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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Instituto de Arte e Comunicação Social Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte Eduardo Alberto de Souza Varela Espelhos de papel. Arte, artes gráficas e impressões do Rio de Janeiro oitocentista Niterói. RJ. 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

Instituto de Arte e Comunicação Social

Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte

Eduardo Alberto de Souza Varela

Espelhos de papel. Arte, artes gráficas e impressões do Rio de Janeiro oitocentista

Niterói. RJ. 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

Instituto de Arte e Comunicação Social Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte

Eduardo Alberto de Souza Varela

Espelhos de papel: Arte, artes gráficas e impressões do Rio de Janeiro oitocentista

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte da Universidade Federal Fluminense para obtenção do grau de Mestre. Área de concentração: Teoria da Arte.

Orientação: Profª. Drª. Rosana Ramalho

Niterói. RJ. 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

Instituto de Arte e Comunicação Social Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte

Folha de aprovação

Eduardo Alberto de Souza Varela

Espelhos de papel:

Arte, artes gráficas e impressões do Rio de Janeiro oitocentista

_______________________________________________

Profª. Drª. Rosana Ramalho (UFF – Orientadora, UFF)

_______________________________________________

Profª. Drª. Isis Braga (UFRJ)

_______________________________________________

Prof. Dr. José Mauricio Saldanha Alvarez (UFF)

_______________________________________________

Prof. Dr. Tunico Amâncio (suplente, UFF)

Niterói, ..........de ............................... de 2011

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Agradeço

À professora Rosana Ramalho,

pela proficiência;

À família,

pela paciência;

Aos amigos e professores

Patrick Burglin Antonio A. Serra

Maurício Monteiro Wilson Paraná e

Alvino Costa Filho,

Pela amizade e Convivência.

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Resumo

O objetivo deste trabalho é proporcionar uma visão geral sobre as artes

gráficas no Brasil do século XIX, as influências externas que marcaram suas

origens, e seu desenvolvimento ao longo desse período. Para melhor

compreensão do tema foram utilizados conceitos gerais sobre Arte, assim como

suas manifestações e o que disseram conhecidos estudiosos do assunto. As

técnicas antigas mais correntes de reprodução da imagem impressa e de seus

originais - inclusive a fotografia - é também parte deste trabalho, assim como a

identificação de editores e artistas que por aqui passaram, deixando rica herança

em matéria de técnica e criação. A paisagem carioca vista por esses visitantes,

sua inserção nos movimentos artísticos da época e a significação política de sua

realização, também são parte dos capítulos seguintes. Procurou-se, enfim,

dissolver algumas cristalizações a respeito da arte e de sua reprodução.

Palavras-chave: Arte. Artes gráficas. Gravura. Paisagem.

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Abstract

This work presents an overview of the graphic arts in Brazil, from the

external influences which marked its origins throughout its development along the

nineteenth century. General ideas about art and its manifestations, as well as the

opinions of renowned scholars on the subject have been discussed, aiming at a

better understanding of the theme. Early image reproduction and printing

techniques then in current use, and the new image-capturing art of photography

have been studied. Artists and printers have either passed by or established

themselves in Rio de Janeiro, leaving a rich technical and artistic legate. City

landscape and everyday life as seen by these visitors, their insertion in the artistic

movements of the time and the political meaning of their achievements are also

within the scope of the work. It has been sought, at last, to reevaluate certain long-

established ideas on the work of art and its reproduction.

Keyords: Arts. Graphic arts. Engraving. Landscape

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Índice Introdução..................................................................................................01 Capítulo 1 - Arte, reprodução, representação e reflexo........................04

1.1 – Iconografia e cultura popular............................................06 1.2 - A imagem nas nuvens.......................................................10 1.3 - Manchar e interpretar........................................................12 1.4 - A dimensão da imagem.....................................................15 1.5 - Imagem e reprodução........................................................17 1.6 - Reprodução e imitação......................................................18 1.7 - Ilusões e medidas .............................................................20 1.8 - Reflexos e reflexões...........................................................22

Capítulo 2 - Técnica, gravura e reprodução da imagem ....... ................29

2.1 - Processos gráficos e definições..........................................30

2.2 - Fotografia, um novo enfoque...............................................41

2.3 - Novos artistas......................................................................43

Capítulo 3 – Paisagem e documento........................................................45

3.1 - O olhar estrangeiro.............................................................47 3.2 – A cidade e seus pontos de observação.............................53 3.3 – Mudam-se os tempos.........................................................56

Capítulo 4 - Imagem, artes gráficas e história.........................................66

4.1 – Os precursores Palliere e Steinamm..................................68 4.2 - As cores de Paula Brito.......................................................72 4.3 - A longa vida dos Laemmert.................................................75 4.4 - Briggs e o mercado de imagens..........................................79 4.5 - Leuzinger, a imagem entre o traço e a foto.........................83 4.6 - Heaton & Rensburg, a Lemercier tropical............................87 4.7 - Garnier, a casa editorial do império ....................................89 4.8 - Sisson, traços e retratos de uma época..............................93 4.9 - A arte e a escola de H. Fleiüss............................................96 4.10 - Agostini, um lápis entre os séculos..................................101

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Capítulo 5 – Gráficos, ilustradores, ateliês e editores...........................106 5.1 - O centro e seus artistas gráficos.......................................109

Conclusão.....................................................................................................111 Bibliografia ...................................................................................................113

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Introdução

O presente trabalho de dissertação irá abordar o tema Arte, de modo geral, e

Artes Gráficas, especificamente, no Rio de Janeiro do século XIX. No primeiro caso,

e como introdução ao assunto, o objetivo é discorrer sobre o fenômeno artístico e

algumas maneiras de entendê-lo, salvaguardando a dificuldade da empreitada uma

vez que o tema possui inúmeras definições e abordagens. Apenas no dicionário

Houaiss são encontradas vinte e cinco acepções para o verbete, só isso tornaria a

tentativa de sintetizá-lo em inútil quimera acadêmica. Não foi este, certamente,

principal interesse deste projeto, que, no entanto, ressentia-se de chegar a recantos

mais viscerais do assunto sem preparar alguns espíritos para compreendê-lo melhor.

O esforço deveu-se, também, à necessidade que sentíamos de não polarizar

o assunto, no caso Arte, entre conceitos simplistas e absolutos, como “pura”,

“maior”, “verdadeira”, etc, o que daria como resultado outras indesejáveis

cristalizações. Assim, para chegar às artes gráficas, tratamos de relativizar alguns

parâmetros visando facilitar compreensão do tema e revelar alguns de seus

reconhecidos méritos e exemplos.

No Brasil, ou em qualquer lugar do mundo, era preciso conhecer e gostar de

arte para fazer artes gráficas. Isso, claro, é também verdade nos dias atuais, mas a

atuação do artista gráfico no século XIX – momento mais estudado neste trabalho –

teve contornos mais reveladores, definindo sua integração com máquinas e

processos que depois seriam a base de uma poderosa indústria. Não nos

interessava tanto essa indústria ou suas múltiplas conquistas eletrônicas e digitais.

O que despertou nosso interesse foi o momento em que a mão do artista alternou-se

entre a palheta, o godê, a chapa metálica, a pedra calcárea, etc, para chegar às

engrenagens dos prelos que aos poucos eram aperfeiçoados no Brasil. Este mesmo

artista foi autor e reprodutor de sua obra, deslocando a síntese de suas abstrações

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para o papel, que ele mesmo imprimia e multiplicava. Não seria ousado afirmar que

os incipientes apetrechos gráficos da época fossem um prolongamento de seus

instrumentos de criação. Goya, Toulouse Lautrec, Picasso, apenas para citar alguns

mestres europeus, usaram recursos como este para reproduzir seus trabalhos,

desenvolvendo uma reveladora linguagem entre o original e a cópia.

No Brasil dos oitocentos, muitos dos gráficos e editores que aqui chegaram

eram artistas reconhecidos em seus países; tinham formação acadêmica e uma

incrível atração por nossa terra. O rápido crescimento que experimentávamos e o

exotismo de nossos hábitos e paisagens transformaram-se, sob sua visão, num

grafismo único que perdurou durante grande parte do século. Muitos de seus

aprendizes continuariam esta obra. O romantismo das primeiras reproduções

gráficas, e, entre outras tendências, o realismo das últimas publicações, marcaram

um período de mudanças nas artes e nas artes gráficas, estas recorrentes

sucedâneas desses e de outros movimentos.

Entre as últimas décadas do século, e as primeiras do seguinte, novas

tendências artísticas – de base industrial e de massa – deixaram para trás as velhas

e saudosas práticas gráficas, dando lugar aos primeiros designers – o nome não

devia ser este – que surgiam no Rio e no país, e cuja inspiração migrava

definitivamente para outros movimentos e motivos.

A estrutura deste trabalho resume-se, então, a cinco capítulos, em

continuidade ao que apresentamos, há seis meses, para sua qualificação.

. No primeiro, Arte, reprodução, representação e reflexo, buscou-se a

compreensão da Arte como fenômeno ligado a valores individuais ou coletivos, mas

percebido segundo a emoção e a experiência de cada observador. O papel do

artista, seus motivos, e a função de quem vê a obra de arte são também parte dos

tópicos nele abordados.

. O segundo, Técnica, gravura e reprodução da imagem, versa sobre as

técnicas mais comuns da reprodução imagética no século XIX. A madeira, o metal e

outros materiais como matrizes, inclusive a fotografia, são estudados a partir de um

curioso anúncio publicado no Rio de Janeiro de 1845.

. No terceiro, Paisagem e documento, a intenção é discutir o Rio de Janeiro -

e o Brasil - como motivos artísticos e documentais, explorando as diversas visões de

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artistas – muitos deles estrangeiros – na representação da cidade, de sua gente e

de seus costumes.

. O quarto capítulo, Imagem, artes gráficas e história, objetiva relacionar e

comentar o trabalho de alguns artistas, gráficos e editores que por aqui estiveram

desde a chegada da família real, em 1808. A razão de sua vinda, as oportunidades,

o mercado de imagens e o estágio técnico em que estávamos são seus pontos

principais.

. O quinto, e último, Gráficos, ilustradores, ateliês, editores, busca localizar

– nas antigas ruas da cidade – o endereço dos vários artistas e gráficos que por aqui

passaram, discutindo, igualmente, a estratégia de seu trabalho. Acompanha um

mapa, com o nome antigo e atual das principais ruas do centro carioca, assim como

breve localização de várias oficinas visitadas na presente apresentação.

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Capítulo 1

Arte, reprodução, representação e reflexo O artista, a obra e o observador

Este capítulo visa tocar em alguns pontos na compreensão da obra de arte

como forma de contribuição para melhor esclarecimento do assunto. Seu objetivo é

reduzir alguma nebulosidade existente entre o observador e a obra propriamente

dita. Procuramos usar conceitos e comentários extraídos de alguma experiência e,

principalmente, do que disseram reconhecidos pensadores modernos na crítica e

análise do fenômeno artístico.

Como estudamos aqui a reprodução das imagens em um tempo em que não

havia grandes recursos técnicos – caso do Brasil na maior parte do século XIX –

algumas dessas ideias parecem ajustar-se com certa facilidade à questão proposta,

uma vez que muitas das reproduções gráficas desse período carregavam certa aura

de originais. Cartões postais de cidades (mesmo estrangeiras), cenas bíblicas

(santinhos) e até cartas de jogar, por exemplo, movimentavam a imaginação de

quem tinha poucos referenciais estéticos oriundos de seu próprio estamento social,

aceitando como arte o que chegava de fora em forma de ilustrações de qualquer

natureza.

Essa nossa condição inicial de importadores de originais ou de imagens

reproduzidas criou com o tempo um grafismo curioso e anacrônico, uma vez que se

copiava também um comportamento distante, não ajustado com nossa tropical

realidade. Considerando, igualmente, o grande analfabetismo entre a população

(cerca de 80% às vésperas da proclamação da república), é justo supor que as raras

imagens das revistas ilustradas (muitas, no meio do século, apenas reimprimiam

modelos importados), além de outras publicações e álbuns, servissem de base para

alguns costumes, como, por exemplo, o de vestir-se e apresentar-se socialmente.

Homens à inglesa e mulheres à francesa fariam hoje pares curiosos, com suas

espessas vestimentas sob o sol escaldante e tropical da corte do Rio de Janeiro.

Descrevendo alguns tipos característicos do segundo reinado, lembra Luciano Trigo

em seu O viajante imóvel: Machado de Assis e o Rio de Janeiro do seu tempo:

No caso da moda feminina, vestidos de tafetá, chamalote, faille ou

merino; cinturinhas de vespa, traseiros em tufo, cruéis espartilhos de

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barbatanas de ferro que iam até um palmo abaixo do umbigo,

chegando muitas vezes a comprometer a saúde; botinhas de cano

alto, o inevitável leque de seda e luvas, o cabelo enrolado no alto da

cabeça e, naturalmente, o chapéu, preso com um estilete enfeitado

de madrepérola. (TRIGO, 2001, p.50)

Enfim, as imagens vistas nas ruas e nos salões da cidade mostravam o dom

de representar o que se via nas reproduções e também nos modos dos europeus

que aqui chegavam. Representação, segundo uma definição de Jacques Aumont (A

imagem, SP, Papirus, 1993), é “um processo pelo qual institui-se um representante

que, em certo contexto limitado, tomará o lugar do que representa.” (AUMONT,

1993, p. 103). Neste sentido, representar explica não apenas nossa identificação

com alguns modelos aceitos pela sociedade, mas também justifica outros

sentimentos diante de uma manifestação artística, seja musical, teatral, plástica, etc.

Quando assistimos a um épico, por exemplo, temos a certeza que o ator não é a

personagem ou o herói que interpreta; depois de algum tempo, porém, aceitamos

que um é, episodicamente, o outro. Essa necessidade de reconstruirmos o ausente

através de seu representante revela um curioso fenômeno de projeção, que emerge

de um quadro ou de uma situação real para refletir-se no comportamento que

adotamos, nas roupas que usamos e até nas inúmeras emoções que sentimos.

Ao longo deste trabalho, procuramos analisar ilustrações e reproduções

gráficas, seu curioso status de originais e a íntima necessidade em certo momento

de nossa história em considerá-los autênticos. Na falta de uma cultura que gerasse

modelos originais em nível e número que a sociedade sonhava, os simulacros

ocupavam esse lugar com foros de raridade.

Há uma certa evocação no uso das imagens como forma de “espiritualizar” os

modelos expostos e dotar o espaço que os circunda com sua presença. Por isto, no

culto das imagens – sacras ou não – a cópia às vezes mistura-se ao seu referencial,

importando apenas o estado de espírito que sua existência propicia. O termo

“simulacro” poderia, assim, ser apriorístico, pois seu valor está atrelado à crítica que

hoje produzimos sobre a arte e sua história. É, portanto, necessário que nos

transportemos para outro momento e lugar a fim de entendermos a ética e a estética

aceitas como valores então presentes e verdadeiros. Estes, como sabemos, são

ícones mutantes no tempo e no espaço. Neste sentido, ao estudarmos as artes

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gráficas do oitocentos, encontramos o reflexo de uma imagem desejada: a imagem

aristocrática européia.

1.1 Iconografia e cultura popular

Muita gente há de ter em casa objetos de decoração, um pequeno conjunto

deles, um grupo de bonecos ou miniaturas representando figuras humanas, bichos,

cenas bíblicas, rurais, urbanas... Objetos, simples objetos para se descansar os

olhos numa pausa do trabalho, de uma conversa, ou mesmo para saber que eles

estão ali para dizer alguma coisa. Talvez sirvam como referência para que a vida em

nossas casas tenha um sentido maior do que o da própria moradia - fisicamente

falando - estendendo-se por valores com os quais convivemos dentro ou fora desses

limites. Podem ser originais ou cópias; algo raro ou incomum, não importa. Foram

parar ali por uma sutil eleição da qual fizeram parte o momento psicológico em que

estávamos ao escolhê-lo, os valores que a sociedade nos faz atribuir às coisas, à

nossa cultura e educação, até mesmo à inexplicável simpatia que nos dirige para

longe dos limites racionais.

O valor de objetos como esses - considerados decorativos ou utilitários -

situa-se, como diz a professora Marize Malta (Um outro Ecletismo pela visão das

artes decorativas. DezenoveVinte, Rio de Janeiro, v. I, n. 2, ago. 2006), em uma

zona turva para a análise e crítica da arte, uma vez que sua existência tem porquês

definidos, historicamente justificados; são registros de circunstâncias vividas em

diferentes realidades estéticas e sociais. Não é aqui propósito entrar por este

caminho, valendo apenas lembrar que entre os inúmeros sinais de sua utilidade e

valor há pelo menos dois que primeiramente os justificam: o de servirem ao tato e o

de representarem sentimentos. De fato, o alcance e o toque incensam esses objetos

com uma aura especial, em detrimento de sua aparente vulgaridade: como obra de

arte podem estar latentes, mas, no que tange à representação, são tocáveis pelo

olhar e pelos dedos do observador. O mesmo deverá acontecer com as reproduções

gráficas, notadamente as imagens, que, distante de seus primeiros modelos,

deixavam, assim mesmo, traços de originalidade e posse. E principalmente em uma

época (em questão o século XIX) em que ser dono de uma cópia de qualidade não

era privilégio de muitos. Com relação a tais objetos, houve um tempo em que

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O aspecto da pura visibilidade (própria da arte) misturava-se à dimensão

tátil (próprio do objeto). A decoração espalhava-se, tornando-se mais

perceptível e mais apelativa ao toque, ao tato. Estabelecia-se um novo

paradigma: a união do material com o sensível, uma verdadeira filosofia do

ter. Para usufruir do sentido tátil era necessário possuir algo concreto para

se tocar, o que ocorria com a compra de algum bem, bem este que deveria

ser palpável, manejável, sentido com as mãos. A sensação tátil remetia à

do paladar, esta regendo o gosto, e os objetos passaram a ser

“saboreados”. O objeto manipulável e “degustado”, ao aproximar-se dos

sentidos mais físicos do homem, também apelava para outro menos ligado

à materialidade, pois sua decoração reclamava pelos recursos da visão.

Sentia-se com os olhos e através deles reconheciam-se muitas facetas do

mundo, inclusive sua história. (MALTA, 2006)

Se olharmos - e tocarmos - bem, encontraremos esses exemplos em toda

parte, muitos representados por pequenos animais ou minúsculos heróis cujas

atitudes ficaram penduradas no ar, servindo alguns como peso de papel,

separadores de livros, e, outros, como caixas para miudezas, etc. Convivem

pacificamente com um original a óleo na parede, com uma escultura de verdade, e

até com uma reprodução bem emoldurada que se preste - sem preconceitos - a

contribuir com a atmosfera mais íntima, alegre ou intimista que se deseje.

Com o espírito despido de cristalizações, observemos então um conjunto

mostrando uma galinha e seus três pintinhos, simples decoração para cozinhas ou

pequenas salas de jantar. Na verdade, tal conjunto existe e foi eleito justamente por

sua simplicidade para iniciar esse breve estudo sobre arte e representação.

O grupo em questão é de cerâmica pintada, e formado, como visto, por quatro

elementos: uma galinha e três pintinhos; todos azuis com motivos redondos e

brancos que se repetem igualmente por todo o corpo dos bichos. Mediria a cena uns

quinze centímetros se colocados os filhotes a pouca distância da mãe, que parece

poderosa e atenta às crias. As peças menores estão sujeitas a ser movimentadas

por nós para qualquer lugar em torno de sua figura. Observando melhor os

elementos deste conjunto, um a um, não é difícil constatar que todos são iguais, um

é cópia do outro, apenas em dimensões diferentes. Sim, os pintinhos são a

reprodução da mãe, até mesmo na postura, sem muitos recortes ou qualquer

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pretensão mais realista ou de estilo. Sendo apenas a mesma imagem em tamanhos

diversos – mãe e filhotes – como explicar que resgatem alguma lembrança, e talvez

emoções, bem perceptíveis em nossa formação? Com um simples movimento de

seus integrantes, a cena seguinte pode ter diferentes significados, todos forjados na

experiência e na sensibilidade do espectador.

Galinha e seus pintinhos, foto do autor

No aspecto e na forma exterior, não é difícil constatar que as imagens que

vemos diariamente nem serão cópias da realidade ou foram produzidas com este

objetivo. No caso da galinha e seus três pintinhos, podemos recorrer ao pensador e

crítico norte-americano Nelson Goodman (Linguagens da Arte: Uma Abordagem a

uma Teoria dos Símbolos. Lisboa, Gradiva, 2006) para explicar melhor a coisa. Diz

ele ser difícil observar um objeto sem nos destituirmos de preconceitos, de afeição,

animosidade ou interesse; sem, enfim, estarmos sujeitos aos ornamentos do

pensamento ou da interpretação. Para ele,

... não há um olhar inocente. O olhar chega sempre atrasado ao trabalho,

obcecado com o seu próprio passado e com velhas e novas insinuações do

ouvido, do nariz, da língua, dos dedos, do coração e do cérebro. Não

funciona como um instrumento isolado e independente, mas como um

membro diligente de um organismo complexo e caprichoso. Não apenas o

modo como vê, mas também o que vê é regulado pela necessidade e

preconceito. Seleciona, rejeita, organiza, discrimina, associa, classifica,

analisa, constrói. Não espelha, propriamente falando, antes apodera e faz; e

o olhar não vê aquilo de que se apodera e que faz como algo nu, como itens

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sem atributos, mas como coisas, comida, pessoas, inimigos, estrelas, armas.

Nada é visto a nu nem nu. (GOODMAN, 2006)

O que parece dizer Goodman é que não enxergamos as imagens sem o

concurso de nossas idéias e experiências a elas agregadas, e que recepção e

interpretação não são operações separáveis, mas interdependentes.

Voltando à galinha e a seus pintinhos, temos que o objeto galinha e pintinhos

apenas se refere às aves, não procurando imitá-las em detalhes ou reproduzindo-as

como existem na natureza. Sobre o assunto, Ernst Gombrich (Arte e ilusão: um

estudo da psicologia da representação pictórica. Martins Fontes, SP, 1995) fala em

uma “arrumação” que a mente faz para que expliquemos as imagens a que somos

expostos diariamente. Subjetivamente, reduzimos os erros, imperfeições, etc, até

que as aceitemos como representantes de seus modelos, ou ainda de coisas que

gostamos e admiramos. Essa incrível capacidade de não ver para ver está no

observador e também no trabalho do artista, e ainda no esforço que este faz para se

comunicar. “Não podemos registrar todos os traços de uma cabeça, e enquanto se

conformarem às nossas expectativas eles se encaixarão sem ruído nas fendas do

nosso aparelho perceptivo” (GOMBRICH, 1995, p.183). A mesma regra, empregada

agora como “A do etc”, é lembrada por Jacques Aumont como um recurso do

espectador que “supre o não-representado, as lacunas da representação. Essa

complementação se dá em todos os níveis, do mais elementar ao mais complexo

(...), sendo que uma imagem nunca pode representar tudo” (AUMONT, 1993, p.88).

Por outro lado – ainda mais abstrato - a nossa galinha e seus pintinhos

representam ideias de cunho pessoal, mutáveis de pessoa para pessoa, mas que

significam no geral o aprendizado que tivemos e as emoções que experimentamos

ao longo da vida diante de tais seres e do que representam para nós. Com efeito, o

que pode significar uma galinha e seus pintinhos no universo cultural em que

vivemos? Quem conheceu o ambiente rural, principalmente, vai associar aquele

pequeno grupo de imagens à alimentação, à fartura, etc. Mas também poderá

relacionar a imagem ao amor e ao cuidado de uma ave com a sua prole, conceito

perfeitamente transferível para valores humanos, familiares a uma casa... Tanto um

sentimento como outro marcam conosco um encontro no referencial que ora

utilizamos para explicar a importância das imagens e de sua representação para

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nossa vida. A professora Lucia Santaella, em sua obra Imagem, cognição, semiótica,

mídia (Ed. Iluminura, 2001), analisando o fenômeno da representação, diz que:

Ambos os domínios da imagem (referencial e representação mental) não

existem separados, pois estão inextricavelmente ligados já na sua gênese.

Não há imagens como representações visuais que não tenham surgido de

imagens na mente daqueles que as produziram, do mesmo modo que não há

imagens mentais que não tenham alguma origem no mundo concreto dos

objetos visuais. (SANTAELLA, 2001, p.15)

Portanto, o referencial galinha e pintinhos encontra-se no domínio de nossas

memórias e sentimentos, e nos acompanharão por toda a vida.

1.2 - A imagem nas nuvens

Deixando de olhar a terra onde ciscam as aves e perscrutando o céu,

encontramos de novo imagens e sugestões, agora na forma imprecisa de nuvens.

Cabe, porém, distinguir algumas curiosas razões que nos fazem “ver” tanta coisa no

simples entrelaçamento de vapores e gases d’água que viajam sobre nossas

cabeças. Por que, afinal, julgamos vislumbrar nelas dragões, corpos humanos,

carruagens medievais, deuses da antiguidade, anjos e demônios de

incomensuráveis proporções que, em pouco tempo, transfiguram-se em vultos

históricos, mulheres de curvas sobejas, perfis enfurecidos, ou graciosos animais

domésticos? As razões sempre despertaram o interesse de pessoas comuns, mas

também de psicólogos, psicanalistas e pensadores da arte e da linguagem - entre

outros -, uma vez que as nuvens habitam o céu antes mesmo que fossem

concebidas as primeiras representações artísticas. Essas imagens já existiam sobre

nós há milhares de anos, embora não significassem, certamente, as mesmas coisas

que hoje somos capazes de transferir para elas. Segundo Gombrich, os gregos

diziam que se maravilhar era o primeiro passo no caminho da sabedoria, e que

quando deixamos de nos maravilhar corremos o risco de deixar de saber. Seriam

então as imagens formadas pelas nuvens um exemplo deste maravilhamento e da

formação do saber? É ainda o austríaco, não por acaso em seu capítulo “Nas

nuvens”, que transcreve o diálogo entre Apolônio e seu discípulo Damis, em A vida

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de Apolônio de Tiana1 (ao tempo de Cristo), no qual o primeiro indaga ao outro sobre

a real existência da pintura e por que se pinta alguma coisa:

“- Por amor à imitação, responde Damis, para obter a semelhança de um cão, de um cavalo, de um homem, de um navio, de qualquer coisa que exista debaixo do sol. - Então, pintura é imitação, mimese? - Bem, que poderia mais ser? Se não fizesse isto não passaria de um brinquedo ridículo com tintas. - Sim, responde Apolonio, mas as coisas que vemos no céu quando as nuvens se movimentam, os centauros, antílopes, lobos e cavalos. Serão também obras da imitação? Será Deus um pintor que emprega suas horas de lazer divertindo-se deste modo? - Não, concordam os dois, essas formas das nuvens não têm sentido próprio, aparecem por puro acaso. Somos nós, que dados por natureza à imitação, as interpretamos dessa maneira (...).”

O olhar sobre as imagens, assim, teria a contribuição da complacência sobre

sua simples existência material, configurando-as constantemente para que se

ajustem às nossas experiências e desejos. Construir a imagem é, de algum modo,

apropriar-se dela, tê-la em mãos como objeto próprio e eleito, e por isto mesmo raro,

ainda que seja uma simples reprodução. Por oportuno, observar o significado de

“imitar”, utilizado neste diálogo, que nos remete à mimesis, termo cunhado na

antiguidade greco-romana e muito bem explicado pelo professor Sergio de Souza

Brasil, da Universidade Federal Fluminense:

Em Aristóteles, temos a mimesis como um ato do conhecimento,

uma pedagogia do ver, que orienta o ser educado a reconhecer

semelhanças extra-sensíveis, ou melhor, a descobrir as fragilidades

mágicas decorrentes da possibilidade de transferir para uma coisa o

sentido contido em outra. Esta alquimia se faz visível na metáfora, pois a

mimesis se constrói não pela incidência de propriedades objetivas, mas

pela relação de semelhança entre o sentido próprio e o figurado. (SOUZA

BRASIL, 1999)

1 - "Vida de Apolônio", de Flávio Filóstrato, em que alguns estudiosos identificam uma tentativa de construir uma figura rival à de Jesus Cristo. Apolônio também é citado nas obras "A Vida de Pitágoras", de Porfírio, e "A Vida Pitagórica", de Jâmblico. Acredita-se ainda que ele seja o personagem "Apolo", citado na Bíblia em Atos dos Apóstolos e I Coríntios. O trecho utilizado faz parte da citada obra “Arte e Ilusão”, p. 193.

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Em pouco tempo, diante da tela de cinema ou do palco teatral, por exemplo,

aceitamos que o ator deixe de ser uma individualidade para transformar-se em

personagem da história, em parte integrante de uma criação que dele se distancia

no rumo de outros valores e de outras verdades.

1.3 - Manchar e interpretar De fato, parece que a chave para entendermos a intenção e o valor da obra é

o conhecimento, a experiência e a sensibilidade, isto nos aproxima do que foi

produzido e da sua mensagem estética. O artista poderá trabalhar com borrões em

lugar de algo definido, mas esses borrões tomarão a forma adequada através da

percepção geral da imagem, do que ela informa, além de sua simples representação

no mundo dos sentidos. É preciso que a reduzamos ao limite aceito pela percepção,

intelectual ou emocional, para que uma nuvem – ou qualquer forma imprecisa -

ganhe a definição de algo sonhado ou vivido. Caso contrário serão apenas borrões

ou manchas, e não consumarão a necessária ponte entre matéria e espírito.

