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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM ELIZABETE MARIA ÁLVARES DOS SANTOS INFÂNCIA- MEMÓRIAS: CENÁRIOS-PERSONAS NATAL 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

ELIZABETE MARIA ÁLVARES DOS SANTOS

INFÂNCIA- MEMÓRIAS: CENÁRIOS-PERSONAS

NATAL

2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

ELIZABETE MARIA ÁLVARES DOS SANTOS

INFÂNCIA- MEMÓRIAS: CENÁRIOS-PERSONAS

Orientador: Dr. Marcos Falchero Falleiros

Linha de Pesquisa: Literatura e Memória Cultural

NATAL

2012

Dissertação apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Estudos da

Linguagem, como requisito parcial à

obtenção do título do mestre, no

Mestrado em Estudos da Linguagem,

da Universidade Federal do Rio

Grande do Norte, área de Literatura

Comparada, no ano de 2012.

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Dedico a meus pais, Francisco Alves dos

Santos (in memorian) e Nilda Álvares dos

Santos.

Ao meu amado f i lho, João Pedro Álvares

Resende.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, por ter me proporcionado vida e sabedoria para seguir

sempre em frente;

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Estudos da

Linguagem, da UFRN, Derivaldo dos Santos, Andrey Oliveira,

Antonio Medeiros e Carlos Braga pelas aulas, conversas, estímulos

e sugestões bibliográficas, como também aos funcionários e

colegas Gabriel e Bete pelo apoio constante, no exercício de suas

funções;

À Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas, da UFRN, e ao

Departamento de Pessoal, nas pessoas de Mirian Dantas dos

Santos, Solange Álvares e Eduardo Antunes, pela confiança

dispensada ao meu trabalho, permitindo que concluísse esse

mestrado concil iando-o com meu horário de trabalho. Também, não

poderia esquecer da valiosa compreensão recebida dos meus

colegas de sala, Gerlane, Valéria, Muri lo, Igor, Mil la e Janilsa pelo

entendimento nos momentos de “aperreio”, na escritura deste

trabalho;

Ao Professor Dr. Marcos Falchero Falleiros pela orient ação deste

trabalho e pelo carinho e amizade sempre presentes;

Aos membros da banca examinadora dessa dissertação,

professores Dr. Manoel Freire Rodrigues e Dra. Rosanne Bezerra

de Araújo, pela leitura atenta e generosa que fizeram do texto;

A minha amada famíl ia pelo apoio e compreensão em todos os

momentos e aos amigos Mayara Pinheiro, Valeska Limeira, Maria

Aparecida Ferreira, Aluísio Barros, Lanaísa Araújo, Célia Silva,

Arivaldo Leandro Monte e Cláudio Ewerton Martins, sem o apoio

dos quais estas páginas não poderiam ter sido escritas;

A Diógenes Henrique Carvalho Veras da Silva, pelo amor,

incentivo, conversas e pela ajuda em todos os momentos.

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RESUMO

Infância é, sem dúvida, memória, l iteratura de grande qualidade, respeitável, à medida que a história contada transita entre f icção e realidade. História social e pessoal, com tamanho senso de realidade, fazendo com que o leitor lucre com a honestidade e a sinceridade que produziu, nessa obra, resultados marcantes em sua constância de recortes quadro-a-quadro.

Lembrança e esquecimento são, portanto, os guiadores deste trabalho, tendo como propósito a denúncia do encontro da criança com a violência e, sendo o texto memorialístico, vê -se a importância da f icção para que esse tipo de narrativa se sustente. Busco, com isso, mostrar no tom humanizador deste relato de memórias, o seu signif icado profundo e decisivo, através dos conceitos de memória de Le goff, de Seligmann-Silva e de Ecléa Bosi. É, também, através das teorias de Jeanne Marie Ganegbin que just if ico o conceito de lembrança e esquecimento e que, me util izando dos conceitos de Eliane Zagury, acrescento e amparo a relação da autobiograf ia como meio de expressão do relato de memórias.

Por últ imo, em Infância, não há espaço para a fantasia. O lir ismo que se avassala, no decorrer de cada capítulo, comanda a imaginação do autor. A necessidade de inventar cede espaço à necessidade de depor, de denunciar. E essa transição ocorre de forma lenta e gradual, assim como lenta é a vida do menino Gracil iano, diante de tanta humilhação e submissão.

PALAVRAS-CHAVE: Graciliano Ramos; Infância; Memorial ismo; Lembrança; Esquecimento.

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ABSTRACT

Infância is undoubtedly memory, high quality l iterature, reputable, as the story moves between f iction and reality. Personal and social history, with such a sense of reality, causing the reader to prof it from the honesty and the sincerity producing, in this work, remarkable results in a constancy of cl ippings, frame -by-frame.

Memory and oblivion are this work guidance . We aim to denounce the relat ionship between the child and violence, and as it is a memorialistic text, we see the importance of f iction for this type of narrat ive to be sustained. I aim thereby show the tone of this report humanizing memories, its deep and decisive meaning, through the memories concepts by Le Goff, by Seligmann-Silva and by Ecléa Bosi. It is also through the theories of Jeanne Marie G anegbin that I justify the concept of remembering and forgett ing, and also it is also according the concepts of Eliane Zagury that I give support to the importance of autobiography as a a mean of expressing the reported memories.

Finally, in Infância , there is no room for fantasy. The lyricism that overwhelms, throughout each chapter, commands the author's imagination. The need to invent gives way to the need to testify, to denounce. And this transition occurs gradually, slow as Gracil iano’s chi ld l i fe, due to such humiliat ion and submission.

KEYWORDS: Graciliano Ramos; Infância; Memorialism; Remembrance; Oblivion.

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“Os fracos se queixavam, os fortes gritavam mandando, constituíam uma sociedade. Sapos negociantes, sapos vaqueiros, o reverendo sapo João Inácio, o sapo José da Luz, amigo da dist inta farda, sapos traquinas, f i lhos do cururu Teotoninho Sabiá, o sapo alfaiate, mestre Firmo, a sapa Rosenda lavadeira a tagarelar os mexericos da beira da água. O nosso mundo exíguo podia alarga-se um pouco, enfeitar-se de sonhos e caraminholas” (RAMOS).

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO....... ............ ........ ........ ............ ........ ........ ..........9

CAPÍTULO PRIMEIRO...... ......... ........ ............ ........ ........ ..........17

1.1 GRACILIANO E O HISTÓRICO....... ... ............ ........ ........ ..17 1.2 MEMORIALISMO – EU – ORALIDADE............ ........ ........ .25

1.3 LEMBRANÇA – ESQUECIMENTO – FICÇÃO..... ......... ..... .50

CAPÍTULO SEGUNDO...... ......... ........ ............ ........ ........ .........63

2.1 NARRATIVA ORAL E MODERNIDADE............ ........ ........ .63

2.2 BICHOS – COISAS – PESSOAS – CENÁRIOS.... ........ .... ..73

CONCLUSÃO........ ... ......... ........ ........ ............ ........ ........ .........87

REFERÊNCIAS..... ............ ........ ........ ............ ........ ........ .........95

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INTRODUÇÃO

Infância , obra de tom memorialista, é a própria anatomia do

interior do seu autor, que se vale da literatura para retratar, parte

da história de sua vida; da cultura de uma região e, também, da

realidade polít ico-social de uma época.

O livro narra os onze primeiros anos de vida do garoto

Gracil iano Ramos. Segundo Antonio Candido: “talvez seja errado

dizer que Vidas Secas é o últ imo livro de f icção de Gracil iano”.

Ainda conforme Candido, no mesmo ensaio acima referenciado:

Infância pode ser l ido como tal, pois sua fatura convém tanto à exposição da verdade quanto d a vida imaginár ia; nele as pessoas parecem personagens e o escritor se aproxima delas por meio da interpretação l iterár ia, situando-as como criações (1992, p.50).

O silêncio do menino Gracil iano já indicava a sua mil itância:

descrevendo seus pais como car rascos, exibindo a natureza como

impiedosa, relatando situações arbitrárias numa espécie de levante

contra um regime que ele não se permitia aceitar. Como torturado

silenciou, como militante denunciou os maus-tratos, fazendo

referências às inúmeras injusti ças, como os casos do Cinturão; do

Venta-Romba; do garoto que estava sendo surrado injustamente;

da conduta estranha de Chico Brabo e de outras situações -

denúncias que o menino guardou para o escritor: coube a esse

menino reter na memória o grito si lencioso do seu protesto.

Não apenas em Memórias do cárcere , mas também em sua

vida, nos aspectos geográficos, paternos ou religiosos, é visível a

inquietação diante dessas injust iças, tendo assim como traços

constantes em sua narração autobiográf ica, os sentime ntos de dor,

decepção, tristeza. Ainda conforme Candido (1992): “Vê sempre

um indefeso nas unhas de um opressor.” Em um mundo tão cheio

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de nebulosidade, somente a descoberta do novo traz consistência

e, passo a passo, remonta uma vida que, a princípio, parecia tão

sem sentido:

O narrador de Infância se encarrega de nos ensinar algumas das razões dessa cadeia necessár ia de sofr imentos. Os castigos imerecidos, as maldades sem motivo, de que são vít imas os f racos, estão na base da organização do mundo. Ele, a priminha, João, o colega, Venta-Romba, a irmã natural representam a semente da f i losof ia de vida característ ica dos romances de Graci l iano Ramos. Ela não é nova nem brilhante, e isso não importa. Um art ista nada mais faz do que tomar os lugares -comuns e renová- los pela criação (CANDIDO, 1992, p. 54).

O que se vê, de certa forma, em Infância , é a denúncia, é o

posicionamento revolucionário, de esquerda, diante de uma vida

marcada pela secura das relações humanas. As cenas e as

circunstâncias que exibem esses acontecimentos são marcas

vagarosas e detalhadas como se, ao escrever, o autor sentisse o

tempo voltar. Não privou o leitor da responsabilidade de pensar no

tempo, de ser responsabil izado pela condição de testemunho de

um quadro pintado à mão, da rea lidade social de uma época, em

uma determinada região.

Dessa forma, f ica esse leitor desobrigado de inserir a obra

nas linhas da f icção do mero registro literário. É possível

estabelecer relações com esses aspectos, nunca delimitando

fronteiras.

A histór ia contada transcende o pessoal e o f iccional. E isso

é a grande contribuição que o escritor dá à literatura brasi leira.

Não cabe ao crít ico encaixar a história, é preciso que ele tenha a

consciência do material apreendido.

Infância é, sem dúvida, memória, l iteratura de grande

qualidade, respeitável, à medida que a história contada transita

entre f icção e realidade. História social e pessoal, com tamanha

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realidade, fazendo com que o leitor lucre com a honestidade e a

sinceridade com que se produziu essa obra com seus resultados

marcantes e seus constantes recortes de memórias. Sabemos que

escrever memórias não é lembrar com exatidão dos fatos do

passado e repeti- los no presente, mas sim reelaborá -los,

combinando-os com fatos presentes, se ut il izando da f icção, como

se fosse costurando “retalhos”, dando -lhes signif icados diversos

dos que tiveram no momento passado. Esse nosso entendimento

se encaixa, perfeitamente, ao que Falleiros escreveu sobre a

construção desses “retalhos” da memória:

Em Infância , o narrador evita, del icadamente, entrar pela cr ít ica da gênese biográf ica, fora de sua alçada, mas mobil iza os retalhos da memória para explicar o vínculo autor -obra num plano meramente alusivo (1990, p. 4-5).

Antonio Candido, em “Os bichos do subterrâneo”, não saindo

do mesmo viés, aliando poética à realidade, revela que:

Infância , como foi dito, conserva a tonal idade f iccional e é composto segundo um revestimento poético da real idade, que despersonal iza dalgum modo o depoimento e o mergulha na f luidez da evocação (1992, p.87).

Portanto, temos que essa distância temporal entre os fatos

vividos e os ora narrados, em Infância , confere a estes últ imos,

posição de invenção, de criação, de fantasia, atualizados pela

f icção. Essa ideia de impossibil idade de passar para o papel, a

recorrência permanente à f icção é que permite o escritor,

transformando-se em personagem, construir seu retrato, embora

lacunar, com o auxílio da narrativa.

Segundo o pensador alemão, Friedrich Nietzsche, sem o

esquecimento não podemos nos tornar humanos. Para ele, a

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memória é uma espécie de doença, pois estanca o indivíduo no

passado e o impede de enxergar e entregar -se ao f luxo da vida

atual, a única com chances de ser vivida. Então, devemos sim

considerar o esquecimento ao estudarmos a obra memorialística

Infância (1945), onde é esquecendo o passado traumático que

Gracil iano busca a compreensão do outro. Somente a capacidade

de esquecer, principalmente quando se trata de situações

traumáticas vividas repetidamente, é que faz do ho mem um

reprodutor de fatos.

Lembrança e esquecimento são, portanto, os guiadores deste

trabalho, tendo como propósito a denúncia do encontro da criança

com a violência e, sendo o texto memorialístico, vê -se a

importância da f icção para que esse tipo de nar rativa se sustente.

Gracil iano busca, através do esquecimento, em Infância ,

humanizar o outro. Segundo Antonio Candido, em “O direito à

literatura” (2004, p. 171): “o temor é um dos caminhos para a

compreensão”. Vemos, nas palavras de Candido, que a

compreensão dos problemas sociais é a chave para a igualdade de

tratamento entre os povos e a literatura entra nesse contexto para

revelar esse desejo pelo equil íbrio social, um dos pontos

abordados na obra Infância . Buscamos, então, ao longo de nosso

estudo mostrar, no tom humanizador desse relato de memórias, o

seu signif icado profundo e decisivo. Percebe -se, ao longo da

narrat iva, que o motivo maior desse esquecimento, ao rememorar,

é exatamente a necessidade de compreensão e entendimento, de

empatia, de identif icação desse outro. Para darmos voz a essa

nossa observação de “empatia”, no mundo de Ramos, fazemos

referência a Alfredo Bosi, em seu ensaio “Céu, inferno”, onde ele

transcreve um trecho de Vidas secas :

“Esses movimentos eram inúteis, mas o vaqueiro, o pai do vaqueiro, o avô e outros antepassados mais antigos haviam-se acostumado a percorrer veredas afastando o mato com as mãos. E os f i lhos já

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começavam a reproduzir o gesto hereditário” (BOSI apud RAMOS, 2003, p. 24).

Sabemos que, em Infância , o l ir ismo que se avassala, no

decorrer de cada capítulo, comanda a imaginação do autor. Não é

um lir ismo que recebe, que abriga, que traz à lembrança o lado

doce da vida, tampouco aquele que enaltece o passado. É, sim, a

necessidade de inventar cedendo espaço à necessidade de depor,

de denunciar. E essa transição ocorre de forma lenta e gradual,

assim como lenta é a vida do menino Graciliano, diante de tanta

humilhação e submissão. Para Adorno, em “Palestra sobre Lírica e

sociedade” (2003, p. 89): “a l ír ica fa la em nome do pensamento de

uma humanidade livre”. Vemos, então, que a presença social nas

l inhas de Infância está apoiada nessa af irmação de Adorno,

expressada no resguardar-se do sujeito, reagindo à “coisif icação”

do mundo. Na pagina 70, desse mesmo ensa io, destacamos um

trecho, o qual, a nosso ver, respalda e confirma o tom

humanizador de Infância : “somente através da humanização há de

ser devolvido à natureza o direito que lhe foi t irado pela dominação

humana da natureza”.

A singularidade da obra não vem de uma simples foto

empoeirada, nem de meros registros pessoais do autor, mas de

sua verdade literária, da qualidade de sua escrita, regida pelas

marcas fortes e determinantes de um dado tempo de sua

existência.

O livro se ocupa em registrar o espaço dessa existência, que

teria de vingar, a qualquer custo, sem entre -linhas.

Ao mesmo tempo em que é constatado o caráter

autobiográf ico, o leitor se depara com uma narrativa de revelação,

um autêntico protesto pessoal que ecoa, revelando sua viva

osci lação entre a f icção e a autobiograf ia, conforme comentários

de Cláudio Leitão, no Posfácio de Infância :

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O que resulta é um l ivro l i terár io e autobiográf ico. O passado não tem a sol idez dos documentos. As dores, mais que os prazeres estão na escrita e na vida narrada. O passado é uma densa bruma. O contador hesita, esquece-e-lembra, mas o romancista maduro e o artesão virtuoso, mostram -se, fundem-se com o menino e se afastam dele (. . .) (2011, p.267).

Vê-se, no decorrer da leitura desses relatos, um duelo

desumano travado entre o menino oprimido, maltratado pela vida e

o homem escritor que não conseguiu apagar essas marcas

temporais, causadas pelas contingências de sua realidade.

Sem dúvida, essa literatura silenciosa e seca, mesmo

explicada pela crít ica, ou mesmo situada em um movimento

l i terário nacional, tem sua textura, sua marca como um “negativo”

de material fotográf ico: resultado do que o autor não pôde liberar,

muito menos apagar, portanto, denuncia, pela necessidade de se

auto-contar, de se auto-revelar.

Também, tem-se em Infância , a senha para se reconhecer a

vida de um garoto, relembrada pela sisudez do homem Gracil iano

Ramos, pela escrita seca e sem adjetivação, objet iva, capaz de

contemplar uma realidade dura ou a aspereza dela, produzindo

capítulos que expressam economia, não de palavras, mas de

enfado. O autor Gracil iano escreve duro, escreve pedra, escreve

ele, revelando a ausência de cores, próprias da infância que ele

viveu.

O livro, desde seu título, carrega a falta de complemento e a

secura de suas palavras, pois este Infância é seco, como seco é o

tempo nele relatado. Carpeaux vai mais além e complementa:

Certamente, a alma desse romancista seco não é seca; é cheia de misericórdia e de simpat ia para com todas as cr iaturas, é muito mais vasta do que um mestre-escola f i lantrópico pode imaginar; abrange até o mundo assassino de Casimiro Lopes,

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até a cachorrinha Baleia, cuja morte me comoveu intensamente (. . .) (1997, p.30).

Além do valor estético da obra, ao deslocar o olhar do adulto

para um tempo distante e dif íci l, Gracil iano ainda retoma, no

decorrer da narrativa, lembranças da infância para revelar os

sentimentos mais escondidos. O autor não assume papéis de

herói, mas de ser humano igual a qualquer outro. O compromisso

com a verdade dura, real, o desejo inexplicável de exibi - la sem

disfarces, sem maquiagem li terária, faz da sua literatura, arte

despida e visceral, a própria expressão de sua memória e

personalidade. É o que Martins (1977, p. 43) diz: “sentimos em

todo o livro a preocupação com a verdade, com a espontaneidade,

com a ‘inocência’”. Em nosso estudo, além de abordar esses

aspectos observados por Mart ins, também direcionaremos o nosso

trabalho para o tom humanizador que Gracil iano apresenta em sua

obra Infância e o signif icado importante que esse tom proporciona

ao relato de memórias.

Ainda, em toda obra de Gracil iano os problemas relatados

pelo autor, não somente o afetam, mas também o seu meio social.

Daí, o sujeito empírico recriar o passado e tentar dar -lhe sentido.

É o que atesta, ainda, Carpeaux:

Todos os romances de Gracil iano Ramos – e este é o sent ido de seu experimentar – são tentat ivas de destruição: tentat ivas de “acabar com minha memória”, tentat ivas de dissolver as recordações pelos “estranhos hiatos” dum sonho angustiado. “Trata-se de saber que mundo de recordações se dissolve assim”. (1977, p. 31 -32).

O momento é a infância, o cenário é a sociedade patriarcal

nordestina do f im do século XIX e início do XX, e a narrativa

desenvolve-se em um grande memorial de crônica denunciativa.

Em outras palavras: o único continuum do romance é a crônica,

porque, desta forma, novamente, o autor quebra o ideal de mero

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biograf ismo que sempre se atribuiu a Infância . Com esta crônica,

Gracil iano denuncia toda uma ambiência cultural, ou seja, um

coletivo e não apenas suas idiossincrasias sobre suas memórias

de infância. Esta descrição se observa em Reis:

Enquanto alguns se jactavam de usar a pr imeira pessoa, Ramos t inha ojer iza ao “pronomezinho irr itante”. Testemunhar sobre a condição humana urgia mais do que trazer à tona veleidades individuais. Portanto, tanto em Infância quanto em Memórias do cárcere , pulsou mais uma memória colet iva do que reminiscências individuais. (2009, p. I I) .

