, 2013, p.103) 61 Tradução: “Um lacaio contratado para a noite introduzia os convidados na pequena sala, um cômodo estreito

onde haviam deixado apenas quatro poltronas para mais gente.” (ZOLA, 2013, p.105)

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décolletées ; seule, Gaga en montrait peut-être un peu trop, d’autant plus qu’à son

âge elle aurait mieux fait de n’en pas montrer du tout.62

(ZOLA, 1983, p.1173)

A citação, em destaque, ilustra a quais grupos sociais pertencem os convidados

homens pois, se não eram nobres, eram ricos, mas todos eram chiques. Já em relação às

mulheres não há comentários sobre a classe social à qual elas pertencem. O fato de não serem

identificadas pelo sobrenome as caracteriza como pertencendo às classes populares. O detalhe

dos decotes indica que são atrizes-prostitutas, como Nana.

Há um contraste entre os trajes das mulheres e dos homens, estes estão todos vestidos

“en habit” (de casaca), trajando gravata branca, a cor adequada a ser usada em um evento

noturno (YON, 2004), como descrito pelo narrador: “Autour de la table, ces messieurs, en

habit et en cravate blanche, étaient très corrects”63 (ZOLA, 2000, p.116). Aliás, até o adjetivo

utilizado para classificar os homens -corrects (corretos)- produz uma relação contrastante com

as palavras que qualificam as mulheres - elles se tenaient très bien (elas se comportavam

muito bem) -, elas estavam comportadas, o que indica que isso não acorria habitualmente.

A descrição dos trajes e do comportamento de convidados e convidadas, através do

olhar descritor de Nana, opõe os dois grupos. Os homens pertencem às classes dominantes e

seus trajes marcam essa posição; as convidadas são mulheres do povo, que se vestem para

uma oferta carnal. São grupos opostos que se reúnem para interesses complementares, com

um simulacro de respeitabilidade, isto é, celebrar o sucesso de Nana como atriz é um pretexto.

Os homens competem por o sexo, e as mulheres por dinheiro.

Além de celebrar o sucesso de Nana como atriz, a ceia tem um segundo objetivo: a

oferta do corpo da própria personagem, como aponta Sicotte:

Le repas servi lors de la soirée du « lancement » de Nana semble tenir à la fois du

souper coquin et du grand dîner prié bourgeois, mais il ne réussit à imiter

adéquatement ni l’un, ni l’autre modèle, et dissimule sous cette identité fluctuante sa

vraie nature : il sert à vendre le corps de Nana, objet charnel où se confondent la

mercantilisation du sexe et la sexualisation de l’argent. 64(SICOTTE, 2003, p.24)

62 Tradução: “Ainda pela manhã, Naná dizia a sua tia: em matéria de homens, não era possível encontrar nada

melhor; todos eram nobres ou ricos; enfim, homens muito elegantes. E, quanto às mulheres, elas se

comportavam muito bem. Algumas delas, Blanche, Léa, Louise, vieram decotadas, apenas Gagá se exibia talvez

um pouco demasiado, ainda mais porque, com sua idade, faria melhor em não mostrar absolutamente nada.”

(ZOLA, 2013, p.115) 63 Tradução: “Em volta da mesa, aqueles senhores, de casaca e gravata branca, comportavam-se muito bem.”

(ZOLA, 2013, p.115) 64 Tradução: “A refeição servida logo após “o lançamento” de Nana parece tentar ser ou uma ceia libertina ou

um jantar burguês de lugares marcados, mas ele não consegue imitar adequadamente nenhum outro modelo, e

dissimula sob essa identidade flutuante sua verdadeira natureza: ele serve para vender o corpo de Nana, objeto

carnal, no qual se confundem a mercantilização do sexo e a sexualização do dinheiro.” (SICOTTE, 2003, p.24)

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Um dos convidados que tem interesse em comprar o corpo de Nana é o banqueiro

Steiner, descrito como um homem rico que gasta toda a sua fortuna com cortesãs. Esse

personagem tem uma relação íntima com a personagem Rose Mignon, a antiga atriz principal

do Théâtre des Variétés. Contudo, interessado em Nana ele é incentivado por Mignon, marido

de Rose, a se aproximar de Nana no decorrer do evento gastronômico, conforme apresentado

no diálogo abaixo:

Ils se tournèrent le dos, ils étaient fâchés. Justement, Mignon poussait Steiner contre

Nana. Lorsque celle-ci fut seule, il lui dit à voix basse, avec un cynisme bon enfant

de compère qui veut le plaisir d’un ami :

— Vous savez qu’il en meurt… Seulement, il a peur de ma femme. N’est-ce pas que

vous le défendrez ?65

(ZOLA, 1983, p.1167)

Vemos aqui uma crítica ao comportamento de certos homens no Segundo Império. Em

Nana, certos hábitos são comuns, como a oferta das cortesãs que procuram ser sustentadas por

homens nobres e ricos. É o medo da miséria que leva mulheres do povo à prostituição. Há,

durante todo o romance, vários homens que sucumbem aos encantos de Nana.

Outro contraste entre a soirée na casa dos Muffat e a ceia oferecida por Nana é o

número de convidados. A condessa Sabine de Muffat convidara uma dezena de pessoas

consideradas íntimas. Por outro lado, na ceia de Nana, apesar do espaço reduzido da casa da

atriz, há vinte e cinco convidados. Contudo, esse número aumenta, pois ao longo do capítulo

outros convidados, em sua grande maioria homens, chegam atrasados para a ceia de Nana,

que parece não os reconhecer, conforme menciona ao ver várias pessoas chegarem em sua

casa:

Nana s’impatientait, n’attendant plus d’invités, s’étonnant qu’on ne servît pas. Elle

avait envoyé Georges demander ce qui se passait, lorsqu’elle resta très surprise de

voir encore entrer du monde, des hommes, des femmes. Ceux-là, elle ne les

connaissait pas du tout. Alors, un peu embarrassée, elle interrogea Bordenave,

Mignon, Labordette. Ils ne les connaissaient pas non plus. Quand elle s’adressa au

comte de Vandeuvres, il se souvint brusquement ; c’étaient les jeunes gens qu’il

avait racolés chez le comte Muffat. 66

(ZOLA, 1983, p.1168)

65 Tradução: “Justo nesse momento, Mignon empurrava Steiner na direção de Naná. Quando ela ficou sozinha,

disse-lhe em voz baixa, com um cinismo de comparsa que quer satisfazer um amigo:

– Você sabe que ele morre de vontade… Mas tem medo de minha mulher. Não é verdade que o

defenderá? ” (ZOLA, 2013, p.107) 66 Tradução: “Naná impacientava-se; como não estava esperando por mais convidados, achou estranho que ainda

não estivessem servindo. Pedira para Georges verificar o que estava acontecendo e ficou muito surpresa em

perceber que chegavam outras pessoas, homens e mulheres. Aqueles, ela de fato não conhecia. Então, um pouco

embaraçada, consultou Bordenave, Mignon e Labordette. Eles também não os conheciam. Quando se dirigiu ao

Conde de Vandeuvres, ele se lembrou subitamente: eram os rapazes que ele recrutara na casa do Conde Muffat.”

(ZOLA, 2013, p.109-110).

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Outro ponto do capítulo IV que demonstra a falta de compostura dos convidados e

também da própria anfitriã é a maneira como as pessoas entram no salão, a fim de dar início à

refeição: “Les hommes et les femmes entrèrent débandés, plaisantant avec une bonhomie

bourgeoise sur ce manque de cérémonie”67(ZOLA, 1983, p.1171). Como descrito pelo

narrador, impera, na ceia de Nana, uma falta de cerimônia por parte dos convidados que se

divertem com a falta de regras de etiqueta.

Não há ordem de entrada, não há lugares marcados e as pessoas sentam onde acham

melhor, como comenta Nana, em determinado momento, após ver a desordem causada pela

falta de designação de lugares: “Vous savez, dit Nana, on se place comme on veut... C’est

plus amusant.”68 (ZOLA, 1983, p. 1171). O comentário de Nana, “é mais divertido”, permite

de certa maneira que seus convidados sentem em qualquer assento, demonstra o objetivo

principal daquela ceia: a diversão dos convidados. O que se contrapõe ao sentimento de tédio

que imperava durante a reunião sóbria na casa dos Muffat.

Como mencionado anteriormente, a organização e preparação da ceia ficaram a cargo

do maître do Café Brébant e foi assim determinado, pois Nana achava mais elegante. A

impressão de que esse evento seria elegante é desfeita quando a mesa de jantar é descrita:

Une longue table allait d’un bout à l’autre de la vaste pièce, vide de meubles ; et

cette table se trouvait encore trop petite, car les assiettes se touchaient. Quatre

candélabres à dix bougies éclairaient le couvert, un surtout en plaqué, avec des

gerbes de fleurs à droite et à gauche. C’était un luxe de restaurant, de la porcelaine à

filets dorés, sans chiffre, de l’argenterie usée et ternie par les continuels lavages, des

cristaux dont on pouvait compléter les douzaines dépareillées dans tous les bazars.

Cela sentait une crémaillère pendue trop vite, au milieu d’une fortune subite, et

lorsque rien n’était encore en place. Un lustre manquait ; les candélabres, dont les

bougies très hautes s’éméchaient à peine, faisaient un jour pâle et jaune au-dessus

des compotiers, des assiettes montées, des jattes, où les fruits, les petits fours, les

confitures alternaient symétriquement. 69

(ZOLA, 1983, p.1171)

A mesa, preparada pelo maître, apesar de longa ainda não comporta todos os

convidados; lugares estão muito próximos uns dos outros, como apontado na oração -et cette

67 Tradução: “Homens e mulheres entraram desordenadamente, caçoando com uma cordialidade burguesa

daquela falta de cerimônia” (ZOLA, 2013, p. 111) 68 Tradução: “– Vocês já sabem – disse Naná –, sentamos onde quisermos. Assim é mais divertido. (ZOLA,

2013. p.112) 69 Tradução: “Uma mesa comprida ia de uma ponta à outra do vasto cômodo, que quase não tinha móveis; ainda

assim a mesa era muito pequena e os pratos ficavam encostados uns aos outros. Quatro candelabros de dez velas

iluminavam os talheres, principalmente um, folheado de plaquê, com ramos de flores à direita e à esquerda.

Havia um luxo de restaurante, porcelana com fios dourados, sem marca, prataria usada e desbotada por contínuas

lavagens, cristais cujo pares incompletos poderiam ser encontrados em qualquer bazar. Aquilo cheirava a

inauguração de casa montada muito rapidamente, em meio a uma fortuna repentina, e quando nada se encontrava

em seu devido lugar. Faltava um lustre; os candelabros, cujas velas muito altas se acendiam com dificuldade,

projetavam uma claridade pálida e amarelada sobre as compoteiras, os pratos servidos e as tigelas, onde as

frutas, os docinhos e as geleias se alternavam simetricamente.” (ZOLA, 2013, p.111-112)

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table se trouvait encore trop petite, car les assiettes se touchaient- (ainda assim a mesa era

muito pequena e os pratos ficavam encostados uns aos outros), o que causa desconforto

durante a ceia. Além disso, um jantar chique não deve permitir que os braços dos convidados

se toquem, o que não ocorre na ceia de Nana, pois não há espaço suficiente para os vinte e

cinco convidados incialmente previstos e todos os outros retardatários, esses que Nana sequer

se recorda de ter convidado. Outro ponto que anuncia a falta de elegância da ceia -que

segundo o narrador apresenta um luxo de restaurante- é a aparência da prataria degastada

devido a contínuas lavagens. Além do desgaste na aparência da prataria, os talheres e os

cristais que decoram a mesa são desparelhadas, podendo ser completados em qualquer bazar.

Há, ainda, a indicação do narrador que informa que a casa de Nana parece uma casa

organizada apressadamente por alguém que enriqueceu subitamente: -Cela sentait une

crémaillère pendue trop vite, au milieu d’une fortune subite (Aquilo cheirava a inauguração

de casa montada muito rapidamente, em meio a uma fortuna repentina).

A mesa da ceia de Nana que, inicialmente, comportaria vinte e cinco convidados

modifica-se conforme o desenrolar do capítulo. E ao final, há no total trinta e oito

personagens à mesa, conforme descreve o narrador: “Une chaleur montait des candélabres,

des plats promenés, de la table entière où trente-huit personnes s’étouffaient.”70 (ZOLA, 1983.

p.1176)

A disposição de lugares à mesa do capítulo VI foi preparada e desenhada por Émile

Zola antes de sua redação e está presente no dossiê preparatório de Nana, em que o autor

inseriu toda a pesquisa feita para a redação do romance (FIGURA 8). Os lugares na ceia de

Nana não foram pré-definidos pela anfitriã, tampouco seguem uma ordem de quem deveria se

sentar ao lado de quem. É possível identificar, na disposição de lugares, que Nana, a anfitriã,

se acomoda ao centro da mesa com dois homens ao seu lado, esses são, segundo os outros

convidados, os mais ricos e provavelmente será um dos dois que pagará pela ceia. Ainda no

centro da mesa, segue-se uma alternância de sexo em relação aos lugares. Porém, nas pontas

da mesa, sentam de maneira apertada várias mulheres.

A definição dos lugares prevista por Zola é importante no que concerne ao transcorrer

da ceia. É através da disposição de lugares que certos episódios contribuem para ilustrar o

comportamento dos homens da alta sociedade. Segue o esboço da disposição dos lugares feito

70 Tradução: “Um mormaço subia dos candelabros, dos pratos servidos, de toda a mesa, onde trinta e oito

pessoas se encontravam sufocadas.” (ZOLA, 2013, p. 119).

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por Émile Zola. No centro de uma mesa francesa sentam-se além dos donos da casa, os

homens notáveis que foram convidados para aquele evento.

FIGURA 8

DESENHO DA MESA DA CEIA DE NANA

(ZOLA, 2006, p. 211)

Durante a ceia de Nana, ocorrem alguns episódios cênicos que caracterizam o

comportamento dos homens ricos e nobres. Há, por exemplo, a ação de um convidado,

Bordenave (dono do Théâtre des Variétés) que nos chama a atenção; o personagem está

sentado no centro da mesa, em frente à Nana, como é visível na imagem acima. A justificativa

dada para a área destinada a Bordenave- o comensal que mais tem espaço à mesa- é a sua

perna quebrada, resultado de um acidente no dia anterior. Devido à perna quebrada, foi

necessário que ele ocupasse dois assentos, fato que também o impossibilitava de alcançar seu

prato. Portanto, no decorrer do jantar, as atrizes de seu teatro revezam-se para cortar os

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pedaços de carne em seu prato, implicando de certa forma, uma hierarquia social entre os

convidados.

Outro episódio que acontece durante a ceia é a aproximação entre La Faloise e a

personagem Gaga. La Faloise, personagem baseado em um amigo de Zola, é descrito no

dossiê preparatório do autor como um homem elegante, magro e comprido (ZOLA, 2006, p.

396). Inicialmente, La Faloise mantem uma relação com Clarisse Besnus, sentada à sua frente,

porém durante a ceia ele irá demonstrar interesse em começar um novo relacionamento com a

experiente cortesã Gaga. Além disso, Zola também utiliza este personagem para retratar um

outro episódio que lhe foi narrado por Henry Céard, que também está inserido do dossiê de

Nana. Nas anotações de Céard, inserida no dossiê preparatório, (ZOLA, 2006, p. 468), ele

descreve um jantar no qual um convidado de nome Forgemol declara ter perdido seu lenço no

evento. Desta forma, Zola utiliza as anotações do amigo e insere esse episódio no capítulo IV:

La Faloise, dont la tête tournait, se remuait beaucoup, en se serrant contre Gaga.

Mais une inquiétude avait achevé de l’agiter : on venait de lui prendre son mouchoir,

il réclamait son mouchoir avec l’entêtement de l’ivresse, interrogeant ses voisins, se

baissant pour regarder sous les sièges et sous les pieds. Et, comme Gaga tâchait de le

tranquilliser :

— C’est stupide, murmura-t-il ; il y a, au coin, mes initiales et ma couronne… Ça

peut me compromettre.71

(ZOLA, 1983, p.1183)

La Faloise lamenta a perda de seu lenço, pois nele estão bordados suas iniciais e seu

brasão e ele teme que alguém o comprometa, já que o lenço será uma prova de que ele

estivera num jantar oferecido por uma atriz.