É de novo Gombrich quem se refere a esses borrões como uma forma

didática de ensino da pintura. Como exemplo, cita idéias publicadas pelo pintor

inglês John Constable (1776-1837), que sugeriam a técnica da paisagem e, mais

especificamente, a pintura de nuvens e céus. O pintor era conhecido pelas imagens

grandiosas onde pontificavam a luz e as nuvens na abóboda celeste. Mas havia na

didática de Constable o sestro de desmistificar a arte naturalista, tradicional,

formando a partir daí novos artistas através da experiência lúdica, de manchar as

telas para depois completá-las com outras imagens. Seus alunos seriam então

capazes de brincar com as manchas, disciplinando-as, estendendo-as, dando-lhes

novas cores e formas até que entrassem no mundo representativo das experiências

e da arte. “A mais interessante para nós é a tentativa de utilizar formas casuais para

aquilo que chamamos de “schemata”, que são os pontos de partida do vocabulário

do artista”, disse. O que torna este ponto interessante é justamente o aspecto

didático desta passagem, “um repto deliberado ao ensino tradicional da arte”

(GOMBRICH, 1995, p. 195).

Podemos, assim, compreender a íntima relação entre o lúdico na pintura das

nuvens e o que nelas atribuímos ver. Constable, certamente, já percebia nessas

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projeções o que seria objeto de futuros estudos do conhecido psiquiatra suiço

Hermann Rorschach.

Jonh Constable (1776-1837), Estudo das nuvens, Real Academia das Artes, Londres Fonte: (www.royalacademy.org.uk)

O próprio Gombrich aventa uma relação entre estes ensinamentos e um

instrumento de diagnóstico desenvolvido por Rorschach, cento e cinquenta anos

depois de Constable. E o curioso em tudo isto é que os estudos entre imagens e a

mente humana parecem interpenetrar-se em revelações que se renovam a cada

fonte pesquisada. As experiências deste cientista, que revolucionou a psicanálise e

a psiquiatria a partir da publicação de seu “Psicodiagnóstico”, em 1921, revelam

aspectos importantes da questão, como a finalidade do teste. Serve o Teste de

Rorschach, como ficou conhecido, para se inferir o valor da respostas individuais

sobre a associação de tais manchas com imagens e situações vividas por alguém. O

que se deseja, segundo a Sociedade Rorschach (entidade civil que se dedica à obra

desse autor, possuindo mais de um endereço eletrônico), é colocar à prova

as funções psíquicas de percepção, atenção, julgamento crítico,

simbolização e linguagem. Concomitantemente à execução destas funções

psíquicas na avaliação das hipóteses frente às manchas, os processos

psíquicos afetivo-emocionais, motores-conativos e os cognitivos concorrem

para a formulação final da resposta. As respostas ao Rorschach, portanto,

revelam o status da representação da realidade em cada indivíduo,

trazendo dados a respeito do desenvolvimento psíquico, das funções e

sistemas cerebrais, dos recursos intelectuais envolvidos na construção das

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diferentes imagens, das articulações intrapsíquicas e da natureza das

relações interpessoais. (http://www.rorschach.com.br/)

Outro ponto curioso sobre a origem do teste - e que pode confirmar a

associação sugerida por Gombrich – é que seu autor não o concebeu na

maturidade, da qual tampouco gozou (morreu aos 37 anos), mas ainda quando era

menino. No verbete “Teste de Rorschach”, lemos interessante e reveladora

passagem:

Durante sua infância fora Rorschach um entusiasmado jogador de um jogo

muito difundido no século XIX chamado Klecksographie (Klecks significa

mancha de tinta) em que os jogadores criavam pequenos poemas a partir

de manchas abstratas de tinta. Apesar de ter feito alguns experimentos

anteriores menos sistemáticos, foi nos anos 1917-1918 que Rorschach

começou um estudo mais sistemático do uso do método de manchas de

tinta no diagnóstico psiquiátrico.

(http://pt.wikipedia.org/wiki/Teste_de_Rorschach)

As manchas que o garoto Rorschach observava em lúdica disputa com outros

jovens despertavam abstrações logo consubstanciadas em imagens. Quem sabe

fossem borrões casuais que propiciavam ao grupo o afastamento necessário para

produzir versos ou qualquer outra forma de criação?

Segundo o crítico e também pintor Jonh Berger, em sua obra Modos de ver, a

natureza recíproca da visão é mais fundamental que a do diálogo falado, e este é

muitas vezes uma tentativa de verbalizar, metafórica ou literalmente, como se vêem

as coisas, sendo também uma tentativa para descobrir como o outro as vê. Quando

descrevemos para alguém o desfile de figuras que se desintegram no céu para

transformarem-se em outras, não buscamos mais que a legitimidade de nossos

sonhos e sua analogia com a de qualquer semelhante. Nuvens ou obras de arte,

cada um tem seu modo de ver:

Sempre que olhamos uma fotografia, tomamos consciência, mesmo que

vagamente, que o fotógrafo selecionou aquela vista de entre uma infinidade

de outras. Isto é verdade mesmo para o mais banal instantâneo de família.

O modo de ver do fotógrafo reflete-se na sua escolha do tema. O modo de

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ver do pintor reconstitui-se através das marcas que deixa na tela ou no

papel. Todavia, embora todas as imagens corporizem um modo de ver, a

nossa percepção e a nossa apreciação de uma imagem dependem também

do nosso próprio modo de ver. (BERGER, 1972, p. 14)

1.4 - A dimensão da imagem

Berger diz também que as imagens foram concebidas, de início, para evocar

a aparência de algo ausente. Mas podem sedimentar a idéia de posse, ou seja, a de

podermos dispor delas a qualquer momento, como se sobrevivessem ao modelo que

representam, tomando inteiramente o seu lugar. As imagens, pelo mesmo raciocínio,

podem eternizar-se onde quer que as ponhamos, tornando-se, eventualmente, mais

importantes que o original que lhes deram o nascimento. Das imagens, passou-se a

considerar também quem as fez, surgindo daí a idéia de autoria e da importância

que ia além do que uma imagem representava. Por isso é turva ou inexistente a

autoria das primeiras imagens do mundo greco-romano: elas deveriam mostrar a

beleza, a perfeição e as ideias antes de tudo, Assim, o fundamental não era o nome

do artista que a produziu, mas sim a sua capacidade de gerar sentimentos e

condutas de natureza estética, de valor, de cultura de prazer, de aprendizado.

E tudo na maioria em terceira dimensão, conforme Gombrich, comparando a

escultura da época e o surgimento da pintura, cuja percepção trazia dificuldades

para o que se entendia como representação. De fato, questiona o austríaco, como

mostrar alguma coisa em duas dimensões, apenas, sem distorcer a imagem em sua

única perspectiva até então conhecida: a fidelidade ao modelo tridimensional? Arte

grega, para nós, é a arte da escultura, diz, e isto nos leva a pensar na imagem

contida em um espaço pré-determinado, o retábulo, a parede, o bloco de madeira ou

pedra. Deve ter sido revelador o esforço que os gregos primitivos fizeram para

entender uma figura cujo lado ou parte posterior não poderiam ser vistas, mas

intuídas através do sombreado e da distorção. Essa prática, através dos séculos, é

que os fez decifrar as formas de uma figura da natureza em duas dimensões; antes,

tentava-se reproduzi-la tal como era, em três. No estudo das imagens tal dado é

importante, pois revela como víamos e reproduzíamos o que nos cercava.

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Uma esfera, por exemplo, parece ao olho um disco chato; é o tato que nos

ensina as propriedades do espaço e forma. Qualquer tentativa por parte do

artista de eliminar tal conhecimento é fútil, porque sem ele não poderia

perceber o mundo. Sua tarefa consiste, ao contrário, em compensar a falta

de movimento na sua obra com uma elucidação maior da imagem, de modo

a transmitir não apenas sensações visuais, mas também aquelas memórias

do tato que nos permitem reconstruir a forma tridimensional nas nossas

mentes (GOMBRICH, 1995, p. 17).

Reflexões sobre a imagem e sua representação nas diversas culturas através

dos tempos apontam para algumas questões relacionadas à história da arte. Por

exemplo, as figuras egípcias. Afinal, por que cabeça, pernas e braços eram

mostrados de perfil, enquanto o tronco ficava de frente? Gombrich inicia o seu “Arte

e ilusão” com uma interessante questão sobre o assunto. Sendo claro que as

pessoas não tinham aquela aparência, resta saber qual o motivo de serem assim

representadas, pois o que vemos daquela arte não correspondia à anatomia de

ninguém. Se observarmos alguns quadros modernos, principalmente os surrealistas,

podemos perceber que a simples representação na arte sofre inúmeras influências

de natureza estética e cultural. O que era convencional há três mil anos nos parece

hoje sem explicação imediata, assim como um desenho figurativo de nossos dias

pareceria estranho a um cidadão egípcio do período arcaico. A chamada “lei da

frontalidade” pode explicar que a figura humana fosse representada, no Egito, em

suas maiores porções, independente da realidade. Esta convenção, parece, nada

tinha de artístico, era apenas ética ou religiosa, e respeitava valores segundo os

quais um semelhante deveria ser representado em duas dimensões. Curiosamente,

surge de novo o tato; talvez esteja no tato a explicação para que fossem mostradas

sempre as maiores porções do corpo humano. Quem sabe residisse aí a face mais

simples desta convenção, uma vez que uma perna ou uma cabeça de frente teria de

conter uma perspectiva de grave e pessoal interpretação?

Serve a lembrança do antigo Egito não para um aprofundamento na história

da arte, mas como simples componente deste capítulo, que busca explicações sobre

o porquê de sermos atraídos pelas imagens e o que elas significam em nosso

desenvolvimento intelectual e afetivo. E, finalmente, o que representou sua

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reprodução mecânica no contexto da liberdade individual e coletiva, na escolha do

que nos agrada, ensina e emociona.

1.5 - Imagem e reprodução

Ao longo deste capítulo, tentamos ver a imagem como fenômeno: como é

formulada na consciência para surgir sob alguma forma ou técnica. Ao ser produzida

artisticamente, a imagem será uma resposta – quase sempre gráfica – ao apelo de

emoções e de memória, e vai levar ao observador momentos de fruição análogos

aos de seu criador. Ser dono de uma imagem pode equivaler, em plano imaginário,

a ser seu autor, como vimos, e isso explicaria o valor da imagem além do que

representa como raridade. Raras, por exemplo, eram as vistas coloridas do Rio de

Janeiro na primeira metade do século XIX, e desde que muitas fossem ainda

finalizadas depois de impressas em litografia ou mesmo abertas em metal, teriam

ainda mais valor de original. Além de tudo, a raridade da imagem naquele período

dava a uma reprodução qualidades de grande arte, sendo muitas encadernadas em

álbuns, ou emolduradas e guardadas com todo apreço. Por não terem sido

descartadas, como ocorreria hoje, é que puderam chegar a nós - e novamente -

como raridades.

As imagens são mais rigorosas e ricas que a literatura, sustenta Berger, que

diz ainda ser a arte a mais confiável prova documental do contexto onde foi

produzida. Pode-se rebater, em parte, este raciocínio através da imagem gerada na

ficção, como em Machado de Assis e em outros escritores (ver adiante em Reflexo e

reflexões). Teríamos com eles “imagens” tão ricas que sequer poderiam ser

representadas no mundo material.

Mesmo a mais imaginativa delas nos permite compartilhar a experiência que o

artista teve do visível, ou seja, o ato de fixar um tema em uma tela eterniza também

o sentimento percebido em cores e traços reais. A obra de arte, por assim dizer, não

permite que existam outras interpretações “intelectuais” senão as decorrentes do

que se pode ver - e não ler. Tendo como maior endereço a sensibilidade do

espectador, a obra de arte desperta uma participação imediata com ele, um diálogo,

um pacto renovado a cada vez que olhamos a imagem e dela extraímos suas mais

recônditas intenções. Como neste trabalho falamos da reprodução gráfica, abstraia-

se a obra musical ou qualquer outra que não pertença ao domínio da visão.

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Preservamos a imagem original ou sua rara reprodução como uma forma de

santificar nossas próprias emoções e dotá-las de valor absoluto, envolvendo-a numa

espécie de religiosidade. Em certa medida, as primeiras reproduções, feitas a partir

da xilogravura e do buril, não conseguiam aproximar-se da qualidade original de um

quadro ou de um desenho detalhado, caso fosse esta a intenção. Bem depois, com

a fotografia e com novas técnicas gráficas, foi possível resolver o problema “físico”

da reprodução, muito embora a discussão a esse respeito esteja sempre presente

na análise crítica dos pensadores contemporâneos. Com relação á litografia, uma

das primeiras formas de reprodução maciça da imagem, diz Walter Benjamin em seu

conhecido estudo A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica:

Pela primeira vez no processo de reprodução da imagem, a mão foi liberada

das responsabilidades artísticas mais importantes, que agora cabiam

unicamente ao olho. Como o olho apreende mais depressa do que a mão

desenha, o processo de reprodução das imagens experimentou tal

aceleração que começou a situar-se no mesmo nível que a palavra oral

(BENJAMIN, 1975) .

Seria, realmente, difícil antever a aceleração a que chegaríamos com as

máquinas impressoras, que pouco depois já podiam receber os originais de uma

obra, artística, literária, etc, poucas horas antes de distribuí-la a seu público, por

mais numeroso que fosse.

1.6 - Reprodução e imitação A tecnologia, hoje, reproduz até mesmo o estilo artístico de uma época ou de

um pintor famoso em programas de computador, e a reprodução gráfica de um

original suscita discussões interessantes. Copiar mecanicamente a imagem insere-

se em um projeto “democrático”, distributivo, não competindo com a primeira criação

em seu possível ardor de unicidade. De fato, uma grande parte das imagens é

concebida para a reprodução em livros, revistas, jornais, cartazes, etc, separando-se

daquelas cuja existência tem o destino de “originais”: ainda que reproduzidos, suas

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cópias vão referenciá-los como arte em seu sentido corrente; e o que se espera da

reprodução é que seja, no mínimo, fiel à sua referência.

Mas há outras questões, e uma delas é do olhar sobre a arte. O que um pintor

acharia diante de um detalhe, apenas um detalhe, ampliado de um quadro seu?

Separando-se o fragmento de um quadro, teríamos algo novo, e não um pedaço da

obra original. Ao pintá-la, o artista não a separou em seções ou particularidades,

pretendendo certamente que fosse examinada como manifestação íntegra – ainda

que sujeita a exames localizados - por parte de seus observadores. Em matéria de

reprodutibilidade, esse golpe anunciado na deferência com o passado, e também

com o presente, jamais teve volta ou recuperação, pois o tesouro que se escondia

nos museus, nas igrejas ou nas coleções particulares teria de chegar de alguma

forma à parede e aos olhos dos recentes cidadãos que o mundo moderno produzia a

partir de uma nova divisão de trabalho, de papéis e de direitos. Isto decerto

aconteceu quando artistas e gráficos começaram a publicar paisagens e retratos a

partir da pedra litográfica ou da chapa metálica para alguém que jamais se orgulhara

com a propriedade de imagens que pudesse tocar.

Os meios de reprodução teriam assim referenciado a obra de arte, agora não

mais a partir de sua distância física com o público (fator suprido com a reprodução),

mas considerando-a uma nova “raridade” advinda no bojo da cópia instituída. No

Brasil, durante grande parte do século XIX, original e cópia misturavam-se na

reprodução gráfica e na convicção das pessoas; só depois que a cópia tornou-se

vulgar com o progresso e a tecnologia é que outras questões começaram a bater às

portas mais bem construídas da sociedade. Segundo Rui Pedro da Fonseca, no

artigo “A arte no mercado, seus discursos como utopia”, para a Revista Electrónica

de Estudos sobre a Utopia (http://www.letras.up.pt),

A obra de arte esquivou-se do isolamento dos séculos precedentes, deixou

de ser um objeto único e privilegiado do museu, noutros tempos o seu único

santuário acolhedor. Atualmente, ela tornou-se coletivizada porque é

serializada; equivale a um signo entre outros signos, a um objeto de

consumo reproduzido no infinito material cultural de revistas, enciclopédias

e coleções avulsas. (FONSECA, 2007)

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Autoria e originalidade deixaram de ser longínquas referências para ganharem

valor de mercado, uma insurgente combinação entre dinheiro e espírito, pois,

segundo o que parece dizer Fonseca, a própria mecanização fez surgir nova aura no

original, que brilha na mesma razão da reprodução mecânica que o referencia. 1.7 - Ilusões e medidas Depois do clichê tipográfico, e mais tarde do offset, obras famosas passaram

a fazer parte dos livros escolares, analisadas e expostas a estudantes que,

entretanto, não dirimiram todas as dúvidas. Erro recorrente em antigas publicações

educativas, alguns autores não indicavam o tamanho da obra original retratada,

deixando aos apreciadores, alunos - e a muitos professores – o trabalho de

descobrir - ou de imaginar - as verdadeiras proporções de um quadro, uma

escultura, um monumento. Embora a falta desta informação não diminua o fascínio

de se conhecer uma obra de arte, medidas reais e imaginadas sempre confundem a

compreensão final de um trabalho. A dimensão, real ou imaginária é, assim, ponto

curioso no mundo das reproduções gráficas. Se cabe experiência pessoal, vale a

que tivemos com dois monstros sagrados, um nacional e outro francês: O Abaporu,

de Tarsila do Amaral, ironicamente vendido a um argentino, e O pensador, de

Auguste Rodin. O primeiro e único encontro com ambos deu-se no mesmo dia e foi

surpreendente:

Inaugurava-se em 1995, no Museu Nacional de Belas Artes do Rio de

Janeiro, a primeira exposição brasileira de Rodin. Iam conosco a expectativa dO

beijo e de outras obras-primas do francês, que conhecíamos dos velhos livros da

escola. Naqueles, as imagens das esculturas eram diagramadas em meia página,

sem referências ou medidas, além do texto explicativo sempre regular e suficiente.

Ao longo da juventude e como tantos meninos, olhamos dezenas de vezes aquelas

figuras apaixonantes e poderosas, sobretudo O pensador, que sabíamos representar

a grandeza e a liberdade. Pois, quando naquele dia ficamos diante da escultura - de

apenas 70 centímetros - aconteceu uma intraduzível confusão entre o que

imaginávamos e o que tínhamos diante dos olhos. À nossa frente os anos se

precipitaram; durante o trajeto tentamos reorganizar valores, desfazer preconceitos e

acostumar rapidamente com a nova realidade. Tratava-se de outra visão sobre a

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obra do francês, grandiosa apenas no que representava para a história e para nosso

humilde passado. Já então não surpreendia as medidas dO beijo, que, soubemos

depois, tinha três versões, a que viera não passava da altura de uma mesa.

Terminada a visita, fomos ao andar de cima, onde parte do acervo do

diplomata e colecionador Gilberto Chateaubriand era exposto. As novas raridades,

entretanto, pareciam amargar certa solidão diante das novidades francesas que,

abaixo de nós, roubava-lhes público e admiradores. Um guarda sonolento mal

vigiava os poucos visitantes e certamente não notou o susto que tivemos diante do

famoso O Abaporu, na galeria central. O quadro e seu gigante devorador da cultura

estrangeira (inclusive a francesa) - e que dera sentido maior ao modernismo

brasileiro - tinha aproximadamente oitenta centímetros de lado. Não nos abatemos.

O grande pensador - pensando bem - era do mesmo tamanho do nosso pequeno

gigante. A briga, se coubesse, ia ser boa.

Há, aliás, curiosa analogia entre as obras. Observe-se que ambas as figuras

têm atitudes semelhantes: a reflexão. Os “gigantes” construídos pela arte e por

nossos valores não possuem, necessariamente, o tamanho que lhes atribuímos, e

sim as dimensões que lhes desejamos.

Tarsila do Amaral, 1928: O Abaporu. 85X73 cm, Museu de Arte Latino-Americano de Buenos Aires (http://www.malba.org.ar) - Auguste Rodin, 1888: O pensador. 71 cm de altura. Museu Rodin (www.musee-rodin.fr/)

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Nós é que viajáramos: no tempo e nas antigas representações sopradas

pelas imagens impressas nos livros de escola. Mas foram elas madrinhas e

madrastas de um sonho bom e intransferível, eternizado na tinta e no papel. Em

nossa percepção, parece, o tamanho das coisas não será nunca o da realidade, e

sim o de que couber em nossa sensibilidade. Lembra Aumont que

O julgamento final, de Michelangelo, a Gioconda, um daguerreótipo, um

fotograma de filme, podem hoje figurar lado a lado, sob a forma de

reproduções de tamanho idêntico, em um livro ilustrado. Ora, o afresco de

Michelangelo ocupa uma parede inteira da Capela Sistina, o quadro de

Leonardo mede perto de um metro, um daguerreótipo, menos de 10

centímetros, (...) um fotograma, menos de dois. Nossas principais fontes de

imagem, o livro, o diapositivo, a tela de televisão, achatam por completo a

gama de dimensões das imagens, incutem-nos indevidamente a idéia que

todas as imagens têm dimensão media, e nos levam a uma relação espacial

fundada também em distâncias medias (AUMONT,1993, p. 139).

No aspecto tamanho também podemos supor que substituímos as proporções

reais de uma obra por outras que se ajustam às nossas expectativas. Diante da

página de uma enciclopédia, caso não tenhamos notícia do modelo, jamais

saberemos as reais medidas de uma escultura ou de um quadro, uma vez que eles

estarão diagramados para caber na mancha gráfica da publicação e também nos

limites de nossas ilusões. E, a menos que se consulte melhor o verbete, ou a

fotografia da obra contenha qualquer referência conhecida, sua grandeza viverá

apenas em nossa imaginação até que a conheçamos de fato.

1.8 - Reflexos e reflexões

As imagens físicas nos surpreendem, mas as psicológicas também. Estas,

para este estudo, seriam as contadas - ditas oralmente, ou escritas - das quais

extraímos uma forma, uma aparência, mas que eternamente ficariam assim, em um

mundo pessoal e intransferível. Os primeiros livros e revistas não ilustrados já

fabricavam suas imagens antes que os artistas e impressores as transferissem para

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o papel. Essa última conquista apenas acelerou a curiosidade e também o

imaginário através da combinação da imagem com o texto.

As representações mentais, base para o fabrico da arte, são matéria de uma

série de estudos. De acordo com o professor Arthur Araujo, em artigo para a revista

“Philosophos” (UFG, Janeiro/junho, 2003), este fenômeno começa a surgir como um

tema filosófico de grande importância no estudo da organização da mente e do

conhecimento de nosso cérebro. Há correntes de pensadores, desde Descartes, que

entendem esse fenômeno de várias formas, mas, segundo o acadêmico, “é essa

dualidade entre interno e externo que parece caracterizar o problema das

representações mentais e a dificuldade de determinar a relação entre mente e

cérebro: são mente e cérebro coisas distintas e não redutíveis uma à outra?”

(ARAÚJO, 2003)

Também não sabemos, mas cabe examinar um dos casos da literatura

brasileira em que a imagem, ou a sua curiosa ausência, é o centro de uma proposta

cujo objetivo é entender – como também parece buscar o professor Araujo – alguns

mistérios de nossa mente e alma. Em 1882, em plena maturidade literária, Machado

de Assis produziu um de seus mais deliciosos contos, O Espelho, cujo subtítulo o

próprio autor emendou como Esboço de uma nova teoria da alma humana. Inúmeros

estudiosos da obra machadiana produziram interpretações sobre este conto, mas o

mínimo resumo do que disseram os célebres Raimundo de Magalhães Jr, Lucia

Miguel Pereira, Augusto Meyer, Roberto Schwartz, Alfredo Bosi e Raymundo Faoro,

entre tantos, só faria alongar este capítulo. Vamos, pois, a uma síntese da história

para observá-la a partir do ponto de vista da imagem:

Quatro ou cinco senhores conversavam certa noite sobre assuntos de alta

transcendência. Nada, além de suas próprias verdades, parecia incomodá-los até

que um dos participantes, o mais calado, instado a dizer alguma coisa, resolve

contar um episódio por ele próprio vivido. Jacobina – era o seu nome – afirma

primeiramente que cada criatura humana possui duas almas, uma que olha de

dentro para fora e outra que olha de fora para dentro - o que anima a discussão. A

seguir, relata que na mocidade fora nomeado alferes da Guarda Nacional, um dos

postos mais importantes e cobiçados por rapazes da sua idade. Feliz e com sua

farda na mala, foi inesperadamente convidado por uma tia distante para passar

uns dias em sua fazenda. Lá, a parenta orgulhosa cobre o moço de elogios e

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rapapés, dando-lhe um quarto e um grande espelho, coisa fina, com moldura de

delfins. Dias depois, porém, ela recebe a notícia de que a filha estava à morte e vai

visitá-la, deixando o sobrinho vigiando a casa; alguns escravos permanecem com

ele, mas logo fogem, abandonando-o. O moço começa a ficar incomodado com a

solidão e busca o espelho para refletir-se, uma tentativa de multiplicar sua imagem

e sentir a companhia de um “outro”. Mas a imagem, com os dias, vai também

perdendo nitidez até sumir, o que deixa o rapaz desesperado. Com o tempo, não

achando mais seu próprio reflexo, ele experimenta colocar a farda de alferes e

mirar-se de novo no espelho. E qual não é sua surpresa ao ver que a imagem

voltara, clara, definida. Era o alferes, e não o rapaz assustado, que encontrava a

sua alma exterior. Com este expediente - finaliza o protagonista da história – pude

atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir.

(O conto faz parte de Papéis Avulsos, Ed. Jacson, 1946; a síntese é do autor)

O conto de Machado de Assis fala da vaidade e da solidão, tratando estes

sentimentos com seu mágico senso de humor e ironia. No meio de tudo, um espelho

como fronteira entre o real e o que esperamos de nós mesmos. Trata-se de uma fina

espetadela na alma do leitor, provando que somos ao mesmo tempo alguém que vê

e que é visto, só as circunstâncias definirão em que pesos e medidas. A imagem

diante de um espelho pode nos pertencer em determinado estado da alma, como

pode representar para nós a maneira pela qual somos vistos por outrem. Isto apenas

provaria que nosso olhar é tão realista como cruel, ou condescendente, e que,

diante de imagens como as de um quadro, nos projetamos também, assim como

fazemos com nosso reflexo. Ainda que o espelho nos devolva o mundo tal como ele

é, mesmo assim, sua duração é episódica, leva o tempo e o momento do olhar, e

não se repetirá como em uma tela ou uma fotografia. Ao observarmos nosso reflexo

no espelho, vemos um quadro com sua moldura e todo o suporte de uma obra

concebida por um grande artista: nós mesmos. É o autorretrato, dinâmico, dentro do

qual nos ajeitamos a cada instante para a crítica ou a consagração. Na história da

arte o espelho é peça decisiva no universo de fabulações representativas, uma vez

que só sua superfície é capaz de conjurar, em um plano – como numa pintura – as

três dimensões da realidade, o que é difícil de imaginar sem o afastamento do corpo

ou a partir da posição original de nossos olhos. O reflexo, é, assim, uma espécie de

quadro vivo cuja imobilidade torna nebuloso o próprio exame. Renè Huyghe, em

Diálogos com o visível (Ed. Bertrand, 1994) diz que

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A pintura do ocidente deixou-se fascinar, com efeito, por essa superfície de

vidro que tão exata e totalmente capta as aparências do mundo. O artista

pica-se com a emulação. A sua rivalidade exalta-se ao verificar uma

vantagem – a de poder fixar, para sempre, os simulacros de que o espelho

é, tão-somente, um efêmero local de passagem. Esta concorrência, que o

mistério dos espelhos excita, só findará quando o registo mecânico e

definitivo da fotografia lhe der a morte, porque, então, perdeu a pintura a

superioridade positiva que tivera sobre os reflexos fugidios – a duração.

(HUYGHE,1994, p. 94).

Machado escreveu “O espelho” aos 44 anos de idade. Era um estudioso da

literatura e das artes; e conhecia, como sabemos, a história antiga, de onde tirava

inspiração para muitas de suas obras. E isto teria acontecido, com certeza, na leitura

do mito de Narciso, de Ovídio. Muitos pintores produziram obras a partir da lenda,

grega anterior a Cristo. São conhecidos trabalhos de Caravaggio (1571-1610),

Nicolas Poussin (1594-1665), Willian Turner (1775-1851, Jonh Waterhouse (1849-

1917) e, recentemente, Salvador Dalí (1904-1989), que pintaram o tema em muitas

variantes. Entre os que escreveram ficção, incensados pelo mesmo assunto, estão

Andre Gide, Oscar Wilde e Dostoevsky. Por isso, nada a espantar se esta iguaria

machadiana nos chegasse à mesa, com o melhor tempero tropical, nos braços da

mitologia. O Espelho, de Machado, consegue reverter sua condição de texto para a

de imagem, devolvendo ao leitor o reflexo de suas incertezas. Em razão deste sutil

artifício literário, responsável por mudar a relação entre o que se lê e o que se vê, é

que o estudo de seu conto foi incluído neste capítulo. O Espelho, certamente, não

aconteceu à toa na obra do escritor, que era também um sistemático observador do

comportamento humano e das contradições que mostramos sem sentir - ou das que

sentimos sem mostrar. A não-imagem, que aventamos, vai existir vazia como uma

peça de quebra-cabeça cujo lugar se torna difícil de achar em razão de nosso

momentâneo desequilíbrio. Para termos nosso reflexo de volta é preciso desejar que

isso aconteça, obtendo acerca de nós mesmos uma apreciação (qualquer) de valor.

