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UNIVERSIDADE GAMA FILHO VICE-REITORIA ACADÊMICA COORDENAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E ATIVIDADES COMPLEMENTARES CURSO DE MESTRADO EM DIREITO, ESTADO E CIDADANIA O DIREITO DE SUPERFÍCIE NO CÓDIGO CIVIL E NO ESTATUTO DA CIDADE E A SUA FUNÇÃO SOCIAL Mauro Luiz Bento Rio de Janeiro 2006

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UNIVERSIDADE GAMA FILHO

VICE-REITORIA ACADÊMICA

COORDENAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E

ATIVIDADES COMPLEMENTARES

CURSO DE MESTRADO EM DIREITO, ESTADO E CIDADANIA

O DIREITO DE SUPERFÍCIE NO CÓDIGO CIVIL E NO ESTATUTO DA CIDADE E A SUA FUNÇÃO SOCIAL

Mauro Luiz Bento

Rio de Janeiro 2006

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UNIVERSIDADE GAMA FILHO

VICE-REITORIA ACADÊMICA

COORDENAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E

ATIVIDADES COMPLEMENTARES

CURSO DE MESTRADO EM DIREITO, ESTADO E CIDADANIA

O DIREITO DE SUPERFÍCIE NO CÓDIGO CIVIL E NO ESTATUTO DA CIDADE E A SUA FUNÇÃO SOCIAL

Dissertação de Mestrado apresentada à Coordenação de Pós-Graduação e Atividades Complementares da Universidade Gama Filho-UGF como requisito parcial para conclusão do Curso de Mestrado em Direito, Estado e Cidadania. Mauro Luiz Bento Professor orientador: Ricardo Pereira Lira

Rio de Janeiro 2006

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Verso da 2ª folha O (A) autor (a), abaixo assinado(a), autoriza as Bibliotecas da Universidade Gama Filho a reproduzir este trabalho para fins acadêmicos, de acordo com as determinações da legislação sobre direito autoral, n(s) seguintes(s) formatos(s) ( X ) Fotocópia (X ) Meio digital Assinatura do autor:__________________________________________________________

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Aluno: Mauro Luiz Bento Matrícula: 20042950031

O Direito de superfície no novo Código Civil e sua função social

Trabalho de conclusão de Curso apresentado à Coordenação de Pós-Graduação da

Universidade Gama Filho como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre.

AVALIAÇÃO

1. CONTEÚDO

Grau:_____

2. FORMA

Grau:______

3. GRAU FINAL:______

AVALIADO POR

Prof. Ricardo Pereira Lira ________________________

Prof. Guilherme Calmon ________________________

Profa. Rosângela Lunardelli Cavalazzi ________________________

Rio de Janeiro, 22 de novembro de 2006.

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A minha esposa Edna e a meus filhos Ramon, Rafael e Raul, por terem acreditado no meu sonho.

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Manifesto, nesta página, meus agradecimentos ao Prof. Ricardo Pereira Lira pela orientação efetiva que contribuiu para o êxito do trabalho, aos funcionários das bibliotecas da PUC do Rio de Janeiro e da UERJ, às Secretárias da Coordenação de Pós-graduação da Universidade Gama Filho, Neuza, Fábiana e Adriana, bem como ao colega de magistério, Prof. José Maria Feres, pelo seu empenho em trazer o curso de Mestrado da UGF a Barbacena. Agradeço também ao Prof. Ingo Wolfgang Sarlet, da PUC do Rio Grande Sul, pelo envio de material de pesquisa e aos juízes Mauro Francisco Pittelli, Liliane Rossi dos Santos Oliveira, Joaquim Martins Gamonal e Maria Aparecida Consentino pelo incentivo.

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RESUMO

A opção pelo tema em estudo deve-se, principalmente, ao fato de que sobre o

instituto da superfície existem poucos trabalhos de pesquisa e por considerá-lo um tema

atraente, juntamente com o da função social da propriedade, reinserida na nova ordem

constitucional por força do artigo 5º, inciso XXIII da Constituição Federal de 1988. O

problema a ser enfrentado com a pesquisa refere-se à questão do crescimento desordenado

dos grandes centros urbanos, em razão do êxodo rural provocado pela saída das pessoas

do campo para as cidades em busca de melhores condições de vida. Como conseqüência,

houve um crescimento desordenado das cidades e conseqüente aumento da população

vivendo em condições degradantes em razão do surgimento das favelas, mocambos,

cortiços, palafitas e ante a omissão do Estado em criar políticas públicas de

implementação do direito à moradia garantido no artigo 6º da Constituição Federal de

1998, dentre o rol dos direitos sociais. Buscou-se no direito de superfície instrumento

jurídico hábil a viabilizar o direito à moradia, efetivando-se alguns princípios

constitucionais, como o da dignidade da pessoa humana e o da função social da

propriedade, solucionando-se o problema da falta de moradia e melhorando as condições

das existentes. Na parte introdutória, buscou-se justificar a escolha do tema, e, no

primeiro capítulo, traçou-se o perfil histórico do instituto da superfície, onde fez-se uma

abordagem do direito de propriedade no Brasil, desde sua colonização por Portugal, até o

surgimento de nossa primeira codificação civil, ocasião em que optou-se por cuidar do

instituto da superfície, abordando o tema sob o ponto de vista do direito moderno, fazendo

estudo comparado do instituto da superfície no direito germânico, italiano, francês, inglês,

espanhol, chinês, russo e argentino e, por fim, analisou-se o instituto sob o ponto de vista

do direito pátrio. A função social da cidade e da propriedade urbana teve atenção especial,

sendo objeto de especulação o tema referente à importância da regularização fundiária,

onde propô-se a adoção do direito de superfície para solução do problema da escassez de

moradia, regularização da propriedade irregular e sua titulação, desde que no contrato

fosse prevista cláusula de opção de compra ao final da contratação em favor do

superficiário. Por fim, o instituto da superfície foi enfocado sob o prisma do Estatuto da

Cidade, como instrumento de regularização fundiária das favelas e também como

instrumento de pacificação de conflitos ligados ao parcelamento desordenado do solo com

vistas a melhores condições de vida da pessoas que habitam as periferias das grandes

cidades, implementando-se o direito social à moradia digna.

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RIASSUNTO

La scelta per il tema dello studio si deve, principalmente, al fatto de sulla

proprietà superficiaria ci sono pochi lavori di ricerchi e per considerarla un tema

interessante insieme alla funzione sociale della proprietà introdotta sulla nuova ordine

constituzionale per força dell’articolo 5º, inciso XXIII della Costituzione Federale del

1988. Il problema ad essere affrontato attraverso la ricerca si referisce alla questione

dello sviluppo disordinato dei grandi centri urbani, di fronte all’esodo rurale provocato

della migrazione campesina per la città in cerca di migliore condizioni di vita. Come

effetto di questo fenomeno e accorso negli ultimi anni lo sviluppo disordinato delle città

e di conseguenza l’aumento della populazione che vive in condizioni degradanti a causa

della sorta bassofondi, capanne, palifitte e davanti all’ommissione dello Stato in creare

delle politiche pubbliche d’incrementazione del diritto all’abitazione garantita

nell’articolo 6º della Costituzione Federale del 1998, dentro il ruolo dei diritti socioali. Si

sono cercati nel diritto dela superfície (nella proprietà superficiaria) lo strumento giuridico

abile a viabilizzare il diritto all’abitazione, effetivandosi alcuni principi castituzionali

come della dignità della persona umana e quello della funzione sociale della proprietà,

risolvendosi il problema della mancanza d’abitazione e migliorando le condizioni già

aventi. Nella parte introduttoria si è cercato di giustificare la scelta del tema ed al primo

capitolo abbiamo tratto il profilo storico della proprietà superficiaria dove approffittiamo

l’oportunità per aver cura del diritto del privato (della proprietà) in Brasile fin dalla sua

colonizzazione da Portogallo fino alla nascita della nostra prima codificazione civile,

occasione in cui abbiamo curato alla proprietà superficiaria parlando del tema sull’ottica

del diritto moderno, passando per il diritto germanico, italiano, francese, inglese,

spagnolo, cinese, russo e argentino e, alla fine, osserviamo la proprietà sul punto di vista

del patrio diritto. La funzione sociale della città e quella della proprietà urbana ha avuto

uma speciale attenzione, essendo oggetto della nostra indagine il tema riguardante

dell’importanza della regolarizzazione fondiaria, dove abbiamo proposto l’adozione del

diritto di superfície per la soluzione del problema della mancanza d’abitazione,

regolarizzazine della proprietà irregolare e la sua titolazione, finchè nel contratto sià

prevista clausola di opzione di compra alla fine della contrattazione a favore del

superficiario. Dunque l’stituto della superfície è stata vista sotto il l’angolo dello Statutto

della Città come strumento di regolarizzazione fondiaria delle bassifondi ed anche come

mezzo di pacificare dei confliti legatti alla particella disordinata del suolo, con lo scopo

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d’aver migliori condizioni di vita delle persone che abitano nei dintorni delle grandi

città, incrementandosi il diritto sociale ad uma degna abitazione.

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SUMÁRIO

DEDICATÓRIA .......................................................................................................03

AGRADECIMENTOS .............................................................................................04

RESUMO ..................................................................................................................05

RIASSUNTO ............................................................................................................06

1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................11

2. NOÇÕES HISTÓRICAS DO DIREITO DE SUPERFÍCIE ...................................14

2.1. Direito de propriedade ......................................................................................14

2.2. Direito de propriedade no Brasil ......................................................................20

2.3. Lei de Terras e a expansão da agricultura no Brasil: a absolutização do

direito de propriedade no Brasil ..................................................................................24

2.4 Noções históricas do direito de superfície ........................................................31

2.4.1 A superfície no direito romano ..................................................................31

2.4.2. O princípio superfícies solo cedit e a evolução do Direito de Superfície ..37

2.4.3. A superfície no Direito Intermédio ............................................................38

2.4.4. O instituto da superfície no direito moderno ....................................................40

2.4.4.1. direito germânico .................................................................................41

2.4.4.2. direito italiano ......................................................................................43

2.4.4.3. direito francês ......................................................................................47

2.4.4.4. direito inglês ........................................................................................49

2.4.4.5. direito espanhol ....................................................................................51

2.2.4.6. direito chinês ........................................................................................54

2.4.4.7. direito russo ..........................................................................................54

2.4.4.8. direito argentino ...................................................................................55

3. O DIREITO DE SUPERFÍCIE NO BRASIL ..........................................................57

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3.1. Considerações iniciais .......................................................................................57

3.2. Período Colonial (Direito Português e Brasileiro) .................................................57

3.3. O Direito de superfície no Brasil .............................................................................60

3.4. Movimento de reforma do Código Civil de 1916 ...................................................67

3.5. O novo Código Civil e o direito de superfície .......................................................70

4. A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE ............................................................72

4.1. Noções introdutórias .........................................................................................72

4.2. O Princípio da socialidade no novo Código Civil .................................................76

4.3. A função social .........................................................................................................77

4.4. Função social da propriedade ..................................................................................83

5. FUNÇÃO SOCIAL DA CIDADE E DA PROPRIEDADE URBANA ....................86

5.1. Noções gerais .....................................................................................................86

5.2. O direito de propriedade na Constituição de 1988 .................................................88

5.3. O direito à moradia como direito humano fundamental ......................................91

5.4. A função social da propriedade e da cidade ............................................................99

5.5. Formação da propriedade urbana no Brasil ........................................................102

5.6. Importância da regularização fundiária ...............................................................105

5.7. Direito à moradia na Constituição Federal de 1988 .............................................107

6. O DIREITO DE SUPERFÍCIE NO ORDENAMENTO JURÍDICO.....................113

6.1. Noções gerais e natureza jurídica ...................................................................113

6.1.1 Noções gerais ...................................................................................................113

6.1.2. Natureza jurídica do direito de superfície .......................................................115

6.2. Elementos do direito de superfície ........................................................................126

6.3. O Direito de superfície no novo Código Civil Brasileiro .....................................128

6.4. O Direito de superfície no novo Código Civil e a sua função social ...................133

6.5. O Direito de superfície no Estatuto da Cidade ....................................................136

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6.6. O direito de superfície como instrumento de regularização fundiária das favelas e

populações carentes .............................................................................................................139

7. CONCLUSÃO .................................................................................................................141

REFERÊNCIAS ...................................................................................................................155

APÊNDICE........................................................................................................................... 160

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1. INTRODUÇÃO

O objetivo do presente estudo é tratar do direito de propriedade, mais

especificamente, do direito de superfície com enfoque na sua função social frente às

inovações introduzidas no ordenamento jurídico pátrio pelo novo Código Civil, instituído

pela Lei nº 10.406, de 1º de janeiro de 2002.

Além de uma análise histórica do instituto da superfície, faz-se algumas incursões

acerca do direito de propriedade e sua evolução no tempo, desde o seu caráter coletivo,

familiar e individual, com os atributos do jus utendi, jus fruendi e jus abutendi que

influenciaram o direito de propriedade no Brasil.

Aborda-se a propriedade quiritária do sistema romano de propriedade, o

momento histórico em que se desenvolveu o ius in re aliena (direito sobre coisa alheia)

para então cuidar do momento histórico no qual surgiu o instituto da superfície tal com os

contornos atuais.

Analisa-se o direito de propriedade no Brasil, desde a fase colonial, com o

sistema de Sesmarias, passando pelas Ordenações do Reino de Portugal, pela Lei de

Terras de 1850, além da realização de um estudo comparativo com sistemas de

propriedades de outros países, quando então passa-se a detida análise do processo de

codificação do ordenamento jurídico civil, onde nos debates que o antecederam

verificar-se-á que a discussão em torno do instituto da superfície esteve presente.

Como o objetivo da pesquisa consiste no tratamento do instituto da superfície no

Código Civil e sua função social, frente às demandas por espaço ocorrentes nos grandes

aglomerados urbanos, numa tentativa de equacionar os problemas relacionados à má

distribuição do espaço urbano e as mazelas daí resultantes, o instituto da superfície será

objeto de acurada análise, de caráter histórico-evolutivo, objetivando uma melhor visão

do tema, ocasião em que o instituto será enfocado à luz dos direitos germânico, italiano,

francês, inglês, espanhol, chinês, russo e argentino.

No capítulo seguinte, o direito de superfície será abordado frente ao sistema

jurídico pátrio, oportunidade na qual o instituto será descortinado a partir do período

colonial, onde verificar-se-á que, sob a influência do Direito Português, o direito de

superfície vigeu no período colonial, por força da Lei Pombalina de 09/07/1773, em

relação a construções, árvores e plantações, tendo o instituto sido banido da ordem

jurídica por força da Lei nº 1.257, de 24 de setembro de 1864, ressurgindo a discussão em

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torno de seu restabelecimento quando do processo de nossa primeira codificação civil, na

Consolidação das Leis Civis e no Esboço de Teixeira de Freitas.

Verificar-se-á, ainda, que o instituto da superfície acabou não sendo contemplado

na primeira codificação civil, em razão da adoção, pelos juristas da época, da teoria do

numerus clausus dos direitos reais, não havendo espaço para interpretação extensiva ou

ampliativa quanto aos direitos reais existentes no sistema de propriedade então criado.

Dar-se-á ênfase ao movimento de reforma do Código Civil, iniciado em 1963

pelo jurista Orlando Gomes, onde inseriu-se o direito de superfície no rol dos direitos

reais, tendo o instituto passado a constar do Projeto nº 634, de 1975, em seu artigo 1.263 e

regulamentado nos artigos 1.401 a 1408.

Constata-se que a demora na tramitação do Projeto do Novo Código Civil acabou

favorecendo o surgimento de várias leis extravagantes para regulamentação de diversas

relações jurídicas surgidas a partir da vigência do Código de 1916, razão pela qual acabou

vindo à luz a Lei nº 10.257 de 10 de julho de 2001 – Estatuto da Cidade - que nos artigos

21 a 24 cuidou de disciplinar o direito de superfície urbano, sendo que o instituto só

passou a constar da legislação civil com o advento do Novo Código Civil, por força da

Lei nº 10.406/2-2002.

Em seguida, aborda-se o tema relativo à função social da propriedade, seus

contornos, suas implicações e sua utilização como princípio norteador do direito de

propriedade, como via hábil a implementar políticas de regularização fundiária com vistas

a cumprir dispositivo constitucional de garantia de acesso à moradia e preservação da

dignidade humana, como direitos fundamentais a serem respeitados pelo Estado e pela

sociedade como um todo.

Para cumprir esse desiderato fez-se necessária uma abordagem conceitual acerca

da idéia de função social, tendo como pano de fundo o princípio da socialidade inserto no

Novo Código Civil, ocasião em que ter-se-á oportunidade de tratar de várias questões

ligadas à função social da propriedade e da cidade, dando-se um enfoque sob o prisma da

Constituição Federal de 1988, em razão da função social ser um princípio decorrente da

norma fundamental.

Mais adiante, cuida-se, de forma mais abrangente, da função social da cidade e da

propriedade urbana, onde analisou-se vários aspectos ligados à escassez de moradia,

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ao êxodo rural e as conseqüências decorrentes da aglomeração nos grandes centros

urbanos, ocasionando uma ocupação irregular dos espaços.

Novamente será necessária uma abordagem do direito de propriedade, desta feita

sob uma perspectiva civil-constitucional, com destaque também para o Estatuto da

Cidade, onde o direito de superfície vem disciplinado dentre os instrumentos de política

urbana.

Na seqüência será dado destaque ao aspecto do direito à moradia como direito

humano fundamental, onde destaca-se as desigualdades sociais como causa geradora de

uma série de conflitos, muitos dos quais relacionados com a ocupação desordenada do

espaço habitável, principalmente por populações de baixa renda.

Será abordada a questão da função social da propriedade e da cidade, onde o

direito de superfície será apontando como sendo um instituto hábil a implementar a

função social, preservando-se a dignidade humana através da reordenação dos espaços

habitáveis, oportunidade em que será destacada a importância da regularização fundiária,

utilizando-se do instituto da superfície.

Por fim, aborda-se novamente o instituto da superfície, desta feita fazendo estudo

comparativo do instituto da superfície no Estatuto da Cidade e no Novo Código Civil,

onde serão traçados os seus contornos, características e natureza jurídica, além de seus

elementos e sua função social com vistas à efetivação do direito à moradia inserto no

artigo 6º da Constituição Federal de 1988, bem assim ao princípio da dignidade humana,

com a proposta de regularização fundiária das favelas e populações carentes, através da

efetivação do direito à moradia, utilizando-se do instituto da superfície com cláusula de

opção de compra ao final do contrato.

Ao longo do trabalho tratar-se-á de várias questões ligadas à posse da terra, ao

problema do crescimento desordenado das cidades e de suas conseqüências na vida das

pessoas, numa tentativa de demonstrar que o crescimento desordenado dos grandes

centros urbanos provocado, dentre outras causas, pelo êxodo rural, tem assento em

tradição histórica quanto à forma da distribuição das terras no Brasil, quanto ao

tratamento do direito de propriedade na primeira codificação civil, como direito absoluto,

quadro que sofreu transformações drásticas com a nova roupagem que a função social

deu à noção moderna de propriedade.

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2. NOÇÕES HISTÓRICAS DO DIREITO DE SUPERFÍCIE

2.1. O Direito de Propriedade

Antes de uma abordagem própria do instituto da superfície, cumpre tecer alguns

aspectos ligados à origem e à história do direito de propriedade, bem como do surgimento

dos direitos reais em Roma, voltando a atenção para época bem remota em que os

romanos conceberam a idéia de propriedade, com o escopo de verificarmos se aquele

povo teve noção acerca dos iura (direitos) ou se eles compreenderam somente a

propriedade das coisas materiais, também denominadas coisas corpóreas.

Vale a pena mencionar que o instituto da propriedade sofreu profundas

transformações ao longo dos séculos, principalmente levando em conta os principais

modelos de sociedade e de Estado, pelos quais passou a humanidade.

Nesse aspecto são esclarecedoras as lições de Liana Portilho Mattos1 no sentido

de que a linha evolutiva da propriedade privada teve início numa forma coletiva de uso

para, posteriormente, reverter essa tendência primitiva no sentido de uma

individualização levada a níveis extremos em determinados momentos de nossa história.

Contudo, segundo a citada autora, modernamente, a propriedade privada vem

recebendo ingerências de ordem pública cada vez mais freqüentes, situação que traduz a

tendência de uma propriedade com contornos cada vez mais coletivos.

Cumpre esclarecer, com a citada autora, que nas hordas primitivas, a primeira

forma de propriedade foi a da propriedade coletiva, posto que as terras e os instrumentos

de defesa e de produção pertenciam à coletividade.

Apesar de rudimentar, a organização do trabalho também se sustentava sobre o

interesse coletivo, sendo certo que somente quanto a pequenos objetos de uso pessoal é

que pode-se falar em propriedade individual.

Com os gregos e romanos, na Antiguidade Clássica, a propriedade começou a

incorporar seus primeiros traços individualistas, conforme elucida Liana Portilho Mattos2,

in verbis:

“A propriedade grega era um fator de importância fundamental na estruturação da cidade. Associada a elementos de natureza religiosa, a propriedade era então protegida com extremismo contra invasões estrangeiras. Antes mesmo das leis, a

1 MATTOS, Liana Portilho, Limitações Urbanísticas à Propriedade. In: FERNANDES, Edésio (Org.). Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. p. 55-75. 2 Idem. Ibidem. p. 58.

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religião já protegia o direito de propriedade. A propriedade grega era pois sagrada, indivisível, individual e familiar. Entre os romanos, a primeira forma de propriedade foi a das tribos que deram início à formação da cidade de Roma nos primórdios daquela civilização. A propriedade era basicamente coletiva: não havia proprietários individuais das terras. Os membros da tribo exploravam a terra, sem que fossem proprietários; pois o que tinham era só o direito de gozo dela. A propriedade romana, num segundo momento, assumiu uma forma familial, vinculada ao pater família. O chefe de família cuidava do cultivo da faixa de terra recebida, em conjunto com sua família, mas não podia aliená-la em vida e nem transmiti-la por testamento. Dada essa concentração de poderes dispersa pelo grupo, a propriedade familial ainda não apresentava o caráter individualista que posteriormente veio a ter a propriedade romana”.

Com o passar dos tempos, conforme adverte a citada autora, os demais integrantes

do grupo familiar foram adquirindo alguns direitos, como o dote e o pecúlio castrense, com

a propriedade, aos poucos, tornando-se individual.

Cumpre destacar que a propriedade romana passou por três estágios evolutivos

distintos, quais sejam, a propriedade coletiva, a familial e a individual, tendo esta última

fórmula prevalecido por muito tempo, influenciado a concepção do direito de propriedade

vigente por longo período no Ocidente, conforme colocação de Liana Portilho Mattos3.

Deve-se ter presente uma visão histórica da propriedade romana que na fase

individual era basicamente absoluta e personalíssima, onde se entreviam os atributos

consistentes no jus utendi, o jus fruendi e o jus abutendi, poderes que permaneceram ao

longo do tempo, influenciando o direito de propriedade até nossos dias.

Pode-se afirmar que as principais formas de propriedade na civilização romana

foram a quiritária, a provincial, a pretoriana ou bonitária e a peregrina, tendo sido a primeira

a mais importante delas, por ter decorrido da ocupação de bens sem dono ou tomados do

inimigo, dando surgimento a rei vindicatio.

É necessário frisar que a propriedade passou por grandes transformações em seus

característicos, mantendo seu traço individualista, sofrendo algumas limitações no período

justinianeu, decorrentes de restrições de vizinhança e de normas regulamentadoras de

faixas de recuo de imóveis em vias públicas, com respaldo na Lei das XII Tábuas.

3 Idem.Ibidem. p. 58.

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Para uma melhor abordagem de tão importante período da história do direito,

mormente do direito de propriedade e seus desdobramentos, vale a pena trazer à colação

algumas passagens da obra do professor José Guilherme Braga Teixeira4, in verbis:

“Lançando, porém, umas vistas a uma época ainda mais remota, poderemos notar que os romanos não discerniram sequer tais coisas (corpóreas, frise-se ), voltando-se o seu raciocínio especialmente para tudo quanto, por ser material, podia ser tocado (qui tangi possunt) e apreendido: Meum est - diziam, sem distinguir a coisa do direito sobre ela. Cumpre esclarecer que, nessas priscas eras, ainda estavam os romanos longe de conceber a propriedade como um poder sobre as coisas. Tal poder achava-se englobado (e sem distinguir entre o próprio poder e o seu objeto) na potestas do paterfamiliar sobre tudo quanto estivesse a ele sujeito: mulher, filhos e coisas, escravos, inclusive. O exercício dessa potestas era o mancipium, que estava em relação a ela da mesma forma em que, muito tempo depois, o dominium se encontrou em relação à res”.

Seguindo o curso da história do direito de propriedade prossegue o professor:

“O herctum (equivalente, longo tempo depois, à domus) familiar, por albergar o altar e o fogo sacros, o túmulo e as demais coisas santas da família, era sagrado e, assim sendo, não deveria ser alienado nem abandonado. Não o ius, mas o fas foi que, a princípio, estabeleceu o romano sobre determinada porção de terra: o seu herctum, onde enterrava os seus antepassados e lhes rendia culto, por isso que ali construíra a sua domus, plantara e cultivara o seu campo e criara o seu rebanho, tudo sob a proteção dos seus penates... É sintomática a fórmula empregada, então, pelo paterfamilias, para referir tudo quanto se achava sob a sua potestas: Meum est!

Por tudo o que foi dito até agora, pode-se concluir que no período mencionado

acima, a importância do direito privado romano esteve diretamente ligada ao papel que a

própria família desempenhava na sociedade romana em particular, sendo certo que o direito

de propriedade (dominium) era uma espécie também de jurisdição, de poder de comandar as

coisas e as pessoas da família e não surpreende que o pai dê origem ao patrão5.

De acordo com as informações colhidas de José Guilherme Braga Teixeira 6 na

época da Lei das XII Tábuas, que foi o primeiro texto do Direito Romano, já a evolução do

fas para o ius determinara a dessacralização do herctum, exceto apenas a do sepulchrum;

e as coisas já puderam ser partilhadas entre os irmãos.

Com o passar dos séculos, Roma evolui, tornando-se uma potência mercantilista,

razão pela qual sucedeu o desmembramento da antiga potestas do paterfamilias, ou seja,

manus, sobre a mulher; patria potestas, sobre os filhos; domenica potestas, sobre os 4 TEIXEIRA, José Guilherme Braga. O Direito Real de Superfície. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 12-15. 5 LIMA LOPES, José Reinaldo de. O Direito Na História: Lições Introdutórias, 2ª ed. rev. São Paulo: Max Limonad, 2002. p.59. 6 Idem.ibidem. p.12.

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escravos; dominium, as demais coisas corpóreas, sendo proprietas vocábulo que só veio a

surgir mais tarde, como sinônimo de dominium 7.

Com efeito, no tocante à res incorporales (qui tangi nom possunt) ainda estava a

séculos por ser concebida, sendo certo que os romanos somente admitiam a existência de

coisas materiais, tendo a concepção de coisa incorpórea só ocorrido muito tempo depois,

com a recepção do ensinamento dos filósofos gregos, mormente dos estóicos.

Ao conhecerem as servidões, por intermédio dos estóicos, puderam os romanos

conceber a idéia de res incorporales ( qui tangi, non possunt), bem assim, de iura (direitos),

a incidirem sobre coisas corpóreas, podendo-se a partir dessa época, falar-se em efetivas

servidões, admitindo-se então, a existência de iura in re aliena.

Por conseguinte, pode-se dizer que foram necessários séculos de amadurecimento

cultural para que os romanos pudessem desenvolver a idéia de bens imateriais, surgindo

então o ius in re aliena ( direito sobre coisa alheia).

Relativamente ao direito sobre a coisa alheia e posterior surgimento das servidões é

curial mencionar outra passagem da obra do professor José Guilherme Braga Teixeira 8,

senão vejamos:

“Foi só depois da admissão da existência de coisas incorpóreas (iura) que pôde um dominus soli conceder o direito de trânsito, através do seu terreno, a terceiro, sem que este viesse a adquirir a faixa do terreno utilizada para o trânsito pela continuidade de seu uso, pois o usucapião não atingia senão coisas materiais, não alcançando direitos, o que, talvez, para espancar dúvidas, foi preceituado por certa lei Scribonia. Surgida, destarte, a servidão como o primeiro dos iura in re aliena, apareceu, pouco depois, o usufruto também como direito na coisa de outrem, tendo como forma o uso (mais tarde, sob Justiniano, forma o usufruto, o uso e também a habitação configurados como servidões, ditas pessoais, a par das verdadeiras servidões, que passaram a ser denominadas prediais ou reais).

Relativamente ao direito de superfície, informa o citado autor que o instituto da

superfície, como ius in re aliena, surgiu séculos depois, já no direito romano-helênico.

Ainda no tocante à história evolutiva do direito de propriedade vale a pena destacar

os esclarecimentos do Professor José Reinaldo de Lima Lopes9 para quem a propriedade

passou por profundas mudanças ao longo da história, contudo, de acordo com o citado

doutrinador, a história é um processo de apropriação, sendo certo que o regime jurídico da

propriedade é o regime da exclusão, ou seja, exclusão de uns em relação às coisas e aos

7 TEIXEIRA, José Guilherme Braga. O Direito Real de Superfície. p.13. 8 Idem.Ibidem. p. 15-16. 9 Idem.ibidem. p. 401.

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produtos das coisas e do trabalho. Regime de exclusão! Eis o que caracteriza o regime

jurídico da propriedade na visão do citado autor.

Por ser o direito romano um direito de privilégios, conforme menciona o Professor

José Reinaldo,10 os pais de família eram os sujeitos do direito e todos os negócios da

família giravam em torno dele, sendo a propriedade um aspecto central da vida familiar,

posto que as terras da família eram a base da vida da comunidade produtiva.

As terras da família, no direito romano original, subordinavam-se a um regime

próprio, qual seja, ao direito quiritário e, esta propriedade se limita aos cidadãos romanos

livres, denominados sui iuris, e nas famílias romanas apenas pelo pater famílias, restringia a

circulação da terra e assegurava a unidade patrimonial, de maneira que o escravo e os filhos

não emancipados não podiam ter acesso à propriedade quiritária.

Sobre esta questão vale apenas referir os ensinamentos do Professor José Reinaldo

de Lima Lopes11, in verbis:

“Assim, falar-se em propriedade no direito romano era muito diferente de falar-se em propriedade hoje. O pai de família tinha junto com a propriedade um poder jurídico de dirigir os negócios da família, inclusive poderes sobre as pessoas, filhos e escravos: ser pai de família era ao mesmo tempo ter propriedade de coisas e poder pessoal sobre as pessoas envolvidas na exploração daquela coisa”.

Na linguagem jurídica, por amor à tradição romano-canônica, utiliza-se dois termos

vindos do latim, quais sejam, domínio e propriedade, sendo que propriedade indicava a

qualidade do que era próprio, ou melhor, à coisa mesma e domínio tinha vários significados,

ora o governo da casa (domus) e posteriormente o poder exercido pelo pater familias sobre

as coisas, como a casa, a terra, os móveis.

O domínio, além de representar poder sobre a coisa, no período medieval significou

também poder de direito, ou seja, poder político, posto que o senhor, além dos direitos sobre

os frutos da terra, detinha uma jurisdição, entendida como uma certa competência normativa,

nos dizeres do Professor José Reinaldo.12

Tal se deu no direito inglês, pois embora a terra estivesse dividida em vários

senhorios, era, primeiramente domínio do rei, que sobre ela exercia uma jurisdição, sendo

todos os habitantes tidos como vassalos do rei e seus sucessores, permitindo aos reis ingleses

10 Op.cit. p.401. 11 Op.cit. p.402. 12 Op.cit. p. 402.

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interferir nas jurisdições locais para ouvir as queixas de todos os seus súditos, já que em

última instância toda terra lhes era sujeita.

Não há, nas lições do Professor José Reinaldo13distinção entre propriedade,

soberania e posse na Idade Média, e somente com a transformação da renda em preço é que

podem desaparecer os laços vassálicos na Inglaterra em 1660.