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CAPÍTULO PRIMEIRO

1.1 GRACILIANO E O HISTÓRICO Com a chegada do f im do século XIX, o otimismo da era das

revoluções sai de cena, cedendo espaço a um olhar mais ref lexivo

e pessimista. Na Europa do f im desse século, havia muitas

inquietações e indefinições e as descobertas científ icas deram

início a um processo de mudança de mentalidade, pois provocaram

alteração de valores centenários e o questionamento de

convicções rel igiosas. A sociedade teve que acomodar a economia

capital ista, que trouxe prosperidade para a elite e miséria para o

proletariado, conforme Hobsbawun, 1961.

Na literatura, uma onda de pessimismo se espalha pela

Europa. O artista já não pode se apoiar nos sent imentos que no

Romantismo serviram de f i ltro para a compreensão da realidade.

Não acredita que a razão chave que adotou para a explicação e

interpretação do mundo depois da revolução Industrial, seja ainda

suficiente para orientar seu olhar e inspirar sua arte. Desconfia da

realidade, considera-a enganadora. Entende que o mundo

concreto, visível, dá ao ser a sensação de conhecimento, mas que

a razão não lhe permite ver o que vai além do real, não lhe dá

meios para alcançar o desconhecido.

No Brasil, os primeiros anos da República, f inal do Século

XIX, são agitados. O nordeste é f lagelado pela seca e sacudido

pela guerra de Canudos (1896-1897), profetizada pelo messiânico

Antonio Conselheiro que queria transformar o sertão nordestino em

mar. Essa guerra foi considerada um dos eventos de confrontos

internos mais sangrentos do país. O sertão nordestino virou palco

para batalhas entre a polít ica e grupo de cangaceiros, que exigiam

dos coronéis o pagamento de “taxas” de proteção de suas

fazendas. O mais famoso desses cangaceiros foi Virgulino Ferreira

da Silva, o Lampião.

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No norte, a borracha traz riqueza e prosperidade para uma

região isolada e desconhecida. Com a riqueza que a extração da

borracha gerava, Manaus e Belém prosperaram, tornaram -se

importantes centro culturais, como registram até hoje os

monumentais “palácios” erguidos pelos barões da borracha nessas

duas capitais.

No Sudeste do Brasil , a riqueza de São Paulo é proveniente

do café, o “ouro negro”. Imigrantes começam a chegar, com

costumes diferentes, atraindo milhares de brasileiros esperançosos

em conseguir um trabalho estável e mais bem remunerado.

O desafio da Literatura, portanto, era a representação desses

contrastes. Passava da hora de dar voz a um país com tanta

diversidade e complexidade.

Mesmo assim, com a Proclamação da República, em 1888, o

cenário econômico brasi leiro não teve grandes mudanças. A

situação das famílias que viviam no campo, dois terços da

população do país, naquela época, continuava sendo determinada

pelos latifundiários, que controlavam extensas porções de terra

tanto no litoral quanto no interior. Nessa época a região Nordeste

do país enfrentava o crônico problema da seca, cujo tema foi

enfaticamente exposto e denunciado, por Graciliano, em Vidas

secas (1938). Segundo Candido, em seu ensaio “A revolução de

1930 e a cultura” (1989, p. 186): “Graças a isto, no decênio de

1930, o inconformismo e o anticonvencionalismo se tornaram um

direito”, trazendo níveis de “aceitação” da escrita de alguns

escritores, dentre eles Gracil iano Ramos. Logo, a produção

literária dessa época se fragmenta e outros autores escrevem

sobre as diferentes regiões, os centro urbanos, os funcionários

públicos, os sertanejos, os imigrantes. Gracil iano, em sua vasta

obra, dá conta de todos esses temas e os retrata, sabiamente.

Na li teratura, é considerada pré -modernista, a l iteratura

produzida entre 1902, ano da publicação do romance Os sertões e

1922, ano da realização da Semana de Arte Moderna, marco da

chegada do Modernismo. A característica dos romances escritos

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nos primeiros anos do século XIX era a de olhar para o Brasil e

usar a li teratura como meio para torná-lo mais conhecido pelos

brasi leiros, desviando o olhar das classes sociais mais

privi legiadas que, até aquele momento, ocupavam boa parte da s

páginas dos romances escritos. Iniciou -se, então, uma busca por

narrat ivas mais voltadas para os acontecimentos históricos e

atuais. Como consequência natural da maior aproximação entre

literatura e realidade, há uma maior crít ica à realidade social e

econômica contemporânea, enfim, a constituição de uma l iteratura

que retratasse verdadeiramente o Brasil do século XX.

Então, os ecos da denúncia de um Brasil ainda por descobrir,

cujos problemas precisavam ser conhecidos pelo resto do país,

determinaram os rumos da prosa dos autores da geração de 1930.

A produção l iterária desse período privi legiou as questões sociais

e ideológicas de um país maltratado pela seca, pela miséria de

seus habitantes, pela travessia de seus retirantes. Os dramas da

região nordest ina são o traço mais forte das obras dessa época, de

uma certa tendência de alguns autores dessa época, mostra ndo o

cenário devastador e desolador consequente da fome que

determina a vida do sertanejo. Destacamos um trecho de Candido,

como nota a essa nova modalidade de narrativa, podendo assim

dizer:

É o caso do “romance do Nordeste”, considerado naquela altura pela média da opinião como o romance por excelência. A sua voga provém em parte do fato de radicar na l inha da f icção regional (embora não “regional ista”, no sentido pitoresco), feita agora com uma liberdade de narração e l inguagem antes desconhecida. Mas deriva também, do fato de todo o País ter tomado consciência de uma parte vital, o Nordeste, representado na sua real idade viva pela l i teratura (1989, p.187).

Não será, portanto, a partir dessa consciência social,

possível retratar um país que não seja marcado pela desigualdade

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e pela diversidade cultural. É a denúncia da realidade que cerca

seu povo.

Nas três primeiras décadas do século XX, o cenário artístico

europeu também vivia um momento de grande agitação. Diferentes

movimentos artísticos chamados de vanguardas surgiram para

estabelecer novas referências para a pintura, a l iteratura, a

música, e a escultura. O termo vanguarda hoje é usado para definir

uma postura que antecipa um novo caminho, seja esse li terário,

artíst ico ou científ ico, clamando pela diferença, por novos padrões

estéticos para um mundo em transformação. Não diferentemente

da Europa e dos Estados Unidos, no Brasil dos anos 30, houve

uma “espécie de convívio ínt imo entre a Literatura e as ideologias

polít icas e rel igiosas” (Candido, 1989, p. 188).

Com o término da Republica Velha, em 1930, no Brasil

controlado pelos grandes proprietários rurais, deu -se início a era

de Vargas, que se estenderia até 1945, ano de publicação de

Infância . Exposto ao horror de duas grandes guerras, o ser

humano vive “tempos sombrios” em meados do Século XX. O que

signif ica, então, estar no mundo? A esperança deve ser depositada

nos indivíduos ou projetada na espiri tualidade? Confrontada com

questões como essas, a l iteratura precisa encontrar novos

caminhos, abandonando a relativa leveza que a marcou, no início

do século XX.

De acordo com o historiador Boris Fausto (1972), a revolução

de 1930, nome dado ao movimento liderado por polít icos e

militares contra as oligarquias cafeeiras, resultou na deposição de

Washington Luís e levou Getúl io Vargas ao poder. Esse governo,

que deveria ser provisório, foi -se, aos poucos, tornando-se

duradouro e Vargas, em 1934, foi legit imado no Poder, com a

promulgação da nova Constituição. Sentindo-se ameaçado pelos

movimentos de esquerda, Getúlio Vargas começou a perseguir os

manifestantes. Nessa perseguição, assim como aconteceu com

vários escritores declarados serem de esquerda, que manifestavam

essa consciência social, foram presos, dentre eles, nosso mestre

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Gracil iano, “comunista”, numa prisão em Maceió, em março de

1936, acusado de subversão. Foi l ibertado, no Rio de Janeiro, em

1937. Essa época na prisão serviu de tema para sua obra

Memórias do cárcere , publicado postumamente, em 1953. Um dos

ganhos dessa nova era li terária dos anos 30 foi o da consci ência

com relação às contradições da própria sociedade, dando maior

visibi l idade aos aspectos culturais de nosso País. Os escritores

dessa fase passaram a serem vistos como “opositor”, nas palavras

de Candido:

Uma das consequências foi o conceito de inte lectual e art ista como opositor, ou seja, que o seu lugar é no lado oposto da ordem estabelecida; e que faz parte da sua natureza adotar uma posição cr ít ica em face dos regimes autoritár ios e da mental idade conservadora (1989, p.195).

Em 1941, o cenário da Segunda Guerra Mundial (1939-1945)

agravou-se com o bombardeio de Pearl Harbor. Em 1945, o

resultado da destruição era devastador e inacreditável: a rendição

alemã expunha ao mundo as atrocidades cometidas contra milhões

de judeus e outros cidadãos pertencentes a grupos considerados

“indesejáveis” pelo governo nazista (homossexuais, ciganos,

comunistas, deficientes físicos e mentais, sindicalistas, membros

de grupos rel igiosos catól icos e protestantes, prisioneiros de

guerra soviét icos). O lançamento das bombas atômicas, em agosto

de 1945, contra as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki

revelou que a últ ima fronteira da ética havia sido cruzada pela

ciência: o ser humano havia descoberto uma forma “ef iciente” de

exterminar a própria raça. Estava, então , criado um contexto para

que a l iteratura assumisse uma perspectiva mais intimista e

procurasse respostas para as muitas dúvidas existenciais

desencadeadas por todo esse cenário de horror e de destruição.

Então, ref letir sobre o sentido de estar no mundo é a proposta que

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define o projeto l i terário da prosa dessa época, sendo a obra

Infância um exemplo claro dessa ref lexão.

Esse contexto sombrio da Segunda Guerra Mundial e as

atrocidades cometidas em nome do poder geram uma forte

necessidade de resgatar a crença de que a nossa espécie pode ser

realmente “humana”. A espiritual idade também vive um momento

de grande conflito, porque não f ica fácil compreender Deus

(independentemente do nome que receba) quanto compreender a

humanidade, diante da cruel existência de bombas atômicas e

campos de concentração. A análise do ser humano e de suas

angústias, o desejo de compreender a relação entre o indivíduo e a

sociedade da qual faz parte são, portanto, os elementos

recorrentes nas obras produzidas nessa época, de 1945 . É a

necessidade de uma produção com forte dimensão social, expondo

aos leitores acontecimentos que testemunham e para os quais

buscam uma explicação. Então, os romancistas dessa geração,

principalmente na região Nordeste, época que f icou conhecida

como “a era do romance brasi leiro” preocupados com o país em

que viviam, usaram a narrativa como instrumento de denúncia de

uma realidade para retratar essa realidade social. Gracil iano foi

um dos maiores expoentes, senão o maior, para essa geração.

Alfredo Bosi, em História concisa da Literatura Brasileira nos dá

uma visão geral sobre o realismo das obras de Ramos:

O real ismo de Graci l iano não é orgânico nem espontâneo. É cr ít ico. O “herói” é sempre um problema: não aceita o mundo, nem os outros, nem a si mesmo. Sofrendo pelas distâncias que o separam da placenta famil iar ou grupal, introjeta o conf l ito numa conduta de extrema dureza que é a sua única máscara possível. E o romancista encontra no trato analít ico dessa máscara a melhor fórmula de f ixar as tensões sociais como primeiro motor de todos os comportamentos (1994, p. 402).

Para ilustramos essa contribuição dada por Graciliano,

escolhemos um trecho do livro Vidas secas :

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Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infel izes t inham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente, andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do r io seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da cat inga rala (RAMOS, 2008, p.9).

Estamos diante de um fragmento que ilustra o impacto do

meio sobre o indivíduo. Vemos que o modo encontrado por

Gracil iano para mostrar isso, foi fazer com que o enredo de suas

obras nascesse da relação entre o contexto socioeconômico e o

espaço (caracterizado de modo bem definido). O livro de

memórias, Infância, desenvolve, portanto, de maneira bem

peculiar, esse projeto de denúncia social. Muito mais do que

apenas romances regionalistas, os textos de Graciliano falam de

problemas humanos universais. O cuidado com as palavras é um

dos traços mais importantes de sua prosa. A economia absoluta do

uso de adjetivos e advérbios, a escolha adequada e cuidadosa dos

substantivos que melhor contam e denunciam uma realidade, enfim

todos os aspectos da construção de seus romances colaboram

para a criação do “realismo bruto”. A linguagem usada em seus

romances constrói o olhar realista, através da f icção. Observemos,

por exemplo, como o narrador de Infância , descreve as pessoas

comuns:

As pessoas comuns exalavam odores fortes e excitantes, de fumo, suor banha de porco, mofo sangue. E bafos nauseabundos. Os dentes de Rosenda eram pretos de sarro de cachimbo; André Laerte usava um avental imundo; por detrás dos baús de couro, bri lhantes de tachas amarelas, escondiam-se camisas ensanguentadas (RAMOS, 2011, p. 122).

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Logo, percebe-se que, por meio da linguagem, Graciliano

constrói seus personagens protagonistas: homens atormentados,

cheios de conflitos, solitários, destruídos pela vida, como Paulo

Honório, em São Bernardo , e Fabiano, em Vidas secas , para

citarmos alguns exemplos.

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1.2 MEMORIALISMO – EU – ORALIDADE

Visto que as palavras têm o poder de representar o

pensamento, e, seria justamente esse pensamento traduzido

mentalmente, que se transforma em imagem concreta quando da

passagem de uma obra literária para o imagético, podemos dizer

que a relação entre a l i teratura e a realidade se sustentam na

verdade que passa a ser o próprio tecido do texto.

Historicamente, sabe-se que o início da elaboração da

infância, como tema literário na lírica brasileira, é atribuído aos

românticos. Além disso, desde os primórdios do século XIX, a

infância foi produto dos vates brasileiros. No século XX, o tema se

consolidou, o que de certa maneira acompanhou vanguardas

estéticas européias e da Hispano-América, conforme atesta Eliane

Zagury, em A escrita do eu :

(. . .) como prova da genuinidade l iterár ia no Brasil: é na década de 40 que surgem, entre nós, as memórias de infância, subgênero da l iteratura confessional que veio produzir textos de qual idade indiscut ível, sendo mesmo um dos sustentáculos da nossa prosa l ír ica (1982, p. 14).

Essa genuinidade, não afastou das memórias de infância o

estigma de literatura menor, uma espécie de apêndice na

bibl iograf ia de um grande poeta ou romancista maduro

esteticamente. Ora, como poderia ser pensada, discutida e

registrada a infância senão em um momento posterior? É patente

na forma muito imediata de se trabalhar na infância resu ltados

imberbes dos nossos românticos.

Nos trinta e nove capítulos de Infância, experimentamos,

vemos e sentimos, passagens do sertão, da vila, da mata, das

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pessoas, dos bichos, em seu mais íntimo olhar, como forma de

reintegrar, reconstruir e perfazer o c iclo de sua infância.

Antonio Candido (1992) i lustra essa jornada com uma

passagem no início de seu ensaio “Ficção e confissão”:

Para ler Graci l iano Ramos, talvez convenha ao leitor aparelhar-se do espír ito de jornada, dispondo-se a uma exper iência que se desdobra em etapas e, principiada na narração de costumes, termina pela conf issão das mais vívidas emoções pessoais ( 1992, p.13).

Ainda, nesse mesmo ensaio, Candido (1992, p.65), se

posicionando em relação à obra de Ramos, af irma que a passagem

“da f icção para a autobiograf ia” foi um “desdobramento coerente e

necessário de sua obra”, just if icando com isso o caráter

confessional da obra do escritor Graciliano.

Há, portanto, em Infância , a necessidade de depoimento

como expressão de sua verdade pura e c rua, fazendo com que as

passagens memorialíst icas de sua f icção sejam interpretadas como

exposição do pessoal, característ icas f irmes do testemunho e da

autobiograf ia.

Em entrevista a Homero Senna (in Brayner, 1977, p. 55),

Ramos confirmou os ref lexos que sua vida tem na sua literatura,

dizendo: “Nunca pude sair de mim mesmo. Só posso escrever o

que sou. E se as personagens se comportam de modos diferentes,

é porque não sou um só”. Essa declaração mostra que seus livros

de memórias e seus relatos f iccionais estão em completa conexão

com o homem e o escritor.

Percebemos, também, ao longo da obra em estudo, retratos

negativos dos pais, professores, conterrâneos e até de sua própria

f igura, como forma de nos “presentear” com os aspectos sombrios

e dolorosos da obra, nos deixando bem claro que Infância , como

livro de memórias, é especialmente construído no viés da pureza e

não do pessimismo, como muitos apontam.

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Para nos posicionarmos nesse sentido do pessimismo que

Infância parece retratar, vamos tecer nossas considerações

partindo de uma análise de Ecléa Bosi em Memória e Sociedade –

Lembrança de Velhos:

Se o adulto não dispõe de tempo ou desejo para reconstruir a infância, o velho se curva sobre ela como os gregos sobre a idade de ouro. Se examinarmos cr i t icamente a meninice, podemos encontrar nela aspirações t runcadas, injust iças, prepotência, a host i l idade habitual contra os f racos. Poucos puderam ver f lorescer seus talentos, cumprir sua vocação mais verdadeira. Comparamos acaso nossos ideais antigos com os presentes? Examinamos as raízes desse desengano progr essivo das relações sociais? (2007, p. 83) .

Percebemos, nesse trecho escrito por Ecléa Bosi, que o que

resta ao adulto é tão somente o desejo de evocação da infância,

do passado onde tudo era lúdico, t inha cores, resplandecia. A

ref lexão e a constatação dos “velhos” é que foi t irado deles, o

direito de escolha. O sentimento de inferioridade, diante de suas

impossibil idades, af lora e grita abafadamente. Portanto, narra -se

pela experiência adquirida, transformando-a em “experiência dos

que a escuta”, de acordo com Bosi, E. (2007, p. 85).

Levando-se em consideração que os velhos, nas sociedades

tradicionais ou orais, t inham um lugar de destaque como detentor

de sabedoria e, sua ausência, portanto, nos privaria de

experiências signif icativas, conforme nos asse gura Ecléa Bosi, no

mesmo ensaio:

Quando a sociedade esvazia seu tempo de exper iências signif icat ivas, empurrando -o para a margem, a lembrança de tempos melhores converte num sucedâneo da vida. E a vida atual só parece signif icar se ela recolher de outra época alento. O vínculo com outra época, a consciência de ter suportado, compreendido muita coisa, traz para o ancião alegria e uma ocasião de mostrar sua competência. Sua vida ganha f inal idade se encontrar ouvidos atentos, ressonância (2007, p.82) .

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No início de seu livro, Ecléa Bosi chama nossa atenção para

o fato de que:

A memória não é oprimida apenas porque lhe foram roubados suportes materiais, mas também porque uma outra ação, mais daninha e sinistra, sufoca a lembrança: a história of icial celebrat iva cujo tr iunfal ismo é a vitória do vencedor a pisotear a tradição dos vencidos (2007, p.19).

Para darmos cabo a essa nossa discussão sobre tradição e

modernidade, apresentaremos alguns conceitos chaves, a nosso

ver, imprescindíveis a nossa aná lise.

Para isso, a partir dos estudos sobre tradição e modernidade

(enquanto elementos constituintes e estruturantes do sistema

literário), desenvolvidos por Antonio Candido, Octavio Paz e

Bornheim, demonstraremos o modo como Gracil iano Ramos

participará do processo de (re) constituição da história cultural do

seu país, do ponto de vista da tradição.

Antonio Candido (2009), em Formação da literatura

brasi leira : momentos decisivos , visando fornecer elementos para o

sentido da palavra que dá corpo aos seus estudos, e porque se

qualif icam de decisivos os momentos estudados, busca dist inguir,

inicialmente, manifestações literárias de l i teratura propriamente

dita . Esta, de acordo com o crít ico, convém considerá-la, enquanto

aspecto orgânico da civil ização, constituída a part ir de um sistema

de obras l igadas por denominadores comuns . Aquelas, sem

apresentarem essa organização, dada à imaturidade do meio, que

dif iculta a formação dos grupos, a elaboração de uma l inguagem

própria e o interesse pelas obras, decerto ocorrem por força da

inspiração individual e/ou pela inf luência ou assimilação de outras

literaturas. Isoladas, as manifestações fermentam um sistema

literário, mas ainda não o definem.