É preciso, também, que o reflexo que nos chega contenha o que supomos os outros

acharem de nós. Este parece ser o mistério nas entrelinhas do conto: sem ninguém

para reconhecer o alferes, para cumprimentá-lo e elogiá-lo a todo instante, o jovem

perdeu o referencial externo, sua imagem, ou, como quer Machado, sua “alma

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exterior”. Um retrato diante do espectador também faz papel de espelho; a cena de

alguém apreciando um quadro muito se assemelha a de quem está diante do próprio

reflexo, pois a relação entre o artista e seu apreciador contém a mesma mágica: ver

e ser visto.

Tão recíproca como narcísica, pois diante de um quadro é certo que

buscamos compartilhar a beleza de seu tema, participando de uma dança ou de

uma cena histórica no lugar do herói; ou, ainda, fluindo por sobre a obra,

despretensiosamente, como um voyeur na busca de sua fruição. A tela (e não mais

a escultura, com sua terceira dimensão) transforma-se de repente na superfície de

um lago – um espelho - onde o personagem de Ovídio, apaixonado pelo seu reflexo,

deixa-se ficar em funda contemplação, definhando até à morte.

O espelho, como primeira e natural reprodução da imagem, está para história

da arte como instrumento fundamental. Praticamente todos os artistas se ocuparam

dele, transformando seus reflexos em linguagem, tirando destes as mais curiosas

manifestações. Alguns deixaram uma série de exemplos que, mesmo recorrentes,

não deveriam faltar a este estudo. E muitos, como diz Huyghes, não se contentaram

em dominar seu reflexo, “por acréscimo, não apenas reproduzem a sua imagem,

mas ainda a imagem que ele próprio reproduz” (HUYGHES, 1994, p. 95)

Em uma trilha antiga, percorrida pelo pintor flamengo Jan Van Eyck (1390 –

1441), o tema do espelho surge com a graça da tinta a óleo em seus primórdios,

ganhando em qualidade da têmpera e do afresco. Era ele um pintor flamengo, de

estilo detalhado e naturalista, cuja obra mais estudada é O casal Arnolfini. Este

quadro mostra um homem e uma mulher, de pé, e uma série de pormenores que

dão conta dos costumes e da rica posição social de ambos. O que chama atenção

na obra, além dos detalhes finamente captados pelo pintor, é um espelho de forma

circular que fica ao fundo da parede. Nele, num exame mais detalhado, vê-se o

casal de costas e a figura de alguém pintando a cena. É ele, o próprio Van Eyck, que

aparece em seu trabalho, no reflexo, apesar dos diminutos cinco centímetros que

este ocupa no quadro. Que razões teriam levado o artista a eternizar-se por conta

própria em companhia dos ricos Arnolfini? Certamente o orgulho de ter realizado um

trabalho que não deveria ir à posteridade sem algo mais do que a assinatura de seu

autor. E também, por que não?, uma tentativa de atribuir mais reconhecimento ao

artista, que, de modo geral, aparecia como um serviçal de luxo para os poderosos

da nobreza e do mercantilismo.

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Em “As meninas”, Diego Velazques (1599–1660) posa na verdade ao lado da

família real de Felipe IV, incluindo-se em uma tela de três metros de altura e

ocupando uma disposição privilegiada. Para onde e para quem olha Velazquez ao

pintar “As meninas”? Outros artistas como Luca Giordano (1632–1705), Francisco

de Goya (1746–1828), Jonh Singer Sargent (1856-1925), Salvador Dali e Pablo

Picasso (1881–1973) inspiraram-se em Velazquez e produziram obras de tema

semelhante. A galeria dos espelhos é longa na história da arte, e desde o

Renascimento a pintura está obcecada por este microcosmos. Diz Huyghes:

Houve cidades flamengas em que , no limiar do século XV, os pintores se

agrupavam na corporação dos fabricantes de espelhos. Em Bruges, a

guilda de S. João associava os miniaturistas aos calígrafos, mas a de S.

Lucas não separava os pintores dos vidreiros-espelheiros. No século XVII,

um Gerald Dou, tão minuciosamente exacto, é filho de um vidreiro. Na Itália,

Leonardo (da Vinci) explica “como o espelho é o mestre dos pintores”

(HUYGHES, 1994, pag. 93)

Rembrandt (1606–1669) fez dezenas de autorretratos, começando-os aos

dezessete anos é só pintando o último pouco antes de morrer. Foi talvez o artista

que mais utilizou o espelho para eternizar-se. Um deles aproxima-se muito da

solitária circunstância descrita no conto de Machado de Assis. Trata-se de “O artista

em seu estúdio”, de 1629, em que Rembrandt se retrata em pé, solitário, diante de

um grande cavalete que reduz ainda mais sua pequena estatura. No quadro, o

artista parece afastar-se para avaliar o resultado de sua tela, que está de verso para

nós, não deixando que saibamos o que pintava. O conjunto, entretanto, parece

sintetizar a verdadeira intimidade do artista com sua obra, iluminando ainda o que

esta poderia representar para o espectador. Neste quadro, podemos ver com

clareza alguns elementos que compõe uma obra de arte: o artista, o que ele faz e

quem vê a obra. A cena, propositalmente, é despida de detalhes: um estúdio tosco e

humilde, em que a iluminação recai apenas na face do cavalete voltada para o

artista. Este - um pouco na penumbra e menor do que sua obra - tem o pincel e a

paleta nas mãos, e uma atitude crítica. Trata-se de um quadro e de uma filosofia,

uma síntese humanista e desapegada das vaidades. Na tela, a grandeza da obra

diante da pequenez do autor é uma síntese triangular da qual nós, observadores,

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fazemos parte: o jovem Rembrandt parece examinar-se no reflexo da tela que

executa e, ao mesmo tempo, no futuro olhar que deitaremos a ela. Curiosamente,

temos atitude semelhante à do artista ao apreciar seu quadro: somos o reflexo dele!

Rembrandt, 1628: O artista em seu estúdio. 25X32 cm. Fonte: Boston Museum of Fine Arts (www.mfa.org/)

É possível que Machado de Assis, pelo menos em sua juventude, não tenha

visto uma obra de Rembrandt ou fiel reprodução de algum de seus trabalhos. Não

havia na cidade técnica confiável para reprodução de imagens como essas. Mas a

criação do mestre holandês tem foco semelhante ao dO espelho: tanto Machado

como Rembrandt construíram um triângulo entre obra, autor e espectador, síntese

magistral das grandes manifestações artísticas.

Constatar a arte dos grandes mestres é também perceber a de outros

mestres. Enquanto a reprodução moderna mais se aproxima tecnicamente de seu

original, mais importantes vão ficando as velhas litografias, xilos, talhos-doces e

águas-fortes, impressas para sempre nos papéis amarelados da nossa história. São

no fundo pequenos espelhos em que o homem do século XIX mirava-se a si e a tudo

que crescia à sua volta. O tempo, então, começava a correr, derrubando mitos e

lendas; as imagens aproximavam continentes.

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Capítulo 2

Técnica, gravura e reprodução da imagem A reprodução em tempos difíceis

Cabe agora entrar no território da reprodução. Gravura é um termo genérico, e

sua referencia básica é o múltiplo de uma obra de arte reproduzida a partir de

alguma matriz. O que modernamente a difere de outros impressos é o fato de cada

cópia ser única, tirada manualmente dessa matriz, sob controle técnico e estético.

“Modernamente” não entra aqui por acaso, uma vez que em outros tempos – por

questões de tecnologia - cada impresso era também uma gravura pois sua

concepção e tiragem obedeciam a critérios semelhantes, e mesmo iguais, aos que

hoje conhecemos.

“Mas, trata-se aqui de uma reprodução numerada e assinada uma a uma,

compondo uma edição restrita, diferente do pôster, que é um produto de processos

gráficos automáticos, e reproduzido em larga escala sem a intervenção do artista”,

diz o artista plástico e filósofo Mauro Andriole, em artigo para a Casa da Cultura,

(http://www.casadacultura.org.art). Se recuarmos no tempo, podemos comprovar

que a maioria das imagens chegava ao público exatamente desta maneira,

impressas em pequenas quantidades, cada cópia sob vigilância de seus criadores

ou de artistas-impressores, como eram conhecidos aqueles que se dedicavam a

esta fina e delicada atividade. Era mais comum que criador e impressor

trabalhassem juntos, quando não eram a mesma pessoa.

Antes que recentes processos de reprodução chegassem ao Brasil, a tarefa de

realizar uma imagem e copiá-la para o público – em álbuns, estampas avulsas, e

mesmo em revistas e jornais – era competência de pessoas cuja experiência ou

vocação concentrava-se em arte, de um modo geral, e no desenho e pintura,

particularmente. Em muitos casos, como veremos, o trabalho era gerido por artistas

profissionais (estrangeiros na maioria), que traziam sua cultura específica e seus

apetrechos. Mas a necessidade faz escola, e muita gente nascida no Brasil acabou

participando desse trabalho como aprendizes, ajudantes e depois realizadores. No

século XIX, após a Independência e durante o início do segundo reinado, o mercado

gráfico da imagem era alimentado por pequenos ateliês e alguns prelos; muitas das

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publicações tinham poucas dezenas de cópias, tiragem semelhante às de gravuras

atuais. A diferença, talvez, é que não eram produzidas com ajuda da luz elétrica,

com tintas de qualidade, boas máquinas e nem ostentavam qualquer assinatura,

uma a uma, como hoje.

O fato de haver cópias da mesma imagem, nada tem a ver com a

questão de sua originalidade. Ao contrário disso, a arte da gravura

está justamente na perícia da reprodução da imagem, na fidelidade

entre as cópias, este é um dos fatores que distinguem o artista

gravador (ANDRIOLE, 2008).

Alguns dos magistrais trabalhos produzidos nesta época servem para dissolver

certas cristalizações de que arte só pode ser achada em endereços famosos ou em

grandes coleções. No caso das reproduções gráficas, os fatos mostram que muitas

serão originais apesar de tudo.

2.1 – Processos gráficos e definições

Em 1845, no meio do século XIX, um desconhecido francês que vivia no Rio

de Janeiro colocou nos jornais um curioso anúncio sobre os serviços gráficos que

prestava. Tal anúncio, o da Officina de Omniographia, Pintura e Colorido, continha

em seu texto uma síntese de toda a confusão e desconhecimento sobre as técnicas

de impressão e demanda por este tipo de trabalho na época (e, de algum modo,

ainda hoje). Informava o tal francês que sua oficina era dirigida pelo próprio inventor

da “omniografia”, e que ali se imprimia todos os caracteres, fixos ou móveis, todas as

chapas de fundo ou de relevo, em metal, pedra ou madeira, para quadros, música e

livros, letras de câmbio, faturas, rótulos, cartões de visita, etc. Além disso, o anúncio

prometia colorir ou dourar qualquer estampa, retrato, paisagem, mapa e outras

imagens gráficas, garantindo tornar indeléveis os desenhos de fumo feitos à mão. A

Officina também oferecia a pintura de retratos – realizados à vista do natural –

coloridos e com semelhança garantida.

Tão ou mais significativo neste anúncio, coletado por Orlando da Costa

Ferreira e sem outra pista bibliográfica além de sua citação em Imagem e Letra:

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Introdução à Bibliologia Brasileira: A Imagem Gravada. (2ª edição. Edusp, 1994, p.

453), vem nas linhas seguintes, quando seu autor fala da nascente fotografia, que se

incorporava aos poucos à realidade daquele momento: “fazem-se também cópias

pintadas ou estampadas tiradas pelo daguerreótipo, emendando os defeitos que

esta invenção, ainda que admirável para a reprodução de objetos inanimados, deixa

quase sempre na pintura da natureza viva”.

Os nebulosos termos do anúncio podem, curiosamente, iluminar algumas

dúvidas sobre o confuso panorama da época no aspecto das artes gráficas. É que

através dele será possível traçar um breve quadro das técnicas empregadas na

multiplicação de originais, assim como as limitações encontradas por artistas e

impressores brasileiros que apenas adolesciam em relação ao que já se fazia outro

lado do Atlântico. Em alguns casos, entretanto, a corrida teve bons momentos,

quando algumas técnicas consagradas na Europa foram rapidamente aqui adotadas,

principalmente em relação à litografia e à própria fotografia.

A confusão gerada pelos termos, aliás, parecia ser um bom achado para

muitos comerciantes, que publicavam – ou inventavam – palavras desconhecidos

para um público despreparado para o consumo mais refinado, caso das estampas e

outras obras gráficas. Avisos de que máquinas eram “movidas a gás”, por exemplo,

indicavam o estágio técnico de uma empresa, sua eficiência e rapidez, enquanto o

trabalho físico de movimentar os prelos era entendido como atraso tecnológico.

Entremeando-se francês e até mesmo latim em seus anúncios, os publicitários da

época deviam apostar na carência de um povo que bracejava por logo pertencer ao

doce grupo dos iniciados no progresso. A atividade gráfica, desnecessário lembrar,

sempre foi um indicador de cultura e refinamento, revelando o quanto uma

sociedade está integrada ao conhecimento e ao resto do mundo.

Destaque-se, no anúncio de 1845, que ele imprimia todos os caracteres, fixos

ou móveis. Isso quer dizer que a Omniographia (certamente uma panacéia para

resolver múltiplas demandas desta ocupação) trabalhava com a xilogravura e com a

tipografia, considerando que caracteres fixos podiam ser aqueles maiores, cortados

na madeira ou importados para imagens prontas ou para se fazer grandes títulos. Os

móveis, por sua vez, se prendiam à composição manual conhecida, a partir de tipos

metálicos. De fato, as tipografias foram as primeiras oficinas a produzir impressos no

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país desde que aqui chegaram, antes mesmo da família real, em 1808, mas que

tiveram franco crescimento a partir desta data. No início, o termo “tipografia”

designava qualquer forma de trabalho gráfico, só aos poucos outras informações

foram acrescidas ou incorporadas, como “litografia”, “ateliê” “editora”, etc. As

impressoras tipográficas e litográficas do meio do século, mais desenvolvidas,

vinham da Europa, imprimiam folha a folha e a maioria era movida manualmente.

Impressoras tipográfica e litográfica dos meados do século XIX. Fontes: http://www.portalsaofrancisco.com.br e http://2.bp.blogspot.com .

A segunda menção no curioso anúncio é que a tal oficina também imprimia

todas as chapas, “de fundo e de relevo”, significando que trabalhava provavelmente

com o talho-doce e com água-forte. As técnicas, aqui, podem identificar que a oficina

tirava imagens a partir de chapas de metal, vazadas a buril ou mordaçadas pelo

ácido.

No primeiro caso, o do talho-doce, tinha-se mais trabalho uma vez que depois

de cortadas pelo artista com instrumentos finos e de grande precisão, a chapa

recebia a tinta, que a seguir era raspada, ficando depositada apenas nas incisões

feitas pelo gravador. O passo seguinte na reprodução das chamadas gravuras a

entalhe era umedecer o papel e prensá-lo fortemente contra a chapa, fazendo com

que a tinta aderisse à sua superfície, o que resultava em um leve relevo depois de

seco. O termo “de fundo” empregado no anúncio, queria dizer que a matriz era uma

chapa de metal aberta para impressão negativa, ou seja, a tinta depositava-se

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abaixo da sua superfície, colando-se ao veículo (à mídia, modernamente) ao ser

impressa.

Mas nossa Omniographia parecia ser completa, na duvidosa hipótese de que

podia fazer de tudo com a perfeição anunciada. Ela também tirava cópias a partir de

chapas “em relevo”, outra técnica importante para o estudo das imagens impressas.

Em relevo não devia ser outra coisa senão água-forte ou xilogravura, ou ainda

qualquer meio através do qual se obtinha a imagem acima da superfície da chapa. É

o que mais se aproximaria do clichê, artefato obtido bem depois e a partir de novos

materiais, luz elétrica e equipamentos fotográficos mais modernos. A gravura à

água-forte é conseguida depois de se submeter uma chapa metálica à riscadura (ou

remoção definida de uma camada de verniz, ou substância graxa), deixando que

uma mistura de ácidos corroa o metal nos lugares em que se decidiu não proteger.

Assim, as partes rebaixadas pela mordaçagem do ácido não imprimirão; só as

protegidas poderão receber a tinta de impressão. Tirar cópias de águas-fortes é

mais simples que de talhos-doces, pois o resultado é imediatamente obtido depois

da pressão sobre o papel, não sendo necessária a ação de raspar a tinta para nova

tiragem. É preciso dizer que tanto o rebaixamento pelo ácido, como o trabalho de

sulcar a chapa de metal podiam ser feitos em um mesmo original, usando-se meios

distintos para se obter certos resultados estéticos. As cores poderiam ser obtidas em

áreas definidas durante a impressão ou depois, através de pintura sobre as cópias,

como na água-tinta seguinte.

Água-tinta de Felix Emile Taunay. Aclamação de D. Pedro I, 1822 ?. 39X47 cm. Fonte: http://objdigital.bn.br

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No caso de tiragens de mercado era mais comum o uso de uma só técnica. Se

completa, como anunciava, a oficina também poderia imprimir a partir do zinco,

material que respondia bem ao rebaixamento pelo ácido, principalmente se a

necessidade fosse a reprodução de linhas em tons absolutos. E, com efeito, o

anúncio falava em mapas, cuja preparação sobre esta chapa se revelava

apropriado. O zinco, tratado depois à maneira litográfica, dava excelentes resultados

nesse particular, tendo sido usado bem antes, ainda no tempo do Rei, pelos artistas

que imprimiam nas oficinas do Arquivo Militar (ver capítulo 4).

Relevo e vinco em papéis de segurança, como dinheiro e outros impressos

fiduciários (letras de cambio, alguns recibos, diplomas e registros de posse) eram

outros desafios da época. Para evitar falsificações, existiu um tipo de impressão que

nossa gráfica em questão deveria fazer, levando em conta a imensa capacidade que

pregava. Chamava-se Impressão a Congreve (homenagem a seu inventor, inglês,

que a aperfeiçoou em 1819). Consistia em pressionar o papel entre duas chapas

metálicas – macho e fêmea – obtendo-se assim um relevo palpável que era

impresso a seguir, preferencialmente em mais de uma cor. Lembre-se que, no

anúncio estudado, seus autores falavam em “letras de câmbio”, “faturas”, “rótulos”...

Além de metal, “pedra ou madeira”, dizia o impressor francês através de

revistas e jornais de 1845, como o “Almanaque Laemmert”, informativo que

começara a circular na capital do Império um ano antes e que iria até à Proclamação

da República. Pedra ou madeira, simples designações para litografia e xilografia,

que pouco tinham em comum entre si, mas que eram proclamadas juntas em função

do material que servia de suporte aos originais de impressão. A madeira é a mais

antiga no cenário da reprodução de imagens, não sendo necessário entalhes mais

profundos acerca da origem das xilogravuras. Mais proveitoso será apresentá-la

mais tarde, depois dos anos 1850, como grande opção para originais de fino

acabamento e que precisavam de minúcias na execução; e, principalmente, para

compor impressos que pudessem reunir, numa só face do papel, a sonhada

combinação de texto e imagem, difícil em um tempo em que o primeiro era obtido

com os resistentes caracteres tipográficos, de metal, e a segunda através de

materiais menos resistentes. Assim, a xilogravura tradicional, feita com a madeira

deitada (entalhada a fio, no sentido longitudinal de suas fibras), era utilizada com

sucesso de modo diferente: em pé, ou de topo (numa porção transversal ao tronco

da árvore), entalhando-se o desenho a buril, como no talho-doce. A fibra da madeira,

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assim, é mais unida e resistente, possibilitando ser montada na altura dos caracteres

tipográficos e imprimir imagens sem o rápido desgaste das xilos a fio ou das chapas

de cobre. A madeira utilizada fazia a diferença, sendo o buxo europeu um dos mais

indicados à reprodução gráfica em razão de sua resistência e facilidade de trabalho.

Mas se tratava de material caro aos artistas gravadores, muitos dos quais buscavam

nas madeiras nativas uma opção de sucesso, entre elas o guatambu, o pequiá-

marfim, a peroba-rosa, etc. Como exemplo, a xilogravura abaixo, de autoria do

italiano Cattaneo, retratando uma cantora lírica da época para a revista “Rua do

Ouvidor”.

Giovanni Cattaneo, 1889, Armanda Degli, xilogravura Fonte: Ferreira, p.207

De qualquer modo, o tipo de madeira escolhido cingia-se ao projeto do artista,

que muitas vezes achava melhor usar os veios e os acidentes naturais do material

para tirar proveito estético de sua obra. A xilo de topo era tanto uma opção para

projetos artísticos, como base para a tiragem de cópias pelo método tipográfico,

sendo aí utilizada como uma forma de clichê.

Cabe também registrar que se obtinha a matriz de impressão através da

politipagem, uma antiga invenção que transferia para o metal o resultado de uma

xilogravura. Para isso, era bastante verter o metal sobre o taco de madeira, obtendo-

se uma espécie de contra-forma, ou um carimbo. A técnica ficou conhecida também

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como estereotipagem, muito usada quando a durabilidade da matriz era necessária

a tiragens maiores. Inicialmente, foi usada para fazer vinhetas e enfeites móveis a

serem impressos por tipografia mas também serviram para a reprodução de imagens

maiores. Estratégia semelhante foi a de se obter outra matriz através da

galvanoplastia, ou seja, uma chapa metálica, tirada por eletrólise, de um original

montado que podia conter textos e imagens. Era um processo ainda importado, mas

que os Laemmert afirmavam fazê-lo em suas instalações industriais, em 1884.

Muitas imagens publicadas no Brasil da época, como modas, paisagens e

retratos, eram resultado de estereótipos estrangeiros, comprados por nossos

gráficos depois de usados em seus países. Paula Brito (ver capítulo 4), um

contemporâneo da Omnigráphica, já importava essas chapas para sua Marmota

Fluminense, quando não encartava na publicação imagens coloridas que mandava

vir, já impressas, de Paris.

Ainda tomando a oficina do Rio de Janeiro como condutor deste capítulo,

chegamos à pedra e por extensão à litografia. O que era e o que representava a

litografia para a época? O Brasil não perdera muito tempo entre a invenção da

litografia – pelo theco Alois Senefelder (1711-1834) – e sua revolucionaria

introdução na França, pouco depois de suas primeiras demonstrações, em 1798. O

processo abriria as portas para as artes gráficas na questão da qualidade e

similitude das imagens, uma vez que sua manipulação era mais rápida; e a base da

gravação - a pedra calcária - podia ser reaproveitada várias vezes. Foi a litografia,

que chegou ao Brasil na segunda década do século 19, trazida pelo francês Arnaud

Julien Palliére, a responsável pelo grande tesouro de imagens sobre o Rio de

Janeiro e também de outras partes do país, reconstituindo um momento histórico de

raríssima beleza para a arte e sua reprodução. Como matriz para impressão

profissional, a litografia veio até os primeiros anos do século 20, sendo substituída

pelo processo offset, revolucionário, mas cujo princípio é absolutamente o mesmo.

Em poucas palavras, a litografia é um método de tirar imagens baseado na

repulsão química entre a gordura e a água. Além disso, é um modo planográfico,

como tantos, em que a matriz é plana: depois de receber a tinta, o papel é pousado

sobre ela e prensado com um rolo ou por outra superfície, ocasionando a

transferência da imagem. A novidade na litografia era a obtenção de meio-tons

perfeitos através do desenho feito à lápis ou a pincel na superfície da pedra, que

depois era tratada para separar a parte desenhada da sem-imagem, equivalendo

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esta ao branco do papel. A pedra era importada da Alemanha, principalmente, e

pesava muito: um pequeno bloco com pouco menos de dez centímetros de

espessura e meio metro de lado podia ter mais de 100 quilos, mas a fidelidade do

que se produzia sobre ela era absoluta. Com o tempo, algumas opções foram

surgindo no seu uso, como a transferência de imagens diretamente de um papel

para a pedra através de uma tinta especial usada pelo artista. Depois de tratada

para impressão, a matriz suportava boas tiragens com a mesma qualidade, muito

embora toda a operação – do desenho ao acabamento da peça – precisasse de mão

de obra preparada e de grande apuro, uma vez que deveria também reproduzir o

padrão estético da época.

Todo o trabalho de impressão, aliás, era conduzido por gente que conhecia

arte, alguns com mais intimidade (pintores e gravadores), e por outros, que

rapidamente aprendiam como manipular originais e transferi-los para as matrizes. Os

franceses e os alemães, que detinham as técnicas e traziam as engenhocas para o

trabalho, eram os mais conhecidos, embora inúmeros outros estrangeiros se

despencassem para cá na busca de sucesso financeiro, profissional, e mesmo por

aventura e curiosidade, já que o Brasil significava também a busca de novos

conhecimentos e chances junto à corte e aos governos regionais. Não é fora de

propósito que a oficina em questão fizesse de tudo, como sugere o nome, inclusive a

litografia, que àquela época representava a maioria dos estabelecimentos gráficos

do Rio de Janeiro. Relembre-se que uma página de jornal, por exemplo, podia ter as

imagens em litografia, voltando o papel à máquina tipográfica para se imprimir o

texto; assim apresentava-se a recorrente diagramação da época, que carecia às

vezes de três entradas em máquinas para cumprir o mínimo padrão de qualidade

gráfica. Os jornais, em sua maioria, precisavam de tempo para serem impressos, e

muitos podiam ter apenas dois números semanais. No próximo exemplo, notar que o

cabeçalho do jornal e sua ilustração principal foram feitos separadamente, com

certeza em tipografia e em litografia.

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O Brasil Illustrado, de maio de 1855, com o Barão de Mauá na capa. Fonte: http://objdigital.bn.br

A promessa de “colorir ou dourar qualquer estampa, retrato, paisagem (...)”,

garantindo tornar indeléveis os desenhos de fumo feitos à mão, enseja uma

explicação sobre o momento que as artes gráficas viviam. Os procedimentos

descritos significavam o início de futuras conquistas, em que o trabalho do artista

finalmente migrava do envolvimento físico com a obra para um planejamento cada

vez mais distante das tintas de impressão. A cor foi outra difícil conquista quando se

fala na reprodução gráfica das imagens visando aproximá-la cada vez mais de um

original ou de uma tela. Era comum que os ateliês e estabelecimentos gráficos

colorissem artificialmente as cópias depois de prontas. Para isso era usada a

aquarelagem, ou seja, pincelava-se algumas tintas à base de água sobre as cópias,

avivando as cenas de mar, montanha, vegetação, roupas, etc. O efeito era

excelente, mas o custo imenso, considerando que a mão de obra empregada era

escassa e nem sempre a produção tinha a regularidade necessária. O método,

notavelmente descrito pelo designer e pesquisador Joaquim Marçal Ferreira de

Andrade (in Impresso no Brasil, 1808-1930, org. Rafael Cardoso, Ed. Verso Brasil,

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RJ, 2009), pode ser comprovado em dezenas de estampas do acervo da Biblioteca

Nacional, de museus e de coleções particulares:

A técnica mais comum era da estampilha ou pouchoir, nome dado às próprias estampas assim obtidas. Primeiro imprimiam-se os contornos e sombreados do desenho, em preto, e depois as cores eram aplicadas à mão, com tinta de aquarela, utilizando-se um estêncil (pouchoir, em francês) para cada cor. O estêncil consiste em uma folha de papel, cartão ou metal, que recebe um determinado recorte ou perfuração de modo que, ao ser colocado sobre uma superfície e passando-se tinta por cima, reproduz a forma vazada. (ANDRADE, 2009, p. 51).

Entende-se, portanto, como imagem colorida aquela que representa os tons

encontrados na natureza e não apenas a simples impressão de uma imagem com

outra tinta em lugar do preto (ou “fumo”), segundo nossa oficina de 1845. A escalada

para chegar às cores, aliás, já começara há uns 20 anos dessa data, quando os

gráficos perceberam que a porosidade da pedra litográfica poderia reter meio-tons

semelhantes a uma retícula, e que, imprimindo-se outra cor por cima da anterior, o

resultado era um terceiro tom resultante de simples fusão ótica. Ainda assim eram

necessárias três ou quatro passagens na prensa para que o efeito chegasse a

convencer. Alfred Martinet, um dos maiores artistas gráficos da época, preferia

aquarelar suas paisagens, método mais barato que a múltipla impressão de cores:

Alfred Martinet, 1847. Cemitério Inglez na Gamboa. 33X50 cm. Litografia aquarelada (bndigital.com.br)

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Artistas e impressores europeus, porém, já experimentavam o que se

convencionou depois chamar de separação de cores, reduzindo-se todo o processo

a quatro tiragens, uma a cada cor (magenta, cian e amarelo, e depois o preto), que,

em proporções e direções adequadas sobre o papel, refaziam o espectro da luz e

reproduziam com fidelidade as cores naturais. Mas o tempo não corria como hoje, e

as conquistas chegavam mais tarde, ainda que aqui os estrangeiros que se

ocupavam do trabalho andassem depressa para apresentá-las ao público. Deve ter

acontecido o mesmo com a Omniográfica, que não citou o termo “cromolitografia”

(só cunhado depois) para designar esse processo. Pouco antes, em 1843, a

publicação Minerva Brasilliense, impressa nas oficinas de Heaton & Rensburg, no

coração do Rio de Janeiro, publicava o que seriam as primeiras estampas

cromolitografadas no Brasil: o desenho de dois beija-flores, pintados pelo naturalista

francês Jean Theodore Descourtilz, há anos pesquisando pássaros por aqui.

