UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO …...Tomando como referência Munanga (2003), o termo racismo...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE EDUCAÇÃO
CURSO DE PEDAGOGIA
EDUCAÇÃO E CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA: TRAÇOS DE EMPODERAMENTO DE PROFESSORAS/ES NEGRAS/OS DA EDUCAÇÃO BÁSICA DA CIDADE DE
NATAL/RN
LORENNA DO NASCIMENTO ROCHA
NATAL/RN
2018
LORENNA DO NASCIMENTO ROCHA
EDUCAÇÃO E CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA: TRAÇOS DE EMPODERAMENTO DE PROFESSORAS/ES NEGRAS/OS DA EDUCAÇÃO BÁSICA DA CIDADE DE
NATAL/RN
Monografia apresentada ao curso de Pedagogia
da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, como requisito parcial para obtenção do
grau de Pedagoga.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Débora Maria do
Nascimento.
NATAL/RN
2018
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial Moacyr de Góes - CE
Rocha, Lorenna do Nascimento.
EDUCAÇÃO E CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA: TRAÇOS DE EMPODERAMENTO
DE PROFESSORAS/ES NEGRAS/OS DA EDUCAÇÃO BÁSICA DA CIDADE DE NATAL/RN / Lorenna do Nascimento Rocha. - Natal, 2018.
78f.: il.
Monografia (graduação) - Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, Centro de Educação, Curso de Pedagogia. Natal, RN, 2018.
Orientadora: Drª Débora Maria do Nascimento.
1. Professoras/es negras/os - monografia. 2. Identidade
étnico-racial - monografia. 3. Identidade docente - monografia.
I. Nascimento, Débora Maria do. II. Título.
RN/UF/BS-CE CDU 37(=013)
Elaborado por TIAGO LINCKA DE SOUSA - CRB-15/498
LORENNA DO NASCIMENTO ROCHA
EDUCAÇÃO E CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA: TRAÇOS DE EMPODERAMENTO DE PROFESSORAS/ES NEGRAS/OS DA EDUCAÇÃO BÁSICA DA CIDADE DE
NATAL/RN
Monografia apresentada ao curso de Pedagogia
da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, como requisito parcial para obtenção do
grau de Pedagoga.
Aprovado em:
BANCA EXAMINADORA
Prof.ª Dr.ª Débora Maria do Nascimento (Orientadora)
Prof.ª Dr. João Maria Valença de Andrade (UFRN) Primeiro/a Examinador/a
Prof.ª Dr.ª Ana Maria Pereira Aires (CERES/UFRN) Segundo/a Examinador/a
NATAL/RN
2018
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus pelo dom da vida e pelo seu amor infinito.
Agradeço a minha mãe, meu maior exemplo. O meu muito obrigada por todo incentivo,
dedicação, proteção, orientação, pelas orações a meu favor e pela preocupação para
que eu estivesse sempre andando no caminho certo.
Aos colegas de classe, por toda afeição, carinho, pelas amizades conquistadas ao
longo desses quatro anos de vida acadêmica. Esta caminhada não seria a mesma
sem vocês.
A professora orientadora Débora Maria do Nascimento, que com muita paciência e
atenção, dedicou seu valioso tempo para me guiar em cada passo deste trabalho.
Obrigada pela paciência e pela imensa bagagem fornecida.
As professoras entrevistadas, pela disponibilidade e empenho em participar do
estudo.
Obrigada a todos que, mesmo não estando citados aqui, contribuíram para a
conclusão desta etapa e para a minha evolução como ser humano.
Minha terna gratidão a todos aqueles que colaboraram para que este estudo pudesse
ser concretizado.
“Sendo entendida como um processo
contínuo, construído pelos negros e negras
nos vários espaços - institucionais ou não -
nos quais circulam, podemos concluir que a
identidade negra também é construída
durante a trajetória escolar desses sujeitos e,
nesse caso, a escola tem a responsabilidade
social e educativa de compreendê-la na sua
complexidade, respeitá-la, assim como às
outras identidades construídas pelos
sujeitos que atuam no processo educativo
escolar, e lidar positivamente com a mesma”.
(Nilma Lino Gomes)
RESUMO
O estudo visa compreender de que modo se deu a construção das identidades étnico-raciais, bem como das identidades docentes das/os professoras/es negras/os pertencentes à educação básica, que hoje atuam na cidade de Natal – RN, tomando como referência as experiências educativas vivenciadas pelas/os mesmas/os ao longo da vida. A ausência do pertencimento étnico-racial por parte das/os docentes em questão se configurou como fator motivador desse estudo, tendo em vista que uma significativa parte do sistema educacional norte-rio-grandense é formado por professoras/es negras/os. Além disso, considerando os aspectos históricos que suscitaram a condição desigual em que o povo negro foi colocado em relação aos brancos no âmbito social como um todo e, em consequência, no espaço escolar, pressupõe-se que as experiências educativas apresentam fatores determinantes na constituição das identidades étnico-raciais e docentes. Nesse sentido, para melhor explicitar como acontece essa trajetória educacional e a fim de obter uma melhor compreensão a respeito da construção dessas identidades étnico-raciais, além de esclarecer como as mesmas se refletem na construção das identidades docentes pressupõe-se como questão norteadora para esse estudo: De que modo as experiências educativas vivenciadas por docentes negras/os influenciaram a formação das suas identidades étnico-raciais e das suas identidades docentes? Dessa forma, o estudo trata-se de uma pesquisa qualitativa de cunho descritivo que fará uso do método biográfico, o qual tornará possível conhecer as trajetórias educativas das/os docentes em questão e permitirá compreender como se deu a construção das respectivas identidades. Durante o estudo Hall (2011) e Dubar (2005) serviram como subsídio teórico central para a construção da discussão sobre a constituição das identidades, se destacando Hall (2001) na construção da argumentação em torno constituição da identidade étnica e Dubar (2005) da identidade docente, visto que o mesmo se aprofunda na concepção identitária profissional. Para tanto, através da pesquisa ficou perceptível que tanto a educação primária ofertada pelo núcleo familiar quanto a educação escolar contribuíram exponencialmente para a construção do empoderamento e enfrentamento ao preconceito.
Palavras-chave: Professoras/es negras/os. Identidade étnico-racial. Identidade
docente.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 9
2 AS EXPERIÊNCIAS EDUCATIVAS: VIVÊNCIAS DE DISCRIMINAÇÃO RACIAL E DE LUTA ................................................................................................................................ 16
2.1 DEFININDO AS EXPERIÊNCIAS EDUCATIVAS ....................................................... 16
2.2 A PRESENÇA NEGRA NA ESCOLA ......................................................................... 17
2.3 A INFLUÊNCIA DA ESCOLA NA CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DA POPULAÇÃO NEGRA ............................................................................................................................ 21
3 O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DAS/OS PROFESSORAS/ES NEGRAS/OS .................................................................................................................... 26
3.1 TEORIZANDO O CONCEITO DE IDENTIDADE ........................................................ 26
3.2 IDENTIDADE ÉTNICO-RACIAL ................................................................................. 30
3.3 IDENTIDADE DOCENTE ........................................................................................... 35
4 METODOLOGIA EM AÇÃO: O MÉTODO BIOGRÁFICO COMO ESTRATÉGIA PARA COMPREENSÃO DAS IDENTIDADES ............................................................................ 40
4.1 A ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA .......................................................... 40
4.2 O ROTEIRO COMO GUIA PARA CONSTRUÇÃO DOS RELATOS ORAIS ............... 43
4.3 PROFESSORAS NEGRAS: UM BREVE PERFIL DOS ENTREVISTADAS ............... 44
5 AS EXPERIÊNCIAS EDUCATIVAS DAS PROFESSORAS NEGRAS PERTENCENTES A EDUCAÇÃO BÁSICA DA CIDADE DE NATAL/RN ....................................................... 46
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 61
REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 65
APÊNDICE 1 .................................................................................................................... 68
ROTEIRO - GUIA PARA RELATOS ORAIS ..................................................................... 68
APÊNDICE 2 .................................................................................................................... 69
RELATO ORAL – PROFESSORA MARIA JOSÉ DE OLIVEIRA NUNES ......................... 69
APÊNDICE 3 .................................................................................................................... 72
RELATO ORAL – PROFESSORA CLAUDIA INGRID CAMPOS PAIVA MOREIRA ......... 72
APÊNDICE 4 .................................................................................................................... 77
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ............................................. 77
APÊNDICE 5 .................................................................................................................... 78
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ............................................. 78
9
1 INTRODUÇÃO
As condições históricas vivenciadas pelos negros, desde os primórdios da
colonização, mostram que é necessário considerar essa contextualização para melhor
compreendermos a dinâmica existencial do povo negro e em que circunstâncias a
conduta racista surgiu. Dessa forma, é importante destacar que a condição excludente
enfrentada por esse povo não se deu apenas no período em que esses vieram para o
Brasil. Assim, é válido ressaltar que os negros já eram escravizados no interior das
sociedades africanas, atuando como criados, soldados, concubinas, além de serem
utilizados como mercadorias de exportação para o deserto do Saara, mar Vermelho e
Oceano Índico, conforme Mattos (2016).
Em meados do século XV, a América foi conquistada e com isso surge a
necessidade de existência de mão de obra barata. Dessa maneira, o território africano
como bem afirma Munanga (1986, p. 8) “apareceu como reservatório humano
apropriado, com um mínimo de gastos e riscos”, surgindo desde então o tráfico de
escravos negros, o qual alavancou a concepção europeia de superioridade,
desconsiderando totalmente a história e a cultura do negro e o considerando um ser
primitivo e/ou inferior.
O período colonial foi, portanto, formado por dois universos opostos, o de
senhores brancos e negros ou indígenas escravizados, predominando a dominação
imposta por uma minoria europeia, a qual auto afirmava sua superioridade étnica e
cultural. Havia uma intensa necessidade de manter a dominação devido às diversas
vantagens econômicas e sociais, levando os dominadores a recorrerem a diversos
mecanismos de controle sobre o universo dominado. Com receio de perder a ordem
e o equilíbrio, os colonizadores mantinham o poder através de uma severa dominação,
utilizando-se de recursos coercitivos diretos e indiretos, recorrendo tanto a força bruta
quanto ao desprezo aos aspectos culturais do povo negro. Dessa maneira, fazia com
que o próprio negro passasse a ter uma concepção negativa de si mesmo,
incorporando ideias negativas sobre seus hábitos, costumes, religião e cultura como
um todo.
Além disso, havia a crença de que a presença negra impediria o progresso,
estimulada pelas teorias evolucionistas pregadas na Europa nesse período conforme
Valente (1998). Desse modo, o ideário negativo imposto ao negro passou a ser
sustentado pelas teorias raciais sob aprovação da ciência e a concepção racista foi
10
sendo legitimada a partir de produções intelectuais relacionadas à anatomia, os quais
expunham a interdependência entre as funções corporais e a conduta dos indivíduos,
relacionando aspectos físicos aos culturais.
[…] o racismo nasce quando faz-se intervir caracteres biológicos como justificativa de tal ou tal comportamento. É justamente, o estabelecimento da relação intrínseca entre caracteres biológicos e qualidades morais, psicológicas, intelectuais e culturais que desemboca na hierarquização das chamadas raças superiores e inferiores” (MUNANGA, 2003 p. 10).
Tomando como referência Munanga (2003), o termo racismo surgiu por volta
de 1920, caracterizando-se por uma ideologia que divide a humanidade em raças
hierarquizadas, estabelecendo relação entre as características físicas e demais
aspectos psicológicos, morais, culturais e intelectuais, atribuindo valores desiguais
aos sujeitos. Dessa forma, diversos estudos do século XIX relacionavam as diferenças
físicas das raças aos aspectos intelectuais e morais, como por exemplo, associando
o tamanho e/ou a forma da cabeça ao caráter ou capacidade intelectual do indivíduo,
reforçando o estado inferior imposto ao negro.
Ademais, o discurso europeu foi incorporado as produções intelectuais
brasileiras. A exemplo disso, Valente (1998) apresenta Nina Rodrigues (1862 - 1906),
fundador da antropologia científica no Brasil e o primeiro a realizar estudos
sistemáticos sobre os negros, como um dos intelectuais que sustentava a concepção
de inferioridade sobreposta ao povo negro. Dessa maneira, conforme Rodrigues
(1982, n.p. apud Valente 1998, p.33):
A raça negra no Brasil, por maiores que tenham sido incontáveis serviços a nossa civilização, por mais justificadas que sejam as simpatias de que a cercou o revoltante abuso da escravidão, por maiores que se revelem os generosos dos seus exageros dos seus turiferários, há de se constituir sempre um dos fatores da nossa inferioridade como povo.
Essas e outras inúmeras produções intelectuais produzidas entre os séculos
XIX e XX auxiliaram no processo de fortalecimento da da prática racista, as quais
tornaram a pigmentação da pele como um elemento distintivo de posição social,
reforçando o estigma associado a cor negra. Valente (1998, p. 37) propõe que “A
inferioridade, antes estabelecida a partir de costumes diferentes e da “condição
natural de escravos”, passou a ser definida a partir da cor”. Dessa forma, como ação
ideológica e política das elites e do Estado brasileiro surge a teoria do branqueamento
11
se impondo como a única maneira que o negro tinha de ascender socialmente, por
meio dessa buscavam alcançar uma posição igualitária em relação aos brancos a fim
de conferir-lhes maior segurança, prestígio, além de liberdade. Tal fato resultou em
um processo de imposição cultural, os quais forçadamente e/ou involuntariamente
aderiram aos aspectos da cultura branca, originando novas expressões culturais.
Tendo em vista tais acontecimentos, infere-se que essa trajetória histórica
deixou inúmeras marcas que até hoje são latentes na sociedade brasileira, a qual
exala severas atitudes discriminatórias de um passado cruel que evoca até hoje
preconceito. Nesse sentido, a atual situação do povo negro, apesar de diferente, ainda
possui muitas semelhanças com a vivida no período escravocrata. Embora, a
condição social da população negra tenha se modificado, continua a ser inferiorizada,
sendo possivelmente a situação atual um reflexo do passado.
Nessa perspectiva, é válido elencar que assim como aconteceu após a abolição
da escravidão, as taxas relacionadas ao desemprego e subemprego continuam
maiores entre os negros, além de geralmente conseguirem trabalhos com menos
prestígio social, residirem em locais mais humildes, serem detentores de menores
rendas e ainda serem menos escolarizados. Nesse caso, Valente (1998, p. 38)
assegura que “[...] a linha de cor passou a se confundir com a linha de classe. Dessa
maneira, a maioria dos negros passaram a ocupar condições inferiores na sociedade”.
No que se refere a escolarização, é perceptível que essas condições de
discriminação racial contemporâneas corroboram em uma exclusão social
rotineiramente revelada através das condutas racistas que permeiam profundamente
o universo educacional brasileiro e são claramente retratadas em inúmeros índices
educacionais e no cotidiano das escolas. Dessa forma, enquanto graduanda de
pedagogia e professora em formação, através dos estágios tanto remunerados quanto
obrigatórios, tive a oportunidade de conhecer os conflitos que permeiam a escola
pública e pude me deparar com aqueles que envolvem as relações étnico-raciais no
âmbito escolar.
Meu convívio com a sala de aula, professores, gestores, demais funcionários e
comunidade escolar como um todo, me fizeram perceber que apesar da escola pública
ser predominantemente formada pela população negra no que diz respeito tanto aos
usuários quanto aos profissionais em atuação, contraditoriamente, por vezes reproduz
o racismo através dos vários elementos que a compõe, seja a partir do material
didático utilizado, do currículo implantado, do despreparo dos profissionais em
12
atuação, da falta de pertencimento étnico-racial por parte dos profissionais e dos
educandos e entre tantos outros fatores.
Diante desses inúmeros aspectos, destaco aqui a negação do pertencimento
étnico-racial por parte dos docentes como principal fator motivador do estudo, visto
que o sistema educacional norte-rio-grandense é em grande parte formado por
docentes negras/os conforme assegura Teixeira (2006), a qual evidencia com base
nos dados do censo 2000 que o estado do Rio Grande do Norte possuí por volta de
46% de professoras/es negras/os, sendo 42,7% pardas/os e 3,4% pretas/os. Além
disso, sabendo-se que tais professores não estão em maioria na educação superior,
compreende-se que em maioria integram a educação básica respectiva ao estudo.
Nessa perspectiva, com base nas vivências inerentes ao cotidiano escolar
enquanto professora em formação, foi observado que apesar de haverem
professoras/es negras/os conscientes do seu pertencimento étnico-racial e
comprometidos com a necessidade de discutir ou trabalhar tais questões no interior
da escola a fim de valorizar e fortalecer a cultura negra, ainda há professoras/es
negras/os que demonstram não terem noção da importância do seu pertencimento
étnico-racial como forma de combate a conduta racista, já que no Brasil conforme
Valente (1998) a cor ainda se configura como um critério de seleção social. Esse
comportamento, por vezes, resulta em um escamoteamento do povo e da cultura
negra, se contrapondo ao fato da escola pública ser de forma preponderante ocupada
pela população negra e aos princípios designados pela Lei 10.639/2003– a qual põe
em pauta o ensino da história e cultura afro-brasileira.
Tais acontecimentos pressupõem que a construção identitária dessas/es
docentes negras/os se configura de forma fragilizada, tendo em vista que por vezes
prevalece a ausência de manifestações relacionadas ao pertencimento quanto ao
grupo social a que fazem parte e a luta necessária. Bem como, é possível inferir que
o posicionamento docente exercido reflete-se diretamente na composição identitária
das/os educandas/os negras/os - que ocupam em maioria as escolas públicas
brasileiras, já que ao serem desprovidos de práticas pedagógicas que atuam em
contraposição à prática racista e em conformidade ao pertencimento étnico-racial são
também desprovidos da criação de uma consciência étnica.
Compreende-se, portanto, que as experiências educativas se configuram como
fatores imprescindíveis a formação da identidade negra. Desde então, é possível
inferir que as experiências educativas podem gerar tanto relações de pertencimento
13
quanto de negação em relação a condição étnica, as quais refletem-se diretamente
na construção da identidade dos sujeitos negros e, consequentemente, na formação
identitária das/os docentes negras/os.
Nessa perspectiva, valendo-se dos fatos já expostos torna-se perceptível a
necessidade de conhecer as trajetórias educativas das/os professoras/es negras/os
que integram a profissão docente. Desse modo, busca-se compreender de que modo
se deu a construção das identidades étnico-raciais, bem como das identidades
docentes de professoras/es negras/os pertencentes à educação básica, que hoje
atuam na cidade de Natal – RN, tomando como referência de análise as experiências
educativas vivenciadas pelos mesmos ao longo da vida.
Diante disso, há uma situação problemática que pressupõe uma questão
norteadora para esse estudo: De que modo as experiências educativas vivenciadas
por docentes negras/os influenciaram a formação das suas identidades étnico-raciais
e das suas identidades docentes? Desse modo, objetiva-se compreender como as
experiências educativas vivenciadas por docentes negras/os integrantes da educação
básica da cidade de Natal-RN influenciaram a formação das suas identidades étnico-
raciais e docentes. Com isso, o estudo tem como propósito: 1) Explicitar como se deu
a trajetória educacional de professoras/es negras/os que hoje atuam como docentes
na educação básica na cidade de Natal, Rio Grande do Norte; 2) Identificar como as
experiências educativas vivenciadas pelas/os docentes negras/os influenciaram a
construção do seu posicionamento étnico-racial; 3) Perceber de que modo as
experiências educativas vivenciadas por esses docentes influenciam em suas
práticas.