Outro convidado presente na ceia de Nana, que permanece praticamente mudo ao

longo da ceia, é o jovem Georges Hugon; filho de uma nobre senhora que também estava

presente na casa dos Muffat. Durante a ceia, o narrador descreve os pensamentos que passam

na mente desse jovem que, devido à bebida alcóolica, começa a ter ideias curiosas como as

descritas abaixo:

(…) et Georges, très gris, très excité par la vue de Nana, hésita devant une idée qu’il

mûrissait gravement, celle de se mettre à quatre pattes, sous la table, et d’aller se

71 Tradução: “La Faloise, cuja cabeça girava, remexia-se, apertando-se contra Gagá. Mas uma preocupação

acabara de agitá-lo: tinham pego seu lenço, e ele reclamava o lenço com uma teimosia de bêbado, perguntando

aos vizinhos, abaixando-se para olhar por debaixo dos assentos e dos pés dos convidados. E, quando Gagá tentou

tranquilizá-lo:

— É estúpido... — murmurou ele. — Na borda do lenço estão minhas iniciais e meu brasão... Isso pode me

comprometer.” (ZOLA, 2013, p. 128)

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blottir à ses pieds, ainsi qu’un petit chien. Personne ne l’aurait vu, il y serait resté

bien sage. 72

(ZOLA, 1983, p.1182)

O personagem Georges Hugon é um dos comensais presentes na ceia celebrativa. Ele é

um dos personagens que tem por objetivo principal o consumo do corpo de Nana. Georges,

jovem e inexperiente, não está familiarizado com os ritos deste tipo de ceia cujo desenrolar

lhe causa estranhamento. Ao perceber a aparência familiar e caseira daquele evento

celebrativo, o personagem chega à conclusão de que ele já havia presenciado jantares mais

alegres na casa de burgueses, conforme explica o narrador:

Georges songeait qu’il avait assisté à des dîners plus gais, chez des bourgeois

d’Orléans. On causait à peine, les hommes qui ne se connaissaient pas se

regardaient, les femmes restaient tranquilles ; et c’était surtout là le grand

étonnement de Georges. Il les trouvait « popote », il avait cru qu’on allait

s’embrasser tout de suite.73

(ZOLA, 1983, p.1173)

A falta de alegria, em outras palavras, a sobriedade presente na ceia de Nana também é

percebida por outro personagem, o conde Vandeuvres, que aponta:

[…] c’était crevant, comme toujours, selon le mot de Vandeuvres. Ces soupers-là,

pour être drôles, ne devaient pas être propres. Autrement, si on le faisait à la vertu,

au bon genre, autant manger dans le monde, où l’on ne s’ennuyait pas davantage.

Sans Bordenave qui gueulait toujours, on se serait endormi. 74

(ZOLA, 1983,

p.1177)

Ceias como a de Nana têm por objetivo principal serem engraçadas, além de suscitar

diversão entre os convidados, logo não deve ser uma refeição entediante como aquelas do

monde. Num momento da ceia, é apontada por Vandeuvres uma semelhança entre a reunião

na casa dos Muffat e a ceia na casa de Nana:

Et, comme chez la comtesse Sabine, on s’occupa longuement du comte de

Bismarck. Vandeuvres répéta les mêmes phrases. Un instant, on fut de nouveau dans

le salon des Muffat ; seules, les dames étaient changées. 75

(ZOLA, 1983, p.1178)

Em outras palavras, há uma grande semelhança entre a soirée dos Muffat e a ceia na

casa de Nana, pois os assuntos que interessam tantos aos convidados de Sabine quanto aos de

72 Tradução: “(...) e Georges, muito bêbado, muito excitado com a visão de Naná, pensava em colocar em prática

uma ideia que vinha amadurecendo: pôr-se de quatro embaixo da mesa e enrocar-se em seus pés, com um

cãozinho. Ninguém o veria, e ele poderia ficar ali, bem-comportado.” (ZOLA, 2013, p.127) 73 Tradução:’ Georges pensava que já participara de jantares mais animados na casa dos burgueses de Orléans.

Pouco se conversava; os homens que não se conheciam se entreolhavam; as mulheres se mantinham bem-

comportadas, e era essa sobretudo, a grande surpresa de Georges. Ele as achava caseiras demais; ele até pensava

que começariam a se beijar imediatamente.” (ZOLA, 2013, p.115) 74 Tradução: “aquilo estava entediante como sempre, segundo Vandeuvres. Ceias daquele tipo, para serem

divertidas, não podiam ser decentes. Se fosse pelo mérito, pelas boas maneiras, melhor seria comer na sociedade,

onde era impossível se entediar ainda mais. Sem Bordenave, que continuava berrando, todos teriam caído no

sono. ” (ZOLA, 2013, p.120). 75 Tradução: “E, assim como na casa da Condessa Sabine, dedicaram um bom tempo ao Conde Bismarck.

Vandeuvres repetiu as mesmas frases. Por um instante, era como voltar ao salão dos Muffat; apenas as senhoras

não eram as mesmas.” (ZOLA, 2013, p. 122).

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Nana são os mesmos. A grande diferença entre os dois eventos é o comportamento homens e

a composição das convidadas. Em vista disso, é perceptível o caráter o da ceia de Nana e tudo

aquilo que a constitui. O evento celebrativo na casa da cortesã subverte os valores em

comparação a uma soirée -mondaine como o dos Muffat, porém ela não quebra todas as

regras de etiqueta.

O tom sóbrio extingue-se devido às bebidas servidas na refeição. Além de champanhe,

três vinhos são servidos ao longo do capítulo: Meursault, Chambertin e Léoville. Esses vinhos

são indicadores sociais, pois são bebidas de alta qualidade, porém desconhecidos pela maioria

dos convidados, que os bebem sem conhecer a procedência daquilo que é servido. Como

apontado por Ogura, citado por Berthomeau, quase nenhum dos convidados tem ciência do

valor dos vinhos servidos:

Les trois vins qui apparaissent dans Nana ont plusieurs éléments communs : ce sont

tous de bons crûs, mais ce ne sont pas des vins des plus prestigieux. Ceci signifie

que l’on peut se procurer ces(sic) vins assez facilement sur (sic) le marché. Ainsi

dans le roman, ces trois vins, de par leur qualité et leur facilité d’accès, symbolisent

à la fois la qualité du festin que Nana organise et la banalité qui entoure le (sic)

dîner.

Il y a cependant un autre élément que le choix du vin qui se cache dans le roman ?

Le symbolisme se dissimule dans le fait que les trois vins de première qualité sont

choisis par le maître d’hôtel et qu’aucun convive (sauf Daguenet qui fait un

commentaire sur le poisson et le Léoville) ne semble avoir connaissance de la

qualité du vin dégusté. 76 (OGURA, 2004 apud BERTHOMEAU, 2011)

A qualidade dos vinhos servidos é um dos indicadores da falta de refinamento

associada a uma vontade de ascender socialmente. Nana não escolheu os vinhos que são

consumidos por seus convidados. A abundância de álcool é tamanha que os convivas

começam a se comportar de maneira ainda mais informal do que a apresentada no início da

ceia, como narrado:

Mais le champagne, qu’on buvait depuis le potage, animait peu à peu les convives

d’une ivresse nerveuse. On finissait par se moins bien tenir. Les femmes

s’accoudaient en face de la débandade du couvert ; les hommes, pour respirer,

reculaient leur chaise ; et des habits noirs s’enfonçaient entre des corsages clairs, des

épaules nues à demi tournées prenaient un luisant de soie. 77

(ZOLA, 1983, p.1181)

76 Tradução livre: “Os três vinhos que aparecem em Nana têm vários elementos em comum: todos são ótima

safras, mas não são vinhos dos mais prestigiosos. Isto significa que podemos achar esses vinhos facilmente no

mercado. Ainda no romance, esses três vinhos, por sua qualidade e facilidade de acesso simbolizam ao mesmo

tempo a qualidade do festim organizado por Nana e a banalidade desse jantar.

Haveria, no entanto, um outro elemento escondido, no romance, além da escolha do vinho? O simbolismo se

dissimula no fato de que os três vinhos de primeira qualidade foram escolhidos pelo maître, cuja qualidade não é

reconhecida por nenhum conviva (salvo Daguenet que faz um comentário sobre o peixe e o Léoville).”

(OGURA, 2004 apud BERTHOMEAU, 2011) 77 Tradução: “O champanhe, porém, que bebiam desde a sopa de entrada, começava a animar os convivas,

deixando-os numa embriaguez nervosa, e eles acabaram por perder as boas maneiras. As mulheres se apoiavam

com os cotovelos diante daquela debandada de talheres; os homens, para conseguir respirar, afastavam suas

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A embriaguez que toma conta dos convidados destrói a imagem inicial da ceia, na qual

os convidados foram descritos com vestimentas e posturas adequadas. Por causa das bebidas

servidas, os convivas presentes no evento celebrativo de Nana adotam comportamentos

inapropriados; as mulheres começam a ignorar a postura adequada e os homens perdem a

compostura.

Outro ponto que indica a boa qualidade da ceia de Nana são os pratos servidos. O

romancista Émile Zola copiou o menu de um jantar que ocorreu em 6 de novembro de 1878,

oferecido por Charles Freycinet, engenheiro e ministro de Estado, e sua esposa. O menu

abaixo (FIGURA 9) foi anexado por Zola no dossiê preparatório de Nana:

FIGURA 9

MENU DO JANTAR DOS FREYCINET

(ZOLA, 2006, p. 210)

cadeiras; e algumas casacas negras se enfiavam por entre os corpetes claros; e os ombros nus, um pouco

inclinados, ganhavam uma luminosidade de seda.” (ZOLA, 2013, p. 126)

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Todos os pratos servidos na ceia de Nana estavam presentes no menu do jantar

oferecido por Freycinet, ou seja, um jantar de uma pessoa abastada, o que se reflete nos

pratos. Apesar da grande oferta de comida, os convidados não comem muito, com exceção de

Tantan Nené, descrita como portadora de um voraz apetite. A explicação para a falta de

vontade em comer a ceia é justificada por causa do horário, tendo em vista que a ceia na casa

de Nana começou à meia-noite e termina quase pela manhã do dia seguinte.

Quase no final da ceia, quando já soam cinco horas da manhã, ocorre uma ação

inusitada. De maneira abrupta, um homem loiro, de uma das mais nobres famílias francesas,

decide fazer algo surpreendente com sua garrafa de champanhe, como descrito a seguir pelo

narrador:

Alors, le petit blondin, celui qui portait un des grands noms de France, à bout

d’invention, désespéré de ne rien trouver de drôle, eut une idée : il emporta sa

bouteille de champagne et acheva de la vider dans le piano. Tous les autres se

tordirent. 78

(ZOLA, 1983, p. 1191)

Após a excêntrica ação de derramar champanhe no piano, a atitude do personagem

loiro é seguida por outros convivas. Segue-se então uma cena em que todos os convidados se

divertem ao derramarem suas respectivas garrafas de champagne no piano. A falta de

importância dada pelos convidados a uma bebida cara reflete um comportamento fútil, que ao

buscar desesperadamente a diversão optam pelo desperdício da bebida alcóolica e danificação

de um piano, uma cena que indica novamente que aqueles personagens nobres estão num

local social distinto daquele que é o seu de origem.

Enfim, a ceia que celebra o sucesso de Nana mostra-se relativamente oposta à soirée

retratada no capítulo anterior: a reunião dos Muffat. Conforme afirma Sicotte (2003), a ceia

de Nana tenta imitar um jantar nobre, porém não alcança este objetivo. Contudo, ele não

corresponde tampouco um jantar de uma pessoa que ocupa a classe baixa da esfera social,

como é o caso do jantar servido por Gervaise Macquart em L’Assommoir (1877), uma

refeição também celebrativa que foi preparada pelas mãos da própria personagem.

A ceia oferecida por Nana é utilizada por Emile Zola para criar um ambiente no qual é

possível perceber o comportamento excessivo e fútil da elite do Segundo Império francês. A

personagem Nana, no romance homônimo, quando cria um momento de sociabilidade em

forma de uma ceia celebrativa, também oferece, num só tempo, seu corpo àquele que ela

78 Tradução: “Então o loirinho, aquele que tinha um dos grandes sobrenomes da França e que estava prestes a

tomar alguma atitude, desesperado por não encontrar nada de divertido, teve uma ideia: pegou sua garrafa de

Champagne e a esvaziou em cima do piano. Todos os outros se contorceram de rir.” (ZOLA, 2013, p. 141)

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avaliar como o merecedor daquela noite. A ceia de Nana representa um espelho distorcido da

reunião dos Muffat, como descrito no capítulo III. Este espelho permite visualizar que homens

nobres e ricos se comportam de maneira adequada em seu meio e, quando tratam de assuntos

inapropriados, o fazem com discrição. Entretanto, quando esses mesmos homens são inseridos

numa ceia celebrativa oferecida por uma atriz, revelam um comportamento inadequado e

hipócrita.

A proposta de Émile Zola é fazer uma análise científica e literária da sociedade do

Segundo Império francês. Através da comparação dos capítulos III e IV vemos que o romance

Nana ilustra o comportamento tartufo dos homens nobres. A alta sociedade que antes se

mostra como modelo, em um outro ambiente, instigada pelo álcool, apresenta sua verdadeira

face.

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5. A PICTURALIDADE NAS DESCRIÇÕES DE LOCAIS DE SOCIABILIDADE EM

NANA

5.1. Descrição do Théâtre des Variétés

Ao longo dos quatorze capítulos do romance Nana, três capítulos centralizam sua ação

no Théâtre des Variétés, um teatro fundado em 1807, localizado no bairro de Montmartre.

Cada capítulo oferece uma nova perspectiva sobre a estrutura do teatro, sua decoração e sua

função social. Os três capítulos -que concentram sua ação no Théâtre des Variétés- oferecem

novos dados para a compreensão deste espaço, pois cada um deles aborda diferentes

momentos e perspectivas, assim como aponta Georg Lukács:

Também o recinto do teatro é descrito por Zola de maneira cuidadosa e completa.

Primeiro, visto da plateia: tudo o que acontece nas cadeiras, nos corredores, no

palco, o aspecto assumido pela cena, todas as coisas descritas com impressionante

habilidade literária. Depois, a obsessão zoliana pelo caráter completo e monográfico

passa adiante a um outro capítulo do seu romance dedicado à descrição do teatro

visto do palco; com não menor vigor, são descritos as mudanças de cenário, os

vestuários, etc. Por fim, para completar o quadro, um terceiro capítulo contém a

proficiente e zelosa descrição de um ensaio geral. (LUKÁCS, 1968, p.46-47)

Uma palavra-chave utilizada por Lukács, que não aprofunda este ponto em específico,

é o termo quadro. As descrições que Zola constrói nesses três capítulos destinados a um

mesmo local, formam uma série de quadros, como panoramas, não somente por serem

constituídas por várias descrições, mas também porque são construídas através de descrições

que trazem marcadores de picturalidade (LOUVEL, 1997), formando um conjunto de

descrições picturais.

Sendo assim, neste subcapítulo analisaremos os elementos picturais das descrições do

Théâtre des Variétés. Para tal objetivo, nos fundamentaremos, principalmente, em dois

aportes teóricos: Du Descriptif (1993) de Philippe Hamon e La description picturale (1997) e

Modalités du pictural (2002) de Liliane Louvel. Optamos, também, por organizar as análises

seguindo a ordem dos capítulos. Portanto, o objetivo central desta seção é trazer à luz os

elementos picturais das descrições do Théâtre des Variétés.

O primeiro capítulo do romance Nana tem toda sua trama desenvolvida no Théâtre des

Variétés. Além de sermos apresentados à personagem principal, somos conduzidos pelo

teatro, sua arquitetura e o narrador explica sua função social. Vemos, também, o gênero de

peça que era representado naquele palco, durante o Segundo Império francês, a ópera bufa.

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A representação deste teatro é feita detalhadamente através de descrições que

focalizam diferentes partes deste local ao longo do capítulo. Através do dossiê preparatório do

romance Nana, é possível saber que, para construir esse capítulo, Zola efetuou um trabalho de

observação e documentação, pois ele visitou o Théâtre des Variétés, fez um croqui de sua

fachada79 e sua arquitetura e pegou emprestado o livreto do tipo de peça que ali era encenado.

FIGURA 10

CROQUI DA FACHADA DO THÉÂTRE DES VARIÉTÉS

(ZOLA, 2006, p.3)

Ainda no dossiê preparatório de Nana, é perceptível a intenção que o escritor teve de

desenvolver uma descrição que segundo ele é sucinta, seguida de outra que é “disfarçada”

(ZOLA, 2006, p.170). Outro detalhe mencionado por Zola, em seu dossiê, é que essa

descrição inicial do capítulo 1 é feita através dos olhos de Fauchery, um jornalista que durante

o romance escreverá o artigo no qual chama Nana de mouche d’or. Zola indica também sua

intenção de descrever o público habitual daquele teatro através do olhar deste personagem

jornalista: “Juillerait et la Faloise venus trop tôt me servent pour la description.”80 (ZOLA,

2006, p.170)

79 Figura 10

80 Tradução livre: “Juillerait (o nome que Zola utilizava para nomear o personagem Fauchery) e La Faloise terem

chegado muito cedo me servem para descrição”. (ZOLA, 2006, p.6)

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A intenção de delegar a descrição do teatro a um personagem específico corresponde

ao olhar descritor (HAMON,1993, p.172). O personagem Fauchery, frequentador assíduo do

Théâtre des Variétés, já é familiarizado com todos os elementos que compõem, aquele espaço.