Não era novidade, então, que os impressores da metade do século XIX

conseguissem verdadeiros milagres ao transportar para as chapas metálicas ou para

a pedra litográfica as imagens que tanto informavam, emocionavam e ensinavam ao

público da maior cidade do país. Mas é preciso repisar que os custos eram grandes

e que o resultado de tais esforços chegavam apenas a uma elite de formados,

fazendeiros, pequenos industriais ou de pessoas ligadas à corte imperial, que

Beija-flores. Jornal Minerva Brasiliense, de 1843. (Fonte: Impresso no Brasil, 1808-1930, org. Rafael Cardoso, VersoBrasil, 2009)

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podiam pagar por álbuns coloridos com vistas da cidade, ou mesmo mandar que

artistas “abrissem” seus próprios retratos a buril, goiva ou estilete (em metal e

madeira), e ainda com pincéis, lápis litográfico ou esfuminho (na pedra calcária).

2.2 - Fotografia, um novo enfoque

Resta, finalmente, a alusão à fotografia, feita pela velha gráfica em estudo. A

novidade surgira na Europa há apenas seis anos, em 1839, e seu sucesso já

acontecia no Brasil. A promessa de que fazia cópias pintadas ou estampadas a

partir de daguerreótipos, “emendando” os defeitos que a recente invenção não

conseguia esconder, é o retrato vivo de um momento singular no estudo de nossa

história gráfica. É, com certeza, o ponto divisionário entre a reprodução obtida com

arte (e do envolvimento físico na confecção da imagem), e de seu domínio a partir

de meios impessoais, mais próximos de um estágio técnico a que queríamos

rapidamente chegar. O texto do anúncio, se analisado mais fundo, deixa entrever

certa defesa dos métodos tradicionais, que pareciam sofrer a ameaça da novidade

inventada na França pelo também pintor Louis Jacques Daguerre. De fato, as cópias

fotográficas da época perdiam em definição para os desenhos executados pelos

artistas, que além de copiá-las com engenhosidade e gosto, produziam

acabamentos que só depois seriam suplantados pelo próprio desenvolvimento da

técnica. Era mais frequente a utilização da fotografia como suporte para um

desenho, que passava assim à madeira, à chapa metálica ou à pedra litográfica,

obtendo-se maior gama de detalhes, principalmente na definição das linhas que

limitavam objetos e acidentes físicos. As dificuldades na obtenção de tons médios,

contrastes e maior clareza faziam da fotografia, a esse tempo, um meio importante

mas também intermediário de se obter imagens. Além disso, a reprodução da

fotografia a partir de um negativo não era tão simples uma vez que este prestava-se

inicialmente a fazer uma cópia ou pequena quantidade. Como se sabe, apenas entre

1840 e 1850 foi possível produzir negativos e cópias além dos daguerreótipos.

Estes, vale lembrar, consistiam de uma única lâmina, em cobre, revestida de fina

camada de prata onde eram fixadas as imagens.

Outra forma de se reproduzir esses registros – e que a Omnigraphica deixou

de lembrar - era colar o negativo, obtido do colódio úmido, sobre uma placa escura

para que a imagem pudesse surgir na reflexão da luz ambiente, conferindo a

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impressão visual de positivo, ou simplesmente expor uma placa metálica

sensibilizada diretamente na câmara. Eram os ambrótipos e os ferrótipos, que

chegaram às últimas décadas do século, saudosos, guardados em álbuns de família

e por dedicados colecionadores. O papel utilizado no positivo a partir de 1850 era o

albuminado (uma solução que recebia clara do ovo), de vida curta, pouca definição e

que amarelava rapidamente. Houve casos de revistas impressas na época que

colavam fotos em suas páginas, talvez simulando impressão, mas as tiragens eram

pequenas e as fotos desapareciam com o tempo.

A melhor tentativa de reproduzir fotografias antes dos sistemas fotomecânicos

(o clichê tipográfico) foi a fototipia, técnica usada nas últimas décadas do século XIX,

que conseguiu a façanha de fixar meios-tons de maneira contínua, ou seja, sem o

uso de uma retícula. Obtinha-se a fototipia a partir da gelatina bicromada, uma

espécie goma sobre a qual era exposta a imagem fotográfica. Ao secar sobre uma

placa de vidro ou metal, essa matéria solidificava diferentes texturas segundo cada

tom da imagem projetada, transformando-se num carimbo de excelente definição. O

problema dessas matrizes, no entanto, era a resistência: não duravam depois de

algumas dezenas de impressões, o que os tornavam inúteis para maiores tiragens.

Marc Ferrez é um dos nomes principais dessa fase. Tendo iniciado a vida

profissional na Casa Leuzinger, Ferrez abre seu próprio negócio em 1867,

trabalhando justamente com a fototipia e seu desenvolvimento. Foi responsável pela

documentação de vistas do Rio de Janeiro e de fatos marcantes de sua história,

como a Revolta da Armada, entre 1893 e o ano seguinte.

Adiante, curioso anúncio em que as fotos, no estilo antes e depois, foram

coladas em página de um dos números do Jornal das Famílias, em 1875.

Jornal das Famílias, 1875 - Anúncio de creme de beleza. Fotos coladas na página litografada. Fonte: http://www.almanaquedacomunicacao.com.br

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Só quando a fotografia pôde ser infinitamente multiplicada a partir fim do

século – e reproduzida facilmente pela máquina - é que os domínios do velho artista

gráfico e do artesão da imagem ficaram comprometidos. A caminho da maturidade,

a técnica foi na verdade um rolo compressor sobre as formas até então vigentes de

se obter vistas, retratos e outros registros. Muitos dos desbravadores da imagem

voltaram a seus países, desapareceram ou mudaram de método, adotando a

novidade de forma criativa para continuar na vocação e o nos negócios. Mas o

resultado do buril, da goiva ou do lápis do artista, ainda que multiplicado, tinha uma

alma (seria o tal hic et nunc de que falou Walter Benjamin?), que tocava o coração

do homem do século XIX muito antes de fisgar-lhe a razão sobre a fria e desiludida

aparência das coisas.

2.3 - Novos artistas, novos processos

O que se pode concluir sobre as técnicas de reprodução gráfica no século XIX

é que seu crescimento foi rápido, embora tenha passado por uma fase romântica,

responsável por uma indefinição de méritos, o que misturou, em matéria de imagem,

a criação artística com sua multiplicação. Se eram nebulosos os limites entre o

artista e o gráfico, é fato que estes se completavam na realização de seu trabalho.

Era natural que iniciados, amadores, ou ainda artesãos fossem os mais capazes em

criar, copiar e reproduzir imagens em um tempo em que tudo nos chegava de fora.

Artistas e impressores estrangeiros viraram referência em nossa história gráfica,

encobrindo o mérito de muitos que sequer assinaram suas obras, muitas de grande

valor. Vários brasileiros não tiveram seus nomes conhecidos, mas com certeza

rasgaram chapas e lavraram heroicamente as pedras que nos contam hoje essa

história.

Ao fim dos oitocentos começaram a surgir outro tipo de artista - os primeiros

“designers” - que descobriam um diálogo entre o metal dos caracteres tipográficos e

sua combinação com o clichê – fotográfico ou artístico -, ensejando o que hoje

chamamos de “projeto”. A maioria já era formada de compatriotas que não sujavam

mais as mãos de graxa e nem precisavam tanto ir às oficinas, preferindo suas mesas

repletas de papéis quadriculados, réguas para diagramação e nanquim para leves

desenhos ou cometimentos mais cerebrais. São dessa época Calixto Cordeiro (K.

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Lixto), Raul Pederneiras, J. Carlos, Julião Machado e tantos outros, que entraram no

século XX vendo a débâcle dos padrões europeus diante de um novo grafismo, mais

pragmático e norte-americano. Os meios de comunicação já podiam exibir

fotografias impressas de grande qualidade, além de desenhos e composições

coloridas que mudavam a percepção das coisas, dinamizavam a informação, o

aprendizado e a simples fruição do que se via sobre o papel. A velha arte das

gráficas, das pedras e das chapas de fundo ou relevo, era finalmente substituída

pela ordem imposta pelo mercado de massa; a rotogravura, o offset e outras

evoluções empurraram para o interior e para os pequenos bairros do Rio as oficinas

que antes eram referência do país e de sua memória. Às portas do século XX, havia

pouco lugar para as Omniographias do passado, onde se imprimia um Rio de

Janeiro e sua gente com a pena da arte e a tinta da saudade2.

2 - Referência literária a Machado de Assis, no prólogo da terceira edição de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, na qual diz: “Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio”

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Capítulo3

Paisagem e documento A cidade representada; seus cantos, encantos e recantos

Muitos fatores estão ligados à vinda de artistas e de gráficos ao Brasil, dando

início ao que se tornaria a próspera ocupação de produzir e reproduzir imagens. Os

motivos mais conhecidos, e esperados, ligam-se ao desejo de construir fortuna,

reconhecimento e futuro em outras terras, muito embora a simples curiosidade e a

sensação de aventura possam ter contribuído para a chegada de muitos deles em

terras brasileiras. Como visto, a maioria desses profissionais era estrangeira e

composta de empreendedores – vários eram artistas e negociantes ao mesmo

tempo – e chegaram ao longo da primeira metade do século XIX. Mas outras

motivações, da vinda e do que aqui produziram artisticamente, estão ligadas ao

momento por que passava a Europa, tanto em questões políticas como econômicas

e culturais. Viajar, segundo Lilia M. Schwarcz, em seu O sol do Brasil: Nicolas-

Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de D. João

(Companhia das Letras, 2008), era quase uma obrigação para os artistas europeus

do século XIX, que alargavam assim sua compreensão de mundo. A experiência

refletia, também, o trabalho do artista, cujo sucesso no mercado da época dependia

de alguma erudição e, seguramente, de tintas novas para agradar a diversidade de

gostos e de convicções que surgiam.

Além disso, o conjunto dos acontecimentos durante e depois da Revolução

Francesa mudaram o rumo da vida cultural em vários países, alterando também

certas percepções estéticas, o que dirigia a arte e sua produção para novos

horizontes. Com a queda da monarquia francesa – cujos reflexos se espalharam

imediatamente por todo o continente e colônias – novas interpretações também se

tornaram possíveis no campo político, sobretudo no que se refere ao sentimento de

nacionalidade. A produção da imagem, seja através da pintura ou de qualquer outro

meio, sofreria um grande impacto a partir de novas correntes de pensamento que se

estabeleciam na Europa e no resto do mundo. E, como não poderia deixar de ser, os

artistas foram os primeiros a perceber, interpretar e realizar esse novo movimento,

que aos poucos libertava-se das determinações da nobreza e de antigos regimes,

inclinando-se para demandas mais populares.

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A arte acadêmica francesa, por exemplo, era regida pelo neoclassicismo ao

tempo dos reis. Anos depois, Napoleão Bonaparte também adotou e protegeu

artistas, exigindo em troca que sua figura fosse a de um herói racional, justo e

soberano. Muitos artistas, entre eles os que chegaram ao Brasil na Missão Francesa

de 1816, tomaram parte do Ancien Régime e, depois, da corte napoleônica,

buscando inspiração na antiguidade clássica para representar o imperador como um

deus mitológico. No entanto, mesmo antes das derrotas e da morte de Napoleão, em

1821, a arte praticada na França já sofria alterações, uma delas na representação

da Paisagem, à época gênero menos considerado que o de História, mas que ia

ganhando importância de acordo com ideais românticos de individualismo,

subjetividade e nacionalidade que rapidamente começavam a grassar.

O romantismo, que teve diferentes matizes em relação aos movimentos

artísticos europeus, pregava uma reação ao racionalismo e ao neoclassicismo,

vigentes como filosofia e arte. Uma outra visão de mundo, centrada nas utopias,

marcava o surgimento de correntes que viam na natureza – e por extensão a

composição da paisagem – um elemento sublime na construção de sonhos e

quimeras. A representação da paisagem, a partir da França e suportada por outras

correntes européias, ganha contornos mais imaginativos, deixando de ser um pano

de fundo ou uma composição que apenas emoldurava o poder e a história. Às portas

do século XIX, a paisagem transformava-se em sinônimo de nação, e seus

contornos começavam a designar a terra e as características políticas e emocionais

de um povo. Como diz Schwarcz,

O modelo acadêmico saía do processo revolucionário com sua estrutura “sacudida”, e um dos primeiros resultados foi uma certa alteração na hierarquia dos gêneros. Mais particularmente a pintura de paisagem mudava sensivelmente de posição no mundo das artes acadêmicas e adquiria nova relevância. Se o gênero da paisagem continuava sendo inferior ao de história, era não obstante muito tradicional e o seria ainda mais, ao passar a identificar-se com o discurso de identidade nacional em inícios do século XIX. (SCHWARCZ, 2008, p. 119)

As novas motivações decerto influíram não apenas no trabalho da Missão

Francesa como também no que produziram outros artistas que aqui chegaram

durante as primeiras décadas dos oitocentos. As paisagens a partir de então

produzidas e reproduzidas, notadamente as do Rio de Janeiro, sede política e

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administrativa do país, deixam entrever os sinais de novo tratamento, que integrava

a cidade à sua exuberante natureza. Esta, certamente, foi (e ainda é) uma das

conjugações mais fortes e duradouras na história da representação da imagem

urbana em todos os tempos. A surpreendente geografia carioca, cortada pelas

montanhas, em sereno convívio com o mar, rios, lagoas e florestas, encantou os

recém-chegados, que certamente identificavam um éden, nacional e possível, sob

uma luz tropical que também não conheciam. Alguns dos panoramas do Rio de

Janeiro, feitos a buril, água-forte, lápis litográfico e por outras técnicas, podem ser

considerados uma síntese da influência romântica nas artes do século em estudo,

principalmente em sua primeira metade e um pouco depois.

Do ponto de vista econômico, a Independência (1822) incensava outras

mudanças, como a substituição das exportações da cana-de-açúcar pelo café, muito

embora o país dependesse de tecnologia externa, mais elaborada, para o seu

crescimento. Mas é fato, entretanto, que aos poucos se formava um estamento

pensante e mais participativo politicamente. Seus participantes, que certamente já

pressentiam um futuro para o país, formavam um público crescente que consumia

essas e outras representações, alimentando um mercado que atraía artistas,

negociantes e produtores de arte, entre eles os gráficos. O segundo reinado, por sua

vez, assistiu ao crescimento do número de oficinas com esta especialização, ao

mesmo tempo em que via o avanço das técnicas de reprodução de texto e imagem,

e o surgimento de um promissor mercado editorial.

3.1 – O olhar estrangeiro

As vistas e panoramas do Rio de Janeiro amalgamavam-se ao espírito

romântico dos artistas que aqui chegavam em busca de oportunidades. As

primeiras, de cunho oficial, foram certamente encomendas da administração pública,

mas já mostravam paisagens arrebatadoras da cidade. Aos poucos, um mercado

para essas vistas foi crescendo a ponto de tornar-se excelente negócio, uma vez

que a raridade e o acabamento das obras – que por questões técnicas não podiam

ter muitas cópias – proporcionava bons lucros a seus realizadores. A reprodução

dessas vistas era feita na Europa - principalmente na França, mas também na

Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos - a partir de desenhos colhidos aqui e que

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muitas vezes tinha a supervisão de outros gráficos e editores. Poucos impressores

fora do país - desenhistas, litógrafos e abridores em pedra e metal - conheciam de

vista as imagens que imprimiam. Isso era feito a partir de croquis, de informações

por escrito e até com ajuda da memória de viajantes, o que muitas vezes tornava as

gravuras imprecisas e improváveis. É o caso, por exemplo, da gravura do pintor

Henry Sargant (1795–1837) impressa na Inglaterra em 1820, mostrando os arcos da

Lapa, a Rua Matacavalos (hoje Riachuelo) e o Convento de Santa Teresa. Alguns

dos elementos são bastante desproporcionais, dando a nítida impressão que seus

finalizadores não conheciam realmente o lugar, ou mesmo que o autor do registro

original não lembrava mais dele.

Henry Sargant, 1820 “Rio-de-Janeiro: part of the Aquaduct, with the street calded mata cavalos seen through of the Arches the building upon the Hill is the Nunnery of Santa Thereza. 23x18 cm litografia aquarelada (Inglaterra). Fonte: http://bndigital.bn.br

Mas, via de regra, havia correspondência entre os traços colhidos e a

realidade que se observava. As vistas da cidade mantinham, além de suas funções

mais objetivas, a ideia de pátria, de terra natal, transferindo autoestima e sentimento

de nacionalismo a um grupo crescente de observadores. O viés objetivo, dito acima,

liga-se à representação de paisagens em seu aspecto cartográfico, mapas, sistemas

de transporte, esquemas estratégicos, militares e outras funções, quase sempre

encomendas do governo. Foi assim, por exemplo, com o desenho de vistas e de

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fortificações, feitos a partir do Arquivo Militar, logo na chegada da corte portuguesa,

em 1808. O pintor Arnaud Julien Pallière (ver capítulo 4), considerado o primeiro

litógrafo do Brasil, e que ali trabalhou a partir de 1817, executou diversas obras

dessa natureza, como um plano urbanístico para a Vila Real da Praia Grande

(Niterói), além de vistas de cidades mineiras e paulistas. Mas era certamente difícil a

tarefa de separar o artista do técnico, uma vez que muitas das vistas, apesar do

endereço realista e racional, continham intransferível beleza e sedução. Mesmo

trabalhos da Missão Artística – particularmente os de Jean Baptiste Debret – tinham

por vezes intenção racional ou puramente figurativa, mas ficariam conhecidos em

sua dimensão estética depois que o pintor voltou a Paris, em 1831, transformando

suas aquarelas no álbum litográfico Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil,

produzido pela oficina Thierry Frères.

Debret, 1839: Vista do Rio de Janeiro a partir da Igreja da Glória, in Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. 52 cm de largura. Litografia por Thierry Frères, Paris. Fonte: http://bndigital.bn.br

Foram muitos, aliás, os que levaram daqui seus rabiscos para transformá-los

lá fora em impressos de arte com o fito de vendê-los em seu país, à corte brasileira e

às pessoas de maior posse e prestígio. Havia na época total discrepância entre o

que podíamos reproduzir em nossos prelos e o que já se fazia lá fora, como vimos.

Um bom exemplo é outra das vistas em que os arcos da Lapa são a estrela

principal. Trata-se da gravura aquarelada L’Aqueduc: depuis la rue de Matta-

Cavallos, litografada em Berlim, em 1832, por W. Loeillot, a partir de um desenho do

pintor e diplomata Wilhelm Karl Theremin, que viveu alguns anos no Rio de Janeiro

no início do século.

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Wilhelm Karl Theremin, 1832 : “L'Aqueduc: depuis la rue de Matta Cavallos". Álbum ‘Saudades do Rio de Janeiro, litografado por W. Loeillot (Berlim). 48x30,5 cm. Fonte: http://bndigital.bn.br

De proporções e perspectiva exatas, a gravura é belíssima, mostrando tipos

característicos, como negros vendedores em trajes coloridos, e uma dona de casa à

janela. Por acaso, trata-se de outro ângulo do aqueduto, a de Sargant, e se

cotejadas, as imagens fornecem um interessante documento sobre este logradouro,

os tipos humanos e seus costumes. O aqueduto da Carioca, que foi concluído em

1723, aliás, é tema recorrente na representação do Rio, e sua importância era ainda

maior por se tratar da obra pública de absoluta presença na cidade. Raro não

encontrá-lo em aquarelas, águas-fortes, litografias e nos daguerreótipos que surgiam

a partir da quarta década do século. É claro que muitos artistas buscavam ali um

harmônico contraste entre o velho casario, a gente e a arrojada arquitetura da velha

obra, que conduzia - além das águas para o Chafariz da Carioca - um referencial

estético dos mais preciosos em matéria de representação urbana já conhecidos no

Brasil.

Johan Jacob Steinmann (ver cap. 4), que também serviu ao governo de D.

Pedro I, é outro visitante que documentou o Rio de Janeiro, muito embora se atribua

o brilho de suas paisagens ao talento de terceiros, como impressores, litógrafos e

outros artistas europeus, principalmente Friedrich Salathé, da Basiléia, que gravou

para ele o álbum Souvenirs de Rio de Janeiro, em 1835. Salathé, como tantos outros

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gravadores, não conhecia a cidade, mas parece ter sido fiel aos traços e descrições

do amigo. São de Salathé outras fantásticas gravuras, como o Panorama do Rio de

Janeiro (...), uma das mais minuciosas águas-tintas sobre a cidade, realizada,

provavelmente, pouco antes da metade do século.

Nesta, a partir do Morro do Castelo – e “a vôo de pássaro”, pode-se

descortinar, em 360 graus, desde o mar até o início do que seriam mais tarde os

subúrbios cariocas. Com medidas de 20 centímetros por um metro de largura, o

pequeno painel, como diz o título, reproduzia uma vista bem maior, pintada em

Paris. Esta era a moda nas grandes cidades: visitar panoramas, alguns com mais de

dois metros de altura, que prometiam transportar o espectador para o lugar

retratado, um tipo de viagem virtual que mais tarde seria reproduzida no Rio com

grande sucesso, unindo nomes como o suíço Georges Leuzinger e o pintor brasileiro

Pedro Américo, por exemplo. O Panorama inserido adiante é cópia de uma água-

tinta aquarelada, baseada no desenho de Felix Taunay, que veio na Missão

Francesa e foi diretor da Escola Imperial de Belas Artes em 1834.

Rio de Janeiro segundo panorama pintado em Paris por G.F. Ronmy pelos desenhos de Félix Emilio Taunay, 1860?. 20,5x100 cm, finalizado por Friedrich Salathé (1793-1860). Fonte: http://bndigital.bn.br

Inúmeros artistas documentaram a cidade antes do advento da fotografia, que

começou a ser praticada bem cedo por aqui, nos inícios de 1840. Alguns deles

apenas tomaram notas e fizeram croquis; seu objetivo era mais documental que

artístico, muito embora essas intenções estivessem naturalmente imbricadas: é que

a mão que tomava os traços decerto não poderia divorciar-se da emoção que

entrava pelos olhos, na beleza dos contornos e das cores que se multiplicavam

diante deles. Estas, as cores, aliás, seriam outro dilema no registro de nossas

primeiras vistas uma vez que a impressão multicolorida da paisagem não poderia ter

registro fiel, a menos que o pintor perdesse muito tempo na documentação. A luz

tropical e seus reflexos, tão diferentes do que se via na Europa, deve ter

surpreendido esses artistas. Outros deles, além de Grandejean de Montigny,

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Hippolyte Taunay e Debret - integrantes da Missão - podem ser aqui somados como

autores de belos registros da cidade: Jean-Joseph Maillet, Louis da La Rouchete,

Baron de Coubertin, Charles Couchelet, Conde de Clarac, Alphonse Pellion,

Jacques Arago, Rivière e outros, para falar apenas dos franceses.

Ingleses, prussianos, belgas, austríacos – e brasileiros – entre outros,

também se emocionaram diante de alguns ângulos de nossa paisagem, às quais

acrescentaram seus tipos humanos em memoráveis desenhos e pinturas que

ficariam entre o documento antropológico, o registro naturalista e a arte. Rugendas,

como sabemos, era um deles, tendo participado da missão científica do Barão de

Langsdorff (a partir de 1821) e voltado ao Brasil dez anos depois, quando produziu

vistas de várias cidades, inclusive do Rio.

A atual Lapa e a enseada do Flamengo estão presentes nas telas do

brasileiro Leandro Joaquim (1738-1798), assim como a região da atual Praça Mauá,

que se revelaria tema de numerosas vistas. Este lugar, especialmente, contava com

um estratégico ponto de observação, a frontal Ilha das Cobras, de onde era possível

descortinar o centro da cidade, a Gamboa e o Saco do Alferes (onde fica,

aproximadamente, a atual Rodoviária Novo Rio). Durante todo o século, dezenas de

artistas e fotógrafos fincaram seus tripés na Ilha das Cobras para produzirem vistas

do local. Uma das mais antigas foi a do inglês Limbird Smith Fielding, que dali, em

1833, tomou traços para uma belíssima água-tinta aquarelada (algo naiff, como era

seu estilo), na qual um alegre grupo de escravos aparece dançando, em trajes

africanos, no canto direito da imagem. Fielding (1799-1856), que também era

litógrafo, produzia miniaturas e ilustrações para obras infantis. Há, nesta paisagem,

algo de primitivo, ou onírico, observando-se o recorrente tom idílico do começo do

século. Esta obra foi dedicada pelo autor à rainha Maria II de Portugal, que nasceu

no Rio de Janeiro em 1819.

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Newton Limbird Smith Fielding: “Rio de Janeiro from Ilha das Cobras”, 1833, água-tinta, aquarelada, 43,5 x 81,2cm, Inglaterra. Fonte: http://bndigital.bn.br

3.2 – A cidade e seus pontos de observação

Além da Ilha das Cobras, outros lugares se mostraram perfeitos para o

registro da cidade que se descortinava absoluta para pintores, geógrafos e toda

sorte de observadores, uma vez que poucas edificações tinham mais de dois

pavimentos. A área urbana do Rio de Janeiro, assim como grande parte de seus

arredores, contava com estratégicos pontos de observação que, se muito ajudaram

contra os invasores franceses nos séculos anteriores, mais o faziam agora em favor

de artistas, a maioria dos quais da mesma procedência. As vistas tomadas “a vôo de

pássaro” nunca foram tão fiéis, uma vez que a cidade era cercada de elevações,

algumas das quais proporcionando uma visão de até 360 graus. Essas condições,

com certeza, foram responsáveis pela numerosa iconografia urbana do Rio de

Janeiro vista do alto. A partir dos morros do Castelo e de Santo Antonio, demolidos

no século XX, dezenas de vistas foram fixadas e depois impressas nas oficinas mais

sofisticadas que começavam a surgir a pouca distância dali, em torno do Paço

Imperial. Outros ângulos de excepcional visibilidade foram os morros da Conceição

e de São Bento, ainda existentes, só para citar os principais. De cima de um e de

outro, e no mesmo ano de 1817, Thomas Ender e Debret fariam belos registros: o

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primeiro, de uma vasta paisagem na direção de São Cristóvão; o segundo, a

chegada da princesa Leopoldina da Áustria, primeira imperatriz consorte do Brasil.

Guilherme Briggs (1813-1870) também tomou belas vistas da cidade a partir de suas

elevações. Uma dos mais famosas é de 1837, impressa na Inglaterra e feita

provavelmente em parceria com Eduard Rivière, professor de pintura ligado à

Expedição Francesa (ver capítulo 4).

F. G. Briggs, 1837: Panorama da cidade do Rio de Janeiro, capital do Brazil. Fonte: http://bndigital.bn.br

A análise de algumas dessas paisagens ou cenas urbanas, a maioria feitas

diretamente da observação ou a partir de indicações colhidas diante da realidade,

confirmam a inspiração romântica das primeiras décadas dos oitocentos. O ar idílico

e a paz que parecem reinar nesses registros, além de uma presença humana bem-

comportada, fazem crer na suposição de um lugar edênico, onde a harmonia entre

natureza, cidade e seus habitantes representasse a síntese do lirismo e da

idealização. Esse mesmo romantismo, pressentido na relação entre o selvagem e o

civilizado, pode ser visto em paisagens sobre o Rio produzidas principalmente pelos

estrangeiros que por aqui passaram. Note-se em várias delas o enquadramento da

cena a partir da floresta, tendo a cidade como fundo, surgindo através de uma

complexa moldura vegetal em que escravos e lavadeiras realizavam algum trabalho

ou se divertiam. Esta motivação pode ser achada em Alfred Martinet, em suas vistas

do Rio de Janeiro, como o da tomada da Ilha das Cobras (1847), mostrando a

floresta tropical e o centro da cidade em distante segundo plano. O mesmo artista,

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entretanto, adotaria em outros trabalhos ponto de vista diverso, ou seja, de sua

complexidade urbana em direção à floresta, indicando interessante passagem de

conceitos entre o antigo e o moderno, uma vez que o Rio deixava aos poucos de ser

um sonho de viajantes para se tornar um centro urbano. A vista do grande hospital

da Beneficência Portuguesa, tomada à mesma época, é exemplo desse choque de

valores, assim como a imagem do Passeio Público, em que apenas figuras nobres

(à européia) surgem em pleno desfrute do lazer. São diferentes registros em que a

exatidão das perspectivas e de alguns detalhes, como janelas e monumentos,

sugerem o uso de daguerreótipos como referência; as figuras humanas foram,

provavelmente, colocadas durante a finalização das matrizes.