Ademais, essa pesquisa torna-se importante pois tem o intuito de fomentar
reflexões sobre a condição em que as/os docentes negras/os ocupam ao longo da
sua trajetória acadêmica e na referida profissão, obtendo uma melhor compreensão a
respeito da construção das identidades étnico-racial e docente. Bem como, contribuirá
para o enfrentamento da discriminação racial, já que o conhecimento sobre como as
desigualdades raciais se produzem é condição necessária para que elas possam ser
enfrentadas.
Quanto a metodologia, será utilizado o método biográfico, o qual permitirá
conhecer as trajetórias educativas das/os professoras/es negras/os em questão e
compreender como se deu a formação das suas identidades, abarcando tanto a
dimensão étnica quanto profissional. Bem como, considerando a condição excludente
14
em que a população negra é sujeitada, faz-se necessário evidenciar os discursos dos
mesmos a fim de atribuir importância a esse grupo social.
Para tanto, considerando esse cenário já existem inúmeros estudos que
remontam a importância dessa discussão entre o âmbito educacional e as relações
étnico-raciais, os quais colocam em relevância os mecanismos de exclusão instituídos
para com a população negra a partir de elementos que permeiam o âmbito
educacional brasileiro e põe em pauta as relações traçadas entre o mesmo e as
questões étnico-raciais, se propondo a investigar, esclarecer ou propor soluções para
as problemáticas identificadas.
Diante disso, temos o estudo proposto por Ricardo Oriá (1996), que trata da
representação do negro na historiografia didática, o qual reflete sobre como tal
condição influencia a composição identitária dos sujeitos negros. Bem como, Ana
Célia da Silva (2001) reflete em seu estudo sobre a discriminação evidente nos livros
didáticos para com esses sujeitos.
No que diz respeito a identidade negra, Nilma Lino Gomes (2002) discute a
relação entre a educação e a identidade negra, abordando as particularidades e
articulações das mesmas como processos históricos, sociais e culturais,
estabelecendo uma relação com os educadores da educação básica e o ambiente
escolar. Ainda no que se refere a identidade étnica, Maria Conceição dos Reis (2013)
traz contribuições através do seu trabalho intitulado “Educação, identidade e história
de vida de pessoas negras doutoras no Brasil”, se propondo a investigar como se deu
o processo de construção das identidades de pessoas negras doutoras.
Em relação a profissão docente, Iolanda de Oliveira, Maria Lúcia Rodrigues
Muller e Moema de Poli Teixeira (2006) buscaram através da pesquisa intitulada como
“Cor e Magistério” averiguar se a discriminação racial na atividade docente é projetada
na seleção e na carreira dos profissionais da educação, observando se há democracia
racial na atividade docente com base nos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística.
Além disso, a Universidade Federal do Rio Grande do Norte apresenta por meio
do Curso de Pedagogia como contribuição à pesquisa sobre a educação primária de
estudantes negros durante os anos de 1923 a 1928, pertencente à base de pesquisa
de Estudos Históricos Educacionais coordenada pela professora Dr.ª Marta Maria de
Araújo ligada ao Departamento de Fundamentos e Políticas da Educação.
15
Na sistematização escrita da pesquisa, inicialmente, apresentou-se uma breve
explanação em relação as experiências educativas que o estudo pretender abarcar,
em seguida foi apresentada uma pequena trajetória respectiva a presença negra na
escola, além de evidenciar como o âmbito escolar influencia a constituição da
identidade negra. O capítulo seguinte versa sobre a identidade, previamente
conceituando-a e depois enfatizando as dimensões étnico-raciais e profissionais
respectivas as/os docentes negra/os ressaltados no estudo. Para tanto, o caminho
percorrido através da metodologia foi abarcado seguidamente, com o objetivo de
definir e caracterizar o método abordado durante o estudo, bem como justificou-se sua
importância e a forma que será utilizado. Por fim, foram apresentadas as experiências
educativas das/os professoras/es negras/os com base nos depoimentos captados e
em seguida foram tecidas as devidas reflexões sobre a constituição identitária étnica
e docente.
16
2 AS EXPERIÊNCIAS EDUCATIVAS: VIVÊNCIAS DE DISCRIMINAÇÃO RACIAL E
DE LUTA
Para compreender como se dá o processo de construção das identidades
étnicas e docentes das/os professoras/es negras/os foi necessário que inicialmente
fossem definidas as experiências educativas a serem abarcadas pelo estudo, as quais
estão relacionadas as experiências desenvolvidas no âmbito escolar e alicerçadas nos
pressupostos teóricos de Gadotti (2005), Souza (2009), Gomes (2002) e Silva Jr.
(2002). Em seguida, foi tecida uma discussão em torno da presença dos sujeitos
negros na escola com base nos acontecimentos históricos que demarcam o
desenvolvimento da escola pública brasileira, subsidiada pelas abordagens de Silva;
Araújo (2005), Araújo (2005), Romanelli (2002), Cruz (2005), Fernandes (1978) e
Cavalleiro (2005). Bem como, seguidamente foram elencados elementos e/ou
acontecimentos que evidenciam a influência da escola no processo de construção
identitária dos sujeitos negros com base nas discussões teóricas de Oriá (1996),
Rocha; Trindade (2006), Valente (1998), Silva (2010), Sant’Ana (2005) e Munanga
(1986).
2.1 DEFININDO AS EXPERIÊNCIAS EDUCATIVAS
Com base no conceito de educação disseminado por Gadotti (2005) subsidiado
pela Convenção dos Direitos da Infância das Nações Unidas, a educação ultrapassa
os limites do ensino escolar denominado como formal, compreendendo também as
experiências vividas e processos não-formais de aprendizagem. Entretanto, apesar
da educação superar os limites dos espaços escolares, ao longo da sua história a
escola se consolidou como o espaço central da educação. Souza (2009) pressupõe
que essa predominância da escola surge a partir do século XIX com o teórico
Durkheim, o qual ao tratar da educação utilizava o termo escola para defini-la. Dessa
maneira, associava a escola diretamente ao conceito de educação, promovendo a
ideia de que essa seria essencialmente a responsável pela educação dos indivíduos,
produzindo uma espécie de “imperialismo da escola sobre a educação” (p. 41).
Ainda no que se refere ao lugar central da escola, Silva Jr. (2002, p. 14) afirma
que a escola é “[...] um preditor de destinos profissionais, ocupacionais e de trajetórias
de vida, segundo a raça-cor do alunado, repercutindo sobre sua vida social e
17
intrapsíquica, podendo ser um desencadeador ou um entrave ao seu pleno
desenvolvimento”. Evidencia, portanto, a significância da escola nas trajetórias dos
sujeitos, propondo que pode ser benéfica ou prejudicial ao desenvolvimento dos
indivíduos que a compõem, se revelando de diferentes formas de acordo com a
condição étnico-racial desses sujeitos. Ou seja, desconsidera que a escola ofereça
condições igualitária a todos, evidenciando que essa traz reflexos internos e externos
diferentes aos sujeitos que a frequentam, variando segundo a sua “raça” e/ou cor.
Além disso, de acordo com Gomes (2002) a escola é um dos espaços que
interferem diretamente no processo de construção identitária dos sujeitos em geral e,
em especial, na construção da identidade negra. Dessa maneira, o espaço escolar
ocupa um lugar privilegiado na vida dos indivíduos, tendo em vista que produz
experiências que deixam marcas profundas naqueles que conseguem ter acesso à
educação escolar, interferindo nas relações estabelecidas entre os educandos e em
como esses enxergam a si mesmos e aos demais no cotidiano escolar.
A escola é vista, aqui, como um espaço em que aprendemos e compartilhamos não só conteúdos e saberes escolares, mas, também, valores, crenças e hábitos, assim como preconceitos raciais, de gênero, de classe e de idade. [...] O olhar lançado sobre o negro e sua cultura, no interior da escola, tanto pode valorizar identidades e diferenças quanto pode estigmatizá-las, discriminá-las, segregá-las e até mesmo negá-las (GOMES, 2002, p. 40).
Em suma, se tratando das experiências educativas a serem compreendidas no
estudo, em conformidade com as declarações de Gomes (2002) e Silva Jr. (2002),
pretende-se aqui relacioná-las exclusivamente a escola, visto que o âmbito escolar
colabora de forma significativa para o processo de construção das identidades étnico-
raciais dos sujeitos e, consequentemente, dos docentes em questão.
2.2 A PRESENÇA NEGRA NA ESCOLA
Inicialmente, é relevante salientar que a burguesia do século XIX enxergava a
miscigenação como o caminho para a extinção do povo negro, havendo, portanto,
uma crença de que o Brasil viria a ser um país predominantemente branco, seguindo
o padrão europeu de sociedade. Nesse sentido, a sociedade brasileira, desde sempre,
desconsiderou a condição étnico-racial do seu povo, negando a predominância do
povo negro em nosso país e suas contribuições para a construção do mesmo.
18
Diante disso, em se tratando da presença negra na escola, desde o princípio
da constituição da América Portuguesa várias instituições contribuíram para a
exclusão do povo negro e consequente disseminação do racismo, incluindo a
instituição escolar. Desse modo, a escola foi organizada para homens brancos, tendo
em vista que desde a concepção inicial da escola brasileira a mesma era privilégio de
poucos, destinando-se a burguesia.
Para tanto, Silva; Araújo (2005) revelam que durante o sistema escravocrata a
população negra era impedida de frequentar a escola formal, já que a escola se
voltava apenas aos cidadãos brasileiros conforme a lei, impedindo o acesso da
população negra que era em maioria de origem africana. Além disso, em 1854 uma
reforma instituiu a obrigatoriedade da existência de uma escola primária voltada para
crianças com idade superior a sete anos de idade, além da gratuidade das escolas
primárias e secundárias da corte, as quais foram instituídas com a instalação da Coroa
Portuguesa no Brasil. Todavia, nas escolas públicas não seriam aceitas crianças com
doenças contagiosas e escravos, bem como não havia instrução direcionada aos
adultos. Tal reforma favorecia, portanto, a exclusão das crianças menores, adultos e
negros escravizados.
Contudo, supõe-se que com a reforma ocorrida em 1854 alguns negros
puderam beneficiar-se da educação formal, considerando que a mesma não impedia
que escravos libertos estudassem nas escolas primárias, desde que fossem
provenientes de famílias detentoras de posses, se limitando a indivíduos que
possuíam alguma espécie de apadrinhamento e/ou proteção, ainda segundo Silva;
Araújo (2005). Além disso, há uma outra hipótese, a de que essa população aprendia
por meio da observação das aulas ministradas as sinhás e através das instruções
religiosas proferidas pelos padres. Bem como, havia o interesse dos senhores em
lucrar com escravos alfabetizados, promovendo a contratação de professores
particulares para ensiná-los, propiciando algum aprendizado mesmo que apenas
embrionário.
Diante disso, é possível perceber que nesse período apenas uma pequena
parcela da população negra tinha acesso a algum tipo de instrução, condição
perpetuada após a abolição da escravatura, já que durante o regime republicano a
escolarização ainda permanecia como questão motivadora de disputa entre as
oligarquias da época presentes no poder. Dessa maneira, estava reservado as
escolas públicas o papel de formar os filhos dessas famílias, dando continuidade à
19
essa condição hegemônica, enquanto os trabalhadores brancos direcionavam seus
filhos para as escolas de trabalhadores ou particulares. Ademais, Silva; Araújo (2005)
argumentam que apesar das inúmeras reformas ocorridas entre os séculos XIX e XX
com a finalidade de regularizar o ensino público brasileiro, é evidente assegurar que
nunca houve o propósito de inserir a população negra no processo de escolarização:
[...] deduz-se que a população negra teve presença sistematicamente negada na escola: a universalização ao acesso e a gratuidade escolar legitimaram uma “aparente” democratização, porém na realidade, negaram condições objetivas e materiais que facultassem aos negros recém-egressos do cativeiro e seus descendentes um projeto educacional, seja este universal ou específico (SILVA; ARAÚJO, 2005, p. 71).
Nesse sentido, apesar de haver um aumento das escolas públicas e
particulares, as quais alcançavam os bairros distantes e aceitavam populações de
nacionalidade distintas, os negros não tinham acesso, seja devido a frágil condição
econômica das famílias negras ou a própria discriminação racial impregnada nas
esferas educacionais.
Além disso, Romanelli (2002) assegura que a partir de 1891 a constituição
deflagrou um sistema de ensino formado pelas escolas secundárias acadêmicas e
escolas superiores, bem como por escolas primárias e profissionais. As duas
primeiras predominadas pela classe dominante, enquanto que as seguintes pelos
demais habitantes. Dessa forma, pressupõe-se que as oportunidades concretas de
educação surgiram com o desenvolvimento industrial ocorrido no fim do século XIX
através do ensino popular e profissionalizante. Conforme Silva; Araújo (2005, p. 72):
O ensino popular é estabelecido mediante a instalação dos grupos escolares urbanos, que ofereciam ensino primário de melhor qualidade, e das escolas isoladas, com cursos diversos e noturnos instalados em bairros operários e fazendas [...]. Essas escolas propiciaram a escolarização profissional e superior de uma pequena parcela da população negra, não obstante a existência de uma conspiração de circunstâncias sociais que mantinham o negro fora da escola. Pretos e pardos que obtiveram sucesso nesta direção formaram uma nova classe social independente e intelectualizada.
Nessa perspectiva, essa classe independente e intelectualizada formada
configurou-se como uma classe de resistência que promulgaria as reinvindicações
primárias após a abolição, promovendo a construção do movimento negro. Diante
disso, Cruz (2005) afirma que havia um esforço por parte da população negra em se
apropriar dos saberes socialmente requeridos devido a “necessidade de ser liberto ou
20
de usufruir da cidadania quando livre, tanto durante o período do Império, quanto nos
primeiros anos da República” (p. 27), buscando adentrar as escolas públicas ou
particulares, adquirir instrução de pessoas escolarizadas ou promovendo a criação de
escolas pela própria população negra.
Cruz (2005) revela ainda, que alguns trabalhos acadêmicos evidenciam a
existência de vários espaços de formação dedicados a população negra: aulas
públicas oferecidas pela irmandade de São Benedito até o ano de 1821 em São Luís
do Maranhão; a escola do Quilombo Fazenda Lagoa-Amarela por negro Cosme,
situado no Maranhão, um dos líderes da Guerra dos Balaios por volta de 1838; Colégio
São Benedito, criado em Campinas no ano de 1902, com o intuito de alfabetizar os
filhos dos homens de cor da cidade; Escola Primária no Clube Negro Flor de Maio, em
São Paulo; Escola Ferroviária de Santa Maria, situada no Rio Grande do Sul; além de
cursos de alfabetização, curso primário regular e curso preparatório para o ginásio,
criados pela Frente Negra Brasileira (FNB).
É válido destacar, que a Frente Negra Brasileira foi declarada como o primeiro
movimento de massa existente no período pós-abolição, cujo objetivo era inserir o
negro no âmbito da política, segundo Fernandes (1978). Com isso, os membros da
FNB criaram salas com o propósito de alfabetizar trabalhadores negros em variados
locais, conforme Cavalleiro (2006). Destaca ainda, as experiências relacionadas ao
Movimento Unificado ocorrido a partir da década de 1970, o qual promoveu conquistas
impulsionando uma política antirracista durante a década de 1980 e 1990 que
concedeu benefícios tanto no setor público quanto privado. Assim sendo, Cavalleiro
(2006, p. 19) assegura que “[...] no percurso trilhado pelo Movimento Negro Brasileiro,
a educação sempre foi tratada como instrumento de grande valia para a promoção
das demandas da população negra e o combate às desigualdades sociais e raciais”.
Logo, é possível garantir que apesar das relações desiguais constituídas na sociedade
brasileira e, especialmente no âmbito escolar, a população negra através das suas
numerosas lutas conseguiu angariar espaço no sistema educacional brasileiro. Nesse
sentido, Cruz (2005, p. 29) afirma:
No que se refere propriamente à escolarização dos negros, segundo os modelos oficiais, percebe-se que eles sempre estiveram em contraponto a afirmações que alegam sua incapacidade para a vivência bem-sucedida de experiências escolares e sociais. Tal fato pode ser comprovado pela ascensão de uma intelectualidade negra desde o período republicano que, via domínio da escrita, atingiu espaços sociais dos quais os brancos pareciam detentores absolutos.
21
Em vista disso, é perceptível que o Movimento Negro sempre esteve atrelado
a busca pelos direitos relacionados à educação, bem como em busca de uma
sociedade democrática, capaz de promover condições sociais justas e igualitárias a
todos os seus membros. Dessa forma, visa suprir esse quadro de intensa
desigualdade entre os grupos étnico-raciais, fomentado por um passado de intensa
marginalização conferida a população negra.
2.3 A INFLUÊNCIA DA ESCOLA NA CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DA
POPULAÇÃO NEGRA
O desenvolvimento do sistema público de ensino brasileiro aconteceu de
maneira simultânea ao processo de construção da identidade nacional brasileira,
desconsiderando outros grupos sociais como a população negra, tendo caráter
homogeneizador. Dessa maneira, Oriá (1996) revela que a discriminação vivida pela
população negra e mestiça em nosso país reflete-se diretamente no cotidiano das
escolas brasileiras, sendo essas responsáveis pela permanente disseminação do
preconceito racial, “perpetuando valores e conceitos preconcebidos acerca do negro”
(p. 156) na história e cultura brasileira. Em vista disso, a escola se configura como um
espaço de atitudes racistas, apresentando aspectos que difundem a discriminação
racial ao invés de combatê-la, através de elementos como o currículo, o livro didático
e a prática pedagógica dos professores.
Desde então, o educando negro não se reconhece na escola, já que essa
transmite através das suas práxis uma versão “embranquecida” da história, omitindo
a importância do povo negro na construção do nosso país, conferindo importância
somente a personalidades brancas, excluindo a cultura afro em detrimento da cultura
europeia, além de por vezes silenciar-se diante de atitudes discriminatórias para com
os educandos negros. Dessa maneira, Rocha; Trindade (2006, p. 58) afirmam “Não
nascemos racistas, mas nos tornamos racistas devido a um histórico processo de
negação da identidade e de “coisificação” dos povos africanos”. Há, portanto, uma
naturalização do racismo que precisa ser superada na escola, a qual muitas vezes é
reforçada mediante o despreparo dos professores em lidar com tal situação, como
assegura Valente (1998, p. 52):
22
A estrutura escolar não está preparada para lidar com esse tipo de problema. Há, por exemplo, muitas professoras que presenciam cenas em que alunos negros são rejeitados e discriminados pelos colegas brancos e não tomam nenhuma providência. E tipos de comportamento como esse vão sendo cada vez mais reforçados, passando a ser aceitos como naturais. O que não é visto ou encarado como errado, passa a ser considerado correto.
Assim, a escola pode definir-se como um dos elementos principais que
subsidiam o processo de construção social, o qual não deve ser um instrumento de
disseminação do racismo, atuando no sentido de superar tal condição. Nesse sentido,
é notória a extrema necessidade de existência de professores que propunham uma
visão emancipatória, ao passo que, a escola promova a cidadania, sendo a propulsora
de uma sociedade democrática e plural. Infere-se, portanto, que os professores
negros ao construírem suas identidades étnico-raciais e ao tecerem relações de
pertencimento, contribuem, em maioria, para a quebra desse silenciamento da
população negra, rompendo com essa visão homogeneizadora.
Ainda quanto a prática docente, conforme Rocha; Trindade (2006, p. 57) “O
trabalho docente pode, então, orientar-se para além das disciplinas constantes do
currículo do curso, mas também na exposição e discussão de questões éticas,
políticas, econômicas e sociais”. Bem como, Oliveira (2003) evidencia que os
docentes podem criar os currículos, relacionando aspectos formais de acordo com as
condições existentes, os quais podem se conectar aos saberes e circunstâncias dos
alunos. Dessa forma, tais disciplinas e/ou conteúdos podem ir ganhando significância
para o alunado aos serem trabalhados de forma a considerar o contexto social no qual
o mesmo está inserido.