É através da competência do olhar deste personagem, que o narrador descreverá a cena que

serve como portal estratégico tanto do início do primeiro capítulo quanto do romance. Segue a

descrição inicial do capítulo e do romance que constitui uma visão panorâmica do Théâtre des

Variétés.

À neuf heures, la salle du théâtre des Variétés était encore vide. Quelques personnes,

au balcon et à l’orchestre, attendaient, perdues parmi les fauteuils de velours grenat,

dans le petit jour du lustre à demi-feux. Une ombre noyait la grande tache rouge du

rideau ; et pas un bruit ne venait de la scène, la rampe éteinte, les pupitres des

musiciens débandés. En haut seulement, à la troisième galerie, autour de la rotonde

du plafond où des femmes et des enfants nus prenaient leur volée dans un ciel verdi

par le gaz, des appels et des rires sortaient d’un brouhaha continu de voix, des têtes

coiffées de bonnets et de casquettes s’étageaient sous les larges baies rondes,

encadrées d’or. Par moments, une ouvreuse se montrait, affairée, des coupons à la

main, poussant devant elle un monsieur et une dame qui s’asseyaient, l’homme en

habit, la femme mince et cambrée, promenant un lent regard. Deux jeunes gens

parurent à l’orchestre. Ils se tinrent debout, regardant.

– Que te disais-je, Hector ? s’écria le plus âgé, un grand garçon à petites

moustaches noires, nous venons trop tôt. Tu aurais bien pu me laisser achever mon

cigare.81 (ZOLA, 1893, p.1096)

A cena descrita é vista por alguém que está em um lugar privilegiado, que permite a

capacidade de ver e descrever. Além disso, como mencionado, o personagem que focaliza

esta cena é um jornalista, isto é, um personagem que quer ver, estando assim, na posição de

voyeur, observando um local e as pessoas que nele estão presentes, sem ser diretamente

observado. Outra informação importante para a composição desta cena é o momento em que

esse personagem chegou ao teatro, conforme indicado pelo sintagma adverbial -trop tôt (cedo

demais) - o que já antecipa a descrição da progressiva iluminação do teatro.

Esta descrição é organizada, pois, através do olhar descritor do personagem Fauchery:

ela direciona o olhar do leitor- que desconhecia, assim como Hector, um teatro parisiense, que

81 Tradução: “Às noves horas, a sala do teatro de variedades ainda estava vazia. Algumas pessoas, no balcão e na

plateia, aguardavam, dispersas entre poltronas de veludo grená| sob o clarão brando do lustre à meia-luz. Uma

sombra inundava a grande mancha vermelha da cortina, e nenhum barulho vinha do palco; a ribalta se

encontrava apagada, os púlpitos dos músicos espalhados. No alto, apenas, na terceira galeria, em volta da

rotunda do teto onde mulheres e crianças nuas alçavam seus voos em um céu esverdeado pelo gás, os clamores e

os risos surgiam de um burburinho contínuo de vozes; cabeças cobertas com gorros e bonés se empilhavam sob

os largos parapeitos circulares (sic) |largas entradas circulares|, emoldurados de ouro. Por vezes, uma vagalume

aparecia, atarefada, com ingressos nas mãos conduzindo à sua frente um senhor e uma dama, que se sentavam; o

homem de casaca a mulher esbelta e arqueada, passeando lentamente os olhos pela sala.

Dois jovens apareceram na plateia. Permaneceram em pé, observando

–Eu não lhe disse, Hector? – exclamou o mais velho, um rapaz alto, de bigodinho preto. – Chegamos muito

cedo. Você podia ter me deixado terminar o charuto.” (ZOLA, 2013, p.5-6)

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através dos elementos dêiticos, imagina diferentes partes daquela cena descrita. Nesta cena, há

a presença dos dêiticos -en haut (acima), autour (em volta) e devant (à frente). O primeiro

direciona o olhar tanto daquele que está encarregado dessa descrição, o personagem Fauchery,

quanto o olhar do leitor. Dessa forma, ao realizar esse deslocamento, situa-se o espaço dentro

do Théâtre des Variétés. O segundo dêitico -autour (em volta)- direciona o olhar para um

movimento circular que observa os detalhes da rotunda e do teto. E o terceiro -devant (à

frente)- serve para inserir o elemento antrópico na cena -une ouvreuse se montrait (uma

vagalume aparecia atarefada)-, mencionado pela primeira vez neste espaço que ainda está

vazio, indicado pelo sintagma -était encore vide (ainda estava vazia).

Um dos primeiros marcadores de picturalidade que aparecem nesta descrição é um

referente à cor -grenat (grená)-, do tecido das poltronas do teatro que era de veludo, o que

juntamente com aquela cor é um indicador de luxo, formando assim uma descrição de

elementos visuais e táteis. Portanto, o sintagma -les fauteuils de velours grenat (as poltronas

de de veludo grená)- já indica grande parte da composição da cor dessa cena, uma cenografia

composta majoritariamente de um tom avermelhado. O leitor, neste momento, pode imaginar

uma extensa faixa grená. Há, ainda, outro marcador de picturalidade de cor nesta descrição -

la grande tache rouge du rideau (a grande mancha vermelha da cortina) - neste caso, é a cor

vermelha, uma cor primária e análoga ao grená da poltrona. Mais uma vez, a imaginação do

leitor é invadida por uma imensidão de tons avermelhados.

No momento em que o olhar descritor se levanta para ver o teto do teatro, é notável

um tom esverdeado no céu pintado - un ciel verdi par le gaz (um céu esverdeado pelo gás).

Há, nesta oração, duas cores, o tom azul e o sobretom verde, expresso em forma de adjetivo -

verdi (esverdeado). O firmamento originalmente azul, torna-se esverdeado para o olhar devido

ao gás da iluminação. Não é arbitrária a escolha do verde, pois este tom é a cor complementar

ao vermelho, o que, caso pensemos na técnica impressionista, era a maneira através da qual os

pintores dessa estética pictórica construíam o contraste, utilizando cores complementares ao

invés do preto.

Por último, há ainda a presença do tom dourado - s’étageaient sous les larges baies

rondes, encadrées d’or (se empilhavam sob as largas entradas circulares emolduradas de

ouro)- este último elemento de cor efetua uma função de contraste com os acessórios -bonnets

(gorros)- e -casquetes (bonés), pois estes estão abaixo das entradas enquadradas pela cor

dourada.

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Em suma, a paleta de cores da decoração do Théâtre des Variétés é composta

majoritariamente de tons vermelhos, uma cor secundária, o tom esverdeado do céu, e, por fim,

o tom dourado das pequenas entradas.

A forma como Zola registrou o colorido da decoração do Théâtres des Variétés é

similar à forma como o pintor Jean Béraud (1848-1935) pintou o mesmo local, numa tela

composta majoritariamente de tons vermelhos:

FIGURA 11

Représentation dans le Théâtre des Variétés (1888)

Jean Béraud

óleo sobre tela. 587x800

Musées des arts décoratifs

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Outro marcador de picturalidade, e também um recurso narrativo, é a iluminação. Esta

tem duas funções: ser um marcador temporal e modificar a percepção da aparência dos

objetos. Portanto, a descrição da luz artificial além de ser um indicador temporal, ou seja,

informar o leitor sobre o decorrer da noite, indica também o efeito que aquela iluminação

causa no ambiente. Um ambiente iluminado a gás não é todo iluminado num instante, pois a

iluminação pode ser regulada. Além disso, devido ao grande número de lustres, as cores e a

visão são modificadas por causa do efeito do próprio gás.

Na cena, em destaque no início desta seção, há uma iluminação à meia luz - le petit

jour du lustre à demi-feux (o clarão brando do lustre à meia-luz)-, o que indica que o ambiente

ainda não está totalmente iluminado. Há, nesta cena, a utilização da técnica de claro-escuro,

logo após a indicação da iluminação do ambiente, -une ombre noyait la grande tache rouge

du rideau- (uma sombra inundava a grande mancha vermelha da cortina); a sombra causada

pela iluminação a gás esconde a cor vermelha da cortina, tornando-a assim uma grande

sombra na cenografia do teatro.

Outro indicador de picturalidade que Louvel propõe é o uso de um determinado tempo

verbal, o imparfait no francês, equivalente ao pretérito imperfeito da língua portuguesa. Na

cena destacada, o uso do imparfait é frequente, pois esses verbos conseguem, ao mesmo

tempo, causar uma dilatação no tempo e indicar movimento na descrição, como os seguintes

verbos -était (estava), attendaient (esperava), noyait (inundava), venait (vinha), prenaient

(tomavam), sortaient (saíam), s’étageaient (se empilhavam), se montrait (se mostravam). O

uso desses verbos na descrição cria uma ilusão de um tempo suspenso, como se a descrição

pairasse no texto e a ação fosse interrompida. O primeiro sintagma verbal –était encore vide

(ainda estava vazia)- indica que o público ainda não havia chegado, a ação teatral ainda irá

acontecer, assim como em -quelques personnes, au balcon et à l’orchestre, attendaient

(algumas pessoas, no balcão e na plateia, aguardavam)- que também serve para indicar que

aquela descrição antecede um evento de maior importância na narrativa. Em seguida, o

sintagma verbal -une ombre noyait (uma sombra inundava) - indica movimento da sombra,

como se este jogo de claro-escuro não fosse estático, remetendo a um aspecto comum da

técnica pictórica impressionista, que indicava por meio da cor o movimento em suas telas.

Por outro lado, a oração -des femmes et des enfants nus prenaient leur volée dans un

ciel verdi par le gaz (mulheres e crianças nuas alçavam seus voos em um céu esverdeado pelo

gás)- compreende uma descrição narrativizada dentro da própria descrição pictural. As

palavras escolhidas para descrever a imagem pintada no teto do teatro fazem referência à

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competência artística e visual do dono do olhar descritor, pois Fauchery, apesar de ser um

frequentador assíduo daquele teatro é um jornalista crítico de teatro, e não de arte. Portanto,

ele não tem conhecimento de pintura para reconhecer que as mulheres e as crianças nuas na

rotunda são provavelmente figuras alegóricas.

Conforme o capítulo se desenrola, o olhar descritor muda de ângulo e outas partes do

teatro podem ser visualizadas, como na seguinte cena:

Un instant, ils se turent, levant la tête, fouillant l’ombre des loges. Mais le papier

vert dont elles étaient tapissées les assombrissait encore. En bas, sous la galerie, les

baignoires s’enfonçaient dans une nuit complète. Aux loges de balcon, il n’y avait

qu’une grosse dame, échouée sur le velours de la rampe. À droite et à gauche, entre

de hautes colonnes, les avant-scènes restaient vides, drapées de lambrequins à

longues franges. La salle blanche et or, relevée de vert tendre, s’effaçait, comme

emplie d’une fine poussière par les flammes courtes du grand lustre de cristal.82

(ZOLA, 1983, p.1095-1096)

Novamente, a descrição é organizada, pois indica o movimento dos olhos realizado

pelo olhar descritor, este que levanta a cabeça -levant la tête (erguerndo a cabeça) -. E, ao

contrário da descrição apresentada previamente em que o personagem olha a sua volta, no

início desta, o mesmo personagem levanta o olhar e busca com atenção -indicado através do

verbo fouillant (sondando)- o que está acima do seu campo de visão e vê os camarotes

inundados pelas sombras -l’ombre des loges (a sombra dos camarotes). Em seguida, o olhar é

direcionado para baixo, indicado pelo sintagma preposicional -en bas (embaixo)-, e através

dessa mudança de direção do olhar é indicada a escuridão completa presente nas baignoires

(frisas). Também são descritas as desocupadas avant-scènes (antecenas), partes do palco

localizadas entre as grandes pilastras e decoradas por lambrequins de tecidos com longas

franjas. Além disso, é indicada, mais uma vez, a gradação da iluminação da sala cuja visão é

quase obstruída pela fina poeira das chamas do lustre, como indicado na última linha da

descrição. A descrição informa ao leitor, brevemente, os diferentes locais da sala e do palco

do teatro, como o avant-scène, baignoire, loge (camarote), galerie (galeria), balcon, (balcão)

ou seja, esse trecho do romance, apesar de curto, situa o leitor nos diferentes espaços que

serão ocupados do Théâtre des Variétés, que neste momento da narrativa se encontra

praticamente vazio.

82 Tradução: “Por um momento, eles se calaram e ergueram a cabeça, sondando a sombra dos camarotes. Mas o

papel verde de que estes estavam revestidos tornava a sombra ainda mais intensa. Embaixo, sob a galeria, as

frisas se encontravam mergulhadas em completa escuridão. Nos camarotes do balcão, havia apenas uma dama

corpulenta esparramada no veludo da ribalta. À direita e esquerda, entre altas colunas, as antecenas continuavam

vazias, ornadas com lambrequins de franjas compridas. A sala, branca e dourada, com toques em verde-claro, se

mostrava obumbrada, como se estivesse tomada por uma poeira fina produzida pelas chamas curtas do grande

lustre de cristal” (ZOLA, 2013, p.6)

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84

Conforme o primeiro capítulo é desenvolvido, acompanhamos a progressão da noite:

as pessoas chegando no teatro e a iluminação, antes reduzida, começa a invadir a sala:

En bas, dans le grand vestibule dallé de marbre, où était installé le contrôle, le public

commençait à se montrer. Par les trois grilles ouvertes, on voyait passer la vie

ardente des boulevards, qui grouillaient et flambaient sous la belle nuit d’avril. Des

roulements de voiture s’arrêtaient court, des portières se refermaient bruyamment, et

du monde entrait, par petits groupes, stationnant devant le contrôle, montant, au

fond, le double escalier, où les femmes s’attardaient avec un balancement de la

taille. Dans la clarté crue du gaz, sur la nudité blafarde de cette salle dont une maigre

décoration Empire faisait un péristyle de temple en carton, de hautes affiches jaunes

s’étalaient violemment, avec le nom de Nana en grosses lettres noires. 83(ZOLA,

1983, p. 1096-1097)

A descrição acima origina-se de um olhar que está posicionado num local mais alto e,

dessa vez, o olhar focaliza a entrada feita de mármore, por onde o público começa a entrar.

Há, nesta descrição, uma nova informação sobre aquela noite; trata-se de uma noite de abril,

ou seja, primaveril, o que, por sua vez, indica um tempo agradável e ameno vivenciado; o

público, por seu turno, é descrito como animado. O narrador utiliza dois vocábulos

relacionados à iluminação para indicar a agitação do público –flambaient (queimavam)- e -

ardente (ardente). Além do mais, esta descrição, por causa de certos vocábulos como -

grouillaient (fervilhavam)-, -bruyamment (bruscamente)- e -balancement (bamboleados)- cria

uma cena de movimentação. A cena construída por essa descrição compõe uma imagem

muito similar a quadros pintados por Jean Béraud, que se dedicou a representar instantes de

sociabilidade da cidade parisiense, como a tela apresentada a seguir:

83 Tradução: “Embaixo, no grande saguão com piso de mármore em que estava instalada a bilheteria, o público

começava a aparecer. Pelas três grades abertas via-se a vida frenética dos bulevares, que fervilhavam e ardiam na

bela noite de abril. O barulho das carruagens rodando cessava subitamente, suas portas batiam fazendo

estardalhaço e a multidão entrava em pequenos grupos, parando na frente da bilheteria e subindo, ao fundo, a

dupla escadaria por onde as mulheres passavam vagarosamente com seus bamboleados. Na claridade crua do

gás, sob a nudez esbranquiçada daquela sala em que uma escassa decoração imperial formava um peristilo de

templo de papelão, altos cartazes amarelos ostentavam o nome de Naná escrito em letras grandes e negras.”

(ZOLA, 20013, p.7-8)

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85

FIGURA 12

Boulevard des capucines (s.d)

Jean Béraud

óleo sobre tela. 50.8 × 73 cm

Coleção particular

A descrição de Émile Zola e a tela de Jean Béraud têm algumas semelhanças como as

carruagens, a aglomeração de homens de fraque (traje para uso diurno) no boulevard e os

cartazes com cores vívidas e letras grandes, como lemos na última oração -de hautes affiches

jaunes s’étalaient violemment, avec le nom de Nana en grosses lettres noires (altos cartazes

amarelos ostentavam o nome de Naná escrito em letras grandes e negras).