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Dentre esses denominadores comuns, que permitem

reconhecer as notas dominantes de uma fase literária, e que são,

além das características internas (l íngua, temas, imagens), certos

elementos de natureza social e psíquica, Candido destaca a

existência de: (1) um conjunto de produtores l iterários , mais ou

menos conscientes do seu papel; (2) um conjunto de receptores,

formando os diferentes t ipos de público, sem os quais a obra não

vive; e (3) um mecanismo transmissor , (de modo geral, uma

linguagem traduzida em estilos), que l iga uns a outros. A literatura,

“um tipo de comunicação inter -humana”, feito sistema simbólico”, e

daí resultante, será o meio pelo qual “as veleidades mais

profundas do indivíduo se transformam em elementos de contato

entre os homens, e de interpretação das diferentes esferas da

realidade” (CANDIDO, 2009, p.25).

O produtor l iterário ao integrar -se a tal sistema (autor →

obras ← leitores), possibil ita a ocorrência de outro elemento

decisivo: a formação da continuidade li terária. Con forme Antonio

Candido (2009), o produtor, tal qual o corredor que passa a tocha

para o outro, assegura no tempo o movimento conjunto, define os

lineamentos de um todo. E somos levados, então, a compreender,

pela simbologia associada à imagem que nos é ofer tada [o fogo],

que à ideia de sistema literário associa -se, indubitavelmente, a

ideia de continuidade, de permanência e de questionamento, logo,

a ideia de tradição.

O que seria, então, a tradição? O f i lósofo Gerd Bornheim

(1987), em O Conceito da tradição , considerando a etimologia da

palavra e suas acepções dicionarizadas, entre outros aspectos do

conceito, nos diz que:

A palavra tradição vem do lat im: tradit io . O verbo é tradire , e s ignif ica precipuamente entregar, designa o ato de passar algo para outra pessoa, ou passar de uma geração a outra geração. Em segundo lugar, os dic ionaristas referem a relação do verbo tradire com o conhecimento oral e escr ito. Isso quer dizer

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que, através da tradição, algo é dito de geração a geração (BORNHEIM, 1987, p. 18).

Este algo que é dito ou escrito, voz e/ou letra, conservada

em memória, ou por escrito, inclui as formas narrativas comumente

conhecidas, como: notícias, lendas, histórias, cre nças, costumes,

formas literárias e artíst icas, ideias, esti los.

Então, esse conjunto de elementos transmit idos de uma

geração a outra, “formando padrões que se impõem ao

pensamento ou ao comportamento, e aos quais somos obrigados a

nos referir, para acei tar ou rejeitar” (CANDIDO, 2009, p. 26),

constitui a tradição. E sem ela, “não há literatura, como fenômeno

de civil ização” (CANDIDO, p. 29).

E, por estarmos o tempo inteiro “como que inseridos nela, a

ponto de revelar-se muito dif ícil desembaraçar -se de suas peias

[valores]”, nos lembra Bornheim (1987, p.18), que a tradição, de

certa maneira, também nos constitui, pois, não se trata apenas das

formas do conhecimento ou das opiniões que temos, mas também

da totalidade do comportamento humano, que só se dei xa elucidar

a partir do conjunto de valores constitutivos de uma determinada

sociedade” (BORHHEIM, p. 20).

Decerto, ““no dif ícil desembaraçar -se de suas peias” residiria a

vontade de “ser permanente” comumente associada à tradição.

Desejo, ainda segundo Bornheim, que persiste emperrado na

vontade.

Por sua vez, o poeta e crít ico mexicano Octavio Paz (1984),

em Os filhos do barro , intentando nos apresentar a linha de

pensamento que direcionou as suas ref lexões por ocasião das

conferências que proferiu na Universidade de Harvard (Charles

Eliot Norton Lectures), no primeiro semestre de 1972, sobre a

tradição moderna da poesia, nos dirá que “a expressão não só nos

signif ica que há uma poesia moderna, como que o moderno é uma

tradição. Uma tradição feita de in terrupções, em que cada ruptura

é um começo” (PAZ, 1984 , p.17).

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Segundo Octavio Paz (1984), a Modernidade nunca é ela

mesma: sempre é outra. Polêmica, em seu princípio ativo, a

Modernidade é uma tradição que desaloja a tradição imperante,

qualquer que seja esta; porém, desaloja-a para, um instante após,

ceder lugar a outra tradição que, por sua vez, é outra manifestação

momentânea da atualidade e assim sucessivamente. Tradição

heterogênea ou do heterogêneo, a Modernidade está condenada à

pluralidade, pois se a antiga tradição era sempre a mesma, a

moderna será sempre dist inta. E se a primeira postulava a unidade

entre o passado e o presente, a segunda, não contente em subtrair

a diferença entre ambos, af irmará que esse passado não é único,

mas plural:

Tradição do moderno: heterogeneidade, plural idade de passados, estranheza radical. Nem o moderno é a continuidade do passado no presente, nem o hoje é f i lho do ontem: são sua ruptura, sua negação. O moderno é autossuf ic iente: cada vez que aparece, funda a sua própr ia t radição (1984, PAZ , p.18).

O moderno não se caracteriza somente por sua novidade,

mas sim por sua heterogeneidade, pois o novo em si não é

garantia do moderno: há novidades que não são modernas, aponta

Octavio Paz usando como referência o crít ico norte -americano

Harold Rosenberg e a obra The Tradit ion of the New :

O título do l ivro de Rosenberg expressa com saudável e lúcida insolência o paradoxo que fundou a arte e a poesia do nosso tempo. Um paradoxo que é, simultaneamente, o princípio intelectual que as just if ica e que as nega, seu al imento e seu veneno. A arte e a poesia de nosso tempo vivem de modernidade e morrem por ela (1984, PAZ , p.18).

Ainda segundo Octavio Paz, a tradição moderna apaga as

oposições entre o antigo e o contemporâneo e entre o distante e o

próximo. O ácido que dissolve todas essas oposições será a

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palavra crít ica . Mas não sozinha, a ela deverá vir acoplada à

paixão a f im de subtrair o caráter paradoxal de nosso culto ao

moderno:

Paixão cr ít ica: amor imoderado, passional, pela cr ít ica e seus precisos mecanismos de desconstrução, mas também crít ica enamorada de seu objeto, cr ít ica apaixonada por aqui lo mesmo que nega. Enamorada de si mesma e sempre em guerra consigo mesma, não af irma nada de permanente nem se baseia em nenhum princípio: a negação de todos os pr incípios, a mudança perpétua é seu princípio (1984, PAZ p.21).

Voltando aos conceitos de Ecléia Bosi como Sendo a velhice

naturalmente um destino do indivíduo e também uma categoria

social, ainda segundo a autora (2007, p. 82): “um mundo social

que possui uma riqueza e uma diversidade que não conhecemos

pode chegar-nos pela memória dos velhos”. Portanto, o seu

aniquilamento seria suficiente para que o elo – já fortemente

fraturado – fosse para sempre quebrado. Justif icamos o uso desse

comentário baseado nas ideias de Ecléa Bosi, Antonio Candido,

Octavio Paz e Bornheim, numa tentativa de enxergar, na obra

Infância, nas passagens em que o menino Gracil iano se interessa

em ouvir as experiências, os “causos” que os mais velhos contam

como crença na verdade expressa por eles, em virtude do tempo

vivido e das experiências de vida acumuladas. Todos a nosso ver,

exemplos de tradição.

I lustraremos, agora, essa valoração pelas experiências dos

velhos, em um trecho de Infância :

Alguns viventes idosos chegavam, sumiam-se, tornavam-se a manifestar-se depois de longas ausências. De um deles, meu avô paterno, f icaram notíc ias vagas e um retrato desbotado no álbum que se guardava no baú. Legou-me talvez a vocação absurda para as coisas inúteis (RAMOS, 2011, p. 22).

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E ainda:

Pela pr imeira vez falaram-me do diabo. É possível que tenham falado antes, mas foi aí que f ixei o nome deste espír ito: sem conhecê-lo direito, soube que ele andava solto nos redemoinhos que varr iam o pátio, misturado a folhas e garranchos (RAMOS, 2011, p. 28).

Vê-se, portanto que a valorização da tradição, que é o

respeito as experiências dos velhos, dá um a r de continuidade e de

conhecimento aos fatos acontecidos, numa determinada época, em

uma determinada sociedade. Sem continuidade, não há memória.

Observemos que esse fato é inerente à sociedade industrial,

capital ista, estruturada como espaço de competição, de lucro, dos

jovens, onde nela todo sentimento de continuidade é destro çado.

Concluímos, então, que para a modernidade, o elo fraco da

corrente – os velhos – causa um mal estar na sociedade moderna.

Ecléa Bosi ainda nos presenteia com uma célebre pergunta:

Como dever ia ser uma sociedade, para que, na velhice, o homem permaneça um homem? A resposta é radical para Simone de Beauvoir: “Seria preciso que ele sempre tivesse sido tratado como homem ” (BOSI, E., 2007, p.81) [grifo nosso].

Esta é, portanto, uma lição a ser apreendida por todos,

desde a infância. Percebe-se, com isso, que ao infante não lhe é

dado o direito de voz e que lhe é tolhido o direito de ser

respeitado, como criança. Então, não resta nenhuma alternativa a

esse ser, que não seja a de retratar com maestria os tempos

sombrios de uma infância. O lir ismo “seco” que se avassala, nas

l inhas de Infância é just if icadamente apresentado, então.

Acreditamos, com isso, que talvez venha dessa falta de re speito ao

infante que não fa la, a relação que a obra infância tem com o que

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a crít ica chama de “pessimismo”. Gracil iano, pelo contrário, da

primeira à últ ima página desse relato de memórias está

exatamente “gritando”, clamando, com otimismo, por uma

sociedade mais justa. Para tanto, uma das soluções que foi dada

ao “velho” Graciliano foi a de relatar, através de suas memórias

fragmentárias, pelas mãos pedintes do garoto Gracil iano, um dos

grandes problemas da modernidade: os “avanços” da sociedade

guiada pelo capital. “Avanços” os qua is têm como consequências

sérias, esse desajuste e essa desigualdade de direitos, inerentes

ao Brasil de 1945.

Com o intuito de escaparmos das propostas de leitura que a

interpretação da obra de Ramos, e do próprio autor, são de tom

pessimistas, devemos levar em consideração os aspectos da

sociedade dessa época. Logo, perceberemos que as “propostas”

de leituras no viés do pessimismo na verdade incorrem em

percursos dignos de olhar diferente.

Então, de onde surgiu essa ideia de pessimismo? Esta

palavra ocorre com muita força no contexto de estudos

gracil iânicos. Candido, em seu ensaio “Ficção e confissão”, usou

essa palavra e daí ela foi deslocada para um uso isolado,

autônomo e certamente falho. Para que não caiamos nos limites da

interpretação, transcrevemos a passagem do ensaio de Candido

para que assim possamos observar o tom articulado “de seu

pessimismo”:

Lendo Infância, concluímos que os l ivros de Gracil iano Ramos se concatenam num sistema literário pessimista. Meninos, rapazes, homens, mulheres; pobres, r icos, miseráveis; intel igentes, cultos, ignorantes – todos obedecem a uma fatalidade cega e má. Vontade obscura de viver, mais forte nuns que noutros, que os leva a caminhos pré-traçados pelo peso do meio social, f ís ico, doméstico. A vida é um mecan ismo de negaças em que procuramos atenuar o peso inevitável dessas fatalidades: e parecemos r idículos, maus, inconsequentes. Às vezes somos fortes e pensamos esmagar a vida; na real idade, esmagamos apenas os

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outros homens e acabamos esmagados por ela. Nada tem sentido, porque no fundo de tudo há uma semente corruptora, que contamina os atos e os desvirtua em meras aparências. Uns se refugiam na ironia e no cept ic ismo, como João Valério, ou na fúria decepcionada da renúncia, como Paulo Honór io. Outros se entregam ao desespero, como Luís da Si lva. Outros, ainda, abrem os olhos sem entender e os baixam de novo, resignados, como Fabiano. Tudo depende do ponto de part ida: da educação, das pancadas, do sexo reprimido ou satisfeito, da falta ou da abundância de dinheiro. O narrador de Infância se encarrega de nos ensinar algumas das razões dessa cadeia necessár ia de sofr imentos. Os castigos imerecidos, as maldades sem motivo, de que são vít imas os f racos, estão na base da organização do mundo. Ele, a priminha, João, o colega, Venta-Romba, a I rmã natural representam a semente da vida característ ica dos romances de Graci l iano Ramos. Ela não é nova nem bri lhante, isso não importa. Um art ista nada mais faz do que tomar os lugares-comuns e renová-los pela criação (1999, p. 53-54).

Constatamos, com essa citação de Candido, em que situação

ocorre o “pessimismo” legado às obras de Ramos. Não podemos

esquecer a audaciosa postura do ensaísta e decorrentemente o

modo como a imperícia das generalizações desvirtua o vocábulo.

São, no mínimo, apressadas avaliações crít icas sobre um “sistema

literário” tão grandioso quanto à complexidade social que

representa. Esta, a representação da sociedade, desvela um

espaço rural árido e dramático da subsistência entre secas, que,

de acordo com a região, intermitentes ou permanentes, mais cruéis

ou mais brandas, situa-se num sistema, produtivo agrário, onde

parte da produção é entregue ao fazendeiro em “gratidão” pela

moradia e cultivo da terra. Assim temos, então, nesta sociedade os

coronelismos com suas at itudes “humilhantes”; famíl ias bastante

numerosas de em média 10 f i lhos, onde, muitas vezes havia vários

f i lhos de outras famíl ias entregues aos donos das fazendas como

afilhados para que a eles fossem garantidas condições mínimas de

sobrevivência, o que de fato pouco adiantava. Essas eram as

circunstâncias ideais para as tão numerosas e conhecidas cenas

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de migrações protagonizadas por décadas pelos nordestinos em

busca do sul-sudeste, Rio, São Paulo, Minas, para o norte do país,

como igualmente f izeram levas e levas de milhares de nordestinos

para Serra Pelada ou para construção da Madeira -Mamoré. Temos

em Vidas secas, por exemplo, um retrato dessas cenas.

É bem verdade que o cenário apresentado por Gracil iano

Ramos não é dos mais ot imistas. Numa perspectiva poética,

Ramos estabelecia registros do cotidiano de um país agrário no

qual cerca 70% de sua população vivia em áreas rurais 1 e suas

cidades, ainda pequenas, não dispunham de grandes sistemas

produtivos e f inanceiros, nas quais a expectativa de vida da

população era em torno de 48 anos, também segundo o IBGE, em

1945, quando do lançamento do conjunto de Memórias, subtítulo

de Infância .

Podemos retomar então a discussão enunciada acima sobre

a elaboração de memórias de infância quando da maturidade do

autor. Retomamos também a questão que outrora pusemos e se

mantém: quando seria o melhor momento para se pensar a infância

senão na maturidade? E ainda devemos levar em conta as

variantes de como a cada época os homens com seus respectivos

meios de vida interagem e interpretam o tempo. Tão certa é essa

observação que ao analisarmos a expectativa de vida da época do

lançamento de Infância , o seu autor, Gracil iano Ramos, já seria um

senhor numa fase da vida que hoje (2012) diríamos que ele estava

“beirando” a terceira idade, que dentro de nossa atual expect ativa

de vida só se atinge aos 60 anos de idade. Ou seja, ao lançar

Infância , Ramos, em 1945, aos 54 anos, já estava com idade

distante de seus sete anos, o que de todo lhe conferiria autoridade

não somente sobre o tema, mas também, sobre a elaboração

dessa memória “inventada”, que recupera o passado, mas também

impede que ele venha in teirinho para dentro de nós.

1 www.ibge.gov.br

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Porém, há de se pensar em como o nosso povo, em como a

nossa sociedade percebe e autoriza o discurso do idoso. Do

mesmo modo, devemos ter em mente qual é a representação social

da f igura do idoso e a valoração, por conseguinte, dos seus

discursos a respeito de quaisquer assuntos. Ora, não precisamos

de muita teoria para que reconheçamos os papéis e espaços dos

idosos, em nossa sociedade. Contudo, vejamos o que nos diz uma

das obras-primas da nossa Academia:

A degradação seni l começa prematuramente com a degradação da pessoa que trabalha. Esta sociedade pragmática não desvalor iza somente o operário, mas todo o trabalhador: o médico, o professor, o esport ista, o ator, o jornal ista. Como reparar a destruição sistemática que os homens sofrem desde o nascimento, na sociedade da competição e do lucro? [. . . ] como deveria ser uma sociedade para que na velhice um homem permaneça um homem? A resposta é radical [ . . . ] : seria preciso que ele sempre t ivesse sido tratado como um homem. A noção que temos da velhice decorre mais da luta de classes do que do conf l ito de gerações. (CHAUI apud BOSI, 2007, p. 20-21).

Posta essa citação ousamos a “enriquecê - la” numa mínima

observação sobre a degradação: se a nossa sociedade desvaloriza

quem trabalha, para usar as palavras citadas, “operário” e

“trabalhador”, avaliemos o quão é degradado, nessa mesma

sociedade, o homem sem ofício pela escassez e f lagelação das

reiteradas secas.

Façamos, novamente, menção explícita de Ecléa Bosi, numas

das passagens que mais se aproxima das experiências

graci l iânicas:

Entre as famíl ias mais pobres, a mobil idade extrema impede a sedimentação do passado, perde-se a crônica da famíl ia e do indivíduo em seu percurso errante. Eis um dos mais cruéis exercícios da opressão econômica sobre o sujeito: a espol iação [da memória] (CHAUI apud BOSI, 2007, p 21).

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Apesar de Graciliano não ter sido pobre , sua famíl ia sempre

apresentou grande mobilidade e essas experiências de mobilidade

possivelmente acabaram favorecendo suas observações quanto

aos f luxos migratórios de outras famílias e suas motivações, em

detrimento de suas próprias experiências que nunca foram

motivadas pela privação de recursos. Portanto, Infância , “romance”

de memórias, refaz o passo a passo, de uma experiência de

criança, nos f ins do século XIX e início do século XX, vivida

praticamente no interior de Alagoas. O romance não é a refeitura

de uma infância em sua expectativa lúdica, com a representa ção

de generosa demonstração de carinho e afeto, peripécias e

aventuras infantis. Infância fala do primogênito de um casal

sertanejo com boas condições de vida, não ricos, mas em condição

razoavelmente confortável para uma vida familiar digna apesar da

numerosa prole. Nosso protagonista é apresentado, em todo

momento, a um novo desafio, at ividades corriqueiras, violentas,

que desenvolveram uma espécie de trauma na vida do garoto:

Meu pai não t inha vocação para o ensino, mas quis meter-me o alfabeto na cabeça. Resist i, ele teimou — e o resultado foi um desastre. Cedo revelou impaciência e assustou-me. Atirava rápido meia dúzia de letras, ia jogar solo. [ . . . ] Mas ia -me pouco a pouco entorpecendo, a cabeça inclinava -se, os braços esmoreciam — e, entre bocejos e cochi los, gemia a cant iga fast idiosa que Mocinha sussurrava junto a mim. Queria agitar -me e despertar. O sono era forte, enjôo enorme tapava-me os ouvidos, prendia-me a fala. E as coisas em redor mergulhavam na escur idão, as idéias se imobil izavam. De fato eu compreendia, ronceiro, as histór ias de Trancoso. Eram fáceis. O que me obrigavam a decorar parecia-me insensato (RAMOS, 2011, p. 111-112).