Dessa maneira, é válido ressaltar que o currículo atribuído a educação formal
ainda atua a fim de suprimir a população negra, havendo, portanto, uma carência de
conteúdos que apontem a importância da população negra na construção da
identidade brasileira. Ao longo dos anos os temas e acontecimentos relacionados a
historicidade do povo negro foram forjados e/ou excluídos das abordagens
educacionais, atribuindo desprezo a historicidade de tal povo, estando sua história
sempre associada aos processos de dominação. Assim, Oriá (1996, p. 159) evidencia
que “Temas como cotidiano, mentalidades coletivas, imaginário, cultura material,
representações sociais e processos de dominação e resistência do negro à sua
condição escravocrata não estão presentes na maioria dos didáticos [...]”.
23
Desse modo, Silva (2010) afirma que o currículo se configura como um produtor
de identidades, gerando significações e sentidos, já que a partir do mesmo constituem-
se os saberes que ao serem articulados e/ou trabalhados constroem sujeitos e
estabelecem a posição a ser ocupada por esses. Nesse sentido, a construção e/ou
reconstrução das identidades étnico-raciais possibilitam a desconstrução da visão
hegemônica disseminada pelo currículo e, por conseguinte, pela escola.
No que concerne ao livro didático, conforme Sant’Ana (2005) uma pesquisa
sobre o preconceito racial na escola realizada em 1988 por Vera Moreira Figueira -
pesquisadora do Arquivo Nacional, alegava que havia sido detectado nas suas
ilustrações que os negros estavam sempre representados em condição social inferior
aos brancos, geralmente estereotipados em seus traços físicos e até animalizados,
além de não existirem ilustrações de famílias negras. Bem como, os textos induziam
as crianças a pensarem que os indivíduos brancos eram mais bonitos e inteligentes e
ao tratar de índios e negros, os mesmos eram mencionados no passado como se não
mais existissem.
Nesse sentido, Oriá (1996) revela que o livro didático é um dos instrumentos
educacionais que perpetuam preconceitos, estereótipos e visões deturpadas em
relação ao negro, conforme a seguir:
[...] a figura do negro quase nunca aparece, e quando aparece, é sempre representado em posições subalternas, tais como, a de empregado doméstico, servente, motorista, etc. [...] O negro é representado como escravo, a preta velha contadora de histórias, a ama-de-leite, a mucama, etc. (ORIÁ, 1996, p. 160).
Desse modo, argumenta que desde os primeiros anos escolares há uma
evidente influência negativa em relação ao povo negro, a qual comumente gera na
criança negra um sentimento de inferiorização e vergonha dos seus antepassados.
Diante disso, a criança tende a passar por um processo de negação da identidade,
por vezes a desprezando e não a assumindo.
Valendo-se de tais fatos, é perceptível que chegamos ao século XXI ainda
impregnados pela imagem desfavorável sugerida ao negro no século XV, definidos
como selvagens, sinônimos de imoralidade, corrupção, preguiça e feiura como
descritos na produção científica da época, como bem afirma Munanga (1986). Desse
modo, a ideologia do branqueamento é reforçada, bem como o racismo, resultando
na negação da cultura negra e, inclusive, motivando os negros a se afastarem das
24
suas próprias origens e a renunciar a sua própria identidade negra. Assim, a ausência
de referências históricas e culturais africanas, além da perpetuação dos padrões
eurocêntricos e ocidentais promovem a negação e impedem a construção dessa
identidade étnico-racial.
Todavia, há um fortalecimento atual do movimento negro, o qual visa assegurar
a criação de uma consciência política e democrática através de inúmeras
reivindicações antirracistas, necessário a constante e crescente demanda de práticas
racistas ainda presentes na sociedade contemporânea. Além disso, devido a tal
condição situa-se o movimento negro em defesa de uma igualdade racial,
desenvolvendo ações que expõem e denunciam a condição desfavorável de vida
atribuída a população negra e, em especial, relacionadas ao acesso e permanência
dos mesmos no âmbito educacional brasileiro. Essas ações impulsionam o Estado a
constituir políticas públicas capazes de combater as desigualdades sociais pertinentes
ao sistema educacional brasileiro.
Nessa perspectiva, através da instituição da Lei nº 10.639/2003, hoje
substituída pela Lei nº 11.645/08, o acesso aos conteúdos de natureza étnico-racial
passou a se constituir como obrigatório nos estabelecimentos de ensino fundamental
e médio, tanto oficiais quanto particulares, alterando a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional – Lei nº 9.394/1996. Dessa forma, tornou obrigatório o ensino de
História e Cultura Afro Brasileira e passou a incluir como conteúdo programático: “o
estudo da História da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura
negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional resgatando a
contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à
História do Brasil” Brasil (2003, Art. 1º). Desde então, a obrigatoriedade do ensino de
História e Cultura Afro Brasileira no currículo oficial da rede de ensino colocou em
pauta a relevância dessa temática, bem como evidencia não só a importância de
reconhecer a contribuição desse povo para formação da sociedade brasileira, como
também de perceber as condições sociais excludentes em que eles foram e,
consideravelmente, ainda são submetidos.
É sabido, portanto, que devemos estar abertos ao diálogo e a quebra de
barreiras a fim de romper com essa prática racista que se alastra nas escolas
brasileiras. É necessário promover à efetivação “[...] de uma cultura escolar cotidiana
de reconhecimento dos valores civilizatórios africanos como possibilidade pedagógica
na construção dos conhecimentos” (Rocha; Trindade, 2006, p. 56), promovendo
25
através do espaço escolar total apoio a consolidação da diversidade e, mais do que
isso, permitindo que a própria escola se situe como um modelo vivo de diversidade.
26
3 O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DAS/OS PROFESSORAS/ES
NEGRAS/OS
Considerando que o estudo se propõe a compreender como se deu a
construção das identidades étnicas e docentes das/os professoras/es negras/os da
educação básica e como isso se reflete em suas práticas, cabe aqui evidenciar no que
se refere as concepções identitárias a serem abarcadas durante o estudo, que devido
aos objetivos a que se pretende alcançar se coloca em relevância salientar que as
dimensões pessoais e/ou individuais, sociais e profissionais de identidade serão
contempladas durante o estudo e elucidadas com base nos pressupostos teóricos
estabelecidos por Hall (2011), Dubar (2005), Munanga (1996), Souza (1983), Santos
(2009), Gomes (2002/2005), Novaes (1993), Pimenta (1996) e Nünes; Ramalho
(2005).
3.1 TEORIZANDO O CONCEITO DE IDENTIDADE
A identidade se configura como um complexo campo de estudo pelas variadas
abordagens científicas, que ultimamente vem sendo amplamente discutido e
questionado pelas teorias sociais. Para tanto, como assegura Hall (2011, p. 8) “As
tendências são demasiadamente recentes e ambíguas. O próprio conceito com o qual
estamos lidando, “identidade”, é demasiadamente complexo, muito pouco
desenvolvido e muito pouco compreendido na ciência social contemporânea para ser
definitivamente posto à prova”. Nesse sentido, compreende-se que a identidade
possui variados sentidos e concepções, os quais vem sendo constituídos por diversas
áreas como a antropologia, a psicologia, a sociologia e a educação, atuando em
conformidade com as dimensões pessoais e/ou individuais dos sujeitos, bem como
sociais e profissionais dos mesmos.
Hall (2011) alega que a identidade é composta ao longo do tempo de maneira
inconsciente, afirmando que “A identidade surge não tanto da plenitude da identidade
que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é
“preenchida” a partir do nosso exterior, pelas formas através das quais nós
imaginamos ser vistos por outros” (p. 39). Revela que os indivíduos perpetuam em
seu imaginário a concepção ilusória de existência de uma unidade, permanecendo em
constante busca pela integralidade identitária.
27
Assim, a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre “em processo”, sempre sendo formada (HALL, 2011, p. 39).
Para além disso, Hall (2011) propõe que os conceitos de identidade
constituídos tanto no iluminismo quanto na modernidade já não correspondem mais
as condições contemporâneas, visto que ambos disseminavam a existência de uma
identidade estável. Há, portanto, um declínio das antigas definições de identidade, já
que inicialmente a identidade era tomada como unificada e individual enquanto na
modernidade havia um sujeito sociológico, sendo formada através das relações com
outros sujeitos, ou seja, a partir da interação entre o “eu” e a sociedade, como bem
afirma Hall (2011).
Nesse sentido, há uma nova concepção identitária, a qual pressupõe que as
identidades têm passado por um processo de fragmentação devido à globalização.
Diante disso, Hall (2011, p.12) assegura que “As sociedades modernas são, portanto,
por definição, sociedades de mudança constante, rápida e permanente. Essa é a
principal distinção entre as sociedades tradicionais e as sociedades modernas”.
Estabelece que há uma crise de identidade fruto dos processos de mudança da
sociedade moderna que desestabilizam os sujeitos, havendo uma modificação das
identidades pessoais.
Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que no passado, nos tinham fornecidos sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados (HALL, 2011, p. 9).
Dessa maneira, considera que contemporaneamente o sujeito dispõe de várias
identidades, por vezes contraditórias, as quais como resultado das mudanças
estruturais e institucionais estão entrando em colapso. Bem como, o processo de
identificação tornou-se cada vez mais variável e temporário, formando um sujeito pós-
moderno sem uma identidade permanente e que passa a ser transformada
continuamente, haja vista a intensa multiplicidade das representações culturais que
nos cercam. Hall (2011) ainda propõe que dentre os vários aspectos que contribuíram
para a construção desse sujeito pós-moderno, cuja a identidade constitui-se
28
fragmentada, destaca-se o movimento feminista, o qual oportunizou que uma nova
identidade de gênero beneficiasse não só as mulheres, bem como outras minorias
que buscam por uma identidade ou reconhecimento.
Ademais, Hall (2011) evidencia que a instituição de uma cultura nacional se
definiu como um mecanismo inerente a modernidade e propulsor das identidades
nacionais, centradas e completas, as quais estão na pós-modernidade sendo
deslocadas devido ao processo de globalização. Nessa perspectiva, as culturas
nacionais são compostas de símbolos e representações, os quais constroem sentidos
que influenciam e organizam tanto as ações dos sujeitos quanto a percepção que os
mesmos possuem de si mesmos. As culturas nacionais, portanto, constroem sentidos
sobre a nação, com os quais os indivíduos podem se identificar resultando na
construção das identidades.
Ainda no que concerne ao conceito de identidade, infere-se que essa não se
constitui de forma isolada. Desse modo, pressupõe-se que a identidade se configura
a partir de processos de interações estabelecidos entre os sujeitos, os quais
promovem uma espécie de relação dialógica que coloca em confronto a perspectiva
do “eu” em relação a si mesmo com a visão do outro em relação ao suposto “eu”.
Dessa maneira, Dubar (2005, p. XXV) propõe:
[...] a identidade humana não é dada, de uma vez por todas, no nascimento: ela é construída na infância e, a partir de então, deve ser reconstruída no decorrer da vida. O indivíduo jamais a constrói sozinho: ele depende tanto dos juízos dos outros quanto de suas próprias orientações e autodefinições. A identidade é produto das sucessivas socializações.
Assim, assegura que a socialização se trata do mecanismo responsável por
construir, desconstruir e reconstruir as identidades ligadas a variados segmentos de
atividades que os indivíduos desenvolvem ao longo da vida e dos quais poderá vir a
“tornar-se ator” (Dubar, 2005, p. XVII). Em concordância com as teorias construtivistas
de socialização se nega a reduzir os atores sociais a um grupo preestabelecido, seja
socioeconômico ou sociocultural, bem como por meio de uma combinação entre
ambos, já que a questão central deve ser a maneira como esses atores se identificam
com os demais.
Além disso, Dubar (2005) supõe que as identidades individuais e coletivas se
fundem formando a identidade social, propondo que a identidade social se define por
meio de uma vinculação entre duas transações, uma “interna ao indivíduo e uma
29
transação externa entre o indivíduo e as instituições com as quais ele interage” (p.
133). Afirma que é por meio dessas transações que a identidade pode ser construída
e reconstruída. Dessa forma, estabelece uma relação entre a esfera interna do sujeito
e externa ao sujeito, por meio dos processos de socialização constituídos durante a
vida. A identidade, portanto, se constitui tramitando de maneira contínua entre a
percepção interior e exterior dos indivíduos – a partir da autoimagem e imagem alheia
formuladas – estando ancorada a um constante deslocamento.
Destaca ainda, que há uma dualidade na identidade determinada pela
identidade para si e identidade para o outro, as quais se constituem, respectivamente,
como atos de pertencimento e atos de atribuição, ambas definidas como inseparáveis
e problemáticas. As define como inseparáveis devido a “identidade para si” ser
dependente do outro e do seu reconhecimento, só sendo possível identificar quem eu
sou através do olhar do outro. E problemática, já que considera que é a partir das
comunicações estabelecidas com o outro, marcadas pela incerteza, que nos
informamos sobre a identidade atribuída a nós. Desse modo, nunca poderemos ter a
plena certeza de que a identidade concebida sobre mim e por mim corresponde a
identidade concebida sobre mim e pelo outro. Portanto, “A identidade nunca é dada,
ela sempre é construída e deverá ser (re)construída em uma incerteza maior ou menor
e mais ou menos duradora” (Dubar, 2005, p. 135).
Além disso, conceitua a identidade como resultado de um processo
inconstante, podendo ser esse estável e provisório, individual e coletivo, subjetivo e
objetivo. Assim sendo, pode se constituir de maneira ambígua em vários sentidos
através do processo de socialização, já que é através da atividade com os outros que
um indivíduo “é identificado e levado a endossar ou a recusar identificações que se
recebe dos outros e das instituições” (p. 138). Assegura que a construção das
identidades se realiza por meio da articulação entre sistemas de ação que propõem a
existência de identidades propostas ou impostas pelo outro – denominadas como
“identidades virtuais”, bem como de identidades interiorizadas e projetas pelos sujeitos
– definidas como “identidades reais”.
Diante do exposto, é possível inferir que a identidade não se configura como
um aspecto inato ao sujeito, bem como não se define de forma unificada e
permanente, capaz de acompanhar o sujeito por toda a sua trajetória de vida. É
perceptível, portanto, que a identidade se verifica como fruto de constantes
construções, sendo constituída a partir das interações sociais e mediadas pelas
30
condições histórico-culturais em que se inserem os sujeitos. Dessa forma, a
identidade se reflete nas marcas culturais presentes nos indivíduos, a qual registra
nos sujeitos traços estabelecidos através do relacionamento com os outros e com o
mundo em meio as dinâmicas vivenciadas nos contextos sócio históricos nos quais
foram imersos ao longo da vida, sendo fator importante na criação de relacionamentos
e referências culturais para grupos sociais.
3.2 IDENTIDADE ÉTNICO-RACIAL
Ao tratarmos da identidade do negro brasileiro é impossível dissocia-la do
processo histórico que foi conferido a este grupo étnico-racial, já que ao longo da
história do Brasil os mesmos foram condicionados à concepção cultural europeia
reducionista. Diante disso, conforme Souza (1983, p. 77):
É que, no Brasil, nascer com a pele preta e/ou outros caracteres do tipo negroide e compartilhar de uma mesma história de desenraizamento, escravidão e discriminação racial, não organiza, por si só, uma identidade negra. Ser negro é, além disto, tomar consciência do processo ideológico que, através de um discurso mítico acerca de si, engendra uma estrutura de desconhecimento que o aprisiona numa imagem alienada, na qual se reconhece. Ser negro é tomar posse desta consciência e criar uma nova consciência que reassegure o respeito às diferenças e que reafirme uma dignidade alheia a qualquer nível de exploração.
Portanto, ser negro verifica-se como uma tarefa árdua de constante
enfrentamento a discriminação racial e libertação de uma imagem acerca do que é ser
negro forjada pela cultura europeia, constituindo uma autoconscientização a respeito
da própria condição étnica que reafirme e assegure a sua identidade negra. Como
afirma Santos (2009, p. 27) “A hierarquia das raças e a subalternização do negro foi
fruto de um processo histórico condicionante para que os negros internalizassem uma
imagem desfavorável de si próprios”. Diante dessa perspectiva, a identidade negra
“[..] por ser um produto social, é resultante de uma situação de conflito envolvendo
discriminação, exclusão social, exploração e, por fim, a opressão individual ou
coletiva” (Santos, 2009, p. 26). É, portanto, fruto de um contexto histórico e, por
conseguinte, de uma cultura nacional preconceituosa, a qual se reflete diretamente na
formação da identidade cultural dos sujeitos que integram o país.
A cultura nacional na qual estamos inseridos desde que nascemos faz parte da
nossa constituição, se verificando como uma das principais fontes da identidade
31
cultural. No entanto, apesar de a enxergamos enquanto característica natural, essa
não está conosco desde a nossa concepção enquanto ser humano. Nesse sentido,
apesar de nos definirmos como brasileiros, assegurando um sentimento de
identificação nacional e atribuindo a nação como uma característica inerente ao
sujeito, essa identificação tende a ser meramente metafórica. Diante disso, Hall (2011,
p. 49) assegura que “as identidades nacionais não são coisas com as quais nós
nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação”. Sendo
assim, a nação não se define apenas como uma entidade política, mas como um
sistema de representação cultural que produz sentidos.
Hall (2011) afirma que esses sentidos estão presentes nas histórias
disseminadas sobre a nação, relacionando as memórias que possuem a função de
unir o passado e o presente. Diante disso, verifica-se como importante essa retomada
ao passado, sendo através das experiências educativas possível angariar os sentidos
produzidos por essa cultura nacional, os quais foram naturalizados a partir da
instituição escolar, a fim de observar como os mesmos se refletem
contemporaneamente na construção identitária étnica e docente dos sujeitos negros.
Dessa maneira, o discurso empregado pela “cultura nacional” constrói
identidades a partir de uma relação entre o passado e o presente, em que geralmente
tendem a ressaltar o passado para reafirmar-se. Segundo Hall (2011), esse retorno
ao passado, por vezes, auxilia na renegação de outros sujeitos que ameaçam a
consolidação dessa identidade nacional já formulada, como acontece com o povo
negro. Assim, ao constituir e difundir uma história que condiciona o povo negro a um
lugar subalterno e marginalizado, as elites brasileiras criaram uma “identidade
nacional” que naturaliza o preconceito e contribui para a perpetuação da prática
racista.
A maioria das nações consiste de culturas separadas que só foram unificadas por um longo processo de conquista violenta – isto é, pela supressão forçada da diferença cultural. [...] Cada conquista subjugou povos conquistados e suas culturas, costumes, línguas e tradições, e tentou impor uma hegemonia cultural mais unificada (HALL, 2011, p. 60).
Além disso, segundo Hall (2011), as diferenças regionais e étnicas foram sendo
subordinadas ao longo do tempo, sob uma espécie de “teto político do estado-nação”,
o qual se tornou uma importante fonte de significados para as identidades culturais
modernas (p. 49). Em conformidade, Munanga (1996, p. 22) evidencia que “Toda e
32
qualquer heterogeneidade cultural, étnica e biológica constitui uma ameaça a
identidade nacional”.