Interessante notar que na Idade Média também não se tornou assente a idéia

unitária e individualista de propriedade, tendo em vista que sobre uma mesma coisa

exerciam-se diversos direitos por diferentes sujeitos, ou seja, os domínios eram de duas

espécies: o domínio útil, exercido por mais de um sujeito por comportar várias divisões e o

domínio direto. Sobre essa questão vale a pena citar trecho da obra do Professor José

Reinaldo14 :

“Em verdade, os domínios sobre a terra dão origem a rendas de poderes, cuja partilha e divisão é aparentemente natural. Os frutos da terra são divisíveis e cada parte vai para quem tem sobre a terra algum direito. A terra é um bem de produção e a propriedade dela nada ou pouco tem a ver com a propriedade dos bens de consumo pessoal. Para forjar um conceito unitário de propriedade será preciso ignorar esta diferença fundamental. Desta forma, a propriedade, entendida no seu complexo de poder sobre algumas coisas (a terra) e respectivas faculdades ou poderes de exploração e direção (recebimento de tributos e exercícios de jurisdição), não é um direito natural e universal, mas um privilégio. O servo, por seu turno, tem seu direito de trabalhar a terra, do qual não pode ser privado nem por seus vizinhos e iguais, nem pelo próprio senhor. Este, por seu turno, tem direito a receber os frutos e exercer poderes políticos sobre a comunidade. Cada um tem suas próprias regras, seus privilégios.”

Assim, o domínio compreendia, no mínimo dois poderes, quais sejam, o direito de

jurisdição e a renda equivalente a parcelas de poder sobre a terra. Nesse período havia

ligações perpétuas entre os diversos detentores, de cunho pessoal, sendo certo que a posse e

detenção da terra imediatamente, era um direito que se transmitia, se conservava e não

permitia a alienabilidade, sendo os direitos limitados quanto a seu exercício, de maneira que

um senhor ou um detentor não podia tudo, não havendo direito absoluto, que excluísse o de

outros titulares, podendo ser limitados quanto ao tempo. De maneira que quando se começa

a aceitar a alienabilidade da terra começa a acabar o feudalismo.

A noção moderna de propriedade modificou a antiga, tendendo para o exclusivismo,

sendo certo que aos poucos passará a ser a soma de todos os direitos anteriormente

dispersos entre vários detentores. O que se percebeu, na Idade Média, é que a detenção, a

posse, as diferentes rendas devidas e recebidas convivem lado a lado, não sendo natural que

13 op.cit. p.403 14 op.cit. p.403

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um só senhor tenha todos estes direitos, posto que desde o lavrador até o rei tem, sobre a

mesma terra, direitos próprios, embora distintos, conforme nos ensina o Professor José

Reinaldo.15

Daí Liana Portilho Mattos16 ter afirmado que:

Desse modo, com a sofisticação da sociedade romana, novas exigências sociais foram surgindo, tornando obrigatória a submissão dos proprietários às limitações legais cada vez mais crescentes (basicamente as referentes a direitos de vizinhança), e, assim, a propriedade romana desatrelou-se um pouco do individualismo extremado do início, para conhecer leve colorido social. Na primeira fase da Idade Média, o cristianismo – tendo como maiores expoentes Santo Agostinho e São Tomás de Aquino – exerceu significativa influência nas concepções de propriedade que começavam a ser esboçadas. São Tomás não propunha a propriedade coletivizada, mas sim uma propriedade individual que atendesse aos interesses coletivos, aos interesses gerais no contexto de uma sociedade elitizada. O mais importante, contudo, a ser ressaltado desse período e do pensamento de São Tomás, foi o surgimento do antecedente de um princípio que mais tarde se consolidaria como a função social da propriedade.

Para finalizar esse tópico atinente ao perfil histórico da propriedade em Roma,

cumpre trazer mais esclarecimentos no sentido de que ainda na Idade Média, o período

feudal representou um estágio singular e inédito pelo qual passou a propriedade em sua

evolução. De acordo com Liana Portilho Mattos,17 nesse período a temática fundiária foi o

eixo de quase todas as relações do homem – políticas, sociais, econômicas, religiosas e

jurídicas. Basicamente, a propriedade passou a abrigar dois direitos coexistentes de modo

hierárquico: o domínio útil, do feudatário; e o domínio eminente, do Estado. Pode-se dizer

que, devido a esse fato, a propriedade sofreu certa desintegração e, em conseqüência, seu

caráter individualista foi fortemente atenuado, tendo sido o jus utendi, fruendi et abutendi

substituído pelo jus curandi et dispensandi.

2.2 Direito de Propriedade no Brasil

Ao abordar-se o tema referente ao direito de propriedade no Brasil, não deve-se

esquecer de que nossa tradição jurídica consagrou o direito de propriedade como um direito

subjetivo, absoluto, exclusivo, perpétuo,18 conforme se infere da leitura do artigo 524 do

15 op. cit.p.405 16 op.cit. p.59 17 op.cit. pp-60. 18 É o que observa Laura Beck Varela em sua obra Das Sesmarias à Propriedade Moderna: Um Estudo de História do Direito Brasileiro, Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 2, nota 2. Para a citada autora, observando a lenta erosão operada no direito luso-brasileiro rumo à propriedade moderna, o artigo 524 do Código Civil de 1916 constituiu uma ruptura, inovação em relação à cultura jurídica anterior. Inovou ao consagrar, num conceito abstrato e unitário, o poder da vontade, fundamento jurídico na relação do homem com as coisas, nos moldes do individualismo jurídico que anima as codificações européias do séc. XIX (p.06).

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Código Civil de 1916, reproduzido no artigo 1.228, caput, do novo Código Civil de 2002,

mas que em seu parágrafo 1º, consagrou o princípio de função social da propriedade,

seguindo o modelo dos código códigos ocidentais.

Conforme adverte Laura Beck Varela19 o princípio da obrigatoriedade do cultivo

que justificava a apropriação de bens imóveis e que remonta à Lei das Sesmarias,

promulgada por D. Fernando em 1375, perpetua-se nas fontes jurídicas por meio das

Ordenações régias e, posteriormente, por uma série de avisos, alvarás e cartas-régias, que

disciplinaram as sesmarias no Brasil-colônia, sendo que tal princípio só é afastado no século

XIX, tendo como causa a introdução, no Brasil, das relações capitalistas de produção que

exigia a formação de um direito de propriedade privada absoluta da terra, com limites

precisos, registrada e que pudesse servir de garantia a financiamentos.

Para a citada autora é na Lei Sesmarial de D. Fernando I, de 1375, que encontra-se

uma primeira consagração desta fórmula da efetividade, que se traduz na obrigatoriedade do

cultivo, posto ser a característica das sesmarias a obrigatoriedade de cultivo como condição

de posse da terra e a expropriação da gleba ao proprietário que a deixasse inculta.

Daí, Virgínia Rau apud Laura Beck Varela 20 fazer a seguinte observação: “A

chamada Lei das Sesmarias, elaborada com o auxílio de um conselho de justiça, surge com

o objetivo de combater uma aguda crise de abastecimento, queda demográfica e conseqüente

escassez de mão-de-obra, acentuada pela Grande Peste que assolara a Europa em 1348.”

O que importa agora é percebe que a sesmaria consistia na atribuição de bens

incultos, em razão de terem sido abandonados ou por nunca terem sido cultivados, a

determinada pessoa, com o encargo de aproveitar, dentro do prazo previsto na lei ou na

carta de adjudicação. Solucionava-se, assim, o problema da crise agrícola e demográfica,

também à falta de braços e de alimentos, mediante a imposição do dever de lavrar a terra e

das demais restrições referentes aos trabalhadores.

Na verdade, a Lei das Sesmarias nada mais fez do que fixar o costume, posto que

dar terras em sesmarias remontava a antigo costume da região, que o rei, atendendo às

constantes demandas das Cortes, tornara lei geral, uma vez que até o século XIII, o costume

19 RAU, Virginia. Sesmarias Medievais Portuguesas. Lisboa: Presença, 1946 apud VARELA, Laura Beck. Das Sesmarias à Propriedade Moderna: Um Estudo de História do Direito Brasileiro, Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp 06. 20 Idem., Ibidem. p.-20-21.

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constituíra a principal fonte de direito em Portugal, e continuaria a ser de vital importância

por vários séculos.

Embora o regime de sesmarias fosse assentado no domínio útil, ou seja, na

obrigatoriedade do cultivo, porém o conteúdo material desta forma dominial do direito

luso não se esgotava no induzimento ao cultivo.

Não se tratava de um cultivo qualquer, posto que atenta à crise na agricultura, a

Lei determinava a cultura de gêneros alimentícios, impondo restrições quanto a criação de

gado que constrangia o lavrador a ter somente o gado necessário à lide no campo, sendo

certo que em paralelo às restrições à pecuária, procura-se incentivar o cultivo de produtos

como trigo, cevada, milho, que haviam de prover o sustento da população, num contexto de

escassez e carestia, sendo objetivo central da lei a agricultura de gêneros alimentícios para

o abastecimento.21

Outro ponto importante sobre a implantação da Lei de Sesmarias em Portugal, diz

respeito aos sujeitos, destinatários da norma e que deveriam exercer o cultivo da terra.

Conforme destacado acima, a lei objetivava compelir às lides rurais os servos da gleba e

seus descendentes, sendo obrigados à lavoura os filhos e netos de lavradores, aqueles que

possuíam menos de quinhentas libras em bens e também aqueles que não tivessem ocupação

nem senhor certo. Também a lei se dirigia aos senhores de terras, tanto leigos quanto

eclesiásticos, que tinham o dever de compelir tais pessoas à lide no campo, pena de

expropriação da gleba.22

Por fim, cumpre mencionar que traço comum às sesmarias fernandinas, afonsinas,

manuelinas e filipinas, é a caracterização de uma propriedade não-absoluta, cuja condição

sine qua non, razão de ser, reside no dever de cultivo. O fundamento do cultivo perpetua-

se, assim, através das Ordenações Filipinas, legitimando uma forma de propriedade

essencialmente condicionada. 23

De maneira que é com as características e o fundamento até agora vistos que as

sesmarias passam a vigorar no Brasil colonial, quando já em Portugal havia caído em

desuso.

21 VARELA, op.cit., p.34-35. 22 VARELA, op. cit., p.37-38. 23 VARELA, op. cit., p.69-70.

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Contudo, vale a pena referir que no tocante à passagem de uma economia assentada

na mão-de-obra escrava, a uma economia baseada na mão-de-obra livre, a propriedade da

terra assume valor econômico fundamental. 24

Com a suspensão das concessões das sesmarias, ocorrida em 1822, teve início o

regime das posses, que durou até a lei de 1850, consistente no mero apossamento de

terrenos para exploração agrícola e pecuária.

Cumpre esclarecer que com o advento da Lei de Terras de 1850, ocorre a passagem

do patrimônio fundiário da Coroa às mãos dos particulares, disciplinando o caos da

realidade agrária de então, composta pelas terras doadas em sesmaria e que na maioria das

vezes não eram cultivadas, tão pouco demarcadas, nem eram registradas, sendo que tal lei

proibira os apossamentos, delimitando-se as chamadas terras devolutas, objetivando separar

o público do privado, estabelecendo-se as bases da propriedade privada no Brasil25 .

Desta forma, não só nas leis vigentes, mas sobretudo nos litígios envolvendo a

posse de terrenos, freqüentemente são invocados o cultivo e a moradia habitual como

fundamentos jurídicos a legitimarem pretensões, tanto de pequenos posseiros quanto de

latifundiários, sendo esses últimos, meros posseiros na maioria dos casos, de grandes

extensões de terras, ou sesmeiros que não haviam cumprido as exigências legais da

medição e confirmação. 26

Houve um processo de absolutização da propriedade, sendo que na maior parte dos

ordenamentos jurídicos da família romano-germânica, essa absolutização consistiu num

processo de ruptura em relação a uma estrutura hierarquicamente organizada de deveres,

24 A extinção do regime das sesmarias ocorre no contexto do início da expansão da economia cafeeira e do movimento que resultou na Independência, estando na pauta de discussões a necessidade de regulamentação da propriedade privada - exigência do próprio desenvolvimento do Estado, agora politicamente independente da metrópole. Não se pode olvidar que a Inglaterra, parceira comercial de longa data, tanto da metrópole quanto da colônia, colhendo os lucros da Revolução Industrial e detendo o monopólio do comércio internacional, pressionava pelo fim do tráfico negreiro - o que implicaria a reformulação de todo o sistema produtivo no Brasil, essencialmente ancorado na economia escravocrata. Urgia encontrar uma válvula de escape, um substituto ao escravo como categoria econômica central. A essa crise do trabalho escravo responderia a elite colonial com o processo de organização da propriedade privada e mercantilização da terra. A expansão cafeeira favorece a valorização da propriedade da terra, oferecendo bases econômicas para a passagem à mão-de-obra livre. A extinção do regime sesmarial é um passo importante neste processo de organização da propriedade privada da terra, que se consolida com a Lei de 1850 e com o Código Civil de 1916, adiante examinados (LAURA BECK VARELA, op.cit., p-111). 25 VARELA, op. cit., p-07. 26 VARELA, op., cit., p-115.

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obrigações, honra e lealdade, o que caracteriza uma propriedade do tipo feudal, ou seja,

propriedade de diversos níveis sobre a terra.27

Conforme adverte Laura Beck Varela,28 no caso do direito luso-brasileiro,

contudo, é uma ruptura em relação à propriedade pública, cuja veste é a sesmaria,

privilégio ou concessão de domínio condicionada à sua exploração, com cláusula de

reversibilidade, tendo ocorrido no processo de absolutização da propriedade modificações

de natureza legislativa, doutrinária e jurisprudencial, tendo as de cunho doutrinário surgindo

nas primeiras obras de direito civil brasileiro, conforme atesta a citada doutrinadora.

2.3. A Lei de Terras e a expansão da agricultura no Brasil: a absolutização do

direito de propriedade no Brasil.

Várias transformações sociais começam a ocorrer na economia do país,

principalmente por conta da gradativa introdução das relações capitalistas de produção

ocorrida na América Latina, a partir da segunda metade do século XIX e, no caso do Brasil,

esse fato se deu através da expansão econômica do café, bem assim com a pressão para o

fim do tráfico de escravos e introdução da mão-de-obra assalariada.

Por outro lado, a propriedade privada absoluta da terra e a possibilidade de sua

mercantilização são pressupostos essenciais do sistema capitalista, tendo a Lei de Terras, de

1850, vindo à lume para propiciar condições jurídicas possibilitando que a terra pudesse

se tornar mercadoria aceitável nos negócios entre os fazendeiros.29

Com o advento da Lei n. 601, a conhecida Lei de Terras, procura-se conferir

estatuto jurídico à propriedade privada, adaptando-a às novas exigências econômicas,

além de fomentar a colonização, tendo se instituído a formalidade do registro, conceituando

terras devolutas, proibindo sua aquisição de outro modo que não fosse a compra e venda,

tendo a referida lei sido considerada como norma de transição que procura, de um lado,

legitimar as apropriações anteriores, obtidas através de apossamentos e das sesmarias,

tendo por critério o do efetivo cultivo e morada sobre as terras.

27 VARELA, op. cit., p.122-123. 28 Op.cit. p. 121-122 29 VARELA, Laura Beck, op. cit, p-128, esclarece que o novo modelo de propriedade introduzido com a Lei de Terras, distingue-se da antiga propriedade sesmarial, posto que mesmo para o sesmeiro adimplente, não atribuía um direito pleno, em termos absolutos, ao contrário do novo sistema de propriedade que a partir da Lei de Terras transforma-se em mercadoria, sendo a referida lei considerada verdadeiro marco na história da propriedade privada brasileira.

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Por outro lado, instituiu novas regras, propiciando ao Estado tomar providências

quanto ao processo de apropriação do território e controle da colonização.

Na passagem para uma forma jurídica absoluta da propriedade, o cultivo – velho

princípio de lei portuguesa é um fundamento para instauração de uma nova ordem

proprietária, tendo o cultivo deixado de ser o elemento central da concessão e

revogabilidade das sesmarias, retirando-se do Estado a possibilidade jurídica de reaver as

terras não cultivadas, a não ser nos casos de desapropriação mediante o pagamento de prévia

indenização. Assim, passou-se de uma forma jurídica de propriedade (as sesmarias) para

outra, pré-moderna, propriedade absoluta e incondicionada.

Cumpre ressaltar que no direito brasileiro, no tocante à propriedade moderna, a lei

hipotecária trouxe inovações quanto aos aspectos da transcrição e do registro, alicerces

fundamentais para a construção uma nova ordem proprietária. 30

Por outro lado, não pode deixar de ser mencionado que a Lei Hipotecária de 1864,

constituiu em outro marco fundamental no processo de absolutização do direito de

propriedade, posto que além de disciplinar juridicamente a hipoteca, instrumento útil à

mobilização do patrimônio fundiário, institui também o registro de imóveis, fundamento à

publicidade e à oponibilidade erga omnes dos direitos reais que posteriormente serviu de

base à construção do instituto da transcrição como modo de aquisição da propriedade

imobiliária, sendo incorporado ao Código Civil de 1916.

É no movimento revolucionário burguês – cujo paradigma é o ocorrido em França

- que encontram-se as bases para uma profunda mudança no regime jurídico da

propriedade privada, tanto nos antecedentes filosóficos que lhe dão sustento, quanto no

aparato técnico-jurídico que cristaliza as transformações da época. Instaura-se

verdadeiramente uma nova “antropologia dominial”, que viria a criar raízes na mentalidade

jurídica posterior. 31 Tendo o direito de propriedade sido concebido como direito absoluto,

exclusivo, ilimitado, sagrado, inviolável, de usar, gozar e dispor, consagrado no apogeu do

liberalismo pelo artigo 544 do Código Civil francês.32

A menção às faculdades de usar, gozar, dispor, é signo do legado das elaborações

dos comentadores, que vestem a roupagem do individualismo - deixando à mostra, em plena

30 VARELA, op.cit. p-178. 31 VARELA, op. cit., p-201. 32 VARELA, op. cit.p-205.

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codificação revolucionária, símbolo da ruptura, as profundas permanências da “utensilagem

mental” anterior.33

Sendo assim, percebe-se que o direito de propriedade é concebido como direito

eminentemente individualista, direito do homem, exigência do direito natural. Todavia, a

construção técnico-jurídica da propriedade, de direito natural a direito absoluto, grandes

transformações na idéia de propriedade como instrumento para manutenção do status quo

do grupo social dominante.34

Com base nesses princípios compreende-se a propriedade moderna como um direito

eminentemente individualista, direito do homem, exigência do direito natural, centro ao

redor do qual gira toda estrutura do Código Civil francês, sendo que a propriedade por meio

da contribuição jusnaturalista, passa de direito natural a absoluto, revelando a passagem de

seu caráter revolucionário a conservador, concepção que é fruto de um longo processo de

ruptura em relação à propriedade feudal e que foi assimilada pelos juristas nacionais, que

viveram um período de transição para uma forma absoluta da propriedade, através de um

conceito unitário, absoluto e abstrato de propriedade de tradição francesa e alemã e que foi

incorporado ao artigo 524 do Código Civil de 1916.

Conforme elucidações o Professor José Reinaldo de Lima Lopes35 a propriedade da

terra no Brasil esteve associada a dois problemas cruciais, quais sejam, o da escravidão e o

da imigração, com reflexos na mão-de-obra, sendo certo que houve quem reconhecesse a

existência de um feudalismo brasileiro, outros porém, como Marcelo Caetano apud José

Reinaldo de Lima Lopes reconheceu que as doações ocorridas durante a expansão atlântica

tiveram cunho senhorial, caracterizando-se por doações de senhorio.

O certo é que, com o passar dos tempos, houve o reconhecimento de que as

formas de exercício do poder político tais como o coronelismo ou mandonismo, baseou-se

na propriedade territorial.

Sustenta o referido Professor que o latifúndio foi sempre um problema nacional,

originado sob a forma de direitos de propriedade do ponto de vista econômica e político.

33 VARELA, op. cit., p-206. 34 VARELA, op. cit., p-210. 35 LIMA LOPES, op. cit., p. 352-360.

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Relativamente à formação da sociedade brasileira, tendo como suporte o exercício

do direito de propriedade vale a pena colacionar algumas reflexões do Professor José

Reinaldo,36 in verbis:

“A sociedade brasileira começa a formar-se sobre uma base essencialemnte agrária. Na origem de nosso sistema jurídico encontramos primeiramente a união entre propriedade fundiária e poder político. Em segundo lugar, uma atividade agrícola de exportação, inserida na formação do capitalismo moderno. Em terceiro lugar, a exploração da mão-de-obra escrava num período em que na Europa ocidental o regime de servidão era praticamente extinto. Finalmente, em razão da falta de qualquer contrapoder ou controle, o exercício de poderes arbitrários, exclusivos e individualistas por parte dos grandes proprietários”.

É neste cenário político, contraditório por sinal, que ocorre a ocupação do solo

urbano em nosso território, tendo como conseqüências uma estrutura social e jurídica com

dificuldades para absorver de fato as exigências do liberalismo do século XIX, pervertido

aqui numa justificação da propriedade ilimitada, e sobretudo associada ao exercício quase

que despótico do poder político dos proprietários, conforme esclarece o Professor José

Reinaldo.37

Por outro lado, adota-se na colônia o modelo de distribuição de terras usado em

Portugal consistente no sistema de sesmarias para o cultivo das terras e estabelecimento dos

camponeses, aplicado a imensas áreas de terras, trazendo como conseqüência a

impossibilidade da presença das autoridades nesses locais, propiciando o exercício da

justiça privada.

Existiram no Brasil, basicamente, três grandes regimes de propriedade das terras,

quais sejam, o das sesmarias, entre 1500 e 1822, cujas doações eram de competência dos

capitães ou governadores; o da posse, desde 1822, ocasião em que se suspendem as doações

de sesmarias por decreto de 17 de julho, até setembro de 1850, com surgimento da Lei n.

601 (Lei de Terras) e, finalmente, o regime surgido com o advento da Lei n. 317, de 1843 e

com o Código Civil de 1916 que mudaram os serviços de registros públicos, introduzindo o

princípio da transferência da propriedade pela transcrição.38

A origem das sesmarias deve-se a uma lei de D. Fernando I, datada de 26 de junho

de 1375, momento no qual Portugal passava por grave crise, provocada pela tragédia

demográfica causada pela peste negra por volta de 1348-1350, como instrumento para

viabilizar o cultivo das terras não cultivas por aqueles que se dispusessem a cultivá-las, 36 LIMA LOPES, p.353. 37 Idem., Ibidem., p.353. 38 Idem., Ibidem., p.353.

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contribuindo para manter o homem no campo, tendo como resultado a concentração dessas

terras nas mãos daqueles que tivessem recursos para cultivá-las, como nobres e grandes

lavradores.

O trabalho de distribuição dessas terras era incumbido aos sesmeiros, mais tarde

denominados donatários ou beneficiários de sesmarias, sendo certo que o instituto das

sesmarias permaneceu e acabou sendo incorporado nas Ordenações Afonsinas e também nas

Filipinas de 1603.

Referentemente ao Brasil, as sesmarias implicou fomentar a ocupação e exploração

da terra, concedidas àqueles que tivessem capital suficiente e capacidade para explorá-las,

consistindo pois em doações de terras de domínio da Coroa portuguesa.

Ocorreu que o regime das sesmarias, ao ser aplicado no Brasil, consistiu em

doações de extensas glebas de terras que foram entregues às pessoas para cultivo, sendo que

cada posseiro deveria receber somente uma sesmaria. Contudo, o que ocorreu foi que às

doações recebidas somaram-se outras, tendo alguns recebido mais de uma sesmaria que

permanecia inculta, com a agravante de que várias sesmarias eram doadas a diferentes

integrantes de um mesmo núcleo familiar, dando origem aos primeiros latifúndios.

É importante lembrar que pela lei existiam limites à concessão das sesmarias, ou

seja, um limite territorial máximo, dependendo da capacidade do donatário, tendo variado

muitas vezes ao longo dos séculos de colonização, conforme menciona o Professor José

Reinaldo39, sendo certo que a terra abandonada deveria retornar à Coroa para ser

redistribuída.

Com o escopo de consolidar a legislação referente ao Brasil, foi editada a Lei das

Sesmarias, pelo Alvará de 05 de outubro de 1795, que dispunha, dentre outros assuntos, da

vedação de concessão de sesmaria a quem já a tivesse, proibiu doação a estrangeiro,

determinava limites de áreas para concessão e instituiu registros para as sesmarias, sendo um

nas Juntas de Fazenda quanto as áreas rurais e outro nas Câmaras Municipais, para os

terrenos urbanos, sendo certo que dito alvará terminou por não ter aplicabilidade prática,

sendo então suspenso por decreto de 10/12/1796, sob o pretexto de falta de recursos para

fazê-lo cumprir. Em seguida, por Resolução de Consulta da Mesa do Desembargo do Paço

de 17/07/1822, o sistema foi extinto oficialmente pelo Príncipe Regente40.

39 op. cit. p. 355. 40 op. cit. p.356.

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Com o fim das doações mediante sesmarias, a posse ou ocupação passou a ser

utilizada, sendo certo que no regime de sesmarias o sesmeiro recebia o título e em seguida

tomava posse da terra, já no caso da posse, o possuidor primeiro trabalhava a terra para

depois tentar receber o título.

Para finalizar-se essa abordagem acerca da história do direito de propriedade no

Brasil, para então abordar a questão do aparecimento do direito de superfície neste contexto,

cumpre acrescentar a tudo o que foi dito a mentalidade proprietária moderna é fruto de

influências principalmente francesa e alemã, tendo em vista a formação dos primeiros

juristas pátrios, influenciados pelas idéias da Europa, tendo a idéia de uma propriedade

individualista se incorporado ao Direito Divil, por intermédio dos civilistas que primeiro

sistematizaram a legislação civil, quais sejam, o Conselheiro Ribas e Augusto Teixeira de

Freitas, através da sua Consolidação das Leis Civis e do Esboço.

As contribuições deste último civilista foram muito importantes, principalmente no

tocante ao fato de não ter se limitado aos ideais individualistas de seu tempo, tendo

percebido que a propriedade constitui-se de dois elementos principais, um individual e

outro social, devendo ambos serem combinados de maneira a que o direito individual de

propriedade não se perca no direito social, podendo refletir as relações orgânicas existentes

entre o indivíduo e a sociedade.

Por outro lado, outra grande contribuição de Teixeira de Freitas, desta vez no

Esboço, consistiu na elaboração do conceito de domínio. O domínio perfeito,

caracterizado, como o direito real perpétuo de uma só pessoa sobre uma coisa própria, com

todos os direitos sobre sua substância e utilidade, conceito que revela a preocupação

sistemática do autor, nos moldes da escola dos pandectistas alemães, embora não tivesse

tido contato diretamente com a obra dos pandectistas, sendo evidente sua contribuição na

caracterização do direito de propriedade.

Não pode ficar esquecido outro importante jurista da época, que foi Lafayette

Rodrigues Pereira, autor da primeira obra brasileira de Direito das Coisas e grande

admirador de Savigny e Teixeira de Freitas e que também define o domínio como poder

absoluto, ilimitado e exclusivo.

Pode-se observar uma maior aproximação de nossos civilistas dos Oitocentos, uma

grande afinidade com a escola dos pandectistas, mais do que os juristas franceses, fato que

refletiu no direito de propriedade, principalmente na obra dos juristas, Coelho Rodrigues e

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Clóvis Bevilacqua, Contudo, outros juristas seguiram mais o modelo francês, quando

insistem em definir a propriedade tomando por base o feixe de poderes contidos no domínio,

colocando o direito de propriedade como na livre faculdade de poder, usar e dispor dos bens

e de os demandar através das ações reais, como se observa nas obras dos juristas Trigo de

Loureiro, Felício dos Santos e Carlos de Carvalho, todos citados por Laura Beck Varela.41

Conforme afirma a citada autora, seja qual for a matriz doutrinária que tenha

influenciado os juristas do século XIX, o certo é que a caracterização do direito de

propriedade se dá por ser um vínculo com o poder da vontade, como direito absoluto,

ganhando roupagem abstrato-unitária própria dos códigos oitocentistas, afastando-se do

cultivo, seu fundamento de origem, fatos que influenciaram diversos juristas pátrios, na

elaboração de nosso direito de propriedade, mormente na redação do artigo 524 do Código

Civil de 1916, que passou a assegurar ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de

seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que, injustamente, os possua.

Ainda de acordo com a citada autora, a propriedade privada imobiliária brasileira é

fruto de um longo processo que marca a saída dos bens do patrimônio público régio, um

esforço gradativo de delimitação da esfera privada, em oposição ao que era público, ou seja,

as terras do rei, tendo sido o direito de propriedade então vigente, o resultado de uma

complexa construção, forjada em meio às tensões sociais e às condicionantes da

infraestrutura econômica e que serviu à consolidação do poder da elite local, que se

perpetuou sob a forma de grandes latifúndios.

De certa forma, este estado de coisas serviu para dinamizar a economia brasileira,

ante a crise do modelo escravocrata, a partir da segunda metade do século XIX, dando-se,

na linguagem de Laura Beck Varela, a absolutização do direito de propriedade no Brasil.

Fundamenta-se a distinção entre domínio público e privado, institui-se o registro

imobiliário e sua eficácia contra terceiros, surge a aquisição da propriedade pela via da

transcrição, surge a conceituação de domínio em termos abstratos, admitindo-se a

indenizabilidade da propriedade particular em caso de desapropriação. De maneira que

passou-se das sesmarias, forma de apropriação da terra condicionada ao dever jurídico do

cultivo, revogável pela coroa, tendo surgido por intermédio da Lei Agrária de D. Fernando

I, em 1375, como resposta à crise de abastecimento e queda demográfica que se seguiu à

Grande Peste de 1348.

41 VARELA, op. cit., p.228-229.

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O regime das sesmarias acompanha as transformações da sociedade portuguesa,

tendo sido incorporado pelas Ordenações do Reino, com a manutenção do princípio jurídico

do cultivo, sendo certo que ao ser implantado no Brasil o regime das sesmarias adapta-se às

exigências de um modelo econômico escravocrata e latifundista, sendo certo que além do

dever jurídico de cultivo, outros deveres e condições são exigidos para sua concessão, tais

como a posse de escravos, a construção de engenhos de açúcar e fortificações militares,

tendo convivido com o fenômeno dos apossamentos, ou a posse sobre terras devolutas, que

a Lei de 1850 procurou coibir, realidade fundiária que prevaleceu até meados do séc. XIX.

De início, a existência de um grande número de sesmeiros, em situação irregular,

não respeitadores dos deveres de cultivo, medição e demarcação das terras, e outro

significativo número de posseiros, todos distantes no que concerne à titularidade jurídica,

de um direito de propriedade absoluto, preciso, exclusivo, que foi sendo construído ao

longo do século XIX, consubstanciando nas transformações sociais e nas mudanças de

ordem econômica que se deu por intermédio de debates jurídicos e assimilação do

pensamento europeu, mormente da França e da Alemanha.

2.4 Noções Históricas do Direito de Superfície

2.4.1 A Superfície no Direito Romano

Depois de termos feito algumas considerações sobre o direito de propriedade e,

finalmente sobre o direito de propriedade no Brasil, das sesmarias à propriedade moderna,

cumpre traçar o perfil histórico do direito de superfície, iniciando a pesquisa passando pelo

Direito Romano, seguindo pelo período Pós-Clássico, fazendo um estudo comparativo

entre as legislações de diversos povos, tais como o direito germânico, o direito italiano, o

direito francês, o direito inglês,o direito espanhol e, finalmente, o direito brasileiro.

O direito de superfície no direito romano é resultante de uma intensa evolução,

tendo em vista que no ius civile estava estabelecido o princípio superfícies solo cedit,

constante do D. 41, 1,7, 10. Segundo este princípio quem construísse em solo alheio perdia a

propriedade da obra imediatamente a favor do proprietário do solo, sem direito a indenização. 42

Conforme esclarecimentos de vários doutrinadores, tais como Ricardo Pereira Lira,

Frederico Henrique Viegas de Lima e Rogério Gesta Leal, que cuidaram do assunto, as

42 LIMA, Frederico Henrique Viegas de. O Direito de Superfície como Instrumento de Planificação Urbana, Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p.15.