Essas pequenas experiências do dia -a-dia tornavam-se

traumas devido às formas de apresentações e cobranças. D iante

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de vários trechos traumáticos expostos na obra, elegemos um, do

capítulo “Leitura”, o qual reforça esse nosso entendimento da

vivência do trauma, por exemplo, na alfabetização, dentre muitos

outros:

Enf im consegui familiar izar -me com as letras quase todas. Aí me exibiram outras vinte e cinco, diferentes das pr imeiras e com os mesmos nomes delas. Atordoamento, preguiça, desespero, vontade de acabar-me. Veio terceiro alfabeto, veio quarto, e a confusão se estabeleceu, um horror de qüiproquós. Quatro sinais com uma só denominação. Se me habituassem às maiúsculas, deixando as minúsculas para mais tarde, talvez não me embrutecesse. Jogaram-me simultaneamente maldades grandes e pequenas, impressas e manuscr itas. Um inferno. Resignei-me — e venci as malvadas. Duas, porém, se defenderam: as miseráveis dentais que ainda hoje me causam dissabores quando escrevo (RAMOS, 2011, p.112).

Temos também, como exemplo, no mesmo capítulo, o uso de

um instrumento acessório durante muito tempo em nosso sistema

de ensino, a palmatória:

(. . .) as pobres mãos inchavam, as palmas vermelhas, arroxeadas, os dedos grossos mal se movendo. Latejavam, como se funcionassem relógios dentro delas. Era preciso erguê-las. Finda a tortura, sentava-me num banco da sala de jantar, est irava o s braços em cima da mesa, procurando esquecer as palpitações dolorosas. Os sapos cantavam no açude da Penha; o descaroçador rangia no Cavalo -Morto (RAMOS, 2011, p. 113).

Eliane Zagury, em A escrita do eu , elenca-nos obras e escritores “definidores” da literatura a qual ela encaixou no gênero: “memórias de infância”, no que diz respeito a sua nova forma e tradição do exercício, como representação deste “ser em crise” (p. 15), que é esse escritor de memórias:

(. . .) Meus verdes anos , de José Lins do Rego, Explorações no tempo , de Ciro dos Anjos, O mundo

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da minha infância , de Eugênio Gomes, O meu pequeno mundo , de Luís Jardim ou A casa do meu avô , de Car los Lacerda. Um acervo de tal qualidade, produzido em apenas vinte e poucos anos, demonstra a sol idez com que se estabeleceu o subgênero (1982, p. 16 ) .

Entre os expoentes estudados pela autora, Gracil iano

Ramos, com Infância , é investigado no ensaio “A infância revivida”,

o qual será abordado no decorrer de nosso trabalho.

Infância é uma compilação das “mais antigas recordações” de

um homem maduro que retrata fatos de seu tempo de infante.

Surge, então, em 1945 (curiosamente coincidindo com o início das

publicações da chamada “geração de 45”, que combatia o

primit ivismo modernista):

(. . .) as minhas mais ant igas recordações onde me desenvolvi como um pequeno animal. Até então algumas pessoas, ou f ragmentos de pessoas, t inham-se manifestado, mas para bem dizer viviam fora do espaço. Começaram pouco a pouco a local izar-se, o que me transformou. Apareceram lugares imprecisos, e entre eles não havia continuidade, i lhas esboçando-se no universo vazio (RAMOS, 2011, p. 12 )

Aquilo, que parecia uma autobiograf ia, propositalmente

focada nas pretensas “recordações” de experiências de Gracil ian o

Ramos desdobra-se em uma crônica do “país” chamado Nordeste.

Esta grande crônica compõe-se de tantas outras pequenas (seus

capítulos) que se agrupam como objetos comuns (como uma pilha

de livros) e sobrepõem-se sem perder suas singularidades próprias

e sem desvencilhar-se de um f io condutor. Essas pequenas

crônicas são tão autônomas que um leitor mais crít ico pode

percebê-las independentes uma das outras. Hipótese que

elaboramos a priori e que se confirmou, mais além, com o estudo

da fortuna crít ica.

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Assim, Zagury cita:

Mais importante, porém, que essa intenção cr ít ica vem a ser o próprio processo de composição do l ivro. Segundo Helmut Feldmann, de 1938 a 1944, os capítulos foram escritos como contos e publ icados isoladamente em periódicos. A cronologia de publicação periódica 2 que o professor alemão nos apresenta não corresponde à sequência de capítulos do l ivro pronto (1982, p. 121).

Como se observa, pela forma aleatória de publicação das

crônicas, posteriormente capítulos do livro Infância , Gracil iano

reafirma a independência dos textos e essas características,

aleatoriedade e independência, são comuns às lembranças, ou

seja, à memória. Essa independência entre os capítulos representa

o esfacelamento da memória, característica ilustrada, sabia e

repetidamente, ao longo do l ivro de memórias Infância, l ivrando-se

da rotulação de autobiograf ismo. Há, portanto, uma mobil ização e

predominância pelo gênero memorial, nesse romance de 1945.

Sobre esse perf i l, Eliane Zagury af irma:

Em Infância , o relacionamento mais ou menos l ivre entre os capítulos representa a descont inuidade da memória, em franca oposição às técnicas narrat ivas da autobiograf ia e sua prisão factual e cronológica. (. . .) o estabelecimento do novo gênero brasi leiro de prosa l ír ica: assume-se a descontinuidade da memória e não se tenta complementar o vazio com técnicas historiográf icas ou esforços de lógicas discursivas (1982, p. 122-123).

Ainda sobre a organização e publicação dos capítulos do

livro, Salla diz:

2 Índ ice: Nuvens , Manhã, Verão, Um c in turão, Uma bebedei ra , Chegada à v i la , A v i la ,

V ida nova, Padre João Inác io , O f im do mundo, O in ferno, O moleque José, Um incêndio , José da Luz,p i tu l os Le i tura , Esco la , D. Mar ia , O Barão de Macaúbas , Meu avô, Ceguei ra , Ch ico Brabo, José Leonardo, Minha i rmã natu ra l , Anton io Va le , Mudança, Ade la ide, Um ente r ro , Um novo pro fesso r , Um in te rva lo , Os as t rônomos , Samuel Sm i les , O menino da mata e seu c ão p i lo t o , Fe rnando, Jerôn imo Bar re to , Venta -Romba, Már io Venânc io , Seu Rami ro , A c r iança i n fe l i z , Laura. (Zagury, 1982, p 121 -122) .

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Já para Diretr izes, no intervalo de março de 1923 e dezembro de 1941, o art ista destinou capítulos de Infância (1945), que vieram a públ ico, pr imeiramente em tal per iódico. Tais textos, editados parcialmente como contos isolados, eram quase sempre acompanhados por i lust rações de art istas famosos (. . .) o que indicia a importância conferida aos mesmos. (SALLA, 2010, p.115).

Ressaltamos a subjacência do autobiográf ico, ou seja, vêm

em segundo plano os componentes factuais e cronológicos, apesar

de esses caracteres comporem as tramas de primeiro plano que

uniformizam o enredo, porém essas composições factuais e

cronológicas em Ramos só se apresentam revestidas por uma

estética f iccional narrat iva. O que se faz deveras ressaltar no

romance é o perf i l memorialista que intenta uma elaboração, uma

representação mais próxima da realidade e verossímil possível, ao

que de fato ocorreu/existiu. Nessa linha de raciocínio dos

romances autobiográf icos af irma-nos Bakhtin:

Personagens secundárias, países, c idades, objetos, etc. integram o romance biográf ico por vias substanciais e ganham uma relação igualmente substancial com o todo vital da personagem central. Desse modo, na representação do mundo supera -se tanto a dispersividade natural ista do romance (. . .) Graças ao vínculo t raçado com o vínculo histór ico, com a época, viabi l iza-se uma representação real ista mais profunda da real idade (2010, p. 215 ) .

Apesar de um “romance” biográf ico, nas palavras de Bakhtin,

ao viabil izar “uma representação realista mais profunda da

realidade” – expressão que não nos deixa sem pensar em

redundância – elaboramos outra questão que mais se ajusta ao

nosso percurso discursivo: seria possível se enveredar pelo mundo

da memória senão se apoderando das “nuvens de lembranças”? É,

portanto, através da criação do f iccionista que a memória ordinária

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do memorial ista se enaltece, cria vida, relata, denuncia, sendo os

fatos concretamente experimentados pela existência, expressados

e representados, de maneira inquiridora, sem ser óbvia. É

imprescindível o processo de criação f iccional, af inal.

Af im desse intento de elaboração do verossímil, podemos

agregar outras observações de Gagnebin, a respeito novamente de

Proust, quando da famosa passagem da Madeleine sobre a qual

af irma que não se trata da sensação em si, mas s im, (...) a

elaboração dessa sensação:

(“quando de repente, as paredes trêmulas da minha memória cederam, e foram os verões”) , era rápida demais – poderíamos arr iscar essa hipótese para satisfazer a exigência de Proust. Para ele não se trata de escrever um romance de impressões seletas e felizes, mas sim de enfrentar, por meio da at ividade intelectual e espir itual que o exercício da escrita conf igura a ameaça do esquecimento, do si lêncio e da morte. Em outras palavras: não é a sensação em si (o gosto da “madeleine” e a alegria por ele provocada) que determina o processo da escrita verdadeira, mas sim a elaboração dessa sensação, a busca espir itual do seu nome or iginár io, portanto, a transformação, pelo trabalho da criação art íst ica, da sensação em l inguagem, da sensação em sentido. Não se trata s implesmente de reencontrar uma sensação de outrora, mas de empreender um duplo trabalho: contra o esquecimento e a morte, um, o lado “objet ivo” do tempo aniquilador; contra a preguiça e a resistência, outro, o lado “subjet ivo” do escr itor que se opõe à obra (GAGNEBIN, 2009, p. 154-155).

É, enfim, a confissão, a constatação de que escrever

memórias é também esquecer. Sendo assim o escritor é capaz de

tecer os retalhos da memória e dar cara nova ao seu eu

denunciativo. Observemos, pois, a citação de Bueno, quanto ao

“estudo mil imétrico do eu”, onde se percebe que Ramos acaba por

criar o que Candido nos brindou, ao publicar “Ficção e confissão”:

Não é exagero dizer que a visão geral de Antonio Candido sobre Graci l iano Ramos nasce mais ou

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menos da mesma fonte – e é mesmo o lançamento de Infância que o leva a escrever sobre o escritor alagoano. Mas, ao invés de se ocupar da infância sem amor que expl icasse um autor tão duro com os homens – ou seja, ao invés de especular sobre o movimento psicológico que levou um autor a escrever determinada obra – voltou-se para a obra em si e procurou nela um desenvolvimento. Assim, a alta elaboração l iterária a que Gracil iano Ramos chega num gênero naquele tempo considerado “menor”, como é o caso das memórias, leva o cr ít ico a buscar as conexões internas da obra entre o que fora conseguido nos romances e o que se leva a cabo nas memórias. É daí que nasce a ideia – quase um conceito independente – de que a obra de Gracil iano Ramos elabora um arco que, part indo de uma observação do mundo, chega ao escrínio mil imétr ico do eu. Em duas palavras: f icção e conf issão. (BUENO, 2008, p.75-76)

Indiscutivelmente, Infância transcende o aspecto relato-

documento. Trata-se, na verdade, de uma mistura de l iteratura de

memória com autobiograf ia . Pensar dessa forma a autobiograf ia

coloca em evidência os problemas narrados, pois o autor, nesse

caso estaria traçando um autorretrato de si próprio, sem se dar

nome. Tomando então como referência os conceitos de um dos

grandes nomes na pesquisa autobiográf ica na contemporaneidade,

Phil ippe Lejune (2008, p.30), ele considera como obras

autobiográf icas, aquelas em que: “o personagem não tem nome na

narrat iva, mas o autor declarou-se explicitamente idêntico ao

narrador (...) em um pacto inicial (. ..). Ao longo da narrat iva, o

nome do autor não aparecerá nem uma só vez (...)”. Vemos, logo

que Lejune acredita que deverá ser estabelecido um “pacto” de

leitura entre o leitor e o autor, ao qual ele chama de “pacto

autobiográf ico”. Nesse pacto, ele define que o leitor deverá ler a

obra autobiográf ica, de acordo com a intenção que o autor quer

passar ao leitor. Cabe ao leitor, portanto, identif icar as “pistas”

dadas pelo autor, logo no início da narrativa. No caso das

memórias de Infância, escrita do eu, do menino Graciliano , essas

“pistas” devem se resumir na identidade entre o autor, o narrador e

o personagem.

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Contrário a esse conceito autobiográf ico de Lejeune, ao

nosso olhar, Gracil iano em nenhum momento deixa que esse

“pacto” ocorra, visto que a ideia de não fa lar, de não ter voz, de

ser um ser diminuído em todas as suas possibi l idades de infante,

levado à condição do nada, de bicho, o autoriza a se assumir num

estado permanente de personagem (s) sem identidade, ao longo da

narrat iva: “bezerro encourado”, “cabra -cega”. Percebe-se, então,

que o discurso autobiográf ico em Infância não se sustenta, pois

não pode ser l ido como tal, sem o auxílio da f icção.

Nas leituras da obra, é possível ver e ouvir sons, imagens,

memórias de uma vida marcada pela presença da ausênc ia da

própria vida. O narrador faz o leitor sentir as “lapadas” que o

adulto escritor rememora com tanto realismo. Faz, também, do seu

leitor, um cúmplice do seu si lêncio, entendedor do isolamento e

até compreende Luiz da Silva, em Angústia (2008a).

Voltando à “desobediência” de Ramos com relação a

descrição lógica e factual na narrat iva, ao longo dos capítulos de

Infância, vemos, então, que Gracil iano antecipou-se, em relação

aos vários escritores de sua época, no que se refere a esse

abandono das construções lógicas. Ramos reagiu a esse

“primit ivismo” modernista, com a publicação de Infância, em 1945.

Podemos ver, nas palavras de Gracil iano, a opinião dele

quanto ao movimento Modernista, em entrevista dada a Homero

Senna (1977, p. 50-51):

_ E que impressão lhe f icou do Modernismo?

Muito ruim. Sempre achei aqui lo uma tapeação desonesta. Salvo raríssimas exceções, os modernistas brasi leiros eram uns cabotinos. Enquanto outros procuravam estudar alguma coisa, ver, sentir , eles importavam Marinett i ( . . .) _ Os modernistas brasileiros, confundindo o ambiente l i terário do país com a Academia, traçaram linhas divisór ias, r ígidas (mas arbitrár ias) entre o bom e o mau. E, querendo destruir tudo que f icara para trás, condenaram, por ignorância ou safadeza, muita coisa que deveria ser salva.

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Sendo, portanto, o mundo de Ramos antimodernista,

consequentemente, pré-capital ista, onde a modernidade guiada

pelo capital é recusada, Graciliano não tinha em sua obra traço

algum de característica do Modernismo.

Definimos, portanto, o l ivro Infância, diante de todos os

conceitos que já vimos até agora, em nosso estudo, como sendo:

um livro de memórias, relatadas com “requintes” de f icção, como

expressão do eu testemunhal a serviço de uma coletividade. Para

iluminarmos, ainda mais, nossa análise, transcreveremos um

conceito de Le Goff sobre memória coletiva:

A memória, na qual cresce a histór ia, que por sua vez a al imenta, procura salvar o passado, para servir ao presente e ao futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória sirva para a l ibertação e não para a servidão do homem (2003, p. 457).

Le Goff direciona também nossa atenção para a importância

da memória social coletiva (escrita e especialmente a oral) para a

sociedade, como um instrumento de poder:

Mas a memória colet iva é não somente uma conquista é também um instrumento de poder. São as sociedades cuja memória social é, sobretudo oral, ou que estão em vias de constituir uma memória colet iva escrita, aquelas que melhor permitem compreender esta luta pela dominação da recordação e da tradição, esta manifestação da memória (2003, p. 456 ) .

Esse conceito de Le Goff sobre memória coletiva, acrescido

ao de Ecléa Bosi, em Lembrança de Velhos , comentado em

páginas anteriores, ambos apontam para a importância da

conservação da memória como tradição de uma sociedade, pois o

“veio épico da narração é oral”. A experiência de vida do narrador

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é exposta ao público, se transformando, logo, em “memória dos

que a escutam”.

Há, portanto, uma forte inclinação em definir a obra Infância

como um extraordinário trabalho do senhor Graciliano Ramos para

nossa memória coletiva social. Foi, através das mãos do garoto

Gracil iano, que Ramos rememorou suas experiências “retalhadas”

de vida, em prol de uma sociedade justa e ciente de seus

problemas, longe da ideologia impregnada em nossa sociedade, à

época de sua publicação, em 1945, se fazendo ver a importância

da oral idade e do testemunho na evolução de toda e qualquer

sociedade.

Se valendo desses conceitos de testemunho como forma de

confissão dos problemas da sociedade, transcreveremos um trecho

de Edlena Pinheiro, no qual, essa valorização dos problemas

sócias é evidenciado:

É bastante conhecido que Gracil iano sempre valorizou em sua obra a problemática social, denunciando a dominação dos grandes sobre os pequenos, além de outras formas de injust iças. No entanto, em Infãncia , sua l inguagem toma como ponto de part ida a perspect iva da cr iança e o olhar do homem maduro, cujos sofr imentos passados já não eram apenas os dos primeiros anos, mas também os da sociedade excludente, do governo ditador, da pr isão. Com isso, ao mesmo tempo em que revela experiências individuais, também da vazão à voz da minoria e do humilhado, reforçando assim seu interesse pela colet ividade. Dessa forma, o texto deixa de ser apenas relato individual, centrado apenas na narração de si mesmo, mas denuncia o abuso de poder nas mais diferentes instâncias da sociedade, como a famíl ia e a escola. Assim como a criança não repete o mundo adulto, entretanto o reproduz à sua maneira através da imaginação, suas memórias da infância tornam nova a realidade por meio do imaginário. (PINHEIRO, 2005, p. 27).

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Embora não tenha o autor escolhido o lir ismo como leitmotiv

de sua obra inicial, subjaz em sua escrita poética – matriz de sua

trajetória l iterária – , velada crít ica à sociedade em que se insere.

Tal fato – a velada crít ica social – , de certo modo, nos

remete aos escritos adornianos quando, notadamente em seu

Discurso sobre lírica e sociedade (ADORNO, 2008, p. 66), nos fará

crer que: “só entende aquilo que o poema diz quem escuta, em sua

solidão, a voz da humanidade”.

A referência ao social, segundo Adorno, deve ser encontrada

na própria composição lírica ou obra de arte. No entanto, não deve

ser forçada, trazida de fora dela. O teor [Gehalt ] de um poema não

é a mera expressão de emoções e experiências individuais. Pelo

contrário, estas só se tornam artíst icas quando, justamente em

virtude da especif icação que adquirem ao ganhar forma estética,

conquistam sua participação no universal.

A l írica, sintet izando o discurso adorniano, obtém êxito não

por dizer aquilo que na superfície ideologizada todos querem ouvir

[volonté de tous ], mas por trazer à tona, sob a mediação da

linguagem, o humanismo solapado que se encontra na corrente

subterrânea.

Foi, exatamente, esse tom humanizador, um dos pontos de

maior foco da obra de Gracil iano. Em Infância, especialmente, há,

várias passagens, nas quais se percebe essa conquista do

universal pelo nosso autor:

Espanto, e enorme, senti ao enxergar me pai abat ido na sala, o gesto lento. Habituara -me a vê- lo grave, si lencioso, acumulando energia para gritos medonhos, os gritos vulgares perdiam-se; os dele ocasionavam movimentos singulares: as pessoas at ingidas baixavam a cabeça, humildes, ou corr iam a executar ordens. Eu era ainda muito novo para compreender que a fazenda lhe pertencia. Notava diferenças entre os indivíduos que se sentavam nas redes e os que se acocoravam no alpendre . [gr ifo nosso] O gibão de meu pai t inha diversos enfeites: no de Amaro havia diversos buracos e remendos. A nossas roupas grosseiras, pareciam -me

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luxuosas comparadas à chita de sinhá Leopoldina, à camisa de Jose Baía, sura, de algodão cru. Os caboclos se estazavam, suavam, prendiam arame farpado nas estacas. Meu pai vigiava -os, exigia que se mexessem desta ou daquela forma, e nunca estava sat isfeito, reprovava tudo, com insultos e desconchavos. (. . .) meu pai era terr ivelmente poderoso e, essencialmente poderoso. Não me corr ia que o poder est ivesse fora dele, de repente o abandonasse, deixando-o f raco e normal, um gibão roto sobre a camisa curta.