A formação de uma cultura nacional contribuiu para criar padrões de alfabetização universais, generalizou uma única língua vernacular como o meio dominante de comunicação em toda a nação, criou uma cultura homogênea e manteve instituições culturais nacionais, como, por exemplo, um sistema educacional nacional. (HALL, 2011, p 50)
Nesse sentido, apesar da nação brasileira ter sido constituída com base no
esforço da população negra, é subjugada, sendo historicamente naturalizada como
escravos, além de terem seus hábitos, valores, crenças e cultura desconsiderados,
seja na literatura, na mídia, na história ou na própria cultura popular. Dessa forma, as
“teorias de Brasil” produzidas no século XX, da “miscigenação produtora da
democracia racial” à “cordialidade brasileira”, põem em relevância a “cultura negra”,
porém de forma parcial e subordinada. Com isso, evidencia como relevante apenas a
dominação do povo negro, os apresentando sempre como sujeitos dominados e não
atribuindo importância as ações do movimento negro que contribuíram para formação
da identidade nacional.
Diante disso, se pressupõe que as condições históricas e sociais são
permeadas pelas culturas nacionais, as quais ao construírem sentidos sobre a ideia
de nação com os quais a sociedade pode tecer uma identificação resultam em
construções identitárias forjadas no que se refere a população negra. Dessa maneira,
em se tratando das identidades negras, as culturas nacionais são responsáveis por
constituir identidades tomadas pela ideologia do branqueamento, as quais
rotineiramente se refletem na ausência de um pertencimento étnico-racial de
indivíduos negros e, consequentemente, das/os professoras/es negras/os.
É possível perceber que a imagem inferiorizada ancorada ao sujeito negro e
consolidada pela cultura nacional se caracteriza como a imagem alheia formulada, se
configurando como um aspecto determinante na composição da identidade negra,
visto que essa imagem de outrem ao se relacionar com a esfera interna do sujeito – a
autoimagem pode influenciar diretamente na constituição de relações tanto de
pertencimento quanto de repulsa em relação a identidade negra.
É preciso, portanto, que a identidade negra se configure como “uma tomada de
consciência de um segmento étnico-racial excluído da participação na sociedade, para
a qual contribuiu economicamente, com trabalho gratuito como escravo, e também
33
culturalmente, em todos os tempos na história do Brasil” (Munanga, 1996, p. 22). No
que se refere a essa tomada de consciência e/ou posicionamento de assumir-se
enquanto negro, o mesmo se configura como uma atividade que o faz enxergar como
pertencente de um determinado grupo étnico-racial, sendo esse um fator fundamental
a formação e fortalecimento da identidade negra. Implica, portanto, a construção do
olhar de um grupo étnico-racial ou de indivíduos integrantes desse grupo, sobre si
mesmos, a partir da relação com o outro. Nesse sentido, Gomes (2002, p. 39)
assegura:
É nesse sentido que entendo a identidade negra como uma construção social, histórica e cultural repleta de densidade, de conflitos e de diálogos. Ela implica a construção do olhar de um grupo étnico/racial ou de sujeitos que pertencem a um mesmo grupo étnico/racial sobre si mesmos, a partir da relação com o outro. Um olhar que, quando confrontado com o do outro, volta-se sobre si mesmo, pois só o outro interpela nossa própria identidade.
Nessa perspectiva, Novaes (1993) alega que a identidade se trata de um
conceito vital para os diversos grupos sociais contemporâneos que a reivindicam,
nesse caso, em especial para a população negra. Define, ainda, a identidade como
um conceito que só pode ser utilizado no plano do discurso, verificando-se como um
recurso que serve para instituição de uma coletividade – de um nós coletivo. Dessa
forma, esse “nós” se refere a uma identidade que se configura como um mecanismo
indispensável para o sistema de representações de um grupo social, podendo
reivindicar um espaço social e político de atuação.
Diante disso, a identidade, consequentemente, torna-se um recurso necessário
para consolidação de um espaço no sistema de representações que um determinado
grupo social almeja alcançar. Assim, de acordo com Novaes (1993) a identidade tem
papel preponderante quando “um grupo reivindica uma maior visibilidade social face
ao apagamento a que foi, historicamente, submetido” (p. 25) e assegura que esse
processo pode ser verificado quando se trata das mulheres, índios e negros, além dos
demais que foram socialmente colocados à margem.
Ademais, Novaes (1993) afirma que é por meio da cultura “que estes grupos
(sejam mulheres ou índios) resgatam sua autonomia e reafirmam sua diferença” (p.
27), com isso Gomes (2005, p. 41) evidencia:
Ao mesmo tempo em que a busca da identidade por parte de um grupo social evoca a diferença deste em relação à sociedade ou ao governo ou a outro grupo e instituição, ela possui um processo de elaboração e diminuição das
34
diferenças internas do próprio grupo e dos vários grupos que formam, naquele momento de reinvindicação, um único sujeito político (GOMES, 2005, p. 41).
Desse modo, é por meio da exaltação identitária que há uma ênfase na
diferença, com isso enquanto a diferença se intensifica concomitantemente é
amenizada frente aos grupos sociais e/ou indivíduos que em determinado momento
reivindicam uma mesma causa, se configurando como um sujeito político unificado.
Nessa perspectiva, através da exaltação de determinados aspectos culturais
pertinentes aos grupos sociais essa diferença se constitui, se refletindo como um
aspecto favorável a contraposição a um grupo alheio.
A identidade é uma realidade sempre presente em todas as sociedades humanas. Qualquer grupo humano, através do seu sistema axiológico sempre selecionou alguns aspectos pertinentes de sua cultura para definir-se em contraposição ao alheio. A definição de si (autodefinição) e a definição dos outros (identidade atribuída) têm funções conhecidas: a defesa da unidade do grupo, a proteção do território contra os inimigos externos, as manipulações ideológicas por interesses econômicos, políticos, psicológicos etc. (MUNANGA,1996, p. 17).
Dessa forma, a reafirmação da diferença pelos sujeitos negros promove o
desenvolvimento do pertencimento étnico-racial e provável consolidação da
identidade negra, necessária a contraposição da condição marginalizada naturalizada
pela cultura nacional. Além disso, no que concerne as/aos professoras/es negras/os
essa consolidação identitária se configura como uma ruptura face a um sistema
educacional que perpetua uma cultura nacional discriminatória.
Sendo assim, ser negro e definir-se negro no Brasil trata-se de uma postura
política, que consequentemente firma a identidade negra como um ato político, o qual
favorece a proteção de um determinado grupo, como bem afirma Munanga (1996).
Entretanto, Gomes (2005, p. 43) pressupõe a construção da identidade negra como
um nebuloso desafio:
Construir uma identidade negra positiva em uma sociedade que, historicamente, ensina os negros, desde muito cedo, que para ser aceito é preciso negar-se a si mesmo é um desafio enfrentado pelos negros e pelas negras brasileiros(as). Será que, na escola, estamos atentos a essa questão? Será que incorporamos essa realidade de maneira séria e responsável, quando discutimos, nos processos de formação de professores(as), sobre a importância da diversidade cultural? (GOMES, 2005, p. 43).
35
Dessa maneira, construir uma identidade negra e, portanto, reconhecer-se
enquanto negro ainda se configura como uma tarefa laboriosa, visto que o sujeito
negro é imerso desde o seu nascimento em um universo que o desqualifica e/ou
desconsidera. Desde então, é mergulhado em uma cultura nacional e cercado por
instituições, como a escola, que desprezam a cultura negra e promovem
continuamente a concepção ilusória de uma identidade homogênea subsidiada pela
influente cultura europeia. Assim sendo, promove cotidianamente a segregação do
povo negro, desconsiderando suas manifestações de resistência e os colocando em
um lugar ínfimo.
3.3 IDENTIDADE DOCENTE
Com base nos pressupostos teóricos de Dubar (2005), Nünes; Ramalho (2005)
e Pimenta (1996), a identidade docente é considerada como uma construção social,
a qual é compreendida como uma identidade profissional que se constitui através dos
processos de socialização em que os professores (as) concebem ao longo da prática
profissional e, bem como da vida.
Nessa direção, Pimenta (1996) revela que uma identidade profissional se
constrói a partir da revisão contínua dos significados sociais da profissão e das suas
tradições, mas também da reafirmação de práticas consagradas culturalmente.
Ademais, afirma que a identidade docente se constitui através dos significados que
cada professor desenvolve enquanto atuante, a partir dos seus valores e modos de
situar-se no mundo, histórias de vida, representações, saberes, angústias e anseios
do cotidiano, bem como da rede de relações com outros grupos. Dessa maneira,
supõe-se que a cultura nacional enquanto tradição influencia diretamente na
constituição da identidade profissional, além da escola se configurar como difusora
dessas práticas já consagradas culturalmente. Assim, é importante que o professor
repense as tradições e práticas estabelecidas, contrapondo-as com os seus valores e
modo de viver, refletindo diretamente no seu posicionamento enquanto docente no
âmbito escolar.
Com isso, é possível inferir que a formação inicial e continuada, as
organizações profissionais, a escola e interações com a comunidade e outros grupos
profissionais são extremamente importantes na formação de uma nova composição
identitária do professor, já que “é nesses espaços e tempos que se dá a socialização
36
significativa para a identidade”, como bem afirmam Nünes; Ramalho (2005, p. 99).
Para tanto, Nünes; Ramalho (2005, p. 99) asseguram sobre a identidade docente:
A construção da identidade do professor se dá em espaços sociais, nos quais são estabelecidas múltiplas relações entre as pessoas; consequentemente, a construção de identidades é um processo de socialização. A socialização de saberes, valores, atitudes, normas, necessidades e expectativas, entre outros, são elementos desse processo de socialização, necessários à construção das identidades profissionais.
Em conformidade, Dubar (2005) evidencia que a formação das identidades
profissionais está ligada aos processos de socialização dos indivíduos, já que
segundo o autor “A socialização se torna um processo de construção, desconstrução
e reconstrução de identidades ligadas as diversas esferas de atividade
(principalmente profissional) que cada um encontra durante sua vida [...]” (p. XVII).
Diante disso, acredita-se que é por meio do processo de socialização que as
identidades, sejam elas sociais e/ou profissionais, se constituem.
Dubar (2005) considera que as identidades profissionais se configuram como
uma das dimensões pertencentes a identidade social e/ou pessoal, já que se trata de
uma construção tanto individual quanto social. Assegura, ainda, que as identidades
profissionais são definidas através da interseção de três dimensões, as quais são “o
mundo vivido do trabalho”, a “trajetória socioprofissional”, os “movimentos de
emprego”, além da “relação dos assalariados com a formação” (p. 252). Dessa forma,
em conformidade com as identidades profissionais dos docentes, compreende-se que
essas não estão exclusivamente relacionadas a sua atividade profissional e/ou ao
trabalho, já que também estão associadas ao âmbito social. Nesse caso, é possível
inferir que as vivências respectivas a formação, bem como as vivências relacionadas
ao trabalho atuam diretamente na composição identitária profissional dos sujeitos e,
por conseguinte, das/os docentes.
Para tanto, segundo Dubar (2005), as identidades profissionais e sociais estão
associadas a especificas configurações de saberes que são constituídos através dos
processos de socialização variados. Desse modo, com base em Piaget assegura que
a socialização inicial, que se dá durante a infância, promove o desenvolvimento de
regras, signos e valores provenientes do contexto familiar e escolar, bem como de
demais grupos de pessoas com os quais as crianças vivenciam suas primeiras
experiências
37
Essas identidades profissionais e sociais, associadas a configurações específicas de saberes, são construídas por meio de processos de socialização cada vez mais diversificados. A socialização “inicial”, durante a infância, combina mecanismos de desenvolvimento das capacidades e construção de “regras, valores e signos” (Piaget) oriundos da família de origem e também do universo escolar e dos grupos etários nos quais as crianças realizam suas primeiras experiências de cooperação. É assim que elas forjam para si as primeiras identidades por assimilações e acomodações sucessivas (DUBAR, 2005, p. 329).
Diante disso, propõe que a escola elementar se configura como um momento
decisivo para a primeira construção da identidade social e, consequentemente,
profissional, sendo através dos parceiros constituídos na escola (professores e
colegas) que a criança vivencia a sua identidade social inicial. Bem como, confere
uma dualidade entre a identidade social herdada e a identidade escolar visada,
estabelecendo um campo em que se desenvolvem na infância, adolescência e
decorrer da vida, quaisquer estratégias identitárias.
Dessa maneira, as experiências educativas inerentes as trajetórias de vida
tratam-se de um fator determinante na construção identitária do professor, bem como
são proeminentes na constituição da identidade étnico-racial das/os professoras/es
negras/os. Além disso, ainda conforme Dubar (2005) essa socialização também
contribui para o fornecimento de referências culturais, sendo por meio dessas
referências que os sujeitos identificarão seus grupos de referência e pertencimento,
interiorizando aspectos culturais.
Além disso, Dubar (2005) propõe que tanto as identidades sociais quanto as
profissionais são caracterizadas por uma dualidade entre os atos de atribuição
(processo relacional) e os atos de pertencimento (processo biográfico), estabelecendo
relações entre as “identidades para si” e “identidades para o outro”. Dessa maneira,
compreende-se que a abordagem de Dubar (2005) apresenta como aspecto central a
forma como os atores sociais se identificam com os outros e ao mesmo tempo
constroem uma imagem de si mesmos. Bem como, esse procedimento viabiliza que
as identidades sociais e profissionais possam ser forjadas a partir dessa relação entre
os processos relacionais e biográficos. No que concerne aos docentes negras/os, tais
identidades forjadas podem ser concebidas através da relação entre a não aceitação
ao sujeito negro e/ou desprezo a cultura negra socialmente estabelecida e a
autoimagem constituída, o que gera uma ausência do pertencimento étnico
necessária para o combate a conduta racista.
38
Diante disso, enquanto identidade social, a construção da identidade
profissional orienta-se a partir da construção dos processos biográficos e relacionais
mediante o mercado de trabalho, o emprego e a formação. Com isso, as identidades
sociais e profissionais para Dubar (2005, p. 330) tratam-se de “construções sociais
que implicam a interação entre trajetórias individuais e sistemas de empregos, de
trabalho e de formação”. Bem como, apresenta a construção identitária como
resultado de uma dupla transação, em que de um lado estão os sujeitos e instituições
– principalmente as instituições em que trabalham, enquanto do outro lado o sujeito é
confrontado pelo seu passado e pelas mudanças. Com base nesses aspectos, é
possível inferir que as experiências educativas vivenciadas pelos docentes negras/os,
objetos do estudo, bem como a cultura nacional constituída e instituição escolar se
configuram como elementos substanciais no processo de composição identitária
desses sujeitos. Esses elementos formam, portanto, a transação estabelecida por
Dubar, relacionando tanto experiências individuais quanto coletivas.
Nessa perspectiva, Nünes; Ramalho (2005) alegam que os professores
constroem suas identidades pessoais a partir do seu grupo e contextos nos quais
estão inseridos, interagindo com demais grupos profissionais. Diante disso, “elaboram
auto-imagens, representações de si e do seu grupo profissional, como parte de sua
história de vida no coletivo e das regras e normas da atividade profissional” (p. 97).
Essas representações e autoimagens formuladas colaboram para que os sujeitos se
compreendam e compreendam os demais dentro de um determinado grupo
profissional. Nesse sentido, as identidades individuais e coletivas (de um grupo) não
se tratam de elementos isolados, mas interagem à medida que “A identidade docente
se apresenta como identidade individual, específica aos sujeitos e contextos, e como
identidade comum a todos os docentes em determinados contextos e momentos
sócio-históricos” (p. 98).
Ademais, Dubar (2005) propõe que as mudanças nas identidades, em geral,
são impulsionadas pelas crises identitárias. Dessa forma, afirma que “As identidades,
portanto, estão em movimento, e essa dinâmica de desestruturação e reestruturação
às vezes assume a aparência de uma “crise das identidades” (p. 330). Assim sendo,
novas exigências profissionais podem provocar uma crise de identidade quando a
identidade atual não dá conta de responder a essas requisições profissionais.
A identidade dos professores como grupo profissional contém identidades anteriores e os germes das futuras, uma vez que a nova emerge da solução
39
das contradições dialéticas entre as velhas identidades e das situações profissionais a exigirem novas que representam uma negação dialética das anteriores, isto é, negam as identidades anteriores, mas trazem consigo seus elementos positivos, marcando um contínuo-descontínuo (NÜNES; RAMALHO, 2005, p. 98).
Dessa forma, ao se depararem com determinadas circunstâncias no âmbito
profissional, essas promoveriam uma negação da identidade já constituída e
promoveriam modificações nas identidades docentes, incitando a substituição de uma
identidade por outra. Entretanto, essa nova identidade não se configura,
necessariamente, como a destruição da identidade anterior.
É possível inferir que essa transição do posicionamento identitário do professor
fornece subsídios para que suas práticas sejam coerentes com a dinamicidade social
contemporânea e condizentes com os processos emancipatórios necessários à
sociedade. Nesse sentido, em se tratando de docentes negras/os, a formação das
identidades docente e étnica sólidas que não se subjugam às más condições
atribuídas a suas condições étnicas e que se contrapõem a conduta racista garante
uma atuação crítica e que conduz a uma formação coerente: cidadã e emancipatória.
40
4 METODOLOGIA EM AÇÃO: O MÉTODO BIOGRÁFICO COMO ESTRATÉGIA
PARA COMPREENSÃO DAS IDENTIDADES
Neste capítulo será descrito o desenho da pesquisa, para isso inicialmente
retomamos os objetivos deste estudo, que a partir da questão norteadora teve como
propósito compreender como as experiências educativas vivenciadas por docentes
negras/os influenciaram a formação das suas identidades étnico-raciais e docentes,
buscando explicitar como seu a trajetória educacional de professoras/es negras/os
atuantes na educação básica, bem como identificar como essas experiências
educativas se refletem no posicionamento étnico-racial e docente dos mesmos. Nesse
sentido, essa pesquisa buscou o respaldo da abordagem qualitativa por considerar
esta a mais adequada para o trabalho com a identidade de professoras/es negras/os,
vez que se trata de um objeto que refletirá sobre as subjetividades dos sujeitos, em
suas dimensões históricas e culturais.
Haja vista os objetivos propostos pelo estudo, como já referido a metodologia
utilizada foi de caráter qualitativo descritivo, a qual se baseou no método biográfico,
amparando a compreensão da composição identitária das/os docentes negras/os e
abrangendo tanto a dimensão étnica quanto docente. Para tanto, no sentido de
constituir a argumentação em torno da dimensão metodológica foram utilizados como
aporte as concepções teóricas de Gonzaga (2006), Nóvoa (1992), Ferraroti (1988),
Souza (2007), Goodson (1994) e Bueno (2002).
4.1 A ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA
A pesquisa utilizada no estudo caracteriza-se como de cunho qualitativo
descritivo, devido à necessidade de descrever a complexidade de uma determinada
situação, além de possibilitar a compreensão de processos dinâmicos referentes a
inúmeros estratos sociais, detalhando situações, pessoas, acontecimentos,
comportamentos dos indivíduos. Assim, conforme Gonzaga (2006, p. 70) “ela
incorpora o que os participantes dizem, suas experiências, atitudes, crenças,
pensamentos, e reflexões, tal como são expressadas por eles mesmos”.
Dessa maneira, imprime traços da realidade, além de significados, valores,
crenças, atitudes, inerentes ao imaginário do sujeito pesquisado, evidenciando
fenômenos que não podem ser quantificados e reduzidos ao universo estatístico. Para
41
tanto, como bem afirma Gonzaga (2006, p. 73) “O pesquisador qualitativo estuda as
pessoas no contexto do seu passado e das situações nas quais se acham”. Nesse
sentido, a partir da pesquisa qualitativa é possível conhecer as pessoas no âmbito
pessoal e experimentar o que esses indivíduos sentem “em suas lutas cotidianas na
sociedade”, tendo, portanto, caráter humanista. Dessa forma, não é viável reduzir
palavras e atos a dados estatísticos, esquecendo o aspecto humano.