Alfred Martinet, 1847: “Vista de Rio de Janeiro : tomada da Ilha das Cobras” (33,5 x 50,1 cm); “O Passeio Público” (42,5 x 54,4cm); “Hospital da Sociedade Portuguesa de Beneficência do Rio de Janeiro” (48,5 x 61,5cm) – Fonte: http://bndigital.bn.br

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3.3 - Mudam-se os tempos

Esta visão de mundo, com efeito, iria mudar aos poucos com a chegada de

um pensamento mais objetivo e naturalista, fundado no método e no

desenvolvimento tecnológico. O país começava a crescer, mas a conquista desse

desenvolvimento batia-se com práticas arraigadas, como o modelo escravagista,

que sofria críticas tanto internas como do resto do mundo. Em 1850, ficou proibido o

comércio de escravos, e o governo imperial começava a sentir a pressão

republicana sobre a política e a economia. No campo da produção da imagem, a

fotografia - e sua feição pragmática - começava a despir nossa natural condição de

suas folhas de parreira, revelando a existência de novos ângulos e pontos de vista

estéticos. Se a cidade até então fora representada com a serenidade de um paraíso,

tratava-se agora de projetá-la como oportunidade real de crescimento. Artistas e

gráficos mais recentes traziam novos equipamentos e métodos. Fazer aqui o que só

era possível na Europa tornava-se cada vez mais real e possível. Foi uma fase de

crescimento da área gráfica, registrando-se, a partir da metade do século um

expressivo aumento no número de litógrafos e de fotógrafos. A ocupação gráfica

crescia de fato.

Já estavam em operação por esta época as oficinas de Paula Brito e a dos

irmãos Laemmert, além de outras, menores, que também trabalhavam com a

litografia, finalizando e recebendo pedras de fora para impressão ou encartando

estampas já prontas em suas publicações. Havia, também, a atividade de

calcografia, bastante artesanal, que consistia em preparar chapas de impressão a

partir de relevo obtido pela pressão de tipos e vinhetas em seu verso. Um dos

maiores usos da calcografia era a produção de pautas musicais, de bom consumo

entre os lares mais abastados da época e possuidores de piano.

O grande nome, entretanto, que possibilitou a reprodução de imagens no Rio

de Janeiro, nos moldes do que se fazia na Europa, foi Heaton & Rensburg, como se

verá, dois artistas que deram maioridade ao trabalho gráfico realizado no Brasil.

Além destes, Ludwig & Briggs, Paul Robin, H. Lombaerts, Leuzinger e Heinrich

Fleiüss, entre outros, fariam fama no registro e na reprodução artística a partir da

pedra calcárea. A marca Heaton & Rensburg, especialmente, ficaria gravada em

centenas de estampas e álbuns que mostrariam um Rio de Janeiro tão romântico

como moderno em relação às velhas gravuras do primeiro reinado. Artistas litógrafos

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como Louis Buvelot (1814-1888), que também era fotógrafo, Auguste Moreau (1818-

1877), Alfred Martinet (1821-após 1871), Iluchar Desmons (1803-?) e Godfred

Bertichen (1796-após 1864) imprimiram seus trabalhos nesta oficina, que tratava as

imagens com o mesmo esmero que a francesa Lemercier ou a inglesa Day and

Haghe, ambas responsáveis por grandes reproduções do Brasil ao tempo do

Império. Sebastién Sisson (ver cap.4) foi importante também nesse aspecto, tendo

produzido muitas das vistas estudadas neste trabalho. Em algumas, pode-se notar

uma preocupação de mostrar a face moderna da cidade, como certos prédios

públicos e jardins; em outras, como a Boa Viagem (Niterói), a intenção parece

diversa, sobressaindo o lado selvagem e idílico das tomadas. Mas em todas elas o

que parece fundamental é a atração exercida pela cidade sobre os artistas que aqui

apareciam. O professor francês de desenho Iluchar Desmonds, que esteve no Brasil

entre 1840 e 1855, foi um deles. Num de seus mais belos trabalhos o tema foi o

Campo dos Ciganos (atual Praça Tiradentes), onde se vê, ao centro, o Teatro de

São Pedro (futuro João Caetano), e a Travessa do Sacramento, hoje Avenida

Passos, onde ficava a Escola Imperial de Belas Artes. Impressa por Lemercier, a

gravura pode ter usado uma câmara escura como suporte. Note-se a combinação

romântica da paisagem com o crescimento da cidade. Faz parte do álbum

“Panoramas de la Ville de Rio de Janeiro”, editado pelo francês Lemercier, e que

circulou no Brasil a partir dessa data. A reprodução, a seguir, é propositalmente

maior por conter mais detalhes da cidade.

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Iluchar Desmonds,1854: “Panorama da cidade de Rio de Janeiro tomada do morro de St. Antonio a vôo de pássaro”, Litografia, 31 x 48,3cm. Fonte: http://bndigital.bn.br

À medida que o tempo avançava e o registro das vistas do Rio se tornava aos

poucos mais realista, a fotografia tomaria parte importante na história de nossas

imagens artísticas, desempenhando a questionável função de fiel da balança entre a

utopia e a realidade. Sua chegada, como sabemos, deu-se a partir de 1840, sendo o

Imperador - ainda adolescente - um de seus maiores incentivadores. A novidade não

seria moda imediata em função de sua difícil reprodutibilidade, mas, a partir de

então, não só os retratos, mas logradouros e outras vistas da cidade passariam a

contar com a vigilância de um olho mecânico, sempre a revelar como são as

pessoas e as coisas em sua irrecorrível - e quase sempre fria - aparência.

É importante frisar que a paisagem, obedecendo a um enquadramento ditado

pela arte clássica, foi o critério para se julgar fotografias sobre a cidade e seu

entorno. Pintores, desenhistas e intelectuais as apreciavam segundo a concepção

em voga nos museus e nas paredes mais abastadas da corte. A foto, assim,

concorria diretamente com a pintura em salões do segundo reinado antes de revelar

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outras afinidades estéticas. Isto aconteceria bem depois, quando sua reprodução

ganhou as páginas dos jornais, revistas e publicações de caráter científico e

educativo. Houve um largo momento em que algumas convicções sobre a natureza

da imagem – artística ou técnica – conviveram em harmonia, uma vez que tais

limites ainda se mostrassem imprecisos para a crítica. Mas o fato é que a nova

técnica prometia revoluções, o que aconteceu. Um dos nomes que bem

representaram essa fase foi de George Leuzinger, cujo perfil veremos no próximo

capítulo.

De 1860 em diante, foi grande a atividade dos fotógrafos, que documentavam

sistematicamente a cidade na produção de vistas. Essas imagens serviram de

modelo na confecção das matrizes litográficas feitas aqui e no exterior, e alteraram

muito o modo de enxergar a cidade como também o país. Outro nome que bem

traduz esse momento é o de Victor Frond, fotógrafo, cujas imagens serviram de

lastro para a confecção do álbum O Brasil Pittoresco, impresso em Paris, em 1861,

sob as expensas de um governo imperial que desejava mostrar ao próprio Brasil - e

à Europa - um país promissor em matéria de investimentos.

Aspectos da influência da fotografia na paisagem da época foram destacados

pela professora Celeste Zenha (O Negócio das “vistas do Rio de Janeiro”: imagens

da cidade imperial e da escravidão - Revista Estudos Históricos,CPDOC, Vol.2, nº

34/2004), como a exatidão das referências e a autenticidade que o novo engenho

propiciava às tomadas e vistas. Segundo ela, o Brasil precisava reduzir o impacto

que certos métodos de produção - entre eles a mão de obra escrava -

representavam para a opinião pública internacional. Paisagens em que africanos

desempenhavam um trabalho pesado, ocupando muitas vezes o primeiro plano, iam

cedendo espaço a composições mais arranjadas e atinentes a um novo

enquadramento. Esta, porém, não foi uma característica absoluta de mudança, pois

muitas paisagens brasileiras, mesmo das que tinham por referência a fotografia,

insistiram em um romantismo que sequer desapareceria por completo.

A inscrição “d’après um daguerreotype” (a partir de um daguerreótipo),

encontrada ao pé de diversas reproduções, passou a conferir à vista um novo tipo

de veracidade, a da máquina sobre o olhar supostamente negligente do artista. Por

seu turno, a providência tornaria legítima inscrição semelhante: “d’près nature”

usada para sinalizar que não houve recurso idêntico como modelo inicial, e que a

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imagem foi inspirada apenas na natureza. Com certeza, nascia aí uma das vertentes

da eterna discussão sobre o valor da arte e de sua reprodução3.

A omissão do nome do daguerreotipista retirava dele qualquer responsabilidade pela "captura" da vista que se acreditava objetivamente. Dessa forma, conferia-se ao aparelho uma autonomia de ação e uma competência independente de qualquer talento de que dispusesse aquele que o manejava, tornando o seu papel quase prescindível. Essa prática só foi alterada posteriormente, quando a autoria da fotografia veio a ser resguardada. (ZENHA, 2004, pag 13).

Os novos aparelhos, que dispensavam a participação do artista, iriam

influenciar outros procedimentos no registro e na fixação das imagens a partir da

metade do século. Para começar, o tempo de exposição necessário para que o novo

invento capturasse a cena era demorado, vários minutos, e dependia da quantidade

de luz. Assim, ficavam de fora os registros em que pessoas se movimentassem, por

exemplo, sendo necessária a completa imobilidade em todo o quadro focalizado. À

época, as vistas podiam ser colhidas também com auxílio da câmara escura, um

equipamento que projetava a paisagem em uma superfície, sobre a qual o artista

registrava os traços para depois completar. Aspectos como perspectiva,

profundidade e distâncias eram resolvidos com a câmara, um recurso antigo e que

foi utilizado por pintores que acompanharam as expedições científicas pelo Brasil

desde o século anterior. É mais que provável que muitos panoramas antigos, do

tempo de Pallière, Steinmann ou Guilherme Briggs, fossem registrados com ajuda

desse engenho, uma vez que seria demorada e trabalhosa a captura de grandes

paisagens, urbanas ou naturais, com o detalhamento que se observa em muitas

delas. Depois do meio do século, vistas e painéis de grandes dimensões já eram

3 - É proveitoso registrar que durante o século XIX, e mesmo antes, era completamente difusa a noção de direito autoral no Brasil e no mundo. Na Europa, antes da Convenção de Berna, surgiu um documento sobre a propriedade literária, em 1886, dando início a novas discussões de caráter geral. No Brasil, o assunto esteve quase esquecido durante e depois de sua primeira Constituição (1824) até a Proclamação da República. Na Carta de 1891, autores de obras literárias e artísticas tiveram o direito de publicação considerado, mas só sete anos depois era promulgada a Lei Medeiros e Albuquerque, que garantia direitos totais às obras que dessem entrada na Biblioteca Nacional. Curiosamente, o primeiro registro feito pela entidade foi o livro “Litographia e chromolithographia”, do gráfico belga aqui radicado Léon de Rennes. O histórico documento data de outubro de 1898 (Ver Maria Elizabeth da Silva Nunes, in Direitos Autorais – A experiência brasileira na Fundação Biblioteca Nacional - http://www.stf.jus.br)

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preparados a partir de fotos, como também sua projeção sobre paredes e telas

através de outro aparelho, a lanterna mágica.

A fotografia, assim, transformava-se na imediata solução dos grandes

registros. Os artistas passaram a usá-la como base para suas composições – ou

mesmo capturando as vistas pessoalmente -, às quais acrescentavam pessoas e

outros elementos que, necessariamente, não estivessem no local da tomada.

A câmara escura e a lanterna mágica. Fonte: História do Design Gráfico, Ed. Cosac Naify, 2009

Vale relembrar que a fotografia, pura e simples, era de difícil reprodução e

não tinha grande contraste ou controle dos meios-tons, perdendo em presença,

beleza e tratamento para as reproduções litográficas, estas sim trabalhadas com

maior efeito plástico. No entanto, não havia como dispensar um recurso, que, se

ainda não resolvia o problema completamente, passava a ser meio indispensável

para grande parte dos trabalhos gráficos relativos à imagem. Muitos artistas do

desenho, da pintura e das artes gráficas militaram na fotografia para obterem mais

resultados em suas encomendas. Paul Theodore Robin (?-1897) foi um dos mais

ativos, tendo inclusive feito parcerias famosas quando chegou ao Rio. Uma delas foi

com o já citado mestre da litografia de paisagens Alfred Martinet, a quem se atribui

as mais perfeitas vistas da cidade. Outro artista que trabalhou com a fotografia na

composição de suas obras foi Sebastién Auguste Sisson. Litógrafo e retratista,

Sisson realizou o interessante Álbum do Rio de Janeiro moderno, com 12 imagens

dos principais logradouros da cidade e de seus arredores. Numa das pranchas, a

bela paisagem da Glória e a harmonia entre natureza e cidade. Grande retratista, o

alsaciano utilizou a fotografia como base para sua produção. A impressão consta ter

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sido no ateliê do artista, à Rua do Cano (Sete de Setembro). A imagem faz parte do

citado álbum, editado por volta de 1860.

Sebastién A. Sisson, 1860: “Glória” - Litografia 31,2 x 44,5 cm. Fonte: http://bndigital.bn.br

Os anos entre 1870 e 1880 foram os mais ricos na produção gráfica da

época, coexistindo no período, além dos já citados, vários outros artistas de enorme

capacidade técnica. Foram ao todo 248 impressores litográficos contra praticamente

a metade na década anterior.

Floresceram Martinet, A. de Pinho, Fleiüss, Sisson, Agostini, Borgomainerio, só para rememorar os mais conhecidos lápis da época. Rensburg, Ludwig, Briggs & Cia, Pereira Braga, Robin, Leuzinger, foram os grandes prelos. (FERREIRA, 1994, pag. 409)

A paisagem urbana ia se modificando à medida que o Rio crescia em

população, recursos e vontade de ser um grande centro. E o tratamento dado às

vistas também sofreria mudanças, cujos contornos já eram sentidos na intenção de

mostrar uma cidade mais integrada com o mundo desenvolvido da época.

Novamente, foram os artistas que perceberam a nova direção estética em voga,

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mantendo o tom idílico de nossas paisagens urbanas, mas despindo-as de alguns

traços nitidamente coloniais que sempre exibira. Começava-se a respirar no país um

ar de mudanças, surgindo uma outra noção de “pertencimento”, segundo a

historiadora Luciana Murari (Natureza e Cultura no Brasil, Ed. Alameda, 2009, pag.

59). O “primitivo” ficou ainda mais caracterizado pela natureza intacta, enquanto o

conceito de “civilização”, rumava unicamente para idéia de crescimento urbano e

tecnológico. Um dos arautos desse novo tempo, o político e abolicionista Joaquim

Nabuco, defendia , na década de 1870, um surto de idéias para recuperar o tempo

perdido. O modelo europeu era o objetivo a seguir, o Barão de Mauá já era a

locomotiva de nossa doméstica revolução industrial, o país tinha bancos e

exportava, além do café, algodão, borracha, cacau...

A nossa paisagem, então, representada a partir da fotografia, sofrera

perceptíveis alterações. O engenho recém inventado, segundo Zenha, parecia ditar

uma nova maneira de ver as coisas: através de uma tecnologia que, antes da

própria representação imagética, conferia a esta uma atmosfera moderna, tão ao

gosto das novas correntes. Os primeiros planos puderam, assim, ser criados mais

livremente, uma vez que a retaguarda – o cartão postal obtido com a fotografia –

suportava renovadas adaptações temáticas. São desse tempo, como vimos, nomes

como Abram Louis Buvelot, suíço, (1814-1888) e do francês Auguste Moreaux

(1818-1877), paisagistas que viajaram por todo o Brasil, tendo produzido,

igualmente, diversas telas e litografias sobre o Rio de Janeiro. Ambos viveram o

curioso e tríplice momento na história das artes e da reprodução gráfica no Brasil:

eram pintores de formação romântica, dedicaram-se à litografia como meio de

multiplicar seu trabalho, e ainda usaram a técnica fotográfica como suporte para

isso. Buvelot chegou a ser fotógrafo do Imperador Pedro II, irônica semelhança com

os antigos pintores de História, que serviram à monarquia francesa, a Napoleão

Bonaparte, e, aqui, até a D. João VI, como Pallière. O companheiro de Buvelot,

Moreaux, acabou morando em Niterói, onde faleceu. Juntos, publicaram o álbum Rio

de Janeiro Pitoresco, em 1850, obra ímpar, impressa por Heaton & Rensburg.

Nesta coleção, salta a apurada técnica do impressor, além da simplicidade

dos traços dos artistas e mestres no lápis litográfico. Notar a composição das

imagens, que harmonizam a figura humana com prédios e com a natureza. São

registros de grande delicadeza, apesar das marcas do tempo. No centro da próxima

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figura, o Paço Imperial. Cada prancha, aliás, tem uma temática central, que muda de

posição, de modo circular, na prancha seguinte.

Louis Buvelot e Auguste Moreau, 1845: Álbum “Rio de Janeiro Pitoresco”, Litografia,(20X30?). Fonte: http://bndigital.bn.br

Algumas das vistas colhidas por Victor Frond para o Brazil Pittoresco, de

1861, já mostravam uma cidade menos castigada pelo tempo e com uma

representação humana mais rebuscada. Os escravos, que surgem em grande parte

nas pranchas de Bouvelot, continuavam a aparecer nas imagens de Frond, embora

a maioria estivesse agora em descanso e em tamanho menor. Paisagens de outros

artistas sugerem um primeiro plano feito separadamente, como outra magistral vista,

tirada do Morro do Castelo em 1852, que informa múltipla participação de gráficos

da época. Está escrito a lápis, no passepartout da imagem : “premier plan par

Martinet, le uste par Daguerreotype”, e, além da informação sobre quem imprimiu,

“Lemercier”, há também outra inscrição: Edité por G. Leuzinger”.

Martinet seria responsável por outras grandes tomadas, muitas delas feitas a

partir dos daguerreótipos de Frond ou Leuzinger, e depois finalizadas na Europa por

pintores e litógrafos como Eugene Ciceri (1813-1890) e Phililppe Benoist (1813-

1905). O registro fotográfico servia assim a diversos estilos e palhetas, nacionais e

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estrangeiras, mas o destino final da obra artística resultante era a reprodução em

litografia, meio mais adequado de chegar à contemplação do público. Com o

aperfeiçoamento dos meios fotomecânicos e a rapidez das máquinas de impressão

– o que aconteceu nas últimas décadas do século XIX -, as paisagens litografadas

com tanto esmero e carinho deixaram de ser objeto de contemplação para se

tornarem, primeiramente, lembranças, e, aos poucos, raridades.

. Ernest Jaime, 1861: litografia “Panorama do Rio de Janeiro: entrée de la baie”, a partir de foto de Victor Frond para o Álbum Brazil Pittoresco (as imagens mediam entre 23 x 32cm e 43 x 55cm). . Georges Leuzinger, 1865: fotografia “Vista panorâmica do centro do Rio de Janeiro, da Ponta do Calabouço à Alfândega, a partir da Ilha das Cobras”. Fonte: http://bndigital.bn.br

Litografia e fotografia conviveram muito bem durante as décadas finais do

século e iniciais do seguinte, embora a reprodução em série só fosse confiável e

econômica com a primeira técnica. Mas já se pareciam, conforme comprovam

algumas imagens do álbum “Brazil Pitoresco”, de Victor Frond e de Georges

Leuzinger, ambos fotógrafos e contemporâneos nos anos 1860. Em muitas das

litografias, como a vista acima, é fácil adivinhar a origem e o estilo fotográfico que

aos poucos surgia.

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Capítulo 4 Imagem, artes gráficas e história Artistas, gráficos e editores no Rio de Janeiro

A atividade da reprodução da imagem em qualquer tempo e lugar sempre atraiu

a atenção de artistas e de investidores, considerando o resultado e o valor da

multiplicação em série de uma idéia, de um desenho ou de uma composição

artística. No Brasil do início do século XIX, ninguém melhor que o artista para

produzir (e reproduzir) um imaginário que resgatasse a importância pelo entourage

real que se arranjava no Paço, em 1808, entre pescadores, comerciantes e

escravos, todos certamente em constrangedor confinamento. A monarquia lusa

legara à colônia o abandono administrativo e político, servindo a nova terra apenas

como fornecedora de riquezas primárias As carências da corte e do país que se

formava eram agora tão fundamentais como sua própria sobrevivência na condição

de Estado.

No campo da imagem – materializada ou como representação – o desafio não

era menor, uma vez que a realeza transferida às pressas não encontrava aqui

qualquer suporte que mostrasse aos reinós a importância do feito, ou mesmo a Real

condição de quem aqui chegava. Diante da ausência de recursos técnicos já em

plena utilização na Europa, a corte se viu despojada de uma visibilidade à altura de

uma sede de reino. São conhecidas as soluções efêmeras, como arcos do triunfo,

movimentação de massas humanas e eventos festivos para emoldurar o poder;

eram providências necessárias para dotar a autoridade que aqui se estabelecia na

figura da família real, de uma boa imagem para milhares de vassalos - distantes no

tempo e no espaço - das luzes do que se entendia por civilização.

Não foi à toa e de graça que artistas do Institute de France, privados das

benesses oficiais em seu país, chegaram a um reino sem palácios e inchado pela

desleal escravidão africana. A figura de artistas, principalmente de pintores, não era

vista apenas como a de semideuses incensados pela sensibilidade, gosto e

capacidade técnica, mas também como produtores e, desejavelmente, reprodutores

de imagens.

Já existiam tipografias no Brasil, elas tinham chegado ainda no século passado,

embora fossem poucas e quase nada imprimissem em termos de imagem além de

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baralhos calendários e santinhos distribuídos pelas igrejas. Livros já eram

produzidos, alguns confiscados juntamente com as máquinas, pois antes de 1808 a

atividade editorial e gráfica era vista com desconfiança. O cuidado oficial devia-se às

idéias libertárias surgidas a partir da Revolução Francesa e a movimentos

republicanos em curso na Europa, entre outras supostas ameaças. O confisco de

obras servia também como uma defesa aos interesses dos editores portugueses que

assim garantiam um mercado na colônia. Como se vê, o atraso imposto ao Brasil por

Portugal teve um preço alto, atingindo também a administração pública e obrigando

o governo a importar mão de obra e máquinas para suprir um lapso de gigantes

proporções.

Adiante, nomes pontuais nas artes gráficas do Brasil irão dividir o tempo

decorrido entre D. João VI e o final do século XIX. Nem todos foram artistas no

sentido estrito; muitos apenas imprimiam ou editavam, embora todos tivessem real

conhecimento do que era arte e sua necessidade para a reprodução de textos e

imagens. Com efeito, a mão do artista perpassava por todas as fases de um

cometimento gráfico, sendo na criação ou no seu preparo como original de

reprodução. Ateliês e oficinas somavam-se e fundiam-se em novos

empreendimentos que tinham como orientadores os olhos de artistas que aqui

chegavam para ganhar prestígio, experiência e dinheiro. Poucas vezes uma

ocupação tão preciosa no desenvolvimento de uma sociedade careceu tanto de

sensibilidade estética como a atividade gráfica. Sem ela, grandes pensadores,

independente de credos e convicções, não seriam editados ou compreendidos por

um público que rapidamente se transformava em mercado; sem ela, a síntese e o

traço magistral de pintores acabariam na solidão de seus originais. Tardiamente, via-

se no Brasil o que acontecera depois da invenção dos tipos móveis de Guttenberg: a

gradual – em nosso caso meteórica – corrida às idéias, às imagens e à luz do

conhecimento.

O objetivo do capítulo é fornecer uma idéia geral da importância desses

visitantes, e mesmo dos que aqui nasceram; do que fizeram e deixaram. Reproduzir

a imagem, ainda que mecanicamente, era trabalho confiado aos artistas, que

interferiam diretamente na realização da cópia, seja retocando ou mesmo criando as

matrizes. Tratava-se de um trabalho íntimo entre criar e reproduzir, surgindo a partir

daí capacidades que às vezes trocavam de função, melhorando materiais e

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processos vindos de fora, criando-os aqui, etc. Sem a mão do artista, como se verá,

nada disso seria possível.

O Rio de Janeiro, como colônia e corte do primeiro reinado, não contava com

um processo satisfatório de reprodução de textos e, menos ainda, de imagens. Afora

algumas oficinas tipográficas, que além do texto imprimiam enfeites à borda das

páginas (iluminuras prontas ou vinhetas, cujos modelos vinham da Europa), a

reprodução de forma geral era incipiente. Quanto às imagens, o domínio era de

responsabilidade dos próprios pintores e desenhistas, que utilizavam como suportes

a madeira das xilogravuras ou o metal do talho-doce e da água-forte; com esses

rudimentos era possível imprimi-las, mas com as dificuldades inerentes ao material.

Pouco era realizado aqui, e, entre tais cometimentos, figuravam imagens bíblicas

(em sua maioria vindas de fora), cartões de visita, sinetes de família, de

empreendimentos comerciais, baralhos e alguns impressos de natureza efêmera:

papéis de controle, notas, formulários, etc, usados pelo estado e pela administração

em geral. Vale informar que no tempo de D. Pedro I ainda se exercia a censura

sobre certas publicações, cujos assuntos eram ou não permitidos segundo o ponto

de vista reinante.

4.1 Os precursores Palliere e Steinamm: oportunismo & oportunidade

A vida e a produção de dois precursores da reprodução da imagem no Brasil, o

francês Arnaud Julien Pallière (1783-1862) e o suiço Johann Jacob Steinmann

(1800-1844), é de fundamental importância para entendermos o ponto exato em que

o original de uma imagem encontra-se com a maneira mais simples e antiga de sua

reprodução.

Pallière chegou um ano depois da Missão Artística Francesa, em 1817, quando

ainda governava D. João VI. Pode-se afirmar, com o já citado Orlando da Costa

Ferreira, que foi o primeiro litógrafo do Brasil, tendo aqui aportado com a novidade

debaixo do braço numa viagem da esquadra que trazia ao Novo Mundo a

arquiduquesa Maria Leopoldina, primeira imperatriz consorte do país, e os cientistas

Carl Friedrich Philipp von Martius e Johann Baptiste von Spix, entre outros.

Pallière já aprendera, em 1798, o ofício da litografia no ateliê do checo Alois

Senefelder, seu inventor, que tinha ido viver em Paris para desenvolver novas

técnicas de reprodução e estampagem. Além de trabalhos em óleo e aquarela,

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Pallière também conhecia o talho-doce, com o qual produziu alguns retratos. Mas foi

com os apetrechos litográficos que trazia da França que acabou fazendo sua vida

por aqui. Vários trabalhos, entre eles o de dona Amélia de Leuchtenberg (a segunda

imperatriz consorte), foram pintados por ele, confirmando a tradição tipicamente

francesa das monarquias sempre contarem com pintores ao pé de si. Certamente,

as primeiras litografias feitas no Rio de Janeiro – e no Brasil – saíram de um prelo

trazido pelo francês e instalado nas oficinas do Arquivo Militar, no Largo de São

Francisco, mostrando paisagens, retratos e uma alegoria fúnebre a D. João VI,

falecido em Portugal em 1824. Pintor que já participara de salões na Europa, Pallière

viajou a serviço por várias províncias brasileiras, documentando paisagens e plantas

de cidades como São Paulo e regiões históricas de Minas Gerais. É de sua autoria o

primeiro plano de urbanização de Niterói e de outras cidades. Ele também criou uma

oficina particular na qual dava aulas e produzia trabalhos para um sustento mais

folgado, como insinua Costa Ferreira:

Pelo silencio em torno de suas atividades como litógrafo, vê-se

que, longe de pretender ensinar a nova técnica em sua escola, procurava mantê-la em estratégica reserva. Pode-se pensar também, com boas probabilidades de acerto, que não desejasse usar a litografia como sua principal atividade “artística”, reservando-a quase que somente a trabalhos comerciais... (FERREIRA, 1994, p. 321)

O francês não era o único a ambicionar uma vida pródiga junto à corte

brasileira, carente, como todas as monarquias da época, de uma representação forte

e vitoriosa que só os artistas treinados no velho mundo poderiam criar. Pouco antes,

em 1816, a própria Missão Francesa aqui se estabelecera às expensas de D. João

VI. Foi Pallière um grande auxiliar da monarquia, pintando, ensinando sua arte e

vivendo dela durante tempo em que aqui ficou, até 1830, quando regressou à

Europa. Trabalhando para o governo e ao mesmo tempo para si, o francês – como

logo depois o suíço Johan Jacob Steinmann – encarnava a figura do antigo

amanuense, dividindo seu dia entre o emprego público e um “bico”, que

complementava ou até mesmo superava os proventos que recebia. Consta que tinha

ateliê próprio, onde atendia o público de modo particular. Pallière desenhou

uniformes, condecorações, planos urbanísticos e plantas militares, entre outros

trabalhos; como pintor de história, atendeu muito bem à monarquia executando

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paisagens e retratos de membros da família imperial. Um deles foi o óleo do menino

Pedro de Alcântara, futuro imperador Pedro II, a pedido de seu pai, Pedro I.

A história de Johan Jacob Steinmann (1800-1844) não é totalmente diversa da

de Pallière, embora o primeiro tenha usado modos mais profissionais para usufruir

de vantagens junto à corte. Segundo Ferreira, a arte da esperteza superava de

muito a de pintor, gravador ou de litógrafo atribuídas a Steinmann. Sua vinda deveu-

se à ordem de D. Pedro I para que se adquirisse na Europa uma prensa litográfica

para a reprodução oficial de imagens e documentos necessários à corte, embora se

acredite que o prelo e demais acessórios tivessem o destino do paço de São

Cristóvão, mais exatamente o deleite do imperador. Steinmann, que também se

preparara no ateliê de Senefelder, aportou no Rio em agosto de 1825, mas o que

seus contratantes não apuraram direito é que, apesar de conhecer o ofício, o suiço

não parecia ser um artista completo, mas um interessado em ganhar prestígio com o

desconhecimento reinante.