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origens do direito de superfície não são precisas e o mesmo se pode dizer quanto ao momento

em que começa se desenvolver, até chegar à configuração do período pós-clássico com a

caracterização do direito real. 43

Segundo a doutrina dominante, o direito de superfície apareceu utilizado nas

concessões privadas. Como direito real foi resultado de uma evolução iniciada por obra do

Pretor, ao conceder aos possuidores de edificações em solo alheio o interdictum de

superficiebus e uma ação de caráter real, a actio de superfície.44 Etimologicamente, a palavra

superfície forma-se por dois termos super e facere, que, num sentido rigoroso, quer dizer

tudo aquilo que está realizado, ou tudo aquilo que se levanta, por obra artificial do homem ou

da natureza sobre um plano horizontal. 45

Seguindo-se essa linha de raciocínio, pode-se afirmar que as relações existentes

eram obrigacionais, sendo certo que não existiu nenhuma proteção real ao concessionário,

uma vez que este não tinha o ius fruendi nem o ius utendi da propriedade, possuindo

somente um re frui licere, entendido como uma garantia para a utilização do solo, pois o ius

fruendi e o ius utendi pertenciam ao proprietário do solo.

Assim, o direito de superfície nos primeiro tempos é resultante da inalienabilidade

do solo público e de seu arrendamento, no qual o pagamento do solarium constitui um

elemento essencial para que se reconheça o domínio do Estado, não guardando nenhuma

semelhança com o agri vectigales devido pela constituição da enfiteuse. Era direito

obrigacional, sendo estabelecido, conforme afirma Ulpiano em D. 43, 18,1,1, mediante

contrato de arrendamento ou alienação, porque existia o princípio superfícies solo cedit, que

determinava que tudo que se incorporasse ao solo pertencia a seu proprietário. A alienação

também se movia dentro da esfera do direito obrigacional, não sendo negócio translativo do

domínio. Sendo arrendamento, este não guarda muitas características do arrendamento

tradicional, sendo bem mais um arrendamento anômalo. Por estes motivos, dentro do âmbito

do ius civile o direito de superfície não tinha autonomia.46

Conforme elucidações do professor Orlando Gomes 47 o direito de superfície foi um

instituto de origem romana que, na República, serviu para que os particulares se utilizassem

de terrenos pertencentes ao Estado, conservando este a propriedade do solo e aquele o 43 LIMA, Frederico Henrique Viegas de, op.cit., p-15. 44 LIMA, op. cit., p.16. 45 LIMA, op. cit., p.17. 46 LIMA, op. cit., p-19. 47 GOMES, Orlando. O Direito de Superfície, Jurídica-revista trimestral, nº 119, ano XVII. Out.-Dez – 1972, Biblioteca da PUC/Rio.

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direito de uso que era transferível, direito que passou para a Idade Média com caracteres

próprios, tendo sido rejeitado e posteriormente recondicionando no direito moderno,

mormente no alemão, suíço e italiano.

Contudo, no tocante à origem do direito de superfície, remontando ao Direito

Romano, vale a pena mencionar as constatações de José Guilherme Braga Teixeira48

pontificando que no Direito Romano clássico vigorava o princípio superficies solo cedit (as

benfeitorias acompanham o solo), segundo o qual tudo quanto fosse acrescido ao solo, como

plantações e construções, passava a integrá-lo e ao seu dono pertencia, não podendo ser

objeto de transferência senão juntamente com o solo, uma vez que nessa época, imperava o

caráter absoluto do domínio.

Porém, com o passar do tempo, quando já se admitia entre os romanos a existência

de coisas incorpóreas (iura), foi que o caráter absoluto da propriedade abrandou-se, tendo o

domínio passado a sofrer limitações na sua plenitude, impostas por servidões, usufruto e

uso.

Com base nas informações do citado doutrinador, o imóvel que compreendia o solo

e suas acessões, ainda que sofresse limitações impostas pelos gravames mencionados,

continuava a pertencer, por inteiro e com exclusividade, ao dominus soli, a quem competia

dele dispor por inteiro, não se cogitando da possibilidade da existência de propriedade de

construção ou de plantação separada da propriedade do solo, ainda que em caráter temporário

e resolúvel, tendo a superfície se originado não de um ius in re aliena, mas no arrendamento

de longo prazo (locatio conductio rei).

O Professor Ricardo Pereira Lira49, citando Roberto de Ruggiero ensina que

romanistas e civilistas, estrangeiros e pátrios, notaram a presença do direito de superfície no

direito romano, embora os romanos tenham atribuído ao solo importância qualificada. Sendo

assim, até o direito justinianeu, o princípio superfícies solo cedit, ou seja, o princípio

segundo o qual a construção ou plantação feitos em solo de outrem acedia à propriedade do

dono do solo prevaleceu, durante um certo tempo, entre os romanos.

48 BRAGA TEIXEIRA, op.cit., p.16. 49 LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.18.

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Tal situação, ensina o Professor Ricardo Lira,50 se deve ao fato de que prevalecia

entre os romanos a absoluta senhoria sobre a coisa, projetando-se o poder do proprietário ao

ponto máximo do desfrute.

Pelo princípio da acessão, duas coisas se unem fisicamente, formando um todo

unitário e indissolúvel, estando cada parte em relação de dependência uma com a outra, de

maneira que, em princípio, os romanos não conceberam a propriedade superficiária

separada, de maneira que terreno e construção ou terreno e plantação, eram vistos e

compreendidos como coisa única e não como coisas diferentes, embora estivessem

intimamente conexas, conforme registra o Professor Ricardo Lira.

Por outro lado, no caso do direito romano, no que se referia à plantação (plantatio)

havia duas situações bem distintas, ou seja, na primeira a planta era extraída e posta sobre

o solo de outrem ( positio), tendo-se a segunda quando a planta começava a enraizar-se

(coalitio).

Das lições de Ebert Vianna Chamoun 51 colhe-se que a superfície nasceu, no seio

do direito romano, como um mecanismo para corrigir determinadas conseqüências do

conceito romano de domínio que as novas transformações do instituto tornavam

antieconômicas.

Segundo o citado autor, os romanos entendiam que tudo que estava sobre o solo se

incorporava, necessariamente, por direito natural, ao seu proprietário, donde o princípio

superfícies solo cedi.

Com isso, conclui o citado autor que os romanos não concebiam a propriedade da

construção separada da propriedade do solo. Contudo, quando o número de propriedades

particulares se rarefez, introduziu-se o uso de conceder a particulares o direito de edificar no

solo público e gozar da construção, perpetuamente ou não.

Ebert Chamoun52, depois de tecer vários comentários acerca do direito de superfície

no sistema jurídico romano, ensina:

“O particular tinha apenas o uso do edifício e a faculdade de o transferir, devendo pagar um aluguel anual (solarium, pensio), ou uma quantia única. Mais tarde esse uso se generalizou entre as cidades e os particulares e, afinal, apenas entre estes. A superfície originava-se em geral de um contrato de locação do solo, ficando o superficiário armado com uma actio conducti contra o proprietário do edifício, o

50 LIRA, op.cit., p.2. 51 CHAMOUN, Ebert Vianna. Instituições de Direito Romano. 3ª ed. rev. e aumentada. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1957. p. 280. 52 Idem., Ibidem., p. 281.

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qual era sempre o proprietário do solo. Contudo a superfície assumiu uma tal importância que o pretor concedeu ao superficiário um interdito especial, análogo ao uti possidetis, o interdito de superficiebus, que protegia a posse de quem quer que tivesse o gozo do edifício nec vi nec clam nec precário autorizado por um contrato de locação do solo.”

Pode-se referir, ainda, com base no citado doutrinador que posteriormente, se as

fontes foram fiéis no direito clássico, ou então somente no pós-clássico, deu-se ao

superficiário uma ação real, uma actio in rem, espécie de rei vindicatio utilis contra o

dominus. As ações oriundas das relações de vizinhança, segundo o Professor Chamoun

também foram estendidas ao superficiário ou contra ele, tornando-se assim a superfície um

direito real alienável e transmissível aos herdeiros.

Chamoun 53 considera que no direito justinianeu, o direito do superficiário é quase

absoluto, sendo certo que o superficiário não tinha obrigações perante o proprietário e o

pagamento do solarium parece não ser essencial à superfície. De acordo com o citado autor,

além da locação e da venda, a superfície pode constituir-se pela doação, quando o solarium é

objeto de renúncia, extinguindo-se pela destruição do imóvel, pela confusão dos titulares,

pelo resgate, prescrição extintiva, ocorrendo, o que se denominou usucapio libertatis, não

tendo a decadência aplicação na superfície.

De tudo quanto foi dito até agora, pode-se concluir que desde o direito romano

arcaico se possibilitava ao cidadão ou superficiário, o direito de construir um edifício em

solo público e, mais tarde, em solo particular, não próprio, mediante o pagamento de certa

quantia anual denominada solarium ao proprietário do terreno.

De início, por força do princípio superfícies solo cedit, tudo que fosse edificado

sobre o solo pertencia exclusivamente ao seu proprietário. No entanto, como mecanismo

para minimizar esse inconveniente, na época clássica, através de um contrato denominado

locatio conductio ou emptio venditio celebrado entre o dominus e o superficiário,

assegurava-se a este o direito de construir e de gozar, perpétua ou temporariamente, da

edificação.

Tal negócio jurídico fazia nascer entre o dominus e o superficiário um direito real,

ou seja, o ius in re aliena, contrariando, então o princípio do ius civile romano, tendo em

vista que o superficiário podia alienar o edifício que era transmissível por ato entre vivos ou

por causa da morte, na sucessão hereditária, podendo o titular do direito de superfície

53 CHAMOUN, op. cit., p. 281.

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desfrutar de todos os poderes inerentes à propriedade, embora não fosse proprietário do

edifício, sendo tal direito assegurado pelo interdictum de superficiebus, consistente em tutela

erga omnes.

Conforme ponderações de José Rogério Cruz e Tucci 54 no período pós-clássico,

em decorrência de fatores econômicos, o instituto da superfície ganha importância.

Contudo, o citado autor pontifica que os romanistas não são unânimes quanto à natureza

jurídica da superfície nessa época do Direito Romano, pois ao que tudo indica, existem

sérias dúvidas de ordem doutrinária sobre se no direito justinianeu havia a propriedade de

edifício separada da do solo. Ademais, o direito real de gozo concedido ao superficiário

jamais poderia ser equiparado ao direito de propriedade, exclusivo do proprietário do solo.

Com relação ao surgimento do direito de superfície no Direito Romano, vale a pena

mencionar as ponderações do Professor Ricardo Pereira Lira55 a esse respeito:

“ Eis em última análise a causa do nascimento do direito de superfície: necessidade de adaptação às condições sociais dos novos tempos, dando-se paliativo às conseqüências antieconômicas do conceito romano de domínio. Assim, embora a genialidade dos romanos tenha formalmente preservado até a época justinianéia a inteireza do princípio da acessão, o espírito criador encontrou meios de conferir ao edificador em solo alheio o direito de gozo sobre o resultado de sua atividade. ”

Por fim, cumpre salientar que várias teorias foram propostas quanto a origem do

instituto da superfície. Contudo, conforme lições do Professor Ricardo Lira56, a origem do

direito de superfície está nas concessões de solo público a particulares, dando-lhes a

faculdade de nele construir e gozar da construção de modo exclusivo, sendo a relação

jurídica estabelecida entre concedente e o concessionário de caráter obrigacional,

pagando o segundo ao primeiro um solarium, com natureza vectigal e significava o

reconhecimento da propriedade do titular do solo público.

Posteriormente, o que ocorreu foi que a pressão do desenvolvimento edilício

determinou a expansão da superfície entre os particulares nos mesmos moldes da concedida

em solo público, podendo-se afirmar que o instituto da superfície acabou migrando do direito

público para o direito privado, por força da escassez das terras e das transformações sócio-

econômicas, pelas quais a sociedade passou.

54 CRUZ E TUTTI, José Rogério. A Superfície no Novo Código Civil. Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil. São Paulo: Juris Síntese, nº 22, p.99, mar-abr. 2003. 55 LIRA, op.cit., p. 20. 56 Idem., Ibidem., p.22.

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2.4.2. O Princípio superfícies solo cedit e a evolução do Direito de Superfície

Conforme manifestações de Frederico Henrique Viegas de Lima57, dentro das

normas do ius civile, o direito de superfície não tinha uma autonomia própria, em virtude

do princípio superfícies solo cedit. A situação do princípio no ius civile era clara, tendo sua

origem no caráter de atratividade da antiga propriedade fundiária romana de onde vem a

expressão. Também não é resultante de nenhuma lei, mas é reconhecido e imposto ao

direito romano como a expressão de uma realidade intuitiva.

Durante a época do ius civile, a configuração do princípio começa a fortalecer-se,

sendo sua aplicação sempre ampliada, conforme nos demonstram os exemplos que podemos

encontrar em Gayo, D.43, 18,2; Paulo, D.44, 7, 44, e em Ulpiano, D. 9,2,50. 58

Ainda de acordo com o citado doutrinador, a partir desta orientação, tem-se no

âmbito do ius civile, a transferência do domínio da superfície e a constituição de um direito

real separado da propriedade do solo eram impossíveis. A impossibilidade de derrogação do

princípio superfícies solo cedit está fundada num antigo significado social, no qual a

propriedade em Roma era independente, exclusiva e perpétua, apesar de que, já num estágio

evolutivo posterior, esta começa a assumir uma nova finalidade econômica e social. 59

Assim, é inegável que o princípio começa a se revelar antieconômico em virtude de sua

inderrogabilidade e não alcança a autonomia conseguida pelo conceito individualista da

propriedade. 60

Desta forma, o direito de superfície desenvolve-se no direito romano, levando em

consideração a existência do princípio da acessão. Em todos os períodos do direito romano o

princípio está em vigor, chegando até a época pós-clássica, quando no direito justinianeu

começa a ser atenuado, mas continua existindo. 61

Conforme adverte o professor Ricardo César Pereira Lira 62 da propriedade do solo

decorria que tudo o que nele viesse a acrescentar pertenceria, por acessão, ao proprietário do

solo, sendo certo que essa rigidez de princípios se tornou inconveniente na medida em que

cresciam as cidades e se desenvolviam as obras públicas, ocorrendo que o solo romano

57 LIMA., op. cit., p. 20-22. 58 Idem., Ibidem., p. 20. 59 Idem., Ibidem., p. 21. 60 Idem., Ibidem., p. 21. 61 LIMA, op.. cit., p. 21. 62 op. cit., p. 20 e ss.

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passou a ser propriedade de corporações e de uns poucos particulares, fatores esse que

viabilizaram o surgimento do direito de superfície.

Por isso o direito de superfície se desenvolveu como um direito pessoal, sob a

forma de arrendamento, chegando a caracterizá-la e concluir a melhor forma para a

inclusão das concessões superficiárias. 63

Para Frederico Henrique Viegas de Lima64 apud Pastori, é indiscutível que no ius

civile o direito de superfície não podia ser considerado um direito real, existindo por isto

uma tendência a atribuir à locatio do solo uma atribuição superficiária. Desta forma, a

locatio da superfície assume uma autonomia com respeito à locatio tradicional de solo,

sendo a partir disto que o instituto da superfície começa a delinear-se, constituindo num frui

da superfície com independência do gozo do solo.

Com a intervenção do pretor, reconhecendo o significado econômico que passou a

ter a locatio, começou a atribuir aos concessionários uma proteção real, através do

interdictum de superficiebus, depois é ampliado com a actio de superfície.

Dessa forma, o direito de superfície começa a deixar sua característica de direito

pessoal, passando a ter uma proteção real, sendo obra iniciada no direito pretoriano. 65

Por outro lado, a adaptação do direito de superfície para adequar-se à finalidade a

que se propunha, ou seja à possibilidade de conclusão de uma construção e que esta

construção venha a pertencer ao superficiário em propriedade separada do solo, é mais ampla

do que propriamente está contido na locatio no direito romano, sendo admitida a

constituição do direito de superfície por diversas formas de negócio jurídico. 66

A alienação como negócio jurídico constitutivo da superfície deriva-se de outro

estágio evolutivo do instituto, quando esta modalidade de negócio jurídico passou a ser

admitida também para a constituição do direito de superfície.67

3.4.3. A Superfície no Direito Intermédio

A influência do antigo direito germânico, que atribuía maior valor ao trabalho do

construtor do que ao direito de propriedade do solo, aliada ao interesse da Igreja em

legitimar as construções feitas sobre os terrenos de propriedade eclesiástica, deu grande

63 LIMA, op. cit., p.21. 64 PASTORI, Franco. La Superficie no Dirrito Romando apud VIEGAS DE LIMA, op.cit., p. 23. 65 Idem., Ibidem,. p. 23. 66 Idem., Ibidem., p. 25. 67 Idem., Ibidem., p. 27.

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desenvolvimento à superfície no direito intermédio, conforme expõem os estudiosos do tema,

sem maiores discrepâncias.68

Conforme elucidações de José Guilherme Braga Teixeira69 nessa época a superfície

passou a ser constituída também sobre plantações, tendo se admitido a existência de

propriedade da construção e da plantação separada da propriedade do solo.

Argumenta o citado autor que por se admitir a propriedade separada de construções

e plantações em diversos estatutos e costumes itálicos, o renascer dos estudos romanísticos,

principalmente por influência da Escola de Bolonha, fundada em 1808, fez com que muitos

desses costumes e estatutos reafirmassem a regra romana de que superfícies solo cedit.

De outro lado, pondera o citado autor que o feudalismo por ter dado importância e

aplicação à superfície e, principalmente, à enfiteuse, contribuiu significativamente na

concepção da doutrina do domínio dividido, fragmentado em direto ou iminente

(pertencente ao dominus soli) e útil (cabente ao enfiteuta) e que deu origem à escravidão do

homem à terra, criando a classe dos servos da gleba, formada pelos enfiteutas e

subenfiteutas dos latifúndios feudais. 70

Fazendo um breve comentário acerca do surgimento do instituto da superfície,

Marise Pessoa Cavalcanti71 esclarece que embora o direito de superfície tenha surgido no

direito romano-helênico, pós-clássico ou justinianeu, como mecanismo de abrandamento do

princípio superfícies solo cedit, foi no Direito Intermédio que a superfície teve grande

desenvolvimento, principalmente por força do direito germânico que valorizava o trabalho

do construtor em detrimento da propriedade do solo.

De outra parte, o direito canônico por expressar interesse da Igreja em legitimar as

construções feitas em seus terrenos também influenciou no desenvolvimento do referido

instituto. Segundo a citada autora, o fato do desconhecimento pelos povos germânicos, a

respeito do princípio romano da acessão, aliada à doutrina do domínio dividido originária do

feudalismo, redundou na fragmentação do domínio em direto ou iminente (dominus soli) e

útil (enfiteuta ou superficiário), passando o superficiário a ter domínio útil, estendendo-se o

objeto da superfície às plantações.

68 TEIXEIRA, op. cit., p.23. 69 Idem., Ibidem., p. 23-24. 70 Idem., Ibidem., p. 24. 71 CAVALCANTI, Marise Pessoa. Superfície Compulsória: Instrumento de Efetivação da Função Social da Propriedade, Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p.1-10.

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Assim, o direito superficiário deixou de ser um ius in re aliena, como era no direito

justinianeu, para tornar-se, no direito intermédio, uma verdadeira propriedade paralela à do

dominus soli, pois o superficiário passou a ter o domínio útil, tendo sido o instituto

largamente utilizado nas plantações.

Cumpre ressaltar que o Direito Canônico também se serviu amplamente da

superfície para legitimar as construções realizadas sobre terrenos de propriedade eclesiástica

e para explorar suas terras incultas, mediante concessões superficiárias ad plantandum dadas

pela Igreja, tendo por característica conterem a ressalva que impedia serem as edificações e

as plantações alienáveis pelo superficiário.

Os abusos a que deram causa a superfície e a enfiteuse tornaram-nas extremamente

odiosas, pois escravizaram o homem à terra, em razão dos absurdamente altos preços dos

censos que deviam pagar os enfiteutas e superficiários, e, principalmente, os inúmeros e

incontáveis subenfiteutas e subsuperficiários. Esse ódio tornou-se uma bandeira dos

revolucionários franceses, que foi desfraldada mesmo além das fronteiras gaulesas. A

Revolução Francesa baniu tanto a enfiteuse quanto a superfície, restaurando a unidade do

ius proprietatis ( uti + frui + consummere) na pessoa do dominus soli.

2.4.4. O Instituto da Superfície no Direito Moderno

O professor Ricardo Pereira Lira72 cuidou, de forma bem aprofundada da

questão ligada ao direito de superfície e o direito comparado, tendo abordado o instituto da

superfície no âmbito dos direitos francês, alemão, italiano, inglês, austríaco, suíço, holandês

e belga, soviético, espanhol, no direito português e argentino, senão vejamos.

Para uma melhor abordagem do tema o citado autor tratou de dividi-lo em três

grandes grupos, cuidando primeiro daqueles que disciplinam expressamente o instituto,

como por exemplo, o direito alemão, o direito italiano, o direito espanhol, o direito holandês,

o direito belga, o direito suíço.

Num segundo grupo o autor relacionou aqueles povos em que o direito de superfície

é resultado de construção doutrinária, como o direito francês e o direito italiano ao tempo do

Código Civil de 1865.

De outra feita, num terceiro agrupamento posicionou os que não reconhecem a

existência do direito de superfície, prevalecendo nesses ordenamentos o numerus clausus

72 LIRA, op. cit., p.31-52.

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para os direitos reais, com o banimento do instituto, como a Argentina e o Brasil ao tempo

do Código Civil de 1916.

Segundo o professor Ricardo Lira 73 o direito francês é de ser incluído no segundo

dos grupos supracitados, por ter consagrado o direito de superfície, em razão da

manifestação de seus juristas.

Por outro, salienta o citado autor que inexiste uma regulamentação genérica do

direito de superfície no direito francês, tendo ele despontado de interpretação doutrinária do

artigo 553 do Código Civil francês ao estatuir que as construções, plantações e obras

presumivelmente pertencem ao proprietário do solo se o contrário não for provado, sendo o

superficiário proprietário das construções e plantações.

Segundo o professor Ricardo Lira 74, o Código Civil alemão foi uma das primeiras

codificações a regulamentar expressamente o direito de superfície, nos seus §§ 1.012 a

1.017, esclarecendo com base em Arminjon-Nolde e Wolf, que o direito de superfície se

tornou um dos meios a serem utilizados pelo movimento da reforma imobiliária, iniciado por

Adolf Damaschke, para resolver o problema da concentração da propriedade em mãos de

particulares, sendo a cidade de Frankfurt-sur-Mein a primeira a dar o exemplo seguido pelos

alemães, por ter tido o privilégio de abandonar a prática funesta da venda de extensas glebas

às empresas de construção e outros especuladores que tratavam a terra como simples

mercadorias.

A prática adotada consistiu em não mais vender terrenos destinados à construção

de moradias.

Veja-se, a seguir, o tratamento dado ao direito de superfície, através de um estudo

comparativos entre as legislações de diversos povos.

2.4.4.1. Direito Germânico

Conforme esclarece Frederico Henrique Viegas de Lima 75 somente com as

invasões dos povos bárbaros, passa-se a conhecer a propriedade privada dos solos de

cultivos, já não sendo estas designadas pela capacidade de produção de cada pessoa.

Estabelecem-se cotas iguais a cada um, convertendo um simples direito de desfrute em

propriedade.

73 LIRA, op.cit., p.32 74 Idem., Ibidem., p. 36-37 75 VIEGAS DE LIMA, op. cit., p.38-40.

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Desta forma estabeleceram-se as relações econômicas nos povos germânicos antes

do contato com a cultura romana. Não existia uma propriedade privada, nem um desfrute de

uma parcela de terras em exclusividade. A todo ano eram designados os direitos de

utilização de cada pessoa, não constituindo um direito de exploração em longo prazo por um

tempo determinado, não existindo, portando, o princípio do trabalho.

Para Simoncelli, citado por Frederico Henrique Viegas de Lima,76 baseada no

princípio do trabalho, em oposição ao princípio romano da acessão, a propriedade era

adquirida como compensação à obra realizada num terreno alheio. Contudo, a partir do

império franco, estas relações começam a sofrer modificações. A cultura germânica põe-se

em contato com a cultura romana, modificando as características das explorações nômades e

pratenses para uma utilização intensa da terra. Passam a existir as propriedades de terras

em separado, desaparecendo a igualdade até então existente na posse imobiliária.

Pelas conquistas, as terras vêm a ser de propriedade do Rei, que as concedia, por

livre arbítrio, a determinadas pessoas, a fim de que estas contratassem com os demais, seus

cultivos. Tais senhores, chamados de feudais, eleitos pelo Rei, concediam as terras a

particulares nas condições de precarium, isto consistindo, na Alemanha, a principal forma

de concessão durante séculos. 77

Para o citado autor, dentre os censos, o principal e o que ganhou um significado

maior foi o censo livre. Nele, somente era necessário o pagamento do cânon, de

reconhecimento, depois convertido em hereditário, sendo certo que através destes censos, a

partir do século XII realizou-se a colonização do interior. Posteriormente, já no século

XIII, aparece, pela primeira vez, uma palavra para designar “propriedade”, eingentum, na

cidade de Colônia em 1230.

De acordo com Windscheid, é a partir das concessões feudais que aparecem, na

vida jurídica germânica, os direitos de desfrute, distintos das concessões romanas. Com as

concessões de precário, variáveis de pessoa a pessoa, cria-se um direito real. Suas relações

baseavam-se na vontade de uma das partes, quando se referiam a um imóvel. Já a superfície

só passou a ser conhecida no direito germânico a partir da influência romana, por referir-se

a uma edificação urbana. 78

76 LIMA, op.cit., p.38. 77 Idem., Ibidem., p. 39. 78 Idem., Ibidem., p. 40.

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Segundo Marise Pessoa Cavalcanti79, o Direito Alemão foi um dos primeiros a

regulamentar, expressamente, o instituto da superfície, no BGB, de 1896, utilizando-a como

um instrumento para reforma imobiliária na época.

Sendo assim, os terrenos públicos, em vez de serem alienados, tornavam-se objeto

de superfície viabilizando a locação social, através de associações de utilidade pública, ou a

construção da casa própria para as classes trabalhadoras e média. Essa prática, por óbvio,

tinha por objetivo coibir a especulação imobiliária, tornar o Poder Público beneficiário da

mais-valia, além de poder influenciar na maneira de construir.

Terminada a Primeira Guerra Mundial, vislumbrou-se o direito de superfície como

um meio de fornecer aos ex-combatentes um modo de adquirir moradia própria, criar

habitabilidade. A reforma de 1919, aprimorando o texto do BGB, teve por finalidade

propiciar um caráter mais prático e efetivo à superfície, tornando-a mais comercial, através

de previsões úteis no plano prático, evidenciando a capacidade hipotecária desta, tendo sido

o instituto da superfície no Direito Alemão limitado-se às edificações.

O direito de superfície alemão é necessariamente alienável, transmissível pela via

sucessória. Não pode ter por objeto uma plantação, inexistindo a superfície sob a modalidade

vegetal.80

Quanto a este aspecto do direito de superfície alemão vale a pena transcrever as

observações feitas por Rima Goraieb81 , verbis:

“ Quanto ao conteúdo, o direito de superfície é o direito que visa ter uma edificação, em sua totalidade, sobre um fundo alheio. Não pode ter por objeto plantações, nem apenas partes de um edifício. Neste particular há grande diferença do BGB, sob cujo regime tudo o que era convencionado entre as partes tinha apenas caráter obrigacional, enquanto sob a Ordenança, fazem parte do conteúdo do próprio direito de superfície e têm força real. O direito de superfície é um direito, não uma coisa, porém é tratado como uma coisa, e precisamente como uma coisa imóvel, de acordo com o § 1.017 ap. 1C.c. do § 11 do Regulamento. É um fundus jurídico”.

2.4.4.2. Direito Italiano

No direito intermédio italiano, as relações de propriedade podem ser nitidamente

separadas em dois grupos, estando um grupo composto pela propriedade urbana, onde

marcadamente se encontra a influência germânica da propriedade separada e o outro está

composto pela propriedade rústica, influenciada pela regra romana da acessão, época

79 CAVALCANTI, op.cit., p.22-23. 80 LIRA, op.cit., p. 41. 81 GARAIEB, Rima. O direito de superfície. 1980. Dissertação ( Mestrado em Direito) – Departamento de Ciências Jurídicas, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. p.81.

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caracterizada pela tradição romana com o princípio da acessão e a recepção germânica da

propriedade separada.

Como afirma Frederico Henrique Viegas de Lima 82 a partir do Estatuto das

cidades italianas, renasce a influência romana e, em particular, ressurge o princípio romano

da acessão. Sem embargo, o superfícies solo cedit vem a ser muito mais uma regra

destinada à propriedade rústica, enquanto a propriedade urbana continuava sendo

influenciada pelos princípios germânicos. Segundo o citado autor, no Estatuto de Bologna, o

concessionário vem a ser caracterizado como o titular do domínio direto, existindo a

propriedade separada da edificação, sendo o concessionário obrigado a pagar um cânon. O

direito consuetudinário e o Estatuto da cidade de Bologna transformaram o ius superficiei

romano, concebido como um ius inre aliena, num efetivo direito de propriedade para a

construção.

Por outro lado, existiam dois direitos análogos ao direito de superfície romano. Um

era ius intraterrae, relativo às edificações urbanas, estando regulado no estatuto da cidade

de Florença e aplicável especialmente aos comerciantes desta cidade. Outro, o ius de

gazagá, utilizado pelo Estado Pontifício a fim de realizar suas concessões. 83

Os ius intraturai representava um direito concedido ao comerciante estabelecido e

que desenvolvesse sua atividade em determinado local arrendado. Este comerciante não

poderia ser expulso a não ser pelos modos especialmente determinados pelo estatuto,

podendo atribuir tal direito a uma terceira pessoa. O ius de gazagá era utilizado pelo Estado

Pontifício, visando ajudar aos hebreus impossibilitados pela lei de serem proprietários de

imóveis. Assim, por estas concessões, eles tinham uma posse por longo prazo. Pelo direito

podiam habitar, conservar e dispor do bem, sempre que para isto efetuassem o pagamento

de uma pensão impossível de ser reajustada. A concessão permitia realizar a venda, a

hipoteca, o subarrendamento e a transmissão aos herdeiros por parte do concessionário. 84

O ius de gazagá suscita dúvidas quanto à sua natureza jurídica, sendo que alguns

autores o assemelhavam a um ius in re aliena, enquanto outros à enfiteuse, sendo certo que

de acordo com Coviello, citado por Frederico Henrique Viegas de Lima, tratava-se de um

direito muito semelhante ao direito de superfície romano. Em ambos existe a impossibilidade

de existência da propriedade superficiária. No direito romano tal impossibilidade resultava

82 LIMA, op. cit., p. 43. 83 Idem., Ibidem., p.43. 84 Idem., Ibidem., p. 43-44.

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do princípio superfícies solo cedit. Já no ius de gazagá o impedimento advinha da própria

condição dos hebreus, que estavam legalmente proibidos de possuírem a propriedade de

terras. 85

Para Rima Goraieb 86 o silêncio do Código Civil Italiano de 1865, no tocante ao

direito de superfície, causou o surgimento de polêmicas entre os juristas e doutrinadores,

tendo versado, a princípio, muito mais sobre sua existência ou sobrevivência, do que

propriamente sobre suas características, tendo em vista tratar-se de um instituto vigente

tanto nos costumes, quanto nos Estatutos de várias cidades italianas até a promulgação do

Código, tendo sido reconhecido o direito de se obter uma propriedade de plantações, ou

construções sobre ou sob o solo , distinta da propriedade do terreno,derivando desse direito a

possibilidade de alienação separada.