Nessa perspectiva, através da contestação do método positivista e/ou
mecanicista emerge a valorização da subjetividade como método de investigação,
dando ênfase ao estudo biográfico, o qual surge com o movimento da Escola de
Annales, promovendo uma mudança metodológica na pesquisa e reconhecendo a
importância das fontes orais. Desde então, a subjetividade passa a se configurar como
um valioso instrumento para articulação de novas propostas teóricas, auxiliando na
composição dos estudos contemporâneos.
A maior potencialidade do método biográfico está relacionada a questão da
subjetividade que o mesmo propõe. Nesse caso, a subjetividade conforme Bueno
(2002) se constitui como uma “via de acesso não linear ao conhecimento científico do
sistema social” (p.20). Propõe, ainda, que tal aspecto era desprezado em estudos
anteriores, passando a se mostrar próspero na constituição teórica na área docente.
Em conformidade, Nóvoa (1992) assegura que “[...] a literatura pedagógica foi
invadida por obras e estudos sobre a vida dos professores, as carreiras e os percursos
profissionais, as biografias e autobiografia docentes ou desenvolvimento pessoal dos
professores (p. 15)”.
Além disso, Ferraroti (1988) evidencia que a biografia possui caráter subjetivo
porque através desse método o pesquisador é capaz de ler e compreender a realidade
pertencente a um sujeito historicamente constituído através da percepção alheia.
Diante disso, enquanto a identidade passa a se constituir como objeto de investigação
através do método biográfico auxilia no processo de recriação de histórias e/ou
acontecimentos, promovendo a possibilidade de interpretações das diversas
realidades sociais.
Nesse caso, a subjetividade se coloca como fator inerente a identidade
constituída, sendo necessário alcançá-la a fim de compreender como se deu essa
construção identitária. Dessa maneira, o método biográfico foi utilizado como
estratégia para compreender como se deram as experiências educativas de dois
professoras/es negras/os residentes da cidade de Natal e integrantes da educação
42
básica na rede pública, percebendo como tais aspectos refletiram na formação das
suas identidades étnico-raciais e docentes. Assim, auxiliará a traçar perfis desses
indivíduos ao longo do tempo através das suas histórias de vida, contribuindo para
compreensão das suas identidades.
Ademais, tal método promove uma valorização das memórias dos sujeitos
excluídos da história, nesse caso as/os docentes negras/os, concedendo espaço
aqueles que não o tinham e se contrapondo as narrativas definidas como dominantes.
Assim, conforme Souza (2007, p. 63):
[...] permitir que vozes, até então silenciadas pela História tradicional, reivindicassem o direito de falar […]. Assim, os negros, as mulheres, os índios, os homossexuais vão buscar na indagação do passado, a partir de suas memórias individuais e coletivas, as circunstâncias sociais e culturais que os conformaram no tempo presente e que permitem pensar em projetos para o futuro.
Em concordância, Goodson (1994 apud Bueno, 2002) evidencia que conceder
importância ao discurso das/os professoras/es pressupõe uma valorização da
subjetividade e o reconhecimento do direito de falarem de si próprios. Bem como, de
serem concebidos como sujeitos de investigação e não apenas como objeto.
Essa abordagem atende a uma nova demanda dos estudos atuais que se
dedicam a compreender melhor a subjetividade humana, visando dar conta do âmbito
psicológico dos indivíduos através as histórias sociais individuais e coletivas. Dessa
maneira, Bueno (2002) propõe que tal abordagem possui um caráter formativo, tendo
em vista que ao promover o retorno ao passado e reconstruir suas trajetórias de vida,
os sujeitos tem a possibilidade refletir e, consequentemente, de criar uma consciência
no campo individual e coletivo.
Além disso, afirma que esse tipo de abordagem coloca em relevância o papel
do sujeito na formação, propondo que o mesmo se forma através da apropriação da
sua trajetória de vida ou trajetória escolar. Há, portanto, um redimensionamento do
que se compreende por formação, propondo que essa situa-se como um processo
iniciado anteriormente ao acesso aos cursos de habilitação, se constituindo desde o
princípio de sua escolarização ou antes da mesma, prosseguindo durante a trajetória
profissional docente.
Nesse sentido, supõe-se que é necessário pensar na educação e,
consequentemente, no professor, levando em consideração o início do seu processo
de formação, colocando em relevância a sua origem, escolarização, prosseguindo até
43
o seu percurso profissional, já que ao voltar-se para o passado e reconstruir sua
história de vida o docente exercita sua reflexão e é impulsionado a criar uma
consciência tanto individual quanto coletiva.
4.2 O ROTEIRO COMO GUIA PARA CONSTRUÇÃO DOS RELATOS ORAIS
Considerando que se trabalhou com os depoimentos das/os docentes, os fatos
e valorações que esses trouxeram das próprias vivências foram registrados, se
materializando como relato biográfico por meio da história oral, constituída através de
gravação em áudio. Uma vez realizadas, as entrevistas foram transcritas e todos os
seus elementos registrados, prezando pela manutenção das expressões utilizadas,
zelando pela forma de falar original dos sujeitos atendendo ao propósito de auxiliar na
compreensão da identidade dos indivíduos. Nesse sentido, os relatos biográficos aqui
constituídos por meio da história oral permitiram investigar a dimensão subjetiva do
comportamento humano e, consequentemente, das/os professoras/es negras/os.
Além disso, foi elaborado um roteiro com as respectivas dimensões a serem
abordadas ao longo da entrevista com o intuito de orientar as/os entrevistadas/os, o
qual foi devidamente apresentado anteriormente a entrevista com o propósito de
esclarecer os aspectos a serem contemplados e solucionar supostas dúvidas. O
roteiro em questão (Apêndice I) baseou-se em três dimensões, as quais se constituem
com base nos objetivos propostos pelo estudo. Dessa maneira, inicialmente buscou-
se compreender como se deram as experiências educativas referentes ao âmbito
escolar com o propósito de perceber como era a convivência escolar e as relações
étnicas estabelecidas nesse período. Quanto a identidade étnica das/os docentes,
investigou-se qual o posicionamento dessas com relação a condição étnica, bem
como se objetivou perceber se já vivenciaram ou presenciaram alguma espécie de
discriminação racial no meio escolar. Além disso, referente a identidade docente,
buscou-se investigar como a condição étnica se reflete na atuação enquanto docente
e qual a percepção das/os mesmas/os com relação ao racismo no espaço escolar.
Em suma, o estudo analisou os relatos orais, contemplando as dimensões
escolar e profissional e permitindo que as/os professoras/es expusessem suas
experiências de vida relacionadas ao seu processo de escolarização, bem como suas
perspectivas enquanto docentes negras/os, utilizando-se de análises de caráter
44
empírico e interpretativo. Conforme o propósito do estudo, foram captados aspectos
coerentes com o roteiro formulado, tentando compreender o processo pelo qual os
sujeitos passaram, buscando elencar os acontecimentos relevantes. Dessa maneira,
acredita-se que as memórias relatadas constituíram-se um fértil campo para análise e
compreensão da problemática abordada.
4.3 PROFESSORAS NEGRAS: UM BREVE PERFIL DOS ENTREVISTADAS
Inicialmente, é válido ressaltar os critérios de seleção das/os docentes
entrevistadas/os, os quais foram: declarar-se negra/o; ser professora/or da educação
básica e de escola pública; ter formação em qualquer curso de licenciatura ou possuir
formação no curso de magistério em nível médio. É válido salientar que quanto a
considerar-se negra/o, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) os indivíduos mestiços são considerados pardos e esses podem “por decisão
política ou ideológica se considerarem negros” (GOMES, 2006, p. 18). Nesse caso,
ao contabilizar a população negra brasileira, considera-se os sujeitos que se auto
denominam como pretas/os e pardas/os.
Para tanto, durante a abordagem realizada para realização das entrevistas
nenhum professor negro se predispôs a participar do estudo. Nesse sentido, as
coletas dos relatos orais foram realizadas somente com professoras negras atuantes
na educação básica, as quais se predispuseram voluntariamente em contribuir para
feitura da pesquisa. Se chegou até as professoras a partir das vivências em uma das
escolas onde foi realizado um dos estágios obrigatórios enquanto professora em
formação, bem como a partir do contato através das redes sociais. Desse modo,
verificou-se que ambas tinham os critérios de seleção traçados pelo estudo e,
seguidamente, a abordagem foi realizada a partir da apresentação da proposta do
trabalho e dos seus respectivos objetivos. Diante disso, as professoras colaboradoras
dessa pesquisa se definem como Cláudia Ingrid Campos Paiva Moreira e Maria José
de Oliveira Nunes, ambas atuantes em escolas públicas pertencentes à rede
municipal de ensino da cidade do Natal.
Quanto aos perfis das entrevistadas, a docente Maria José de Oliveira Nunes
é professora de Ensino Religioso da Rede Municipal de Ensino de Natal (RN);
graduada em Teologia pelo Instituto de Teologia Pastoral de Natal (Itepan); pedagoga
pelo Instituto Presidente Kennedy da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
45
(UERN); tem licenciatura e bacharelado em Filosofia pela Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN); curso de Psicanálise da Associação Brasileira de
Psiquiatria e é especialista em Educação Sexual. Enquanto Cláudia Ingrid Campos
Paiva Moreira é professora da rede municipal de ensino da cidade do Natal e rede
estadual de ensino do estado do Rio Grande do Norte; graduada no curso de
Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte;
Especialista em História e Cultura Africana; E é mestranda da Universidade Federal
da Paraíba, a qual realiza uma pesquisa voltada para a constituição das suas raízes
ancestrais.
46
5 AS EXPERIÊNCIAS EDUCATIVAS DAS PROFESSORAS NEGRAS
PERTENCENTES A EDUCAÇÃO BÁSICA DA CIDADE DE NATAL/RN
A seguir serão estabelecidas reflexões em torno da constituição das
identidades étnico-racial e docentes das professoras com base nos relatos orais
coletados, compreendendo que ofereceram subsídios para que fosse possível
assimilar como constituíram suas trajetórias educacionais e como essas trajetórias se
refletiram na constituição das docentes enquanto professoras negras em atuação.
Suas trajetórias coletadas a partir do método biográfico revelam memórias, vivências,
emoções, sentimentos e ações individuais e/ou coletivas inerentes a subjetividade
humana. Dessa maneira, permite compreender a realidade desse sujeito
historicamente constituído e, consequentemente, apreender como se deu a sua
construção identitária enquanto negra e professora.
As análises dos relatos orais serão divididas em três dimensões, conforme o
roteiro estabelecido, a fim de conceber uma melhor assimilação em torno dos fatos
relatados. Diante disso, inicialmente, serão abarcadas as vivências educativas
relatadas pelas/os professoras/es entrevistadas/os, bem como seguidamente serão
abordadas as dimensões que se referem as identidades étnico-racial e docentes.
Quanto as experiências educativas das docentes entrevistadas, ficou
perceptível que apesar da maioria dos sujeitos negros possuírem uma origem humilde
e, consequentemente, uma trajetória escolar permeada por uma condição em certo
sentido precarizada em relação a população branca, as entrevistadas em questão se
configuram como exceção à regra, já que em certo modo tiveram acesso a uma
educação de qualidade devido a uma melhor condição social proveniente de suas
famílias conforme os depoimentos abaixo.
“Fui alfabetizada na minha própria casa, na casa dos meus pais, meu pai teve uma preocupação conosco, filhos, em que ele devido as dificuldades e a gente morar no interior, então ele pagava um professor para ficar dentro da cada da gente e nos ensinar a aprender a ler e a escrever que era o básico [...] Ele era um agricultor que tinha as condições de sobrevivência sem nenhum problema de dificuldade de vida, vamos dizer assim, financeira” (ENTREVISTADA N° 1, 04/05/2018). “[...] nasci em Natal, meu pai é gaúcho e minha mãe é do interior. Então, as escolas sempre foram de todos os jeitos, estudei em escola particular toda a vida, não me lembro de nenhuma vez ter estudado em uma escola pública [...] passar por escolas particulares e ter uma condição financeira um pouco razoável, pais que tinham relações sociais relativamente boas” (ENTREVISTADA N° 2, 11/05/2018).
47
Em contrapartida, ainda é perceptível que a maioria dos sujeitos negros se
situam em condições sociais desprivilegiadas, os quais rotineiramente tem acesso a
oportunidades fragilizadas de ensino, bem como a condições de trabalho e renda
excludentes. Dessa forma, apesar das entrevistadas terem tido acesso à educação e
uma condição social mais razoável é notório que os seus pais, assim como a maioria
dos sujeitos negros, são originários de condições extremamente humildes como
afirma a segunda depoente: “[...] meu pai vem de uma família paupérrima, vem de
uma família muito pobre e foi a educação que trouxe ele até onde ele chegou”
(ENTREVISTADA N° 2, 11/05/2018). Como afirma Valente (1998, p. 52) “Muitas
crianças negras (em geral as mais carentes) são obrigadas a deixar a escola, para
ajudarem no orçamento familiar. Vivem vulneráveis à violência de seus pais e da
população em geral”. Ademais, conforme a entrevistada nº 1 há apenas uma notória
preocupação em aprender a ler e a escrever, ou seja, conforme a própria entrevistada
havia uma inquietação por parte do seu pai em conceder acesso ao menos ao ensino
básico, conferindo a educação como uma possibilidade de ascensão e/ou de galgar
caminhos melhores.
“Eu era a única pessoa negra em vários lugares que eu estive, se a gente for pensar historicamente as pessoas negras estão na camada bem mais baixa social, e aí na adolescência quando estava aqui em Natal eu estudei no GEOC e só tinha negro na sala eu, dois meninos e uma menina, fora eu... E não necessariamente eles tinham a minha consciência, de pertencimento que eu tinha...” (ENTREVISTADA N° 2, 11/05/2018).
Nesse sentido, as entrevistas reforçam a concepção de que rotineiramente em
maioria e/ou os primeiros a terem acesso a um ensino de qualidade tratam-se
daqueles sujeitos inerentes a população branca, a qual é em maior parte detentora de
posses e/ou melhores condições sociais. Além disso, a segunda entrevistada revela
que apesar de existirem alguns colegas de sala afro descendentes, esses não se
enxergavam/identificavam como tal, sendo, consequentemente, desprovidos do
pertencimento racial. Em conformidade, Oriá (1996, p. 161) argumenta que “A criança
negra começa a sentir autodesprezo, a não respeitar e amar os seus parentes e,
acima de tudo, sente-se envergonhada de seus antepassados, por não ter assumido
sua negritude”.
“Ela era branca, e era uma pessoa que tinha os preconceitos dela também por que até pelo fato dela ser branca ela foi criada num convívio familiar
48
também que era bem preconceituoso [...] A minha relação com a professora e com os demais alunos, era de muita afetividade de respeito, de carinho, comigo e com os demais alunos. E como aluna, numa relação de aluna com aluno a gente se respeitava porque era alí o convívio de família, eram pessoas que eram sobrinhos, pessoas que eram tios, estudavam todos juntos [...] Não havia racismo na sala de aula, porque nós erámos da mesma família então se respeitava muito, meu pai por ser um grande líder de família então era muito respeitado. E aí os filhos dele também mantinha esse respeito. Existiam negros, mas não tinha essa questão acentuada, que pudesse existir
a manifestação do preconceito e da discriminação.” (ENTREVISTADA Nº 1,
04/05/2018).
Para além disso, a primeira entrevistada retrata que atitudes desrespeitosas
quanto a sua condição étnico-racial não eram refletidas na prática da professora
responsável por sua educação inicial ao deixar claro que havia um convívio
harmonioso entre a professora e seus alunos. No entanto, atribui essa harmonia ao
fato do grupo de estudantes serem formados por familiares e devido ao respeito
imposto devido ao posicionamento do seu pai, deixando claro que a sua suposta
professora apesar de não demonstrar em sua prática teria sim uma visão
preconceituosa, possivelmente inerente a sua origem e condição étnico-racial e
provavelmente influenciada pela consolidação da cultura nacional dominada pela
concepção eurocêntrica.
Como afirma Hall (2011, p. 51), “Uma cultura nacional é um discurso – um modo
de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a
concepção que temos de nós mesmos”. Nesse caso, tal cultura se reflete diretamente
nas relações sociais estabelecidas, as quais são influenciadas pelo poderio do estado-
nação que dá vazão aos conflitos que compreendem os âmbitos sociais, políticos,
econômicos e culturais.
“Minha relação com os professores sempre foi boa, porque eu sempre fui uma aluna muito “cdfzinha”, muito boa... então nunca tive problema com professor. Com os meus colegas também nunca tive problema... as práticas dos professores eu nunca tive problema quanto a questão racial que eu tenha lembrança né ou que tenha entendido eu nunca percebi. A questão dos colegas a princípio eu sempre senti assim... depois que eu tive algum conhecimento e não era tão pequena que a princípio sempre nos primeiros dias quanto chegava na escola eu era última a ser escolhida pelos grupos, até eles entenderem que a minha nota era melhor do que a deles, aí depois disso, que eu provava com a minha capacidade aí mudava [...] Na adolescência eu comecei a perceber muito mais, quanto mais eu tinha entendimento, mais eu percebia”. (ENTREVISTADA N° 2, 04/05/2018).
Ainda quanto à trajetória escolar, apesar da segunda entrevistada no primeiro
momento afirmar que sua relação com professores e colegas de turma era
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considerada boa, posteriormente, propõe que era de certo modo excluída pelos
colegas ao chegar nas escolas até demonstrar a sua capacidade intelectual. Assim,
através da fala da entrevistada pode-se pressupor que sua relação era harmoniosa
tanto com os colegas quanto com os professores devido a capacidade intelectual que
a mesma continha.
“Eu nunca ouvi nenhuma discussão ou ensinamento ou explicação do que era racismo em escola alguma que eu passei, na verdade até eu chegar a faculdade as únicas discussões que apareceram foi as que partiram de mim, explicar para as pessoas o que seria aquilo” (ENTREVISTADA Nº 2, 11/05/2018).
Para tanto, a referida docente alega ainda que apesar de ter passado por
diversas escolas, já que durante a infância havia morado em variados lugares devido
a profissão do seu pai (Funcionário do Banco do Brasil), em nenhuma dessas escolas
presenciou alguma atividade relacionada a prática racista, evidenciando que as
discussões sobre tal temática sempre partiam do seu próprio empenho conforme o
depoimento acima.
Ademais, diante dos fatos aqui descritos é possível inferir como afirma Gomes
(2002) que a estrutura da escola brasileira no modo como é pensada e realizada exclui
as/os alunas/os negras/os e pobres. Diante disso, a autora evidencia que essa
exclusão ocorre de variadas maneiras: através da forma como as/os alunas/os
negras/os são tratadas/os; pela ausência ou presença superficial da discussão racial
no interior das escolas; pela não existência dessa discussão também nos cursos de
formação de professoras/es; devido à baixa expectativa das/os professoras/es em
relação a essa/e aluna/o e entre tantos outros fatores. Nesse sentido, é possível
assegurar que a escola enquanto instituição social reproduz o racismo através da
maneira desigual como trata os negros, sua história e cultura, impedindo que os
mesmos sejam vistos como sujeitos históricos e sociais por meio do reforço ao
“estereótipo do não-lugar social imposto ao negro”, como afirma Gomes (2002, p. 43).