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1.3 LEMBRANÇA – ESQUECIMENTO – FICÇÃO

Falar de Infância e de Gracil iano é conhecer, através dele, a

vida “do homem da seca”, marcado pe lo abandono e pela

crueldade de um tempo em que viver, por si só, já era uma tarefa

árdua. Sem direitos, órfão da sorte e de destino, esse homem não

fazia planos, não expunha suas vontades, não conhecia just iça.

Vivia, apenas vivia, como podia.

Do campo para a vida, o menino Gracil iano experimenta a

humilhação, a injustiça, e, dessa forma, exposto a esses impasses

da vida, forma a sua personalidade.

De personagem a autor, Gracil iano relata, rememora,

denuncia, remexe nas gavetas do tempo, discute regras e , mais

precisamente, remonta à época, o espaço e ressuscita pessoas:

seus pais, avós, agregados, enfim, o autor personagem traça um

painel social, fruto das experiências pessoais, tão fortes na

lembrança, que somente cabe à descoberta da literatura tão

grande feito.

Para Graciliano, a experiência é condição da escrita.

Candido revela já no início do ensaio “Ficção e confissão” que:

Para ler Graci l iano Ramos, talvez convenha ao leitor aparelhar-se do espír ito de jornada, dispondo-se a uma exper iência que se desdobra em etapas e, principiada na narração de costumes, termina pela conf issão das mais vívidas emoções pessoais (1992, p.13) .

Experimentamos, vemos e sentimos em cada página escrita

de Infância, passagens do sertão, da vi la, da mata, das pessoas,

dos bichos, em seu mais íntimo, como forma de reintegrar,

reconstruir e perfazer o ciclo de sua infância.

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Diríamos, com isso, que, a mímese seria a grande

responsável pelo intercâmbio imagético colhido n o universo

pessoal e l iterário de Gracil iano. Contudo, a palavra traz esse

elemento chamado realidade que presenteia o leitor com os

recursos da l iteratura necessários para se chegar às imagens de

um passado recente recobrado pelo autor narrador de suas

próprias imagens.

Em Lembrar escrever esquecer , de Jeanne Marie Gagnebin

(2009), encontramos densa discussão sobre conceitos importantes

e cruciais para nossa pesquisa como: memória, rastros, verdade,

passado, história, esquecimento, testemunho, oral idade. É ,

também, através desta autora, que “podemos tentar entender”

Infância, não só como um exemplo esteticamente inovador dentro

da tradição l iterária brasi leira, mas também como um

representante do gênero “memórias de infância”, digno de f igurar

na tradição l i terária universal. Citamos, abaixo, uma descrição

referente a Proust, todavia bem aplicada a Gracil iano Ramos:

(. . .) podemos tentar entender Em busca do tempo perdido (. . .) misturando em sua composição os gêneros l iterár ios do ensaio e do romance, da autobiograf ia e da f icção, cr iando uma unidade nova e essencial para a l i teratura contemporânea, na qual ref lexão estét ica, invenção romanesca e trabalho de lembranças conf luem e se apoiam mutuamente (GAGNEBIN, 2009, p . 148) .

Também Walter Benjamin, em seu ensaio, “A imagem de

Proust”, nos confirma que rememorar também é esquecer, é salvar

o passado:

Sabemos que Proust não descreveu em sua obra uma vida como ela de fato foi, e sim uma vida lembrada por quem a viveu. Porém esse comentário ainda é difuso, e demasiadamente grosseiro. Pois o importante, para o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência. Ou ser ia

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preferível falar o trabalho de Penélope do esquecimento? A memória involuntár ia, de Proust, não está mais próxima do esquecimento do que daqui lo que em geral chamamos de reminiscência? Não seria esse trabalho de rememoração espontânea, em que a recordação é a trama e o esquecimento a urdidura, o oposto de trabalho de Penélope, mais que sua cópia? Pois aqui é o dia que desfaz o trabalho da noite. Cada manhã, ao acordarmos, em geral fracos e apenas semiconscientes, seguramos em nossas mãos apenas algumas franjas da tapeçar ia da existência da vida, tal como o esquecimento a teceu para n ós (BENJAMIN, 2010, p. 37).

Gracil iano, também, buscou testemunhar a verdade humana,

impregnada nele, desde menino, confessando essa arte do

testemunho em sua obra Infância , através do trabalho de memória

o qual está bem próximo desta descrição elaborada em atenção à

memória de Proust: todos esses gêneros se aplicam e se somam

na tessitura de Infância , além de contar, também, com a

composição independente dos capítulos, característica tratada

mais a frente amiúde.

Ao retomarmos a citação direta de Proust , tomemos os

tópicos “ref lexão estética, invenção romanesca e trabalho de

lembranças, que se confluem e se apoiam mutuamente”.

Analisando o tema, “trabalho de lembranças” vemos que o mesmo

não é elaborado simplesmente pelo e para o trabalho de memórias,

de registros, mas também para compor cenários e tramas de

“invenção romanesca e ref lexão estét ica” dos casos, como temos,

por exemplo, no trecho abaixo:

Se aparecia not íc ia deles, as portas se fechavam, o comércio enfraquecia, nas pontas das ruas queimavam excremento de boi e creolina em cacos de telha. Uma noite levavam os infelizes, enrolados, paia os barracões de palha feitos nas brenhas, onde a carne doente apodrecia quase ao abandono, sobre folhas de bananeiras. Alguns enfermeiros imunizados furavam-lhes as pústulas com espinhos de mandacaru, lavavam-nas com aguardente e cânfora. Havia grande mortandade, e as marcas dos

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sobreviventes eram horrorosas. Os curandeiros dessa praga inspiravam tanto receio como as vít imas dela. Cercava-os uma faixa de isolamento. Admiração e repugnância (RAMOS, 2011, p.67).

Na composição de Infância , o caráter de crônica atribui o

sabor caseiro do cotidiano, da informalidade, ao retratar tão

simplesmente os costumes e os modos de organização específ icos

de um povo em determinado tempo-espaço histórico: “os barracões

de palha feitos nas brenhas, onde a carne doente apodrecia quase

ao abandono, sobre folhas de bananeiras” (RAMOS, 2011, p.67).

A oral idade vai costurando um texto tão peculiar quanto o seu

vocabulário: “Uma noite levavam os infelizes” (RAMOS, 2011,

p.67).

Esta característica, a oral idade, é reafirmada explicitamente

não só pelas marcas textuais t ípicas da fala oral; ela é ratif icada

pela descrição de oit ivas de causos ou diálogos rememorados: em

diversas passagens a personagem central registra seu hábito de

ouvir narrativas: “Desconfiava da coisa próxima, vista, ouvida,

pegada, mas em geral admitia sem esforço o que me contavam”

(RAMOS, 2011, p. 29). E ainda: “Ora, sucedia que minha mãe

abrandava de repente e meu pa i, silencioso, explosivo, resolvia

contar-me histórias” (RAMOS, 2011, p.22).

Em Infância as cantigas de roda surgem nos momentos em

que a solidão mais assola de tédio a vida do infante Gracil iano,

como a cantiga do “sapo cururu que tem frio”. Ao chegar em

Buíque, sua famíl ia aloja -se numa casa simples.

Não se dist inguia nenhum ruído fora a cant iga dos sapos do açude da Penha, vozes agudas, graves, lentas, apressadas, e no meio delas o berro do sapo-boi, bicho terr ível que morde como cachorro e, se pega um cristão, só o larga quando o sino toca. Foi Rosenda lavadeira quem me expl icou isto. Admirável o sino. Como ser ia o sapo -boi? Pelas informações, possuía natureza igual à natureza humana. Esquisito. Se eu pudesse correr, sair de casa, molhar-me, enlamear-me, deitar barquinhos no

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enxurro e fabricar edif íc ios de areia, com o Sabiá novo, certamente não pensar ia nessas coisas. Seria uma criatura viva, alegre. Só, encolhido, o jeito que t inha era ocupar-me com o sapo-boi, quase gente, sensível aos sinos. Nunca os sinos me haviam impressionado.

Sapo cururu Da beira do r io. Não me bote na água, Maninha: Cururu tem fr io.

Cant iga para embalar cr ianças. Os cururus do açude choravam com fr io, de muitos modos, gritando, soluçando, exigentes ou resignados. Eu também tinha f r io e gostava de ouvir os sapos. (Ramos, 2011, p. 63)

Podemos bem observar nessa citação, essa marca da

oral idade, mais pontualmente nos trechos que ora destacamos Foi

Rosenda lavadeira quem me explicou isto (RAMOS, 2011, p. 63) e

em Admirável sino (p.63). Uma das mais recorrentes competências

de nosso protagonista é o gosto pela audição seja de causos, de

conversas de transeuntes pelas ruas, ou as conversas repetida s de

todo dia nos mesmos estabelecimentos com e sobre os mesmos

motivos e personagens, que é uma forma de se perceber natureza:

Eu também tinha fr io e gostava de ouvir os sapos (RAMOS, 2011,

p. 63) e assim possuir pares, semelhantes, companhias. Como

mesmo chega a af irma na citação acima Como seria o sapo-boi?

Pelas informações, possuía natureza igual à natureza humana.

Esquisito. Vale ressaltar natureza igual à humana. Esquisito

(RAMOS, 2011, p.63) Vejamos nosso narrador não se faz sapo,

mas eleva este à condição humana, é como que assim pudesse se

ver l ivre, mesmo como um sapo, como um bicho, mas assim

poderia se sentir vivo:

Se eu pudesse correr, sair de casa, molhar -me, enlamear-me, deitar barquinhos no enxurro e fabricar edif ícios de areia, com o Sabiá novo,

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certamente não pensaria nessas coisas. Seria uma criatura viva, alegre. (RAMOS, 2011, p. 63).

Tendo em mente essas considerações que vão se espalhando

em Infância e que lhes servem de substâncias, acabamos por

compreender um procedimento indispensável, o de conhecer a si,

através do conhecimento que tenha de seu entorno habitual. Ou

seja, reconhecendo-se como produto de um sistema social. Vemos,

então, que na narração, a relação entre ouvinte e narrador é uma

relação de eternidade da matéria narrada . A valorização da

oralidade, despertada pelo menino Graciliano, mostra que “a

história deve reproduzir -se de geração a geração, gerar muitas

outras, cujos f ios se cruzem, prolongando o original, puxados por

outros dedos” (Bosi, E., 2007, p. 90).

Vejamos, ainda, o que nos fala Mikhail Bakhtin sobre esse

conceito de memória:

Tomo conhecimento de uma parte considerável da minha biograf ia através das palavras alheias das pessoas ínt imas e em sua tonal idade emocional: meu nascimento, minha origem, os acontec imentos da vida familiar e nacional na minha terna infância (tudo o que podia ser compreendido ou simplesmente percebido por uma criança). Todos esses momentos me são necessários para a reconst ituição de um quadro minimamente intelig ível e coerente da minha vida e de meu mundo, e eu, narrador de minha vida pela boca das suas outras personagens, tomo conhecimento de todos aqueles momentos (2010, p. 142).

Considerando os lapsos da memória, instantes do silêncio e

sendo silêncio um grito abafado, uma querência de mudar,

rememorar é também esquecer. Essa memória coletiva é instituída

não pelo agenciamento do sujeito, mas por outros. “Memória

também é conservação” (Bergson). A metáfora da memória é do

passado, do presente e também do futuro. É a própri a

desconstrução do tempo linear. É pela memória que o passado se

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torna dinâmico, no presente. No tempo da memória, há uma

diluição do tempo.

Vejamos o comentário de Ganegbin, o qual dá suporte ao

que, aqui, ora af irmamos:

Tal rememoração implica uma certa ascese da at ividade histór ica que, em vez de repet ir aqui lo que se lembra, abre-se aos brancos, aos buracos, ao esquecido e ao recalcado, para dizer com hesitações, solavancos, incompletude, aquilo que ainda não teve direito nem à lembrança nem às palavras. A rememoração também signif ica uma atenção preciosa ao presente, pois não se trata somente de não se esquecer do passado, não sendo um f im em si, visa à transformação do presente (2009, p. 55 ) .

Memória, também pode ser vista como crít ica, pois sendo

como é um recorte, é, portanto, uma evocação ao passado,

considerada por nós como um momento de vert igem, com pontos

nebulosos e estremecimentos da memória. Esse passado pode ser

uma crít ica à ordem da civi l ização moderna (resistência). As

contradições se extinguem, pois a dialética se esvai. Observemos,

para tanto, o início de Infância , mais precisamente, o capítulo

“Nuvens”, no qual podemos ver claramente a ideia de criação de

“coisas”, as quais ultrapassam o momento da suposta veracidade:

A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de louça vidrada, cheio de pitombas, escondido atrás de uma porta. Ignoro onde o vi, quando o vi e se uma parte do caso remoto não desaguasse noutro posterior, julgá-lo-ia sonho. Talvez nem me recorde bem do vaso: é possível que a imagem, bri lhante e esguia, permaneça por eu a ter comunicado a pessoas que a conf irmaram. (RAMOS, 2011, p. 9).

O cenário de Infância é uma realidade marcada pela seca

num território onde a produção econômica deveria ser

eminentemente agrária: mas como produzir num torrão, em que a

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sociedade que se faz rica é dominada pelo poderio de alguns

poucos coronéis, absolutamente incompetentes?

Os maiorais do município, governo e oposição, vinham de um grupo de famíl ias mais ou menos entrelaçadas, poderosas no Nordeste: Cavalcantis, Albuquerques, Siqueiras, Tenórios, Aquinos. Padre João Inácio era Albuquerque. O Comendador Badega, parente de todos os graúdos, autor de vár ios f i lhos naturais, esfarinhado em César Cantu, vestia cassineta esf iapada e ruça, usava chapéu de abas roídas e botas pretas com remendos amarelos. Assim, de rebenque e esporas, entrou uma noite no paço municipal com um lote de caboclas novas e, ao som da harmônica, dançou valsas e quadri lhas até o nascer do sol. Apesar da comenda, os roceiros davam-lhe o t ítulo de capitão. (RAMOS, 2011, p.53 ) .

Cenário esse que o próprio narrador se faz personagem. É no

processo de refeitura das narrativas para si, refeitura no ato de

escrever e tão quanto de rememorá-las, remontá-las e buri lá-las

que a representação se torna digna de apresentação, inclusive

para si mesmo. É isso que nos af irma Bakhtin:

Ao narrar sobre minha vida cujas personagens são outras para mim, passo a passo eu me entrelaço em sua estrutura formal da vida (não sou o herói da minha vida, mas tomo parte dela), coloco -me na condição de personagem, abranjo a mim mesmo com minha narração; as formas de percepção axiológica dos outros se transferem para mim onde sou sol idário com eles. É assim que o narrador se torna personagem. Se o mundo dos outros goza de autoridade axiológica para mim, ele me assimila enquanto outro (claro, nos momentos precisos em que ele tem autor idade). (BAKHTIN, 2010, p. 141 -142).

Assim também afirma-nos um dos pensadores prediletos de

Ramos, o italiano Gramsci: conhecer -se melhor a si próprio através

dos outros, e os outros, através de si próprio:

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Conhecer-se a si próprio quer dizer ser ele próprio, isto é, ser dono de si próprio, dist inguir -se sair do caos, ser um elemento de ordem, mas da própr ia ordem e da própria disciplina que tendem para um ideal. E não se pode obter isto se não se conhecem também os outros, a sua historia, o desenrolar dos esforços que f izeram para serem o que são, para criar a civi l ização que agora queremos subst ituir pela nossa, quer dizer, ter noções de como é a natureza e suas leis para conhecer as leis que governam o espír ito. E aprender tudo sem perder de vista o objet ivo últ imo que é o de conhecer -se melhor a si própr io através dos outros e os outros através de si próprio. (MONASTA apud GRAMSCI, 2010, p. 55).

Uma trama social delimitada e debilitada pela escassez, pela

secura, minguada, onde tudo se apresenta pouco e quando o

contrário se faz o momento é de alegria, é de júbilo, apesar de ser

uma pequena festa privada de “imenso prazer”:

Uma tarde preguiçávamos no milho. Fazíamos buracos, e quando estavam bastante fundos, mergulhávamos neles, provocávamos o desmoronamento, das rampas e desaparecíamos sob ruínas amarelas. Isto me dava imenso prazer. (RAMOS, 2011, p.69).

Num dos capítulos da obra, o menino Gracil iano descreve o

inferno, baseado na insatisfação persistente pela incompletude das

conceituações que sua mãe e o padre João Inácio fazem desse

local. E o menino Gracil iano persiste em sua curiosidade e chega a

receber alguns cascudos de sua mãe para que desistisse desse

inferno.

E de quando em quando aventurava perguntas que f icavam sem respostas e perturbavam a narradora. (. . .) . E num lugar existem casas, árvores, açudes, igrejas, tanta coisa, tanta coisa que exigi uma descr ição. Minha mãe condenou a exigência e quis permanecer nas generalidades. Não me conformei. Pedi esclarecimentos, apelei para a ciência dela. Por

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que não contava o negócio direit inho? (RAMOS, 2011, p. 79-80).

A necessidade questionadora da criança sendo oprimida pela

desatenção, pela ideologia (como não poderia deixar de ser,

manipuladora) e força física dos adultos: o velho senso -comum de

“ainda não é hora de você saber disso” ou “isso não é assunto pra

você”: “O inferno era um nome feio, que não devíamos pronunciar

(...). Exprimia um lugar ruim, para onde as pessoas mal -educadas

mandavam outras, em discussões”. (RAMOS, 2011, p.80).

Quando os adultos dão “atenção” às suas crianças, isso é

feito de uma descrença prévia, num sentido mecânico de r eplicar-

lhes e livrarem-se dos pequenos. Mas o pequeno Ramos,

indagando-se como e se era possível descrever um lugar no qual

nunca estivera:

— A senhora esteve lá? (. . .) , — Os padres est iveram lá? (. . .) — Os padres est iveram lá? tornei a perguntar. Minha mãe irr itou-se, achou-me leviano e estúpido. Não t inham estado, claro que não t inham estado, mas eram pessoas instruídas, aprendiam tudo no seminár io, nos l ivros. (RAMOS, 2011, p.82).

Candido observa bem esse aspecto, em “Ficção e confissão”:

(. . .) Um dos traços mais constantes é o sentimento de humilhação e de machucamento. Humilhação de menino f raco e t ímido, maltratado pelos pais e extremamente sensível aos maus-tratos sofr idos e presenciados. Por toda parte, recordações doídas de alguma injust iça, (. . .) (1992, p. 51).

No “romance” de 45, nosso autor não retrata abstrações

pueris de um menino abastado num rincão do nordeste, como

aponta Zagury:

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Gracil iano escritor não trata seu protagonista infanti l com paternalismo. O lir ismo que aí aparece está para além das convenções l iterár ias e do pseudo -entendimento adulto-criança, feito de uma “sábia” complacência do adulto, na verdade esquecido do seu antigo ser-cr iança. Graci l iano Ramos não empresta a seu protagonista sentimentos e sensações convencionais da infância mentada pelo adulto. Muito pelo contrário, tenta reconstruir todo o primarismo das sensações e dos sentimentos infantis reais (1982, p. 129).

Como também, observa Candido:

O narrador de Infância se encarrega de nos ensinar algumas das razões dessa cadeia necessár ia de sofr imentos. Os castigos imerecidos, as maldades sem motivo, de que são vít imas os f racos, estão na base da organização do mundo. Ele, a priminha, João, o colega, Venta-Romba, a irmã natural representam a semente da f i losof ia de vida característ ica dos romances de Graci l iano Ramos. Ela não é nova nem brilhante, e isso não importa. Um art ista nada mais faz do que tomar os lugares -comuns e renová- los pela cr iação. (1992, p. 54).

Na arte l iterária, ora o espaço é de contemplação, espaço

feliz; ora é de dissonância, de dor, de fome, de miséria. A

ideologia procura encobrir as verdades e Gracil iano procura

desvendar essas verdades: dor, desespero, injustiça social, fome,

miséria. Gracil iano procura dar visibi l idade a essas verdades. A

ideologia vela, a l iteratura revela. A ideologia nos dá o falso como

verdadeiro. A l iteratura aparece como contraponto, não participa

da vida social como consenso, é uma prática do dissenso, pois

desmascara esse dito instituído como verdade, mostrando u ma

verdade escondida. O l iterário é ideológico e tem a função de

desvendar as verdades escondidas pelo discurso da ideologia.