Relativamente ao princípio da acessão, o Código estabelecia que, tudo o que se

incorporasse ou se unisse à coisa, pertencia ao proprietário dela (art. 446), tendo havido a

presunção de que toda obra ou plantação, realizada sob ou sobre o solo, pertencia ao

proprietário. 87

Contudo, foi com base no artigo 448, igual ao artigo 553 do Código Civil Francês,

que teve início a indagação quanto a admissibilidade do direito de superfície e sua natureza,

sendo certo que a exemplo da doutrina francesa, a italiana acabou admitindo a propriedade

superficiária, ou seja, um direito de propriedade só em relação aos bens superficiários,

separado do direito de propriedade do solo, e com esse coexistente, conforme no informa

Rima Goraieb.88

Conforme a citada autora, o reconhecimento da propriedade superficiária foi feito

pela maioria dos escritores, dentre eles, Bianchi, De Filippis, Lomonaco, Ricci, Coviello e

Lucci, divergindo Gabba dessa corrente de civilistas adeptos da tese da existência da

propriedade superficiária.

Concluiu-se ser o direito de superfície distinto do direito sobre as construções,

perdurando mesmo se o edifício fosse destruído e podia ser alienado a qualquer momento.

Por outro lado, discutia-se o limite desse direito, tanto em relação ao espaço aéreo, quanto ao

85 LIMA, op. cit., p. 44. 86 GORAIEB, op.cit., p. 91-ss. 87 Idem., Ibidem., p. 92. 88 Idem., Ibidem., p. 92.

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subsolo, embora se preocupassem muito mais em estabelecer limites em relação a este, do

qual percebiam melhor valor econômico, do que em relação ao espaço aéreo.89

No tocante às suas principais características, ressalta Rima Goraieb que a

propriedade superficiária, como outra qualquer propriedade, continha o direito de gozar e

dispor da coisa de maneira mais absoluta, sendo esse o seu objeto, nos termo do art. 436.

Por outro lado, o proprietário do solo dele podia dispor, bem como do subsolo, desde que

respeitasse o direito outorgado ao superficiário, podendo exigir dele o cânon superficiário.

Quanto ao superficiário, este detinha o direito de usar e gozar da superfície, sem as

limitações impostas ao usufrutuário, bem como a faculdade de dispor e gravar, podendo usar

dos meios judiciais para defendê-la.

Apesar de não vir expressamente mencionado no Código Civil de 1865, o direito de

superfície foi reconhecido e admitido pela doutrina, sendo posteriormente consagrado pela

jurisprudência, com fundamento no artigo 448 que previa a possibilidade de se provar a

propriedade de um imóvel separada da propriedade do solo sobre o qual se acha construído,

apesar das dúvidas e debates provocados, levando grande parte da doutrina a reconhecer a

possibilidade de se criar legalmente um direito de superfície, ainda que o Código tivesse

adotado o numerus clausus para os direitos reais.

Contudo, conforme aponta Rima Goraieb, com o novo Código Civil de 1942, o

direito de superfície foi acolhido e regulamentado, exceção feita quanto ao direito de

superfície sobre plantações. 90

O Professor Ricardo Lira diz claramente que, o Código Civil italiano de 1942, no

tocante à superfície, expressa o esforço jurisprudencial e doutrinário anteriormente tratado,

ao tempo da codificação precedente, sendo resultado de longa e sistemática tarefa

construtiva. Para o citado autor, no Código Civil italiano vigente, o direito de superfície está

expressamente regulamentado em seus artigos 952 a 956, sob o título De la Superfície, sendo

que o seu artigo 952 cuida da propriedade separada superficiária gerada por cisão. 91

Já em seu artigo 955, disciplinou o direito do superficiário fazer e manter

construção no subsolo de outrem, determinando a aplicabilidade em tal caso das regras de

direito relativas à construção sobre o solo.

89 GORAIEB, op.cit., p. 94. 90 Idem., Ibidem., p.97. 91 LIRA, op. cit., p. 43.

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Por fim, cumpre acrescentar que no Direito Italiano, o direito de superfície surgiu,

primeiramente, como fruto de construção doutrinária, sendo em seguida, prevista,

expressamente, no Código Civil de 1942, artigos 952 a 956, não tendo cuidado da

constituição de superfície tendo como objeto plantações, mas contemplou as obras

realizadas no subsolo, seguindo o modelo do Código Civil Suíço.

No tocante à impossibilidade de constituição de superfície sobre plantações vale a

pena mencionar passagem da obra de Alberto Trabucchi 92, verbis: “Nom è invece ammessa

la proprietà separata delle piantagioni. La esclude nettamente l’art. 956, perché il

legislatore há ritenuto che la promiscuità in questa matéria sai fonte di litigi e dannosa

all’agricoltura. Le eventuali piantagioni sul suolo altrui sono regolate dalle norme sulle

accessioni degli art. 934 e ss. (supra, § 182). ”

Sendo assim, o Código concebe o direito de superfície como forma especial de

propriedade, ou seja, a propriedade superficiária, sem defini-la ou regulamentá-la, dando

apenas normas básicas para sua constituição, determinando seu objeto (construção),

proibindo que recaia sobre plantações, conforme se infere de seu artigo 956.93

Por derradeiro, cumpre salientar que no artigo 955 94o legislador italiano cuidou do

direito de fazer e manter construção no subsolo de outrem, determinando que as regras de

direito relativas à construção sobre o solo se lhe aplicam.95

2.4.4.3. Direito Francês

Dando um visão sistemática do direito de superfície na França, o professor Ricardo

Lira 96 arrola o direito francês dentre aqueles cujo direito de superfície foi resultado de

construção doutrinária, como exceção ao princípio da acessão, tendo consagrado o direito

superficiário, em virtude do trabalho doutrinário de seus juristas.

No direito francês, as concessões de terras originaram-se das tenures, depois da

época Carolíngea, os censos se transformaram e evoluíram, partindo de uma concepção

restritiva, reconhecendo-se direitos mais amplos aos concessionários. 97

92 TRABUCCHI, Alberto. Istituzioni di Diritto Civile, ventitreesima edizione, aggiornata com le riforme. Padova: CEDAM, 1978. 93 Art. 956 Divieto di proprietà separata delle pinatagioni. Non può essere constituita o transferita la proprietà delle piantagioni (821) separatamente dalla proprietà del suolo. 94 Art. 555 Construzioni al disotto Del suolo. Lê disposizioni precedenti (art. 954) si applicano anche nel caso in cui e concesso il diritto di fare e mantenere construzioni al disotto del suolo altrui (840). 95 LIRA, op. cit., p. 43-44. 96 IDEM., Ibidem., p. 32. 97 LIMA, op. cit., p.44.

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As tenures configuravam-se através de diversos tipos e classes, resultantes de

contratos completos, podendo, também, ser regionais em virtude da analogia com os censos.

Assim, cada região apresentava uma espécie própria de tenure, sendo certo que na

Normandia, o bourgage; Bretanha, o bail à domanie ou à convenant, enquanto na Alsacia

existia o bail hereditaire, em Bourbonnais e Nivernais, o bourdelage e em Artois, em

Hainaut e Flandres, o écheninage. 98

O Código Civil Francês de 1804, não contempla o instituto da superfície, podendo-

se afirmar que por trabalho da doutrina, a superfície decorre, implicitamente, do art. 553, o

qual estabelece, nos termos do já citado Código Civil Italiano, uma presunção relativa de que

as construções, plantações e obras são presumidamente pertencentes ao proprietário do solo,

se o contrário não for provado, o que consagra a possibilidade de uma divisão horizontal

entre proprietários sobrepostos. 99

Conforme ponderações do Professor Ricardo Lira100, citando Josserand, o direito

de superfície desponta implicitamente do art. 553, a teor do qual as construções, plantações e

obras presumivelmente pertencem ao proprietário do solo se o contrário não for provado,

entendendo a doutrina francesa que se o proprietário pode dispor da coisa por partes, tem a

faculdade de alienar “le dessus”, conservando “le tréfonds et la surface” e, sendo assim, em

direito francês, o superficiário é proprietário das construções e plantações.

Em que pese não ser objeto de disposições específicas do Código Civil Francês, o

direito de superfície existe na França não só como instituição de fato, mas também de

direito.

O direito de superfície derroga o princípio da acessão, separando a propriedade dos

bens superficiários da do solo, inexistindo comunhão, co-propriedade, sendo cada um

proprietário de coisas diferentes.

Pondera Rima Goraieb101, citando Moreira Alves, que a omissão do Código

Napoleônico em relação ao direito de superfície, apesar de o direito consuetudinário

reconhecê-lo,deve-se à falta de simpatia com que deviam ser vistos institutos como o censo,

a enfiteuse e a superfície depois do rompimento de vínculos vindos do feudalismo, tendo

98 LIMA, op. cit., p.45. 99 CALVACANTI, Marise Pessoa. op.cit., p. 26. 100 LIRA, op.cit., p. 34. 101 GORAIEB, op. cit., p.46.

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adotado em seu artigo 544 o sistema romano da propriedade individual, com seu caráter

absoluto, exclusivo e perpétuo.

Para a citada autora, ao aplicar esses princípios à superfície, não implicava em

admitir a coexistência de dois direitos sobre o mesmo objeto, pois o direito francês

considera que o direito de propriedade e o de superfície recaem sobre objetos distintos, quais

sejam, solo e construção.

Não tratando expressamente do direito de superfície, o código deu margem, no

entanto, a que a doutrina e a jurisprudência o abrigassem e desenvolvessem, em decorrência

do tratamento dado à acessão, que não tem um valor imperativo e absoluto como no Direito

Romano, mas uma concepção muito particular: é a acessão reputada uma presunção

refutável. 102

Em seu artigo 546 consagra a regra geral do princípio da acessão, cuidando das

coisas imobiliárias através dos artigos 551 e 552, sendo que as construções são tratadas pelo

artigo 553.

2.4.4.4 Direito Inglês

Na Inglaterra, as concessões de terras têm sua origem no sistema feudal, com as

conquistas normandas, evoluindo com o costume e o desenvolvimento das decisões dos

tribunais, formando o common law. O Rei distribuía as terras aos lords e estes

concretizavam as concessões para a população. Com isto, criaram-se as relações de tenure

entre o lord e o camponês, sendo esta uma relação de serviço. Pela utilização da terra, os

camponeses eram obrigados a prestar serviço aos lords, em geral, no âmbito militar.

Também, em tais relações permitia-se o subarrendamento das terras, quando os lords

consentiam. 103

É a partir dos leases que a terra começa a ter significado na Inglaterra. O contrato

de lease era uma concessão, cujo objeto visava a concluir uma pequena construção ou

exploração agrícola. Nela, o concessionário obrigava-se a pegar uma renda durante toda a

concessão, e também podia realizar um sublease. 104

No direito inglês há um conjunto de contratos superficiários, reunidos sob a

denominação comum de building-lease, criados pela prática, existentes até a época de hoje,

102 GORAIEB, op. cit., p. 47. 103 LIMA, Frederico Henrique Viegas de.op.cit., p. 48. 104 LIMA, op. cit., p. 49.

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podendo-se distinguir duas formas de building-lease. Na primeira, a mais rara, o

proprietário do terreno faz o parcelamento, arruamento, canalização, para em seguida

construir e vender as casas. Na outra, entrega o terreno a um empresário, que realiza as

obras e infra-estrutura, e os contratos, próximos do tipo superficiário, assumem forma

diversificada. Em termos genéricos, há uma cessão, sob a forma de lease, mediante o

pagamento de cânon, com o prazo máximo de noventa e nove anos e especificação de

classe e condições principais das edificações a serem levantadas. A eficácia do lease não

tem começo senão com a construção das casas, de forma que, enquanto isso não ocorre, há

uma posse precária (tenancy at will), mera expectativa de lease, gerando as obrigações de

edificar e pagar o cânon, tuteladas por ação destinada à rescisão do contrato por

inadimplemento. Completada a construção o direito real surge, e o lease-holder pode opô-lo

eficazmente contra terceiros, inclusive contra o novo adquirente do solo. Vencido o prazo, o

imóvel com as construções reverte ao proprietário (landlord).105

Para Marise Pessôa Cavalcanti106 a utilização dos building-leases , ou seja, conjunto

de contratos superficiários utilizados na Inglaterra justifica-se sua larga aplicação,

principalmente em Londres, uma vez que nesta cidade o solo pertence a alguns poucos

magnatas.

É partir dos leases que a terra começa a ter significado na Inglaterra. O contrato de

lease era uma concessão, cujo objeto visava a concluir uma pequena construção ou

exploração agrícola. Nela, o concessionário obrigava-se a pagar uma renda durante toda a

concessão, e também podia realizar um sublease. Os contratos de leases concretizavam-se

de diversos modos, porém até 1926, os leases mais comuns eram os perpetually renewable

leases. Como seu próprio nome caracteriza, eram leases contratados para a perpetuidade,

sem tempo definido e, ao final da concessão podiam ser renovados. Pelo law of property act

of 1922, todos os leases perpétuos foram reduzidos a 2.000 anos, contados da data de seu

início, sendo incluídos neste prazo também os subleases. Depois de 1926, com a edição do

law of property act of 1925, todos os leases deveriam ter um tempo designado de concessão,

sendo comum os de 99 ou 999 anos.107

105 LIRA, op.cit., p. 44. 106 CAVALCANTI, op. cit., p.27. 107 VIEGAS DE LIMA, op. cit., p.49.

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2.4.4.5. Direito Espanhol

A respeito do direito de superfície na Espanha, Frederico Henrique Viegas de

Lima108, esclarece que no direito espanhol antigo, não se podia dizer que o direito de

superfície se encontrava regulado, não existindo nenhuma disposição semelhante ao

interdictum de superficiebus romano, de forma que o direito de superfície encontrava-se

absorvido pela enfiteuse.

Nas Siete Partidas, que seguem o direito romano, não se pode encontrar nenhuma

regulamentação específica do direito de superfície. Seus preceitos se encontram, uma vez

mais, em conjunto com a enfiteuse e com os arrendamentos.109

De acordo com Gregório Lopes, apud Frederico Henrique Viegas110, não é

considerada válida a venda do solo quando a finalidade de compra reside nos acessórios do

terreno e não no solo em si mesmo. Também, se houvesse a obrigação de pagar uma renda

pelo solo, passando à destruição da casa, olival ou vinha, não subsiste a obrigatoriedade do

pagamento, mesmo quando existe o terreno.

No tocante à denominada Lei 74 de Touro e Disposições Posteriores, pode-se

afirmar que ao contrário do que ocorre nas Partidas em que o direito de superfície vem

absorvido pela enfiteuse, nas Leyes de Toro, mais precisamente na Lei 74, não se pode

duvidar de que se trata de um direito de superfície, ao afirmar que “quando concurriren em

sacarla cosa vendida por el tanto, el pariente mas propinquo com el señor de directo

dominio, o con el superficiario o con el que tine parte em ea, porque era comum prefierarle

en dicho retracto el señor de directo dominio y el suerficiario y el que tiene parte em ea a

pariente mais propinquo.” 111

O referido dispositivo legal faz menção para situação em que na venda de coisa a

parente próximo do senhorio do domínio direto, do superficiário ou de quem tenha parte na

aludida transação, sendo certo que em tal venda terá preferência o parente mais próximo,

sendo certo que existe uma ordem estabelecida na referida lei para o exercício do direito de

preferência, podendo haver pagamento de cânon superficiário, possibilitando a existência de

regulamento autônomo da superfície, podendo esta se encontrar também debaixo das

normas da enfiteuse.

108 LIMA, op.cit., p. 50. 109 Idem., Ibidem., op.cit., p.50. 110 Apub, LIMA, op.cit., p.52. 111 LIMA, op.cit., p.52

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Conforme averba o professor Ricardo Lira112, o Código Civil espanhol não

regulamentou de forma substantiva o direito de superfície, tendo-o regulamentado de forma

implícita, fazendo alusão expressa à lei hipotecária em seu artigo 107, nº 05, para o fim de

declarar suscetível de hipoteca e de natureza real o direito de superfície, sendo certo que a

ausência de regulamentação mais precisa ocasiona dificuldades para se examinar com

profundidade o conteúdo, estrutura e natureza do direito de superfície, tendo o citado

professor afirmado ser discutível sua autonomia e existência diante do mencionado artigo

1.655, que ao disciplinar o regime dos foros e quaisquer outros gravames de natureza

análoga, com referência implícita ao direito de superfície, termina por determinar a aplicação

ora das normas pertinentes ao arrendamento, ora concernentes à enfiteuse.

Contudo, é na denominada Lei do Solo de 1956, regulamentada pelo Decreto de 17

de março de 1959, que introduziu modificações no Regulamento Hipotecário Espanhol,

que se desenvolveu modalidade urbanística de direito de superfície, seguindo o moderno

modelo para o instituto, conforme elucida o professor Ricardo Lira.113

Sobre o pouco interesse dos juristas espanhóis quanto ao desenvolvimento do direito

de superfície naquele país, vale a pena citar passagem interessante da obra de Rima

Goraieb114 dando conta de que o direito de superficiário espanhol preservou valores e

instituições da Idade Média, como o regime dos Senhorios, modo de povoar as terras sem,

no entanto, aliená-las, uma vez que o ocupante deveria se retirar tendo o direito de levar

apenas os bens móveis. Por outro lado, a grande utilização do regime dos censos como

forma de obtenção de rendas sobre imóveis acabava por desempenhar o papel atribuído ao

direito de superfície, sendo questão de dúvida por parte de alguns doutrinadores a existência

do instituto da superfície.

Por outro lado, o Código Civil Espanhol em vigor desde 1º de maio de 1889,

seguindo o modelo francês, não regulamentou o direito de superfície, tendo estabelecido

como princípio geral que o dono de um terreno é também o proprietário das superfícies e do

subsolo, em seu artigo 350115 e, quanto às acessões, o artigo 353116 estabelece que a

propriedade de um bem dá direito por acessão à propriedade de tudo quanto se une ou 112 LIRA, op.cit., p.49. 113 Idem., Ibidem., p.50. 114 GORAIEB, op.cit., p.65- ss. 115 Artículo 350 – El proprietario de un terreno es dueño de su superficie y de lo que está debajo de ella, y puede hacer em él obras, plantaciones y excavaciones que lê convengan, salvas las servidumbres, y con sujeción a lo dispuesto em lãs leyes sobre Minas y Aguas y em los reglamentos de policia.. 116 Artículo 353 - La propiedad de los bienes da derecho por accessión a todo lo que ellos prodecen, o se les une o incorpora, natural o artificialmente.

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incorpore a ele, natural ou artificialmente, sendo admitida a presunção relativa de que as

acessões artificiais são realizadas pelo proprietário e às suas expensas (construções,

semeaduras e plantações), sendo admitida prova em contrário, nos termos do artigo 359117,

como na hipótese do direito de superfície.

Tal interpretação só é possível, tendo em vista que naquele país é facultada a

criação de direitos reais, posto ser adotado o regime de numerus appertus, nos termos do

artigo 2-2º da Lei Hipotecária e 7º de seu Regulamento, sendo que na prática essa

possibilidade de criação de direitos reais foi pouco utilizado, tendo-lhe sido atribuído pouco

valor, conforme elucida Rima Goraieb. 118

Contudo, atentos ao que preconizam os artigos 1.611 e 1655, os estudiosos são

unânimes em admitirem a coexistência do direito de superfície com outros gravames

semelhantes ao foros, incluindo-se o direito de superfície. No entanto, o pouco

desenvolvimento doutrinário e a escassa jurisprudência demonstram a inexpressiva

vitalidade do direito superficiário, sendo certo que as raras manifestações práticas do

instituto se davam sempre sob o amparo dos esquemas dos censos, por ser o direito espanhol

assentado no tradicionalismo, pouco afeito a influências estrangeiras, tendo dado mais

ênfase aos censos, não tendo a doutrina se preocupado em aprofundar no estudo do instituto

da superfície, dada a sua pouca utilidade prática naquele país.

De acordo com lições de Rima Goraieb119 em face do sistema do numerus appertus

dos direitos reais e com base no artigo 350 do Código Civil Espanhol, a doutrina passou a

admitir o direito de superfície como direito real limitado de gozo, que dá lugar à propriedade

superficiária ou propriedade temporal, limita o direito do dono do solo, seja suspendendo a

eficácia do princípio da acessão, seja facultando ao superficiário a construção ou plantações.

Posteriormente, sofrendo a Espanha com o fenômeno do crescimento das cidades

que culminou por agravar o aspecto habitacional aquele país acabou por promulgar a Lei do

Solo (Ley del Suelo y de ordenación urbana, de 12 de maio de 1956), cujo objetivo era a

ordenação do território para as finalidades urbanísticas, iniciando-se uma reforma fundiária

tendo por base princípios constitucionais, consubstanciados na Constituição Republicana de

1931.

117 Artículo 359 – Todas las obras, siembras y plantaciones se presumen hechas por el propietario y a su costa, mientras no se pruebe lo contrario. 118 GORAIEB, op. cit., p. 64. 119 Idem., Ibidem., p. 64.

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Trata-se de uma lei nitidamente de Direito Administrativo, que vem dar novos

contornos a um instituto do Direito Privado, preenchendo o vazio que causava a confusão do

direito de superfície com o censo enfitêutico e com o arrendamento. O Regulamento

Hipotecário Espanhol, com as modificações introduzidas pelo Decreto de 17 de março de

1959, também disciplinou o direito de superfície, cuidando do direito de superfície urbano

em seu artigo 16, nº 1 e no nº 2 cuidou do direito de construir, fazendo referência ao direito

de superfície rústico no artigo 30, nº 3, sendo certo que é no artigo 16 que se encontram os

requisitos para inscrição da superfície.

No entanto, conforme elucida Rima Goraieb120 a Lei do Solo não conseguiu

preencher as falhas do Direito Civil quanto ao disciplinamento do instituto da superfície, não

tendo conseguido harmonizar a legislação esparsa existente sobre o instituto, não atingindo

seu objetivo consistente em ser instrumento eficiente para a reforma fundiária pretendida,

razão pela qual foi publicada a Lei 19/1975 de 02 de maio, objetivando superar os defeitos

da lei anterior, empregando o direito de superfície com o objetivo de disciplinar o uso do

solo e com estímulo aos proprietários privados para colocarem no mercado bens (solo) sem

renunciarem a sua recuperação futura, sendo certo que a lei reformada veio por cobro às

especulações doutrinárias possibilitando com a criação da superfície, uma propriedade

autônoma e distinta do solo, denominada propriedade superficiária.

2.4.4.6. Direito Chinês

Na China, o Código Civil de 1929, cujo Livro III, regulador dos direitos reais,

entrou em vigor em 5.5.1930, referiu, expressamente, se o superficiário proprietário das

construções e outras obras, que fizesse, e dos bambus e árvores, que plantasse. 121

2.4.4.7. Direito Russo

De acordo com José Guilherme Braga Teixeira,122 alguns autores referem a

existência de um direito de construção soviético como similar à superfície, com o qual

apresenta grandes afinidades, pretendendo para esse direito a categoria de direito real,

enquanto outros informam, incisivamente, tratar-se de efetivo direito de superfície, existente

na Rússia desde o ano de 1912.

Para o autor citado, a revolução russa de 1917 extinguira a ordem jurídica existente

no regime extinto, passando a terra a ser propriedade exclusiva do Estado. Mas faz-se 120 GORAIEB, op. cit., p.69. 121 TEIXEIRA, op.cit., p.31. 122 Idem., Ibidem., p. 32-35.

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necessário reorganizar a ordem econômica e a social, bem assim, a fortiori, a jurídica. Era

preciso, outrossim, enfrentar o problema habitacional, pois, ainda que se apresentasse a via

da locação, esta tinha o prazo máximo de doze anos. Restava a solução de serem novas

construções edificadas pelo Estado e pelos municípios, solução inviável porquanto estavam

eles reduzidos à pobreza. Dessarte, o caminho encontrado pelo Governo foi readmitir na

legislação positiva o direito de construção, sob forma iniludivelmente superficiária.123

Quanto ao problema das plantações, vale a pena ser dito que o legislador procurou

resolver o impasse através da concessão, sob determinadas condições, do uso do solo aos

particulares, obedecidas condições previstas no Código Agrário de 30.10. 1922, instituição

denominada de usufruto agrário, seguindo-se a criação de uma modalidade de concessão

para construção nas cidades, sem necessidade de um ato especial de permissão, ou seja, sem

a regulamentação e as restrições que o denominado direito de construção, de 1922, impunha:

o usufruto de terreno urbano de 1925. 124

Os usufrutos mencionados acima eram formas do direito de superfície, na visão do

professor José Guilherme, uma vez que tinham caráter real, eram passíveis de transmissão

aos herdeiros e a terceiros, podendo ser onerados por hipoteca e penhor, não se extinguindo

pela só destruição da construção ou das florestas e outras plantações; impondo pagamento de

uma renda.

A superfície foi, no entanto, abolida do sistema jurídico soviético na reorganização

da ordem política, econômica, social e jurídica que se seguiu ao término da segunda guerra

mundial (1929-1945). 125

2.4.4.8. Direito Argentino

Na Argentina, cujo Código Civil foi sancionado em 29.09.1869 e entrou em vigor no

dia 1º.1.1871, tem-se um caso oposto a toda essa formação doutrinária, jurisprudencial e

legal do direito de superfície, que relatou-se. 126

Conforme afirma o professor Ricardo César Pereira Lira127 o Código Civil argentino

não arrola o direito de superfície no elenco dos direitos reais enumerados no artigo 2.503128,

123 TEIXEIRA, op.cit., p. 33. 124 Idem.,ibidem., p.34. 125 Idem., Ibidem., op. cit., p. 35. 126 Idem., Ibidem., p. 44. 127 LIRA, op. cit., p.52. 128 Artículo 2503 – Son derechos reales: 1 – El dominio y el condominio; 2- El usufruto; 3 – El uso y la habitación; 4 – Las servidumbres activas; 5 – El derecho de hipoteca; 6 – La prenda; 7- La antivresis.

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posto que, segundo o citado autor, a codificação projetada por Vélez Sarsfield é expressa no

impor o critério do numerus clausus, determinado no artigo 2.502.129

A codificação platina, impondo expressamente o critério do numerus clausus dos

direitos reais, não aludiu à superfície como sendo um dos direitos que elencou. As razões do

codificador argentino para deixar de contemplar o instituto(como o não fez outro tanto, com a

enfiteuse) estão expostas em longa nota de Vélez Sarsfield ao Código Civil Argentino. E não

se limitou o codificador em excluir a superfície, por sua omissão no rol dos direitos reais

admitidos e pelo caráter taxativo do elenco destes, tendo feito uma exclusão expressa do

instituto. 130

O artigo 2.614131 do Código Civil argentino não arrola o direito de superfície no rol

dos direitos reais, podendo-se concluir que o Código Civil daquele país inadmite

expressamente o direito de superfície.

Após tecidas todas essas considerações sobre o direito de superfície no direito

comparado, passa-se a vê-lo no sistema jurídico pátrio.

129 Artículo 2502 – Los derechos reales solo pueden ser creados por la ley. Todo contrato o disposición de última voluntad que constituuese otros derechos reales, o modificas elos que por este Código se reconocen, valdrá solo como constitución de derechoes personales, si como tal pudiese valer. 130 TEIXEIRA, op.cit., p.45. 131 Artículo 2614 - Los propietarios de bienes raíces no pueden constituir sobre ellos derechos enfitéuticos, ni de superficie, ni imponerles censos, ni rentas que se extiendan a mayor término que el de cinco años, cualquiera que sea el fin de la imposición; ni hacer en ellos vinculación alguna.

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3. O DIREITO DE SUPERFÍCIE NO BRASIL

3.1. Considerações Iniciais

Após o estudo do direito de superfície sob a ótica de vários ordenamentos jurídicos

estrangeiros, enfoca-se agora o instituto da superfície no ordenamento jurídico brasileiro,

ocasião em que será necessária uma breve incursão sobre o direito anterior ao Código Civil

brasileiro; logo após falará-se da codificação civil de 1916, através de uma abordagem de

posicionamentos doutrinários brasileiro acerca do instituto para, logo em seguida, cuidará-se

do instituto superficiário no âmbito do movimento de reforma do Código Civil brasileiro de

1916 e, por fim, abordar-se-á o tema já sob a égide do novo Código Civil de 2002.

Para tanto, será necessária a divisão do presente Capítulo em vários subitens, a fim

de facilitar o enfoque do tema proposto e uma melhor compreensão do desenvolvimento do

instituto da superfície em sistema jurídico.

Ao abordar o presente capítulo levar-se-á em consideração um pouco da história

do ordenamento jurídico pátrio, sobretudo a primeira codificação, sendo de grande valia

reportar-se ao texto do Professor Ricardo Pereira Lira132 Campo e Cidade no Ordenamento

Jurídico Brasileiro, onde o autor aborda a questão da terra rural e urbana no Brasil, desde o

período colonial.

Contudo, cumpre salientar que existem duas teorias, antagônicas entre si, acerca da

taxatividade ou não dos direitos reais, constituindo vexata quaestio entre os jurisconsultos,

nacionais e estrangeiros, sendo certo que no presente caso, mesmo na vigência do Código

Civil de 1916 em que não contemplou-se o direito de superfície dentre os direitos reais

existiam aqueles defensores cujas vozes ecoavam no sentido da viabilidade da instituição da

superfície no ordenamento jurídico brasileiro por meio de lei extravagante.

3.2. Período Colonial (Direito Português e Brasileiro)

No período que compreende 1500 e 1822 estiveram vigentes no Brasil todas as leis

portuguesas praticamente sem alterações em relação à sua aplicação em Portugal. Inclusive,

132 “ Portugal transplantou para o Brasil o regime sesmarial, que lá já havia sido adotado há cerca de dois séculos, instituído pela Lei Régia de 16 de junho de 1375, sob o reinado de D. Fernando, o Formoso. Ocorriam na metrópole, à época da edição dessa lei, distorções no uso e posse das terras rurais, com a conseqüente escassez de alimentos, êxodo rural e “ociosidade generalizada”. Registram os fatos que a atenção européia, em geral, e a portuguesa, em particular, se endereçavam para a Índia, sendo raros os que se não deixavam obcecadamente por ela fascinar. (LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico, Rio de Janeiro: Renovar, 1997, pág. 314-).

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ainda depois da independência política foi ratificada, integralmente, a legislação que se

encontrava em vigor até 1823, passando, assim, a constituir o que se chamou de direito

brasileiro puro, conforme elucida Frederico Henrique Viegas de Limas.133

No Brasil vigoraram como leis gerais por toda vida colonial as Ordenações do

Reino, ou Ordenações Filipinas. Foram editadas em 1603 por Felipe II de Portugal tanto para

reorganizar o direito régio português, quanto para agradar os portugueses, segundo José

Reinaldo Lima Lopes.134

Conforme elucida Pontes de Miranda, citado por Frederico Henrique Viegas de

Lima 135 dentre todos os direitos existentes no período intermediário, talvez seja o direito

português o que tenha maior importância para a formação do direito brasileiro, posto que,

o direito brasileiro nasceu de um ramo do direito português, sendo certo que com o

descobrimento do Brasil em 1500, Portugal levou para a sua nova colônia suas leis

vigentes, sendo estas aplicadas durante muitos séculos.

A evolução legislativa portuguesa e também a brasileira, são abundantes. Sua

aplicação no Brasil foi tão forte a ponto de as Ordenações Filipinas, mandadas formar pelo

Rei Felipe II da Espanha e I de Portugal, vigoraram até 1º de janeiro de 1917, momento da

edição do Código Civil brasileiro, muitos anos depois que Portugal tivesse seu Código

Civil. Em particular, esteve vigente até este ano o livro quarto das Ordenações, que tratava

do direito das coisas e direito das pessoas, permanecendo praticamente tais leis intocáveis

até 1916.136

Nas origens do direito português, encontram-se o direito romano, o direito

germânico e o direito canônico. É a partir da reconquista no século XII, à semelhança do

resto da península ibérica, nos primeiros anos da monarquia, que se difunde em Portugal o

direito romano justinianeu. São aportados como fontes de direito subsidiário,

principalmente, as Siete Partidas, o Fuero Real, as Flores de Las Leys e os Nueve Tiempos

de los Pleitos. 137

Tanto nas Ordenações Afonsinas, como no direito civil das demais Ordenações,

percebe-se a presença de dois elementos principais, ou seja, de uma lado, a legislação

nacional, concebida a partir das idéias, opiniões e costumes da população e o direito romano,

133 LIMA, op.cit., p.56. 134 LOPES, op.cit., p. 401 e ss. 135 Idem., Ibidem., p.56. 136 Idem., Ibidem., p.57. 137 Idem., Ibidem., p.58.