Quanto a composição identitária étnica, ambas atribuem extrema significância
aos seus pais, cujos tratavam-se de homens negros que se tornaram tanto grandes
incentivadores para os seus estudos quanto as principais referências para o
posicionamento e/ou pertencimento étnico-racial das entrevistadas. Dessa maneira,
ambas as entrevistadas alegaram que seus pais tinham consciência étnica e, que
apesar dos mesmos tratarem-se de homens negros que sofriam preconceitos, sempre
50
transmitiram segurança, buscando ter uma postura social em que se impunham.
Nesse sentido, observa-se que a figura paterna se configura como uma marca na
composição identitária étnico-racial das entrevistadas, tendo em vista que as
construções identitárias dos seus pais foram marcadas por dificuldades e/ou
preconceitos que suscitaram uma postura comprometida com a ruptura dos mesmos
para consigo e para com os outros.
“Eu sou filha de um negro e de uma mulher branca, certo, o preconceito vinha desde a minha avó, a minha avó não aceitou o casamento do meu pai com a minha mãe. Porém, meu pai era um negro de posição, ele não deixava nada abater, ele dizia que o que valia era o conteúdo, o ser pessoa. Ele era muito forte na questão de mostrar que a posição nossa é ser tornar ser humano, ele era uma pessoa muito espiritual e ele levava muito por esse lado e ele me criou assim, dizendo que a gente não perdesse nunca a posição ou ficasse
com medo de enfrentar a vida pelo fato de ser negro.” (ENTREVISTADA Nº
1, 04/05/2018).
“Mas eu tenho a sorte que eu sou filha de um pai negro consciente que era negro né, e que filha de uma mãe não branca. E aí eu sempre fui esclarecida sobre as coisas, então lidar com isso pra mim não é que seja mais fácil mas eu tinha um entendimento a respeito”. (ENTREVISTADA Nº 2, 11/05/2018).
Para tanto, conforme o relato da primeira entrevistada os preconceitos eram
gerados a partir do próprio núcleo familiar, já que a mãe da entrevistada se tratava de
uma mulher branca, naturalmente originária de uma família branca, que nunca aceitou
o casamento. Para tanto, é importante ressaltar ainda conforme Gomes (2002, p. 40)
que “a identidade construída do negro dá-se não só por oposição ao branco, mas,
também pela negociação, pelo conflito e pelo diálogo com este”. Nesse caso, o
preconceito está relacionado ao relacionamento inter-racial estabelecido entre seus
pais, o qual ainda hoje se configura como fonte de discriminação.
Além disso, quanto ao pertencimento étnico manifestado pelas entrevistadas,
ambas apresentam ter o mesmo posicionamento relacionado a sua identidade étnica.
Nesse sentido, ambas se reconhecem enquanto negras, todavia a segunda
entrevistada propõe em seu discurso uma apropriação identitária mais sólida,
demonstrando ter uma maior consciência da importância de colocar-se enquanto
negra socialmente. Dessa maneira, a mesma afirma “É... eu sou uma pessoa negra,
não sou morena, não sou mulata, não sou nenhuma palavra para me dizer o que eu
seja, eu tenho consciência de que sou uma pessoa negra“ (ENTREVISTADA Nº 2,
11/05/2018). Diante disso, Gomes (2005, p. 42) afirma que “Reconhecer-se numa
identidade supõe, portanto, responder afirmativamente a uma interpelação e
51
estabelecer um sentido de pertencimento a um grupo social de referência”. Assim, a
partir do seu posicionamento é possível que essa assume uma postura crítica e
ideológica, demonstrando ter um convicto pertencimento e maior engajamento social.
“Eu nunca sofri nenhum tipo de preconceito na trajetória escolar, agora quando a gente se torna adolescente, adulta, já em um novo relacionamento né, as pessoas não aceitam porque sabia que eu era filha de negro, então a gente sofre preconceito. Principalmente na adolescência, porque está se envolvendo em um outro relacionamento, em outra afetividade fora do convívio familiar”. (ENTREVISTADA Nº 1, 04/05/2018). “Sofri preconceito, não só na trajetória escolar mas como em toda a vida, não tem uma pessoa negra que tenha consciência e acho que nem as que não tem consciência, não tem nenhuma que nunca tenha sofrido racismo nesse país. É impossível. Começa quando você nasce, quando as pessoas olham pra você, quando diz pra sua mãe afilar seu nariz, pra arrumar seu cabelo né... a televisão diz, todas as mídias dizem isso, todas as pessoas dizem isso quando julgam o cabelo do negro como ruim. Então, o racismo está em todos os lugares” (ENTREVISTADA Nº 2, 11/05/2018).
Já ao considerarmos as vivências pertinentes as manifestações de preconceito,
apesar da primeira docente ter alegado não ter sofrido nenhum tipo de preconceito no
primeiro momento da sua trajetória escolar, evidencia que enquanto adolescente ou
adulta teve problemas de aceitação em seus relacionamentos por se tratar de uma
garota de origem negra. Enquanto, a segunda entrevistada evidencia claramente em
sua fala que foi vítima de preconceito não apenas durante a sua trajetória escolar,
como também durante a sua vida como um todo. Desse modo, coloca em relevância
as discriminações quanto as características fenotípicas dos sujeitos/os negras/os
existentes desde a infância, assim como ressalta o fato de que o racismo está
presente em todos os lugares. Afirma, portanto, não haver possibilidade de um sujeito
negro não sofrer racismo nesse país, fator notoriamente decorrente de uma cultura
nacional homogeneizadora permeada pela negação da história e cultura afro, a qual
também contribuiu de forma significativa para a formação de uma identidade
deturpada a respeito do povo negro e criação de uma homogeneização cultural.
“A minha irmã é negra, meu irmão não é negro, eu tenho um irmão branco e minha irmã é negra. Então, é como a gente vê os nossos sofrendo discriminações, como o lugar no ônibus onde você senta, o lugar do seu lado é sempre o último a ser ocupado, quando você passa na rua vê as portas dos carros se trancarem, é uma coisa que acontece com todo mundo. Você tem que está provando o tempo todo que você é bom, que você não é ladrão, que você não é marginal, que você é capaz, que você é inteligente. É um pouco até cansativo” (ENTREVISTADA Nº 2, 11/05/2018).
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Além disso, a segunda docente propõe que há uma necessidade constante de
superar o estereótipo marginal e incapaz concedido ao sujeito negro, o qual foi
intensamente disseminado pelas instituições que compunham a sociedade brasileira
como já referido e subsidiado pelas teorias científicas que categorizam e/ou
inferiorizam esse sujeito. Munanga (2006, p. 53) evidencia que “O problema
fundamental não está na raça, que é uma classificação pseudocientífica rejeitada
pelos próprios cientistas da área biológica. O nó do problema está no racismo que
hierarquiza, desumaniza e justifica a discriminação existente”. Diante disso, o autor
afirma que o combate ao racismo não se limita mais a erradicação do conceito de
raça, já que atualmente a racismo serve-se dos conceitos de diferenças culturais e
identitárias.
“Então, era uma pessoa muito preparada, eu tenho essa pessoa com muito respeito, hoje ela já não vive mais aqui no plano físico, porém eu tenha ela sempre na minha forma de relatar minha vida estudantil eu coloco ela dentro dos documentos que eu faço pra trabalhos acadêmicos, foi uma referência primordial pra mim [...] ela tinha uma estrutura que até hoje eu admiro que como é que a pessoa naquela época tinha uma prática que hoje eu segui como modelo, ela me estimulou a me tornar professora, porque ela me serviu de modelo positivo. E acredito ainda muito na educação porque ela era assim, ela estimulava os alunos, ela tinha paciência, ela era uma pessoa com categoria de professor numa base de deixar os alunos estimulados [...] Eu fui uma que escolhi ser professora pelo exemplo que eu tive” (ENTREVISTADA Nº 1, 04/05/2018).
No que se refere a identificação com a atividade docente, embora haja
evidências de que a professora inicial da primeira entrevistada se trate de uma pessoa
preconceituosa devido a sua origem, há uma notória manifestação de admiração por
parte da entrevistada com relação a docente, servindo a mesma como contínua
inspiração para a escolha da sua profissão e atribuindo o comportamento da mesma
como aporte basilar para sua prática exercida contemporaneamente. Dessa maneira,
defende que suas primeiras experiências educativas foram prazerosas e
determinantes na escolha da docência.
“Eu não estudei para ser professora, eu me transformei em professora, eu sou formada em artes visuais. Eu fui pra artes visuais por ser artista, para além de professora. Professora foi uma questão de circunstâncias, apareceu um curso para eu fazer e eu fui fazer, mas não que eu quis. E aí... eu comecei a trabalhar em escolas particulares, fiz concursos e fui pras escolas públicas” (ENTREVISTADA Nº 2, 11/05/2018).
53
Para tanto, conforme o relato acima para a outra entrevistada à docência se
manifestou de maneira diferente, já que a mesma afirma nunca ter pensando em ser
professora durante a sua trajetória de vida. Dessa maneira, a mesma se define como
uma artista e que devido a sua aptidão e interesse pela área resolveu cursar a
graduação de artes visuais na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, o qual
verifica-se como um curso de licenciatura e, portanto, proporcionou a possibilidade de
atuação na docência. Dessa maneira, no que se refere a identidade profissional a
mesma evidencia uma profunda ligação com a área artística, no entanto é possível
enxergar que à medida que suas experiências adentraram a atividade docente a sua
identificação com a profissão docente foi se constituindo, já que através do seu relato
como um todo a mesma demonstra se posicionar e exercer seu papel enquanto
professora com amplo comprometimento.
“Há discriminação no âmbito educacional, não se pode obscurecer, até pelos coleguinhas. Aluno com aluno, até acredito pela falta de conhecimento mesmo, de respeito, pela base que é adquirida. Porque nós temos que ter uma base, nós somos a estrutura daquilo que adquirimos na nossa infância, é muito importante a família, a construção da família, e as vezes a convivência de família pelo fato de desconhecimento, eu acredito leva a criança a usar esses termos, esses tipos de comportamentos inferiores que não levam a crescer em nada” (ENTREVISTADA Nº 1, 04/05/2018). “Discriminação na escola acontece com certeza. Um menino negro, que fala pra outro menino negro que fala pra um branco, ah seu macaco... então, são xingamentos. Eu sempre luto por isso para ficar claro na escola, com professores, gestão da escola, que bullying e racismo não são a mesma coisa, bullying é uma coisa e racismo é outra muito pior. O racismo ele desumaniza, são coisas diferentes” (ENTREVISTADA Nº 2, 11/05/2018).
Quanto as manifestações de racismo vivenciadas no ambiente escolar
enquanto docentes, pode-se pressupor que há uma espécie de naturalização do
racismo no meio escolar, já que a não aceitação ao fenótipo dos educandos negros
se naturaliza em forma de brincadeira pelos demais alunos conforme suscitado pelas
entrevistadas. A ofensa e/ou agressão é, portanto, tratada de forma banal pelos
educandos, renegando o fenótipo das/os alunas/os negra/os com base nos critérios
estabelecidos pela cultura eurocêntrica implantada em nosso país, a qual ainda hoje
se manifesta em forma de preconceito. De modo que, assim como a professora relata
é importante considerar que a própria base familiar não fornece subsídios para que
esse preconceito seja desconstruído, possivelmente devido aos país e/ou familiares
não terem tido esclarecimentos quanto à conduta racista em sua trajetória educacional
54
e social como um todo. Além disso, conforme o relato da segunda depoente há uma
simplificação do racismo ao considerá-lo semelhante ao bullying, o que comprova o
desconhecimento dos profissionais existentes na escola quanto a ambos os
fenômenos e ratifica o despreparo dos profissionais em lidar com manifestações
geradas por tais fenômenos contribuindo também para essa naturalização do
preconceito.
Ainda no que se refere ao fenótipo, a primeira entrevistada propõe que
enquanto aluna do curso de Psicanálise auxiliou em uma situação de caráter racista,
tendo a possibilidade de intervir no processo de aceitação e, consequentemente,
construção identitária de uma garota que sofria intensas manifestações racistas
relacionadas ao seu fenótipo no âmbito escolar.
“Já presenciei o preconceito e até fui procurada a ouvi-la, para que pudesse escutá-la, era uma menina que era bem pretinha e o menor nome que ela recebia no ambiente escolar era de feijão preto e isso dificultou muito a aprendizagem dela. Perdeu o estímulo de querer ir pra escola e a mãe dela me procurou para que eu pudesse conversar com ela, na época eu era estudante de psicanálise, e eu conversei e as coisas foram caminhando. Hoje é uma pessoa, uma mulher bem posicionada” ENTREVISTADA Nº 1, 04/05/2018).
Diante dos fatos mencionados, é possível perceber que a escola não favorece
a construção de uma identidade negra, já que ainda categoriza os indivíduos com
base na concepção biológica das raças. No entanto, conforme Munanga (2006) o que
cria o problema não é o conceito de raça, mas a diferença fenotípica simbolizada pela
raça. Nesse sentido, propõe que a solução não está na negação dessas diferenças
e/ou na erradicação do conceito de raça, mas através da luta e por meio de uma
educação que promova uma convivência igualitária entre as diferenças.
Além disso, é perceptível que as docentes apresentam consciência de como o
racismo se revela no âmbito escolar e da importância dos seus papéis enquanto
docentes em atuação na desconstrução dos preconceitos exalados no meio
educacional. Através dos depoimentos, demonstram tentar exercer uma postura
crítica em sala de aula, se propondo a serem professoras questionadoras para consigo
e para com o alunado. Nesse sentido, Gomes (2002, p. 42) coloca em relevância que
a escola precisa “posicionar-se politicamente e não só ideologicamente – contra
processos excludentes. Implica construir novas práticas pedagógicas, novos materiais
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didáticos, abrir debates, estabelecer diálogo com a comunidade negra, com o
movimento negro...”.
“Em sala de aula eu me sinto tão bem, tão realizada, cada dia em sala de aula eu me sinto chegando como se fosse o primeiro dia, eu fui uma pessoa muito estimulada conforme já falei. E hoje não tenho vergonha de ser professora e tenho muito desejo de aprender muito ainda, por isso que ainda estudo, sou questionadora, sou exigente comigo mesma entendeu e eu me sinto bem como profissional. Eu levo toda essa mensagem que eu tenho dentro de mim, de credibilidade, de confiança, de acreditar que a educação é a base de tudo, eu levo pra essa criança. Independente de cor, de qualquer situação” (ENTREVISTADA Nº 1, 04/05/2018).
“Como eu trabalho em sala de aula, eu sou professora das periferias, eu trabalho no Bom pastor, nas Quintas, Pajuçara, na comunidade da África e no Santarém na zona norte. Então, eu trabalho na periferia, e quem está na periferia são pessoas negras em sua maioria, então eu sou uma das poucas professoras negras da escola e a única que trata essas questões na escola, em todas elas. Não faz muita diferença, vamos dizer assim, um professor negro que não trabalha essas questões com seus alunos” (ENTREVISTADA Nº 2, 11/05/2018).
Nesse sentido, a posição das professoras no trecho acima expressa esse
comprometimento ideológico e político, abrangendo as dimensões étnica e docente.
Assim, a primeira entrevistada revela que se sente realizada enquanto docente,
apresentando uma elevada autoestima e segurança na mensagem que deseja
transmitir em sala de aula. Bem como, a segunda evidencia ter uma clara consciência
da importância do seu papel social enquanto professora negra e da mensagem que
deve ser transmitida no espaço escolar. Tais fatos traduzem, portanto, que o
pertencimento étnico-racial e o comprometimento com a atividade docente se
configuram como importantes ferramentas no âmbito educacional para superação
dessa prática racista arraigada. Diante disso, essas ferramentas auxiliam na
promoção de uma prática docente coerente, respeitando os princípios democráticos
em conformidade com a pluralidade existente.
Desse modo, as entrevistadas reafirmam seus compromissos como
educadoras ao não se prenderem aos padrões estabelecidos e ao exaltarem a
criticidade dos seus educandos. Buscam ressignificar, portanto, a educação através
das suas propostas pedagógicas, promovendo sempre que possível e necessário uma
quebra quanto aos conteúdos, por exemplo.
“Eu sou considerada quase uma professora rebelde, e isso não me atinge, isso para mim é elogio, certo, eu não me prendo ao padrão. Tem as regras tem, obedeço algumas regras, porém eu procuro na minha prática
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pedagógica levar o melhor possível que eu tenho como ser para meus alunados e levo muito a eles a se questionar, a se observar, a duvidar, a criticar, eu questiono muito isso. E a pergunta, porque é na pergunta na criticidade que o ser humano cresce. Não utilizo livro, porque até a disciplina que eu ensino (ensino religioso), que eu não ensino nada eu médio, e aí eu tenho meus fundamentos filosóficos, antropológicos, sociológicos, entendeu, e eu não me prendo nessa questão de livro. O livro me serve como norteador de algumas coisas, mas eu tenho que ter cuidado que estou construindo, estou levando o outro a pensar e a se construir” (ENTREVISTADA Nº 1, 04/05/2018). “Quando eu comecei a trabalhar em escola pública, o primeiro concurso que foi em Macau, eu estava no processo religioso em que eu usava guias, branco todos os dias, então a minha religião era identificada em todos os lugares. Então, foi importante pros meus alunos que tinham aula de religião, mas não reconheciam nada da religião afro, de nenhuma delas, eu comecei a questionar até os outros professores como é que vocês dão aula de religião e os alunos estão no nono ano já e não tem nenhum conhecimento, nenhuma nomenclatura, absolutamente nada de uma religião afro. Que educação é essa que não alcança todas as nuances ou todos os tipos, todas as possibilidades de religião num estado laico que é o Brasil, pelo menos teoricamente. [...] Então, principalmente os professores que carregam a estética negra, eles precisam fazer esse trabalho e não só eles, todos os outros, porque eles são professores, eles não estão alí pra impor o que eles acreditam, a religião que eles acreditam” (ENTREVISTADA Nº 2, 11/05/2018).
Diante dos relatos, ficou perceptível que a primeira entrevistada afirma não se
restringir ao livro como subsídio teórico principal para sua prática, afirmando utilizá-lo
apenas como norteador e ainda se fundamentar nos seus princípios antropológicos,
sociológicos e filosóficos oriundos de suas formações acadêmicas ao longo da vida.
Ademais, tendo em vista que a primeira entrevistada atua como professora de religião
nas escolas do município é possível inferir que sua prática é preponderante na quebra
de inúmeros preconceitos, principalmente no que cabe ao aspecto religioso. Assim
como, a segunda entrevistada executa essa quebra através da proposição de
questionamentos para com a comunidade escolar como um todo, além de fazer
questão de enfatizar suas questões étnicas através da sua religiosidade afro e da
exaltação da sua estética enquanto negra. Nesse sentido, é notório que ambas
sugerem estimular a desconstrução da visão cristã unificada, abrindo espaço para
outras religiões e desde então para a cultura e, especialmente, religião afro.