Como se percebe, a organização da memória, em Infância, é

representada de forma fragmentária, retalhada. Tal concepção é

bem retratada com Gagnebin, em Walter Benjamin (1982) :

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(. . .) é possível que o presente seja incapaz de reencontrar a parcela do passado e que ela permaneça imersa no esquecimento. O passado pode ser salvo, mas pode também ser novamente perdido. A exigência do passado é, entretanto, duplamente atual: porque alude o nosso presente e porque quer tornar-se ato, abandonar o domínio do possível. Não se trata, simplesmente, de impedir que a histór ia dos vencidos se passe em silêncio; é necessário, ainda, atender a suas reivindicações, preencher uma esperança que não pôde cumprir -se (p. 72-73).

É nessa busca desenfreada pelo rememorar que a f icção

entra em cena, dando f luidez à narrat iva de memórias, numa busca

frenética pela descoberta da escrita, que é também o desejo de

“ler o mundo” (Oliveira, 1988, p.110). Sendo assim, para que a

uma obra memorialíst ica seja dado o direito de continuidade, se

util izando dos recursos f iccionais, é necessário, que o sentido

visual seja aguçado, pois, ainda segundo Oliveira (1988, p.114), “o

ato de rememoração é antes de tudo visual”.

Em “memória e libertação” (1982), Gagnebin diz que:

Para Benjamin, a arte do narrador é também a arte de contar, sem a preocupação de ter de explicar tudo; a arte de reservar aos acontecimentos sua força secreta, de não encerrá- los numa única versão (p. 70).

Dizemos, portanto, que o ato de narrar é, nada mais do que

testemunhar o seu eu em embate com o mundo que ora se

apresenta para análise, inventada e definida, “desarrumada”,

suti lmente, pelas constantes mudanças domicil iares que o menino

Gracil iano experimentou, durante seus onze primeiros anos de

vida.

Sabemos, ainda, que mudanças físicas nos remetem à ideia

de descontinuidade de memória. Podemos ver, claramente,

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exemplos que ref letem essas descontinuidades da memória, do

primeiro ao últ imo capítulo de Infância. Basta que observemos o

uso dos substantivos, os quais sugerem essa descontinuidade:

“nuvens”, “nebulosidade”, “vagas lembranças”, “sono”, se opondo à

ideia de cronologia e aderência aos fatos, que a narrat iva

tradicional exige. Portanto, essa fragmentação e descontinuidade

da memória, representam sua infância não lúdica, sem deixar

marcas profundas de melancolia no adulto que, agora fala.

No posfácio de Memórias do Cárcere , há um trecho em que,

Wander Melo Miranda nos atenta para o fato de que o relato de

memórias é um fato marcante na narrativa de Ramos:

A recr iação da memória, não se prende, pois, a métodos apr ior íst icos de investigação, dependentes da experiência vivida e que visem satisfazer expectat ivas previsíveis de conf iguração textual. Recordar é, para Gracil iano esquecer -se como sujeito-objeto da lembrança, esgueirar -se para os cantos, colocar-se à margem do texto – ser escr ito por ele, ao invés de escrevê- lo – para que a l inguagem, em processo intermitente de produção, possa cumprir seu papel efet ivo de instrumento social izador da memória (MIRANDA apud RAMOS, 2008b, p.686)

Assim como em Gagnebin, também em Ramos, encontramos

respaldo para nossa assert iva de que: somente se rememora pelo

esquecimento.

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CAPÍTULO SEGUNDO

2.1 NARRATIVA E MODERNIDADE

Neste capítulo, dissertaremos a respeito das formas

singulares de composição dos tipos que se apresentam no

romance gracil iânico de 1945, t ipos com os quais, o escritor

descreve seus personagens de forma fragmentária, coisif icada,

animalizada e animalesca. Antes, porém, de adentrarmos

objetivamente nesse aspecto de nossa análise, faremos algumas

considerações sobre o papel da narrativa na modernidade e sobre

o signif icado do termo infante.

Sabemos que Infância é um romance de memórias do miúdo

Gracil iano Ramos, segundo f i lho (único homem) de uma prole de

três f i lhos. Temos conhecimento, também, sem grandes

divagações, de seus sofrimentos com a inexperiência de seus pais,

que de forma geral converte -se em exageros quer seja de cuidados

e mimos, quer seja, mais comumente, em cobranças e exigências

exacerbadas, em deveres. Pois bem, em contrapartida, é sabido

que o “f i lho homem” sempre tem direito à coroa, mas, aqui em

Infância essa regra protocolar foge à praxe, nosso pequeno não

herda senão as responsabilidades supremas de uma majestade,

pois acaba destituído de coroa, quer dizer, é um infante.

Buscamos, nos nossos maiores lexicógrafos e dicionaristas,

Aurél io Buarque de Holanda e Antonio Houaiss, o verbete Infante .

Para AURÉLIO (1999), infante signif ica: “que não fala”, “incapaz de

falar”. Para HOUAISS (2001), signif ica: “em Portugal e Espanha,

f i lho de reis que não herda o trono”.

Usualmente, sabemos que esta palavra signif ica criança,

menino ou menina. Na língua falada atual do Brasil , não deixa de

ser uma palavra obsoleta ou de uso raro e muito circunstanciado e,

de fato, nem propriamente ela, mas seu radical infans , compondo

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outras palavras como o título que nos serve de objeto de estudo

Infância ou o assassínio de crianças, infanticídio. Buscamos,

enfim, esse verbete por sua etimologia aquele que não fala,

incapaz de falar. Inclusive em Portugal e Espanha, como já

dissemos antes, infante ou infanta seria o f i lho ou f i lha do rei que

não terá direito ao trono, ou seja, apesar de gozar de toda a

majestade de estar sob a coroa de seu pai, não terá poder de

decisão. Quer dizer, não fala, é incapaz de dizer .

Recorremos, ainda, à classif icação dada por Gagnebin (2005,

p. 167), em seu ensaio “Infância e pensamento” . Para a autora, “o

marco privi legiado dessa concepção moderna de infância, data de

1762, com a publicação de Emílio , de Jean-Jacques Rousseau”.

Parafraseando-a, podemos dizer que os homens

desenvolvem a capacidade da fala e do pensamento,

diferentemente dos bichos, dos animais. Esse desenvolvimento da

linguagem já os possibil ita escolher o mal em detrimento do bem.

Gagnebin ainda acrescenta que sem a aquisição da lingua gem, o

homem seria um bicho cruel, talvez, mas moralmente

impossibil itado de ser ruim, pois o mal só pode ser atr ibuído aos

seres dotados de linguagem, logo de pensamento, logo de

intel igência. Vejamos, então, a definição longa de infância para

Gagnebin muito pertinente para o desenvolvimento de nossos

argumentos:

A infância reúne assim, no pensamento de um Santo Agostinho, por exemplo, a selvageria bruta do animal e a disponibi l idade, simultaneamente inf inita e latente, dos homens para o mal. Ela é o testemunho vergonhoso do pecado que nos marca, já ao nascer, e contra o qual só podemos tentar lutar quando sairmos dela, quando pudermos entender os conselhos bondosos de nossos pais e lhes responder pelas nossas palavras e pelas nossas ações. Longe de ser a idade da inocência, a infância é descr ita por Santo Agost inho, em part icular no l ivro I das Conf issões, como duplamente marcada pelo pecado: não só cada criança, cada infans – palavra cuja et imologia é realçada por Agost inho em oposição ao puer: qui non farer [gr ifo nosso] I , 8, 13 – é signo, pelo seu nascimento, do comércio carnal e l ib idinoso

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de seus pais. Isto é, profundamente marcado pelo pecado original; mas também cada criancinha manifesta desejos e ódios, cuja intensidade desproporcional será justamente censurada numa idade mais avançada e que só é tolerada nela, na criancinha sem fala, sem razão, porque é fraca, portanto e felizmente, impotente (2005, p.171). [grifo nosso].

Ora, aquele que não fala, que não tem direito a voz não terá,

por conseguinte, o direito de narrar, ou, pior não tem a capacidade

de narrar.

O infante é, portanto, não somente aquele que não fala, mas

“o testemunho precioso de uma l inguagem dos sentimentos

autênticos e verdadeiros, ainda não corrompidos pela convivência

humana” (Gagnebin, 2005, p. 177).

É possível, então, na era do “caos da modernidade” se falar

de narrativa sem levar em consideração a própria era da

modernidade? Acreditamos que não e para isso teceremos alguns

comentários a respeito.

Desse termo que ora nominamos, a “não -narrativa”, fruto

dessa incapacidade de falar, portanto de narrar, podemos extrair a

compreensão por analogia de porquê dezenas de estudos sobre

Ramos o aproximam aos estudos de Walter Benjamim, sobre o f im

da narrat iva.

Em 1933, Benjamin (1892-1940), ref let indo sobre o acelerado

desenvolvimento da técnica que estava sobrepondo -se ao homem,

isto é a Modernidade, nos alerta sobre o declínio das ações da

experiência, e o perigo de ext inção que paira sobre a arte de

narrar, dizendo que:

Sabia-se exatamente o signif icado da exper iência: ela sempre fora comunicada aos mais jovens de forma concisa, com a autor idade da velhice, em provérbios; de forma prol ixa, com a sua loquacidade, em histórias; muitas vezes como narrat ivas de países longínquos, diante da lareira, contadas a pais e netos. Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como

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elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmit idas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, l idar com a juventude invocando sua exper iência? (2010, p.114) .

Tomando como base para nossas próximas discussões, as

ref lexões de Benjamin, o silêncio experimentado por uma geração

que viveu os horrores da guerra e:

Que ainda fora a escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o f rágil e minúsculo corpo humano (2010, p. 115).

Volta, agora, silenciosa, dos campos de batalha. Nas suas

dúvidas, incertezas, medos, uma verdade:

Nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de tr incheiras, a exper iência econômica pela inf lação, a experiência do corpo pela fome, a exper iência moral pelos governantes (2010, p.115).

Desmoralizada e visivelmente abandonada, essa geração,

bem mais pobre em experiências da fala, vazias em experi ências

que se comunicam – pelo desaparecimento das formas tradicionais

de narrat iva e, consequentemente, pelo enfraquecimento da

memória – morrerá, diante do progresso da modernidade. Vê -se,

portanto, que essa geração traumatizada por essas experiências

negativas e chocantes no pós-guerra, não podia senão calar -se. O

ser humano, bastante fragilizado, foi privado de comunicar -se e

elegeu o silêncio para rememorar. A técnica de narrar os fatos, foi

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castrada dos mais velhos: o si lêncio mudo prevaleceu, como

consequência. Chegara, então, o f im da narrat iva?

Para Gagnebin, em “Verdade e memória do passado”: “ lutar

contra o esquecimento e a denegação é também lutar conta a

repetição dos horrores (que infelizmente se produz

constantemente)” (2009, p. 47). Percebe-se, pela af irmação de

Gagnebin, uma constante tensão da memória viva entre presença e

ausência, lembrança e esquecimento. Passado e presente se

completam no embalar do esquecimento: a memória existe, de

fato.

Seguindo o mesmo raciocínio das ref lexões de Benjamin e

Gagnebin, mas focando nos procedimentos da narrativa literária,

Theodor W. Adorno resume, numa única e sábia af irmação, o

paradoxo por onde passa toda a crise atual do romance: “não se

pode mais narrar, embora a forma do romance exi ja a narraçã o”

(2008, p. 55).

Ainda com relação à crise do romance, para Adorno (2008, p.

56), “o que se desintegrou foi a identidade da experiência, a vida

articulada e em si mesmo contínua, que só a postura do narrador

permite”. Tomando por base, ainda, essas ref le xões adornianas,

ele ainda nos diz, na mesma página, que: “contar algo signif ica ter

algo a dizer, e justamente isso é impedido pelo mundo

administrado, pela estandardização e pela mesmice”. Coisas da

Modernidade, poderíamos assim dizer.

Percebe-se claramente que, para Adorno, o romance

rompendo com o realismo e buscando criar novas formas de

linguagem, estaria então qualif icado como uma alternativa de

resistência à transformação do indivíduo do mundo

contemporâneo, em coisa.

Infância é, pois, escrito como um testemunho (discurso

histórico que dá vida ao literário), baseado nas experiências

traumáticas de vida de um garoto, no início de Século XX, no

Brasil, mais precisamente no sertão nordestino. Esse testemunho,

no entanto, não foi escrito por uma voz, mas por vozes que

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silenciaram, como forma de denúncia e retratação dos traumas da

infância.

Entenda-se por humanismo, não a definição indissociável da

luta de classes contra a “al ienação do indivíduo”, produzida pelo

mundo capital ista, que busca “valores autênticos” que resguardam

a integridade humana, mas no sentido de “empatia”, de criação de

elos, de solidariedade para com a sociedade, do ponto de vista da

coletividade. Nesse sentido Infância é apresentado como um

adversário ferrenho aos valores estabelecidos pela sociedade

burguesa da modernidade.

Assim, tomando os conceitos de Sell igmann-Silva, sobre a

literatura de testemunho:

A l iteratura de testemunho é mais do que um gênero: é uma face da l iteratura que vem à tona na nossa época de catástrofes e faz com que toda a histór ia da l iteratura seja revista a part ir do questionamento da sua relação e do seu compromisso com o “real”. O autor, para evitar confusões, lembra também que esse “real” não deve ser confundido com a “real idade” tal como ela era pensada e pressuposta pelo romance real ista e natural ista: o “real” em destaque deve ser compreendido na chave freudiana do trauma, de um evento que justamente resiste à apresentação. Nesse aspecto, a l i teratura do testemunho – tradutora de si lêncios – reivindica para si o valor da verdade (2006, p.73).

Percebe-se, então, que o narrador não é um simples

“contador” de histórias e que ele não pode, em hipótese alguma,

ser confundido com o autor. Ele deve conhecer o leitor. Sendo

então, o narrador, detentor da matéria narrada, ele a expressa, por

meio da f icção. Na verdade, não existe narrat iva sem n arrador,

pois ele “diz” com a história narrada. É exatamente nessa

perspectiva de narrador que narra “dizendo”, que podemos

encaixar os relatos de Infância , como narrat iva de testemunho.

Pois bem, se antes, na antiguidade, as narrat ivas eram

repassadas pela oral idade, na reelaboração dessa oral idade,

passaram a ser registradas em formas escritas, como na I líada e

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Odisseia. Observando assim o que Walter Benjamim fala -nos em

“O narrador”:

O primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da narrat iva é o surgimento do romance no início do período moderno. O que separa o romance da narrat iva (e da epopéia no sent ido estr ito) é que ele está essencialmente vinculado ao l ivro. A difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensa. A tradição oral, patr imônio da poesia épica, tem uma natureza fundamentalmente dist inta da que caracter iza o romance. O que dist ingue o romance de todas as outras formas de prosa – contos de fadas, lendas e mesmo novelas – é que ele nem procede da tradição oral nem a alimenta (2010, p. 201).

A preocupação de Benjamim é bastante sensata e a nossa

discussão que fazemos, por analogia, ao discurso de Benjamin é

se a internet irá ou não acabar com o livro impresso. As

discussões esclarecem que, apesar de legit imadas pelo senso

ideológico do novo, pelo desconhecimento do novo, sabemos hoje

que a internet cria novos canais e ferramentas de comunicação,

todavia não foi, é, ou será ameaça qualquer ao livro impresso.

Assim, o romance sequer chegaria a ser uma real ameaça às

narrat ivas orais. Como argumento disso temos Infância , uma

mescla de oral idade, trabalho de memórias, experiências de vida,

próprias e alheias.

Além da raiz etimológica da palavra infante com sua ideia de

não-fala, incapaz de falar , podemos trabalhar com a ideia de

trauma que, por inúmeras vezes, é relatada em Infância devido às

violências.

De fato meu pai mostrava comportar -se bem. Mas havia aquela evidência de faltas antigas, uma evidência forte, de cabeleira negra, beiços vermelhos, olhos provocadores. Minha mãe não dispunha dessas vantagens. E com certeza se amof inava, coitada, revendo-se em nós, percebendo cá fora, soltos dela, pedaços da sua carne propícia aos furúnculos. Maltratava -

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se maltratando-nos. Julgo que agüentamos cascudos por não termos a beleza de Mocinha (RAMOS, 2011, p. 26).

Experimentados pelos diversos personagens de Infância,

essa elaboração conceitual do trauma nos faz irmos ao encontro

dos conceitos de Jeanne-Marie Gangnebin, sobre os traumas do

infante que não fala ou não quer falar.

Os horrores das Guerras não foram sequer possíveis de ser

narrados, devido à dor, ao sofrimento, aos traumas. As

descomunais bombas atômicas e suas consequências para

gerações diretamente afetaram o curso das narrativas. E o que

poderíamos dizer do evento negado pelos nazistas, o Holocausto,

em sua infame tentativa de “apagar os rastros” das chacina s, ato

mais infame ainda que o próprio mort icínio em massa: a ordem de

desenterrar todos os que estavam enterrados em valas comuns

para que fossem incinerados e assim camuflarem a terrível

matança? Corrobora-nos nessas assertivas a escrita de Gagnebin,

sobre Benjamim:

(. . .) Os sobreviventes que voltaram das tr incheiras, observa Benjamim, voltaram mudos. Por quê? Porque aqui lo que vivenciaram não podia mais ser assimilado por palavras.

Nesse diagnóstico, Benjamim reúne ref lexões oriundas de duas providências: uma ref lexão sobre o desenvolvimento das forças produtivas e da técnica (em part icular sua aceleração a serviço da organização capitalista da sociedade) e uma ref lexão convergente sobre a memória traumática, sobre a exper iência do choque (conceito -chave das análises benjaminianas, da l ír ica de Baudelaire), portanto, sobre a impossibil idade, para a l inguagem cotidiana e para a narração tradicional, de assimilar o choque, o trauma, diz Freud na mesma época, porque este por def inição, fere, separa, corta ao sujeito o acesso ao simbólico, em part icular à l inguagem (2009 , p. 51) .

Complementando com um comentário de Reis:

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Em Exper iência e Pobreza (1993), o f i lósofo registra -nos que as ações da experiência estavam em declínio numa geração que, entre 1914 e 1918, viveu a truculência da Primeira Guerra Mundial. O “f rágil e minúsculo corpo humano” se viu no campo minado da experiência das t r incheiras, no corpo maltrapi lho torturado pela fome, nas esperanças f rustradas em face da f r ialdade da inf lação econômica e no pessimismo diante do cinismo dos governantes. Destas exper iências indeléveis, o f rágil corpo humano f icou privado das exper iências comunicáveis, os homens que retornavam do front viam no si lêncio o virtuosismo – porquanto a sofreguidão interna era tão profunda que o comunicar-se era inúti l. (2009, p. IV).

Opomo-nos à ideia de inútil que Reis expressa, a menos que

tenhamos, junto a ele, toda a possibil idade de leitura que

certamente f izemos sobre os vários estudos graci l iânicos e então

util izemos incapaz. Pois, para usarmos uma palavra de Gagnebin o

trauma incapacita a narrat iva.

Vejamos que a transcrição de Gagnebin, abaixo, nos mostra,

com clareza, que o “trauma” tem um papel crucial na ausência da

fala: É o “sonho” pelo relato de um fato necessário, mas impossível

de ser narrado, visto que ninguém tem interesse em escutar.

Quando falo de fala, falo também em escrita, em narração.

O trauma, segundo Gagnebin (2009, p. 110), nos torna

“estrangeiros para nós mesmos e para nossos familiares, em nosso

próprio país”.

[ . . . ] a escrita, este rastro privi legiado que os homens deixam de si mesmos, desde as estelas funerárias até os e-mails efêmeros que apagamos depois do uso – sem esquecer naturalmente os papiros, os pal impsestos, a tábua de Ar istóteles, o bloco mágico de Freud, os l ivros e as bibl iotecas: metáforas -chave das tentat ivas f i losóf icas, l i terárias e psicológicas de descrever os mecanismos da memória e do lembrar. (GAGNEBIN, 2009, p. 111) .