A quantidade de coisas que vieram com as prensas, ademais, superlotavam o

espaço do Arquivo Militar, destinado à atividade; a única saída era realocá-los na

casa do próprio Steinmann, próxima da atual Cinelândia. Steinmann propôs também

Arnaud Julien Pallière, 1830: Detalhe, “D. Pedro de Alcântara” Fonte: http://www.itaucultural.org.br

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que o Arquivo lhes facultasse mão de obra, conseguindo a contratação de

empregados, alguns dos quais falando a mesma língua que ele. Entre cobranças do

Arquivo e repetidas defesas do suíço, ficava mais claro com o tempo que ele não

agradava totalmente a seus empregadores.

Pouco antes de 1830, a cara do negócio já estava desenhada e Steinmamm

produzia praticamente sozinho, tendo à frente um mercado que crescia solidamente

na direção do particular. Eram plantas, projetos de construção, estampas para livros,

pautas musicais e uma série de reproduções de utilidade para o dia a dia das

nascentes empresas e do comércio. De endereço em endereço, e crescendo

sempre, o ágil impressor estabeleceu-se nas redondezas do Paço, e, finalmente, no

ponto nervoso da cidade, a famosa Rua do Ouvidor.

Abaixo, o nome de Steinmann surge em uma litografia do impressor Friedrich

Salathé, anos depois do primeiro deixar o Brasil.

F. Salathé, Suíça,1835: “Largo do Paço” - litografia a partir de um desenho de Steinmann, 12 x 16,5 cm. . Fonte: http://bndigital.bn.br

O papel de Steinmann para as artes gráficas no Brasil - além do de ganhar

seu dinheiro - foi o de ter produzido muitos impressos e ensinado seu ofício a

aprendizes aqui nascidos, que passariam adiante as novas técnicas. Quando foi

embora para Paris, em 1833, passou a trabalhar como impressor no rendoso

negócio de vistas e panoramas, a maioria deles riscados no Rio de Janeiro e

levados para a França. Sua maior contribuição técnica para as artes gráficas,

entretanto, pode ter sido o uso que fez do zinco como suporte para o desenho e

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matriz de impressões. A litografia sobre a folha deste metal, em lugar da pedra

calcárea, deu origem à zincografia planográfica, base para o avanço das artes

gráficas aprendidas ainda no ateliê de Senefelder. Mapas e plantas impressos para

o Arquivo Militar durante a permanência de D. Pedro I devem ter saído com esta

técnica, que muito reduzia o custo da importação e manejo da pedra alemã. O zinco,

trabalhado à água-forte a partir de imagens previamente gravadas em sua

superfície, seria a base dos futuros clichês que dariam uma virada na impressão de

revistas e jornais no fim do século XIX. É bem possível que Steinmann tivesse

chegado com a novidade em segredo (como Pallière), guardando-a naturalmente

para uso particular, sem fazer alarde do método. Diz Ferreira que:

As folhas de zinco de Steinmamm iam, pois, inequivocamente, servir

como condutores de imagem. Ainda uma prova é que a cartografia,

atividade principal do Real Arquivo, constituía exatamente o tipo de

trabalho que até então, na Europa, se costumava confiar a matrizes

de zinco. Teriam as (...) folhas constado da nota (...) ou foram

acréscimos solicitados por Steinmamm? (FERREIRA, 2004, p. 345)

A julgar pela lista de apetrechos que trouxe da Europa, diz o autor, dá mesmo

para desconfiar, pois dezenas de folhas de zinco faziam parte da carga trazida por

ele e levada diretamente para sua casa, em vez de seguirem para o Arquivo.

4.2 - As cores de Paula Brito

Francisco de Paula Brito (1809–1861), ou Paula Brito, como ficou conhecido, é

o primeiro brasileiro dessa lista, tendo sido um dos nomes mais importantes para a

atividade gráfica do país. Foi nosso primeiro editor, empregando escritores e outros

artistas que ficaram conhecidos a partir das oportunidades por ele oferecidas.

Mesmo não sendo desenhista ou pintor, Paula Brito sonhava em desenvolver

talentos que equiparassem, desde cedo, o Brasil com as grandes nações de seu

tempo. Foi poeta, tipógrafo, litógrafo, livreiro, dono de jornal, comerciante, tradutor,

compositor e dramaturgo. De suas mãos surgiram, por exemplo, o primeiro romance

brasileiro, “O filho do pescador”, de Antonio Gonçalves Teixeira e Souza, em 1843,

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além de outras obras nacionais. Com quinze anos, Paula Brito vai trabalhar como

aprendiz na Typographia Nacional, ex Imprensa Régia, mudando-se em 1824 para

as oficinas Seignot-Plancher, fundador do Jornal do Commercio. Consta que foi

tradutor de francês, que aprendera com a natural dificuldade de sua origem humilde.

Em 1831, ele adquire uma pequena loja no Campo dos Ciganos (Praça

Tiradentes) e ali instala uma tipografia. Começava um dos mais brilhantes capítulos

da história da reprodução gráfica no Brasil, pois Paula Brito, apesar de sua condição

de mulato, superou preconceitos e foi um dos mais respeitados empreendedores do

Rio de Janeiro, chegando a possuir quase um quarteirão naquele endereço, além de

oficinas gráficas em Niterói e outros recantos da corte. Compondo, redigindo e

publicando praticamente tudo o que se conhecia, Paula Brito criou a legendária

“Marmota Fluminense”, folha que se tornaria histórica, pois em suas oficinas outro

humilde mulato começaria também como aprendiz de tipógrafo para depois tornar-se

o maior nome das letras nacionais: Machado de Assis, que, aos 16 anos, publicou ali

seu primeiro trabalho em letra de forma. Eram raras as imagens tipográficas em

suas páginas, a não ser vinhetas estrangeiras ou águas-fortes e xilos feitas na

oficina da Praça da Constituição (Tiradentes), mas sem autoria conhecida.

Marmota Fluminense, 1852. Vinheta tipográfica ou xilogravura. Fonte: http://www.machadodeassis.unesp.br

Algumas caricaturas e imagens já faziam parte das páginas impressas ali,

vinhetas ou desenhos produzidos por artistas que entalhavam a buril, ou os

rebaixavam com antigas substâncias químicas sobre originais desenhados em

chapas de metal. Laurence Hallewell (O livro no Brasil: sua história, Ed.USP, 1985)

informa que Paula Brito, em 1851, entrou no campo da litografia, mas importando

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imagens prontas que encartava nA marmota. Em 1850, sua gráfica ganhara nome

soberbo, Imperial Typographia Dous de Dezembro, incensada pelo jovem imperador

Pedro II, que fazia aniversário na data, junto com o gráfico. Em 1853, ele contrata

um profissional de Paris, Louis Therier, e abre uma oficina litográfica na Rua dos

Ciganos, na mesma área, para produzir imagens.

A litografia, cujos resultados impressionavam, ainda era de difícil e caro

tratamento, necessitando de prensas e materiais mais sofisticados vindos da

Europa, principalmente mão de obra competente. Os primeiros a se ocuparem do

artesanato gráfico no país eram estrangeiros, mas este quadro evoluiu para

pequenos conglomerados, quase guildas familiares, até que o tempo, o mercado e a

nascente tecnologia se encarregassem de novas revoluções.

Paula Brito soube aproveitar o momento em que a necessidade de artistas

gráficos ia crescendo. O custo de enviar, imprimir ou litografar na Europa era alto,

sendo crucial atender a nova corte no que suportasse sua administração, seu

comércio e sua visibilidade. Surgia, também, uma demanda mais sofisticada, de

cultura e entretenimento, na qual certos modelos europeus precisavam ser aqui

reproduzidos. Como a seguinte partitura, encartada em sua A Marmota na Corte:

É possível medir a coragem desse homem, que mandou vir da Europa um

profissional estrangeiro para operar a sua oficina. Em pouco tempo, a Empresa

Tipográfica Dois de Dezembro podia imprimir – ou apenas copiar - figurinos em

cores para um público que também mostrava as unhas, deixando de ler apenas

romances água-com-açúcar ou animar festas domésticas ao piano: as mulheres.

O anjo de meus sonhos, valsa de Geraldo Horta, distribuída nA Marmota na Corte, 1853. Fonte: http://bndigital.bn.br

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Em 1857, parte do pequeno “império” de Paula Brito sofre um revés. Ele

crescera demais e ficava difícil administrar o que criara. Diz sua biógrafa, Lucia

Gondim:

Paula Brito cerrou as portas da loja de nº 68 (...), a loja de Chá, que funcionava no nº 78 da mesma Praça (da Constituição); A Litografia da Rua dos Ciganos, nº 28 (atual Rua da Constituição) passou às mãos de Louis Therier, seu antigo empregado. Nas edições (...) impressas não se lia mais “Empresa Tipográfica Dois de Dezembro, de Paula Brito, Impressor da Casa Imperial”, mas simplesmente Tipografia de Paula Brito (GONDIM,195, p.42)

Mas não foi o fim do gráfico e do editor. A partir daí o primeiro cedeu de vez

lugar ao segundo, que publicou inúmeras obras literárias, muitas delas os primeiros

textos de nossos grandes escritores, além de traduções e adaptações. Gondim da

Fonseca não entra em detalhes sobre as instalações, maquinário e recursos

utilizados por este importante empresário gráfico4. Paula Brito morreu cedo, em

1861, aos 53 anos. A empresa passa então a ser administrada pela firma Viúva

Paula Brito & Genro, ainda na Praça da Constituição, até desaparecer.

4.3 – A longa vida dos Laemmert

Um dos maiores representantes na história das artes gráficas no Brasil foi E.

&. Laemmert, legenda que ficou conhecida por editar e imprimir, regularmente, o

famoso “Almanaque Laemmert” entre 1844 e 1889, ano da proclamação da

República. O papel desse periódico foi dos mais importantes para que a população

do Rio de Janeiro e demais províncias da época se mantivesse informada sobre a

vida pública e comercial do Império. Nomeações políticas, administrativas, opiniões,

discursos, anúncios de novos produtos, remédios, equipamentos e oferta de um sem

número de serviços perfaziam o material de suas páginas. Iam estas desde a venda

de capim para a alimentação de animais de tração à estada de visitantes ilustres da

corte, além e outras informações. Possuindo, desde seu início, aparato para produzir

4 - Esta ausência é, por sinal, recorrente, pois também Paulo Berger, em seu importante “A tipografia no Rio de Janeiro” (Cia Ind. De Papel Pirahy, 1984), relaciona as oficinas aqui surgidas, desde a chegada da corte portuguesa até o final XIX, mas, igualmente, não relaciona seu aparato técnico. Exceções ficam por conta de Hallewell, que enumera alguns equipamentos, a maioria de fora.

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não apenas texto, mas também imagens, sua presença deve ser lembrada neste

estudo.

O Almanaque administrativo, mercantil e industrial da corte e província do Rio

de Janeiro nasceu como uma folhinha, quase um calendário, no ano de 1839.

Publicações desse tipo não eram tão raras na época, mas o Almanaque ganhava

pela qualidade e acerto das informações, não demorando a crescer no cenário do

século XIX. Foi uma das mais duradouras e sólidas publicações do seu tempo,

chegando a ter em uma edição – a de 1875 – nada menos de 1700 páginas,

cobrindo, já aí, notícias e informações de todo o Império.

Seu começo está ligado, como se viu, a Eduard Laemmert (1806-1880) e seu

irmão Heinrich (1812-1884), ambos de uma pequena cidade européia, o grão-

ducado de Baden, no sudoeste da Alemanha. O primeiro endereço foi a Rua dos

Latoeiros, hoje Gonçalves Dias, onde se vendia livros europeus de literatura,

política, administração, artes, etc. Juntamente com o irmão Henrich, que chegava

para tocar o negócio, Eduard abriu a Livraria Universal, também conhecida como “E.

& H. Laemmert, mercadores de livros e de música”. Com o que arrecadaram, os irmãos instalaram a sua Typographia na rua do

Lavradio, crescendo ano a ano em importância no panorama industrial da cidade.

Sabe-se que, por volta de 1860, era uma casa vastíssima, bem clara e arejada, onde

trabalhavam mais de 120 pessoas. O sucesso de E. & H. Laemmert e de outros

empreendimentos deste período refletem a lacuna na oferta de serviços gráficos

para uma sociedade que crescia à sombra do Império e que precisava produzir sua

própria cultura em vez de adotar a que chegava, impressa e já pronta, do exterior.

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A palavra e a imagem, ocupando a mesma página, costuram uma indelével

marca de importância em nosso sistema de valores. Tudo o que está em letra de

forma ou cuidadosamente reproduzido será certamente percebido com mais

eficiência e resultados. O público, assim, lê, examina e entende a reveladora

combinação de texto e imagem, ponto determinante na formação de suas crenças e

convicções. Entre a idéia lançada e o seu receptor, do mais simples ao mais

poderoso, crescia a figura do gráfico, ou melhor, do artista gráfico, do tipógrafo, do

talho-docista ou do xilógrafo, a transportar para o papel e em língua nativa a

reprodução de um mundo que se desenvolvia rapidamente. Para se ter uma idéia do

trabalho executado pelo pessoal da E. & H. Laemmert, por volta de 1885

Havia, no total, 124 empregados, dos quais cinco se ocupavam com a leitura das provas, quarenta e dois com a composição, dez com a impressão, cinqüenta e dois com a encadernação, cinco com a estereotipia e clicheria e quatro na administração e almoxarifado. Um departamento para a produção de autotipias (...) estava sendo construído (...) Sete anos mais tarde, em 1891, as oficinas possuíam máquinas que podiam imprimir, ao mesmo tempo, frente e verso da folha. Eles tinham sua própria fundição de tipos e estavam até imprimindo papel-moeda para o Estado de São Paulo. (HALLEWELL, 1985, p. 164).

Capa do primeiro Almanak Laemmert, 1844 (aprox. 30 cm de altura). Eduardo e Henrique Laemmert, – Fonte: http://bndigital.bn.br

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Laemmert foi também pioneiro do ramo das publicações infantis, tendo

produzido – a partir de traduções e ilustrações feitas no Brasil – As viagens de

Gulliver, Dom Quixote, Robson Crusoé, entre outras. A casa começou a desenvolver

a fototipia entre 1882 e 1884 para a ilustração de livros, mas era uma técnica cara

para pequenas tiragens. Vários outros títulos fizeram sucesso, como O cozinheiro

imperial, o primeiro livro de culinária brasileiro, que alcançou dez edições. Na

imagem abaixo, entre as raríssimas do livro, percebe-se alguma dificuldade de se

representar artisticamente animais abatidos.

O cozinheiro Imperial, edição de 1877. E. & H. Laemmert . Fonte: Fundação Joaquim Nabuco, http://www.fundaj.gov.br

Em meados do século, a empresa tinha produzido cerca de 650 títulos no

total, chegando aos primeiros anos do seguinte a 1400 trabalhos de autores

brasileiros, o que mostra uma invejável saúde empresarial em um mercado

imprevisível, ainda que crescente, e que precisava de matérias primas estrangeiras.

Eduardo Laemmaert voltou várias vezes à Europa para lá ficar de vez em

1887, onde morreu em janeiro de 1880. Seu irmão, Henrique, permaneceu à frente

do negócio, mas também não durou muito, falecendo quatro anos depois. Jovens da

família assumiram a oficina e a livraria e, em 1898, a firma tinha filiais em São Paulo

e Recife. Um incêndio, em 1909, destruiu a livraria, cujos direitos autorais foram

vendidos à Francisco Alves, outra grande editora que surgia. O velho Almanaque

Laemmert, de tanto sucesso, foi vendido a particulares, mudou de nome e acabou

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como órgão do Jockey Club do Rio de Janeiro em 1925. Em 42, outro incêndio

destrói a sede do Almanack, sendo seu último número relativo ao ano de 1943.

Sabe-se que continuou como tipografia, havendo notícias de uma pequena Gráfica

Laemmert, no Rio de Janeiro, por volta de 1970.

4.4 – Briggs e o mercado de imagens

Frederico Guilherme Briggs foi outro dos nomes mais antigos e importantes

para as artes gráficas no país. Seu trabalho está relacionado aos inícios da

reprodutibilidade de imagens no Rio de Janeiro, além de representar um valioso

documento sobre a cidade, seus tipos, seu entorno e sua paisagem. O início de sua

atuação como artista e impressor foi dedicado a colher vistas do Rio em desenhos

feitos por ele próprio e por outros artistas para depois imprimi-las principalmente em

litografia, meio em que se tornou conhecido. Sua contribuição é inestimável, uma

vez que, filho de estrangeiro, soube interpretar as cores e os tipos brasileiros que se

formavam em um país escravagista, que crescia rapidamente impulsionado pela

nascente economia do café.

Briggs nasceu em 1813, durante o período de permanência de D. João VI e da

família real portuguesa no Brasil. Era filho do comerciante inglês William Briggs,

tendo na infância frequentado raros colégios do Rio. O jovem teve aulas de desenho

com os pintores Édouard Philippe Rivière, Felix Emile Taunay e Grandjean de

Montigny, nomes importantes com laços na Missão Artística Francesa. Aos

dezesseis anos, Brigss frequentava a Academia Imperial de Belas Artes como aluno

“amador”, aprendiz de arquitetura e paisagem. Em 1833, matriculou-se

definitivamente na referida academia e no mesmo ano tentou um concurso para

professor-substituto da instituição, no qual não passou. No ano seguinte, deixa a

escola, preferindo trabalhar com o mestre Rivière e o colega Barros Cabral em uma

oficina litográfica estabelecida na Rua do Ouvidor. Eduard Rivière, segundo Lygia da

Fonseca Fernandes da Cunha, em seu Ludwig and Briggs, Lembrança do Brasil

(Sedegra, s/d, RJ), estava no Rio desde 1826 e fora aluno premiado da Academia

de Pintura de Paris. São certamente de sua mão trabalhos que depois foram

creditados somente a Briggs.

Este, claro, já percebia a existência de um mercado no Rio de Janeiro,

específico embora pequeno, na matéria de reproduções e arte. Lançou-se então

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como mestre de desenho, obtendo prestígio com o que aprendera de tão bons

professores. A firma do pai, entretanto, ia mal e abriu falência, obrigando a família a

viajar para o Velho Mundo. Briggs foi para a Inglaterra, em março de 1836, também

com a finalidade aprender melhor a litografia, técnica que se popularizava como o

mais indicado meio de reprodução de imagens. Seu destino era uma das mais

respeitadas oficinas litográficas inglesas da época, a Day & Haghe, pertencentes a

artistas que se especializaram em estampas de pessoas em cenas urbanas

francesas e belgas. Devem ter nascido desta experiência outros trabalhos impressos

por Briggs no Brasil, como figuras de escravos e tipos comuns das ruas do Rio de

Janeiro. Não apenas de suas mãos saíam os traços que depois dariam origem a

impressos, sendo conhecida a participação de grandes artistas nestes trabalhos,

como o próprio Rivière e Eduard Hildebrantd, este último tendo circulado o mundo,

anos antes, na coleta de imagens urbanas e paisagens para o governo alemão.

Briggs já levara na viagem vários traços e originais captados por aqui, o que

resultou na impressão inglesa de, pelo menos, dois trabalhos de grande fôlego para

um iniciante: o Panorama da Cidade do Rio de Janeiro, e a Folhinha Nacional

Brasileira (para o ano de 1837), esta com 25 pequenas paisagens ou vistas do Rio,

além dos retratos do imperador e suas irmãs, obras que alguns autores atribuem a

Rivière. Os habitantes do velho Rio de Janeiro viam, com certeza, nas paisagens

urbanas bem impressas o ápice mais próximo de uma civilização, da qual só tinham

notícias pelos vapores que por aqui aportavam. A transferência da representação

artística, traduzida pelas vistas da cidade, de suas ruas e de sua gente significava

também as esperanças de um mundo melhor, mais integrado ao próprio mundo.

Como lembra a historiadora Celeste Zenha,

O exemplo de Briggs nos permite afirmar que havia um mercado para as vistas do Brasil no Rio de Janeiro, anteriormente ao evento da fotografia. Também fica evidenciado o fato de que muitas litografias foram produzidas por artistas que, antes de se tomarem litógrafos, haviam se dedicado ao desenho e à pintura. Obviamente, os padrões estéticos expressos nesse novo processo de produção de imagens de paisagens guardavam muito da formação de origem de seus artistas. No entanto, novas experiências e soluções, desenvolvidas para um público mais amplo e menos elitizado, conferiram a esses produtos particularidades que, de alguma maneira, alteraram os padrões de representação visual então vigentes (ZENHA, 2004, p. 28).

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Briggs ficou na Europa pouco menos de dois anos, voltando para abrir seu

negócio no centro da cidade. Chegou com novas idéias e bem mais pragmático,

anunciando uma série de impressos efêmeros e de utilidade prática, como cadernos

pautados, de caligrafia, além de caricaturas ingênuas e cartões de visita. Por que

teria abandonado as vistas do Rio de Janeiro, de tão grande sucesso no seu lápis e

no pincel de outros artistas? Antes de revelar-se tão ou mais comerciante que

artista, porém, Guilherme Briggs tinha já produzido belas imagens do Rio de Janeiro

e de seus tipos. Em 1832, foram feitas por ele – ou por Rafael Mendes de Carvalho

(1817-1870) - uma série de aquarelas depois litografadas em sua oficina. Eram tipos

de rua, escravos, senhores e vários momentos da cidade em traços que mostravam

mais objetividade na captação da cena do que sua exploração artística. Ao

passarem à pedra, nota-se maior economia nas cores, o que certamente ocorreu na

impressão, pois a base desses desenhos é o traço em preto que só depois receberia

outras tintas. Mesmo assim, a obra é de reconhecida importância antropológica e

etnográfica. Abaixo, dois momentos - e desenhos - atribuídos a Briggs:

F. G. Briggs, “Cadeirinha”, (entre 1829 a 1832), e “A família indo a Missa”, de 1849. litografia aquarelada. Fonte: “Lembrança do Brasil, Ludwig and Briggs”, Sedegra, RJ, s.d.

Em 1840, Briggs anunciava a abertura de sua litografia em novo endereço da

Rua do Ouvidor, onde estampava mapas, letras, faturas, circulares, tabelas de

preços, bilhetes, etiquetas para boticas, música, etc, fazendo ainda “transportes” e

fac-similes. Uma de suas publicações, O Caricaturista, seria pioneira em um ramo

seguido depois por outro nome de peso nas artes gráficas do Brasil e presente neste

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estudo: Ângelo Agostini. Para uma idéia sobre a demanda de impressos para uma

cidade que começava a crescer, o próprio Briggs ressentiu-se de mão de obra

especializada, e colocou nos jornais uma oferta segundo a qual aceitava empregar

aprendizes de impressores, dando imediatamente casa, comida e algum salário.

Muitos destes continuariam na atividade gráfica, substituindo os que voltaram a seus

países de origem.

Em 1843, Briggs associa-se ao litógrafo prussiano, ou belga, Peter Ludwig,

que chegara ao Brasil e voltara à Europa para aprendizado e novas compras, pois,

como vimos, as oportunidades pareciam crescer. Outras produções da dupla

definem a importância da litografia neste início da indústria gráfica brasileira. As

revistas, para conterem imagens, demandavam tempo maior na produção,

inaugurando a cooperação entre algumas oficinas existentes na corte. Como diz

Ferreira,

Atribui-se tradicionalmente à oficina de Ludwig & Briggs (...) dezenove das cinqüenta excelentes estampas litográficas que saíram na revista Ostensor Brasileiro, publicada em 1845-1846, a maioria das quais está assinada por Heaton e Rensburg (...) a capa também é primorosa, contendo a assinatura da oficina da Rua dos Pescadores, de Briggs. (FERREIRA, 1994, p. 376)

Em fins de 1849, os sócios anunciam nova mudança de endereço, desta vez

para a Rua dos Ourives. Pouco antes, produziram o álbum The Brasilian Souvenir, a

Selection of the most peculiar Costumes of the Brazil, de trinta páginas, para

Ferreira, “sem qualquer valor como obra de arte”. Por volta de 1870, Frederico

Guilherme Briggs desaparecia no Rio de Janeiro.

Um dos maiores colecionadores de documentos e imagens sobre o Brasil -

Rio de Janeiro em particular - o empresário Paulo Fontainha Geyer, falecido em

2004, conseguiu adquirir ao longo da vida um riquíssimo acervo, doando-os em

1999 ao Museu Imperial de Petrópolis. À famosa Coleção Geyer, seu proprietário

juntou sua própria casa, um recanto histórico do século XIX, no Cosme Velho, em

favor da referida entidade. Muito do que se conhece da produção de Briggs,

inclusive trabalhos encontrados no exterior, estão presentes no acervo, que

surpreende pela qualidade e estado de conservação. Segundo a historiadora Maria

Inez Turazzi, coordenadora do Projeto de Inventário e Conservação da Casa Geyer,

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No decorrer do século XX, estampas avulsas, panoramas e álbuns da Litografia Briggs foram garimpados no exterior e “repatriados” para as coleções brasileiras. Tendo sobrevivido à ação do tempo, da natureza e dos homens, as cento e nove obras reunidas na publicação são extremamente raras, encontrando-se pouquíssimas imagens com a marca da oficina Briggs em outras coleções e instituições do país, inclusive a Biblioteca Nacional, onde foram publicadas as principais obras de referência sobre o artista. Além do catálogo já citado, a instituição também realizou, há pouco mais de trinta anos, uma edição facsimilar do álbum “The Brazilian souvenir”, precedido de um estudo histórico-biográfico sobre Briggs e sua oficina. (TURAZZI, 2006,)

É admirável o trabalho de colecionadores, estudiosos e amantes da história e

da arte brasileira, que conseguiram conservar verdadeiras jóias de nossa cultura. É

também é fundamental o esmero de instituições como a Biblioteca Nacional na

conservação de reproduções e originais de Briggs e de outros artistas do século XIX.

4.5 Leuzinger, a imagem entre o traço e a foto

Em 1832, sete anos antes da apresentação do daguerreótipo – primeira

máquina fotográfica, apresentada na França por Louis Daguerre - chegava ao Brasil,

aos 19, o suíço Georges Leuzinger, que se tornaria um dos mais importantes

personagens da reprodução gráfica e da então iniciante história da fotografia e em

nosso país. O interesse pela imagem, segundo conta o pesquisador Sergio Burgi

(Cadernos de Fotografia Brasileira, nº 3: “Georges Leuzinger”, ed. Instituto Moreira

Salles – junho de 2006), teria nascido a partir das paisagens circulares em forma de

rotundas pintadas - expostas em várias cidades da Europa no início do século XIX -

e que teriam chamado a atenção do rapaz.

Leuzinger tornou-se um empresário de sucesso, além de editor, tipógrafo,

litógrafo e fotógrafo. Seu trabalho ficou conhecido pelo apuro, servindo ao mercado

e à administração do Império. Considerado um virtuose das artes gráficas, Leuzinger

trabalhou com os grandes nomes da época, brasileiros ou não, transferindo para a

fotografia - à qual acabaria se dedicando - muitos princípios da pintura, notadamente

paisagens. Tendo adquirido, em 1840, loja de um tio, Leuzinger ampliou suas

atividades num empreendimento que ficou nacionalmente conhecido como Casa

Leuzinger, congênere tropical dos bons impressores europeus.

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O Rio de Janeiro, por sua condição geográfica e beleza, ou pelo crescimento

como capital do império, era destino de viajantes que por aqui passavam a negócio,

passeio ou pesquisas. Ter uma reprodução de qualidade, como um álbum de

paisagens, significava alguma notabilidade, assim como portar documentos e papéis

de fino acabamento para um bilhete ou correspondência regular. O mercado gráfico,

a reboque dos novos costumes, ensejava oportunidades e tornava possível fabricar

por aqui o que chegava de navio da França ou da Inglaterra.

Por volta de 1843, segundo Hallewell, ele mandou vir da Europa artistas

gravadores em madeira que deixaram aqui aprendizes formados, principalmente na

gravura de topo (que podia imprimir melhor com a tipografia). É possível que os

primeiros cartões postais do Rio realizados pelo suíço tenham sido gravados dessa

forma. O mais importante é que, aos poucos, formava-se a mão de obra artística

indispensável à continuação da atividade gráfica.