O último detalhe desta descrição é a iluminação da sala, como indicado através da

oração - Dans la clarté crue du gaz, sur la nudité blafarde de cette salle (Na claridade crua do

gás, sob a nudez esbranquiçada daquela sala) -, que contrasta com as duas descrições

anteriores de um espaço cuja luminosidade era quase nula.

Como mencionado, o detalhamento da luminosidade da sala do Théâtre des Variétés é

uma indicação temporal, pois a variação da iluminação assinala em qual momento da noite se

situa a ação. Nas duas primeiras descrições, a sala estava quase imersa em completa

escuridão. Conforme o público chega, a iluminação da sala aumenta, permitindo visualizar

melhor os detalhes que compõem sua decoração, o público e até os músicos:

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Dans la salle, Fauchery et la Faloise, devant leurs fauteuils, regardaient de nouveau.

Maintenant, la salle resplendissait. De hautes flammes de gaz allumaient le grand

lustre de cristal d’un ruissellement de feux jaunes et roses, qui se brisaient du cintre

au parterre en une pluie de clarté.[…] Haussée, la rampe, dans une nappe brusque de

lumière, incendiait le rideau, dont la lourde draperie de pourpre avait une richesse de

palais fabuleux, jurant avec la pauvreté du cadre, où des lézardes montraient le plâtre

sous la dorure. Il faisait déjà chaud. À leurs pupitres, les musiciens accordaient leurs

instruments, avec des trilles légers de flûte, des soupirs étouffés de cor, des voix

chantantes de violon, qui s’envolaient au milieu du brouhaha grandissant des voix.

Tous les spectateurs parlaient, se poussaient, se casaient, dans l’assaut donné aux

places ; et la bousculade des couloirs était si rude, que chaque porte lâchait

péniblement un flot de monde, intarissable.84 (ZOLA, 1983, p.1102)

A descrição acima contrapõe-se àquela que abre o romance, porém o olhar descritor é

o mesmo, como indica o narrador - Dans la salle, Fauchery et la Faloise, devant leurs

fauteuils, regardaient de nouveau (Na sala, Fauchery e la Faloise em frente às suas poltronas

olhavam de novo). Além da indicação da origem do olhar descritor, também é informado

através da locução adverbial -de nouveau (de novo) - que o mesmo espaço está sendo

observado novamente, mas dessa vez toda a sua imagem é relativamente modificada por

causa da fonte de iluminação que, neste momento da ação, ilumina ardentemente o ambiente,

como indica o seguinte sintagma - De hautes flammes de gaz (as altas chamas de gás). As

chamas de gás modificam a aparência de vários elementos presentes na sala do teatro, como a

-parterre (plateia)- que é iluminada por vários pontos luminosos, mimetizando uma chuva -

pluie de clarté (chuva de luzes), que pode ser comparada com a técnica pictural do

pontilhismo, que começou a ser usada pelos pintores impressionistas. A iluminação dessa vez,

em seu ápice, adquire cores - des feux jaunes e roses (chamas amarelas e rosas) - que alteram

a aparência dos objetos: o veludo das poltronas ganha um brilho furta-cor - Les velours grenat

des sièges se moiraient-, os ouros luzem -les ors luisaient-, assim como os ornamentos cuja

cor verde-claro suaviza seu brilho -les ornements vert-tendre en adoucissaient l’éclat. Toda

essa luminosidade reverbera até no verbo escolhido pelo narrador -incendiait (incendiava)- ao

descrever o efeito causado pela brusca faixa de luz da rampa do palco que incendeia

metaforicamente a cortina. Outro efeito causado pela abundante iluminação por causa da

presença dos músicos e do público é a temperatura da sala que se torna quente, como indicado

pelo narrador- il faisait déjà chaud (já fazia calor). A intensa iluminação da sala reflete a

84 Tradução: “Na sala, diante de suas poltronas, Fauchery e La Faloise novamente observavam. Agora a sala

resplandecia. As altas chamas de gás iluminavam o grande lustre de cristal com um feixe de fogo amarelo e rosa

que se quebrava desde a abóboda até o auditório, numa chuva de luzes. [..] Iluminado por uma brusca névoa de

luz, a ribalta, no alto, como que incendiava a cortina, cuja pesada tecelagem de cor púrpura tinha uma riqueza de

palácios majestosos que destoava da pobreza da moldura, onde as fendas abertas no dourado deixavam o gesso à

mostra. Já fazia muito calor. A postos em seus púlpitos, os músicos afinavam os instrumentos, com suaves trilos

de flauta, suspiros abafados de trompa, notas melódicas de violino, que se elevavam em meio ao crescente

burburinho das vozes” (ZOLA, 2013, p.15)

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agitação humana que ocorre na plateia e na orquestra, pois as pessoas conversam, os músicos

afinam seus instrumentos e o teatro se prepara para dar início à peça da noite.

A peça representada neste capítulo é intitulada La Blonde Vénus e corresponde, como

já foi mencionado, a um gênero frequentemente encenado no Théâtre des Variétés durante o

Segundo Império, a opéra-bouffe (ópera-bufa). Este gênero, que mistura comédia e canto,

satirizava temas da sociedade contemporânea ou da literatura universal. A peça representada

no primeiro capítulo do romance ironiza os deuses do Olimpo que organizam uma reunião

para debater amor, traição e o comportamento de suas esposas. Esta peça antecipa temas que

ocorrerão ao longo de toda a diegese: ciúmes, amor e traição. A peça não é bem recebida

inicialmente pelo público, principalmente por causa da falta de talento da protagonista que

interpreta Vênus. Entretanto, quando Nana expõe seu maior talento, o corpo, perante toda a

plateia, a peça torna-se um sucesso.

No final do primeiro capítulo, assim que a encenação da peça acaba, é descrita

brevemente a sala do Théâtre des Variétés:

Les spectateurs, déjà debout, gagnaient les portes. On nomma les auteurs, et il y eut

deux rappels, au milieu d’un tonnerre de bravos. Le cri : « Nana ! Nana ! » avait

roulé furieusement. Puis, la salle n’était pas encore vide, qu’elle devint noire, la

rampe s’éteignit, le lustre baissa, de longues housses de toile grise glissèrent des

avant-scènes, enveloppèrent les dorures des galeries ; et cette salle, si chaude, si

bruyante, tomba d’un coup à un lourd sommeil, pendant qu’une odeur de moisi et de

poussière montait. 85(ZOLA, 1983, p. 1120)

A primeira frase -les spectateurs, déjà debout, gagnaient les portes- indica que os

espectadores, já de pé, vão em direção à porta, movimento de saída contrário ao descrito nas

primeiras cenas deste capítulo, em que as pessoas entravam no teatro. Apesar disso, a sala não

se esvazia totalmente, como é indicado pela oração -la salle n´était pas encore vide. Os

preparos para fechar o teatro já foram iniciados, indicados através das seguintes frases: -la

rampe s’éteignit-, -le lustre baissa-, -qu’elle devint noire. As três orações, que encerram a

noite do teatro, indicam ações ligadas à iluminação, pois a ribalta tem suas luzes apagadas, o

lustre é baixado e a sala torna-se completamente escura. Outra frase que indica o

encerramento da noite está relacionada com a mudança da cor, o dourado das galerias é

encoberto por capas de cor cinza, como indica o narrador -de longues housses de toile grise

85 Tradução: “Os espectadores, já de pé, ganhavam as portas. Anunciaram-se os nomes dos autores e houve duas

chamadas, em meio a uma torrente de “Bravos!”. O brado “Naná! Naná” ressoou energeticamente. Em seguida,

a sala, que ainda não se encontrava de todo vazia, ficou às escuras; apagaram-se as luzes da ribalta, o lustre foi

descido, as compridas coberturas de pano cinza deslizaram do proscênio, encobrindo os dourados das galerias; e

aquela sala, tão quente, tão barulhenta, caiu subitamente em um sono profundo enquanto um odor de mofo e

poeira recendia e tomava conta de tudo. “(ZOLA, 2013 p. 40)

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glissèrent des avant-scènes, enveloppèrent les dorures des galeries (as compridas coberturas

de pano cinza deslizaram do proscênio, encobrindo os dourados das galerias), ou seja tudo

que anteriormente era colorido, brilhante e iluminado torna-se sombrio, opaco e cinza quando

a peça acaba. É quase como se a sala do Théâtre des Variétés fosse um ser vivo, pelo recurso

de personificação, e assim que ela cumpre seu papel se decompõe, perde suas cores vivas, seu

brilho, seu calor, e adormece profundamente, exalando um cheio desagradável de mofo e

poeira, como é descrito pelo narrador -et cette salle, si chaude, si bruyante, tomba d’un coup

à un lourd sommeil, pendant qu’une odeur de moisi et de poussière montait (e aquela sala,

tão quente, tão barulhenta, caiu subitamente em um sono profundo enquanto um odor de mofo

e poeira recendia e tomava conta de tudo).

O primeiro capítulo do romance Nana descreve esmiuçadamente os inúmeros detalhes

do Théâtre des Variétés através do olhar de um personagem posicionado em um local

topograficamente privilegiado. Outrossim, as descrições presentes no primeiro capítulo

apresentam o Théâtre des Variétés como um organismo vivo cuja iluminação e cores se

modificam de acordo com o momento específico da noite teatral. É possível notar, inclusive,

que apesar desse capítulo abordar o enredo da peça La Blonde Vénus, os objetivos

predominantes nesta parte da diegese são: apresentar os personagens que farão parte do

romance definidos por suas posições sociais: os atores no palco; Satin, uma prostitua no

boulevard; e as pessoas nobres acomodadas nos melhores assentos do teatro, que lhe

permitem ver a ação no palco e o que ocorre na plateia. O outro objetivo é ilustrar uma

atividade central da sociabilidade parisiense no Segundo Império francês, frequentar o teatro.

Há um terceiro objetivo na série de descrições desse capítulo: produzir uma

visualidade pictural. Caso pensemos nas categorias definidas por Louvel, é possível perceber

que a sequência de imagens do primeiro capítulo de Nana forma uma série de descrições de

effet-tableau (LOUVEL, 2002, p.34). Louvel explica ainda que essa forma de descrição faz

com que o leitor tenha a impressão de ter visto um quadro.

As descrições de Zola do Théâtre des Variétés inseridas no primeiro capítulo

apresentam alguns marcadores de picturalidade, mas não todos aqueles que são listados por

Louvel, ou seja, não podemos afirmar que nas descrições de Zola haja uma saturação de

picturalidade de acordo com o que é proposto pela autora, pois nelas nunca estão presentes

concomitantemente três marcadores de picturalidade: léxico pictórico, referência a material do

pintor nem tampouco a inserção de um personagem pintor. Há ainda a ausência de um

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marcador que eleva consideravelmente a saturação de picturalidade: a referência direta a uma

manifestação pictórica.

No entanto, essas descrições não têm função apenas estética, o que seria o objetivo

principal da descrição pictural (LOUVEL, 1997). As descrições do primeiro capítulo de Nana

formam uma série de quadros que permitem que o leitor imagine uma série de imagens do

mesmo lugar, mas elas também funcionam como um marcador temporal que orientam e

situam o leitor no espaço temporal da narrativa.

Como mencionado, o primeiro capítulo de Nana não é o único destinado a representar

o Théâtre des Variétés. O quinto capítulo também tem quase o mesmo objetivo; a diferença é

que o ângulo do olhar descritor muda, localizando-se assim, até o final do capítulo no foyer, -

recinto do teatro onde se reúnem os espectadores.

Representar o Théâtre des Variétés através desse ângulo já havia sido indicado por

Zola em seu dossiê preparatório em dois momentos: “Toutes ces scènes, pour avoir de l’unité,

doivent se passer dans le foyer. [C’est le de]. Pendant ce temps, on joue le 2me acte. C’est le

deuxième acte vu du foyer”86 (ZOLA, 2006, p. 230) ; e “Une représentation derrière la toile,

gaz flambant »87 (ZOLA, 2006, p.236). As anotações do autor mostram a sua intenção de

redigir um capítulo que descortina o que fora comunicado no primeiro capítulo, pois dessa vez

o foco não está na forma como os personagens da elite parisiense se observam e assistem à

peça encenada no palco. O foco do capítulo V são os próprios atores, suas vestimentas, modos

de agir, relacionamentos e toda a ação ocorrida no foyer.

A primeira descrição do quinto capítulo de Nana já mostra a diferença do ponto de

vista comparado ao olhar descritor do primeiro capítulo:

On donnait, aux Variétés, la trente-quatrième représentation de la Blonde Vénus. Le

premier acte venait de finir. Dans le foyer des artistes, Simonne, en petite

blanchisseuse, était debout devant la console surmontée d’une glace, entre les deux

portes d’angle, s’ouvrant en pan coupé sur le couloir des loges. Toute seule, elle

s’étudiait et se passait un doigt sous les yeux, pour corriger son maquillage ; tandis

que des becs de gaz, aux deux côtés de la glace, la chauffaient d’un coup de lumière

crue.88 (ZOLA, 1983, p.1191)

86 Tradução livre: “Todas essas cenas, para ter um sentido de unidade, devem se passar no foyer. [É o de]

Enquanto isso, o segundo ato é representado.” (ZOLA, 2006, p.230) 87 Tradução livre: “Uma representação por trás da tela, gás flamejando.” (ZOLA, 2006, p.236) 88 Tradução: “Acontecia, no Variedades, a trigésima quarta apresentação de A Vênus Loira. O primeiro ato

acabava de terminar. No foyer dos artistas, Simonne, vestida de lavadeira, estava de pé diante de uma cômoda

com espelho, entre duas outras em ângulo que se abriam para o corredor dos camarotes. Sozinha, ela se

observava e passava o dedo debaixo dos olhos para corrigir a maquiagem, enquanto as bocas de gás, dos dois

lados do espelho, aqueciam-na com uma luz crua.” (ZOLA, 2013, p. 146)

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A primeira oração do trecho em destaque já indica uma evolução na narrativa - On

donnait, aux Variétés, la trente-quatrième représentation de la Blonde Vénus (Acontecia, no

Variedades, a trigésima quarta apresentação de A Vênus Loira). Enquanto que no primeiro

capítulo foi narrada a noite de estreia da peça La Blonde Vénus, neste será relatada a trigésima

quarta representação. A cena apresenta um momento bem característico da narrativa: uma

atriz arrumando-se entre os atos. É possível visualizar os pequenos detalhes dessa cena, como

o passar de um dedo para corrigir a maquiagem, o que pode ser visto por causa da iluminação

crua que aquece e ilumina. O espelho -glace- cria dois olhares, o olhar do leitor em direção a

Simonne que, por sua vez, se olha no espelho iluminado por duas lâmpadas e cujos olhos são

vistos pelas imagens do espelho. Essa cena remete a um outro momento do romance: um em

que Nana se observa e se maquia e é observada por Muffat89. O espelho é um objeto frequente

em todo o romance Nana cuja narrativa informa o leitor sobre os diferentes olhares e pontos

de vistas descritos na diegese.

Há, no capítulo V, um marcador de picturalidade raro nas descrições presentes no

romance Nana: a referência a um quadro ou obra de arte específica, que aparece na seguinte

cena:

Simone et Prullière ne bougèrent pas. Quatre ou cinq tableaux, des paysages, un

portrait de l’acteur Vernet, jaunissaient à la chaleur du gaz. Sur un fût de colonne, un

buste de Potier, une des anciennes gloires des Variétés, regardait de ses yeux vides.

Mais il y eut un éclat de voix. C’était Fontan, dans son costume du second acte, en

garçon chic, tout habillé de jaune, ganté de jaune. 90(ZOLA, 1983, p.1196)

Nessa cena são referenciados quadros representando paisagens e um retrato do ator

Vernet cuja aparência se torna amarelada por causa do calor do gás. Há, no Musée Carnavalet,

dois retratos desse ator, um desenho de caricatura e outro em forma de escultura:

89 Essa cena será abordada com maior profundidade na seção 5.2. 90 Tradução: “Simonne e Prullière não se mexiam de onde estavam. Quatro ou cinco quadros, algumas paisagens

e um retrato do ator Vernet amarelavam com o calor do gás. Sobre o fuste de coluna, um busto de Potier, uma

das antigas celebridades do Variedades, contemplava com seus olhos vazios. Ouviu-se um grito. Era Fontan,

com seu traje de rapaz chique para o segundo ato, todo vestido de amarelo. Inclusive de luvas amarelas.”

(ZOLA, 2002, p.147)

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FIGURA 13

Portrait de Charles Edme Vernet (1789-1848),

acteur au Théâtre des Variétés.

Entre 1860-1890

Jean Pierre Dantan

Musée Carnavalet, Histoire de Paris

FIGURA 14

Portrait-charge de Charles-Edme Vernet (1789-1848), acteur aux Variétés. Rôle de Madame Pochet dans

"Madame Gibou et Madame Pochet, ou le Thé chez la ravaudeuse"

1833

Musée Carnavalet, Histoire de Paris

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Há, ainda, outra referência a uma obra de arte: um busto de Potier cujos olhos abertos

parecem observar a cena que ocorre no foyer.