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Pois bem, o mestre Gracil iano escolheu justamente a

narrat iva de memórias para, através de seu testemunho, confessar

suas dores e denunciá-las ao mundo dos “grandes”, se opondo ao

mundo capital ista (des)ordenado, elevando os bichos à condição

de “humanos”, através do seu “si lêncio”, apresentado a nós,

leitores e sociedade, pela ausência da fala.

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2.2 BICHOS – COISAS – PESSOAS - CENÁRIOS

A partir da publicação de As flores do mal, em 1857, a

Europa testemunhava o nascimento de uma literatura de traços

“pessimistas”, que exalta a estética do feio, a poética do hediondo

que tematiza a decomposição do belo, decomposição dos corpos e

o caráter i lusório do real. Arthur Rimbaud cria, por exemplo, o

soneto Vênus Anadiomena nesses padrões da poética do

hediondo. Como sabemos a Vênus é a deusa da beleza, a

representante máxima da beleza, o ícone da personif icação do

ideário do belo na nossa concepção latina da estét ica f ísica, pois

bem o poeta maldito desfaz esse ideário ao compor um soneto –

outra criação do homem para tentar a perfeição já que em sua

gênese o soneto deveria ser arquitetado milimetricamente

simétrico em suas métricas e rimas – no qual a deusa da beleza se

apresenta anadiomena , ou seja, verde como o lodo, pois esse

adjetivo remete a algas marinhas de pigmentação esverdeada e de

tonalidade escura, vale dizer, o mito da Vênus emergiu pálida,

verde, decrépita e com uma úlcera nas ancas e não formosa como

a própria lenda Greco-romana nos ensina, conforme SILVA:

Vênus anadiomene , — que desconstrói a imagem clássica da bela Vênus — e é um ícone máximo dessa lavra de mot ivos horrendos, o soneto Vênus anadiomene “com a bela hediondez de uma úlcera no ânus”. (RIMBAUD, 1994, p. 81). Esse texto não reclama um dual ismo que, por exemplo, ocorre em Baudelaire, nada de platônico ou neo-platônico, Rimbaud não reclama uma forma pura que se degrada, que decai. As fealdades elencadas e o extremo vigor nessa Vênus têm mais a dizer de seu nascedouro que dos eufemismos da lenda: a Clara Vênus nasceu da feiúra da castração de seu pai, Júpiter, que teve os test ículos lançados ao mar, daí as ondas foram fecundadas e da clara espuma nasceu a Clara Vênus. Com o adjet ivo anadiomene ganha a pigmentação esverdeada das algas anadiomenáceas; anadiomene é epíteto de Afrodite, vem do grego e expressa que surge ( 2010, p. 13).

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Perto desse perf i l da estética do hediondo observa remos,

neste capítulo, os trabalhos de construção de personagens que

Gracil iano Ramos elabora, mas não necessariamente por ser um

seguidor dessa estética. Apresentamos aqui diversas formas de

fragmentação, de coisif icação, de animalização, miniaturização,

inclusive de autominiaturização que constantemente são util izadas

para a criação das personagens e consequentemente das tramas

da narrat iva. O nosso narrador -personagem elabora, desde as

mais aceitas em usos poéticos ou de uso diário da língua, como

metáforas nas quais as personagens são reduzidas as suas peças

de vestuário, por exemplo:

Ignoro como chegamos à fazenda: as minhas recordações datam da hora em que entramos na sala. Meu pai e o propr ietár io sumiram-se, foram cuidar de negócios, numa daquelas conversas chei as de gritos. Minha mãe e eu f icamos cercados de saias. (RAMOS, 2011, p. 40).

Os traumas de seus primeiros anos revelam-se a todo

momento ao longo do romance. Os homens são diminuídos a

miniaturas, os bichos são elevados a condição de homens, (como

foi o caso do cururu), os homens “rebaixados” a condição de

animais. Ele mesmo, nosso autor -narrador, por dezenas de vezes,

é bicho-homem, homem-bicho, meio homem, meio bicho, isso tudo

sem ter a “elegância” clássica de uma lenda como o minotauro ou

o centauro. Na verdade, em Ramos, o meio homem, por exemplo,

perde tanto a forma de homem quanto a fo rma do bicho que é

aproximado, o homem acaba mesmo apenas sendo um simples

coacho, zumbido, berro, por exemplo: Ridículo um indivíduo hirsuto

e grave, doutor e barão, pipilar conselhos, zumbir admoestações

(RAMOS, 2011, p.131).

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Esse recurso est il ístico de composição dos personagens é a

expressão, a voz do autor, a voz do homem isento no processo de

criação que se permite a criar, a manusear as personagens da

maneira mais pert inente às suas memórias e idiossincrasias de

infante que perduraram no adulto. Vejamos o que nos informa o

mestre Russo Bakhtin sobre a construção de personagens:

O tipo pressupõe a superior idade do autor sobre a personagem e a completa desvinculação axiológica daquele ao mundo desta; daí ser o autor absolutamente cr ít ico. A autonomia da personagem no t ipo é consideravelmente reduzível, todos os elementos problemáticos são transferidos do contexto da personagem para o contexto do autor, desenvolve-se a pretexto da personagem e vinculados a ela, mas não nela, e quem lhes dá unidade é o autor e não a personagem, que é portadora da unidade vital ét ico -cognit iva que no t ipo é extremamente reduzida. É claro que inserir elementos l ír icos no t ipo é inteiramente impossível. É essa a forma do t ipo do ponto de vista da relação mútua que nela existe entre a personagem e o autor. (BAKHTIN, 2010, p. 169).

Toda a sociedade era retratada nas letras graci l iânicas e

assim o viés grotesco e animalesco da Humanidade se faz

presente como quando, por exemplo, explora as potências

moralizantes dos apólogos e descreve o Homem-animal e vice-

versa:

Não me parecia desarrazoado os brutos se entenderem, brigarem, fazerem as pazes, narrarem as suas aventuras, sem dúvida cur iosas. Tinha ref let ido nisso, admit ia que os sapos do açude da Penha manifestassem, cantando, coisas inintel ig íveis para nós. Os fracos se queixavam, os fortes gritavam mandando. Constituíam uma sociedade. Sapos negociantes, sapos vaqueiros, o Reverendo sapo João Inácio, o sapo José da Luz, amigo da dist inta farda, sapos traquinas, f i lhos do cururu Teotoninho Sabiá, o sapo alfaiate mest re Firmo, a sapa Rosenda lavadeira a tagarelar os mexericos da beira da água. O nosso mundo exíguo

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podia alargar-se um pouco, enfeitar -se de sonhos e caraminholas. Infelizmente um doutor, ut i l izando bichinhos, impunha-nos a l inguagem dos doutores. — Queres tu brincar comigo? O passar inho, no galho, respondia com preceito e moral. E a mosca usava adjet ivos colhidos no dic ionário. A f igura do barão manchava o f rontispício do l ivro — e a gente percebia que era dele o pedantismo atr ibuído à mosca e ao passar inho. Ridículo um indivíduo hirsuto e grave, doutor e barão, pipilar conselhos, zumbir admoestações. E isso ainda era condescendência. Decif rados a custo os dois apólogos, encolhi -me e desanimei, incapaz de achar sentido nas páginas seguintes. Li -as soletrando e gaguejando, nauseado. Lembro -me de um desses horrores, que bocejei longamente. Um sujeito, acossado, ocultava-se numa caverna. A aranha providencial veio estender f ios à entrada do refúgio. E os perseguidores não incomodaram o fugit ivo: se ele est ivesse al i, ter ia desmanchado a teia (RAMOS, 2011, p.130-131).

Ramos chega mesmo a compor personagens que, de

imediato, descreve com certo desdém e que de fato sequer,

chegam a ser verdadeiramente pessoas:

D. Clara, pessoa grave que t inha diversos f i lhos, um gato, marido invisível. Uma parenta dela, irmão ou sobrinha, dessas criaturas que não pedem, não falam, não desejam, aparecem quando são úteis e logo se somem, fogem aos agradecimentos, familiar izou-se conosco, tomou conta dos arranjos da instalação (RAMOS, 2011, p.59) .

As descrições cronistas que Ramos nos traz revelam cenas

que não deixam de ser horrendas e de corroborarem com cenas

descritas das praças públicas do medievo:

As pessoas comuns exalavam odores fortes e excitantes, de fumo, suor, banha de porco, mofo, sangue. E bafos nauseabundos. Os dentes de Rosenda eram pretos de sarro de cachimbo; André Laerte usava um avental imundo; por detrás dos baús de couro, bri lhantes de tachas amarelas,

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escondiam-se camisas ensangüentadas. (RAMOS, 2011, p. 122)

Temos abaixo um exemplo que frequentemente se faz no

romance, que é a opressão física e psicológica que sua mãe

exerce pelos mais píf ios “motivos”:

De fato meu pai mostrava comportar -se bem. Mas havia aquela evidência de faltas antigas, uma evidência forte, de cabeleira negra, beiços vermelhos, olhos provocadores. Minha mãe não dispunha dessas vantagens. E com certeza se amof inava, coitada, revendo-se em nós, percebendo cá fora, soltos dela, pedaços da sua carne propícia aos furúnculos. Maltratava-se maltratando-nos. Julgo que aguentamos cascudos por não termos a beleza de Mocinha (RAMOS, 2011, p.26) .

Esses cascudos , esses reiterados cascudos desferidos por

sua mãe, reaparecem nas mais diversas vezes e em, bons

devaneios os rastros da violência diária são descritos inexistentes

Nem palavras ásperas nem arranhões, cocorotes e puxões de

orelhas:

Entret inha-me remexendo as maravalhas, explorando os recantos escuros, observando o trabalho das aranhas e a fuga das baratas. Divagava imaginando o mundo coberto de homens e mulheres da altura de um polegar de criança. Não me havendo chegado notíc ia das viagens de Gull iver, penso que a minha gente l i l iput iana teve or igem nas baratas e nas aranhas. Esse povo mir im falava baixinho, zumbindo como as abelhas. Nem palavras ásperas nem arranhões, cocorotes e puxões de orelhas. Esforcei -me por dir imir as desavenças. Quando os meus insetos saíam dos eixos, revelavam inst intos rudes, eram separados, impossibil i tados de molestar -se. E recebiam conselhos, diferentes dos conselhos vulgares. Podiam saltar, correr, molhar -se, derrubar cadeiras, esfolar as mãos, deitar ba rquinhos no enxurro. Nada de zangas. Impedidos os gestos capazes de mot ivar lágrimas. Largando esses devaneios, entregava-me à inspeção das mercadorias. (RAMOS, 2010, p.104-105).

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Gracil iano Ramos (1892 -1953), no capítulo “Um incêndio”,

de Infância, já traz essa decomposição dos corpos em sua

temática. Percebe-se que o contato prematuro que o garoto teve

com a morte desencadeia cenas monstruosas de puro horror: não

presenciando a vivo, o incêndio, ele quase passa despercebido por

“uma coisa estendida, junto ao borralho” (2011, p.95). Era,

portanto o corpo carbonizado da negra, definido pelo menino

como: “aparência vaga de um rolo de fumo” (2011, p. 95) como

veremos num trecho em que o autor retrata suas impressões do

corpo da negra queimada:

Jazia al i um ser humano. Logo recusava a proposição insensata. Nada de humano: t inha a aparência vaga de um rolo de fumo. Isto, rolo de fumo, semelhante aos que viscoso, empacavirados em bananeira. (. . .) Em alguns pontos semelhava carne assada, e havia realmente um cheiro forte de carne assada; fora daí ressecava-se demais. Nesse torrão cascalhoso sobressaía a cabeça, o que fora cabeça, com as órbitas vazias, duas f i le iras de dentes alvejando na devastação, o buraco do nariz, a expel ir matéria verde, amarelenta (RA MOS, 2011 ,

p.95-96) .

Como exemplo dessas inferiorizações, inclusive as de si

mesmo, dos danos à autoestima de “Ramos”, este espalhou ao

longo de Infância “no int imo julgava -me fraco. Tinham—me dado

esta convicção e era dif íci l vencer o acanhamento” (RAMOS , 2011,

p. 123). As situações de avi ltamento às quais o “eu” é um bicho

domado , domesticado desprovido de ações e vontades e o que

resta ao nosso autor-narrador é uma ambivalência de emoções de

espanto e desdém, em palavras de Infância desprezo e inveja a

quem consegue revoltar -se contra o sistema:

Dias depois, vi chegar um rapazinho seguro por dois homens. Resist ia, debatia-se, mordia, agarrava-se à porta e urrava, feroz. Entrou aos arrancos, e se

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conseguia soltar -se, tentava ganhar a calçada. Foi dif íci l subjugar o bicho brabo, sentá -lo, imobi l izá-lo. O garoto caiu num choro largo. Examinei -o com espanto, desprezo e inveja. Não me seria possível espernear, berrar daquele jeito, exibir força, escoicear, ut i l izar os dentes, cuspir nas pessoas, espumante e selvagem. Tinham-me domado. Na civil ização e na f raqueza, ia para onde me impeliam, muito dócil, muito leve, como os pedaços da carta de A B C, tr iturados, soltos no ar (RAMOS, 2010, p.120).

A relação diretamente proporcional sujeição -objeto:

Foi assim que se exprimiu o Tentador, humanizado,

naquela manhã funesta. A consulta me surpreendeu. Em geral não indagavam se qualquer coisa era do meu agrado: havia obrigações, e tinha de submeter-me [gr ifo nosso]. A l iberdade que me ofereciam de repente, o direito de optar, insinuou-me vaga desconf iança. Que estaria para acontecer? Mas a pergunta r isonha levou-me a adotar procedimento oposto à minha tendência. Receei mostrar -me descortês e obtuso, recair na sujeição habitual [gr ifo nosso]. Deixei -me persuadir, sem nenhum entusiasmo, esperando que os garranchos do papel me dessem as qual idades necessárias para l ivrar -me de pequenos deveres e pequenos castigos [gr ifo nosso]. Decidi-me. E a aprendizagem começou al i mesmo, com a indicação de cinco letras já conhecidas de nome, as que a moça, anos antes, na escola rural, balbuciava junto ao mestre barbado. Admirei -me. Esquisito aparecerem, logo no princípio do caderno, sílabas pronunciadas em lugar distante, por pessoa estranha. Não haveria engano? Meu pai asse verou que as letras eram realmente bat izadas daquele jeito. No dia seguinte surgiram outras, depois , outras — e iniciou-se a escravidão imposta ardilosamente . Condenaram-me à tarefa odiosa [gr ifo nosso], e como não me era possível real izá - la convenientemente, as horas se dobravam, todo o tempo se consumia nela. Agora eu não tocava nos pacotes de ferragens e miudezas, não me absorvia nas estampas das peças de chita: ficava sentado num caixão, sem pensamento [gr ifo nosso], a carta sobre os joelhos. (RAMOS, 2011, p. 110).

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As fugas seriam necessárias para escapar das obrigações ,

das imposições:

Quando me impunham sapatos, era uma dif iculdade:

os pés formavam bolos, recalcitravam, não queriam

meter-se nas prisões duras e estreitas. Arrumavam -

se à força, e durante a resistência eu ouvia berros,

suportava tabefes e chorava. Um par de borzeguins

amarelos, um par de infernos, marcou-me para toda

a vida (RAMOS, 2011, p 40).

Cria de gato que ofertamos indiscriminadamente e que sem

qualquer afeto entregamos alheios e indiferentes, Luísa se destaca

por gerar negrinhos que seriam comidos pela verminose. Luísa,

uma das personagens, é par de Fernando nas grosserias

mundanas, mas não foi digna de receber um capítulo :

Luísa era intratável e vagabunda. Em tempo de seca e fome chegava-se aos antigos senhores, instalava-se na fazenda, resmungona, malcriada, a discutir alto, a fomentar a desordem. Ao cabo de semanas arrumava os picuás e entrava na pândega, ia gerar negrinhos, que desapareciam comidos pela verminose ou oferecidos, como cr ias de gato. Parece que só escaparam os dois recolhidos por meu pai. (RAMOS, 2011, p. 85) .

E da “moça bonita” que é reduzida a condição “subterranea”

do rato, passando a ser prost ituta após ser abusada sexualmente e

a ser chamada de “rat inha”, ela é uma dessas moças que teve a

juventude roubada pela exploração de Fernando. No cap ítulo,

“Fernando” é parente de um chefe polít ico e é uma das memórias

de injust iça, pois, aproveitando-se da posição social favorável,

espancava os frágeis e desprovidos e violentava as mulheres,

tratando-as como objetos a serem usados ao seu bel -prazer. Ou

seja, Fernando personif ica as mais diversas formas de violência e

o lado mais sarcástico e sujo do ser humano:

Sozinho, vi-o de novo cruel e forte, soprando, espumando. E al i permaneci, miúdo, insignif icante,

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tão insignif icante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na telha negra (RAMOS, 2011, p.37).

A percepção de imagens da memória por Ramos, vem como

vultos , f iguras indefinidas que insist imos em compreender como

sombras de pessoas:

De repente me senti longe, num fundo de casa, mas ignoro de que jeito me levaram para lá, quem me levou [gr ifo nosso]. Dois ou três vultos desceram ao quintal [gr ifo nosso], de terra vermelha molhada, alguém escorregou, abriu no chão um risco profundo. Mandaram-me descer também (RAMOS, 2011, p. 11).

As demais f iguras admitem uma inconstância, uma situação

disforme assim como as nuvens que também são símbolos dessa

arte de rememorar e que abre o romance:

O oitão esquerdo era de altura incrível; à direita faltava oitão, não sei como o telhado podia equil ibrar-se. Talvez currais e chiqueiros, construídos na vizinhança, ocultassem um dos muros. Chiqueiros e currais esvaíram-se [gr ifo nosso] (RAMOS, 2011, p.23).

Ramos estabelece um eterno embate Homem X Bicho no qual

quase nunca o homem encerra-se vencedor, na citação separada

os referenciais de força conhecido por nosso protagonista se

esvaem, no caso o seu pai torna-se impotente diante de dois

personagens da natureza:

As nascentes secavam, o gado se f inava no carrapato e na morrinha. Estranhei a morrinha e estranhei o carrapato, forças evidentemente maiores que as de meu pai (RAMOS, 2011, p. 31).

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Há, ainda, nas páginas de Infância, um acentuado uso de

antropomorf ismo infantil o que traz leveza ao texto, acentuando

esse l irismo que toma conta desses relatos do menino Gracil iano,

como pode ser observado no trecho em que o garoto descreve a

Vila Buíque:

Buíque t inha aparência de um corpo aleijado: o largo da Feira formava o tronco; a rua da Pedra e aruá da Palha serviam de pernas, uma quase est irada, a outra curva, dando um passo, galgando um monte; a rua da Cruz, onde f icava o cemitério velho, constituía o braço único, levantado; e a cabeça era a igreja, de torre f ina, povoada de corujas. Nas vir i lhas, a casa de seu José Galvão resplandecia, com três fachadas cobertas de azulejos, origem do imenso prest ígio de meninos esquivos: Osór io, taciturno, Cecíl ia, enfezada e d. Mar ia, que pronunciava garafa . Na coxa esquerda, Istoé, no começo da rua da Pedra, o açude da Penha, cheio de música dos sapos, t ingia-se de manchas verdes, e no pé, em cima do morro, abria -se a cacimba da Intendência. Alguns becos rasgavam-se no tronco: uma ia ter á lagoa, outro fazia um cotovelo, dobrava para o Cavalo-Morto, areal mal afamado que f indava no sít io de seu Paulo Honór io; no terceiro as janel as do vigário espiavam as da escola públ ica, alva de plat ibanda, regida por um sujeito de poucas falas e barba longa, semelhante ao mestre rural visto anos atrás. Essa parecença me deu a convicção de que todos os professores machos eram cabeludos e si lenciosos (RAMOS, 2011, p. 51-52).

As constantes cenas de injustiça, ao longo da obra, faz com

que, pela própria natureza do infante, Graciliano desenvolva um

senso de pequenez, retratado em alguns pontos de sua obra, no

capítulo “Manhã”, por exemplo:

Divagava imaginando o mudo coberto de homens e mulheres da altura de um polegar de criança. Não me havendo chegado notic ias de Gull iver, penso que a minha gente l i l iput iana teve origem nas baratas e nas aranhas. Esse povo mir im falava baixinho, zumbindo como abe lhas (RAMOS, 2011, p. 104 -105) .