A loja de Leuzinger ficava também na Rua do Ouvidor, onde estavam

montadas as novas máquinas tipográficas; fazia-se ali, além da impressão de textos,

talhos-doces ou xilogravuras, belas encadernações, pautação e litografia. De lá

devem ter saído seus álbuns, como informa Burgi:

Em 1865, o desafio de produzir, editar e comercializar fotografias foi também abraçado por Georges Leuzinger. No curto prazo de um a dois anos, fotografou intensamente a paisagem carioca e de seus arredores. As imagens foram colocadas à venda através de catálogo publicado por sua tipografia, sempre em formatos pré-definidos, de forma seriada, individualizadas ou encadernadas em álbuns, com acabamento gráfico e tipográfico característico de seu trabalho anterior em edições litográficas. Essas imagens integraram a Exposição Nacional de outubro de 1866, no Rio de Janeiro, e no ano seguinte foram expostas e laureadas na Exposição Universal de Paris. (BURGI, 2006, p. 149)

Reunindo outros profissionais, Leuzinger expandiu seus interesses para

constituir um grande projeto iconográfico. Fotografava não só o Rio de Janeiro e seu

entorno, como também outros lugares do país, constando de seu trabalho um

grande empreendimento amazônico, a cargo do amigo Albert Frisch, que viajou ao

norte para colher as primeiras imagens fotográficas da região, seus índios, sua

fauna e flora. Segundo Burgi, a produção de Leuzinger, quase toda entre 1865 e

1875, pode ser agrupada em cinco divisões: panoramas e paisagem do Rio e seus

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arrabaldes; vistas de Niterói; vistas da Serra dos Órgãos, Teresópolis e Petrópolis;

documentação botânica; documentação paisagística e etnográfica da região

amazônica.

Já vimos que Leuzinger esteve bem próximo a dois franceses que vieram ao

Brasil especialmente para produzir uma documentação sobre o país a convite do

Imperador Pedro II: Victor Frond e Charles Ribeyrolles. Frond, fotógrafo,

documentou o Rio de Janeiro e seus arredores, enquanto Ribeyrolles escrevia o

texto para o álbum “O Brasil Pitoresco”, impresso na Maison Lemercier, em 1861.

Curioso destacar que o jovem Machado de Assis, juntamente com Joaquim Manuel

de Macedo e outros intelectuais, fizeram parte do grupo que traduziu a obra para o

português a partir do texto de Ribeyrolles. As imagens urbanas, de há muito, eram

objeto da admiração do suíço, e não apenas composição para um simples primeiro

plano das paisagens. O assunto, aliás, é ao mesmo tempo antigo e palpitante, como

revela Carlos Martins, artista plástico e outro articulista do citado Cadernos de

Fotografia Brasileira:

Os incontáveis registros feitos no século XIX pelos fotógrafos que passaram pelo Rio de Janeiro ou aí se estabeleceram fazem parte de uma tradição que, em sua origem, remonta à pintura de cidades, gênero que começou a ser praticado sistematicamente a partir do século XVII, na Holanda. Quando os artistas perceberam a necessidade da busca de novos assuntos para satisfazer o gosto da burguesia emergente, agora também mecenas das artes, o registro iconográfico de um edifício, legitimando uma propriedade ou celebrando uma melhoria, passa a ter seu próprio mérito. Assim também as vistas da cidade ou aspectos (...) de ruas ou praças deixam de ser meramente o segundo plano de pinturas históricas ou religiosas. O retrato da cidade passa a ser assunto e não mais um pano de fundo. (MARTINS, 2006, p. 25)

Leuzinger experimentou novas técnicas, em especial a fotolitografia, a

fototipia, e a fotogravura. Em 1867, ele aumenta o patrimônio e seu ateliê fotográfico

é premiado com menção honrosa na exposição de Paris, com vistas do Rio de

Janeiro, primeira distinção internacional do Brasil em fotografia (àquela altura,

cumpre informar, Marc Ferrez, que tinha sido aprendiz da empresa, já tinha um

pequeno estúdio fotográfico no centro da cidade).

Em 1873, Leuzinger volta à Europa para um passeio com a família. Seu

estabelecimento, além do antigo endereço, passou a ocupar dois prédios na Rua do

Cano (Sete de Setembro), um deles com três andares. Suas impressoras eram

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movidas a gás e sua folha de pagamento registrava mais de 50 empregados diretos.

A dez anos da proclamação da República, a casa imprime vários jornais ilustrados,

entre eles O Besouro, Folha Ilustrada, Humorística e Satírica, dirigida por Rafael

Bordalo Pinheiro.

Revela Segio Burgi que, entre documentos do espólio de Leuzinger, doado à

Fundação Moreira Salles pelo seu filho Paul, encontram-se exemplares de

fotolitografias produzidas por volta de 1870, pelo seu genro Franz Keller. Eram

resultados da impressão a partir de um mesmo original fotográfico, desenhado por

Keller para serem reproduzidos em série. Isso revela que Leuzinger foi precursor

das técnicas que possibilitaram, depois, o surgimento do clichê tipográfico. Curioso

destacar o enquadramento das imagens feitas por ele: bem semelhante à pintura

clássica tradicional, padrão que seria mantido por muitos anos. Muitas de suas fotos

serviram de base a tiragens em pedra litográfica.

Leuzinger, 1865. “Igreja de Santa Luzia”. Fonte: Cadernos de fotografia brasileira, 2006 – Inst. Moreira Salles.

Antes que século acabasse - e com ele Leuzinger - é justo destacar o seu

belo trabalho com as imagens. As vistas do Rio, com as quais sua biografia foi mais

conhecida, mostravam grande apuro gráfico. Essas mesmas paisagens, a maioria

transferida para a pedra litográfica por artistas franceses, como Alfred Martinet e

Iluchar Desmonds (professor, desenhista e litógrafo, chegado em 1840), não tinham

como destino apenas o Rio de Janeiro; o mesmo material, depois de impresso, era

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remetido a outras capitais européias, como Londres e Portugal, onde era notório o

interesse pela tropical paisagem carioca.

Leuzinger morre em 1892 e a família assume o negócio, transferindo o

patrimônio para a Praça Tiradentes, mesmo endereço de outros nomes que fizeram

a história das artes gráficas no Brasil. Um incêndio, cinco anos depois, destruiu

quase todas as instalações da empresa, que mudou-se novamente para a rua do

Lavradio, seu último endereço até meados do século XX, quando desaparece.

Segundo Hallewell, a firma passou a existir apenas como tipografia. Por volta de

1930, ostentava a humilde e definitiva designação de “Gráfica Ouvidor”.

4.6 Heaton & Rensburg, uma Lemercier tropical

Quando chegaram ao Rio de Janeiro, em 1839, o inglês George Mathias

Heaton (1804 – após 1855), de 36 anos, e o holandês Eduard Rensburg (1816 –

após 1895), de apenas 23, havia menos de vinte litografias na cidade, mas o número

de gravadores e desenhistas que se ocupavam de planejar e produzir originais era

grande. O mercado, entre a Regência e a subida ao trono do menino Pedro II, já

buscava uma organização para atender à crescente demanda de produtos gráficos,

fossem eles de utilidade, como notas fiscais, papéis de cartas e recado, cadernos,

envelopes, etc, ou vistas Rio, de outras cidades, estampas, retratos, reproduções de

obras de arte, etc.

Heaton & Rensburg foi o nome comercial da melhor litografia brasileira de sua

época, comparável mesmo às melhores da Europa. O inglês Heaton, além de pintor,

era litógrafo; Rensburg desenhava e também dividia com ele o domínio da pedra

calcárea. O primeiro endereço da nova empresa era a Rua do Hospício, esquina

com o Beco do Fisco, ponto hoje conhecido como Mercado das Flores, centro da

cidade. Profundos conhecedores de arte e bons comerciantes, os sócios dedicaram-

se logo à venda ou aluguel de pedras litográficas, assim como tintas e outros

acessórios para a produção das matrizes. É que, como visto, nem todos os gráficos

eram impressores: muitos trabalhavam em casa ou em ateliês próprios e alugados,

criando composições para seus clientes. Às vezes, uns apelavam aos outros, como

informa Costa Ferreira:

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Essa colaboração de nomes famosos das artes gráficas do Rio antigo parece ter sido rara. Foi novamente realizada por Martinet em 1847, quando anunciou a 13 de abril O Brasil Pitoresco, Histórico e Monumental, álbum com litografias de paisagens e monumentos impressas por Heaton & Rensburg, e publicado por E. e H. Laemmaert. (FERREIRA, 1994, p. 387)

Vários outros artistas chegariam ao Rio nesta época: o citado Joseph Alfred

Martinet, por exemplo, veio da França e abriu seu ateliê no centro da cidade. Como

outros artistas, enviava parte de seus trabalhos para Heaton & Rensburg. É de 1843

uma das primeiras surpresas gestadas nas oficinas dos sócios: a impressão dos

beija-flores, estampa litografada para o desenho do médico e naturalista francês

Jean Theodore Descourtilz (ver cap. 2, Técnica, gravura e reprodução da imagem),

segundo Marçal Ferreira de Andrade “o primeiro feito notável na história da gravura

brasileira em cores”.

Na disputa com a fotografia, já modestamente praticada, as estampas feitas

na pedra e impressas em cores – que podiam ser muitas – levavam grande e

curiosa vantagem, uma vez que dependiam apenas dos desenhistas, dos pintores e

da eficiência dos impressores. Como visto no capítulo anterior, a fotografia não tinha

facilidade em ser transferida para a pedra ou para outro suporte com a mesma

exatidão com que era captada; o processo só avançou a partir da segunda metade

do século. A imagem assim construída ganhava então dos daguerreótipos,

correspondendo ao imaginário de quem “via” os fatos através da arte de estampar,

sem conviver ainda com o frio registro da nova técnica. Entre os artistas brasileiros

que trabalhavam ou enviavam encomendas para Heaton & Rensburg estava Antonio

de Pinho Carvalho (A. de Pinho), ex-aluno da Academia Imperial de Belas Artes e

um dos grandes artistas gráficos no Rio de Janeiro. Alguns trabalhos da oficina,

como o álbum “Rio de Janeiro Pitoresco”, impressionam pelo acabamento.

O trabalho a seguir é de autoria dupla: Abraham-Louis Buvelot e Auguste

Moreau, pintores, litógrafos e fotógrafos que viveram no Rio de Janeiro a partir de

1840. Observar o sutil equilíbrio da paisagem, entre o céu e o mar.

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Buvelot e Moreau, 1845, Álbum “Rio de Janeiro Pitoresco”. 24X31 cm. impresso por Heaton & Rensburg. Fonte. http://bndigital.bn.br

Em 1854, George Mathias Heaton afasta-se da sociedade. Anos depois,

Rensburg chega a montar uma fábrica de papel, outro empreendimento de coragem

para a época. Ao longo de sua história, alguns títulos saídos de seus prelos

comprovam a fama que gozava: Ramalhete das Damas (1842-1850), revista de

música; a Illustração Brasileira (1854-1855), Bazar Volante (1863-1867, O Arlequim

(1867), parte da Vida Fluminense (1868-1875) e inúmeras vistas, obras de

cartografia, de alta qualidade. A oficina durou até 1895.

4.7 Garnier, a casa editorial do império

A Garnier foi, sem dúvida, a maior casa editorial do Império no Brasil e uma

das grandes responsáveis pelo desenvolvimento de nossas letras. Se a imagem não

foi sua vocação, a carreira de editor ajudou indiretamente no surgimento de artistas

gráficos, muitos deles dedicados ao traço e à confecção de desenhos e ilustrações,

razão pela qual seria difícil não incluir este nome no presente estudo. Mas a história

desta organização, que ultrapassou o século XIX editando os maiores escritores

brasileiros e os sucessos internacionais da literatura, tem raízes semelhantes a de

muitas outras gráficas e editoras cujo início contou com a mão estrangeira que

apalpava nossa terra como um oásis para crescer. A Garnier funcionou aqui quase

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um século, entre 1844 e 1934. As condições favoráveis para o estabelecimento de

livrarias na corte, entretanto, vinham de muito longe, da França, que, segundo

Hallewell, teve a necessidade de distribuir seu excedente editorial a partir da queda

de Napoleão e de outras injunções políticas e econômicas. O domínio cultural

exercido pela França a partir da Revolução apontava para outras praças onde o livro

poderia se transformar em sucesso comercial. É Laurence Hallewell quem de novo

informa:

O Brasil oferecia perspectivas particularmente atraentes. Tendo conquistado as vantagens econômicas da Independência (...) ele proporcionava os requisitos de estabilidade e prosperidade, somados a uma receptividade excepcional a todos os adornos da cultura francesa. No fervor de seu nacionalismo recém-descoberto, o Brasil passou a responsabilizar a herança portuguesa pelo atraso nacional e (...) a identificar tudo que era francês como moderno e progressista. (HALLEWELL, 1985, p. 126)

Este panorama atraía visitantes e investidores do mercado editorial, certos de

acharem no Rio de Janeiro a curiosidade de um país que precisava equiparar-se

culturalmente com o resto do mundo. Baptiste Louis Garnier era um desses jovens.

Nascido na Normandia, trabalhou em editoras parisienses com os irmãos e decidiu

viajar ao Brasil por volta de 1837, onde, depois de uma acomodação, fixou sua loja

na rua do Ouvidor, meca dos livreiros de toda parte. O endereço escolhido ficava em

frente aos Laemmert, cujo Almanack foi brevemente estudado neste capítulo.

No início, Garnier não vivia apenas da venda de livros, comercializando

também artigos de papelaria, guarda-chuvas, bengalas, unguentos, charutos e

outras miudezas. Não teve, de início, intenção de instalar uma gráfica, mas de

intermediar a fabricação de livros, o que o tornava um editor. O endereço recorrente

para a composição das encomendas era Paris, onde parte da família ainda vivia e

imprimia. Garnier, homem de faro comercial, sabia que o apelo esnobe fornecido por

tudo que se fazia na sua terra, transformava-se em sucesso por aqui, como a

composição do texto, o acabamento gráfico, as capas douradas a mão, as

encadernações de luxo e, enfim, o indiscutível esmero que as gráficas francesas

dedicavam às obras lá finalizadas. Em 1859, Garnier começou a produzir uma

publicação quinzenal, a Revista Popular, que depois de ser impressa no Rio, acabou

sendo feita na França, transformando-se mais tarde no famoso Jornal das Famílias,

em que colaboraram os mais importantes nomes das letras brasileiras: José de

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Alencar, Machado de Assis, Olavo Bilac e outros. O Jornal das Famílias tinha

diferenciais consideráveis, principalmente nas imagens. Voltado ao público feminino,

publicava figurinos, estampas de modas, pautas musicais, bordados e outras

ilustrações, poucas delas feitas aqui. Sem tocar em questões políticas como a

emancipação da mulher, a publicação teve vida longa, de 1863 a 1878. A seguir, o

primeiro livro de poesia de Machado de Assis. Notar a marca central: B.L.G.

O aspecto cultural e a curiosidade sobre os valores franceses, entretanto, não

eram as únicas razões para que se imprimisse fora do Brasil. Havia a questão

econômica: a realidade e os impostos brasileiros não podiam competir com a

qualidade, o acabamento e os custos que se conseguiam fora. Embora o frete de

navio para trazer as obras até o Rio fosse caro, ainda assim era vantagem imprimir

na Europa, onde já começavam a aparecer as primeiras rotativas tipográficas por

volta de 1850. No Brasil, não havia ainda tiragens e mercado para tanto, embora a

demanda por jornais – em que as rotativas eram mais necessárias – já fosse bem

maior que nas décadas anteriores. Os trabalhos gráficos mais simples custavam

duas vezes o preço cobrado no exterior; se houvesse ilustrações, o preço era o

triplo. Mas Garnier acabou tendo uma gráfica, o que contraria o modo com que

conduzia sua atividade editorial. Essa gráfica, de pouca duração, chamou-se

“Chryalidas”, primeira obra impressa de Machado de Assis. Livraria Garnier, Rio de Janeiro, 1864. Fonte: http://bndigital.bn.br

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“Tipografia Franco-americana” e foi conduzida na década de 1870 por franceses

radicados no Rio.

Este homem, que viera de tão longe para explorar o mercado editorial

brasileiro, ficou rico, apesar da fama de avarento. Acabou conhecido pelo apelido de

“Bom Ladrão”, uma brincadeira com as iniciais na sua loja – B.L. Garnier. Apesar

disso, era considerado extremamente ético nos negócios, pagando em dia e

publicando o que de melhor o país produziu em matéria de literatura. Garnier foi um

dos maiores editores de livros infantis brasileiros, conforme assinala a historiadora

Andrea Borges Leão em artigo para a Revista de História da Biblioteca Nacional

(março de 2009) . À época, as crianças - a maioria ainda sem escola e analfabetas -

podiam olhar os textos em francês ou português de Lisboa, sem compreendê-los,

mas deliciavam-se certamente com as imagens que os acompanhavam. Resumindo

este trabalho, diz ela:

a Garnier oferecia um catálogo com famosas coleções de clássicos para crianças e jovens – fábulas de La Fontaine, contos de Perrault, Andersen e irmãos Grimm –, livros que apresentavam as maravilhas da indústria moderna e escritores como Mme. Le Prince de Beaumont, autora do livro O Bazar das Crianças e do célebre conto A Bela e a Fera. Crianças entre 3 e 6 anos, que ainda não haviam aprendido a ler, podiam se deliciar com os chamados Álbuns de P.-J. Stahl – pseudônimo do editor Pierre-Jules Hetzel – fartamente ilustrados, como o ABC Trim e as peripécias de Toto e Tom. (BORGES LEÃO, 2009)

A casa editou e imprimiu mais de 600 obras de autores nacionais, o que

representa, segundo Hallewell, quase um trabalho por quinzena durante o período

em que esteve mais ativo, entre 1860 e 1890. Alguns nomes que fizeram a história

da literatura brasileira passaram por seu crivo editorial para se tornarem conhecidos.

O velho Garnier providenciou aqui traduções para grande parte do que publicou,

entre elas Alexandre Dumas, Victor Hugo, Montepin, Octave Flaubert, Arsene

Houssaye, Julio Verne e outros. Editou também trabalhos de não-ficção, como livros

de medicina, filosofia, educação, etc.

A figura desse importante editor, que morreu no Rio em outubro de 1893, fica

imortalizada pelo longo e incansável trabalho que desenvolveu na cultura, nas letras

(e, por que não?, nas imagens) nacionais. Garnier era o retrato emblemático do

afinador de piano que não tocava o instrumento, mas conhecia como ninguém a

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música que ele poderia produzir. O velho editor morreu em 1893, em sua casa de

Santa Teresa, sem deixar descendência.

A Garnier não acabaria com o seu primeiro editor, emblematizado como “O

livreiro do Paço”. A empresa foi mantida por seu irmão, Hippolyte, que, a partir da

França, continuou a tocar o negócio. Vendida a um antigo funcionário, Briguiet, a

empresa ficou com os direitos autorais de todos os grandes autores que Louis

Baptiste desencavou no Brasil. A loja da Rua do Ouvidor acabou vendida a uma

imobiliária, que a demoliu em 1953, construindo um banco no local.

4.8 Sisson, traços e retratos de uma época Não são numerosas as referências ao alsaciano Sébastien Auguste Sisson,

desenhista e litógrafo aqui chegado em meados de 1852. Mas foi ele um dos mais

importantes artistas gráficos estabelecidos no Rio. Sisson nasceu em 1824, em

Issenheim; era exímio retratista, qualidade que o fez, no Brasil, um dos mais

respeitados de sua época. Sisson naturalizou-se brasileiro e colaborou muito na

preservação e restauração de obras da antiga Biblioteca Nacional, atacadas à época

pela traça. Ele havia se estabelecido, em 1855, na Rua do Senado, informando que

a especialidade da casa eram retratos, na certa um excelente negócio enquanto a

fotografia não chegava à maioridade: os traços de Sisson e dos outros desenhistas

da época eram mais rápidos que a o resultado da luz sobre o colódio úmido que

então era utilizado para se obter negativos fotográficos. Vários endereços surgem

nas pesquisas como lugares onde trabalhou e viveu, todos no centro da cidade.

Mas Sisson também usou a fotografia para transportá-la à pedra litográfica e

fazia isso através de traços firmes e fiéis à personalidade retratada, a foto servia de

guia para o transporte. Um de seus sócios foi justamente o fotógrafo Victor Frond, já

visitado aqui. Mas a união, ao que parece, não deu certo, pois Frond já tinha em

mente o álbum Brazil Pittoresco, feito efetivamente, mas em parceria com o francês

Ribeyrolles.

Logo depois de chegado, Sisson já produzia para as incipientes revistas da

época, como a L’Iride Italiana e o Brasil Illustrado, ambas impressas nas oficinas de

Paula Brito ou de Rensburg. Duas, entre outras, foram as grandes obras de Sisson:

o Álbum do Rio de Janeiro Moderno, com 12 cromolitografias, e sua inestimável

Galeria de Brasileiros Illustres, coleção em dois volumes com retrato e texto

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correspondente a cada um dos políticos e nomes proeminentes da administração

pública brasileira do segundo reinado.

No Álbum, Sisson produziu imagens de alguns logradouros do Rio de Janeiro

(ver capítulo 3) por volta de 1860, como o Jardim Botânico, o interior da igreja do

Santíssimo Sacramento, e a Ilha da Boa Viagem, em Niterói.

Sisson, Vista da Boa Viagem, litografia, 31,2X44,5cm. Álbum do Rio de Janeiro Moderno. Fonte: http://bndigital.bn

Seria difícil dizer que o breve colorido de algumas imagens tenha sido

resultado da impressão litográfica, ou se o desenho foi aquarelado depois de

impresso, prática, como vimos, comum em função da dificuldade de se reimprimir

em registro seguidamente sobre a mesma imagem. Afora a qualidade dos desenhos,

trata-se de documento dos mais importantes para o estudo da iconografia do Rio de

Janeiro em meados do século XIX. Com relação à estética e à composição, a

coleção mostra a mão fina do artista, que equilibra as proporções, a profundidade

das paisagens e a sensibilidade em captar a natureza de uma terra estrangeira para

ele. Com relação aos retratos da Galleria, sua mão era conhecida na fidelidade com

as personalidades da época:

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Sisson, 1861. Litografia. Galleria de Brasileiros Ilustres, 51X54 cm. Fonte: http://bndigital.bn.br

A Galleria é composta de 44 imagens litografadas de famosos, como a

imperatriz Teresa Cristina, o imperador Pedro II, o Barão de Mauá, o Marquês de

Paraná, o Visconde de Uruguai, o Marquês de Olinda e dezenas de outros, que hoje

dão nome a tantas ruas do Rio de Janeiro e do Brasil. A obra é de fôlego e coragem,

e o empreendimento deve ter sido arriscado caso não contasse com algum tipo de

subvenção oficial ou mesmo apoio financeiro dos retratados. Os traços de Sisson

foram responsáveis por imortalizar figuras do império brasileiro até hoje impressas

em livros colegiais para as aulas de História. É material de fino acabamento. Cada

retrato da Galleria é acompanhado de longo texto explicativo que reconstrói desde a

juventude a vida do homenageado. O autor dos textos, por sinal, é ninguém menos

que José de Alencar, escritor de tantos romances igualmente imortalizados na

literatura brasileira.

Embora atribuídas a Ângelo Agostini, as primeiras histórias em quadrinhos

publicadas no Brasil podem ter sido obra de Sébastien Sisson, conforme revela Luiz

Guilherme Sodré Teixeira em seu artigo O traço como texto: a história da charge no

Rio de Janeiro de 1860 a 1930. (Fundação Casa de Rui Barbosa, 2001). Agostini,

diz Sodré, publicou suas HQs por volta de 1869 em A Vida Fluminense, mas se

abstrairmos que as chamadas “reportagens visuais” desenhadas por ele para o

Diabo Coxo podem ser precursoras dos quadrinhos modernos, veremos que, já em

1864, em São Paulo, surgia claramente essa dinâmica modalidade de comunicação.

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A menção a Sébastien Sisson como primeiro do gênero deve-se, certamente, à

criação de personagens, critério que bem pode definir o que é e o que não é história

em quadrinhos. Nosso alsaciano desenhou e publicou, em 1855, “Namoro, quadros

ao vivo por S ..., o Cio.”, uma brincadeira de costumes em que o termo “quadros ao

vivo” bem caracteriza a intenção do artista em movimentar seu desenho através da

seriação. Em relação às HQs, é ainda Sodré quem estranha a ausência de critérios

mais claros para definir o surgimento do gênero - sem nacionalismo barato - em

terras brasileiras:

Podemos ir mais fundo ainda na pesquisa das origens históricas da charge que, entre nós, se confundem com a própria história das HQs: em 1855, (...) Sebastien Auguste Sisson desenha uma HQs... Antes dele, em 1847, apenas o suíço Rudolphe Töpfer criara algo semelhante no álbum Histoires en Stampes. Töpfer, entretanto, veicula suas histórias em pranchas avulsas – como o próprio nome indica, e como era costume na época – enquanto Sisson publica a sua na Brasil Ilustrado, uma Revista Ilustrada perfeitamente caracterizada como tal. Não é curioso que o suíço seja citado em livros sobre o assunto e Sisson permaneça esquecido, sobretudo, entre nós? Por que essa raiz comum e original, que reúne dois gêneros distintos numa mesma linguagem – charge e HQs –, permanece ignorada entre os especialistas no assunto? (SODRÉ, 2001, p.3)

Outra curiosa referência sobre Sisson é que sua Galleria inspirou uma das

jóias da crônica jornalística dos oitocentos, assinada por Machado de Assis: “O

velho Senado”, publicado na Revista Brasileira em junho de 1898. Ironicamente - e

dando o braço à acidez machadiana - no mesmo ano em que o Bruxo do Cosme

Velho publicava aquele artigo, desaparecia no Rio de Janeiro o brilhante retratista-

litógrafo Sébastien Auguste Sisson.

4.9 A arte e a escola de H. Fleiüss

Uma das maiores contribuições à história da reprodução da imagem no Brasil

tem outro nome estrangeiro como origem: Heinrich Fleiüss. Prussiano de Colônia

(ainda não havia ocorrido a unificação da Alemanha), Fleiüss nasceu em 1823,

chegando ao Brasil em 1858. Aquarelista de excelente mão, o jovem tinha estudado

Belas Artes em sua cidade natal, transferindo-se para Dusseldorf e Munique, onde

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conheceu o naturalista Karl Friederich Phillipe von Martius. Como se sabe, Von

Martius viera aos trópicos em 1817, integrante da comitiva da arquiduquesa

Leopoldina da Áustria, viagem que trouxera ao Brasil o artista Arnaud Julien Pallière

(1783-1862), cuja estada aqui é, igualmente, resumida no início deste capítulo.

Com o visitante, dois outros recém-chegados: seu irmão, Carl Fleiüss, e o

pintor-litógrafo Carl Linde. A origem artística e a curiosidade pelas técnicas de

reprodução, além da vontade de vencer, como fica provado ao longo de sua vida,

foram responsáveis pela chegada deles à corte do segundo reinado.

Fleiüss desembarcou no Paço Imperial, portando, além de palhetas e pincéis,

o seu vade-mecum, o livro Reise in brasilien (Viagem pelo Brasil), de Von Martius e

Johann Baptiste von Spix, um dos primeiros estudos de natureza botânica, zoológica

e antropológica sobre o Brasil no século XIX. Além do livro, o artista vinha com uma

carta de recomendação de seu autor para Pedro II, então com 33 anos de idade.

Tudo deu certo para ele, que, em 1859, foi convidado pelo Paço para assistir e

documentar o encerramento da Assembléia Geral do Império. Seu nome, a partir

daí, circulou na corte e ele decidiu morar no Rio, abrindo uma pequena firma, a Fleiüss, Irmão & Linde, cujo primeiro endereço era perto do Paço Imperial. No ano

seguinte era lançada a Semana Illustrada, revista de caricaturas e variedades que

fez história entre as publicações da época. A Semana, com efeito, saiu até 1876,

surpreendente e longa existência em comparação aos jornais e outras publicações

de seu tempo, muitas das quais não ultrapassavam a casa dos meses. De suas oito

páginas a revista programava quatro para as imagens e quatro para o texto, lógica

da produção gráfica antiga, que não permitia imprimir texto e imagem na mesma

página. Ainda assim, e pela dobragem do papel, essas páginas diferentes saíam

intercaladas, ou seja, uma para texto e outro para imagem, o que alternava

convenientemente a publicação.

Um dos pontos de destaque durante sua vida profissional em nosso país foi a

contribuição ao ensino das artes gráficas. Em 1861, o grupo teve a idéia de ensinar

a atividade a meninos da cidade. Pode ser que a decisão tivesse como fundo a

carência de mão de obra para tocar adiante o projeto da revista e de outros serviços

que seus proprietários já ofereciam, como retratos, pinturas a óleo, aquarela,

ilustrações de mapas, livros científicos, artísticos, etc. Mas a existência de uma

escola, como ficou conhecido o “Imperial Instituto Artístico” (o “Imperial” foi obtido

graças a serviços prestados a D. Pedro II), criado por eles, foi decisiva para o

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aperfeiçoamento de pequenos artistas e técnicos que já apareciam no Rio de

Janeiro. Conforme a historiadora Lucia Maria P. Guimarães, na Revista Eletrônica

ArtCultura (http://www.artcultura.inhis.ufu.br),

A escola profissional ministrava cursos regulares, com duração média de três anos, de litografia, de pintura a óleo e de aquarela, de tipografia, de fotografia e de xilografia, técnica de impressão que até então não se cultivava no Brasil. Os aprendizes pagavam módicas mensalidades durante o primeiro ano letivo, passando a receber remuneração pelos trabalhos executados, a partir do segundo ano. Dentre os inúmeros jovens que ali concluíram sua formação, vale lembrar o nome do tipógrafo João Henriques de Lima Barreto, pai do futuro escritor Lima Barreto. (GUIMARÃES, 2010)

O Instituto deu ótimos resultados, e no ano seguinte anunciava estar no prelo o

seu Almanak, profusamente ilustrado por artistas nacionais que abriam desenhos

em madeiras também nacionais. Entre as inúmeras obras produzidas pelo Instituto,

duas são destacadas como exemplos de beleza e dedicação, principalmente porque

feitas em madeira, técnica que permitia a revelação de grandes vocações artísticas.