A última frase da descrição acima - C’était Fontan, dans son costume du second acte,

en garçon chic, tout habillé de jaune, ganté de jaune (Era Fontan, com seu traje de rapaz

chique para o segundo ato, todo vestido de amarelo. Inclusive de luvas amarelas) - expressa

um retrato do personagem Fontan. Além disso, tendo em vista que essa frase está inserida

dentro de um iconotexto que traz referências às artes visuais, podemos classificar essa breve

descrição como um tableau-vivant, criado a partir da percepção do espectador que constitui a

cena como um momento estático que se assemelha ao gênero tableau-vivant. (LOUVEL,

2006, p.38)

No capítulo V, assim como no capítulo I, há uma descrição na qual é possível

identificar o olhar-descritor, que será encarregado de descrever o camarim de Nana no

Théâtre des Variétés:

Alors, le comte Muffat, le sang aux joues, examina la loge. C’était une pièce carrée,

très basse de plafond, tendue entièrement d’une étoffe havane clair. Le rideau de

même étoffe, porté par une tringle de cuivre, ménageait au fond une sorte de cabinet.

Deux larges fenêtres ouvraient sur la cour du théâtre, à trois mètres au plus d’une

muraille lépreuse, contre laquelle, dans le noir de la nuit, les vitres jetaient des carrés

jaunes. Une grande psyché faisait face à une toilette de marbre blanc, garnie d’une

débandade de flacons et de boîtes de cristal, pour les huiles, les essences et les

poudres. Le comte s’approcha de la psyché, se vit très rouge, de fines gouttes de

sueur au front ; il baissa les yeux, il vint se planter devant la toilette, où la cuvette

pleine d’eau savonneuse, les petits outils d’ivoire épars, les éponges humides,

parurent l’absorber un instant.91 (ZOLA, 1983, p.1207)

O olhar-descritor é identificado através do verbo -examina (examinava)- conjugado

no pretérito perfeito simples na terceira pessoa do singular; e quem observa é o personagem

do conde Muffat, logo, toda a descrição do camarim é realizada a partir de seu olhar cristão.

O ambiente não apresenta muitas variedades de cores ou tecidos, pois toda a parede e as

cortinas são feitas do mesmo material -une étoffe havane clair (um tecido castanho claro). O

que chama atenção neste camarim são os objetos que o decoram: as janelas que se abrem para

91 Tradução: “Então, o conde Muffat, com as bochechas vermelhas, passou a examinar o camarim. Era um

cômodo quadrado, com o teto baixo, e todo estofado em castanho-claro. A cortina, do mesmo tecido, suspensa

por uma barra triangular de cobre, formava uma espécie de gabinete. Duas largas janelas davam para o pátio do

teatro, que ficava a no máximo três metros de uma muralha apodrecida, contra a qual, na escuridão da noite, os

vidros projetavam formas quadradas e amarelas. Um grande espelho ficava em frente a uma penteadeira de

mármore branco, guarnecida de uma variedade de frascos e caixas de cristal para óleos, essências e pós de

maquiagem. O conde se aproximou do espelho e se viu muito vermelho, com pequenas gotas de suor na testa.

Ele abaixou os olhos e se deteve diante da cômoda, onde a bacia cheia de água com sabão, os objetos de marfim

espalhados, as esponjas úmidas pareceram absorvê-lo por um momento.” (ZOLA, 2013, p.163)

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o pátio do teatro; o grande espelho, e uma penteadeira guarnecida de vários itens como óleos,

perfumes e maquiagem. Aliás, o espelho mais uma vez é utilizado para refletir o personagem

que nos descreve a cena como indicado através da frase - Le comte s’approcha de la psyché,

se vit très rouge, de fines gouttes de sueur au front (O conde se aproximou do espelho e se viu

muito vermelho, com pequenas gotas de suor na testa). Todo o camarim e o cheiro de Nana

deixam o conde Muffat nervoso por estar presente naquele ambiente, o que o deixa corado e

suado.

A justificativa para o nervosismo do personagem naquele cômodo é explicada na

seguinte frase: “Ce sentiment de vertige qu’il avait éprouvé à sa première visite chez Nana,

boulevard Haussmann, l’envahissait de nouveau.”92 (ZOLA, 1983, p.1207-1208). O camarim

de Nana é um espelho de seu quarto, que fora visitado por Muffat, que por sua vez é um

espelho da própria Nana. Nesse momento da narrativa, ao longo do capítulo V, o leitor já está

familiarizado com os conflitos internos do personagem do Conde que se encontra, ao longo

do romance, num embate entre sua moral cristã e seu desejo carnal por Nana. O fluxo de

sentimentos causados em Muffat, por causa de Nana e seu camarim, havia sido previsto por

Zola, conforme o seguinte comentário inserido em seu dossiê: “Le chapitre est pour peindre la

tentation de Muffat. Nana est le diable. Dignité et foi aux prises avec le vice”93 (ZOLA, 2006,

p. 230).

A descrição do camarim de Nana além de criar a imagem de um quarto de cortesã, que

Catherine Authier define como um quarto decorado de tecidos e móveis luxuosos, além de

perfumado (AUTHIER, 2016), produz um efeito sensorial permitindo ao leitor imaginar as

texturas e perfumes daquele cômodo e da cortesã.

As descrições do quinto capítulo do romance Nana auxiliam o leitor a visualizar

melhor o Théâtre des Variétés, pois partes diferentes daquelas apresentadas no primeiro

capítulo, são ilustradas. Toda a ação do capítulo V ocorre durante a trigésima quarta

representação da peça La Blonde Vénus e a plateia do teatro está lotada de pessoas que foram

assistir ao espetáculo. Entretanto, no nono capítulo desta narrativa, é oferecido ao leitor uma

outra visão deste espaço; dessa vez o teatro encontra-se vazio, estando presentes personagens

que ensaiam uma outra peça La petite duchesse, uma alusão a uma peça assistida por Zola: La

92 Tradução “Aquela sensação de vertigem que experimentara na primeira visita à casa de Naná, no boulevard

Haussmann, tomava conta dele novamente”. (ZOLA, 2013, p.163) 93 Tradução livre: “O capítulo serve para pintar a tentação de Muffat. Nana é o diabo. Dignidade e fé estã lutando

contra vício.” (ZOLA, 2006, p.230)

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Grande-duchesse de Gérolstein (1867) cujo livreto fora emprestado ao autor naturalista

(HEMMINGS, 1958).

No capítulo IX, há outra descrição panorâmica do Théâtre des Variétés, dessa vez o

local está vazio, o que modifica sua percepção:

Seule, l’avant-scène était éclairée. Une servante, une flamme de gaz prise à

l’embranchement de la rampe, et dont un réflecteur jetait toute la clarté sur les

premiers plans, semblait un grand œil jaune ouvert dans la demi-obscurité, où il

flambait avec une tristesse louche. Contre la mince tige de la servante, Cossard

levait le manuscrit, pour voir clair, en plein sous le coup de lumière qui accusait le

relief de sa bosse. Puis, Bordenave et Fauchery déjà se noyaient. C’était, au milieu

de l’énorme vaisseau, et sur quelques mètres seulement, une lueur de falot, cloué au

poteau d’une gare, dans laquelle les acteurs prenaient des airs de visions baroques,

avec leurs ombres dansant derrière eux. Le reste de la scène s’emplissait d’une

fumée, pareil à un chantier de démolitions, à une nef éventrée, encombrée

d’échelles, de châssis, de décors, dont les peintures déteintes faisaient comme des

entassements de décombres ; et, en l’air, les toiles de fond qui pendaient avaient une

apparence de guenilles accrochées aux poutres de quelque vaste magasin de

chiffons. Tout en haut, un rayon de clair soleil, tombé d’une fenêtre, coupait d’une

barre d’or la nuit du cintre. 94(ZOLA, 1983, p.1323)

Toda a cena descreve a sala do Théâtre des Variétés iluminada, porém com a plateia

vazia. A ausência de público reflete-se no sentimento da sala personificada, que quando está

repleta de pessoas arde e agora sem os espectadores, parece morta e triste como indicado

através da oração contendo uma hipálage - où il flambait avec une tristesse louche95 (onde

flamejava uma tristeza suspeita). Nessa descrição, a decoração e pinturas da sala parecem

ainda mais desgastadas, como indicam as seguintes orações -pareil à un chantier de

démolitions, à une nef éventrée, encombrée d’échelles, de châssis, de décors, dont les

peintures déteintes faisaient comme des entassements de décombres (e parecia um depósito de

demolições, uma nave estripada, obstruída por escadas, armações, cenários, cujas pinturas

desbotadas formavam como que cenários, cujas pinturas desbotadas formavam com que

amontoados de escombros). Aliás, a palavra escolhida pelo narrador -chantier- aponta o

caráter babélico e desordenado do Théâtre des Variétés.

94 Tradução: “Apenas o proscênio estava iluminado. Numa cômoda, uma chama de gás presa na ramificação da

ribalta, e cujo refletor projetava toda a claridade nos primeiros planos, parecia um grande olho amarelo aberto na

semiescuridão, onde flamejava uma tristeza suspeita. Contra a haste fina de serpentina, Cossard levantou o

manuscrito para ver melhor, na mesma faixa de luz que ressaltava sua corcunda. Depois, Bordenave e Fauchery

desapareciam na sombra. Havia, no meio de um enorme galpão, e numa superfície de alguns metros apenas, uma

claridade de lamparina cravada no poste de uma estação, na qual os atores ganhavam a aparência de visões

barrocas, com suas sombras dançando atrás deles. O resto do palco se enchia de fumaça, e parecia um depósito

de demolições, uma nave estripada, obstruída por escadas, armações, cenários, cujas pinturas desbotadas

formavam como que amontoados de escombros; e penduradas, as telas do cenário pareciam farrapos presos no

teto de alguma loja de tecido. Bem ao alto, um raio de sol, vindo de uma janela, interrompia a escuridão da

abóboda, com uma barra de ouro.” (ZOLA, 2013, p.125-126) 95 Grifo nosso.

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95

Há, ainda, dentro desse iconotexto, uma oração que pode ser classificada enquanto

descrição tableau-vivant : - cloué au poteau d’une gare, dans laquelle les acteurs prenaient

des airs de visions baroques, avec leurs ombres dansant derrière eux (cravada no poste de

uma estação, na qual os atores ganhavam a aparência de visões barrocas, com suas sombras

dançando atrás deles ). Nesse iconotexto há, principalmente, dois marcadores de

picturalidade, a referência à estética barroca e os verbos conjugados no pretérito imperfeito

como: était (era), jetait (lançava), se noyaient (desapareciam) e s’emplissait (se enchia).

Há ainda, nesta cena, uma imagem que é comum nas descrições de Zola, uma sombra

posicionada ao fundo, que se assemelha a um grande olho amarelo -semblait un grand œil

jaune ouvert dans la demi-obscurité (parecia um grande olho amarelo aberto na

semiescuridão) -, que parece observar atentamente toda a ação que ocorre no palco e indica a

personalização do teatro.

No nono capítulo também é descrita parte do foyer através do mesmo olhar-descritor,

o conde Muffat, que dessa vez observa, mais uma vez, o mesmo espaço que fora descrito no

capítulo V. No entanto, dessa vez o local encontra-se vazio, o que permite que o personagem

consiga visualizar vários detalhes que eram impossíveis de serem percebidos quando o

ambiente estava cheio:

Muffat était seul, dans le silence de ce coin de maison. Comme il passait devant le

foyer des artistes, il avait aperçu, par les portes ouvertes, le délabrement de la vaste

pièce, honteuse de taches et d’usure au grand jour. Mais ce qui le surprenait, en

sortant de l’obscurité et du tumulte de la scène, c’étaient la clarté blanche, le calme

profond de cette cage d’escalier, qu’il avait vue, un soir, enfumée de gaz, sonore

d’un galop de femmes lâchées à travers les étages. On sentait les loges désertes, les

corridors vides, pas une âme, pas un bruit ; tandis que, par les fenêtres carrées, au ras

des marches, le pâle soleil de novembre entrait, jetant des nappes jaunes où

dansaient des poussières, dans la paix morte qui tombait d’en haut.96 (ZOLA, 1983,

p.1332)

Na cena acima é nítida a intenção do personagem de rever o mesmo local que havia

observado em uma noite anterior, como o próprio personagem pensa -qu’il avait vue, un soir

(que ele vira certa noite). Porém dessa vez, Muffat observa com mais atenção, através das

portas abertas -sintagma que enquadra a cena-, a deterioração do cômodo cujo desgaste se

96 Tradução: “Muffat estava sozinho, no silêncio daquela parte da casa. Ao passar diante do foyer dos artistas,

percebeu, por entre as portas abertas, a deterioração daquele vasto cômodo, cuja vergonhosa imundice aparecia à

luz do dia. Mas o que surpreendia ao sair da escuridão e do tumulto do palco, era a alva claridade, a calma

profunda daquele vão de escada, que ele vira certa noite, à luz do gás, ao som de um galope de mulheres soltas

pelos andares. Percebiam-se os camarins desertos, os corredores vazios, e não havia nenhuma alma, nenhum

ruído; enquanto, através das janelas quadradas, à altura dos degraus, entrava o sol pálido de novembro, lançando

fachos amarelos, onde a poeira dançava, naquela paz morta que descia do alto.” (ZOLA, 2013 p.337-338)

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96

torna mais aparente ao ser iluminado pela luz do dia, como indicado em -d’usure au grande

jour (à luz do dia). Novamente, o Théâtre des Variétés é descrito como um ser vivo -le calme

profond (a calma profunda)-, que ao esvaziar-se é tomado por uma “paz morta” como

informado pela última frase da descrição destacada - dans la paix morte qui tombait d’en haut

(naquela paz morta que descia do alto). Mesmo o ambiente estando iluminado pelo pálido sol

de novembro, o camarim e todo o teatro não têm vida. Ao contrário do que ocorre à noite,

quando, iluminado pelas luzes artificiais, ele arde com vida e pela movimentação das atrizes.

5.2. Descrição do Passage de Panoramas e retrato de Nana

O sétimo capítulo do romance Nana inicia com uma cena no Passage des Panoramas,

uma passagem coberta, inaugurada em 1800, posicionada no lado ímpar do boulevard

Montmartre. Durante todo o romance esse passage é citado brevemente em alguns capítulos,

pois lá se encontra uma das entradas para o Théâtre des Variétés e o posicionamento e

deslocamento geográfico em relação a ele constroem o motivo literário desta parte do

romance.

A motivação que engendra toda a ação deste capítulo é a obsessão do Conde Muffat

por Nana. Durante a narração desse momento são apontadas frequentemente a cegueira, a

falta de percepção e a parvoíce deste personagem que fornecerá o ponto de vista para

compreendermos essa parte da diegese. E no transcorrer do capítulo VII, o personagem

transitará por vários locais próximos ao Passage des Panoramas, incluindo a primeira casa de

Nana, localizada no boulevard Haussmann, e outras ruas próximas como Grange-Batelière,

Faubourg-Montmartre, Taitbout e Provence.

O deslocamento de Muffat pelas ruas parisienses aproxima-se da movimentação do

flâneur. Esta figura, segundo Paula Montero, flanava por locais como os passages pelo

seguinte motivo:

Era demasiado apertado andar sobre as calçadas estreitas e por isso flanava-se

sobretudo nas passagens, que ofereciam abrigo do mau tempo e do trânsito, observa

ele. O homem que passeia devagar diante das vitrines — o flâneur — caminha sem

destino e olha a cidade como se apreciasse uma paisagem. (MONTERO, 2008,

p.191)

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97

O argumento de Montero é construído a partir da obra de Walter Benjamin, que

aborda a importância dos passages para o urbanismo moderno do século XIX. Esses locais,

marcos da modernidade parisiense na época, além de terem sido os primeiros a apresentar

uma iluminação a gás, foram também, segundo Benjamin, um despertar para a construção dos

grandes magasins (BENJAMIN, 1989, p.31).

Entretanto, não é possível caracterizar Muffat como um flâneur, pois esta caminha

despreocupadamente, contrastando com o flâneur que é um espectador da modernidade, e não

busca somente o prazer fugaz. (BAUDELAIRE, 2010). O conde Muffat, por sua vez, tem a

função de deslocar o leitor num espaço da cidade parisiense e lhe fornecer informações

imagéticas sobre um local de sociabilidade. Porém, o personagem não vê, nem observa

nenhum dos vários detalhes mencionados na descrição já citada na seção 3.2.