“Como professora, eu tive sempre o cuidado de sobrepujar algo que fosse superior a essa questão, que eu considero ínfima, que não leva a lugar nenhum. Então, eu tive esse cuidado. Eu acho que o que vale é investimento em si, em acreditar em si e manter essa postura que nós somos capazes e levar para o outro essa mesma mensagem de positividade. [...] Eu conduzo a coisa, essa visão de valor ínfimo, e levo para o aluno que o que é importante é a construção do ser humano, ele que deve ser construído, ele como pessoa,
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ele como sujeito, ele como indivíduo, onde ele estiver e com quem ele estiver ele tem que considerar que o mais importante na vida é essa construção da cidadania” (ENTREVISTADA Nº 1, 04/05/2018). “Então, essa relação do aluno enxergar a cultura do seu professor e o professor se colocar como pertencente daquele lugar é importante para a formação desses alunos. Se os outros professores negros das escolas também fizessem esse trabalho né, eles não precisariam chegar e dar uma aula sobre negritude, a forma dele agir em sala de aula, os comentários que ele possa fazer ou trazer exemplos não de artistas brancos, mas de artistas negros para eles entenderam que também tem, de artistas indígenas para eles entenderem que também tem. Mas também cientistas negros, para eles entenderem que não é só capoeira, futebol, samba, que tem pesquisadores que trabalham [...] Então, as questões raciais têm que ser tratadas com muito cuidado. Não só a religião, mas entra a capoeira, entra várias coisas da cultura afro que são discriminadas e aí essas crianças vão... como assim? Tudo que haver com a minha pele, tudo que tem haver com as minhas raízes, com a minha ancestralidade não presta, então eu não quero ser, mas não tem como você apagar o que você é, né... então a formação pra essa questão é muito importante” (ENTREVISTADA Nº 2, 11/05/2018).
Ainda quanto a identidade docente, as docentes colocam em relevância o
comprometimento ao exercer tal função e a importância do seu papel na construção
do outro, fazendo o aluno repensar sobre o seu posicionamento enquanto indivídua/o
negra/o. A primeira entrevistada atribui o racismo como uma questão de valor ínfimo,
propondo que independente da condição étnica o mais importante é a construção do
educando enquanto cidadão e/ou a construção do indivíduo de maneira integral.
Enquanto, a segunda demonstra uma maior preocupação em ressaltar a importância
de trabalhar as questões étnicas no meio escolar, a fim de promover o pertencimento
necessário aos seus educandos, valorizando a cultura e a história do povo negro e
não renegando as suas origens.
Através dos relatos é possível perceber que a segunda docente evidencia seu
pertencimento étnico enquanto professora através de atividades e comportamentos
que consolidam o seu posicionamento frente ao demais, buscando superar qualquer
concepção racista engendrada na escola. Assim, contribui diretamente para a
construção identitária étnica dos seus alunos ao se colocar como referência negra
para os mesmos e ao trazer outras referências de personalidades negras, bem como
de acordo Gomes (1997), busca “reconhecer que existe uma produção cultural que é
realizada pelos negros” através da desconstrução do estereótipo sugerido a cultura
afro, o qual designa como relevante apenas determinados aspectos como a capoeira,
o futebol e o samba, rompendo com a crença de que esses são os únicos elementos
da cultura afro que constituem a identidade nacional.
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“[...] a minha pesquisa na graduação trabalha as questões étnicas da mulher negra dentro das artes visuais como artista na sua colocação e depois eu comecei a pesquisar o que são essas mulheres negras dentro da minha família, e eu fui por um lado autobiográfico. Então, eu fui pesquisar as mulheres negras na minha família em toda a sua ancestralidade, e após isso apareceu essa especialização em história e cultura africana, como é o que eu pesquisava, eu fui fazer a especialização. E quando eu tava com a minha especialização encaminhada eu entrei no mestrado, e minha pesquisa do mestrado que é a minha terceira pesquisa, vamos dizer assim, também são essas questões. Só que no mestrado eu pesquiso toda a minha família e não só as mulheres” (ENTREVISTADA Nº 2, 11/05/2018).
Bem como, é possível perceber conforme o relato acima que o posicionamento
étnico da segunda entrevistada enquanto docente é reafirmado conforme as suas
formações, já que a mesma se propõe a pesquisar temáticas respectivas a suas raízes
e/ou ancestralidade desde a sua formação inicial enquanto graduanda. Tais
acontecimento revelam que assim como apontam Nunes; Ramalho (2005, p. 100), “As
identidades profissionais surgem e se modificam durante a formação inicial na qual
enfrentam realidades diversas tanto nos contextos de atividade profissional quanto
nos sociais mais amplos, em face de novas necessidades sentidas pelos professores”.
Diante disso, assegura que não existem identidades prontas, mas identidades que vão
sendo constituídas mediante as necessidades que permeiam tanto as dimensões
individuais quanto coletivas, podendo assumir novas configurações identitárias assim
como também assegura Dubar (2005). Portanto, suas formações acadêmicas fazem
parte do processo de composição da sua identidade docente, assim como ratificam a
sua identidade étnica, sendo possível crer que as mesmas atuam de maneira
interdependentes atuando uma em conformidade com a outra.
“[...] é essa construção do ser, do pensar como a fonte do crescimento numa relação de si para consigo mesmo e de si para si, e do para si em si, o que é que quero dizer com isso. Que ele saiba se relacionar bem com ele, bem com o outro, que ele leve o outro a enxergar e se relacionar bem consigo e depois com ele mesmo e nessa relação eu vou multiplicando a minha relação com o mundo, com o outro, com a realidade, com a humanidade de modo geral. Com a sociedade onde eu estou presente no mundo e na vida, a minha postura de mundo, a minha postura de ser” (ENTREVISTADA Nº 1, 04/05/2018).
Além disso, em dado momento a primeira docente manifesta também
preocupar-se com a construção identitária dos sujeitos, pois revela que em sua prática
enfatiza o relacionamento do aluno para consigo mesmo e para com o outro e/ou para
com a realidade em geral. Ademais, em concordância com Dubar (2005) pressupõe
que o sujeito constrói sua identidade com base em duas dimensões, sendo essas com
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base nas concepções internas e externas ao sujeito – formada pela autoimagem e
imagem alheia constituída. Assim, Dubar (2005, p. 135) assegura “nunca sei quem
sou a não ser no olhar do outro”.
Para tanto, conforme assegura Gomes (2002), ao tratar da construção
identitária das/os negras/os nos vários espaços institucionais ou não, é possível inferir
que a identidade é forjada durante toda a trajetória escolar, em que se deparam com
diferentes olhares sobre o seu pertencimento racial, sua cultura e história, os quais
podem vir a chocar-se com o sua própria visão e experiência de negritude: “Não é fácil
construir uma identidade negra positiva convivendo e vivendo num imaginário
pedagógico que olha, vê e trata os negros e sua cultura de maneira desigual” (p. 42).
Desde então, constroem-se as identidades a partir das alteridades e semelhanças,
bem como a educação e a identidade negra estão imersas nas relações entre o social
e o individual e entre passado e o presente, ainda segundo Gomes (2002).
Em conformidade, Dubar (2005) alega que a socialização realizada tanto no
universo escolar quanto no núcleo familiar durante a infância é proeminente na
composição das identidades sociais e profissionais dos indivíduos, bem como a
própria entrevistada afirma “Os alunos estão pra escola para além de aprender
matérias, disciplinas, eles tem que aprender a se socializar”. (ENTREVISTADA Nº 2,
11/05/2018). Nesse caso, a identidade social inicial é formada através dos primeiros
parceiros pertinentes aos familiares e professores que circundam o convívio social dos
sujeitos. Isso ratifica a importância da família e do papel do educador na construção
identitária dos indivíduos e em concordância com os relatos das entrevistadas
reafirma a relevância do posicionamento dos seus pais enquanto sujeitos negros, bem
como do comportamento dos seus professores ao longo da vida na construção
identitária enquanto professoras negras.
Assim como asseguram Hall (2011) e Dubar (2005) a identidade se constitui
através da interação com os demais sujeitos e seus respectivos posicionamentos e/ou
olhares, ou seja, a partir do processo de socialização. Nesse caso, as/os docentes
negras/os em questão através das suas experiências tem a oportunidade de vivenciar
sentimentos de pertença ou negação ao longo das suas respectivas trajetórias. Dessa
maneira, conforme os depoimentos aqui relatados, as professoras negras em questão
ao longo das trajetórias de vida compuseram o seu sentimento de empoderamento e
autoafirmação perante as situações vivenciadas enquanto alunas durante as
experiências educativas aqui relatadas, indivíduas negras e docentes. Nessa
60
perspectiva, como evidencia Gomes (1997, p. 23) “Os negros trouxeram para a
educação o questionamento do discurso e da prática homogeneizadora, que despreza
as singularidades e as pluralidades existentes entre os diferentes sujeitos presentes
no cotidiano escolar”, assim, ao invés de se submeterem a uma concepção excludente
implantada, se posicionam frente ao racismo traçando comportamentos que
fortalecem o seu posicionamento étnico, solidificam a sua prática enquanto docentes
em atuação e contribuem de forma exponencial para a construção identitária dos seus
educandos, em especial, negras/os.
61
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo teve início partindo da concepção de que a atual condição
do povo negro apesar de diferente, ainda apresenta vestígios de um passado
excludente que se reflete na sua presente condição social. Para tanto, é perceptível
que essa trajetória histórica também se reflete no âmbito educacional brasileiro,
corroborando em índices e condições educacionais excludentes no que se refere a
população negra. E como já referido durante o estudo, tais fatores se repercutem na
composição de uma escola que auxilia na disseminação da prática racista através dos
diversos elementos que a constitui, como por meio da ausência de pertencimento
étnico por parte das/os professoras/es negras/os que a compõe, fator motivador do
estudo.
Nesse sentido, partiu-se do pressuposto de que a construção identitária dos
docentes negras/os poderia se constituir de forma fragilizada, se revelando na
ausência desse pertencimento étnico e possivelmente se refletindo na composição
identitária das/os educandas/os negras/os. Diante disso, partindo do princípio de que
as experiências educativas podem gerar tanto relações de pertencimento quanto de
negação com relação a identidade étnico-racial das/os sujeitas/os negras/os, assim
como consequentemente se refletem na composição identitária dos docentes
negras/os, a partir das análises realizadas foi possível compreender que as trajetórias
educacionais das docentes entrevistadas foram permeadas por acontecimentos que
demarcaram a constituição tanto das suas identidades étnico-raciais quanto docentes.
Nesse caso, através da experiências educativas relatadas ficou perceptível que
apesar de em maioria as crianças e/ou jovens negras/os se submeterem a condições
educacionais precarizadas no cenário educacional brasileiro, já que normalmente
pertencem às classes sociais menos favorecidas, as entrevistadas em questão
tiveram a possibilidade de garantir seus estudos através de melhores condições
fornecidas pelos seus pais, os quais as incentivaram profundamente, enxergando o
acesso ao conhecimento como possiblidade de ascensão social e possível superação
de qualquer manifestação racista através do empoderamento proporcionado pelo
mesmo. Portanto, é possível inferir que o acesso a educação se configurou como
aporte basilar para constituição dos seus pertencimentos étnicos, sendo por meio
destes que essas se fortaleceram perante qualquer prática racista evidenciada
durante suas trajetórias. A partir disso, compreende-se que o acesso à educação
62
ainda se configura como eixo principal para formação de uma identidade étnica sólida,
já que é através do mesmo que a população negra tem a possibilidade de se libertar
das amarras que a subjugam em uma condição excludente e superar os padrões
homogeneizadores estabelecidos pela sociedade brasileira.
Todavia, mediante os relatos das entrevistadas é perceptível que a escola
ainda se constitui como um espaço que promove um silenciamento com relação as
questões étnico-raciais e/ou relacionadas a população negra. Nesse sentido, embora
atualmente exista uma luta mais sólida por parte do Movimento Negro com o propósito
de democratizar a escola e torná-la um ambiente plural, a escola ainda está imersa
em um cenário de inúmeras fragilidades que se refletem diretamente na constituição
identitária dos sujeitos negros que a integram. Nesse caso, apesar de haverem
melhorias no âmbito educacional favorecidas pelo Movimento Negro ainda é
necessário que a escola se redefina e/ou se reorganize a fim de reconhecer
historicamente a importância da população negra e auxiliar na desconstrução de
quaisquer preconceitos e no que se refere a identidade negra, em especial, a conduta
racista.
Além disso, os relatos deixaram evidente que a constituição identitária das
professoras em questão foi fortemente influenciada pelo núcleo familiar, tendo como
principal referencia os seus respectivos pais, os quais eram sujeitos conscientes da
sua condição étnica. Dessa forma, é possível pressupor como já relatado durante o
estudo que a família se constitui como fator preponderante na composição identitária
dos sujeitos, tendo nesse caso um papel extremamente significativo para a formação
do sentimento de pertença desenvolvido pelas docentes. Assim, ter a figura paterna
negra como referência determinou que as mesmas desenvolvessem um sentimento
de valorização da cultura negra e, consequentemente, autovalorização, não
demonstrando ter a concepção de que era necessário assemelhar-se ao sujeito
branco para serem aceitas socialmente.
Quanto ao preconceito experenciado, é importante ressaltar que essas
docentes não o vivenciaram somente nas trajetórias educacionais, mas ao longo de
toda a trajetória de vida, os quais as fizeram assumir desde cedo uma provável postura
imponente a fim de combatê-lo e superá-lo mediante tais situações. Isso se manifesta
atualmente na eminente manifestação dos seus traços físicos, os quais consolidam o
seu pertencimento através da aceitação e evidenciação do seu fenótipo enquanto
individuas negras.
63
Para tanto, é notório que o pertencimento étnico das docentes se reflete nas
suas práticas enquanto docentes em atuação, já que buscam ressignificar o papel da
população negra através da execução de atividades que evidenciam a importância da
história e cultura afro. Dessa maneira, buscam transmitir aos seus alunos esse
sentimento de pertencimento por vezes fazendo os seus educandos se enxergarem
de maneira igualitária, ressaltando que todos são capazes de alcançar seus objetivos
e/ou sonhos e prezando primordialmente pelo respeito para com o outro. Bem como,
buscam quebrar os padrões instituídos pelos recursos didáticos que atuam como
instrumentos difusores de preconceitos e estereótipos. Além disso, a segunda
professora, em especial, demonstra ressaltar a importância de problematizar essa
questão dentro do ambiente escolar para com os outros professores e gestão a fim de
introduzir na escola a concepção que propõe uma representação positiva/significativa
a respeito do povo negro. Desse modo, evidenciam claramente que admitem uma
postura crítica em sala de aula e no interior da escola como um todo, propondo os
questionamentos necessários para com a comunidade escolar e com os seus
educandos.
Nessa perspectiva, é possível perceber que tanto os educadores quanto a
escola possuem um papel importante na formação de representações significativas
sobre o negro, bem como sobre outros grupos excluídos socialmente. Dessa maneira,
mais do que apresentar para os alunos referências, apresentar a contribuição
histórica, política e social como um todo do povo negro, é necessário problematizar a
questão étnico-racial a fim de propor reflexões que despertem os educandos para
esse processo de construção identitária, conscientizando-os do seu espaço e também
do seu papel enquanto cidadão negro.
É necessário, portanto, construir uma prática pedagógica comprometida com a
formação de uma escola verdadeiramente democrática e plural, a qual pode ser
estimulada a partir de processos formativos para com os profissionais da educação a
fim de desconstruir o silenciamento sobre as relações étnico-raciais, configurando-se
como elemento essencial na construção do pertencimento para com esses
profissionais e, consequentemente, para com os educandos.
Assim, é preciso que a cultura negra venha a romper com a estrutura rígida que
compõe a escola, a qual é formada por uma visão inflexível, doutrinadora e uniforme.
Nesse sentido, é preciso considerar as várias identidades constituídas pelos
indivíduos, bem como suas manifestações culturais, respeitando as singularidades e
64
pluralidades dos respectivos sujeitos presentes no âmbito educacional. Para além
disso, é importante ressaltar que a exclusão do povo negro realizada pela educação
brasileira ultrapassa os limites da dimensão ideológica através da reprodução de
estereótipos e práticas e/ou comportamentos racistas, mas está presente também de
maneira notória nos índices/processos de evasão e repetência escolar.
De modo geral, é necessário haver uma ênfase no processo de resistência
negra com o propósito de pressionar a instituições como um todo, no sentido de
desconstruir a imagem histórica distorcida concebida pela cultura nacional, assim
como romper com a concepção de que há uma cultura única e homogênea,
reconhecendo a existência de uma vasta produção cultural originada pelo povo negro
que é parte integrante da nossa identidade nacional.
É, portanto, fundamental que haja um cerceamento da concepção ilusória de
que existe uma homogeneização cultural e, consequente, identitária, ressaltando que
a cultura nacional e as instituições que compõem o estado-nação sempre foram e
ainda são influenciadas pelo povo negro, bem como recebem rotineiramente suas
contribuições na dança, música, religião e demais tradições, concedendo o espaço de
direito desse desde sempre usurpado e constituindo uma sociedade igualitária e
coerente com a diversidade que a compõem.
65
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68
APÊNDICE 1
ROTEIRO - GUIA PARA RELATOS ORAIS
OBJETIVOS
DIMENSÕES
QUESTIONAMENTOS
• Explicitar como se deu a trajetória educacional de professora/es negras/os que hoje atuam como docentes na educação básica na cidade de Natal.
VIVÊNCIAS EDUCATIVAS
Como iniciou a vida escolar? Com que idade e em que localidade? Era escola ou grupo escolar? Estudou em escola pública ou privada? Como era a sua relação com a professora e com os demais alunos? Como eram as práticas dos professores? Havia algum tipo de punição? Havia alguma discussão sobre racismo e/ou discriminação racial na escola? Como os sujeitos negros eram vistos/percebidos na escola?
• Identificar como as experiências educativas vivenciadas pelas docentes negras/os influenciaram a construção do seu posicionamento étnico-racial.
IDENTIDADE ÉTNICO-RACIAL
Como você se define quanto a sua condição étnico-racial? Mediante a sua condição étnica, você já sofreu algum tipo de preconceito durante a trajetória escolar? Durante a sua trajetória escolar você já presenciou outra pessoa sendo vítima de preconceito? Como ocorreu? Qual foi o seu posicionamento diante de tal acontecimento?
• Perceber de que modo as experiências educativas vivenciadas por essas/es docentes influenciam em suas práticas docentes.
IDENTIDADE DOCENTE
Você acha que a sua condição étnico-racial interferiu na sua formação como professor? Você acha que a sua condição étnica interfere nas sua conduta e/ou prática em sala de aula? Como? Você percebe que há discriminação racial no âmbito escolar? Qual é o seu posicionamento frente a essas atitudes discriminatórias?
CARACTERIZAÇÃO DO LOCUS (CENÁRIO) DA PESQUISA:
A pesquisa será realizada na cidade de Natal, Rio Grande do Norte, em escolas da rede pública.
CARACTERIZAÇÃO DOS SUJEITOS ENTREVISTADOS:
Os sujeitos entrevistados tratam-se das/os professoras/es negras/os, residentes da cidade de Natal e integrantes da educação básica, além de preferencialmente pertencerem a rede pública de educação.