A primeira delas foi justamente o Almanak, de 1864, com 63 vinhetas feitas em

madeira de topo pelos alunos da casa. A outra novidade, do ano seguinte, tinha

feições mais profissionais: a Historia Natural Popular dos Animaes, em fascículos

mensais que somavam, ao cabo, cem páginas e mais 40 estampas intercaladas,

com 133 figuras representando animais exóticos, alguns copiados ou reinterpretados

de gravuras estrangeiras. Conforme Ferreira,

Preguiças, 1865, xilogravura de alunos do Intituto Artístico Imperial, de Heinrich Fleiüss. Fonte: Imagem e Letra, p. 191

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São xilogravuras e litografias, algumas notáveis, infelizmente não assinadas, pois se o Imperial Instituto foi uma instituição de notável importância na história da xilogravura brasileira, parece que Fleiuss não gostava que se tivesse conhecimento dos nomes de seus alunos e colaboradores, ou também aí usava estereótipos importados e procurava evitar a sua identificação. (FERREIRA, 1994, p. 190)

Era extensa a folha de serviços prestados pelo Imperial Instituto ao governo de

Pedro II, de quem Fleiüss se aproximara por razões políticas, sendo por isto objeto

de crítica por parte de outros artistas, principalmente os republicanos mais

esquentados, entre eles, como veremos, Angelo Agostini, que também atacara e

agradara a monarquia.

Saíram de suas oficinas, além da Semana, a Carta Geral do Império, mapas,

roteiros, plantas hidrográficas, livros, dicionários, cartazes, e rótulos para diversos

produtos, além de ilustrações em cores, como 29 cromolitografias sobre a Estrada

de Ferro D. Pedro II. Os salões do Instituto eram frequentados pela elite e por

integrantes do governo imperial. Intelectuais, jornalistas e escritores, como Pinheiro

Guimarães, Joaquim Manuel de Macedo, Ernesto Cibrião, entre outros, eram figuras

comuns em saraus literários ali oferecidos. O Dr Semana e Moleque, personagens

desenhados por ele, eram populares na crítica de costumes.

Mas a vida de Henrich Fleiüss passaria a mudar nos anos seguintes

justamente em função de suas posições políticas e profissionais. Os primeiros

reveses vieram de uma forte concorrência com outras revistas e com alguns

empreendimentos que se estabeleciam no Rio de Janeiro, além, provavelmente, de

certa inveja de suas relações com o paço imperial. Ângelo Agostini, por exemplo, e

Cândido de Faria, que produziam O Mosquito, a Revista Ilustrada, e a Vida

Fluminense, eram alguns deles, que também o criticavam por questões ideológicas,

como sustenta o historiador Aristeu Elisandro Machado Lopes em seu artigo As

modas de Berlim: a guerra franco-prussiana nas ilustrações do periódico fluminense

Semana Illustrada, 1870-1871, (Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de

São Paulo). Para ele, a linha editorial conduzida pelo prussiano entrava em choque

com a crítica institucional que outros pensadores faziam à monarquia, isso o

distanciava aos poucos da preferência de muitos leitores. Em 1870, por exemplo,

começa a guerra franco-prussiana, vencida pelos últimos no ano seguinte. Enquanto

a influência francesa, determinante no século, indicava uma preferência para

Napoleão III, Fleiuss adotava visão distinta, fazendo clara propaganda em sua

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revista das posições de Guilherme I. Desenhos e charges eram publicados dando

conta de uma superioridade prussiana, sendo provável que tais atitudes tenham

irritado o próprio governo de Pedro II. Uma outra, e sutil razão, como lembra

Machado Lopes, pode ser creditada à estética, ou como Fleiuss incorporava a

representação em seus desenhos. A voga naquela época privilegiava o traço crítico,

contundente, ainda que fora de proporções e perspectiva. O prussiano, em seu rigor,

obedecia fielmente ao naturalismo germânico da caricatura, buscando nos traços

uma identidade real com o retratado e não a graça através de bem humorada

deformidade.

Heinrich Fleiüss, 1870. O rei da Prússia e seu cavalo. Semana Illustrada. Fonte: http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br

Em 1876, Fleiuss encerra a Semana Illustrada e tenta um passo maior, mas o

empreendimento dura pouco, até 1878. Era um projeto ambicioso a ser sustentado

por xilogravuras de grande tamanho, a maioria de origem externa e estereotipadas

fora do Brasil. Mesmo assim, a Illustração proclamava que várias delas seriam feitas

no Rio a partir de fotos e outros originais aqui produzidos. A empreitada, ao que

parece, foi corajosa demais, e Fleiüss - já sem o sócio Carl Linde, desaparecido, em

1873, e sem o irmão, em 1878 – tenta retomar a velha Semana dando-lhe uma

requentada, e óbvia, nomenclatura: Nova Semana Illustrada. Sem sucesso. Fleiüss

morre em 1882.

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4.1.1 Agostini, um lápis entre os séculos

A ilustração foi o diferencial para o sucesso das publicações durante a

segunda metade do século XIX. Artistas eram empregados com o objetivo de

entremear longos textos com imagens que estimulassem o interesse pelos fatos,

moda, crítica, humor, etc. Além disso, o analfabetismo quase absoluto na população

negra, e de 70% entre os brancos, favorecia os bons resultados com ilustrações.

Foi justamente nesse panorama que surgiu um dos maiores artistas gráficos

do país: Ângelo Agostini, cujo trabalho atravessou o século, até o surgimento das

modernas técnicas de reprodução em larga escala, que ele mesmo viveu. Agostini

nasceu em Piemonte, norte da Itália, em 1843, e chegou ao Rio por volta de 1860,

indo logo para São Paulo. Segundo Nelson Werneck Sodré (História da Imprensa no

Brasil), “chegou com uma pedra litográfica debaixo do braço, uma grande inclinação

para a pintura e incoercível sentimento de liberdade” (SODRÉ, 1983, p. 204).

Como primeira atividade, criou um pequeno jornal ilustrado, o próprio Agostini

deu-lhe nome: Diabo Coxo, que não passava de um semanário irregular de oito

páginas, extremamente crítico e satírico, feito em litografia. O cenário político, aliás,

não podia mais adequado: além do escravismo, o país amargava uma aristocracia

rural que dominava a política, indicando o que se devia fazer ou dizer. O pequeno

jornal durou cerca de um ano, mas já mostrava o traço decidido e ácido de seu

editor-ilustrador. Grandes desenhos panorâmicos, com paisagens e reportagens

visuais agradavam os leitores, que viam surgir no lápis e no esfuminho do recém

chegado um novo tipo de história feita através de sequências. Embora não tenha

sido o primeiro a usar este recurso, foi certamente Agostini o artista que inaugurou

completamente o gênero História em Quadrinhos na imprensa brasileira. O Diabo

Coxo não foi além de sua perna sã, sendo substituído por outra publicação ilustrada,

O Cabrião, que veio ao mundo semanalmente e com quatro páginas, já apoiado por

correntes liberais e republicanas de São Paulo.

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À esq. charge de Agostini, 1864, nO Diabo Coxo, em São Paulo. Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br À dir. Revista Ilustrada Vida Fluminense, maio de 1870, 25X35 cm. O estilo clássico de Fleiuss, no cabeçalho, e o crítico, de Agostini, na ilustração da capa. Fonte : http://bndigital.bn.br

O artista veio depois para o Rio, centro cultural, político e econômico do país,

e começou a trabalhar em outra publicação ilustrada, quatro páginas de texto e

quatro de imagens: O Arlequim. Agostini fez a capa e grande parte das ilustrações,

dominando uma técnica que se espalhava rapidamente como a mais eficiente e

barata para as inúmeras incursões editoriais que surgiam na corte. A grande maioria

durava pouco e este também seria o destino dO Arlequim, que sairia mais cinco

números para fechar por problemas financeiros e administrativos; substituiu-o um

novo título, Vida Fluminense, que tentava ressurgir do anterior. Essas revistas

pertenciam, como visto, ao alemão Henrique Fleuiss. Gilberto Maringoni de Oliveira,

em tese sobre Ângelo Agostini, para doutoramento em História Social (USP, 2006),

diz que:

A curta carreira de Agostini na Vida Fluminense sobressai-se por ressaltar um acelerado amadurecimento estético. Seus desenhos estão mais seguros e as temáticas e os enquadramentos, mais elaborados. O artista tem 26 anos de idade e seu talento destaca-se na cena carioca, na qual competentes caricaturistas, como Luigi Borgomainnerio e Flumens Junior, entre outros, atuavam em várias publicações litografadas. A imprensa ilustrada estabelecera-se quase

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como uma instituição da corte e das principais capitais. É também nA Vida Fluminense que Agostini dá início, de modo sistemático, à produção de histórias em quadrinhos, gênero narrativo praticamente inédito à época. (MARINGONI, 2006, p. 85)

A nova incursão do italiano, ao deixar O Arlequim, foi O Mosquito, no qual

pareceu ter tido participação financeira. O Mosquito exibiu o artista piomentês em

plena maturidade, parodiando outros nomes importantes da arte, como os pintores

Pedro Américo e Vitor Meireles, além de produzir inesquecíveis histórias em

quadrinhos. Sob o aspecto crítico em sua obra, é importante lembrar que, através da

caricatura, Agostini conseguiu difundir suas posições a respeito do ensino de arte no

Brasil do segundo reinado, ao mesmo tempo em que atacava a orientação artística

da época, voltada na direção oficial. Além disso, o artista questionava a inexistência

de museus e outras escolas, assim como a falta de espaço para exposições de

novos artistas nacionais e estrangeiros. Como lembra a professora Rosangela de

Jesus Silva, em seu Os salões caricaturais de Ângelo Agostini. Algo que também marcou sua produção, a partir de 1872, são os comentários ilustrados sobre as Exposições de Belas Artes (...). O salão caricatural foi um gênero artístico amplamente desenvolvido na França, ou melhor, uma particularidade parisiense, cujas origens estão no século XVIII. Naquele momento, algumas publicações utilizaram ironia e humor em detrimento da crítica séria, para comentar as obras expostas nos salões oficiais parisienses. (SILVA, 2006)

As experiências vividas pelo intrépido italiano não parariam por aí. Em 1875,

ele deixou a publicação, que recebeu outro grande artista estrangeiro vindo de

Portugal, Rafael Bordalo Pinheiro, que o substituía com qualidade. O Brasil

começava a viver um momento político mais conturbado, e os fatos alteravam

algumas práticas reinantes, atingindo o império como um pêndulo irregular, que ora

favorecia as recentes idéias republicanas, ora a velha figura paterna do imperador.

Em janeiro de 1876, refletindo essas contradições, saía o primeiro número da

Revista Ilustrada, a grande publicação que ligava definitivamente o nome de Agostini

ao panorama gráfico do século XIX e que duraria vinte e dois anos. É a fase em que

o italiano mais produziu, contando-se cerca de duas mil páginas desenhadas

principalmente em litografia. O artista transformava-se num autêntico fotógrafo do

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seu tempo, trazendo para a pedra, imediatamente, as imagens do que teria ocorrido,

de fato, e que merecessem registro. Os traços de Agostini cumpriam um papel

oportuno, antecipando-se, por assim dizer, à demora que as imagens fotográficas

impressas impunham às publicações, quase todas tipográficas. Este impedimento

técnico iria revelar o artista em sua total capacidade produtiva, interpretando e

ilustrando o que só poderia ser visto pelos traços de seu lápis, e ainda não pela

objetiva das câmeras. Talvez esteja aqui um dos pontos capitais do seu trabalho,

que dava outra dimensão ao artista gráfico no desenvolvimento dos meios de

comunicação.

Tanto Agostini como seus contemporâneos dedicados a este mister veriam

logo o galopante surgimento de outras técnicas - a fotografia impressa, a rapidez

das máquinas rotativas e a reprodução das cores - a sufocar práticas até então

consideradas modernas. Ele mesmo, Agostini, foi uma vitima dos novos tempos,

embora a sua Revista Ilustrada fosse uma iniciativa de sucesso. Tinha no começo

oito páginas, totalmente litografadas, e circulou assim durante muito tempo, até

1890, quando conheceu finalmente o clichê tipográfico.

Falar em Agostini é também citar seu sócio e companheiro, Paulo Robin –

originariamente Paul Théodore Robin – vindo da França por volta de 1854 e grande

litógrafo, tentando na corte arranjar-se com a fotografia. Robin teve, pelo menos, três

endereços no Rio e várias sociedades anteriores, uma delas com o pintor Alfred

Martinet, outra com Henrique Klümb, conhecido fotógrafo que trabalhou com

Leuzinger. Em 1872, o nome Robin volta a aparecer, desta vez em saudável

parceria com Agostini.

Com as recentes conquistas da área gráfica, a última revista do italiano - Don

Quixote - já nasce tecnicamente defasada. Mesmo assim ele insiste na fórmula que

tinha dado certo por tão longo tempo, esquecendo-se que até mesmo o preço já se

tornava caro em relação ao de outras publicações, impressas com equipamentos

mais industriais.

Agostini produziu desenhos sobre a guerra de Canudos (1896-1897) e críticas

aos revoltosos de Antonio Conselheiro, tudo feito no melhor traço artístico entre o

bico de pena, o lápis e o esfuminho. Dois anos depois de aberto, Don Quixote sofre

reveses financeiros, e a explicação surgia como um anátema: era um dos poucos

periódicos ainda feitos com a litografia. A seguir, a capa de Don Quixote de abril de

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1902, ainda em lito, “fotografando” o incêndio de um bonde elétrico no Largo da

Carioca:

Surgem, a poucos anos da virada do século, A Cigarra e A Bruxa, duas

concorrentes bem mais elegantes e finamente diagramadas, uma delas em cores. O

jornal de Agostini já fazia jus ao quixotesco nome; circula irregularmente e entra no

século XX mal das pernas, não indo além de 1903. Os padrões estéticos são

diversos, quando invadem a imprensa o grafismo art noveau, o art decó, o design

gráfico alemão e outros matizes estéticos. Em 1904, o piomentês colabora com

desenhos para a Gazeta de Notícias e para a revista Renascença. Vive a esta altura

com uma filha, casada com o médico Álvaro Alvim. Em 1905, Agostini desenha o

cabeçalho de uma nova revista infantil, O tico-tico, que traz histórias em quadrinhos,

charadas, advinhas e uma série de brincadeiras. Mas o artista, velho para sua

época, só colabora eventualmente em suas páginas. Seu traço ainda era firme

pouco antes de janeiro de 1910, quando morre do coração em sua casa, no bairro

de Botafogo.

Dom Quixote, abril de 1902. Ilustração de Ângelo Agostini sobre um bonde incendiado por populares na Carioca. Fonte: www.jornalcopacabana.com.br

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Capítulo 5

Gráficos, ilustradores, ateliês e editoras Endereços e movimentação no Rio antigo

A atividade gráfica em todas as suas faces, tanto na produção do texto como

na da imagem, incluindo aí as de natureza artística e técnica – como livros, mapas,

impressos gerais ou simples papéis administrativos - mostra também o estágio

cultural que uma sociedade vai alcançando. A existência de casas editoras, livrarias

e oficinas gráficas, em certo período da recente história brasileira, seguiu ao lado de

outras conquistas, que iam abrindo caminho para a definitiva inclusão do país no

panorama geral das nações modernas.

Neste aspecto, o caso brasileiro é instigante na razão do grande

descompasso entre o estágio em que se encontrava a Europa, principalmente, e as

recentes nações da América Espanhola e Portuguesa. No Brasil pós-Independência,

o relógio teve de andar depressa para reduzir o continental atraso da nossa cultura

em relação ao que o mundo já conhecia e praticava nos principais segmentos da

vida social, na economia, na administração pública, na educação e nas artes.

No caso do trabalho gráfico, que, como vimos, não poderia ser implementado

sem a mão do artista, sua localização no Rio de Janeiro do século XIX revela um

curioso movimento de profissionais deste ramo por ruas e logradouros de sua área

central. Este tráfego, por um lado, confirma a importância de pequenas regiões –

como a da Rua do Ouvidor e arredores – como pólos de concentração de artistas,

artesãos e de oficinas que iam surgindo a partir do início dos oitocentos; por outro,

mostra novos endereços que nasciam à medida que a demanda revelava

oportunidades. E entre elas não havia apenas a necessidade de artefatos ordinários

para o dia a dia - das pessoas ou da administração - mas uma carência de natureza

estética e cultural cujas múltiplas especificidades iriam forjar um modo de viver que

seria típico até os dias de hoje. A mesma demanda traria ao Rio de Janeiro artistas

de dentro e de fora do país que, encantados pela beleza natural, pela aventura, ou

pelo dinheiro, trabalhariam também na construção de seu imaginário social e de sua

autoestima. Por outro lado, o nome de vários logradouros da cidade foram trocados

a partir do final do século XIX, uma providência oficial para que o Rio não parecesse

aos olhos do mundo um simples arraial com suas “Rua da Vala”, “do Sabão”, “do

Cano”, “de trás do Hospício”, “dos Pescadores”, “do Piolho”, etc.

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A proximidade com o Paço Imperial foi, com certeza, forte critério para a

localização de inúmeras oficinas e ateliês prestadores de serviço desde a chegada

de D. João VI. Mas alguns prédios públicos já existiam, sendo rapidamente

adaptados para outras funções necessárias à existência da corte. Isso aconteceu

com a Biblioteca Real, que inicialmente foi instalada no Hospital da Ordem do Carmo

(1810), depois na Rua do Passeio (1858), e, finalmente, Nacional, em seu endereço

atual, na Avenida Rio Branco (1910). A Impressão Régia esteve na Rua do Passeio

e na dos Barbonos (Evaristo da Veiga) com Marrecas; antes da metade do século

abrigou-se na Academia Imperial de Belas Artes (Avenida Passos), depois na

Cadeia Velha (Palácio Tiradentes), e, após 1874, na Rua da Guarda Velha (Treze de

Maio). Seu ultimo endereço foi na Avenida Rodrigues Alves antes de ir para Brasília,

no século passado.

Outras instituições ligadas à produção da imagem ou a trabalhos artísticos e

editoriais tiveram o centro da cidade como sede nas primeiras décadas dos

oitocentos, algumas mencionadas neste trabalho. É o caso do Arquivo Militar, de

onde saíam mapas e outras imagens necessárias à vida e à defesa da colônia e do

império. O Arquivo ficava no Largo de São Francisco, onde hoje está instalado o

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ (IFCS). Por lá passaram Arnaud

Pallière e Joanh Jacob Steinmann, entre outros, que iniciaram aqui a litografia. O

Liceu de Artes e Ofícios (inaugurado em 1856) e que ensinou também Artes

Gráficas, ajudando a formar muitos de nossos artistas, existia primeiramente na

Antiga Sé (Igreja do Carmo, Praça XV), mudando-se para outros logradouros, entre

eles a mesma Rua da Guarda Velha e Avenida Central (Rio Branco). O velho Liceu,

que realizou exposições de grandes artistas gráficos como Ângelo Agostini e Belmiro

de Almeida, está hoje na Praça Onze, e faz parte de uma faculdade particular.

A Rua do Ouvidor, meca da maioria dos artistas gráficos, editores e

impressores antigos, teve a numeração dos prédios alterada várias vezes, não

sendo possível precisar vários de seus endereços famosos. A proximidade com

artistas e artesãos que se estabeleciam nas redondezas desde o século anterior

possibilitou uma reveladora troca de experiências entre gráficos e outros

profissionais que trabalhavam o metal para enfeites, medalhas, jóias, etc. Não por

acaso, ocupavam estes a Rua dos Ourives (atual Miguel Couto), e sua mão de obra

foi fundamental para a “abrição” de chapas, realização de águas-fortes e outros

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trabalhos de impressão. Sobre a Rua dos Ourives, por exemplo, ocuparam suas

lojas os mesmos que trabalhavama, além do ouro, outras preciosidades retiradas do

país, principalmente das Minas Gerais. Eram vistos com desconfiança pelos vice-reis

do século anterior pois, sabidamente, manipulavam e mercadejavam riquezas sem o

conhecimento das autoridades.

Estiveram na Ouvidor uma ou mais vezes, entre outros, Eduard Rivière,

Guilherme Briggs, Pierre Plancher, Baptiste Louis Garnier, Pierre Laforge, Victor

Larè e Peter Ludwig, Sebastien Auguste Sisson, e Georges Leuzinger, a maioria

destes com breve pefil no capitulo 4. Na dos Latoeiros (Gonçalves Dias) também

passaram nomes como Paul Theodore Robin, Louis Buvelot, Alfred Martinet, Jean

Baptiste Lombaerts, Eduard e Henrich Laemmert, e Briggs & Rivière. A Rua do

Hospício e o Beco do Fisco (Buenos Aires, Beco das Flores) foram, igualmente,

endereço de vários artistas e prelos: estiveram ali Heaton & Rensburg, que faziam

sociedade entre si para depois se juntarem a novas parcerias. Briggs e Robin foram

os que mais trocaram de sócios, chegando a ocupar alguns endereços por três

diferentes ocasiões. Estampeiros, desenhistas e litógrafos se juntaram neste ponto

do centro ao que parece pela proximidade com outros artistas e impressores.

Na maior rua da região, a Direita (Primeiro de Março), estabeleceu-se outro

nome famoso nas artes gráficas do Brasil: Heinrich Fleiüss, que ocupava o segundo

andar do sobrado 49, ali fundando o seu Instituto Artístico, que ganharia foros de

Imperial. O mesmo Fleiüss mudaria duas vezes de endereço, para o Largo de São

Francisco e depois, em 1874, para a Rua da Ajuda, na atual Cinelândia. Lá também

viveram e produziram Robin, Martinet e Boulanger. Esta região, próxima ao

convento da Ajuda (demolido em 1920 para dar lugar ao Palácio Pedro Ernesto), foi,

aliás, endereço de muitos ateliês litográficos, situando-se entre a Impressão Régia

(Rua dos Barbonos, depois Evaristo da Veiga) e a Rua São José. O local era

conhecido também como Chácara da Floresta, antes da construção da Avenida

Central.

Outros logradouros que abrigaram artistas gráficos, aprendizes e impressores

foram a Rua do Cano (Sete de Setembro), onde imperou Leuzinger e sua grande

loja, e Hercule Florence, desenhista e fotógrafo que antes de Daguerre já praticava a

fotografia. Na Rua da Vala (Uruguaiana) trabalharam, entre outros, Briggs & Rivière.

Na Rua do Sacramento (Avenida Passos), ficava a Escola Imperial de Belas Artes;

na do Lavradio, a oficina dos Laemmert (o Almanak), e novamente, Leuzinger; no

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Campo dos Ciganos (Praça da Constituição, depois Tiradentes), achava-se a grande

loja de Paula Brito; na da Cadeia Velha (Assembléia) esteve Agostini. A Rua do

Senado foi o primeiro endereço, dos quatro, de Sisson; e o Beco da Moeda (Azeredo

Coutinho, na Praça Onze), ficava ao lado da Casa da Moeda, lugar de muitos

abridores em metal que prestavam serviços para a instituição. Na Rua dos

Pescadores (Visconde de Inhaúma), estiveram, também, Ludwig e Briggs; na das

Violas (Teófilo Otoni), outra concentração de gravadores. Na Rua Santo Antonio

(próximo à Carioca) e Misericórdia (Praça Marechal Âncora), passaram Paul Robin e

outros gráficos.

5.1 O centro e seus artistas gráficos

O mapa a seguir – que mostra uma visão artística do centro carioca em 1965

– foi escolhido por sua clareza e ponto de observação. É um dos únicos, do acervo

da Biblioteca Nacional, que mostra a cidade de excepcional ângulo para as

localizações pertinentes a este trabalho (a partir do Paço, provável altitude de 300

metros, estendendo-se na direção do Campo de Santana). Além disso, sua

execução data de um tempo em que os edifícios ainda deixavam entrever com maior

clareza os logradouros dessa porção urbana do Rio de Janeiro, permitindo, também,

que o leitor “se localize”, juntamente com as oficinas em questão. Outras cartas,

algumas de época – como a impressa por Heaton & Rensburg, em 1845 – foram

preteridas apenas por serem de natureza técnica e precisarem de interpretações

mais demoradas. Para a localização de nomes citados neste trabalho foi

considerada a variedade de logradouros e de datas em que lá estiveram, uma vez

que muitos ocuparam diferentes endereços em momentos também variados. Evitou-

se, assim, a confusão visual que certamente haveria com uma profusão de placas

sobre o mapa original. A imagem Vista artística do centro da cidade de São

Sebastião do Rio de Janeiro (http://bndigital.bn) sofreu, além disso, pequenos cortes

e alterações do autor, que também inseriu as tabuletas com a antiga e a atual

nomenclatura dos logradouros.

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Conclusão

Arte e Artes Gráficas encontram-se em quase todos os lugares para onde

olhamos. Para que quantificássemos neste trabalho o que uma faz parte da outra, foi

preciso ver as duas coisas de modo descompromissado. A idéia de Arte se dilui em

ambas as matrizes. “Vemos” o original espelhado em sua reprodução, muito embora

não estejamos de frente para ele, a confirmar uma aura e uma emoção cujas

intensidades dependem de passarmos pelo museu, pelo ateliê ou pela oficina.

O modo como vemos a arte é resultado da história e de nossas experiências

culturais. Mudanças que ocorreram nas artes de modo universal atingiram, aqui, o

interior de antigas oficinas gráficas, cujos métodos e processos recebiam a todo

instante o impacto de novos procedimentos e valores. No tempo em questão,

imagens e textos não podiam chegar às pessoas sem a mão intermediária de

artistas, que criavam ou traduziam - em ferro, madeira ou pedra - a imaginação e o

sentimento dos autores em direção ao público. Nas primeiras décadas do século

XIX, não tínhamos tradição em produzir imagens impressas. Conhecer ou imaginar

histórias e fatos ficava por conta da tradição oral ou através dos livros importados.

Gravuras, quase sempre européias e distantes de nossa realidade, ajudavam a

construir um sonho diferente, que mesclava a traços nativos com os de uma

civilização imaginada. Importávamos não apenas o papel e a tinta, mas

principalmente uma cultura inteira, uma transfusão oceânica que nos fazia, por

exemplo, andar e falar à francesa - ou à inglesa - em um escaldante verão do Rio de

Janeiro oitocentista.

A atividade gráfica, rebocada a princípio por artistas estrangeiros e depois

por seus aprendizes aqui nascidos, é sabidamente um absoluto fator de mudança:

com ela, comparamos idéias, mudamos convicções e aprendemos. Através das

imagens - que nos mostram gente, paisagens e arte - ajustamos o conhecimento e a

sensibilidade; gravamos no espírito os traços e as cores do mundo. No caso das

imagens, razão maior do presente trabalho, o sacrifício era grande em vista de

quase não existir mão de obra por aqui. As primeiras paisagens brasileiras

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impressas no Rio saíram também dos prelos do Arquivo Militar, no Largo de São

Francisco, pouco depois de 1808. Arnaud Julien Pallière e mais tarde Johann

Jacob Steinmann, que haviam conhecido a litografia na França, transferiram para o

papel imagens urbanas, plantas militares de defesa, e de infraestrutura. Mas eram

pintores, antes de tudo, e seus desenhos não poderiam ser apenas esquemáticos. A

corte portuguesa, também, tinha de formar profissionais no Brasil, além de carecer,

ela mesma, de registros, retratos e imagens palacianas que referendassem seu

poder e grandiosidade. Outros visitantes foram chegando com seus apetrechos,

importando-os ou fazendo-os por aqui, uma vez que a atividade gráfica crescia na

razão inversa de sua antiga e proposital imobilidade.

A Missão Francesa, cujas principais estrelas partiram cedo, deixou, contudo,

uma importante escola de artes e ofícios que acabou vingando e produzindo

talentos, inclusive artistas gráficos. Não foi propósito concentrarmo-nos na Missão,

cuja permanência no Brasil é apenas transversal para este trabalho. No aspecto de

mercado, a demanda crescente por produtos de natureza gráfica, como livros,

álbuns, jornais e revistas, fez surgirem artistas e artesãos, que criavam meios e

modos de acompanhar o que se passava no mundo. A meteórica carência de

queimar etapas na direção do progresso – negado ao Brasil durante quatro séculos

– atraiu gente de todos os matizes profissionais, entre eles artistas gráficos que

forneciam, com natural atraso, os retratos e as vistas de um país que bracejava por

ver-se refletido - em imagem e letra de forma - nesses admiráveis espelhos de

papel.

O Rio, sua gente e suas paisagens, passou inteiro pelo lápis, pelas tintas e

pelos prelos de Briggs, Rivière, Martinet, Rensburg, Paula Brito e outros que aqui

vimos. Mais do que simples registros gráficos, o que ficou imortalizado por eles

foram momentos de uma cultura que se afirmava. Antes da fotografia, ou convivendo

com ela durante décadas, a produção desses artistas conseguiu ser multiplicada e

chegar às mãos de um público que se tornava curioso e exigente. Aos poucos, à

medida que os meios de reprodução desembarcavam na maioridade do século XX,

esses impressos passaram a ser objeto de estima para depois se transformarem em

raridades.

Enfim, em verdadeiros originais.

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