O que leva o Conde Muffat a entrar no Passage des Panoramas é a súbita chuva, que

faz com que o local fique repleto de transeuntes que percorrem junto com ele este espaço. É

através do percurso feito por Muffat que o leitor é guiado. A descrição dos objetos que

decoram este espaço foi prevista brevemente por Zola em seu dossiê, porém na redação final

do texto a riqueza de detalhes não pode ser comparada ao que fora proposto: “passage, la

grande galerie, puis la petite, du vestibule, [et] du bec de gaz, pour espacer les explications sur

Muffat 97” (ZOLA, 2006, p. 248).

No capítulo VII, são apontados os inúmeros objetos presentes neste espaço, que em

sua maioria são adjetivados com cores como -globes blancs (globos brancos)-, -lanternes

rouges (lanternas vermelhas)-, -transparents bleus (transparências azuis); descritos com

movimento -des éventails géants en traits de flamme, brûlant en l’air (leques gigantesco, com

traços de fogo, ardendo no ar)- e, também, objetos cujas superfícies refletem a iluminação

artificial daquela noite invernal, como -l’or des bijoutiers (o ouro dos joalheiros)-, -les

cristaux des confiseurs (os cristais dos confeiteiros)-, -les soies claires des modistes (as claras

sedas das modistas). Esses últimos objetos apresentam uma aparência tão iluminada que se

assemelha ao movimento das chamas, o que pode ser percebido pelo uso do verbo conjugado

no pretérito do imperfeito -flambaient (queimavam). Há, ainda, uma descrição precisa da

fonte de luz que ilumina os objetos expostos, -dans le coup de lumière crue des réflecteurs

97 Tradução nossa: “passage, a grande galeria, depois a pequena, do vestíbulo, [e] da chama do gás para espaçar

as explicações sobre Muffat.” (ZOLA, 2006, p.248)

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(no raio de luz crua dos refletores) -, ou seja, um forte feixe de luz ilumina a superfícies dos

espelhos, objeto recorrente nas descrições de Zola.

A descrição apresenta dois marcadores de picturalidade: os verbos, em sua maioria,

conjugados no pretérito imperfeito, e o detalhamento sobre a fonte de luz que ilumina e

produz um efeito em todos os objetos. Essa descrição não é estática, ela indica movimento

desde sua primeira oração, como é notável por causa da utilização do verbo -se promenait

(caminhava)-, que aponta o deslocamento contínuo do personagem. Outro detalhe da

descrição que também assinala que esta cena não é inerte é a oração - Il y avait là une cohue,

un défilé pénible et lent, resserré entre les boutiques (Havia, ali, uma multidão, um desfile

penoso e lento comprimido entre as boutiques).

Um outro detalhe desta cena é a criação de uma imagem fantástica construída a partir

de um objeto real: -un énorme gant de pourpre, au loin, semblait une main saignante, coupée

et attachée par une manchette jaune (uma enorme luva de púrpura, ao longe, parecia uma

mão sangrando cortada e amarrada por um punho amarelo)-, uma imagem violenta, composta

por cores complementares, causada pela distância do olhar do personagem.

O deslocamento do personagem continua por mais dois parágrafos:

Doucement, le comte Muffat était remonté jusqu’au boulevard. Il jeta un regard sur

la chaussée, puis revint à petits pas, rasant les boutiques. Un air humide et chauffé

mettait une vapeur lumineuse dans l’étroit couloir. Le long des dalles, mouillées par

l’égouttement des parapluies, les pas sonnaient, continuellement, sans un bruit de

voix. Des promeneurs, en le coudoyant à chaque tour, l’examinaient, la face muette,

blêmie par le gaz. Alors, pour échapper à ces curiosités, le comte se planta devant

une papeterie, où il contempla avec une attention profonde un étalage de presse-

papier, des boules de verre dans lesquelles flottaient des paysages et des fleurs.

Il ne voyait rien, il songeait à Nana. Pourquoi venait-elle de mentir une fois

encore ?98 (ZOLA, 1983, p. 1259)

Vemos aqui outro exemplo de uma cena descrita em movimento, devido aos

sintagmas: -à petits pas (a passos curtos)- e -était remonté (retomou)-. O olhar do personagem

também é apontado-il jeta un regard (lançou um olhar) -e, il contempla (contemplou)-.

Todavia, seu efeito é anulado pela frase seguinte -il ne voyait rien (ele não via nada). A

98 Tradução: “Lentamente, o conde Muffat subira até o bulevar. Lançou um olhar para a rua, depois retomou a

passos curtos, passeando rente às lojas. O ar quente e úmido projetava um vapor luminoso no estreito corredor.

Ao longo das calçadas molhadas pelos pingos dos guarda-chuvas, os passos soavam incessantemente, sem

qualquer ruído de voz. Alguns transeuntes que se acotovelavam ao passar por ele, examinavam-no, com a

expressão muda, empalidecida pelo gás. E então, para escapar daqueles olhares curiosos, o conde foi se postar

diante de uma papelaria, onde contemplou com profunda atenção uma vitrine de peso de papéis; esferas de vidro

dentro das quais flutuavam flores e paisagens.

Ele não via nada, pensava em Naná. Por que ela mentira outra vez?” (ZOLA, 2013, p.235-236)

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oração tem duas funções: indicar que o personagem não via nada naquele momento; além de

revelar informações do que acontecerá mais à frente no enredo como um efeito narrativo de

prolepse (GENETTE, 1972).

O capítulo VII inicia-se com o conde Muffat percorrendo um espaço em que há

objetos iluminados, que não são vistos por ele. No romance Nana, há um narrador

heterodiegético (GENETTE, 1972). O narrador, ao longo da narrativa, delega frequentemente

a narração a um personagem da obra, o que pode ser classificado como olhar descritor

(HAMON,1993). No entanto, isso não ocorre neste capítulo, tendo em vista que o

personagem Muffat não vê e sequer nota o que está no seu campo de visão. Este recurso

narrativo que não é frequentemente utilizado pelo autor ao longo do romance, neste momento

do enredo, auxilia a compreensão do raciocínio do personagem, pois ao longo do capítulo é

ressaltada sua falta de visão, o que culmina com as informações reveladas no final do

capítulo: Nana e sua esposa o estão traindo.

No decorrer do capítulo VII, o olhar do personagem Muffat será mencionado mais

uma vez. Porém, nesta outra cena, ele de fato observa e vê o que está à sua frente, o que inicia

uma cena que vários pesquisadores da obra de Zola, como Colete Becker, apontam como a

transposição literária do quadro de Édourad Manet intitulado Nana (1877) no romance

homônimo. Segue o quadro:

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FIGURA 15

Nana (1877)

Édouard Manet

óleo sobre tela1,54 cm x 1,15cm

Kunsthalle Hamburg

O quadro Nana de Manet dá corpo, luz e cor à personagem Anna Coupeau, filha da

protagonista do romance L’Assommoir de autoria de Émile Zola. Essa mesma personagem

será, três anos mais tarde, a protagonista do romance homônimo de Zola, publicado em 1880.

A tela Nana além de ter sido recusada pelo Salão Oficial causou comentários acerca de

seu tema: uma cortesã ou prostituta portando apenas suas vestes de baixo, sendo observada

por um homem completamente vestido. A tela, composta majoritariamente de tons azulados e

brancos, apresenta um fundo similar às estampas japonesas. Outro motivo que fez esta obra

receber críticas foi o olhar da personagem que mira diretamente o observador. Apesar de não

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estar completamente vestida, ela nos olha sem demonstrar vergonha, manifestando ter

confiança sobre seu corpo, este que é parcialmente refletido através do espelho posicionado à

sua frente. Aliás todos os elementos do quadro estão posicionados em direção à Nana: o

espelho, o homem vestido, o pássaro desenhado no fundo e nós, os observadores. A nudez de

Nana nesse quadro foi comentada por Ana Gonzales Salvador que a relaciona com o olhar

masculino, argumentando que ao mesmo tempo em que o homem do quadro julga e observa

Nana, nós realizamos a mesma ação (SALVADOR, 1997).

Em L’Assommoir, a personagem que virá a ser protagonista do romance Nana já é

apresentada como uma jovem cujo corpo e cabelos atraem olhares masculinos. E é através

dessa imagem: uma Nana loira, segura de seu corpo e objeto do olhar masculino, que Édouard

Manet pinta o quadro que será batizado com o nome dessa personagem.

O quadro, como mencionado, apresenta Nana loira, seminua e alvo de um olhar

masculino. A narrativa construída por esse quadro é abordada por Zola, no capítulo VII do

romance, numa cena em que a personagem, também seminua, observa-se diante do espelho e

é observada por Muffat, um personagem nobre com quem ela se relaciona. Segue o trecho do

romance:

Pourtant, il retira encore ses bottines, avant de s’asseoir devant le feu. Un des

plaisirs de Nana était de se déshabiller en face de son armoire à glace, où elle se

voyait en pied. Elle faisait tomber jusqu’à sa chemise ; puis, toute nue, elle

s’oubliait, elle se regardait longuement. C’était une passion de son corps, un

ravissement du satin de sa peau et de la ligne souple de sa taille, qui la tenait

sérieuse, attentive, absorbée dans un amour d’elle-même. (ZOLA, 1983, p.1269)99

A cena descrita acima corresponde a uma situação similar àquela apresentada no quadro

de Manet: Nana seminua sendo observada por um homem vestido. Há várias semelhanças

entre o quadro e a descrição do romance, como a presença do espelho -armoire à glace

(armário com espelho) -, a postura da Nana que está em pé, tanto no quadro quanto na

descrição; Zola usa uma expressão do universo da pintura -en pied- que significa de corpo

inteiro. Aliás, a postura do homem, que está sentado, é idêntica nas duas imagens, como

indica o início da descrição -avant de s’asseoir devant le feu (antes de se sentar ao pé da

lareira). Outro ponto comum às duas representações de Nana é sua nudez: Nana, no quadro,

99

Tradução: “No entanto, ele continuou a descalçar suas botinas antes de ir se sentar em frente ao fogo. Um dos

prazeres de Naná era o de se despir diante de seu armário com espelho, onde podia se ver em pé (sic. Tradução

correta: de corpo inteiro). Deixava cair a roupa, até a camisa; e, depois, toda nua, distraía-se, olhava-se

demoradamente. Era a paixão por seu corpo, o arrebatamento pelo cetim de sua pele e pelo leve contorno de sua

cintura que a faziam se manter séria, atenta, absorta no amor por si mesma.” (ZOLA, 2013, p.249)

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veste roupas de baixo e, na descrição, a personagem porta ainda menos roupas, ela despe-se,

contemplando-se no espelho, ficando inteiramente nua -toute nue.

Porém, além da nudez de Nana, há outras diferenças entre a descrição de Zola e o

quadro de Manet, tais como o olhar de Nana que não é caracterizado da mesma maneira na

descrição do romance, pois no quadro a personagem nos fita, os observadores, que somos

participantes da narrativa contada na tela. E por outro lado, na descrição de Zola, a

personagem não presta atenção em nada a não ser na visão de si mesma, o que lhe causa um

sentimento intenso de amor por ela própria, conforme indica a oração -qui la tenait sérieuse,

attentive, absorbée dans un amour d’elle-même (que a faziam se manter séria, atenta, absorta

no amor por si mesma).

O olhar é frequentemente salientado não só neste capítulo, mas em todo o romance,

cuja protagonista é sempre mostrada pelo olhar do outro (BEST, 1992). Porém Nana, ao

contrário dos outros personagens que a estão sempre observando, parece ter paixão por sua

imagem como é descrito acima e, também, no capítulo VII:

Alors, il leva les yeux. Nana s’était absorbée dans son ravissement d’elle-même.

Elle pliait le cou, regardant avec attention dans la glace un petit signe brun qu’elle

avait au-dessus de la hanche droite ; et elle le touchait du bout du doigt, elle le faisait

saillir en se renversant davantage, le trouvant sans doute drôle et joli, à cette place.

Puis, elle étudia d’autres parties de son corps, amusée, reprise de ses curiosités

vicieuses d’enfant. Ça la surprenait toujours de se voir ; elle avait l’air étonné et

séduit d’une jeune fille qui découvre sa puberté. Lentement, elle ouvrit les bras pour

développer son torse de Vénus grasse, elle ploya la taille, s’examinant de dos et de

face, s’arrêtant au profil de sa gorge, aux rondeurs fuyantes de ses cuisses.100

(ZOLA, 1983, p.1270)

Enquanto o olhar de Muffat, presente nessa descrição através da primeira oração,

observa Nana, esta direciona os olhos apenas para si mesma, como é perceptível através de

vários sintagmas como -Nana s’était absorbée dans son ravissement d’elle-même (Naná

estava absorvida na contemplação de si mesma) -, -regardant avec attention (observando

atentamente) -, -elle étudia (ela estudou) -, -s’examinait- (examinando-se), - se voir (ao se

observar). Os verbos empregados têm significação oposta àquela dos verbos usados para

explicar o olhar de Muffat no início do capítulo. Nana ao se observar, o faz com afinco,

100 Tradução: “Então ele levantou os olhos. Naná estava absorvida na contemplação de si mesma. Dobrava o

pescoço, observando atentamente, no espelho, um pequeno sinal escuro que tinha acima do quadril direito;

tocava-o com a ponta dos dedos, e, inclinando-se ainda mais, fazia com que ela se sobressaísse, com certeza

achando-o engraçado e bonitinho naquele local. Em seguida, ela estudou outras partes do corpo, divertia-se,

tomada por viciosas curiosidades de criança. Ficava sempre surpreendida ao se observar, e tinha o ar assombrado

e seduzido de uma rapariga que está descobrindo a puberdade. Lentamente, abriu os braços para ampliar seu

busto de Vênus rechonchuda, vergou a cintura, examinando-se de costas e de frente, detendo-se no perfil dos

seios, nos amplos contornos de suas coxas.” (ZOLA, 2013, p.251)

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atenção e paixão. Sua beleza refletida no espelho lhe causa inclusive surpresa tamanha a

paixão que a personagem sente por si mesma. Há, ainda, uma referência a uma outra maneira

como Nana é chamada ao longo do romance, Vénus.

O capítulo VII oferece ao leitor imagens sobre um local de sociabilidade que

representa um marco da modernidade para a Paris do Segundo Império. A maneira como é

descrito o olhar do personagem Muffat no início do capítulo revela que o personagem não vê

nada a não ser Nana e quando o leitor é confrontado com uma descrição de Nana originada de

seu olhar voyeur, cria-se uma descrição pictural que evoca o quadro homônimo de Manet, o

que expressa a estreita relação de Zola com as artes visuais, principalmente com a estética

pictórica impressionista.

5.3. Descrição do hipódromo de Longchamp

O décimo primeiro capítulo do romance Nana concentra grande parte de seu enredo

num local da sociabilidade parisiense: o hipódromo de Longchamp localizado no Bois de

Boulogne. Construído em 1857 com o projeto do arquiteto Antoine-Nicolas Bailly (1810-

1892), este espaço, assim como os passages cobertos, é marco da modernidade do Segundo

Império francês. Diversos locais de sociabilidade e registros da vida moderna parisiense

foram temas literários e artísticos, principalmente nas obras de Zola e nas telas de pintores

impressionistas. Alguns artistas, além do romancista naturalista, representaram o hipódromo

de Longchamp, como Manet e Degas.

Segundo Philip Duncan, no artigo Genesis of the Longchamp Scene in Zola’s Nana

(1960), no qual compara a descrição da corrida de cavalos presente em Nana com um artigo

escrito também por Zola intitulado Skachki i igra, publicado no jornal russo Vestnick Evropy

,em 1875, a cena da corrida descrita no romance Nana é um “golpe de mestre” (DUNCAN,

1960). Porém, conforme as passagens justapostas se seguem é possível perceber que o motivo

da descrição ser tão detalhada é o fato de Zola já ter testemunhado uma corrida; ou seja, a

descrição em Nana não é resultado apenas da sua imaginação e sim realizada a partir de um

texto já redigido pelo próprio autor (DUNCAN, 1960).

Duncan argumenta ainda que, para uma certa recepção crítica de Zola, o romancista só

teria visitado o hipódromo de Longchamp em junho de 1879. Porém, o artigo de Zola sobre

corridas de cavalos, neste local, já havia sido publicado na imprensa russa cinco anos antes da

publicação de Nana, em 1880. A hipótese de Duncan é de que Zola teria aproveitado seu

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próprio artigo, no qual discorre sobre a movimentação das pessoas, somado à visita ao

hipódromo em 1879, quando teria obtido informações para enriquecer o décimo primeiro

capítulo de seu romance. Isto porque seu artigo para a imprensa russa é mais resumido do que

a descrição presente em Nana. (DUNCAN, 1960, p. 686)

O capítulo XI do romance Nana é um dos poucos em que o narrador delega a

descrição para a protagonista homônima. Através dos olhos dessa personagem, o leitor será

transportado pela extensão do hipódromo de Longchamp, sendo informado, assim, sobre a

aparência do céu, os locais fechados dentro desse espaço, a movimentação social e, é claro, o

sentimento presente em um Grand-prix.