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considerado direito comum, que era aplicado subsidiariamente, com o objetivo de preencher

as lacunas do direito privado, que não eram poucas, sendo utilizadas as glosas de Acúrsio e

Bártolo, bem como as Siete Partidas, das quais as Ordenações eram uma transcrição quase

fiel, conforme nos elucida Frederico Henrique Viegas de Lima.138

Ante tais argumentos, por ter como fonte mais próxima as Siete Partidas, nas

Ordenações Afonsinas, não encontrou-se uma autonomia do direito de superfície, como

direito definido e caracterizado, estando esta, à semelhança das Partidas, absorvido entre os

regulamentos de enfiteuse e do arrendamento, de maneira que nas Ordenações Afonsinas,

livro 4, título 74, cuida-se de censo enfitêutico, constituído para toda a vida, no qual se dá

ao enfiteuta a faculdade de alienar seu direito de domínio útil, desde que garanta a

preferência ao senhorio direto, pelo mesmo valor oferecido a outra pessoa.

Tal dispositivo legal das Ordenações Afonsinas contempla os casos que em estando

uma casa arrendada, ainda que se à venda, o arrendatário não será obrigado a sair dela, sendo

certo que uma das causas possíveis a obrigar o arrendatário a desocupar o imóvel é o não

pagamento do cânon devido e, não estando o direito de superfície regulado, muito embora o

arrendamento seja a longo prazo e por tempo certo, conforme lúcidas colocações de

Frederico Henrique Viegas de Lima139, ao acrescentar que nas Ordenações Afonsinas, em

virtude da grande influência recebida do direito romano dos glosadores, desconhecia-se o

direito de superfície, sendo o instituto assimilado pela enfiteuse e pelos arrendamentos, não

gozando de autonomia.

Posteriormente, em 1512, o Rei D. Manuel manda editar as Ordenações

Manuelinas, trabalho concluído em 1521. Nestas Ordenações, cujas fontes se ancoram nas

Ordenações Afonsinas, conseqüentemente o direito de superfície se mostra encoberto

novamente pela enfiteuse e os arrendamentos.140

Por outro lado, foram incorporados novos preceitos sobre a maneria, notadamente

influenciados, pelo direito romano, seus glosadores e o direito subsidiário. Uma primeira

alteração inclui-se nas Ordenações Manuelinas, livro 4, título 61 que, diz respeito ao

pagamento da renda devida pelo arrendatário. Caso ocorra a destruição da imóvel arrendado,

138 LIMA, op. cit., p.58. 139 Idem. Ibidem., p.59-60. 140 Idem.,Ibidem., p.60.

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por alguns dos casos previstos na copiosa enumeração do presente título, o arrendatário não

será obrigado a satisfazer o pagamento da renda. 141

Já nas Ordenações Filipinas, publicadas em 1603 quando Portugal se encontrava

sob dominação espanhola, praticamente repetia todas as disposições das Ordenações que lhes

antecederam. Entre as três Ordenações, é a que terá maior significado para o Brasil, sendo

seu livro quarto aplicado até 1º de janeiro de 1917, momento em que entrou em vigor o

Código Civil. À semelhança das outras duas Ordenações, o direito subsidiário aplicável

continua sendo o direito romano, o direito canônico e as leis espanholas. 142

Nas Ordenações Filipinas, livro 4, título 43 aparece a definição de Sesmarias. Para

Mendes de Almeida, citado por Frederico Henriques Viegas de Lima143, o conceito de

sesmarias não podia ser aplicado no Brasil, porque naquela época só existiam terras que

nunca tinham sido cultivadas.

Pelo Alvará de 05 de dezembro de 1785, as concessões de sesmarias eram

realizadas nas terras da coroa portuguesa e tinham o caráter “essencialíssimo” de cultivo.Para

isto era possível seu arrendamento e concessão enfitêuticas, não fazendo previsão do direito

de superfície que se encontrava absorvido por estas duas primeira concessões. Pela

concessão de sesmarias era obrigatório o pagamento de um cânon ou pensão equivalente a

uma sexta parte dos frutos percebidos no terreno. No Brasil, sua finalidade era

essencialmente agrícola. 144

Assim, as Ordenações reconheciam apenas a enfiteuse e os censos como forma de

domínio dividido, sem considerar as outras formas de concessão a longo prazo, conforme

elucida Frederico Henriques Viegas de Lima.145

3.3. O Direito de Superfície no Brasil

Conforme esclarece Marise Pessôa Cavalcanti,146 durante o período de colonização

portuguesa, vigorou no Brasil colônia o direito de superfície, sendo certo que em Portugal o

instituto da superfície, com outra designação, foi regulado, primeiramente, no direito antigo,

pela Lei Pombalina de 09/07/1773, em relação a construções, árvores e plantações. O

141 LIMA, op.cit., p. 61. 142 Idem., Ibidem., p. 62. 143 Idem., Ibidem., p. 64. 144 Idem., Ibidem., p. 64. 145 Idem., Ibidem., p.65. 146 CAVALCANTI, op. cit., p. 29-37.

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Código Civil Português de 1867, por sua vez, no artigo 2.308 possuía previsão igual à lei

supracitada, mas com designação de acessão imobiliária.

No Brasil, conforme esclarece José Guilherme Braga Teixeira 147, enquanto colônia

de Portugal, vigeu o direito de superfície. Porém, com a independência, a lei de 20.10.1823

determinou continuasse a vigorar aqui a legislação do Reino de Portugal, razão pela qual o

instituto manteve sua existência no Direito pátrio. Mas já por volta do sexto decênio do

século XIX pugnavam os juristas pelo seu banimento do nosso Direito, o que ocorreu no ano

de 1864, por força da Lei nº 1.237, do dia 24 de setembro.148

No mesmo sentido são as elucidações do professor Ricardo Pereira Lira149 dando

conta de que o direito de superfície foi admitido em nosso direito até o advento da Lei nº

1.237, de 24 de setembro de 1864. Ainda de acordo com o professor Ricardo Lira, o jurista

Teixeira de Freitas, em nota ao artigo 52, § 2º, da Consolidação das Leis Civis, quando arrola

entres “as cousas do domínio do Estado” “quaesquer accumulações de terras casuaes, ou

artificiaes, que assentão sobre o fundo do mar (18), terras devolutas (19), minas e terrenos

diamantinos (20), pau-brasil (21)”, faz remissão a essa nota 21, onde indica: “(21) Regime de

12 de Dezembro de 1605, Lei nº 243, de 30 de Novembro de 1841 Art. 11, e Regul. De 11

de Janeiro de 1842. É um direito de superfície.”(grifo do autor). 150

Na sua consolidação das Leis Civis, Augusto Teixeira de Freitas praticamente não

tratava do direito de superfície. Para o autor, o direito de superfície se encontra absorvido

quase por completo pela enfiteuse. Um arrendamento contratado por dez ou mais anos é um

contrato enfitêutico que tem sua fundamentação no D.43,18,1. 151

De qualquer maneira, ao realizar a relação de espécies existentes de propriedade,

admite que a superfície é uma propriedade limitada dos direitos reais, conseguida através

do desmembramento desta.152

Também o artigo 52 de sua Consolidação das Leis Civis, quando trata dos bens de

domínio nacional e em particular, em seu parágrafo segundo, sobre os bens do domínio do

Estado, entende Teixeira de Freitas que existe um verdadeiro direito real de superfície em

relação a exploração do pau-brasil e de outras madeiras consideradas reservadas. Na

147 TEIXEIRA, op.cit., p.45. 148 Idem., Ibidem., p.45-46. 149 LIRA, op.cit., p.86-87. 150 Idem., Ibidem., p.87. 151 LIMA, op.cit., p.65. 152 Idem., Ibidem., p.66.

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exploração do pau-brasil, assim como em outras espécies de madeiras, o Estado detinha o

direito real de superfície, ou qualquer imóvel, destinado a extração. Porque estas madeiras,

apesar de poderem estar localizadas em imóveis particulares, constituíam propriedade do

Estado e a ele competia realizar sua extração e comercialização, possuindo, assim, seu

monopólio.153

Findo o monopólio, o Estado perdia o direito de superfície, como um ius in re

aliena, nos terrenos dos particulares. Contudo, continuava mantendo, com um domínio

pleno, a exploração de tais madeiras nos imóveis de domínio nacional.154

Marcadamente, existia na Consolidação das Leis Civis uma supremacia da enfiteuse

e do arrendamento sobre o direito de superfície. A regulamentação do direito real de

superfície não existia, estando este sempre à sombra dos outros dois institutos jurídicos. O

único caso de direito real de superfície existente foi a concessão de pau-brasil, tendo sido

abandonado posteriormente. A supremacia da enfiteuse sobre o direito de superfície se torna

cada vez mais forte, como se pode notar no Esboço de Código Civil, também realizado por

Teixeira de Freitas e em outras tentativas de codificações posteriores.

Por Decreto Imperial n. 2.318, de 1858, o Governo Imperial atribuiu ao Ministro da

Justiça o poder de confiar a elaboração de um código civil a um jurista de renome, tendo

sido indicado o próprio Teixeira de Freitas, que em 1865 desincumbiu-se da árdua tarefa,

publicando o Esboço, que continha 1.702 artigos, sendo 1.314 dedicados aos direitos reais e

que acabou por não contemplar o direito de superfície entre os direitos reais.

Daí, o professor Ricardo Lira155 fazer colocação no sentido de mostrar que o artigo

3.706 do Esboço considerava não escrita qualquer estipulação no sentido de criar outros

direitos reais ou modificar os permitidos em contrariedade às disposições regulatórias de tais

direitos, em trecho de sua obra que vale a pena transcrever, in verbis:

Será ilustrativo recuar no tempo, lembrando a determinação de TEIXEIRA DE FREITAS, no artigo 3.706 do Esboço: “Julgar-se-á não escrita, para valer somente como constitutiva de direitos pessoais (art. 19), se por tal puder valer, toda estipulação, ou disposição de última vontade, que constitua outros direitos reais, ou que modifique os permitidos ao contrário das disposições que os regulam [1997,p. 90].

153 LIMA, op.cit., p.67. 154 Idem.Ibidem., p.67. 155 LIRA, op.cit., p.90.

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Para o renomado civilista, seguramente a concepção de Teixeira de Freitas levou

Veles Sarsfield a enunciar para o Código Civil argentino disposição análoga em seu artigo

2.502 (Los derechos reales solo puedem ser creados por la ley. Todo contrato o disposición

de última voluntad que constituyse outros derechos reales o modificase los que por este

Codigo se reconocen, valdrá solo como constitución de derechos personales, si como tal

pudiese valer).

Sendo assim, podemos afirmar com Frederico Henrique Viegas de Lima156 que no

Esboço de Código Civil, Teixeira de Freitas silenciou-se acerca do direito de superfície e

acolheu amplamente a efiteuse.

Os projetos de Código Civil de Joaquim Felício dos Santos e de Antônio Coelho

Rodrigues não inseriram a superfície no elenco dos direitos reais que, de lege ferenda,

arrolaram, e o instituto permaneceu banido desse elenco como se vê da Consolidação de

Carlos de Carvalho e do Código. Civil vigente.157

Relativamente ao período anterior à elaboração Código Civil de 1916, vale a pena

citar passagem do obra do professor Ricardo Lira158, quando nos informa que:

LAFAYETTE RODRIGUES PEREIRA esclarece que antes da promulgação da Lei nº 1.237, de 1864, “havia uma hipótese em que a casa podia ser hipotecada sem solo - quando a superfície do solo pertencia ao devedor. A superfície constituía um direito real (ius superficiei) e o superficiário podia hipotecá-lo (MAYNZ, § 241, TROPLONG, II, nº 404, PONT. nº 391). Mas a citada lei aboliu a superfície, deixando de enumerá-la entre os direitos reais cuja existência respeitou (Lei, art. 6º, I). A superfície, sem a natureza de direito real é incompreensível, e se confundiria plenamente como arrendamento. Ainda no seu clássico “Direito das Coisas” - depois de referir o silêncio da lei de 1864 - afirma ter o direito de superfície deixado de existir: “a essência da superfície consiste em ser direito real, tirando-se-lhe a natureza de direito real, ela deixa de existir. Arnoldo Wald adverte que anteriormente “os direitos reais de fruição sobre a coisa alheia eram o uso, o usufruto, a habitação, as servidões prediais, a enfiteuse, a superfície, o censo consignativo e o reservativo”, acrescentando que, com a legislação superveniente, “deixaram de ser contemplados no rol dos direitos reais os censos e a superfície..” (Os grifos são do autor).

Porém, adverte o professor Frederico Henrique Viegas de Lima159 que se, por um

lado, nas codificações e leis do direito intermediário, tanto português quanto brasileiro,

existiu uma relação do direito de superfície, não se pode dizer o mesmo relativamente ao

direito consuetudinário, brasileiro, posto que segundo Pontes de Miranda, no norte do Brasil

156 LIMA, op.cit., p.68. 157 TEIXEIRA, José Guilherme Braga. op.cit.,p.47. Em referência ao Código Civil de 1916, por não contemplar o direito de superfície. 158 LIRA, op.cit., p.87-88. 159 Idem., Ibidem., p.70.

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existia o costume de plantar o coco em terreno alheio. Deste modo, era possível que uma

pessoa fosse proprietária de inúmeras árvores de coco em terreno de outrem. Todavia, tinha

a obrigação de pagar uma renda anual em dinheiro ou em natura, sendo facultada a exclusão

contratual desta obrigação. Nesta relação também era possível a concessão de plantação, sua

alienação e constituição de servidão de passagem. Para o autor tais concessões

representavam um direito de superfície.

Como se percebe, a partir das considerações acima expostas, era costume que uma

pessoa plantasse árvores de coco em terreno alheio, com a obrigação de pagar uma renda

em dinheiro ou in natura, nos moldes de um direito de superfície, apesar de não ter havido

nesse período regulamentação do instituto, conforme adverte José Guilherme Braga

Teixeira.160

Ao apresentar o seu “Projeto de Codigo Civil Brazileiro”, em 1900, Clóvis

Bevilaqua manteve-se fiel à velha e clássica regra romana de que superfícies solo cedit. Mas

a comissão revisora procurou restaurar o superfície no ordenamento, o que foi, afinal,

obstado pela comissão especial da Câmara dos Deputados.161

Relativamente a essa fase da elaboração do Código Civil de 1916, vale a pena citar

nota do professor José Guilherme Braga Teixeira162, acerca dos trabalhos da comissão

revisora do Projeto Bevilaqua, no tratamento do instituto da superfície, verbis:

A comissão revisora do Projeto Bevilaqua, formada pelos juristas Aquino e Castro, Costa Barradas, Bulhões Carvalho, Freire de Carvalho e Lacerda de Almeida, houve por bem incluir a superfície entre os direitos reais na coisa alheia, apresentando novo capítulo – Da superfície – contendo sete artigos redigidos por Costa Barradas. Constituiu o “Capítulo III – Da superfície” do “ Projeto Revisto” remetido ao Congresso Nacional, onde um dos seus artigos (o de n. 828) perdeu os seus três parágrafos, os quais vieram a tornar-se os §§ 1º, 2º e 3º do art. 838, inserto no “Capítulo IV – Das servidões prediais”. Da leitura de tais dispositivos projetados nota-se que a Comissão Revisora visava à constituição da superfície tanto em relação à edificação quanto à plantação, assentamento de obras e uso do supra-solo, de qualquer modo, para fins industriais ou de simples gozo; e que equiparava expressamente os direitos do superficiário, quando não estipulados entre este e o proprietário do solo, aos do titular do prédio dominante nas servidões, aproveitando, de certa maneira, a fórmula suíça, mas equiparando, outrossim, tais direitos aos do usufrutuário quando fosse convencionando o não pagamento de pensão (o solarium ou pensio dos romanos), de tal modo que, extinta a superfície concedida , o proprietário dos solo não estaria obrigado a indenizar o superficiário, assim equiparado ao usufrutuário, do valor das edificações, plantações e benfeitorias por este feitas, das quais poderia apropriar-se sem qualquer despesa. Entretanto, a comissão especial da Câmara dos Deputados, em parecer subscrito por Benedito de Souza, “desconhecendo qualquer utilidade na restauração deste

160 TEIXXEIRA, op.cit, .p.47. 161 Idem., Ibidem., p.47. 162 Idem., Ibidem., p.47-48.

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instituto, há annos abolido entre nós, é de parecer que seja eliminado do projeto” (V. “Cód. Civil Brasileiro – Trabalhos relativos à sua elaboração”, vol., II, p. 904).

Cumpre ressaltar que ao ser promulgado, o Código Civil brasileiro - através da Lei

nº 3.071, de 1º.01.1916 – em vigor a partir de 1º .01.1917 (artigo 1.806) não relacionou a

superfície entre os direitos reais que admitiu. Contudo, conforme esclarece o professor José

Guilherme Braga Teixeira163, desde o início de sua vigência, não foram poucos os que

insistiram existir o instituto, com caráter de direito real, no Brasil, sem embargo da sua

extinção tácita pela Lei n. 1.257, de 24.9.1864, da sua extinção explícita nos termos do art.

404 da Consolidação de Carlos de Carvalho e de não figurar no rol dos direitos reais do art.

674 do Cód. Civil.

Basearam-se os defensores dessa opinião no entendimento daqueles que

propugnavam porque os direitos reais concernem à sua própria natureza e não ao conceito

que lhe é dado pelo legislador, razão pela qual o seu rol deve se constituir numerus

apertus.164

O professor Ricardo Lira165 esclarece que o Projeto Clóvis Bevilaqua revisto

acrescentava ao rol dos direitos reais o direito de superfície. Contudo, de acordo com o citado

autor, o Código Civil brasileiro de 1916 não contemplou o direito de superfície entre os

direitos reais limitados constantes do artigo 674, tendo o referido autor concluído que, ante a

omissão do texto codificado, no existiu naquele ordenamento jurídico o direito de

superfície.

Em outra passagem de sua obra166, o professor da UERJ e da UGF afirmou que a

teoria do numerus clausus, significando que o direito real só pode existir de acordo com a

lei ou por intermédio de previsão legislativa, não podendo ser deixado à convenção das

partes liberdade para a configuração de outras espécies.

Ainda na esteira do citado autor, os juristas Clóvis Beviláqua, autor do anteprojeto

do Código Civil de 1916, se pronunciou no sentido do critério numerus clausus, opinião

seguida por Pontes de Miranda, Silvio Rodrigues, Serpa Lopes, Arnoldo Wald. De outro

lado, existiram aqueles que, minoritariamente, se posicionaram no sentido do numerus

163 TEIXEIRA, Op.cit., p.48-49 164 Idem. Ibidem., p.48. 165 LIRA, op.cit., p.88-89. 166 Idem. Ibidem., p.89.

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apertus, dentre os quais, Arnoldo Medeiros da Fonseca, Orozimbo Nonato, Carvalho Santos,

Washington de Barros Monteiro.

Finalizando sua exposição, o professor Ricardo Lira167 adverte não haver a mínima

dúvida quanto à inexistência do direito de superfície no regime do Código Civil de 1916, em

que pesem opiniões em contrário de alguns poucos civilistas.

Maria Pessoa Cavalcanti168, ao abordar a questão da existência ou não do instituto

da superfície no ordenamento jurídico pátrio anterior o Código Civil de 1916 traz as

seguintes elucidações:

“Entretanto, em 1864, por intermédio da Lei n. 1.237, de setembro, baniu-se o direito de superfície do ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que não o relacionou entre os direitos reais, sendo certo que para a citada doutrinadora a essência do instituto da superfície é sua natureza de direito real, sem a qual se confundiria com o arrendamento, inclusive, por ser de tradição de nosso direito a teoria do numerus clausus no tocante aos direitos reais, sustentada por diversos doutrinadores, dentre eles Pontes de Miranda, Silvio Rodrigues, Serpa Lopes e Arnold Wald e Ricardo Pereira Lira 169, sendo certo que para este último as obrigações propter rem e os direitos reais são numerus clausus, existindo desde que criados por lei, não podendo ser instituídos pelas partes (numerus apertus), posto que a taxatividade dos direitos reais resultaria, segundo ele, do próprio artigo 674, do Código Civil de 1916, podendo ser criados por leis extravagantes, a exemplo da alienação fiduciária em garantia, instituída pela Lei n. 4.728, de 14 de julho de 1965.”

Dessa forma, o Código Civil de 1916 não albergou o instituto da superfície dentre os

direitos reais, apesar de alguns doutrinares de escol se baterem pela existência instituto em

nosso ordenamento jurídico, conforme já mencionado alhures.

Com relação a essa questão, vale a pena mencionar os ensinamentos do professor

Ricardo Pereira Lira170, se referindo ao Código Civil de 1916:

A par da literalidade do texto, a natureza mesma dos direitos reais permite a ilação de que só podem eles existir em função das espécies criadas em lei: sejam os direitos reais de garantia, sejam os direitos reais de fruição. Do que antes se diz, não é de concluir que os direitos reais só possam ser aqueles enumerados no art. 674, do Código Civil. Abre-se-lhes o caminho da criação pelas leis extravagantes,...

Em conclusão, pode-se dizer como base na obra do Professor Ricardo Lira171, que o

direito de superfície foi admitido no ordenamento jurídico pátrio até o surgimento da Lei nº

1.237, de 24 de setembro de 1864, que deixou de relacioná-lo entre os direitos reais. Já o 167 LIRA, op.cit., p.90. 168 CAVALCANTI, op. cit., p. 30. 169 op. cit., p. 230-231. 170 op. cit., p. 231. 171 op.cit., p.86-89.

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Projeto Clóvis Beviláqua, revisto, acrescentou o instituto da superfície no rol dos direitos

reais, contudo, o Código Civil brasileiro de 1916 não inseriu o instituto na lista dos direitos

reais contidos no artigo 674 do referido Código, “por ser tradicional no Direito pátrio a

teoria numerus clausus, no que concerne aos direitos reais, sendo esta sustentada por

doutrinadores como Pontes de Miranda, Silvio Rodrigues, Serpa Lopes, Arnold Wald e

outros.”172

3.4. Movimento de Reforma do Código Civil de 1916

A discussão quanto à admissibilidade do direito de superfície no sistema jurídico

pátrio não cessou, vindo à tona com o movimento de reforma do Código Civil iniciado em

1963, com o Anteprojeto de Código Civil apresento por Orlando Gomes, com a finalidade

de substituir o ordenamento em vigor, tendo ele inserido a superfície dentre os direitos reais,

justificando-se a inclusão do instituto da superfície no Anteprojeto, para facilitar as

construções, principalmente nos terrenos de domínio do Estado, numa tentativa de

solucionar o problema inerente à deficiência de moradia, que àquela época já se fazia sentir.

Esclarece o Professor Ricardo Lira que o Anteprojeto de Código Civil de Orlando

Gomes, apresentado ao Ministro da Justiça e Negócios Interiores, João Mangabeira, em 31 de

março de 1963, incluiu no rol dos direitos reais o direito de superfície em seu artigo 513, II,

cuidando de disciplinar o instituto superficiário em oito artigos173.

Ainda de acordo com o citado autor na Memória Justificativa do Anteprojeto,

Orlando Gomes justificou a restauração do instituto da superfície e, simultaneamente, propôs

e extinção da enfiteuse, tendo aduzido que: “...Códigos recentes retomaram-na, dando-lhe

novos traços, admitindo a sua utilidade para certos fins, dentre os quais, como se reconhece

na Alemanha, o de facilitar as construções, principalmente nos terrenos de domínio do

Estado, concorrendo para a solução do problema da habitação. Volta, assim, a ter 172 CAVALCANTI, op.cit. p.30. 173 LIRA, op. cit., p.91 “...concessão temporário do direito de construir ou plantar, mediante escritura pública devidamente inscrita no registro imobiliário (art. 524); transferibilidade do direito por negócio entre vivos, a título oneroso ou gratuito, bem como por disposição de última vontade (art. 525); objeto do direito podendo ser qualquer construção, ou plantação, suscetível de ser adquirida por acessão, pelo dono do solo (art. 526); a concessão podendo ser gratuita ou onerosa, a remuneração ao concedente pagável de uma só vez ou periodicamente, excluído o comisso, e ressalvada a pretensão de cobrança das prestações vencidas e não pagas, acrescidas de juros moratórios (art. 527, §1º e 2º); reversão ao condente, em princípio sem indenização, salvo estipulação contrária, não podendo o decurso do prazo estabelecido para que a construção passe ao domínio do concedente ser inferior a vinte e cinco anos (art. 528); responsabilidade do superficiário pelos encargos e tributos que recaírem sobre o prédio (art. 529); preferência conferida a ambos, em igualdade de condições, no caso de alienação dos correspondentes direitos, estabelecida a necessidade de intimação do concedente, sob pena de nulidade, no caos de penhora da construção ou plantação, para poder fazer valer o seu direito de preferência na hasta pública (art. 531); vedação peremptória da estipulação do pagamento de qualquer quantia pela transferência da acessão (art. 532).”

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aplicação, sob forma nova e em outra perspectiva, um direito que fora condenado e caíra em

desuso.”174

Transformado o Anteprojeto em Projeto, após revisão feita pela comissão de juristas

formada por Caio Mário da Silva Pereira, Orosimbo Nonato e o próprio Orlando Gomes, o

instituto da superfície terminou por não fazer parte do rol dos direitos reais do artigo 499 do

Projeto que, enviado ao Congresso Nacional, não teve seguimento.

Contudo, de acordo com o professor José Guilherme Braga Teixeira175, em

28.02.1967, foi promulgado o Decreto-lei 271, que instituiu direito real resolúvel, a

concessão de uso de terrenos públicos ou particulares, remunerada ou gratuita, por tempo

certo ou indeterminado, para fins específicos de urbanização, industrialização, edificação,

cultivo da terra, ou outra utilização de interesse social, convolável por instrumento público

ou particular, ou, ainda, por termo administrativo, suscetíveis de inscrição no cartório do

registro imobiliário e transmissíveis por ato entre vivos ou por causa de morte, na qual

alguns viram a reintronização da superfície no Brasil, tese refutada por outros, como o

Professor Ricardo César Pereira Lira, tendo o Professor José Guilherme se posicionado ao

lado daqueles que refutam o ressurgimento do direito de superfície neste contexto, por

entender que a concessão de direito real de uso, concedida por pessoa jurídica de direito

público ou por particular, não se confunde com o direito de superfície, posto que o direito

real de uso e o direito de superfície são categorias diversas de direitos reais limitados, cada

qual com conteúdo e característica própria.

Com a retomada da reforma do Código Civil de 1916, constituiu-se Comissão

Elaboradora e Revisora do Código Civil em 23 de maio de 1969, sendo certo que o

anteprojeto inicial referente ao Direito da Coisas, elaborado por Ebert Chamoun, não

contemplou o direito de superfície dentre os direitos reais, tendo a Comissão o previsto no

artigo 1.418, II, dentre os direitos reais, propondo regulamentação nos artigos 1.556 a 1.563,

conforme esclarece o Professor Ricardo Lira176, que, além do que já foi dito, afirma que:

O Supervisor MIGUEL REALE, em sua exposição de 23 de maio de 1972 – depois de referir que o Decreto-lei nº 271, de 28 de fevereiro de 1967, estende a “concessão de uso” às relações entre particulares - observa que “consoante justa ponderação de JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES, a “migração” desse modelo jurídico, que passou da esfera do Direito Administrativo para a do Direito Privado, veio restabelecer, sob novo enfoque, o antigo instituto da superfície... A necessidade de restabelecer o instituto da superfície já fora, aliás, sustentada, sob ângulos diversos, por outros juristas, como fez o Prof. SYLVIO MEIRA...”

174 LIRA, op.cit., p.92. 175 TEIXEIRA, op.cit., p. 50. 176 Idem., Ibidem., p. 93.

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A suposta reintrodução do instituto da superfície no ordenamento jurídico brasileiro,

conforme mencionado acima, provocou sérias críticas de vários seguimentos de juristas,

dentre eles, Caio Mário da Silva Pereira e Afrânio de Carvalho, tendo havido também quem

gostasse da reentronização, como o jurista Milton Fernandes, citado por Ricardo Lira177 , ou

aqueles que apenas tenham vislumbrado uma proposta de restabelecimento do instituto, como

o jurista José Paulo Cavalcanti, também referido por Lira.

Com retomada dos estudos pela comissão de juristas liderada pelo saudoso Miguel

Reale, também dela integrante, a superfície foi admitida dentre o rol dos direitos reais,

embora não constasse do anteprojeto inicial elaborado por Ebert Chamoun, sendo certo que

o anteprojeto – versão 1973 - manteve a superfície, tendo arrolando o instituto em seu artigo

1.405, II, dentre os direitos reais, com regramento nos artigos 1.543 a 1.550.

Após, o Anteprojeto de Código Civil transformou-se em Projeto de Código Civil, ,

tendo sido enviado ao Congresso Nacional pelo Presidente da República, através da

Mensagem nº 160, de 10.06.1975, onde, na Câmara dos Deputados, passou a constituir o

Projeto de Lei nº 634, de 1975, tendo o direito de superfície sido mencionado dentre os

direitos reais em seu artigo 1.263, II, com regulamentação proposta nos artigos 1.401 a

1.408.

Publicado no Diário do Congresso Nacional de 10 de abril de 1976, com

publicação das emendas oferecidas em plenário ao Projeto 634, de 1975, duas emendas

disseram respeito ao direito de superfície, conforme relata o Professor Ricardo Lira178 e,

após longa tramitação, recebeu redação final que foi publicada no Diário do Congresso

Nacional, no dia 17 de maio de 1984, sob a denominação de Redação final do Projeto de lei

634-B, de 1975, que instituiu o Código Civil, tendo, nessa redação final a superfície sido

catalogada entre os direitos reais e disciplinada em título próprio, tímida, falha, insuficiente e

insatisfatoriamente, nos dizeres do professor José Guilherme Braga Teixeira.179

Antes da entrada em vigor do novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de

2002), o instituto da superfície passou a viger no sistema legislativos brasileiro, através da

Lei nº 10. 257, de 10.07.2001 (Estatuto da Cidade), nos artigos 21 a 24 onde o legislador

cuidou do denominado direito de superfície urbana.

177 LIRA, op.cit.,p. 94. 178 Idem., Ibidem., p.95. 179 TEIXEIRA, op.cit., p.52.

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No artigo 21, o instituto da superfície foi definido como sendo o direito segundo o

qual o proprietário urbano poderá conceder a outrem o direito de usufruir da superfície do

imóvel, por tempo determinado ou indeterminado, mediante escritura pública registrada no

Cartório de Registro de Imóveis, sendo que esse direito abrange o direito de utilizar o solo, o

subsolo ou o espaço aéreo relativo ao terreno, na forma estabelecida no contrato, atendida a

legislação urbanística.180

Já o artigo 22 prevê que, em caso de alienação do terreno, ou do direito de

superfície, o superficiário e o proprietário, respectivamente, terão direito de preferência, em

igualdade de condições com ofertas de terceiros, numa demonstração de que o direito de

superfície é completamente autônomo em relação ao direito de propriedade, sendo que os

casos de sua extinção estão tratados no artigo 23 do Estatuto da Cidade.

O artigo 24 cuida da recuperação, pelo proprietário, do pleno domínio do terreno,

das acessões e benfeitorias introduzidas no imóvel, independentemente de indenização, se

as partes não houverem estipulado em contrário, sendo certo que antes do termo final do

contrato, extinguir-se-á o direito de superfície se o superficiário der ao terreno destinação

diversa daquela para a qual foi concedida, conforme observa Toshio Mukai.181

3.5. O Novo Código Civil e o Direito de Superfície

Conforme destacou-se linhas atrás, o direito de superfície existiu em nosso País

antes da promulgação do Código Civil de 1916, quando o Brasil ainda era colônia

portuguesa, por intermédio da Lei Pombalina de 09.07.1773, §§11, 17 e 26, que regulou o

instituto da superfície, sem tal denominação, consistente no direito de efetuar a manter

construções e plantações, inclusive árvores, em imóvel alheio.