69
APÊNDICE 2
ENTREVISTADA Nº 1
RELATO ORAL – PROFESSORA MARIA JOSÉ DE OLIVEIRA NUNES
Quanto as minhas experiências educativas eu posso dizer que foram muito
positivas pra mim, eu fui uma aluna de sorte na vida estudantil. Quando iniciando meu
processo educativo fui educada no interior com uma professora que ela tinha só
apenas o quarto ano primário, mas sabia tudo. A minha base toda hoje acadêmica de
formação foi toda baseada no que eu aprendi na minha vida estudantil dos primeiros
anos iniciais. Então, era uma pessoa muito preparada, eu tenho essa pessoa com
muito respeito, hoje ela já não vive mais aqui no plano físico, porém eu tenha ela
sempre na minha forma de relatar minha vida estudantil eu coloco ela dentro dos
documentos que eu faço pra trabalhos acadêmicos, foi uma referência primordial pra
mim. Ela era branca, e era uma pessoa que tinha os preconceitos dela também por
que até pelo fato dela ser branca ela foi criada num convívio familiar também que era
bem preconceituoso. Fui alfabetizada na minha própria casa, na casa dos meus pais,
meu pai teve uma preocupação conosco, filhos, em que ele devido as dificuldades e
a gente morar no interior, então ele pagava um professor para ficar dentro da cada da
gente e nos ensinar a aprender a ler e a escrever que era o básico. A minha relação
com a professora e com os demais alunos, era de muita afetividade de respeito, de
carinho, comigo e com os demais alunos. E como aluna, numa relação de aluna com
aluno a gente se respeitava porque era alí o convívio de família, eram pessoas que
eram sobrinhos, pessoas que eram tios, estudavam todos juntos. Então a gente tinha
um convívio familiar com muito respeito a partir de uma base que eu tive com meu
núcleo familiar, pai e mãe. Meu pai que arcava com todas as despesas, porém abria
o espaço para todas as crianças que moravam alí naquele lugar, pra ter acesso ao
estudo. Sobre punições ela tinha uma estrutura que até hoje eu admiro que como é
que a pessoa naquela época tinha uma prática que hoje eu segui como modelo, ela
me estimulou a me tornar professora, porque ela me serviu de modelo positivo. E
acredito ainda muito na educação porque ela era assim, ela estimulava os alunos, ela
tinha paciência, ela era uma pessoa com categoria de professor numa base de deixar
os alunos estimulados. Eu fui uma que escolhi ser professora pelo exemplo que eu
tive. Não havia racismo na sala de aula, porque nós erámos da mesma família então
se respeitava muito, meu pai por ser um grande líder de família então era muito
70
respeitado. E aí os filhos dele também mantinha esse respeito. Existiam negros, mas
não tinha essa questão acentuada, que pudesse existir a manifestação do preconceito
e da discriminação. Eu sou filha de um negro e de uma mulher branca, certo, o
preconceito vinha desde a minha avó, a minha avó não aceitou o casamento do meu
pai com a minha mãe. Porém, meu pai era um negro de posição, ele não deixava nada
abater, ele dizia que o que valia era o conteúdo, o ser pessoa. Ele era muito forte na
questão de mostrar que a posição nossa é ser tornar ser humano, ele era uma pessoa
muito espiritual e ele levava muito por esse lado e ele me criou assim, dizendo que a
gente não perdesse nunca a posição ou ficasse com medo de enfrentar a vida pelo
fato de ser negro. Ele era um agricultor que tinha as condições de sobrevivência sem
nenhum problema de dificuldade de vida, vamos dizer assim, financeira. Partindo dos
princípios éticos do meu pai, eu não considero que sofro preconceito, isso pra mim é
muito ínfimo, não levo preconceito, e eu não levo isso para o aluno. Meu pai foi minha
base e minha referência, como ele se posicionava. Ele trazia literatura de cordel pra
gente ler, colocava em cima da mesma e dizia taí pra quem quiser ler. Eu nunca sofri
nenhum tipo de preconceito na trajetória escolar, agora quando a gente se torna
adolescente, adulta, já em um novo relacionamento né, as pessoas não aceitam
porque sabia que eu era filha de negro, então a gente sofre preconceito.
Principalmente na adolescência, porque está se envolvendo em um outro
relacionamento, em outra afetividade fora do convívio familiar. Já presenciei o
preconceito e até fui procurada a ouvi-la, para que pudesse escutá-la, era uma menina
que era bem pretinha e o menor nome que ela recebia no ambiente escolar era de
feijão preto e isso dificultou muito a aprendizagem dela. Perdeu o estímulo de querer
ir pra escola e a mãe dela me procurou para que eu pudesse conversar com ela, na
época eu era estudante de psicanálise, e eu conversei e as coisas foram caminhando.
Hoje é uma pessoa, uma mulher bem posicionada. Como professora, eu tive sempre
o cuidado de sobrepujar algo que fosse superior a essa questão, que eu considero
ínfima, que não leva a lugar nenhum. Então, eu tive esse cuidado. Eu acho que o que
vale é investimento em si, em acreditar em si e manter essa postura que nós somos
capazes e levar para o outro essa mesma mensagem de positividade. Em sala de aula
eu me sinto tão bem, tão realizada, cada dia em sala de aula eu me sinto chegando
como se fosse o primeiro dia, eu fui uma pessoa muito estimulada conforme já falei.
E hoje não tenho vergonha de ser professora e tenho muito desejo de aprender muito
ainda, por isso que ainda estudo, sou questionadora, sou exigente comigo mesma
71
entendeu e eu me sinto bem como profissional. Eu levo toda essa mensagem que eu
tenho dentro de mim, de credibilidade, de confiança, de acreditar que a educação é a
base de tudo, eu levo pra essa criança. Independente de cor, de qualquer situação.
Há discriminação no âmbito educacional, não se pode obscurecer, até pelos
coleguinhas. Aluno com aluno, até acredito pela falta de conhecimento mesmo, de
respeito, pela base que é adquirida. Porque nós temos que ter uma base, nós somos
a estrutura daquilo que adquirimos na nossa infância, é muito importante a família, a
construção da família, e as vezes a convivência de família pelo fato de
desconhecimento, eu acredito leva a criança a usar esses termos, esses tipos de
comportamentos inferiores que não levam a crescer em nada. Eu conduzo a coisa,
essa visão de valor ínfimo, e levo para o aluno que o que é importante é a construção
do ser humano, ele que deve ser construído, ele como pessoa, ele como sujeito, ele
como indivíduo, onde ele estiver e com quem ele estiver ele tem que considerar que
o mais importante na vida é essa construção da cidadania, é essa construção do ser,
do pensar como a fonte do crescimento numa relação de si para sigo mesmo e de si
para si, e do para si em si, o que é que quero dizer com isso. Que ele saiba se
relacionar bem com ele, bem com o outro, que ele leve o outro a enxergar e se
relacionar bem consigo e depois com ele mesmo e nessa relação eu vou multiplicando
a minha relação com o mundo, com o outro, com a realidade, com a humanidade de
modo geral. Com a sociedade onde eu estou presente no mundo e na vida, a minha
postura de mundo, a minha postura de ser. Eu sou considerada quase uma professora
rebelde, e isso não me atinge, isso para mim é elogio, certo, eu não me prendo ao
padrão. Tem as regras tem, obedeço algumas regras, porém eu procuro na minha
prática pedagógica levar o melhor possível que eu tenho como ser para meus
alunados e levo muito a eles a se questionar, a se observar, a duvidar, a criticar, eu
questiono muito isso. E a pergunta, porque é na pergunta na criticidade que o ser
humano cresce. Não utilizo livro, porque até a disciplina que eu ensino (ensino
religioso), que eu não ensino nada eu médio, e aí eu tenho meus fundamentos
filosóficos, antropológicos, sociológicos, entendeu, e eu não me prendo nessa questão
de livro. O livro me serve como norteador de algumas coisas, mas eu tenho que ter
cuidado que estou construindo, estou levando o outro a pensar e a se construir.
Formando um cidadão crítico, um cidadão nobre, de sentir prazer de viver e ser gente.
72
APÊNDICE 3
ENTREVISTADA Nº 2
RELATO ORAL – PROFESSORA CLAUDIA INGRID CAMPOS PAIVA MOREIRA
Minha vida escolar começou quando eu tinha dois anos e meio, eu comecei a
frequentar a escola, o jardim de infância né... No interior do Rio Grande do Norte, eu
nasci em Natal mas eu viajei muito durante a infância e devido ao trabalho do meu
pai. Nasci aqui, fui pra São Paulo do Potengi no interior, fiquei lá um tempo, depois foi
pro Amazonas e depois a gente voltou pra São Paulo do Potengi, depois foi pra
Rondônia e depois de Rondônia foi pra Bahia, depois voltou pra São Paulo do Potengi
e depois de São Paulo do Potengi vim pra Natal. Mas nasci em Natal, meu pai é
gaúcho e minha mãe é do interior. Então, as escolas sempre foram de todos os jeitos,
estudei em escola particular toda a vida, não me lembro de nenhuma vez ter estudado
em uma escola pública. Minha relação com os professores sempre foi boa, porque eu
sempre fui uma aluna muito “cdfzinha”, muito boa... então nunca tive problema com
professor. Com os meus colegas também nunca tive problema... as práticas dos
professores eu nunca tive problema quanto a questão racial que eu tenha lembrança
né ou que tenha entendido eu nunca percebi. A questão dos colegas a princípio eu
sempre senti assim... depois que eu tive algum conhecimento e não era tão pequena
que a princípio sempre nos primeiros dias quanto chegava na escola eu era última a
ser escolhida pelos grupos, até eles entenderem que a minha nota era melhor do que
a deles, aí depois disso, que eu provava com a minha capacidade aí mudava. Questão
de punição eu nunca sofri nenhuma. Na adolescência eu comecei a perceber muito
mais, quanto mais eu tinha entendimento, mais eu percebia. Mas eu tenho a sorte que
eu sou filha de um pai negro consciente que era negro né, e que filha de uma mãe
não branca. E aí eu sempre fui esclarecida sobre as coisas, então lidar com isso pra
mim não é que seja mais fácil mas eu tinha um entendimento a respeito. Eu nunca
ouvi nenhuma discussão ou ensinamento ou explicação do que era racismo em escola
alguma que eu passei, na verdade até eu chegar a faculdade as únicas discussões
que apareceram foi as que partiram de mim, explicar para as pessoas o que seria
aquilo, por que passar por escolas particulares e ter uma condição financeira um
pouco razoável, pais que tinham relações sociais relativamente boas, conseguiam
conversar bem, tinha estudado, então acabam lhe protegendo também e lhe
preparando para algumas coisas. Eu era a única pessoa negra em vários lugares que
73
eu estive, se a gente for pensar historicamente as pessoas negras estão na camada
bem mais baixa social, e aí na adolescência quando estava aqui em Natal eu estudei
no GEOC e só tinha negro na sala eu, dois meninos e uma menina, fora eu... E não
necessariamente eles tinham a minha consciência, de pertencimento que eu tinha...
vez ou outra acontece essa questão, ah um colega não sei o que, mas não é algo que
eu possa pontuar e contar a história, não é uma coisa que a gente tem a necessidade
de está gravado, pelo menos eu não tenho a necessidade de está gravado. Como os
sujeitos negros eram percebidos na escola? Olha... não é na escola, mas em todo
lugar né... então, por exemplo aqui no interior do Rio Grande do Norte entre os meus
amigos, eu e minha irmã erámos as únicas negras na classe social, por exemplo em
São Paulo do Potengi nós erámos as únicas negras dentre os nossos amigos na
classe social que a gente pertencia. Até os amigos que tinham a classe social um
pouco mais baixa não se viam como tais. É... eu sou uma pessoa negra, não sou
morena, não sou mulata, não sou nenhuma palavra para me dizer o que eu seja, eu
tenho consciência de que sou uma pessoa negra. Sofri preconceito, não só na
trajetória escolar mas como em toda a vida, não tem uma pessoa negra que
consciência e acho que nem as que não tem consciência, não tem nenhuma que
nunca tenha sofrido racismo nesse país. É impossível. Começa quando você nasce,
quando as pessoas olham pra você, quando diz pra sua mãe afilar seu nariz, pra
arrumar seu cabelo né... a televisão diz, todas as mídias dizem isso, todas as pessoas
dizem isso quando julgam o cabelo do negro como ruim. Então, o racismo está em
todos os lugares. A minha irmã é negra, meu irmão não é negro, eu tenho um irmão
branco e minha irmã é negra. Então, é como a gente vê os nossos sofrendo
discriminações, como o lugar no ônibus onde você senta, o lugar do seu lado é sempre
o último a ser ocupado, quando você passa na rua vê as portas dos carros se
trancarem, é uma coisa que acontece com todo mundo. Você tem que está provando
o tempo todo que você é bom, que você não é ladrão, que você não é marginal, que
você é capaz, que você é inteligente. É um pouco até cansativo. Como eu tenho essa
base do meu pai né, e eu estudei em boas escolas que me deram pelo menos o direito
a aprender a falar e a me colocar, então eu tive também essa ajuda. Por mais que o
pai da gente tenha uma educação formal, estudou bastante e tudo mais, mas as vezes
ele não ajuda o filho a se desenvolver, a sua oratória. Mas eu tive esse aprendizado
em casa, meu pai vem de uma família paupérrima, vem de uma família muito pobre e
foi a educação que trouxe ele até onde ele chegou (funcionário do Banco do Brasil).
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Então foi a educação que fez ele crescer financeiramente e socialmente, vamos dizer
assim. Então a oratória foi uma coisa bastante trabalhada dentro de casa, então me
defender dentro dessas questões, como eu tive ajuda foi um pouco mais fácil, vamos
dizer assim, de quem não teve isso. Mas isso não quer dizer que fosse fácil né, por
que sofrer preconceito é uma das coisas mais doloridas que pode existir no mundo,
nenhum sofrimento físico dói tanto quanto uma injúria racial porque ela vai lhe
diminuindo como ser humano né... como pertencimento daquilo alí. Eu não estudei
para ser professora, eu me transformei em professora, eu sou formada em artes
visuais. Eu fui pra artes visuais por ser artista, para além de professora. Professora foi
uma questão de circunstâncias, apareceu um curso para eu fazer e eu fui fazer, mas
não que eu quis. E aí... eu comecei a trabalhar em escolas particulares, fiz concursos
e fui pras escolas públicas. Sou professora do estado e do município e... como é que
isso interfere na minha vida como professor né... a minha pesquisa na graduação
trabalha as questões étnicas da mulher negra dentro das artes visuais como artista na
sua colocação e depois eu comecei a pesquisar o que são essas mulheres negras
dentro da minha família, e eu fui por um lado autobiográfico. Então, eu fui pesquisar
as mulheres negras na minha família em toda a sua ancestralidade, e após isso
apareceu essa especialização em história e cultura africana, como é o que eu
pesquisava, eu fui fazer a especialização. E quando eu tava com a minha
especialização encaminhada eu entrei no mestrado, e minha pesquisa do mestrado
que é a minha terceira pesquisa, vamos dizer assim, também são essas questões. Só
que no mestrado eu pesquiso toda a minha família e não só as mulheres. Tudo
partindo do meu pai né, retornando e aí eu faço uma construção da minha árvore
genealógica, então eu e minha irmã, que ela entrou no doutorado e resolveu pesquisar
a mesma coisa que eu pesquisava. Ela pesquisava quilombolas na graduação e no
mestrado, e agora no doutorado está pesquisando os ancestrais. Então,
conjuntamente a gente começou a fazer essa pesquisa, eu pela visão artística e ela
pela antropologia. Então, tudo isso me faz refletir e isso vai levando para meus alunos
também. Como eu trabalho em sala de aula, eu sou professora das periferias, eu
trabalho no Bom pastor, nas Quintas, Pajuçara, na comunidade da África e no
Santarém na zona norte. Então, eu trabalho na periferia, e quem está na periferia são
pessoas negras em sua maioria, então eu sou uma das poucas professoras negras
da escola e a única que trata essas questões na escola, em todas elas. Não faz muita
diferença, vamos dizer assim, um professor negro que não trabalha essas questões
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com seus alunos. Trabalho com criança pequenininha, no fundamental I, fundamental
II e ensino médio. Os três turnos. Então, tenho públicos variados né... quando eu
trabalhei também Macau, eu também trabalhei em EJA. Trabalhei em comunidades
dos pescadores, periferia, em sua maioria as pessoas são negras. Então, eles
começam a se interessar pela estética, a interessar pelo assunto, a gostarem mais a
partir do momento que eu tanto estou lá sem alisar meus cabelos, a estética do
professor interfere muito na formação dos alunos, porque eu me lembro da estética
dos meus professores e quando me desagradava eu não conseguia gostar da aula,
não só a estética como também a postura dele em sala de aula. Então, eu cuido em
evidenciar meus traços negros, meu cabelo, eu sou de candomblé também, sou de
religião de matriz africana. Quando eu comecei a trabalhar em escola pública, o
primeiro concurso que foi em Macau, eu estava no processo religioso em que eu usava
guias, branco todos os dias, então a minha religião era identificada em todos os
lugares. Então, foi importante pros meus alunos que tinham aula de religião, mas não
reconheciam nada da religião afro, de nenhuma delas, eu comecei a questionar até
os outros professores como é que vocês dão aula de religião e os alunos estão no
nono ano já e não tem nenhum conhecimento, nenhuma nomenclatura,
absolutamente nada de uma religião afro. Que educação é essa que não alcança
todas as nuances ou todos os tipos, todas as possibilidades de religião num estado
laico que é o Brasil, pelo menos teoricamente. É uma coisa que pra eles foi chocante,
mas eles perguntavam, depois que eu comecei a esclarecer, esclarecer, esclarecer,
porque seu eu não esclarecesse eu não conseguia dar aula pela curiosidade deles
né... eles não entendiam porque eu me cobria, não entediam algumas coisas que eu
precisava fazer, porque eu não podia tocar neles, então se eles tivessem essa
educação da religiosidade isso não seria necessário. Eu não tive problemas de
preconceito com meus alunos comigo. Então, esse diálogo é importante para os
alunos e pra as pessoas entenderem, conhecerem, porque não é uma coisa pra ser
estranha, os negros são a maioria desse país. Então, essa relação do aluno enxergar
a cultura do seu professor e o professor se colocar como pertencente daquele lugar é
importante para a formação desses alunos. Se os outros professores negros das
escolas também fizessem esse trabalho né, eles não precisariam chegar e dar uma
aula sobre negritude, a forma dele agir em sala de aula, os comentários que ele possa
fazer ou trazer exemplos não de artistas brancos, mas de artistas negros para eles
entenderam que também tem, de artistas indígenas para eles entenderem que
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também tem. Mas também cientistas negros, para eles entenderem que não é só
capoeira, futebol, samba, que tem pesquisadores que trabalham. Então, a partir do
momento em que eles entendem isso eles começam a se gostar mais, porque eles
entendem que eles podem. Às vezes as adolescentes chegam e falam: professora
como a senhora faz pro seu cabelo ficar assim, eu queria que o meu ficasse assim
também. É porque eu aliso o cabelo, mas não quero mais. Depois de um tempo as
coisas vão mudando, você vê a sua sala ficando mais negra, e eles passam a não se
esconder mais a partir daquele momento. Discriminação na escola acontece com
certeza. Um menino negro, que fala pra outro menino negro que fala pra um branco,
ah seu macaco... então, são xingamentos. Eu sempre luto por isso para ficar claro na
escola, com professores, gestão da escola, que bullying e racismo não são a mesma
coisa, bullying é uma coisa e racismo é outra muito pior. O racismo ele desumaniza,
são coisas diferentes. Então, as questões raciais têm que ser tratadas com muito
cuidado. Não só a religião, mas entra a capoeira, entra várias coisas da cultura afro
que são discriminadas e aí essas crianças vão... como assim? Tudo que haver com a
minha pele, tudo que tem haver com as minhas raízes, com a minha ancestralidade
não presta, então eu não quero ser, mas não tem como você apagar o que você é,
né... então a formação pra essa questão é muito importante. Eu fiz a minha
especialização em História e Cultura Afro Brasileira e Africana e era pra professores,
e em sua maioria os que estavam lá, eu acho que eles saíram sem entender
absolutamente nada, porque também não queriam. Então, precisa-se ler autores
negros nas escolas, precisa-se trabalhar isso, fazer projetos que trabalhem isso, é
uma lei que não é colocada em prática e que, inclusive, querem revogar essa lei né...
então... é... ser negro nesse país não é uma coisa fácil não. Então, principalmente os
professores que carregam a estética negra, eles precisam fazer esse trabalho e não
só eles, todos os outros, porque eles são professores, eles não estão alí pra impor o
que eles acreditam, a religião que eles acreditam. Os alunos estão pra escola para
além de aprender matérias, disciplinas, eles tem que aprender a se socializar.