O capítulo tem início com uma cena que fora prevista por Zola em seu dossiê

preparatório, utilizando as seguintes palavras: “Poser d’abord les lieux. Premier dimanche de

juin. Beau temps, avec un peu de vent, des nuages qui passent. Poser bois et briques. Courte

description »101 (ZOLA, 2006, p.320). Ou seja, Zola previu uma descrição curta que revela

um belo de dia de final de primavera:

Ce dimanche-là, par un ciel orageux des premières chaleurs de juin, on courait le

Grand Prix de Paris au bois de Boulogne. Le matin, le soleil s’était levé dans une

poussière rousse. Mais, vers onze heures, au moment où les voitures arrivaient à

l’hippodrome de Longchamp, un vent du sud avait balayé les nuages ; des vapeurs

grises s’en allaient en longues déchirures, des trouées d’un bleu intense

s’élargissaient d’un bout à l’autre de l’horizon. Et, dans les coups de soleil qui

tombaient entre deux nuées, tout flambait brusquement, la pelouse peu à peu emplie

d’une cohue d’équipages, de cavaliers et de piétons, la piste encore vide, avec la

guérite du juge, le poteau d’arrivée, les mâts des tableaux indicateurs, puis en face,

au milieu de l’enceinte du pesage, les cinq tribunes symétriques, étageant leurs

galeries de briques et de charpentes. Au delà, la vaste plaine s’aplatissait, se noyait

dans la lumière de midi, bordée de petits arbres, fermée à l’ouest par les coteaux

boisés de Saint-Cloud et de Suresnes, que dominait le profil sévère du mont

Valérien.102 (ZOLA, 1983, p.1375)

A descrição tem início com certos dados que haviam sido previstos por Zola em seu

dossiê, como o céu tempestuoso, o monte Valérien e a planície de Suresnes. A maior parte

101 Tradução livre “Inserir primeiro os locais. Primeiro domingo de junho. Tempo bom, com um pouco de vento,

com nuvens que passam. Mostrar o bosque e o muro. Descrição curta” (ZOLA, 2006, p. 320) 102 Tradução: “Naquele domingo, sob o céu tempestuoso das primeiras ondas de calor do mês de junho, era

disputado o Grande prêmio de Paris no Bois de Boulogne. Pela manhã, o sol apareceu em meio a uma poalha de

tons ruços. Porém, perto das onze horas, quando as carruagens chegavam ao hipódromo de Longchamp, um

vento do sul varreu as nuvens; os vapores acinzentados se desfizeram em compridos rasgos, e as fendas no céu,

de um azul intenso, alargavam-se de um extremo a outro do horizonte. E, sob os raios de sol que atravessavam as

nuvens, tudo flamejava bruscamente, a grama, pouco a pouco tomada por uma confusão de carruagens,

cavaleiros e pedestres; a pista ainda vazia, com a guarita do juiz; o poste de chegada; os mastros dos quadros

indicadores, e depois, à frente, no meio do recinto da pesagem, as cinco tribunas simétricas que se dispunham em

galerias de tijolos e vigas. Adiante, a vasta planície se aplanava, mergulhada na luz do meio-dia, bordada de

arvorezinhas, e cercada, a oeste, pelas encostas verdejantes de Saint-Cloud e de Suresnes, que dominavam o

perfil severo do Monte Valérien.” (ZOLA, 2013, p.400-401)

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dessa descrição inicial é dedicada ao céu, em que no início da manhã, o sol se havia

apresentado coberto por uma poeira avermelhada. Porém, no final da manhã, com a chegada

das carruagens dos espectadores, um vento do Sul remove as nuvens, permitindo que se veja o

tom azulado do céu que preenche todo o horizonte. A intensa luz azul causa um reflexo que

ilumina bruscamente a relva, os cavaleiros, as pessoas que chegam a pé, a pista, os mastros e

as tribunas.

Ao contrário das seções anteriores nas quais analisamos locais iluminados por luzes

artificiais, o capítulo XI ilustra as diferentes nuances da luz natural ao decorrer do dia. Isto

por que é descrito como o céu amanhece nublado, ganha uma coloração azulada às onze horas

e ao meia dia, a luminosidade inunda a planície cercada por pequenas árvores.

Não é possível afirmar que há uma saturação de marcadores de picturalidade, porém a

descrição é organizada pelos dêiticos como -au-delà (adiante)- e -en face (na frente); e é

também localizada topograficamente, como indicado na primeira oração, através do adjunto

adverbial de lugar -au bois de Boulogne (no bois de Boulogne). Isto permite que o leitor

visualize, inclusive, acidentes geográficos posicionados no fundo da cena, como a planície de

Suresnes e o monte Valérien.

Além disso, os verbos empregados nesta descrição estão, em sua maioria, conjugados

no pretérito imperfeito e indicam movimento como: -arrivaient (chegavam) -, -s’en allaient

(se desfizeram) -, -s’élargissaient (alargavam-se) -, -tombaient (caiam) -, -flambait

(flamejava)-, -s’applatissait (se aplanava)- e -se noyait (se inundava). Aliás, junto do verbo -

flambait- é empregado também um advérbio de intensidade -brusquement (bruscamente)-, que

modifica totalmente o sentido do verbo e cria uma cena intensamente iluminada. A cena

descrita não é muito colorida, pois são descritas somente duas cores relacionadas ao

firmamento: os tons avermelhados e a cor azul.

As descrições do hipódromo de Longchamp, em sua maior parte, destacam o céu e

suas variações ao longo do dia. Durante esse capítulo são mencionadas várias corridas, apesar

do evento principal ser o Grand-prix:

La course s’achevait, comme inaperçue dans l’attente du Grand Prix, lorsqu’un

nuage creva sur l’hippodrome. Depuis un instant, le soleil avait disparu, un jour

livide assombrissait la foule. Le vent se leva, ce fut un brusque déluge, des gouttes

énormes, des paquets d’eau qui tombaient. […] Mais l’averse cessait déjà, le soleil

resplendissait dans la poussière de pluie qui volait encore. Une déchirure bleue

s’ouvrait derrière la nuée, emportée au-dessus du Bois. Et c’était comme une gaieté

du ciel, soulevant les rires des femmes rassurées ; tandis que la nappe d’or, dans

l’ébrouement des chevaux, dans la débandade et l’agitation de cette foule trempée

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qui se secouait, allumait la pelouse toute ruisselante de gouttes de cristal.103 (ZOLA,

1983, p.1386)

Novamente essa descrição, assim como aquela que abre o décimo primeiro capítulo,

aborda principalmente a aparência do céu e o efeito de sua luz sobre os objetos. O

firmamento, nesse momento da narrativa, torna-se nublado e o dia ganha uma aparência

azulada escura que antecipa uma chuva súbita. Após o término da chuva, uma nesga azul

aparece atrás de uma nuvem, que foi levada para cima do bosque. Essa descrição do céu no

dia do Grand-prix gera uma série de imagens que se aproximam de um exercício praticado

por alguns impressionistas, principalmente Monet e sua série de telas representando a catedral

de Rouen104.

Outro detalhe da descrição é que a “alegria” do céu é refletida nas mulheres da cena,

cujos risos parecem surgir por causa da iluminação do céu. Em outras palavras, Zola não

indica que as emoções do personagem modificam a percepção do céu, o que pode significar

que há uma hierarquia na cena, sendo o céu o elemento mais importante da descrição e os

elementos antrópicos ficando em segundo plano.

Há, na descrição acima, um efeito pictural que lembra o pontilhismo: a grama do

hipódromo, que está coberta por gotículas de cristal -que na verdade são gotas d’água da

chuva que caíram previamente-, é iluminada pela nappe de ouro. O termo -nappe-, segundo o

dicionário Littré105 significa toalha que cobre uma mesa de jantar, ou seja, a grama do

hipódromo está coberta por um tecido dourado, o que faz com que ela adquira uma aparência

dourada pontilhada por gotas de cristal. Como mencionado na seção 3.2, Zola utilizou

frequentemente o recurso de sobreposição de tons em suas descrições, uma técnica dmuito

utilizada pelos impressionistas por causa dos estudos do químico Chevreul, que aparece mais

uma vez em outra descrição, que tem Nana como olhar-descritor:

Nana regardait avec sa jumelle. À cette distance, on distinguait seulement une masse

compacte et brouillée, entassée sur les gradins, un fond sombre que les taches pâles

des figures éclairaient. Le soleil glissait par des coins de toiture, écornait la foule

103 Tradução: “A corrida terminava, com que despercebida diante da expectativa do Grande Prêmio, quando o sol

desaparecera, e uma lívida claridade sombreava a multidão. O vento ficou mais forte, e logo caía um súbito

dilúvio, de gotas enormes, e a queda de impetuosas golfadas de água. [...] Mas a tempestade já estava acabando,

e o sol resplandecia na nuvem de chuva que ainda pairava no céu. Um rasgão azul se abria por trás da nuvem que

se afastava por cima do bosque. E era como uma alegria do céu, levantando os risos das mulheres agora

tranquilizadas; e, em meio ao resfolegar dos cavalos, à debandada e à agitação daquela multidão que,

encharcada, se sacudia, a toalha dourada acendia o gramado inundado de gotas de cristal.” (ZOLA, 2013, p.414-

415) 104 A série de quadros de Monet é um estudo do efeito da luz em diferentes dias, estações e momentos do dia

sobre um mesmo objeto, a catedral de Rouen. 105 O verbete nappe encontra-se online no seguinte endereço: https://www.littre.org/definition/nappe

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assise d’un angle de lumière, où les toilettes semblaient déteindre.106 107(ZOLA,

1983, p.1386)

É possível saber a quem pertence o olhar-descritor por causa da seguinte oração -

Nana regardait avec sa jumelle (Naná observava com seu binóculo) -. Esta frase também

indica um marcador de picturalidade essencial para Louvel: o enquadramento da cena, que é

evidenciado através dos binóculos utilizados pela personagem que lhe permitem ver mais

além do seu campo de visão. Através da moldura dos binóculos são visíveis os bancos, cuja

aparência forma um fundo escuro sobre o qual é somente possível ver pontos iluminados.

Esses pontos na verdade são personagens cujas fisionomias não são detalhadas. Também são

vistas as vestimentas das mulheres, que nessa cena parecem perder a cor. A oração final da

cena resume a intenção de Zola com essa descrição: compor uma imagem na qual os objetos

são vistos de forma que não reflitam suas aparências verdadeiras. É possível identificar esta

intenção por causa do emprego do verbo -semblaient (pareciam)-, que faz um jogo com a

aparência verdadeira dos objetos contrapondo-a à aparência observada por Nana.

A curiosidade de Nana também produz cenas que permitem ao leitor visualizar outras

partes do hipódromo, porém Nana não tem os saberes necessários para descrever todas as

partes do hipódromo, ela não percebe a beleza da paisagem, pois está interessada apenas na

comida e no público:

Elle voulait tout visiter. Ce bout de parc, avec ses pelouses, ses massifs d’arbres, ne

lui semblait pas si drôle. Un glacier avait installé un grand buffet près des grilles.

Sous un champignon rustique, couvert de chaume, des gens en tas gesticulaient et

criaient ; c’était le ring. À côté, se trouvaient des boxes vides ; et, désappointée, elle

y découvrit seulement le cheval d’un gendarme.108 (ZOLA, 1983, p.1393)

No entanto, o que Nana encontra não é o que imaginara, o que a deixa desapontada,

pois ela vê apenas um cavalo. A personagem continua a explorar o hipódromo :

Et elle entra dans la salle, une pièce étroite, basse de plafond, encombrée d’une

grande balance. C’était comme une salle de bagages, dans une station de banlieue.

106 Tradução: “Naná observava com seu binóculo. Àquela distância, podia apenas distinguir uma massa

compacta e confusa, amontoada sobre os degraus das bancadas, sobre um fundo escuro, iluminado pelas

manchas claras dos rostos. O sol deslizava pelos cantos das coberturas, acendia a multidão sentada com seu

clarão luminoso, em que os vestidos pareciam perder a cor.” (ZOLA, 2002, p.415)

108 Tradução: “Naná queria conhecer tudo. Aquele canto do parque, com seus gramados e seus maciços de

árvores, não tinha mais tanta graça. Um sorveteiro instalara um grande bufê ao lado dos portões. Sob uma

armação rústica coberta de colmo, as pessoas amontoadas gesticulavam e gritavam; era o ring. Ao lado,

encontravam-se os boxes vazios; e, desapontada, ela encontrou ali apenas um cavalo do gendarme.” (ZOLA,

2013, p.425)

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Nana eut encore là une grosse déception, elle qui se figurait quelque chose de très

vaste, une machine monumentale pour peser les chevaux. 109(ZOLA, 1983, p.1396)

Outra vez, a personagem não vê aquilo que esperava, como indica a oração -Nana eut

encore là une grosse déception- (Nava teve outra grande decepção), pois ela imaginava algo

grandioso e fica decepcionada ao ver que os espaços do hipódromo são comuns e não revelam

nada de extraordinário. Talvez, a personagem que é familiarizada com o teatro, achasse que os

bastidores de Longchamp fossem tão interessantes e intrigantes como a coxia do Théâtre des

Variétés. Além disso, ela não entende a importância daquela sala, nem que a balança tem uma

função nas corridas de cavalo.

O hipódromo de Longchamp e o Théâtre des Variétés são locais de sociabilidade, mas

não se apresentam da mesma forma. Enquanto que no teatro a interação entre as personagens

é descrita, dentro e até fora dele; o hipódromo concentra sua ação social nas arquibancadas,

ou seja, apenas no público que discorre sobre diferentes assuntos, se alimenta, faz apostas e se

observa.

O olhar de Nana constrói uma outra cena, dessa vez, uma imagem que descreve a pista

nos momentos antes do Grand-Prix começar:

Alors, Nana, pour bien voir, monta debout sur une banquette de son landau, foulant

aux pieds les bouquets, les myosotis et les roses. D’un regard circulaire, elle

embrassait l’horizon immense. À cette heure dernière de fièvre, c’était d’abord la

piste vide, fermée de ses barrières grises, où s’alignaient des sergents de ville, de

deux en deux poteaux ; et la bande d’herbe, boueuse devant elle, s’en allait reverdie,

tournait au loin en un tapis de velours tendre. Puis, au centre, en baissant les yeux,

elle voyait la pelouse, toute grouillante d’une foule haussée sur les pieds, accrochée

aux voitures, soulevée et heurtée dans un coup de passion, avec les chevaux qui

hennissaient, les toiles des tentes qui claquaient, les cavaliers qui lançaient leurs

bêtes, parmi les piétons courant s’accouder aux barrières ; tandis que, de l’autre côté,

quand elle se tournait vers les tribunes, les figures se rapetissaient, les masses

profondes de têtes n’étaient plus qu’un bariolage emplissant les allées, les gradins,

les terrasses, où un entassement de profils noirs se détachait dans le ciel.110 (ZOLA,

1983, p.1398)

109 Tradução: “E entrou na sala, um cômodo estreito, de teto baixo, atravancado por uma grande balança. Era

como o compartimento de malas de uma estação de subúrbio. Naná ficou muito decepcionada ao entrar, aí ela

que imaginava algo de muito grande, uma máquina monumental para pesar os cavalos.” (ZOLA, 2013, p.428) 110 Tradução: “Então Naná, para poder ver melhor, subiu em um dos bancos de seu landau, esmagando com os

pés os buquês, os miosótis e as rosas. Com um vasto olhar, ela perpassou todo o imenso horizonte. Naquele

último instante de febre, via-se a pista vazia, fechada, com seus portões cinzentos, onde se alinhavam os agentes

da polícia a cada dois postes. A faixa de relva lamacenta à sua frente enverdecia cada vez mais, e, ao longe

parecia um tapete macio de veludo. Depois no centro, ao baixar os olhos, ela avistava a grama toda fervilhante

de uma multidão na ponta dos pés, empoleirada nas carruagens, agitada e tomada por um frêmito de paixão, e os

cavalos relinchando, os drapejantes panos das barracas, os cavaleiros incitando os animais por entre os

transeuntes que corriam para se apoiar nas barreiras. E, do outro lado, quando ela se voltava para as tribunas, os

rostos diminuíam de tamanho, as profundas massas de gente não passavam de uma amálgama preenchendo as

aleias, as bancadas, as plataformas, onde um amontoado de perfis escuros se destaca do céu.” (ZOLA, 2013,

p.431)

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A primeira oração indica uma ação que Hamon contextualiza como um lugar

privilegiado, pois Nana sobe a um lugar mais alto para ver melhor. A descrição é organizada

pelo movimento realizado pelos olhos do olhar-descritor, um olhar circular - D’un regard

circulaire (com um olhar panorâmico) -, que cria uma imagem panorâmica. A cena é ainda

uma imagem ampla, pois a personagem muda a direção do corpo para ver outras partes do

hipódromo e completar a cena: -en baissant les yeux (ao baixar os olhos) -, -elle embrassait

(ela perpassou) - e -elle se tournait (ela se voltava).