Com a proclamação da independência, o referido instituto continuou a fazer parte

da legislação brasileira, uma vez que por intermédio da Lei de 20.10.1823, determinou-se

que vigorasse no Império as Ordenações, leis e decretos promulgados pelos reis de Portugal,

até 25.04.1821, com autoridade provisória, até que fosse promulgado Código Civil, sendo

que àquele tempo a superfície era tratada como direito real imobiliário de uso e gozo em

prédio alheio.

Porém, com a passar dos anos e as transformações sociais ocorridas no país, foi o

instituto abolido do rol dos direitos reais pela Lei n. 1.237, de 24.09.1864, tendo sido a sua 180 MUKAI, Toshio, O Estatuto da Cidade: Anotações à Lei n. 10.257, de 10-7-2001. São Paulo: Saraiva, 2001. p.15. 181 Idem., Ibidem., p.20.

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reintrodução objeto de debate entre os juristas, tendo Teixeira de Freitas feito menção ao

instituto em sua Consolidação, tendo o Projeto Clóvis Bevilaqua revisto acrescentado a

superfície no rol dos direitos reais, mas que não vingou, uma vez que o Código Civil de

1916 – Lei n. 3.071 de 1º de janeiro não a contemplou, conforme já comentado acima,

tendo havido tentativa de reintrodução no movimento de reforma do Código de 1965/6 e a

iniciativa de 1972.

No período que antecedeu à primeira codificação civil, principalmente nos

projetos de Joaquim Felício dos Santos de Antônio Coêlho Rodrigues houve a inserção do

instituto da superfície no rol dos direitos reais, mas o instituto permaneceu banido desse

elenco, como se depreende da Consolidação de Carlos de Carvalho e dos dispositivos do

Código Civil de 1916, vigente até o advento de Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 que

instituiu o novo Código Civil, desta feita colocando no rol dos direitos reais o direito de

superfície, a partir dos artigos 1.369.

Contudo, da Redação final do Projeto de lei 634-B, de 1975, a superfície foi

catalogada dentre os direitos reais, nos artigos 1.368 a 1.375.

O Código Civil vigente, aprovado pela Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002,

publicado no Diário Oficial da União do dia seguinte e programado para entrar em vigor um

ano após essa data, acabou por disciplinar o direito de superfície dos artigos 1.369 a 1.377,

dispositivos que serão objeto de acurado estudo nos capítulos que se seguirão. Porém, uma

coisa precisa ser dita: o direito de superfície foi admitido pelo Direito brasileiro, ante as

vantagens que oferece, posto ser um instituto capaz de eliminar ou amenizar a crise

habitacional que assola o país, possibilitando um melhor aproveitamento do solo, mormente

das terras incultas ou não edificadas.

Percebe-se, nas grandes cidades do país, que as favelas e moradias irregulares

cresceram e se multiplicaram na beira das rodovias, ferrovias e nas encostas, causando o que

se denominou caos urbano, com sérios comprometimentos quanto a qualidade de vida. Mas

o instituto da superfície será estudado Capitulo VII, ao tratar-se do tema relativo ao Direito

de Superfície em nosso Ordenamento Jurídico.

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4. A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

4.1. Noções Introdutórias

Antes de iniciar o estudo referente a Função Social da Cidade e da Propriedade

Urbana no capítulo seguinte, cumpre tecer algumas considerações sobre o instituto da

Função Social da Propriedade, principalmente pelo fato de que o tema a ser enfrentado na

presente dissertação se refere ao direito de superfície e de sua função social

Sendo assim, importa fazer alguns aportes no tocante ao conceito e importância da

função social, para logo em seguida tratar-se da questão de sua aplicação no âmbito do

direito de propriedade, mormente da questão atinente à função social da propriedade e seu

tratamento no ordenamento jurídico positivo pátrio.

Tal como a palavra propriedade, a locução função social é uma daquelas cujo

conteúdo é indeterminado, por si só, mas determinável em função de fatores que variam no

tempo, no espaço, na cultura, e nas regras específicas aplicáveis.182

Cumpre relembrar que até a independência o Brasil regeu-se pela legislação

portuguesa, mormente pelas Ordenações do Reino de Portugal (Manoelinas, Afonsinas e

Filipinas), sendo certo que além das leis régias, a primeira legislação pátria, com o país já

independente, foi a Constituição Imperial de 1824, outorgada por D. Pedro I e que em seu

artigo 179, XXII, por inspiração liberal, preconizava a garantia do direito de propriedade em

toda a sua plenitude, embora permitisse a desapropriação por utilidade pública (por bem

público), não se inferindo desse fato que tivesse albergado uma função social da propriedade.

Por outro lado, a primeira Constituição Republicana de 1891 foi inspirada pelos

ideais individualistas da concepção de propriedade, mas acrescentou a possibilidade de

desapropriação por necessidade ou utilidade pública, tendo a emenda constitucional de 1926

instituído a primeira limitação ao direito de propriedade quanto às minas e jazidas, tendo a

Constituição de 1934 acrescido a tais restrições o concernente às quedas d’água, tendo

ressaltado em seu artigo 113, n. 17 que o direito de propriedade não seria exercitável contra

o interesse social ou coletivo. Tais princípios foram mantidos no texto constitucional de

1937 (art. 122, n.14 e 143) na Lei Constitucional n. 05, de 1942, tendo a Constituição de

1946 condicionado o exercício da propriedade ao bem estar social e a preconizar a justa

182 CASTRO, Sonia Rabello de. Limitações Urbanísticas à Propriedade. In: FERNANDES, Edésio (Org.). Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey , 2000. p.89-92.

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distribuição da propriedade com igualdade de oportunidades para todos (art.141, §16 e 147),

conforme elucidações de Mezzomo, Marcelo Colombelli e Coelho, José Fernando Lutz183.

Por outro lado, a Constituição de 1967 (art. 150, § 22 e 157 e parágrafos) e a

Emenda Constitucional n.01, de 1969 (art. 153, §22, e 161) inseriram em seus textos o

princípio da função social da propriedade. Porém, a Constituição de 1988 dedicou diversos

dispositivos à disciplina da propriedade, podendo ser enumerados os artigos 5º, XXIV a

XXX, 170,II e III, 176, 177, 178, 182, 183, 184, 185, 186, 191 e 222, conforme enumeração

de José Afonso da Silva.184.

Com base nas informações de ordem constitucional acima, pode-se conceituar a

função social como sendo um princípio inserido no bojo da norma fundamental, objetivando

garantir a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, nos termos do artigo

170, da Constituição federal de 1988. A função social tem por escopo transformar a

propriedade capitalista, sem socializá-la.185

Vale a pena mencionar ensinamento do Professor Luiz Edson Fachin apud Sonia

Rabello de Castro186, in verbis:

“A função social é mais evidente na posse e muito menos evidente na propriedade, que mesmo sem uso, pode se manter como tal. A função social da propriedade corresponde a limitações fixadas no interesse público e tem por finalidade instituir um conceito dinâmico de propriedade em substituição ao conceito estático, representando uma projeção de reação anti-individualista” .

Segundo Liana Portilho Mattos187, a função social da propriedade representa o

ponto de convergência de todas as gradativas evoluções pelas quais passou o conceito de

propriedade. Para a citada autora, com o escopo de atender a sua função social, a

propriedade deverá andar junto como os interesses coletivos, afetando a propriedade privada

em sua estrutura.

183 MEZZOMO, Marcelo Colombelli e COELHO, José Fernando Lutz . A função social da propriedade nos contratos agrários. Jus Navigandi, Teresina, a.7, n. 66, jun. 2003. Disponível em: <http:jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4125>. Acesso em: 15 abr. 2006. 184 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 280. 185 SILVA, José Afonso da, op. cit., p. 283. 186 FACHIN, Luiz Edson. A Função Social da Posse e a Propriedade Contemporânea: Uma Perspectiva da Usucapição Imobiliário Rural. Porto Alegre: Fabris apud CASTRO, Sônia Rabello, Algumas formas direferentes de se pensar e de reconstruir o direito de propriedade e os direitos de posse nos “países novos”. In: FERNANDES, Edésio (Org.). Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 19. 187 MATTOS, Liana Portilho, Limitações Urbanísticas à Propriedade. In: FERNANDES, Edésio (Org.). Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. p. 63-64.

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Nesse diapasão, por causa do princípio da função social, o direito de propriedade

não pode ser considerado como preexistente a uma legislação urbanística que venha a

regular seu exercício, mas, ao contrário, segundo a citada autora, a legislação urbanística é

que precede esse direito, tratando-se de especificar as condições para que ele seja legítimo

ou não, ou seja, estabelecendo requisitos para seu reconhecimento.

Nesse sentido, acredita-se ser o direito de superfície um instituto capaz de dotar os

cidadãos e o Estado de um instrumento capaz de viabilizar a solução dos conflitos ligados à

questão do parcelamento do solo urbano, de sua utilização adequada, visando minimizar ou

até mesmo solucionar de vez o que se convencionou chamar segregação urbana, em que as

camadas sociais dotadas de menor poder aquisitivo são forçadas a se instalarem nas

periferias dos grandes centros urbanos, vivendo em situação de escassez de serviços públicos

prestados pelo Estado, notadamente os de luz, água, esgoto, transporte coletivo, educação e

segurança, conforme aponta o Professor Ricardo Pereira Lira188.

Podemos considerar a função social da propriedade não apenas como um princípio

vetor do direito urbanístico brasileiro, conforme nos esclarece Liana Portilho Mattos189 ,

mas como instituto estruturante do Direito Urbanístico em vários países, inclusive no

Brasil, em que o princípio da função social vem expressamente definido em normas que

tratam da questão fundiária.

Sob prisma histórico, pode-se afirmar que a primeira Constituição brasileira, de

1824, seguida pela Constituição de 1891 garantiam o direito de propriedade em toda a sua

plenitude, ressalvando apenas os casos de desapropriação, prevalecendo o exercício pleno

da propriedade, por influência do pensamento liberal daquele período histórico.

Porém, conforme leciona Liana Portilho Mattos 190 o princípio da função social da

propriedade surge pela primeira vez no ordenamento jurídico brasileiro, por força da

Constituição de 1934, sendo certo que a partir de então o instituto passou a fazer parte dos

textos constitucionais posteriores, inclusive a de 1937, bastante semelhante à Constituição de

1934 no tocante à reafirmação do princípio da função social da propriedade,

condicionando-a ao interesse público.

Cumpre salientar que a Constituição de 1946 trouxe novos avanços, ressaltando a

idéia de bem-estar social como condicionadora do direito de propriedade, prevendo a

188 LIRA, op.cit., p. 189 MATTOS, op. cit, p. 63-64. 190 Idem., Ibidem.,p. 64.

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desapropriação por interesse social. Contudo, com a Constituição de 1967 e a Emenda

Constitucional n. 1 de 1969, a função social da propriedade foi consolidada expressamente

como princípio constitucional, o que foi reafirmado na de 1988, em que o legislador regulou

o princípio, prevendo condições para se atendimento e estabelecendo as sanções cabíveis,

em caso de descumprimento de tais normas.

Tal regulamentação encontra-se nos artigos 5º, XXIII ( A propriedade atenderá a

sua função social), vindo o princípio reafirmado no artigo 170, II e III , sendo certo que o

princípio da função social da propriedade teve seu conteúdo definido no tocante às

propriedades urbanas e rurais , com previsão de sanções em caso de descumprimento, nos

artigos 182, 184 e 186.

Com base no tratamento constitucional dispensado ao princípio da função social da

propriedade e nos ensinamentos de Liana Portilho Mattos191, pode-se afirmar que o direito

de propriedade passou por grandes transformações ao longo das últimas décadas, não

devendo mais ser visto como um direito individualista.

O tema da função social da propriedade tem íntima relação com o planejamento e a

gestação democrática das cidades e também do campo, sendo certo que a participação

popular é de fundamental importância como modelo de gestão, conforme ensina Liana

Portilho Mattos192.

Para a citada autora a participação popular é a garantia constitucional de

democratização dos modelos de gestão, mormente na gestação das cidades. Segundo ela, o

planejamento urbanístico participativo é um instrumento de democratização da gestão das

cidades e se materializa, principalmente, por intermédio do plano de diretor que é visto pela

citada autora como instrumento no qual estão definidas as exigências fundamentais para que

a propriedade cumpra sua função social.

Ainda no tocante à questão da função social, Gustavo Tepedino193 chama a atenção

para o fato de que a Constituição Federal de 1988 introduziu profundas transformações no

instituto da propriedade, através de ampla reforma de ordem econômica e social, na

tentativa de preencher enorme lacuna existente entre a edição do Código Civil de 1916, de

corte nitidamente individualista exclusivista, numa tentativa de adaptar a disciplina da

191 op. cit, p. 66 192 op. cit.,p.63-65. 193 TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil, 2ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p.267-291.

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propriedade aos novos tempos, posto que a função social da propriedade apresentava-se

estranha ao Código Civil (Código Civil de 1916).

Salienta o referido civilista, que a Constituição Federal de 1946 introduziu, pela

primeira vez, a preocupação com a função social da propriedade, estabelecendo em seu

artigo 147 que o uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social, com previsão

inclusive da justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos (art. 141,

§16), além do artigo 160, III, da EC/69 que previa a função social da propriedade como um

dos princípios da ordem econômica e social.

Contudo, numa reflexão sobre o tema, o citado autor pontifica que apesar disso o

Estado brasileiro do primeiro pós-guerra, adotou política intervencionista de sucessivas

restrições à propriedade privada, contudo, incapaz de criar bases mínimas de justiça

distributiva e do bem-estar social, ressaltando que a Constituição de 1967, apesar de ter

revelado preocupação com a questão da função social, concebeu o instituto da função

social da propriedade como princípio de ordem econômica e social, ao passo que a

Constituição de 1988, inseriu a matéria no âmbito do direitos e garantias fundamentais

(artigo 5º, XXIII).

4.2. O Princípio da Socialidade no Novo Código Civil

Conforme manifestações do professor Miguel Real, coordenador-geral da equipe

elaboradora do novo Código Civil (Lei n. 10.406 de 10-01-2002), composta pelos insignes

jurisconsultos José Carlos Moreira Alves (Parte Geral); Agostinho de Arruda Alvim (Direito

das Obrigações); Sylvio Marcondes (Direito de Empresa); Ebert Vianna Chamoun (Direito

das Coisas); Clóvis do Couto e Silva (Direito de Família); Torquato Castro (Direito das

Sucessões), quatro dos quais já falecidos, o novo diploma que passou a regulamentar as

relações sociais no âmbito privado, está assentado em três pilares fundamentais, quais sejam,

no princípio da sociabilidade, no princípio da eticidade e no da operabilidade, denominados

pelo referido civilista de princípios norteadores do novo Código Civil.

O “sentido social” é uma das características mais importantes do código,

contrastando com o sentido individualista que condicionava o Código Civil de 1916,

elaborado em fins do século XIX, que primava principalmente pela exclusividade do direito

de propriedade.

De outro turno, o princípio da eticidade inserto no novo Código Civil confere ao

Juiz não só poder para suprir lacunas, mas também para resolver, onde e quando previsto, de

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conformidade com valores éticos, dizendo de outro modo, se a regra jurídica for deficiente

ou inajustável à especificidade do caso concreto.

No tocante ao princípio da operabilidade, pode-se dizer que ele está assentado nas

alterações ocorridas no plano técnico e operacional ocorridas no corpo do novo diploma civil,

podendo ser dado como exemplo que toda a matéria de escrituração empresarial passa por

uma transformação fundamental para que tudo possa ser feito através de processos

eletrônicos, superando-se os entraves formalistas em matéria de contabilidade e gestão da

empresa, conforme palavras do próprio Miguel Reale194.

Contudo, o que importa para o desenvolvimento da presente pesquisa é o princípio

da sociabilidade, consubstanciado na chamada função social que, a seguir, se verá, posto

que o princípio da função social é de extrema importância e aplicabilidade em diversos

setores do novo Código Civil, mormente no setor contratual, no setor empresarial (função

social da empresa) e, no caso em estudo, no tocante ao direito de propriedade, naquilo que se

convencionou denominar função social da propriedade que deixou de ser direito absoluto,

conforme dispositivo Constitucional (art. 170,III da CF/88).

4.3. A Função Social

Com as transformações da sociedade contemporânea, a idéia do social começa a

prevalecer sobre a do individual, levando a uma intervenção crescente do Estado no

domínio econômico, que suscita dois novos temas, o da função social e o do abuso do

direito.195

No presente capítulo, por razões metodológicas, abordar-se-á o tema da função

social por ter íntima relação com o assunto da dissertação, posto cuidar-se do Direito de

Superfície no novo Código Civil e sua Função Social, sendo necessário um aprofundamento

acerca da teoria da função social.

Cumpre salientar que as transformações sociais, econômicas e políticas ensejam

mudanças na sociedade. Tais transformações provocam mudanças no direito; mudam-se os

princípios, alteram-se os paradigmas legais, surgem novas formas contratuais. A

194 REALE, Miguel. Visão Geral do Projeto de Código Civil. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 752, p. 22-30, 1987. 195 AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução, 4ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.142, apud Francesco Lucarelli.

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massificação da sociedade e das relações sociais, provocadas pela intensa intervenção da

economia e da sociologia no direito, legou à massificação contratual.196

Injustiças sociais acontecem em todas as fases da história da humanidade. Verifica-

se, por vezes, um descompasso entre o direito e os fenômenos sociais. Como no eterno fluxo

e refluxo das ondas, as matrizes filosóficas do Direito procuram manter o equilíbrio social.

Equilíbrio social esse, que a cada momento histórico se transmuda ao sabor do ir e vir das

demandas e das necessidades da própria sociedade. 197

Assim é que “a doutrina da função social, emerge como uma dessas matrizes”,

limitando institutos de conformação nitidamente individualista, em contraposição aos ditames

do interesse coletivo – que se apresentam acima dos interesses particulares - concedendo aos

sujeitos de direito não só uma igualdade em seu aspecto estritamente formal, mas permitindo

uma igualdade e liberdade aos sujeitos de direito os igualando de modo a proteger a

liberdade, de cada um deles, em seu aspecto material.198

Relativamente ao conceito de função social da propriedade, traz-se à colação

esclarecimentos de MEZZOMO, Marcelo Colombelli e COELHO, José Fernando Lutz, 199

in verbis:

“A função social pode ser conceituada de forma simples como sendo a submissão do direito de propriedade, essencialmente excludente e absoluto pela natureza que se lhe conferiu modernamente, a um interesse coletivo. ... José Cretella Júnior, ao tratar da função social da propriedade conclui que:” ... o direito de propriedade, outrora absoluto, está sujeito em nossos dias a numerosas restrições, fundamentadas no interesse público e também no próprio interesse privado de tal sorte que o traço nitidamente individualista, de que se revestia, cedeu lugar a concepção bastante diversa, de conteúdo social, mas do âmbito do direito público. Luiz Ernani Bonesso de Araújo afirma, quanto à propriedade à luz da função social, que “antes de se pensá-la a partir dos interesses individuais, ela deve ser pensada pelo interesse da coletividade, da sociedade” e adiante segue: “Em outros termos, da exigência de que a propriedade rural cumpra sua função social, passa-se a vê-la como ela sendo a própria função social, determinada pelo exercício do direito à terra, como forma de alcance da justiça social no campo.”

No tocante à origem da função social no curso da história do direito, pode-se

afirmar com Augusto Geraldo Teizen Júnior, que: “A concepção individualista do direito

tem como origem a Revolução Francesa no século XVIII, seu eixo fundamental é

196 TEIZEN JÚNIOR, Augusto Geraldo. A Função Social no Código Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 114. 197 TEIZEN JÚNIOR, op.cit., p. 114. 198 Idem., Ibidem., p.114-115. 199 MEZZOMO, Marcelo Colombelli; COELHO, José Fernando Lutz. A função social da propriedade nos contratos agrários. Jus Navigandi, Teresina, a.7, n. 66, jun. 2003. Disponível em: <http:jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4125>. Acesso em: 15 abr. 2006.

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representado pela defesa dos direitos do homem, limitando os privilégios da realeza e do

clero, obtidos durante os séculos de construção do sistema econômico feudal.”200

A revolução permitiu a libertação das instituições e a humanização dos direitos,

contribuindo para a mitigação do servilismo do regime feudal. Dentre os institutos jurídicos,

destacou-se o direito de propriedade, já que “a Revolução, numa palavra, liberta o solo”,

conforme nos elucida Teizen Júnior201, citando Orlando Gomes, sendo certo que o Código

Napoleão trazia em seu bojo um conceito novo e revolucionário da propriedade, consistente

no direito de uso, gozo e disposição das coisas de maneira absoluta.

Determinados valores do passado vêm moldar a dogmática jurídica na Idade

Contemporânea. Todos os ordenamentos jurídicos privados resultaram permeados por

determinados valores, os quais, na realidade, não subsistiram com o mesmo e idêntico perfil,

vindo, paulatinamente, a sofrer o influxo de valores diferentes. E é exatamente essa mutação

de valores – especialmente implicados na transição do individualismo para a sociabilidade -,

que acaba explicando os pontos-chave do Código Civil a começar pelo art. 421 e outros

dispositivos que são tributários desse, no qual se expressa a função social.202

Assim, dentre aqueles valores, a utilização da propriedade para o bem comum teve

preocupação constante. E, segundo Gustavo Tepedino, o tema não é novo, nem

revolucionário, remonta, ao menos, à doutrina cristã da Idade Média, como na “Suma

Teológica” de Santo Tomás de Aquino. Os bens disponíveis na terra pertenceriam a todos,

sendo destinados provisoriamente à apreensão individual. O jusnaturalismo, inspirado em

critérios de eqüidade e justiça superlegislativa, proclamaria, posteriormente, a função social

da propriedade traduzida na necessidade de utilização do bem como instrumento de

realização da justiça divina. 203

Com o liberalismo do século XIX, a marca do individualismo ajudaria a moldar a

função social como instrumento da afirmação da inteligência e da liberdade humana. Esta

dogmática inspiraria, com efeito, as codificações dos países da Europa do século XIX e em

sua esteira o nosso Código de 1916. 204

200 Idem.,Ibidem., op.cit., p.115. 201 TEIZEN JÚNIOR, op. cit., p.115. 202 Idem., Ibidem., p. 116, citando Arruda Alvim (A função social dos contratos no novo Código Civil). 203 Idem., Ibidem., p.116. 204 Idem., Ibidem., p.116.

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Arruda Alvim lembra que o direito obrigacional é operacionalizado basicamente

pelo contrato, afirmando também que a estrutura dos contratos é exatamente a estrutura

daquilo que foi denominado “ato jurídico”, mas que hoje é denominado “negócio jurídico”.205

Cumpre salientar que a Revolução Francesa foi engendrada por uma burguesia rica

e abastada, mas enfraquecida politicamente, tendo em vista que o poder residia na nobreza,

sendo certo que ao tomar o poder com a Revolução tal burguesia tratou de modificar a

sociedade de então, realizando idéias fundamentais de sua pregação e implementando o

que foi sua concepção de liberdade e sua noção de direito de propriedade, conforme elucida

Augusto Geraldo Teizen Júnior206, o que lhe valeu importante espaço para expansão com

mais riqueza em suas mãos, tendo o direito de propriedade representado um dos aspectos de

segurança jurídica pretendida pela burguesia de então, consubstanciada na não-intervenção

estatal – no denominado Estado de Polícia.

Pode-se afirmar que toda disciplina jurídica do século XIX gravitou em torno da

liberdade e no exercício da atividade econômica pelos contratos, e paralelamente, a garantia

do direito de propriedade. A burguesia assumiu, assim, o domínio da sociedade e a

continuação desse domínio na sociedade se deu justamente pelo domínio dos corpos

legislativos e, mais ainda, em seqüência a isto, na ordem jurídica, de tal modo que essa

ordem jurídica viesse a assegurar continuadamente o prevalecimento dos seus interesses. 207

A forma pela qual a burguesia conseguiu dominar foi exatamente por meio do

instrumento da lei, e, dentro do sistema jurídico, criando a noção de que a lei não podia

sequer ser interpretada, num primeiro momento, ou, então, sucessivamente, que havia de

comportar, apenas, interpretação literal. Não havia espaço ou liberdade de atuação maior para

os magistrados.208

Foram, como nos conta Franz Wieacker, as associações econômicas e profissionais

dos empresários e dos trabalhadores e a sua influência sobre o mercado que permitiram uma

evolução social. Essa evolução sentiu-se a partir da 1ª Grande Guerra, “que trouxe pela

primeira vez consigo graves restrições à liberdade contratual e à liberdade de utilização da

propriedade, ao publicizar a comercialização de quase todos os bens e ao tomar medidas

legislativas relativas à carência de habitação. Os movimentos sociais e filosóficos assim

como a evolução econômica, permitiram desmistificar a crença igualitária da Revolução 205 Idem., Ibidem., p.116. 206 TEIZEN JUNIOR, p.117. 207 Idem., Ibidem., p.117. 208 Idem., Ibidem., p.118.

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Francesa. A meta da justiça retributiva, conquista da Revolução Francesa, dá lugar à justiça

redistributiva, com o acentuado intervencionismo estatal e dirigismo contratual que, no

Brasil, é fartamente documentado a partir de 1930.209

Por outro lado, vale a pena referir que a Igreja Católica exerceu grande influência

na doutrina da função social, pelo que se denominou “doutrina social da Igreja”, que teve

ponto culminante com Santo Tomás de Aquino, para quem a propriedade é um dos direitos

naturais do homem, isto é, a faculdade de que todo homem tem de possuir os bens que

necessite para sua sobrevivência e realização de seus ideais. Tendo tal propriedade, na

concepção de Santo Tomás, apropriada e dividida como decorrência do direito humano, do

direito das gentes, não contraria o direito natural, mas revela um acréscimo que a

constituição humana introduziu neste direito que se traduziu em regras, de ordem positiva,

que visam efetivar a divisão dos bens entre os homens. 210

No pensamento de Santo Tomás a propriedade é tida como um bem de produção e

não como um bem inserido na riqueza de alguém, sem outra finalidade que a não

especulativa, contém em si uma função social, isto é, “uma preocupação com o bem-estar

comum, de modo a conduzir o seu uso às melhores formas de justiça social. 211

Vislumbra-se, na doutrina tomista, a idéia de que o direito de propriedade decorre do

direito natural; que o homem para sobreviver, se alimentar, tem na terra, por meio da

produção, suas necessidades básicas atendidas; assim uma sociedade justa é aquela que

garante a todos pelo menos o essencial à vida, ainda que “compreenda ser legítimo o fato de

que alguns possam mais que os outros, desde que a estes últimos não escasseie o vital”.212

Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka apud Augusto Geraldo Tezen Júnior213

elucida que a função social entendida como essência qualitativa do direito de propriedade, a

exigir dela a produção, sua atribuição primeira, como a intenção justa, divina e única de

permitir a sobrevivência da humanidade.

Como afirmou Giselda Hironaka, a função social, como qualidade inerente ao

conceito de propriedade, visa adaptar este direito aos interesses maiores de toda a

coletividade, além da figura singular do proprietário.214

209 TEIZEN JÚNIOR, op.cit.p. 118-119. 210 Idem., Ibidem., p.119-120. 211 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes apud TEIZEN JUNIOR, op.cit.,.120-121. 212 Idem., Ibidem., p.121. 213 Idem., Ibidem. .p.121. 214 Idem., Ibidem. p. 121.

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Quanto à concepção filosófica de Santo Tomás de Aquino podem ser citadas

algumas encíclicas papais que derivaram de tal concepção: a Rerum Novarum, de Leão

XIII, de 1891, que reconhecia à propriedade privada sua função social, sua função de

utilidade comum a todos, deixando a salvo a iniciativa privada, garantindo dessa forma a

liberdade e a dignidade humanas; a Encíclica Quadragésimo Anno, de Pio XI, em 1931,

defendeu as mesmas idéias de Santo Tomás, observando os princípios da Lei Natural e da

Lei Divina, tendo advertido sobre a necessidade de se harmonizar a intervenção estatal, na

hipótese de ser mesmo necessária e fazer valer a função social.

Por outro lado, as Mensagens de Pio XII, tais como La Solemita (1941) e Oggi

(1944), reabrem o tema da doutrina da função social da propriedade, relembrando, na

primeira, que o reconhecimento da propriedade privada era fundamental para que se pudesse

obter uma justiça social e um desenvolvimento econômico favorável, e que só o respeito à

iniciativa privada é que poderia assegurar a prosperidade da própria função social da

propriedade (grifo do autor).215

Ao fim da Segunda Grande Guerra, o Pontífice, em Oggi chamava a atenção dos

povos para as injustiças do capitalismo moderno, em que alguns poucos detêm a maior parte,

em detrimento dos menos favorecidos e mais injustiçados. Pedia o Papa a regulamentação do

uso da propriedade e a própria expropriação, como medida de sanção àqueles que não dessem

à propriedade um uso harmonioso com o interesse comum.216

Na Encíclica Mater et Magistra, o Papa João XXIII recordou as advertências de

Leão XIII, tendo se referido ao fato de que a propriedade privada tem, naturalmente

intrínseca, uma função social, de tal forma que quem desfruta de tais direitos deve exercitá-

los em benefício próprio e para utilidade de todos os demais.

Já na Encíclica Populorum Progressio, o Papa Paulo VI, reiterando o pensamento de

Santo Agostinho e Santo Tomás, manifestou-se contra o fato de que aqueles que possuam a

mais conservem para si os excessos, em detrimento dos que nada possuem.

Em resumo, percebe-se que Igreja em seus pronunciamentos reconhece na

propriedade privada uma função social, cujo fundamento reside no destino comum dos

bens217, percebendo-se das Encíclicas Papais o destaque quanto a importância da inclusão

social via trabalho e distribuição das riquezas, ideal que foi impulsionado mais tarde pelo

215 TEIZEN JÚNIOR, p.122. 216 TEIZEN JÚNIOR, p.122. 217 TEIZEN JÚNIOR, op.cit. p.123.

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Concílio Vaticano II e pela Teologia da Libertação que deram forte impulso a discussão

acerca do uso da terra e do tributo social que sobre ela repousa.218

Conforme elucida Giselda Hironaka, citada por Augusto Geraldo Tezen Júnior219,

dois elementos se verificam do discurso da Igreja quanto ao direito de propriedade, ou seja,

no primeiro deles o direito individual, que se refere ao fato de que todo homem tem direito e

se trata de um direito absoluto, a tantos bens quantos sejam necessários para satisfação de

sua condição pessoal, social e humana, já o segundo elemento se refere ao direito social,

pelo qual tudo aquilo que excede deve ser redistribuído em proveito da sociedade, cuidando-

se de um tipo de administração, remunerada, sem dúvida, que se passa por conta do interesse

social.

Contudo, tal concepção pode parecer que se esteja transformando a propriedade em

patrimônio coletivo da humanidade, contudo, tal idéia não é verdadeira, posto que a

preocupação social, pretende apenas subordinar a propriedade privada aos interesses da

sociedade, cuja idéia base é a doutrina da função social, consubstanciada na idéia geral de

que os bens de produção cumprem sua finalidade produtiva, afetando a propriedade.

4.4. Função Social da Propriedade

Conforme lúcidas observações de Francisco Amaral220 a propriedade é um dos

institutos jurídicos fundamentais e o mais importante dos direitos privados, principalmente

por sua ligação com os demais institutos do direito civil, é considerado pelo citado autor o

elemento básico do direito patrimonial.

Nos últimos anos, graças sobretudo ao reconhecimento operado pela atual

Constituição de que a propriedade deve atender também aos interesses da sociedade, muito

tem-se escrito e debatido acerca da função social da propriedade.221

Protegida pela Constituição como direito fundamental (CF, art. 5º, XXII) e como

princípio da Ordem Econômica e Financeira (CF, art. 170, II), é regulada, como categoria

unitária, pelo Código Civil (arts. 524 a 647).222 Juntamente com a autonomia privada, é

projeção imediata, na ordem jurídica, do individualismo que marcou o direito civil dos

séculos passados. Contudo, é na propriedade que se refletem as transformações ocorridas na

218 COLARES, Marcos. Breves Notas Sobre a Função Social da Propriedade. Jus Navigandi, Teresina, a.5, n. 51, out. 2001. 219 HIRONACA apud TENZEN JUNIOR, op.cit., p.123. 220 AMARAL, op. cit., p. 139-140. 221 GONDINHO, André Osório. Função Social da Propriedade. 222 Os artigos citados se referem ao Código Civil de 1916.