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Outro exemplo que daremos, extraído do capítulo “Leitura”,

mostra essa miniaturização do ser, elevando os bichos, muitas

vezes à condição de homem:

Os meus olhos molhados percebiam a custo o portão do quintal. As mãos descansavam na tábua, imóveis. Julgo que est ive meio louco. E amparei -me ansioso às f iguras de sonho que me atenuava a sol idão. O mundo feito caixa de brinquedos, os homens reduzidos ao tamanho de um polegar de criança (RAMOS , 2011, p.113).

A comparação direta com um animal e homem que se

animaliza bisonhamente e papagueia:

Veio novamente a resposta, mas a necessidade de instruir-me acendia-se e apagava-se, faiscava-me no inter ior como um vaga-lume. Estranha loquacidade inut i l izava o silêncio obtuso que me haviam imposto. O animalzinho bisonho papagueava, e gargalhadas estrugiam na sala, abafando a quizíl ia de minha mãe. Essa potência baqueava (RAMOS, 2011, p. 44).

Tão “insignif icante e miúdo como as aranhas”:

Sozinho, vi-o de novo cruel e forte, soprando, espumando. E al i permaneci, miúdo, insignif icante, tão insignif icante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na telha negra. Foi esse o primeiro contacto que t ive com a just iça (RAMOS, 2011, p. 37 ) .

Homens invisíveis e pessoas que só existem quando são

úteis:

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A nossa casa era na Rua da Palha, junto à de d. Clara, pessoa grave que t inha diversos f i lhos, um gato, marido invisível. Uma parenta dela, irmão ou sobrinha, dessas criaturas que não pedem, não falam, não desejam, aparecem quando são úteis e logo se somem, fogem aos agradecimentos, familiar izou-se conosco, tomou conta dos arranjos da instalação (RAMOS, 2011, p. 59) .

As personagens de suas narrat ivas são meros passantes, ou

empecilhos a serem ultrapassados, ou, simplesmente, bichos,

como podemos ver, também, em passagens de São Bernardo :

“Gosto dele. É corajoso, laça, rasteja, tem faro de cão e f idelidade

de cão” (RAMOS, 2008c, p. 19).

A diminuição da f igura humana, a tendência fatalista da

decadência do ser, o esgotamento psíquico dos persona gens, a

ausência de referência ao garoto, através de um nome de batismo,

subjugado pela opressão, são pontos chaves que serviram de

leitura para a feitura desse trabalho e para a retratação dos bichos

em personas .

Sem dúvida o meu aspecto era desagradável , inspirava repugnância. E a gente da casa se impacientava. Minha mãe t inha a f ranqueza de manifestar-me viva antipat ia. Dava-me dois apel idos: bezerro-encourado e cabra-cega. Bezerro-encourado é um intruso. Quando uma cria morre, t iram-lhe o couro, vestem com ele um órfão, que, neste disfarce, é amamentado. A vaca sente o cheiro do f i lho, engana-se e adota o animal. Devo o apodo ao meu desarranjo, à feiúra, ao desengonço. Não havia roupa que me assentasse no corpo: a camisa tufava na barriga, as mangas se encurtavam ou alongavam, o paletó se alargava nas costas, enchia-se, como um balão. Na verdade o traje fora composto pela costureira módica, atarefada, pouco atenta às medidas. Todos os meninos, porém, usavam na vila fat iotas iguais, e conseguiam modif icá- las, ajeitá- las. Eu aparentava pendurar nos ombros um casaco alheio. Bezerro -encourado. Mas não me fazia tolerar. Essa injúr ia revelou muito cedo a minha condição na famíl ia: comparado ao bicho infel iz, considerei -me um pupi lo enfadonho, aceito a custo. Zanguei-me, permanecendo exter iormente calmo, depois serenei. Ninguém t inha culpa do meu desal inho, daqueles modos horr íveis de cambembe.

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Censurando-me a inferioridade, talvez quisessem corrigir-me (Ramos, 2011, p. 144) .

Essa estét ica gracil iânica de const ituir as personagens ou

como bichos ou como coisas não acontecem meramente em

Infância , suas outras obras também reproduzem esse recurso, isso

é recorrente da própria escritura de Ramos. Vemos, por exemplo,

em São Bernardo, onde Madalena não seria a esposa de Paulo

Honório. Seria mais uma de suas aquisições, haveria de ser a

professora da escola que construir ia em suas terras para assim

agradar o governo e conseguir algumas vantagens. A mulher seria

mais uma das suas conquistas e mercadorias rentáveis, pois

também seria uma progenitora, lhe daria um herdeiro.

Não me ocupo com amores, devem ter notado, e sempre me pareceu que mulher é um bicho dif íc i l de governar. A que eu havia conhecido era a Rosa do Marciano, muito ordinár ia. Havia conhecido também a Germana e outras dessa laia. Por elas eu julgava todas. Não me sent ia, pois, incl inado para nenhuma: o que sent ia era o desejo de preparar um herdeiro para as terras de S. Bernardo (RAMOS, 2008c, p. 67).

Ou seja, em sua concepção a mulher é mais um bicho de

suas terras, mais uma de suas posses. Assim como uma das

personagens comenta em páginas anteriores: “Convide a

Madalena, seu Paulo Honório. Excelente aquisição, mulher

instruída” (RAMOS, 2008c, p.57).

E a crônica campesina de Infância prossegue numa grande

crônica de costumes e a narrativa nesses momentos consegue um

tom lúdico e idíl ico de saudade como se o campo fosse um

ambiente apaziguador e reconfortante, um refúgio , formando uma

descrição de uma riqueza de detalhes insuperável f irmando um tom

lír ico da narrativa:

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Na manhã de inverno as cercas e as plantas quase

se dissolviam, a neblina vestia o campo, dos montes

de l ixo do quintal subia fumaça, pingos espaçados

caíam das goteiras, a cruviana mordia a gente.

Sapatões de vaqueiros depositavam g rossas

camadas de barro no t i jo lo. Roupas molhadas

deixavam manchas largas nos bancos do copiar. As

paredes úmidas enegreciam. Deitava-me na rede,

encolhia-me, enrolava-me nas varandas. Um

candeeiro de querosene lambia a névoa com

labaredas trêmulas (RAMOS, 2011, p. 22)

Os mesmos trabalhos de pega, ferra, ordenha;

ferrolhos rangendo pela madrugada e ao escurecer;

vozes ásperas, exigências curtas, ordens

incompreensíveis. Por toda a parte despojos de

animais: ossos branquejando nas veredas, caveiras

de bois espetadas em estacas, couros espichados,

malas de couro, surrões de couro, roupas de couro

suspensas em tornos, chocalhos com badalos de

chif re, montes de látegos, relhos, arreios, cabrestos

de cabelo (RAMOS, 2011, p. 26).

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CONCLUSÃO

As questões inerentes às análises que f izemos de Infância ,

faz com que cheguemos a determinadas conclusões, visto que

nosso trabalho, além de esclarecer alguns pontos já apresentados

por vários estudiosos, traz uma ideia nova de análise para o

romance em estudo. O contexto sócio-historiográf ico da obra, ou

seja, da infância de Ramos, e o contexto social e

criação/publicação do romance são estudados, minuciosamente, no

primeiro ensaio, entre outros aspectos de cunho sócio -

memorialista. No segundo ensaio, as personagens são observadas

assim como sempre nosso prosador mestre os construía em toda

sua obra: em formas diversas da humana ou em formas humanas

diminutas.

Instituindo-se moderno em suas leituras de mundo tão

absurdamente sutis, mil imétricas quanto um f io de navalha, Ramos

abandona os estigmas da Belle Époque assume as reivindicações

de nacionalismo brasi leiro , há muito cantadas por outros

intelectuais, em especial os que produziram o Manifesto

Modernista e a Semana de 22, e ele mesmo “pinta sua aldeia ”,

descreve senão o seu povo, o seu chão, e suas angústias , e

expressa f lagrantes do drama humano em linhas tão curtas que

jamais poderiam dizer tanto do mundo a part ir de cenário tão

inóspito quanto o sertão tórrido do nordeste brasi leiro. De que

outra forma faria Arte se não chegasse a re -criar num tom

universalista dramas tão “comuns”? E nosso conterrâneo de

alagoas não se vale da Arte para promover estandartes partidários,

não é ideológico, não se declara sectário de bandeiras isoladas . A

sua escrita é seu ato polít ico, porque fala de todos para todos, se

abre ao mundo traduzindo o mundo, sua escrita se volta face a

face, e sem máscaras para o ser humano e suas inter -relações,

portanto já se é polít ica.

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Com sua prosa seca e cortante, assim como era seca

também a vegetação em que ele “desabitava”; passando por

experiências pavorosas de injustiça, desamor e autoritarismo; o

relato de memórias como presente entregue à sociedade brasi leira,

em meados do Século XX, traz, pelas mãos trêmulas do “pequeno”

Gracil iano, marcas de uma infância fragmentada e privada de

direitos humanos quaisquer.

Pode-se dizer que Infância reafirmou e superou as

tendências de forte conotação social da literatura vigente à época,

denominada pela crít ica de realismo socialista, dos anos 30 e 40,

e realismo engajado da primeira metade do século, passado uma

vez que transcende a esfera do regional . Se configuram como uma

nova maneira de narrar o mundo, captado e convocado por uma

linguagem poética dentro da concepção de lírica, abordada por

Adorno (2003), em “Poética sobre lírica e sociedade”, em que

vimos que o lir ismo de Graciliano, se util izando de recursos

inovadores, transportou para seus leitores um mundo lírico não

convencional, não idíl ico, mas universal.

Em nosso percurso argumentativo, entendemos l i teratura

engajada como aquela que discute contextos sociais, aquela em

que o escritor tem um papel social a cumprir, a revelar. Nela, o

“eu” comparti lha seus problemas com o povo. Foi o que Gracil iano

fez ao escrever Infância : retratou paisagens que ref letem a

solidão, a incomunicabilidade, o desamor, a violência doméstica,

especialmente contra as crianças que crescem sob gritos,

imposições tirânicas dos adultos e outras agressões.

Em Literatura e resistência, Alfredo Bosi nos mostra a clara

importância e contribuição que Gracil iano tem para as tensões

sociais do romance e discorre sobre a grandiosidade da literatura

de Ramos, universal:

Voltando-se para a l i teratura brasi leira em ensaios contemporâneos à redação da Histór ia , Carpeaux soube logo discernir , nos seus valores mais altos, a

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presença dos antagonismos, a face dura do conf l ito. Os textos de Gracil iano Ramos e Car los Drummond de Andrade dão testemunho de uma percepção aguda das tensões existenciais e polít icas que atravessam o romance de um e a poesia do outro. Embora envolvidos pela contingência brasileira, a que permaneceram sempre l igados, Gracil iano e Drummond são l idos como vozes que dialogam com o homem contemporâneo dos fascismos da guerra: vozes nacionais e supranacionais ao mesmo tempo (2008, p.39).

Corroborando com essa gradiosidade, Alfredo Bosi em “A

escrita do testemunho em Memórias do Cárcere”, nos remete a um

conceito de testemunho que tão bem se aplica a obra Infância :

“Nem pura f icção, nem pura historiograf ia; testemunho” (BOSI, A.,

2008, p. 221).

Como discutimos no capítulo primeiro de nosso trabalho, de

acordo com os conceitos de Eliane Zagury (1982), a escrita de

testemunho, é a escrita do eu . Essa escrita se dá através de uma

narração em primeira pessoa que assume um protagonista

(criança, infante) de terceira pessoa que arrasta os verbos para a

primeira pessoa, de forma indireta l ivre. A lírica de Ramos, em

Infância , como já dissemos, bem diferente da lír ica da prosa

brasi leira, à época, pela secura de suas palavras, revelou -se pela

descontinuidade da memória, pelo desapego aos fatos históricos,

factuais e cronológicos. Ao contrário, mostrou -se, revelou-se ao

mundo, através da narração de um protagonista criança, o que

possibil itou ao Gracil iano “velho”, denunciar fatos guardados em

sua memória real viva, permeados de uma boa dose de f icção.

Assim, memória e f icção se unem objetivando um relato de

extraordinário valor estét ico, que é o escopo deste estudo,

Infância .

De acordo com o pensamento de Vânia Maria Resende, em

“A presença do menino na narrat iva brasi leira moderna”, é

importante a presença do narrador/protagonista criança, sem falar

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nos efeitos mágicos que a inclusão do tema infância traz às obras

literárias de nossa literatura moderna. Sendo assim, vejamos:

O modo de evocação da infância e de part ic ipação das personagens infantis, nos seus textos, levando -nos a constatar, na maioria deles, signif icados humanos e estét icos profundos, emergentes de um mundo metafórico, em que se cruzam símbolos da imaginação cr iadora e imagens de real idade infanti l – fonte mágica, vivi f icante, de que o criador pode t irar grades efeitos, real izando, de forma plena, a f icção da sua escr itura (RESENDE, 1988, p. 23).

Uma das nossas mais importantes observações é o fato de

que o protagonista percebe a realidade, tão bem mimetizada pelo

garoto e, extraordinariamente, metaforizada pelo adulto Ramos.

O valor l i terário de Infância está na habi l idade de Gracil iano Ramos em redimensionar as lembranças reais e individuais de forma que passam a ser exper iências do imaginário de todos nós. (PINHEIRO, 2005, p.14).

Nas palavras de Carpeaux (1977, p. 44): “é impossível

dist inguir no homem o que é inventado do que é recordado”,

quando ele se refere ao livro Infância .

Outro aspecto estudado em nosso capítulo primeiro foi o da

rememoração através do esquecimento, característ ica forte e

marcante dos relatos de Infância, proveniente da vivência de fatos

permeados por dores, injustiças, medos e horrores. Vemos, então,

que a preocupação de Graciliano, ao escrever relato de memórias,

foi a de revelar uma verdade ocorrida, portanto, que pertence ao

passado, mas lúcida e vívida estampada no presente , ou seja,

verdade tão recente quanto permitida pela memória.

Como não esquecer para poder relembrar de tantos horrores,

responsáveis por cicatrizes não somente em sua infância, mas em

toda sua vida? O texto produzido em Infância é, portanto, um

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exemplo perfeito dessa relação memória -esquecimento-escrita do

eu .

Para ilustrarmos essa união “l írica” entre memória,

esquecimento, medo e f icção, escolhemos uma passagem do

capítulo “um cinturão”:

Não consigo reproduzir toda a cena. Juntando vagas lembranças dela e fatos que se deram depois, imagino os berros do meu pai, a zanga terr ível, a minha tremura infel iz. Provavelmente fui sacudido. O assombro gelava-me o sangue, escancarava-me os olhos (RAMOS, 2011 , p. 35) .

Nesse trecho f ica bem claro o esforço do homem Graciliano

para “reassumir” sua alma infantil, tendo como efeito de seu

extraordinário esforço, os relatos de fatos cheios de delicadeza e

verossimilhança.

Não há, portanto, em Gracil iano, palavras mágicas,

“verdades fáceis” , muito menos soluções para todos os problemas

do mundo. Há, sim, em Infância , principalmente, a elevação dos

animas, dos bichos, à condição de gente, pois é assim que ele

consegue, com maestria, entender o mundo dos “grandes”, o

mundo dos que “falam”, pois bicho, assim como o infante, não fala ,

sendo assim, os bichos eram “gente”. Sem regras e livre das

armações da Modernidade, elevou os bichos à condição de

humanos, pois animal se fazia sentir, diante da impossibil idade de

fala e do constante convívio com pessoas “animalizadas”,

desprovidas de qualquer sentimento de sensibil idade e de

universalidade.

Relegado à condição de bicho “miúdo”, no olhar do homem

“grande”, Ramos se viu diante de uma realidade pavorosa que o

fez calar: “Hoje não posso ouvir uma pessoa falar alto. O coração

bate-me mais forte, desanima, como se fosse parar, a voz

emperra, a vista escurece, uma cólera doida agita coisas

adormecidas cá dentro” (RAMOS, 2011, p. 35).

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Foi com a ajuda dos seres “irracionais”, personif icados e

metaforizados inteligentemente em sua obra, que o senso de

responsabil idade e denúncia se impregnou em suas veias e o fez

testemunha de si próprio , elevando os animas à condição humana,

mostrando-nos, metaforicamente, que a geografia humana não

muda: somos animais, em busca do sentido de humanização, pois

somente na condição de “bichos”, animalizados, é que

sobreviremos nesse faz-de-conta, nessa brincadeira que se chama

: mundo “desordenado”.

O que restou ao “Velho Graça” senão a l inguagem, o

testemunho como forma de trazer o passado para o presente,

ambos velados pelas art imanhas do Modernismo? Saiu, então,

através do silêncio do pequeno “Graça”, um belo exem plo de

coragem, de busca por uma sociedade mais humanizada, em que a

linguagem é sua única propriedade, seu único meio de

sobrevivência, e que também precisa “sobreviver”, mas que

infelizmente é preciso ter a habilidade de saber expressá -la. Seu

esforço e persistência pela aquisição da leitura era também seu

esforço para entender o mundo “esfacelado” da modernidade, do

capital ismo perfeitamente metaforizado, retratado e “confessado”

nessa narrativa de memórias.

Sabemos que os fatos normais da vida não são

testemunhados, apenas acontecem e não viram matéria futura,

digna de serem narradas, de serem lidas pelos ouvidos que

somente ao silêncio escuta. O verdadeiro testemunho, sim, é

alimentado pelas exceções e transmitido a gerações como forma

de denúncia, de extermínio dos “horrores”, no silêncio das

palavras. Só é digno de testemunhar o que é exceção.

Eis, pois, a contribuição que o meu trabalho de pesquisa traz

para nossa academia: Infante não tem voz, portanto não narra,

assim como os bichos. O adulto Gracil iano narra dizendo, ele “diz”

com a história narrada, a partir do silêncio que emudece e ecoa

com os sapos, as aranhas, a cachorra Baleia. Todos , seres

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miúdos, cheios de verdade e pureza , parte das tramas, também

personagens, articulando o enredo.

Fica evidentemente claro que o legado que Infância deixa

para o mundo capitalista e moderno de 1945, foi decisivo para que

uma urgente mudança de “olhar” para os problemas da sociedade,

não somente se l imitasse ao Nordeste das secas intermitentes,

mas principalmente que gritasse/berrasse por uma sociedade mais

justa, mais humanizada, num mundo t ido “moderno”.

Os estudos feitos, portanto, ao longo de nossa experiência

com a obra de Gracil iano, não têm a pretensão de enxergar o não

dito pela vasta fortuna crít ica de sua obra. Muito menos de esgotar

as possibil idades de leituras que a obra nos apresenta. Ao

contrário, têm sim, o intuito de permitir ao leitor de Infância , ao

leitor de Graciliano, oportunidades e maneiras de leitura outras,

pois a narrat iva não morre, ela perdura e permite que futuras

gerações aprendam com as experiências dos mais “velhos”. Ela é

sim responsável pelo desenvolvimento do homem para que ele não

seja metaforizado com o “sapo cururu”, num tempo recheado de

tão pobres experiências.

Veio novamente a resposta, mas a necessidade de instruir-me acendia-se e apagava-se, faiscava-me no inter ior como um vaga-lume. Estranha loquacidade inut i l izava o silêncio obtuso que me haviam imposto. O animalzinho bisonho papagueava, e gargalhadas estrugiam na sala, abafando a quizíl ia de minha mãe. Essa potência baqueava (RAMOS, 2011, p. 44).

Por f im, vemos nesse trecho, acima transcrito, o retrato de

toda a obra ora estudada. Nele, temos exemplo da rememoração

pelo esquecimento e da oscilação viva entre eles (“veio novamente

a resposta”); o personagem elevando o bicho à condição de

homem e também se miniaturizando (“vagalume”, “animalzinho

bisonho”); o si lêncio como denúncia dos traumas e das imposições

da vida de menino (“inut i l izava o si lêncio obtuso que me havia

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imposto”); f iccionado numa loquacidade única ao “velho”

Gracil iano, numa riqueza extraordinária de detalhes, de maneira a

percebermos sua satisfação, desprezo e resistência a seus entes

queridos (“a quizíl ia de minha mãe abafada e baqueava ”), num tom

l ír ico e contagiante, o qual mostra seu domínio da situação

(“gargalhadas estrugiam da sala”).

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