Outros marcadores de picturalidade que aparecem nessa descrição são os dêiticos

espaciais que indicam a localização do enunciador em relação ao espaço: -devant (à frente) -,

-au centre (no centro) -, -de l’autre côté (do outro lado). Esses elementos de coerência textual

servem como ponto de referência para assinalar o lugar de onde decorre a enunciação,

deixando a cena, assim, mais organizada e legível para o leitor.

Há, também, verbos que são marcadores de picturalidade conjugados no pretérito

imperfeito como -s’alignaient (se alinhavam) -, -s’en allait (se alargavam) -, -se tournait (se

voltava)-, -claquaient (farfalhavam), -lançaient (lançavam)-, -rapetissaient (diminuíam) -, e -

se détachait (se destacavam)-. Os verbos empregados causam um efeito de dilatação do

espaço na narrativa, mas também indicam uma cena que não é completamente estática.

Assim como as outras descrições do hipódromo de Longchamp, a cena acima não é

excessivamente colorida. No entanto, aparecem em destaque as flores e o verde da grama cuja

textura lamacenta assemelha-se a um tapete de veludo macio, como indicado pela seguinte

oração -boueuse devant elle, s’en allait reverdie, tournait au loin en un tapis de velours

tendre (lamacenta a sua frente, se distanciava e enverdecia cada vez mais, e, ao longe, parece

um tape macio de veludo). É perceptível aqui, mais uma vez, que Zola concebe sinestesias

com cores e texturas, isto é, quadros que são palpáveis para o leitor.

A imagem, tampouco, descreve os rostos e detalhes que compõem a cena, pois as

personagens que estão presentes, em Longchamp, para ver a corrida formam uma massa

colorida de -bariolage-, (cárater multicolorido) um termo que significa um conjunto múltiplo

de cores, que cria perfis irreconhecíveis -de profils noirs se détachait dans le ciel (perfis

escuros se destacavam do céu). Essa oração gera um contraste entre a massa, pouco colorida,

das pessoas posicionadas perto do olhar-descritor com as pessoas localizadas ao longe, que

criam perfis negros, perto do céu. A descrição da massa criada a partir do grupo de pessoas

parece similar à maneira como Edouard Manet pintou um grupo de indivíduos assistindo a

uma corrida no hipódromo de Longchamp, como é indicado pelo título da tela que, ao

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contrário, das descrições deste capítulo, tem por elemento central a corrida de cavalos. Segue

o quadro abaixo:

FIGURA 16

Les courses au Longchamp (1866)

Édouard Manet

óleo sobre tela44.0 x 84.2 cm

Art Institute of Chicago

Podemos comparar o quadro de Manet e as descrições de Zola por causa de certos

elementos: como a aparência do grupo de pessoas, pois na tela é possível distinguir somente

duas mulheres com seus vestidos coloridos no canto esquerdo. Todos os outros espectadores

formam uma massa de tons escuros similar à cor verde da grama.

Outro ponto em comum é a falta de detalhes na composição dos rostos. O romancista

frequentemente utiliza termos como -foule (multidão)- ou -masse (massa)- para descrever o

aglomerado presente, no hipódromo, para ver a corrida, indicando assim que há uma sensação

que funde a plateia. Na tela de Manet, por sua vez, o público pode ser percebido como uma

mancha, pois transmite de certa forma a velocidade e a agilidade de uma corrida de cavalos.

Essa sensação presente em uma corrida, é explicitada por Zola não somente nas

descrições do hipódromo de Longchamp como também na descrição da corrida em si:

À présent, le peloton arrivait de face, dans un coup de foudre. On en sentait

l’approche et comme l’haleine, un ronflement lointain, grandi de seconde en

seconde. Toute la foule, impétueusement, s’était jetée aux barrières ; et, précédant

les chevaux, une clameur profonde s’échappait des poitrines, gagnait de proche en

proche, avec un bruit de mer qui déferle. C’était la brutalité dernière d’une colossale

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partie, cent mille spectateurs tournés à l’idée fixe, brûlant du même besoin de

hasard, derrière ces bêtes dont le galop emportait des millions. On se poussait, on

s’écrasait, les poings fermés, la bouche ouverte, chacun pour soi, chacun fouettant

son cheval de la voix et du geste. 111(ZOLA, 1983, p.1403)

A cena acima enuncia um sentimento de urgência causado pelos momentos finais do

Grand-prix concorrido. Zola cria esse ritmo acelerado através de alguns recursos linguísticos,

como o advérbio de modo -impétueusement (impetuosamente)- e a locução adverbial -dans un

coup de foudre (numa velocidade surpreendente), empregado logo no início da descrição,

marcando desde o início o ritmo ágil da cena. O autor se utiliza também de termos que

carregam uma conotação semântica de urgência, grandeza e movimentação como -l’approche

(a aproximação) -, -clameur profonde (profundo clamor) -, -bruit (barulho)-, -brutalité

(brutalidade)- e -colossale (colossal), estes que vão aumentando o ritmo da cena.

A progressão da cena também é produzida através de verbos que exprimem

movimento, como -arrivait (chegava)-, -grandi (aumentava)-, -s’était jetée (se lançara) -, -

s’échappait (escapava)-, -emportait (levavam)-, -se poussait (empurravam-se)-, -s´écrasait

(esmagavam-se)- e -fouettant (chicoteando). Todos os verbos estão empregados em sua

maioria no pretérito imperfeito ou no participe présent (equivalente ao gerúndio do

português) e, além de indicar movimentação, indicam também ações que ocorrem mais de

uma vez. O autor assinala o ritmo rápido das ações que se repetem através dos verbos

conjugados no pretérito imperfeito e gerúndio, mas também utiliza a repetição de substantivos

como -de seconde en seconde- (de segundo a segundo) e -de proche en proche (perto a perto).

Porém, talvez o que mais expresse a sensação de velocidade da cena, em destaque, é

uma oração -cent mille spectateurs tournés à l’idée fixe, brûlant du même besoin de hasard

(cem mil espectadores concentrados na mesma ideia fixa, ardendo com a mesma ânsia da

sorte) -. Ou seja, milhares de pessoas estão todas concentradas numa mesma ideia, num

mesmo instante. É através dessa oração que pode ser resumida a sociabilidade do hipódromo.

Ao contrário do teatro onde diversas opiniões são manifestadas, no hipódromo o sentimento é

comum, pois todos estão fixados em uma mesma ideia: saber qual jóquei vencerá a corrida.

111 Tradução: “Agora, o pelotão chegava de frente, numa velocidade surpreendente. Era possível sentir sua

aproximação e seu fôlego, um ronco longínquo, que aumentava a cada segundo. Toda a multidão se lançara

impetuosamente para as barreiras; precedendo a chegada dos cavalos, um profundo clamor escapava dos peitos e

aumentava gradualmente, com o barulho de ondas gigantesca do mar. Era a imcoparável brutalidade de uma

partida colossal, cem mil espectadores concentrados na mesma ideia fixa, ardendo com a mesma ânsia da sorte,

acompanhando aqueles animais cujos galopes levavam milhões. Empurravam-se, esmagavam-se, com os punhos

contraídos, a boca aberta, cada um por si, cada um chicoteando seu cavalo com a voz e o gesto.” (ZOLA,2013,

p.438)

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O capítulo XII apresenta uma série de quadros sobre um local de sociabilidade, o

hipódromo de Longchamp. As detalhadas descrições do hipódromo compõem o cenário para

o evento principal do capítulo, o Grand-Prix. Essa parte da narrativa marca um instante

significativo, pois é neste momento do romance que Nana ganha importância fora dos palcos

do Théâtre des Variétés e torna-se uma pessoa conhecida em outras esferas sociais.

É, também, no capitulo XII que Zola evidencia sua intenção com essa personagem:

causar a ruína de homens nobres. O autor havia previsto que neste capítulo apareceria a

primeira “vítima” da protagonista: “Un homme fini par Nana. C’est la première victime”112

(ZOLA, 2006, p.328). A “vítima” é o personagem Vandeuvres, um aficionado por cavalos e

apostas que perde todo o seu dinheiro e em seguida suicida-se no estábulo junto a seus

cavalos, sendo o primeiro dos homens, no romance, destruído por sua paixão por Nana.

Enfim, Nana, a mosca de ouro, leva destruição por onde passa e nesse capítulo isso

fica mais evidente. O décimo primeiro capítulo do romance, apesar de ter como ambientação

uma corrida de cavalos, tem por elemento principal a própria Nana. Assim como nos capítulos

anteriores, mesmo quando a protagonista está ausente fisicamente na descrição, ela é inserida

na cena de alguma forma. Aliás, o jóquei que vence a corrida monta uma égua com o mesmo

nome da protagonista, criando uma cena em que a personagem e o animal se misturam,

confundem-se fazendo com que os espectadores não saibam se estão torcendo por Nana, a

mulher, ou Nana, a égua ou até mesmo pelas duas.

112 Tradução: “Um homem destruído por Nana. É a primeira vítima.” (ZOLA, 2006, p.328)

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7. CONCLUSÃO

O projeto literário de Émile Zola intitulado Les Rougon-Macquart, um compêndio de

vinte romances, buscou representar a maneira pela qual a hereditariedade age numa família

em personagens que circulam por diferentes meios sociais, durante um regime político, o

Segundo Império francês. Para atingir seu objetivo literário Zola propôs um método, o

romance experimental, cuja teoria foi inspirada por aquela de Claude Bernard e aplicada no

gênero romance.

A narrativa Nana, dentre as vintes obras que compõem Les Rougon-Macquart, foi o

instrumento literário do autor para representar uma parcela da sociabilidade do Segundo

Império francês que, aos olhos de Zola, se manifestava para um determinado grupo de

indivíduos através de certos eventos de sociabilidade, tais como corridas de cavalo, soirées,

ceias e o teatro.

A representação dessa sociabilidade parisiense no romance Nana foi construída a

partir do método literário de Zola, que compreende a observação e a documentação e essas

duas tarefas foram detalhadamente registradas num dossiê preparatório elaborado pelo próprio

autor. O material de pesquisa para a elaboração do romance Nana deixa clara a intenção de

Zola em descrever os locais de sociabilidade inseridos na narrativa. No entanto, a descrição

não é utilizada somente para descrever os locais de sociabilidade; ela também é utilizada para

descrever as personagens e suas sensações, a visualidade dos trajes e dos espaços e suas

texturas.

Desenvolveu-se nesta pesquisa a hipótese de que as descrições de locais da vida

parisiense, no romance Nana, são compostas por elementos de picturalidade cuja soma resulta

em descrições picturais. Para sustentar essa ideia foi abordada a trajetória de Émile Zola, que

desde muito cedo teve uma relação próxima com as artes visuais, não apenas por causa de sua

habilidade com o desenho, mas também por causa de sua amizade com Paul Cézanne. Os dois

compartilharam os mesmos interesses literários e artísticos ao longo da infância e

adolescência vividas em Aix-en-Provence. A afinidade de Zola com pintores foi um ponto

que se repetiu ao longo de sua vida, principalmente quando ele se mudou para Paris, cidade

onde o autor desenvolveu o hábito de frequentar ateliês de pintores, escreveu críticas de arte e

inclusive teve seu retrato pintado por alguns de seus amigos pintores.

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Pode-se observar, neste trabalho, que a relação de Zola com os pintores,

principalmente com os pintores impressionistas, é mais do que uma simples relação de

camaradagem, pois alguns ideais estéticos compartilhados por esse grupo de artistas também

foram manifestados na escrita pictural de Nana, como o estudo das cores e temas. A redação

do autor nesta obra foi lida como pictural em função de suas escolhas plásticas e temáticas.

Entretanto, não foi possível atestar, no estudo do dossiê preparatório, que na preparação do

romance uma intenção plástica fora prevista. No entanto, quando analisamos certos quadros

impressionistas tendo em vista a teoria química por trás dos traços, mostra-se difícil negar que

a relação de Zola com esses pintores não teve repercussão em sua própria escrita.

Além da picturalidade presente nas descrições de locais de sociabilidade, foi abordado

neste trabalho, também, o modo como Zola narrou as relações sociais entre as personagens

que constituem a diegese de Nana. A sociabilidade nesse romance é representada através de

dois meios principalmente, o teatro e eventos sociais em espaços privados, como a soirée na

casa dos Muffat e a ceia celebrativa na casa de Nana. Esses eventos sociais têm como função

ilustrar o comportamento e temperamento dos diferentes personagens oriundos de diversas

classes sociais. Porém, a conclusão que pode ser extraída a partir do romance Nana é a

hipocrisia dos homens que se intitulam nobres, pois em espaços considerados distintos eles

agem de uma forma e num local considerado impróprio, como a casa de uma cortesã, o

comportamento tartufo desses homens é revelado.

Reservou-se o último capítulo da dissertação para a análise de alguns capítulos do

romance Nana cuja ação é concentrada principalmente em três locais de sociabilidade, o

Théâtre des Variétés, o hipódromo de Longchamp e o Passage des Panoramas. Esses capítulos

foram escolhidos para a realização das análises, pois todos eles se iniciam com descrições que

servem como um portal estratégico para diferentes momentos do enredo.

A análise do primeiro capítulo que descreve o Théâtre des Variétés mostrou que as

descrições picturais não têm uma importância apenas ornamental ou estética no romance, elas

servem também como um indicador temporal que informa ao leitor sobre o transcorrer de uma

noite teatral, através do olhar de um assíduo frequentador daquele teatro, posicionado na

plateia. Por outro lado, o segundo capítulo destinado ao Théâtre des Variétés – capítulo V -

ilustra esse local sob um outro ângulo, dessa vez situando a ação nos bastidores. Por fim, o

terceiro capítulo dedicado àquele espaço – capítulo IX - oferece uma outra óptica, mas dessa

vez, o ambiente é visto através do olhar dos próprios atores.

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A segunda seção do capítulo de análise desta dissertação – capítulo 5.2 - nos oferece

um contraexemplo do olhar descritor através de uma descrição pictural sobre o Passage des

Panoramas. A cena construída informa ao leitor sobre vários objetos iluminados, suas cores e

texturas e pessoas presentes naquele espaço. Porém, a cena é descrita através de um narrador

que parece estar posicionado atrás do personagem Conde Muffat que não vê nada daquilo que

está sendo descrito para o leitor. Além disso, no mesmo capítulo origina-se, a partir, do olhar

do Conde Muffat, uma descrição pictural que evoca o quadro Nana de Manet. A descrição do

Passage des Panoramas tem a função de ilustrar a intensidade da obsessão de Muffat em

relação à cortesã, que absorto em pensamentos sobre a personagem ele não vê nada a sua

frente, mas, quando está posicionado na frente do objeto de seus desejos, a observa de tal

maneira que nasce uma descrição que, na realidade é um retrato literário e pictural da

protagonista.

Por fim, na última seção do capítulo de análise – capítulo 5.3 - é realizada a leitura de

um capítulo do romance, no qual é narrado um dia de corridas no hipódromo de Longchamp –

capítulo XI. Dessa vez, as descrições picturais fornecem ângulos de vários pontos desse local

de sociabilidade. O resultado é que esse capítulo é o único em que é possível ler uma

descrição realizada a partir do olhar da protagonista, o que pode ser percebido pela escolha do

léxico em algumas cenas, pois a personagem não está familiarizada com aqueles espaços.

Além do mais, nesse capítulo torna-se nítido que Nana é objeto central de todo o enredo, pois,

mesmo nesse capítulo em que vemos os eventos a partir de seu olhar, ela parece ter olhos

apenas para si mesma.

Este estudo tinha como hipótese principal verificar que a descrição naturalista,

considerada às vezes como extensa e ornamental, é uma parte integrante da narrativa e que

sem ela o sentido do enredo não seria o mesmo. O objetivo era contrapor à noção do leitor

ingênuo de que é possível, ao ler o romance, pular as descrições, pois elas não são

importantes para o enredo, a função narrativa das descrições.

Todavia, não é possível afirmar que a descrição naturalista não seja ornamental pois

não foram analisadas todas as descrições de todos os romances naturalistas, apenas aquelas de

locais de sociabilidade do romance Nana. Neste romance é possível perceber que as

descrições são picturais, pois criam imagens repletas de marcadores de picturalidade. No

entanto, elas vão além da enunciação pictural, pois elas também têm uma função essencial

para o enredo.

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