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sociedade, no século XX, constatando-se o declínio da noção unitária de propriedade,

desenvolvendo-se a idéia de um instituto plural, passando a prevalecer a idéia do social sobre

o individual, surgindo a função social, relacionando o uso da propriedade de acordo com as

exigências do bem comum.

O tema referente à denominada função social da propriedade tem despertado a

atenção dos juristas que tratam de assunto relacionado com a propriedade e seus

desdobramentos, uma vez que vários problemas ligados à violência seja no campo ou na

cidade, à falta de moradia, à escassez de alimentos, bem assim, a questões de degradação do

meio ambiente, estão intimamente relacionados com a distribuição da terra no Brasil.

A função social liga-se ao exercício da propriedade de acordo com as exigências do

bem comum. Significa que o proprietário não tem apenas poderes, mas também deveres no

exercício da seu direito. No caso da propriedade rural, ela cumpre a sua função social quando

tem aproveitamento adequado; quando utiliza bem os recursos naturais disponíveis e preserva

o ambiente; quando respeita as disposições normativas do trabalho, e quando a sua

exploração favorecer o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores (CF art. 186).223

O sistema jurídico da propriedade compõe-se hoje, no direito brasileiro, de a)

normas constitucionais, que a reconhecem como direito fundamental (C.F. art. 5º, caput),

estabelecem a sua garantia (C.F. art. 5º, XXII), e a condicionam à sua função social e

permitem a desapropriação (C.F. art. 5º, XXIV); b) normas ordinárias, do Código Civil (arts.

524 a 648) e leis especiais.224

Hoje não há mais que falar em propriedade no mesmo sentido e alcance tradicional.

A propriedade pode ser estudada em dois aspectos, o estrutural e o funcional.

A dogmática tradicional preocupa-se somente com a estrutura do direto subjetivo

proprietário – em seu aspecto estático – ou seja, os poderes do titular do domínio quais

sejam:

1 . O aspecto interno – cujo conteúdo é o econômico que é composto pelas

faculdades de usar, fruir e dispor.

2. O aspecto externo - o jurídico que se traduz na faculdade de exclusão das

ingerências alheias. 225

223 AMARAL, op. cit., p.142. 224 AMARAL, op. cit., p.142. 225 TEIZEN JÚNIOR, op.cit., p.139-140.

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A função social da propriedade representa o ponto de convergência de todas as

gradativas evoluções pelas quais passou o conceito de propriedade. Para atender a sua

função social, a propriedade deverá andar junto com os interesses coletivos, não podendo

sobrepor-se a eles. Se, por um lado, as limitações à propriedade interferem no exercício do

direito de propriedade, a função social é um princípio que condiciona e afeta a propriedade

privada em sua estrutura. Ela é condicionante do próprio direito de propriedade, e não apenas

de seu exercício. Segundo Seabra Fagundes, o direito de propriedade está condicionado “à

sua compatibilidade e ao seu entrosamento com o interesse comum, na plenitude dessa

compatibilidade e desse entrosamento se traduzindo a sua função social. 226

Por meio da função social da propriedade, o direito de propriedade não pode mais

ser considerado como preexistente a uma legislação urbanística que venha a regular seu

exercício. Ao contrário, a legislação urbanística é que precede esse direito, tratando de

especificar as condições para que ele seja legítimo ou não, ou seja, estabelecendo requisitos

para seu reconhecimento.227

A função social da propriedade não é apenas um princípio vetor do direito

urbanístico brasileiro. Ela é estruturante do Direito Urbanístico em vários países, e, tal como

no ordenamento pátrio, o princípio da função social vem expressamente definido em normas

versantes sobre matéria fundiária. A exemplo, cite-se a Ley sobre el régimen del suelo y

ordenación urbana espanhola, de 1922, que assegura e dispõe que “la función social de la

propiedad delimita el contenido de las facultades urbanísticas susceptibles de adquisición

(derechos a urbanizar, al aprovechamiento urbanístico, a edificar y a la edificación) y

condiciona su ejercicio”. 228

226 MATTOS, Liana, op.cit., p.63. 227 Idem., Ibidem., p. 63. 228 Idem., Ibidem., p. 64.

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5. FUNÇÃO SOCIAL DA CIDADE E DA PROPRIEDADE URBANA

5.1. Noções Gerais

No capítulo primeiro do presente trabalho aborda-se aspectos históricos do direito

de propriedade no Brasil, incluindo aí o tratamento do instituto da superfície posto ser

impossível cuidar de assunto tão interessante sem traçar seu contorno histórico.

Em seguida, cuida-se do instituto da superfície no Brasil, passando pelo período de

colonização portuguesa, em que estiveram em vigor as Ordenações do Reino de Portugal,

tendo sido abordados aspectos da fase de elaboração do Código Civil de 1916, de Teixeira

de Freitas a Clóvis Bevilácqua, onde noticia-se as diversas tentativas de inserção do instituto

da superfície no ordenamento jurídico positivo, o que acabou ocorrendo com a entrada em

vigor do Estatuto da Cidade, através da Lei nº 10.257, de 10-7-2001 e, posteriormente, com

o advento do novo Código Civil ( Lei nº 10.406, de 02 de janeiro de 2002).

Logo após, aborda-se a questão da função social da propriedade, ocasião em que

enfoca-se o princípio da sociabilidade, norteador do novo diploma civil, com destaque para

sua importância quanto ao tratamento a ser dado ao direito de propriedade.

Por agora, dando seqüência à pesquisa, cujo objetivo reside no tratamento do direito

de superfície no novo Código Civil e a sua função social, desenvolver-se-á um capítulo que

tem íntima relação com o anterior, em que será feita abordagem da função social da cidade e

da propriedade urbana com vistas ao entendimento de diversas questões ligadas à má

distribuição da terra e suas conseqüências na formação das cidades.

No entanto, antes mesmo de tratar da questão da função social da cidade e da

propriedade urbana, tema do presente capítulo, cumpre tecer algumas considerações

reputadas importantes a respeito da função social da propriedade, para não perder de vista o

fio condutor da presente pesquisa.

Referentemente ao estudo do direito de propriedade e seus contornos na nova ordem

jurídica, cumpre trazer à colação ponderações do professor Gustavo Tepedino229, nos

seguintes termos:

A propriedade pode ser estudada em dois aspectos, o estrutural e o funcional. A dogmática tradicional e, na sua esteira, o Código Civil brasileiro, preocupa-se somente com a estrutura do direito subjetivo proprietário. O art. 524 do C. Civ.230, com efeito, evitando defini-la, dispõe sobre os poderes do titular do domínio,

229 TEPEDINO, Gustavo. A Nova Propriedade (o seu conteúdo mínimo, entre o Código Civil, a legislação ordinária e a Constituição). Revista Forense, Rio de Janeiro: Forense, vol. 51, n. 306, p. 73-78, abr.1989. 230 Referência ao Código Civil de 1916.

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fixando o aspecto interno ou econômico, caracterizador do senhorio, e outro externo, o aspecto propriamente jurídico da estrutura da propriedade. O primeiro aspecto, interno ou econômico, é composto pelas faculdades de usar, fruir e dispor, O segundo, o jurídico, traduz-se na faculdade de exclusão das ingerências alheias.

Estes dois aspectos, o interno e o externo, compõem a estrutura da propriedade, o seu aspecto estático. Já o segundo aspecto, mais polêmico, é alvo de disputa ideológica, refere-se ao aspecto dinâmico da propriedade, a função que desempenha no mundo jurídico e econômico a chamada função social da propriedade.

Colocadas tais considerações, percebe-se que o tratamento do direito de propriedade

passou por profundas transformações nas últimas décadas, onde o legislador passou a se

preocupar com outro aspecto inerente ao direito proprietário, qual seja, o referente à sua

função social.

Conforme adverte o autor supracitado, o tema referente à função social da

propriedade não é novo, remontando à doutrina cristã da Idade Média, na preocupação com

a utilização da propriedade com vistas a atingir o bem comum da coletividade e, com base no

jusnaturalismo, construiu-se a noção de função social da propriedade traduzida na idéia de

que a propriedade só teria sentido quando utilizada com o objetivo de realização da justiça

divina.

Porém, com o liberalismo do século XIX, concebeu-se a idéia de função social da

propriedade, com a apropriação em si, como mecanismo de expressão e de desenvolvimento

da liberdade humana, por inspiração das primeiras codificações da Europa e que acabou por

influenciar nossa primeira codificação.

Após a primeira guerra mundial, ocorreram graves mudanças no papel do Estado que

de mero espectador das atividades privadas, passou a intervir sistematicamente na economia,

com vistas a evitar o crescimento das desigualdades sociais, no pronto atendimento de

interesses básicos da população carente, como os “sem terra”, os “sem teto” e o contingente

enorme de desassistidos dos serviços públicos prestados pelo Estado, formam uma classe de

reivindicantes que culminou em incontáveis movimentos sociais, conforme pondera Gustavo

Tepedino. 231

Nesse diapasão, a propriedade passou a ser enxergada de forma diferente pelo

legislador, que a partir de então vai dotá-la de uma função primordial na distribuição de

rendas, sendo certo que a situação de proprietário passou a implicar para o titular no dever de

respeitar o contingente de não proprietários.

231 TEPEDINO, op.cit., p. 73-78.

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Por outro lado, o proprietário passa a não desfrutar de sua posição de supremacia em

razão da titularidade de proprietário, sendo que a fórmula do jus utendi et abutendi

originários do direito de propriedade romano passou a não servir mais como fundamento de

manutenção do status de absoluto do direito de propriedade frente aos não proprietários,

passando este a ser questionado sob o prisma de sua função social e de seu conteúdo, diante

da nova ordem jurídica então existente, conforme adverte o professor Gustavo Tepedino.

5.2. O direito de propriedade na Constituição de 1988

O direito de propriedade, bem como sua função social disciplinados nos incisos XXII

e XXIII do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 que trata dos direitos e garantias

individuais irradiou para todo o ordenamento jurídico vigente, garantindo o direito de

propriedade atrelado à sua função social.

No caso do Brasil o texto Constitucional de 1988 passou a incluir a propriedade

privada como um de seus fundamentos, ou seja, como um dos princípios da ordem

econômica, ao lado da função social da propriedade, no artigo 170, incisos II e III.

De outro norte, os artigos 182 e seguintes da atual Constituição Federal traça regras

incidentes sobre a propriedade territorial urbana, bem como o artigo 184 e seguintes, que

trata da propriedade rural no capítulo dedicado ao tratamento da política agrícola, fundiária e

da reforma agrária.

Assim, o Constituinte de 1988 criou estatutos diversos para a propriedade, segundo

sua localização – rural e urbana-, potencialidade produtiva e não produtiva – e titularidade –

apropriação por estrangeiros ou por nacionais, conforme adverte o professor Gustavo

Tepedino.232

No tocante ao direito urbanístico brasileiro, cumpre salientar que com a entrada em

vigor do Estatuto da Cidade, através da Lei nº 10.257 de 10 de julho de 2001, passou por

um processo de consolidação conceitual de seus principais institutos, pela contribuição de

diversos renomados doutrinadores como Eros Roberto Grau, Nelson Saule Júnior, José

Afonso da Silva, Toshio Mukai, Ricardo Pereira Lira, Edésio Fernandes, Diogo de

Figueiredo Moreira Neto e Hely Lopes Meirelles que grandes contribuições trouxeram para o

desenvolvimento do direito urbanístico brasileiro233, na esteira das grandes transformações

232 TEPEDINO, op. cit., p. 75. 233 DIAS, Maurício Leal. A função social ambiental da cidade como princípio constitucional. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n.565, 23 jan. 2005. Disponível em http://jus2.com.br/doutrina/texto. asp?id=10. Acesso em 18 jun..2006.

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ocorridas na sociedade brasileira nas últimas décadas, com sua industrialização e conseqüente

crescimento das cidades e as conseqüências daí resultantes.

Sabe-se que grande parte da população vive nas cidades, com prejuízo da qualidade

de vida e do meio ambiente, além de outros fatores de marginalização da população de baixa

renda, como o surgimento das favelas, mocambos, palafitas e de um sem número de “sem

teto”, conforme adverte o Professor Ricardo Lira234.

O instituto da superfície talvez servirá, se bem utilizado, para eliminar ou quem sabe

diminuir os problemas surgidos com a vinda das pessoas do campo para as cidades em busca

de melhores condições de vida não encontráveis no meio rural em razão da pouca infra-

estrutura inerente ao meio rural e do conforto que a cidade grande promete oferecer, como

possibilidade de emprego, escola, oferta de produtos para consumo, etc.

Neste capítulo enfrentou-se tais questões e procurou-se demonstrar que o instituto da

superfície, se bem compreendido por aqueles que administram as cidades, poderá ser de

grande utilidade na busca de uma justa distribuição do espaço urbano e contribuirá para uma

vida mais saudável da população que vive nos grandes aglomerados urbanos.

Entendeu-se que todas essas questões estão intimamente relacionadas com a má

distribuição do espaço urbano, sendo certo que os princípios do direito urbanístico são

encontráveis na Constituição Federal, mormente no artigos 21, IX quanto a elaboração e

execução de planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento

econômico e social, no artigo 21, XX, ao instituir diretrizes para o sistema nacional de

viação, no artigo 23, IX e X, no tocante à promoção de programas de construção de

moradias e a melhorias das condições habitacionais e de saneamento básico e ao combate às

causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores

desfavorecidos.

Por outro lado, o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257, de 10-07-2001), em seu artigo

4º e seguintes, fornece os instrumentos jurídicos e políticos a serem utilizados para viabilizar

a implantação de uma política urbana nos moldes previstos no texto constitucional, quais

sejam, servidão administrativa, limitações administrativas, tombamento de imóveis ou de

mobiliário urbano, instituição de unidade de conservação, de zonas de interesse social,

concessão de direito real de uso, concessão de uso especial para fins de moradia,

parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, usucapião especial de imóvel urbano;

234 LIRA, op. cit., p. 108 e s.

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direito de superfície, direito de preempção, outorga onerosa do direito de construir e de

alteração de uso, transferência do direito de construir, operações urbanas consorciadas,

regularização fundiária e assistência técnica e jurídica gratuita para as comunidades e

grupos sociais menos favorecidos, além do referendo popular e plebiscito e estudo prévio de

impacto ambiental (EIA) e estudo prévio de impacto de vizinhança (EIV).

Observe-se que o administrador está munido de instrumentos jurídicos e políticos

que lhe ajudarão a minimizar o problema da falta de moradia e das conseqüências dela

decorrentes, sendo o direito de superfície um desses instrumentos, mas desde que bem

utilizado, com cláusula de opção de compra do imóvel ao término do contrato.

Na efetivação da função social da propriedade urbana ganha realce o instituto da

superfície, como importante instrumento de regularização fundiária, principalmente nas

favelas, desde que utilizada com o contrato contendo cláusula de opção de compra do

imóvel ao seu término, conforme sugere o professor Ricardo Lira235, in verbis:

As utilidades do instrumento podem igualmente ser valiosas, sobretudo em uma política de regularização fundiária, para titulação de áreas de assentamento de populações de baixa renda (favelas, mocambos, palafitas, loteamentos irregulares do ponto de vista dominial), pactuando-se no final do prazo de concessão uma opção de compra, com o que se ensejará a essas populações o acesso à propriedade da terra urbana.

Assim, segundo Fernanda Lousada Cardoso,236 “a doutrina civilista, atenta à

realidade social vivida nos dias de hoje, afirma que a propriedade urbana só será reconhecida

e tutelada pelo ordenamento jurídico, caso esteja exercendo sua função social, propiciando o

exercício das chamadas funções urbanísticas de moradia, trabalho, circulação e recreação”.

Ainda no que se refere ao uso do solo urbano, o professor Ricardo Lira237 adverte

para o fato de que “sobre a edificação e o parcelamento compulsórios, contemplados nos

artigos 5º, 6º e 8º do Estatuto da Cidade, seriam armas eficazes na repressão à especulação

imobiliária, podendo o proprietário ser notificado para edificar dentro de prazo

preestabelecido em lei, pena de exacerbação do IPTU, além da possibilidade do parcelamento

compulsório previsto no segundo dispositivo legal supracitado, bem como no direito de

235 LIRA, Ricardo Pereira. Direito urbanístico, estatuto da cidade e regularização fundiária. Revista de Direito da Cidade/Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Harbra, v.1, n.1, p.149-164, maio.2006-semestral. 236 CARDOSO, Fernanda Lousada. Instrumento de efetivação da função social da propriedade: o usucapião especial urbano. Revista de Direito da Cidade/Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Harbra, v.1, n.1, p.91, maio.2006-semestral. 237 Idem., Ibidem., p. 156.

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preempção, consistente no direito de preferência que o município teria, sobre imóveis

localizados em determinadas áreas, objeto de transação entre particulares.

5.3. O direito à moradia como direito humano fundamental

Com a sua inserção no rol dos direitos fundamentais sociais no artigo 6º da

Constituição Federal de 1988, não há dúvida de que o direito à moradia foi reconhecido

expressamente pela norma jurídica fundamental, por sua íntima relação com outro princípio

constitucional, qual seja, o da dignidade da pessoa humana, cujo objetivo é a proteção da

pessoa contra as necessidades de ordem material e a garantia de uma existência digna.238

Quanto ao tratamento do direito à moradia como direito humano fundamental

cumpre averbar, inicialmente, que no tocante à autonomia conferida ao município pela

Constituição de 1988, destaca-se o constante do artigo 30, inciso III, consistente na outorga

de competência ao município para prover, no que couber, adequado ordenamento territorial,

mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano.

Contudo, importa consignar, neste tópico, que embora o artigo 6º da Constituição

Federal de 1988 tenha inserido o direito à moradia dentre os direitos sociais constantes do

referido dispositivo constitucional, graves são os problemas atinentes à escassez de moradia e

muito ainda precisa ser feito para que o direito à moradia não seja apenas uma previsão sem

conteúdo prático no texto constitucional.

Sobre a questão da efetividade de referido dispositivo legal lúcidos são os

esclarecimentos de Ingo Wolfgang Sarlet, verbis:

Voltando-nos agora mais especificamente para a questão do conteúdo do direito fundamental à moradia, deparamo-nos possivelmente com um dos mais angustiantes e complexos problemas que o tema suscita e que, de certa forma, é comum aos assim designados direito sociais, notadamente quando examinados pelo prisma da sua condição de direitos a prestações, já que da definição de qual o seu conteúdo (ou objeto, se assim preferirmos), decorrem importantes conseqüências até mesmo no que diz com a locação de recursos materiais e humanos para a sua efetiva realização.

Iniciando a abordagem do ponto de vista terminológico, andou bem o nosso legislador constitucional ao referir o direito à moradia de forma genérica,

238 SARLET, Ingo Wolfgang. O Direito Fundamental à Moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. Arquivos de Direito Humanos. In: TORRES, Ricardo Lobo; MELLO, Celso D. Albuquerque.(Org.). Arquivos de Direito Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, 4, p.137-191, ao destacar que o direito à moradia tem íntima vinculação com a dignidade da pessoa da pessoa humana, posto tratar-se de direito à condições materiais mínimas para uma existência digna. Para o citado autor, sem que a pessoa tenha um lugar adequado para proteger-se a si próprio e a sua família contra as intempéries, sem um local para gozar de sua intimidade e privacidade, enfim, de um espaço essencial para viver com um mínimo de saúde e bem estar, certamente a pessoa não terá assegurada a sua dignidade, não tendo sequer assegurado o direito à própria existência física e, conseqüentemente, o seu direito à vida.

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desacompanhado de qualquer adjetivo. Com efeito, tendo em conta a previsão, na esfera dos tratados internacionais, de um direito à moradia adequada (como ocorre no Pacto Internacional de 1966) ou mesmo de um direito a uma moradia decente, como dispõe a Constituição da Bélgica, não nos parece, especialmente à luz da nossa atual Carta Magna, que um direito à moradia possa, em qualquer hipótese, ser interpretado como um direito à moradia não adequada ou, pior ainda, não decente. Uma moradia minimamente compatível com as exigências da dignidade da pessoa humana, à evidência, sempre deverá ser adequada e decente. De qualquer modo, cuidando-se certamente de aspecto de menor relevância, convém levar em consideração que a adjetivação tem o mérito inquestionável de afastar interpretações demasiadamente restritivas, que possam vir a reduzir excessivamente o objeto do direito à moradia ou (o que dá no mesmo) deixá-lo na completa dependência do legislador infraconstitucional.

Não se pode deixar de mencionar o fato de que com o escopo de efetivar existência

digna, o direito à moradia assume posição preferencial em relação ao direito de propriedade

que atualmente encontra-se limitado pela sua função social, no sentido que apenas a

propriedade socialmente útil, ou seja, aquela que cumpre sua função social, é protegida e

tutelada pela norma fundamental, uma vez que sob a nova roupagem a propriedade tem que

cumprir função existencial e não simplesmente patrimonial, conforme adverte Ingo

Wolfgang Sarlet239.

Nesse sentido, pode-se dizer que o direito à moradia tem íntima conexão com o

princípio da dignidade humana inserto no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal de

1988, consistente em preservar ao cidadão padrões mínimos e indispensáveis a uma vida

saudável, completo bem-estar físico, mental e social, posto que uma vida digna poderá ser

menos que uma vida com saúde, não restringindo apenas a mera sobrevivência física, o que

deverá ser assegurado pelo Estado, por tratar-se de um complexo de direitos e deveres

fundamentais a serem tutelados pelo poder público com vistas a garantir condições

existenciais mínimas para uma vida digna e pautada na oportunização, aos cidadãos, de

poderem participar das tomadas de decisões que refletirão em seus destinos.

É preciso mencionar que a implementação do direito à moradia digna requer o

atendimento de uma série de elementos básicos estabelecidos pela Comissão de Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais da ONU para nortear as autoridades legislativas, executivas

e judiciárias, conforme descrição de Ingo Wolfgang Sarlet240, in verbis:

a) Segurança jurídica para a posse, independentemente de sua natureza e origem.

b) Disponibilidade de infra-estrutura básica para a garantia da saúde, segurança, conforto e nutrição dos titulares do direito (acesso à água potável, energia para o preparo da alimentação, iluminação, saneamento, básico, etc).

239 SARLET, op. cit., p. 157-158. 240 Idem., ibidem., p. 159.

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c) As despesas com a manutenção da moradia não podem comprometer a satisfação de outras necessidades básicas.

d) A moradia deve oferecer condições efetivas de habitabilidade, notadamente assegurando a segurança física aos seus ocupantes.

e) Acesso em condições razoáveis à moradia, especialmente para os portadores de deficiência. f) A moradia e o modo de sua construção devem respeitar e expressar a identidade e diversidade cultural da população.

Ante tais considerações, pode-se afirmar com Matthew Craven citado por Ingo Sarlet

que das diretrizes supracitadas decorrem que o direito à moradia não implica apenas em

“um teto sobre a cabeça” ou “espaço físico” para viver, pressupondo a observância de

critérios qualitativos mínimos.241

Importa consignar, ainda, que o direito à moradia digna deve ser meta a ser

perseguida e atingida pelo Estado que deve implementar políticas públicas objetivando

reconhecer, respeitar e proteger o direito à moradia, por ser direito fundamental relevante,

sustentando com Ingo Sarlet o seguinte:

Sem que se vá aqui examinar de modo mais detalhado cada obrigação a ser assumida pelos Estados na esfera internacional, o que se verifica, desde logo, é que tais compromissos apenas enrobustecem a constatação de que o direito à moradia apresenta uma face defensiva e prestacional, implicando um feixe complexo, conexo e diversificado de posições jurídicas fundamentais, com notas distintas até mesmo no âmbito interno da classificação em direitos negativos e prestacionais.

Ademais, sob esse anglo de visão, cumpre trazer à baila as lúcidas ponderações do

professor Ricardo César Pereira Lira,242 in verbis:

Nos países subdesenvolvidos, e nos países em desenvolvimento como o nosso, a ocupação do espaço urbano faz-se marcada pelo déficit habitacional, pela deficiência de qualidade dos serviços de infra-estrutura, pela ocupação predatória de áreas inadequadas, pelos serviços de transporte deficientes, estressantes poluentes, pela agressão frontal ao meio ambiente natural e ao meio ambiente construído, pela deslegitimação da autoridade pública fomentando um sentimento generalizado de impunidade – sobretudo nas classes abastadas, como demonstra o episódio ocorrido há algum tempo em Brasília, quando jovens da alta classe média atearam fogo em um índio Pataxó que dormia na via pública – e determinando em inúmeros centros urbanos o aparecimento de um estado paralelo penetrado pelo crime organizado, com espantoso poder de fogo, freqüentemente impondo-se à comunidade e ao próprio Estado formal. Esse “estado paralelo”, pelo menos no seu braço visível, instala-se nas favelas, nos cortiços, nas periferias, tornando-se cada vez mais problemática a sua dominação e conseqüente extinção pela infiltração que logra nos segmentos do mundo oficial, sendo muitas vezes difícil, senão impossível, distinguir entre o agente oficial e o bandido, tamanha a imbricação entre eles existente.

241 CRAVEN, Matthew apud SARLET, op. cit., p. 159-160. 242 LIRA, Direito urbanístico, estatuto da cidade e regularização fundiária, p.149-164.

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A América Latina é das regiões mais desigual do mundo. Essa desigualdade refere-se

a vários aspectos da vida dos cidadãos, como a distribuição de renda, a educação, a saúde, a

moradia, os serviços públicos, o trabalho, o tratamento policial e judicial, a participação

política, dentre outros. Quanto à concentração de riqueza, tem-se que 10% dos indivíduos

mais ricos recebem entre 40 e 70% do total da renda, na maior parte dos países da América

Latina, enquanto os 20% mais pobres recebem apenas de 2% a 4%. Dentre os países de maior

concentração de renda da região figuram Brasil, Chile, Guatemala, Honduras, México e

Panamá, e de menor concentração tem-se a Costa Rica, Jamaica, Uruguai e Venezuela. 243

Contudo, não restam dúvidas de que tais fatores de desigualdades têm íntima relação

com o processo de colonização e estão relacionados com a distribuição de terras nos países

citados, notadamente o Brasil, uma vez que não obtiverem êxito as tentativas de

implementação da reforma agrária, situação que tem contribuído para o agravamento dos

conflitos pela posse da terra rural e pela violência no campo.

Sob esse enfoque vale a pena citar passagem do texto de Letícia Marques Osório,244

in verbis:

A desigual distribuição de terras na América Latina é um dos fatores responsáveis pelo exacerbamento da marginalização dos segmentos mais vulneráveis da população. Nas regiões não urbanizadas, a desigualdade no acesso à terra e aos serviços essenciais de infra-estrutura tem contribuído para a proliferação dos assentamentos precários e irregulares em áreas inadequadas ou impróprias à moradia. De acordo com o Conselho Econômico para América Latina das Nações Unidas, a desigualdade na distribuição de renda nos últimos 20 anos declinou apenas na Bolívia, Honduras e Uruguai. O número de pobres cresceu de 40 milhões para 180 milhões, correspondendo a cerca de 36% da população. Destes, 78 milhões vivem em extrema pobreza, sem condições de pagar pelas refeições básicas diárias.

A América Latina é também a região mais urbanizada do mundo, tendo 75% da população vivendo em cidade no ano de 2000. Em 2030, este índice chegará a 83% da população. O índice regional de urbanização, entretanto, não reflete as situações urbanas nacionais, pois encobre o alto grau de heterogeneidade existente entre os países latino-americanos, tanto no que se refere ao grau de urbanização, quanto no que diz respeito à velocidade do processo. Diferenças de grau de urbanização também podem ser percebidas dentro de um mesmo país, como é o caso do Panamá, onde determinadas províncias possuíam, em 1995, 76% de população urbana, enquanto a média nacional era de 56%.

Conforme adverte a citada autora o crescimento vertiginoso da população urbana nos

paises da América Latina é explicado em parte pela explosão demográfica, mas

principalmente pelo êxodo rural, que se iniciou e se manteve devido à ausência de políticas

consistentes de reforma agrária. Em geral, as leis e as políticas públicas criadas para tentar

243 OSÓRIO, Letícia Marques. Direito À Moradia Adequada na América Latina. In: ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio (Org. e Co-autores). Direito à Moradia e Segurança da Posse no Estatuto da Cidade. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004, p.17. 244 Idem., Ibidem,. op. cit.,p.18.

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conter o crescimento desordenado das cidades eram discriminatórias e de cunho excludente,

gerando mais pobreza, marginalização, analfabetismo, desemprego e subemprego, carência de

serviços e equipamentos, déficits habitacionais e degradação ambiental.245

Enquanto nos países desenvolvidos as mudanças ocorrem à medida que determinadas

inovações tecnológicas amadurecem, nos países não-desenvolvidos, ramos inteiros de

produção são implantados, de uma só vez, submetendo a estrutura econômica a choques

muito mais profundos. Veja-se que nos países desenvolvidos, o conjunto da população está,

em regra, integrado na economia de mercado, enquanto nos subdesenvolvidos boa parte da

população ainda se encontra numa economia cuja organização produtiva lhe provê apenas a

subsistência imediata, ou seja, não produz excedentes agrícolas de vulto à comercialização.246

O processo migratório campo-cidade, nesses países, dá-se por pressões positivas,

através da oferta de melhores empregos nas cidades, e negativas ou expulsadoras do campo,

tanto por um crescimento vegetativo dessas populações como por alterações na tecnologia de

produção agrícola e formas organizacionais da produção e da criação de tipos de produtos

liberadores de mão-de-obra. Tal migração, todavia, não provoca, de imediato, aumento da

demanda por produtos urbanos considerando a pobreza do imigrante, não conseguindo, por

isso, traduzir em demanda com capacidade aquisitiva, todo o tipo de carência que carrega,

conforme adverte Rogério Gesta Leal. 247

Para Ronaldo L. Coutinho,248 a questão urbana sob comento, pode ser assim

analisada:

A intensa aceleração do processo de urbanização da formação social brasileiro conjugada às reestruturação produtiva operada no capitalismo, com a mundialização e a financeirização do capital, acentua e agrava as condições de vida nas concentrações urbanas brasileiras, sobretudo nas regiões metropolitanas, com a eclosão de conflitos que explicitam as próprias contradições inerentes à ordem social capitalista.

O autor continua sua análise fazendo um exame do problema urbano, sustentando

que:

São conflitos derivados da desigualdade social ampliada por uma concentração de renda situada entre as maiores do mundo atual e que traduzem, especialmente no âmbito das cidades, elevadas taxas de iniqüidade social. Estabeleceu-se no espaço

Idem., Ibidem., op. cit., p. 62.

245 OSÓRIO, op. cit., p. 19. 246 LEAL, Rogério Gesta. A Função Social da Propriedade e da Cidade no Brasil: aspectos jurídicos e políticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 61. 247

248 COUTINHO, Ronaldo L. Direito da Cidade: o direito no seu lugar. Revista de Direito da Cidade/Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Harbra, v.1, n.1, p.1-12, maio.2006-semestral.

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urbano brasileiro, entre outras, uma crise que se requer, cada vez mais, intervenções do Poder Público e, em última instância do Poder Judiciário. Mas não se trata apenas da proposição e edição de novas leis, como supõem, ainda, algumas almas ingênuas e bem intencionadas do universo jurídico; exige-se na verdade, uma nova forma de pensar o próprio Direito e suas práticas, vista a patética impotência do ordenamento jurídico (a despeito dos inquestionáveis avanços da Constituição atual e da regularização de alguns de seus dispositivos, a exemplo da Lei Federal 10.257/01, para gerar soluções minimamente razoáveis no sentido de pelo menos atenuar determinadas situações incompatíveis com a decantada defesa da dignidade da pessoa humana alardeada por uma corrente de juristas afinados com os princípios da “solidariedade”.

Relativamente ao tratamento do assunto relacionado ao crescimento da periferia,

Ellade Imparato 249 salienta que a ocupação informal do solo brasileiro não é exatamente uma

novidade, posto que a própria Lei de Terras publicada pelo governo imperial em 1850

objetivou coibir a posse de terras sem titulação. Tal fato se deu em razão de que com a

independência, ocorrida em 1822, as terras brasileiras deixaram de ser propriedade da Coroa

portuguesa, apesar de apenas parte da ocupação do território nacional estar respaldada nas

concessões de terras feitas em consonância com as leis de Portugal.

Por outro lado, a forma de ocupação das terras brasileiras determinou não só a

perpetuação do latifúndio, como também a formação de uma nação agrícola, uma vez que o

Brasil foi exclusivamente agrícola até aos anos 20, momento no qual começou a se

industrializar, ainda que de forma lenta.

Com relação a esse período de industrialização brasileira, vale a pena citar

passagem, do texto de Ellade Imparato,250 verbis:

A industrialização traz consigo a urbanização, ou seja, a concentração da população nas cidades. A industrialização brasileira concentrou-se, no primeiro momento, na cidade de São Paulo, que foi se urbanizando. E com o correr dos anos a população brasileira urbanizou-se, ocorrendo uma total inversão entre as décadas de 40 e 80. Se nos anos 40 o grau de urbanização era de 31%, em 1980 atingia 68% e em 1991 75,6%, ou seja, desde o início desta década ¾ da população brasileira reside em cidades. A concentração não se deu de modo uniforme no Brasil, e sim na região Sudeste, que em 1980 abrigava a residência de 43.5% da população brasileira. Este fluxo populacional ocorreu através de um maciço êxodo rural. Entre 1990 e 1980 cerca de 30 milhões de brasileiros deixaram as áreas rurais.

Ainda de acordo com a citada autora, com a urbanização a concentração de seus

habitantes nas cidades não foi acompanhada da adoção de políticas públicas urbanas que

viabilizassem o crescimento racional das cidades brasileiras, que assistiram impassíveis ao

crescimento desordenado de suas periferias. Assim, grandes cidades como São Paulo tiveram 249 IMPARATO, Ellade. A Regularização Fundiária na Cidade de São Paulo: A Problemática da Zona Leste. In: FERNANDES, Edésio (Org.). Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil . Belo Horizonte: Del Rey, 2001. cap. 9, p. 272. 269-301. 250 Idem., Ibidem., p.269-301.

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expansão em toda sua periferia, sendo certo que a urbanização se deu com o êxodo rural sem

a necessária oferta de unidades habitacionais à população que afluía às cidades.

Ainda de acordo com Ellade Imparato251 a população de migrantes, desprovida de

recursos econômicos, num primeiro momento adquiriu lotes de terra onde o preço era

acessível e no segundo momento deu início à ocupação pura e simples dos vazios urbanos, e,

após esse processo de ocupação do solo, as moradias são construídas através do processo de

autoconstrução e, sem qualquer investimento do Estado ou da indústria, possibilitou-se alojar

a mão-de-obra necessária ao processo de industrialização recém instalado em nosso país.

Nesses grandes centros urbanos, geralmente, os lotes de terreno são adquiridos a

preço acessível por meio de loteamentos informalmente constituídos e localizados nas

periferias das cidades, sem qualquer infra-estrutura urbana, sendo certo que esses lotes são

adquiridos por população que compra de boa-fé, desconhecendo a ilegalidade.

Com relação a esse fatos, Ellade Imparato252 assevera que a urbanização brasileira

se deu pela ocupação informal do território de suas cidades com a expansão de suas periferias,

tendo o assentamento informal do solo trazido múltiplas e nefastas conseqüências para a

cidade e seus moradores. Sobre esse aspecto IMPARATO ( 201, p.274) afirma que:

O parcelamento do solo urbano feito em desacordo com a legislação pertinente traz a impossibilidade de transferência do título de propriedade daqueles que o detenha para os ocupantes de fato. Esses moradores que compraram de boa-fé lotes ilegais – ou mesmo que os tenham ocupado -, assentando-se em caráter definitivo, constroem suas moradias primeiramente de forma rústica, as quais vão transformando em alvenaria aos poucos e fazendo contínuos aprimoramentos em suas casas. Criam seus filhos e formam seu círculo social. Porém, não têm título de propriedade sobre aquilo que possuem. A ausência de título de domínio traz uma instabilidade perene a este enorme contingente populacional que vive na informalidade.

Deste modo, conforme adverte o Professor Ricardo Lira253 (1997, p.169) que:

o direito de superfície, partindo de terras públicas, poderia perfeitamente ser utilizado como meio de absorção e abrigo das populações pobres, com vistas a evitar a criação de novas favelas, o que se concretizaria com “a implantação de uma séria política de regularização fundiária, com especial atenção dirigida às populações carentes, procedendo-se à urbanização e titulação das áreas faveladas, mocambos, palafitas e loteamentos irregulares, bem como, simultaneamente, executando-se até mesmo a fundo perdido, através do comprometimento das terras públicas em concessões de superfície temporários (30, 40 a 50 anos) (forma de utilização do solo, sem saída da gleba do domínio público); com o que, a par da regularização das áreas já atualmente a serem tituladas, se evitarão as favelizações futuras.

251 IMPARATO, op. cit., p. 273. 252 Idem., Ibidem., p.274. 253 Idem., Ibidem., p.169.

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No tocante às políticas públicas adotadas no Brasil para resolver ou minimizar o

problema da regularização do espaço urbano, vale a pena trazer à colação observações de

Liliane Moraes Pestana254, in verbis:

Já em relação aos programas de regularização fundiária, em particular no Brasil, estes têm sido implementados em diversos municípios desde meados da década de 1980, sobretudo a partir do começo da década de 1990, abrangendo as favelas e, em menor escala, os loteamentos clandestinos ou irregulares, de modo a promover a integração sócio-espacial, a qual consiste no tema central da Campanha Global pela Segurança da Posse, promovida, desde 1999, pela agência Habit da ONU, propugnando pelo reconhecimento do direito de moradia em detrimento do simples reconhecimento de títulos de propriedade, já que esta política não atinge o objetivo maior de regularização fundiária, que seria o de solucionar a pobreza em várias comunidades, atraindo sim outros problemas, como o despertar do interesse da especulação imobiliária.

No caso específico do Brasil pode-se destacar a criação e atuação do Ministério das

Cidades com suas políticas e programas, levando-se em consideração que, depois de mais de

20 anos de ausência de uma política urbana nacional e de um rumo errático nas políticas de

saneamento e habitação, o Governo Federal formulou uma proposta para médio e longo

prazo, mas também para curto prazo, com resultados concretos em mais ou menos 30 meses

de atuação do Ministério das Cidades.255

Combater as desigualdades sociais, transformando as cidades em espaços mais

humanizados, ampliando o acesso da população à moradia, ao saneamento e ao transporte.

Esta é a missão do Ministério das Cidades, criado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva

em 1º de janeiro de 2003, contemplando uma antiga reivindicação dos movimentos sociais

de luta pela reforma urbana.256

Ao Ministério das Cidades compete cuidar da política de desenvolvimento urbano,

bem assim, das políticas de habitação, saneamento ambiental, transporte urbano e trânsito,

de forma articulada com os estados e municípios, movimentos sociais, organizações não

governamentais, setores privados e demais segmentos da sociedade, assegurando os direitos

humanos fundamentais de acesso à moradia e vida em ambiente salubre nas cidades e no

campo.

254 PESTANA, Liliane Moraes. A Agenda Marrom: o planejamento urbano:ambiental. Revista de Direito da Cidade/Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Harbra, v.1, n.1, p.79, maio.2006-semestral. 255 Idem., Ibidem., p.82. 256 Idem., ibidem., p.82.

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5.4. A Função Social da Propriedade e da Cidade

Para tratar deste tópico, relacionado com a função social da propriedade e da cidade,

serão tecidas algumas considerações em torno das transformações pelas quais a propriedade

passou durante as últimas décadas, para logo em seguida, abordar-se a questão da função

social da propriedade e da cidade.

Conforme adverte Rebeca de Souza,257 “ a cidadania e a dignidade da pessoa humana

são fundamentos da República Federativa do Brasil, expressamente dispostos no artigo 1º

da Constituição de 1988, irradiando-se sobre toda a constituição.”

Ainda segundo a citada autora, com base na concepção de Marshall, a cidadania

pode ser compreendida modernamente como o conjunto de direitos civis, políticos e sociais,

os quais foram sendo construídos e incorporados gradualmente ao longo da história.258

No entanto, cumpre observar, com Rogério Gesta Leal259, que a partir da segunda

metade do século XVIII, por intermédio do pensamento iluminista, surge a idéia de

codificação e sistematização das normas jurídicas em compêndios, cujo maior resultado e

prova encontra-se no Código Napoleônico de 1804, que, somado à codificação justinianéia,

revela-se de fundamental importância na formação do pensamento jurídico-positivo do

Ocidente, principalmente no tocante à propriedade privada.

Quanto ao direito de propriedade na tradição da cultura ocidental cumpre referir ao

pensamento de Rogério Gesta Leal260, verbis:

A propriedade enquanto instituto social e político, antes de jurídico, tem sido tratada de diversas formas pela cultura ocidental. Estudos clássicos, como o de Coulanges, dão conta de que há três coisas que desde a mais remota Antigüidade se encontram fundadas e solidamente estabelecidas: a religião, a família e a propriedade.

Nos estudos de Engels, percebemos que, em razão de aspectos econômicos e também físico-naturais, vinculou-se estreitamente a propriedade com a existência de agrupamentos humanos e familiares, relevando-se aqui a causa de produção da subsistência e suas conexões espontaneístas com o cotidiano dos indivíduos, sem existir uma nítida e presente intenção dirigida à sociabilidade. Tal situação leva-nos a crer que a primeira idéia de propriedade surgida em nossa cultura seja a comunal, distinta pois, da propriedade privada.

257 SOUZA, Rebeca de. Breves reflexões sobre os direitos sociais no Brasil e a nova política habitacional do Governo Federal. Revista de Direito da Cidade/Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Harbra, v.1, n.1, p.129, maio.2006-semestral. 258 Idem., ibidem., p. 129. 259 LEAL, Rogério Gesta. A Função Social da Propriedade e da Cidade no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, Santa Cruz do Sul:Edunisc, 1998, p.37. 260 Idem, ibidem., p.37.

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Assim, segundo o citado autor, o desenvolvimento da propriedade passa por um

estágio em que, inicialmente vinculada a produção de subsistência, com atividades

eminentemente agrícolas em períodos primitivos da história, pode-se compreender o processo

de apreensão e individualização da propriedade comunitária, transformada em propriedade

primitiva, sendo esse processo marcado por lutas de interesses entre produtores e posseiros

proprietários.

Por outro lado, o desenvolvimento do instituto da propriedade esteve relacionado a

fatores de mercado, bem como ao próprio sistema capitalista, conforme destaca Rogério

Gesta261, citando Engels, ao afirmar que a civilização está pautada no desenvolvimento da

sociedade em que a divisão do trabalho, a troca entre os indivíduos e a produção mercantil

atingem seu pleno desenvolvimento, causando uma revolução em toda sociedade, fazendo

surgir a divisão do trabalho e, conseqüentemente, a propriedade individual, fixando-se a

oposição entre a cidade e o campo.

Contudo, cumpre acrescentar que foi em Roma que a concepção de uma propriedade

rigidamente individual se firmou de uma maneira mais dogmática e positivada, apesar de na

Roma antiga, conforme adverte Rogério Gesta262, o regime de bens era dominado por dois

fatores, quais sejam, a concepção do Direito e a organização das famílias, uma vez que esta

era fundada no culto ao lar e aos mortos, com uma organização autocrata, exigindo um

sistema de bens assecuratório de sua auto-suficiência,existindo, então, duas formas de

propriedade coletiva: a da cidade (gens) e a da família, sendo forte nesse período a idéia de

uma propriedade coletiva.

Com o passar do tempo, já na República em Roma, a idéia de propriedade coletiva da

cidade desaparece, sobrevindo a familiar, que, por sua vez, submerge ante a autoridade cada

vez mais presente e intensa da figura do pater famílias, podendo ser destacadas algumas fases

do desenvolvimento da propriedade individual em Roma que, inicialmente apresentou-se

uma propriedade individual sobre os objetos necessários à sobrevivência dos indivíduos,

surgindo em seguida a propriedade individual sobre os objetos produzidos para o uso do

indivíduo passíveis de troca com outros indivíduos, decorrendo daí a propriedade dos meios

de produção, passando o direito de propriedade romana, com o tempo, a sofrer limitações

legais em razão de motivos de ordem pública, privada, ética, higiênica ou prática.

261 GESTA, apud, ENGELS, op.cit, p.39. 262 Idem., Ibidem., p.40-41.

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Na Idade Média surge novo conceito de propriedade que contrastava com o

exclusivismo dos romanistas, passando-se a distinguir o domínio direto da propriedade, que

pertencia ao senhor feudal, e o domínio útil do vassalo.

O Mercantilismo e a Revolução Comercial dão um impulso no modelo feudal de

organização social e da idéia de propriedade, sendo implantada a idéia de propriedade

produtiva, responsável pelo desenvolvimento econômico, sendo certo que na Idade Moderna,

com a expansão comercial, implementação da produção manufatureira, pela formação de

impérios financeiros e com a descoberta do Novo Mundo, no século XVI, a idéia de

propriedade imobiliária torna-se senso comum, tendo a propriedade industrial passado a

ganhar relevo e que associada à propriedade imobiliária foram vistas como forma de servir

ao capital com vistas à constituição de mais capital.

Porém, com o advento da Revolução Francesa, instituiu-se novo tratamento a ser

conferido à propriedade, com ampliação de seu significado, abolição de privilégios, o

cancelamento dos direitos perpétuos, com certo desprezo pela coisa móvel em prol dos bens

imóveis, tendo resultado em grande preocupação jurídica envolvendo a propriedade que, a

partir do Código de Napoleão de 1804, que garantiu ao seu titular ampla liberdade, razão

pela qual a doutrina jurídica francesa enfrentou o problema da propriedade, com avanços

teórico que culminou com estudos de Duguit, que passou a vislumbrar na propriedade uma

função social, relacionada com a capacidade de utilização da propriedade.

Sob esse aspecto Rogério Gesta Leal263 destaca que:

Com a tomada do poder pela burguesia, na Revolução Francesa (1789), a propriedade passa a figurar dentre os direitos fundamentais, juntamente com a vida e a liberdade; prova disso é o constante no art. 17 da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, que afirma ser o direito de propriedade inviolable et sacré, posição ratificada, claramente, pelo Código de Napoleão (1804), onde é considerada um direito, o assento territorial da independência do indivíduo. Era possível, a seu detentor, utilizar-se de seu bem segundo os princípios do jus utendi e jus abutendi do Direito Romano.

[...]

Se o titular do direito não utiliza as faculdades inerentes ao domínio para extrair do bem os frutos que este tem capacidade de produzir, ficará sujeito às cominações legais, para que a propriedade possa ser recolocada em seu cominho normal. A função social, aqui, visa justamente a fazer com que ela seja utilizada de maneira a cumprir o fim a que se destina, ao menos dogmaticamente, não gerando contraposição entre os interesses individuais e coletivos.

A concepção política e jurídica de propriedade privada tida como direito absoluto vai vigorar, principalmente, nos países de colonização real, até o início do século XX, com o advento das constituições sociais.

263 GESTA, op. cit., p.50-51.

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Atrelados a tal concepção de propriedade encontram-se o processo de constituição do espaço urbano e a própria ocupação deste espaço...

Neste contexto, adverte Fernanda Lousada Cardoso264 que o advento da Lei nº

10.257/01 representou um grande avanço na sistematização do direito urbanístico, elencando

diversos instrumentos relevantes para a ordenação do espaço urbano, além de determinar

diretrizes a serem seguidas por todos, sociedade civil e Poder Público, no estabelecimento de

um adequado meio ambiente urbano.

O instituto da função social da propriedade inserida na Constituição Federal de

1998, por força dos artigos 5º, inciso XXIV e 170, inciso III, migrou para o direito privado,

viabilizando a funcionalização do direito de propriedade que não mais se circunscreve aos

padrões liberais burgueses como direito real absoluto, como expõe a citada autora:

Assim, a doutrina civilista, atenta à realidade social vivida nos dias de hoje, afirma que a propriedade urbana só será reconhecida e tutelada pelo ordenamento jurídico, caso esteja exercendo sua função social, propiciando o exercício das chamadas funções urbanísticas de moradia, trabalho, circulação e recreação.

Assim, é apresentado o direito de superfície como importante instrumento de

regularização fundiária, com assento no Novo Código Civil (arts. 1.369 a 1.377) e nos artigos

21 a 24 da Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001 (Estatuto da Cidade).

Analisando tal fenômeno social assim expôs Dalmo de Abreu Dallari, citado por

Fernanda Lousada Cardoso265:

Reflexos desse fenômeno é o surgimento do princípio constitucional da “função social da propriedade”, que introduz nova qualidade no direito de propriedade, ficando este incompatível com a ociosidade dos imóveis e com seu aproveitamento insuficiente do ponto de vista dos interesses sociais. De acordo com essa nova concepção, o proprietário já não tem o direito de não usar, não vigorando mais o conceito de propriedade como direito absoluto.

De maneira que o princípio da função social constitui uma espécie de limitação ao

direito de propriedade, ambos previstos dentre os direitos e garantias individuais e coletivos

do artigo 5º, incisos XVII e XVIII da Constituição Federal de 1988.

5.5. Formação da propriedade urbana no Brasil

A Constituição brasileira de 1988 inova o ordenamento jurídico brasileiro ao

estabelecer pela primeira vez um capítulo específico da política urbana, que contém um

conjunto de princípios, responsabilidades e obrigações do Poder Público e de instrumentos

264 CARDOSO, Fernanda Lousada. Instrumento de Efetivação da Função Social da Propriedade: o usucapião especial urbano. Revista de Direito da Cidade/Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Harbra, v.1, n.1, p.79, maio.2006-semestral. 265 Idem., Ibidem., p.105.

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jurídicos e urbanísticos para serem aplicados e respeitados com o objetivo de reverter o

quadro de degradação ambiental e das desigualdades sociais nas cidades, possibilitando uma

condição digna de vida para a população urbana.266

Por outro lado, não pode ser desconsiderado que a cidade foi e continua sendo de

grande importância para o desenvolvimento das potencialidades humanas, podendo ser dito

que a multiplicação das cidades, de uma forma ou de outra, contribuiu para que os homens

estreitassem seus laços de sociabilidade, tendo se desenvolvimento as relações sociais em que

a vida em aglomerados urbanos propiciou a construção de relações fundadas em direitos e

deveres, com intensa participação dos moradores nos negócios da cidade.

Sob tais aspectos, vale a pena mencionar passagens da texto Cidade, Cidadania e

Segregação Urbana, de Luiz César de Queiroz Ribeiro267, verbis:

As palavras cidade, cidadão e cidadania foram, historicamente, ganhando o mesmo sentido. Podemos identificar três momentos dessa evolução. Antes de tudo, na antiguidade clássica, cidadania tem a ver com a condição de civitas adquirida pelos homens, vivendo em aglomerados urbanos, contraem relações fundadas em direitos e deveres mutuamente respeitados. Posteriormente, à condição de civitas somou-se a de polis, ou seja, o direito de os moradores das cidades participarem nos negócios públicos. Já no século XIX, a condição de cidadania é expandida com a inclusão de direitos de proteção do morador da cidade contra o arbítrio do Estado. No final do século XIX e no início do século XX, a condição de cidadão expressava também os direitos relacionados à proteção social, inicialmente relacionados aos riscos do trabalho assalariado (desemprego, acidente do trabalho etc.) e posteriormente estendidos à própria condição de cidadão.

[...]

O sentido moderno da palavra cidadania expressa, portanto, três focos: o democrático, o liberal e o social. O primeiro é o polis, o segundo o civitas e o terceiro societas. Este último foco tem a ver com a descoberta de que o civitas e o polis somente poderiam existir com o mínimo de Justiça Social. Podemos, então, imaginar uma seqüência: cidadania cívica, cidadania política e cidadania social.

Com base em tudo quanto foi dito, segue-se a linha da presente pesquisa, no sentido

de analisar-se os reflexos que a aglomeração urbana causaram nos padrões de vida das

pessoas, mormente com o surgimento dos grandes aglomerados urbanos e suas conseqüências

visíveis, quais sejam, a violência crescente, falta de infra estrutura viária e de esgotos,

deficiência no transporte coletivo, escassez de moradia e moradias insalubres, sem falar do

fenômeno do crescimento das favelas que vão sendo formadas em razão da expulsão das

266 SAULE JÚNIOR, Nelson. Formas de Proteção do Direito à Moradia e de Combate aos Despejos Forçados no Brasil. In: FERNANDES, Edésio (Org.). Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p 101- 126. 267 RIBEIRO, Luiz César de Queiroz. Cidade, Cidadania e Segregação Urbana, On-line. Disponível em : <http//www.planum.neto – The European Journal of Plannina>. Acesso em: 29 maio 2006.

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pessoas de baixa renda para as periferias das grandes cidade e as conseqüências daí

resultantes.

Todas essas questões têm íntima relação com ocupação desordenada do solo urbano

e, como adverte o Professor Ricardo Lira (1997, p.109), tais problemas são explicáveis por

uma série de causas, tais como as migrações internas e a forma pela qual o modelo

econômico vem traçando o desenvolvimento industrial, provocando a concentração

populacional urbana.

Nesse diapasão, vale a pena citar outra passagem da obra de Ricardo Lira268, verbis:

Informações oficiais revelam que, em 1940, a população urbana do País, da ordem de 13 milhões de habitantes, correspondia a apenas 31% da população total. Em 1970, atingia 52 milhões, equivalentes a 56% do global. Para o ano em curso, 1980, a população urbana foi estimada em 78 milhões, significando 63% do todo. O aumento é atualmente à razão de 3 milhões de habitantes novos nas cidades por ano (Pronunciamento do Ministro do Interior, na instalação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano – CNDU, em maio de 1979).

Cumpre ressaltar que a Constituição Federal de 1988 garante a inviolabilidade da

propriedade em seu artigo 5º, tendo garantido a propriedade no art. 5º, XXII, contudo,

dispõe que tal propriedade deverá atender a sua função social, conforme preconizado no

artigo 5º, XXIII, podendo concluir da leitura de tais dispositivos constitucionais que a

propriedade foi inserida no rol dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo e da

coletividade.

O texto constitucional protege ainda a pequena propriedade rural trabalhada pela

família, não podendo ser objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua

atividade produtiva, nos termos do artigo 5º, XXV da CF/88, além de ser insuscetível de

reforma agrária, conforme estabelecido no artigo 185 da Carta Magna.

Cuidou a nova Constituição de incluir a propriedade privada como um dos

princípios da ordem econômica e ditames da justiça social, ao lado da função social da

propriedade, agora erigida em princípio, conforme dicção do artigo 170, II e III, permitindo,

ainda, que a política urbana se estabeleça com base na função social da propriedade tendo

por base o plano diretor, nos termos do artigo 182, § 2º da CF/88.

Nesse sentido se expressa Fábio Konder Comparato269 ao esclarecer que a

Constituição brasileira de 1988 em pelo menos dois dispositivos, quais sejam, os artigos 182,

§2º e 4º, e 186, a função social da propriedade é apresentada com imposição do dever 268 LIRA, op. cit., 109. 269 COMPARATO, Fábio Konder. Estado, Empresa e Função Social. RT 732:38-46, out.1996. São Paulo: RT, 1996, apud JÚNIOR, Augusto Geraldo Teizen, op. cit. p.142.

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positivo de uma adequada utilização dos bens, em proveito da coletividade, concluindo o

citado autor que o Estado exerce o papel decisivo e insubstituível na aplicação normativa,

reconhecendo que nos dispositivos constitucionais supracitados, a propriedade urbana deve

cumprir sua função social, de acordo com o plano diretor municipal, bem assim que a

propriedade rural também deva atender ao princípio da função social.

Para o citado autor, cabe ao Estado implementar os referidos conceitos, pressupondo

a existência de uma política urbana e de uma política agrária, bem assim de atuação

governamental objetivando criar diretrizes para a adequada utilização desses bens em

proveito da sociedade.

5.6. Importância da regularização fundiária

Nos tópicos anteriores a este capítulo, abordar-se alguns aspectos relacionados ao

uso do solo urbano e rural, com vistas à implementação da função social da propriedade,

visando minimizar as conseqüências da má distribuição de terras ou do uso inadequado do

solo.

Contudo, cumpre não perder de vista que o objeto da presente pesquisa é relacionar

o instituto da superfície com as questões ligadas à crise habitacional provocada pelo inchaço

dos grandes centros urbanos, em razão da vinda do homem do campo para as cidades.

Antes de mais nada, cumpre atentar para o fato de que a tendência de urbanização

do planeta não será revertida e, à medida em que as cidades concentram o mercado de

trabalho, mesmo a parcela da população que permanecer no campo deverá mais e mais se

reportar às cidades para o escoamento de produção, cuidados com a saúde, educação e lazer,

conforme adverte Ellade Imparato.270

Levando em conta que grande parte da população vive abaixo do nível de pobreza e

em habitações irregulares, o uso adequado do solo urbano só será obtido se forem adotadas

políticas públicas e medidas jurídicas que viabilizem a posse da terra e, possibilitem a

regularização da propriedade, com vistas a minimizar a degradação do meio, conter a

violência urbana e no campo, ocorrida em razão das condições precárias que a população

mais pobre vive nas periferias dos grandes centros urbanos.

270 IMPARATO, Elade. A Regularização Fundiária na Cidade de São Paulo: A Problemática da Zona Leste. In: FERNANDES, Edésio (Org.). Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil . Belo Horizonte: Del Rey, 2001. cap. 9, p.269-301.

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Dentre essas medidas, levando em conta o princípio da função social da propriedade

alhures comentado, o instituto da superfície seria de grande utilidade na solução de tais

problemas, mormente considerando que o direito de superfície consiste em um poder

autônomo consistente no direito real sobre solo alheio, sendo certo que a concessão ad

aedificando ou ad plantandum é um direito real autônomo, temporário ou perpétuo,

transmissível inter vivos ou causa mortis, hipotecável, sucetível de decadência pelo não

exercício do direito de construir ou plantar no prazo da concessão, conforme definições do

professor Ricardo Lira271 que, a propósito nos esclarece que:

A propriedade assegurada em nossa Constituição como um direito individual (art. 153, § 22), cuja função social é declarada como um dos princípios da Justiça Social (art. 160, III), apresenta-se como instituição diferenciada, no sentido de poder variar de conteúdo, conforme o tipo de bem que lhe serve de objeto e a natureza do titular, exatamente por ser uma função social e um dos instrumentos da Justiça Social. A propriedade de bens de consumo, a propriedade de bens de capital, a propriedade de bens de uso pessoal, a propriedade agrícola, a propriedade industrial, a propriedade empresarial, a propriedade rural e a propriedade urbana, são todas elas tipos de propriedade que, pela própria natureza das coisas, não podem ser uniformes em seu conteúdo.

Cumpre não esquecer de mencionar que o Estatuto da Cidade, instituído pela Lei n.

10. 257/2002, do qual ocupar-se-á em momento oportuno, regulamentadora dos artigos 182

e 183 da Constituição Federal de 1988, criou normas de ordem pública e de interesse social

regulatórias do uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-

estar dos cidadãos, além do equilíbrio ambiental, tendo como diretrizes a garantia do direito

a cidades sustentáveis, gestão democrática por meio da participação popular, cooperação

entre os governos, a iniciativa privada e demais seguimentos da sociedade no processo de

urbanização e implementação da função social, oferta de servidos públicos adequados aos

interesses e necessidades da população; regularização fundiária e urbanização de áreas

ocupadas por população de baixa renda, sendo o instituto da superfície um dos instrumentos

constantes do referido Estatuto para viabilizar a política de planejamento urbano,

regularização fundiária urbana, como meio de conferir às populações de baixa renda, a

possibilidade de integração à cidadania mediante a concretização e posse de uma morada, a

estabilidade de um endereço, de um meio urbano ordenado, equilibrado e saudável.272

271 LIRA, op. cit., p.133. 272 ARRUDA, Maria Stela Queiroga; SÁ, Lucilene A. C. M. de; CARNEIRO, Andréa e CANDEIAS, Ana Lúcia. O Estatuto da Cidade e a Regulamentação fundiária de zona especiais de interesse social – ZEIS. Disponível em: <http//geodesia.ufrs.br/Br/Geodesia/arquivo/cobrac-2002/084.htm>. Acesso em 26 maio 2006.

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5.7. Direito à moradia na Constituição Federal de 1988

O direito à moradia está previsto na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 6º,

nos seguintes termos:

Art.6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a

segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos

desamparados, na forma desta Constituição (grifo nosso).

Por outro lado, o artigo 23 da norma fundamental preconiza ser competência comum

da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios promover programas de

construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico.

Contudo, em que pese ter a norma fundamental inscrito o direito à moradia dentre os

direitos sociais, no país vive-se uma crise de habitação gerando um grande número de

pessoas sem moradia ou de pessoas vivendo em casas sem a mínima condições de

habitabilidade, como as que vivem em favelas e palafitas, sem contar os sérios problemas

sociais que disso decorrem, tais como a marginalização e a violência comuns nas periferias

dos grandes centros urbanos e também no campo, onde a disputa por espaço geram outros

conflitos, tão agudos quantos ocorrentes nos aglomerados urbanos.

No entanto, cumpre ponderar que tal quadro social se deve, principalmente, ao fato

de que as normas legais existentes no ordenamento jurídico pátrio, como instrumento para

equacionar o problema da escassez de moradia, como as normas constitucionais mencionadas

alhures ainda não foram colocadas totalmente em prática, ante a falta de políticas públicas

nesse sentido, tornando mais evidente o problema das populações periféricas, que se

agravaram nas últimas décadas, com a expansão do capitalismo que logrou transformar as

sociedades e as cidades num palco de desigualdades que se expressam, como afirma Lúcio

Kowarick273, “tanto na deterioração salarial como nas condições de transporte, saúde,

saneamento e outros componentes básicos para a reprodução da força de trabalho”.

Ao lado da fragilidade das normas jurídicas aliada ao descaso das autoridades com a

questão da moradia, tem-se também a pouca expressividade dos movimentos sociais de base,

que não lograram conquistas importantes e de caráter básico, como transporte coletivo,

habitação e saneamento, sem contar o fato de que o fenômeno mais grave seja a expulsão

das camadas pobres para a periferia da cidade, quando investimentos públicos e privados

273 KOWARICK, Lúcio. A Espoliação Urbana. 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, p.18.

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valorizam determinadas áreas, causando especulação imobiliária, conforme alerta Lúcio

Kowarick274 nos seguintes termos:

Como acumulação e especulação andam juntas, a localização da classe trabalhadora passou a seguir os fluxos dos interesses imobiliários. No contexto explosivo do crescimento metropolitano, o poder público só se muniu tardiamente de instrumentos legais para tentar dar um mínimo de ordenação ao uso do solo. No entanto tal iniciativa ocorre num período em que o desenho urbano já está em grande parte traçado em conseqüência da retenção dos terrenos por parte de grupos privados. Dessa forma a ação governamental restringiu-se, tanto agora como no passado, a seguir os núcleos de ocupação criados pelo setor privado, e os investimentos públicos vieram colocar-se a serviço da dinâmica de valorização-especulação do sistema imobiliário-construtor.

De outro lado, esclarece o citado autor que a especulação imobiliária não se

exprime somente pela retenção de terrenos que se situam entre um centro e zonas

periféricas, mas apresenta-se também nas áreas centrais, quando zonas estagnadas ou

decadentes recebem investimentos em serviços ou infra-estruturas básicas. Ademais, observa

o autor que o surgimento de uma rodovia ou vias expressas, a canalização de um simples

córrego, enfim, uma melhoria urbana de qualquer tipo, repercute imediatamente no preço

dos terrenos, ocorrendo um processo de expulsão da população de baixa renda para as

periferias das grandes cidades275.

Tomando por parâmetro o Estado de São Paulo, Lúcio Kowarick276 esclarece que a

localização das favelas tendeu a seguir a trilha da industrialização, amontoando-se em áreas

próximas ao mercado de mão-de-obra qualificada e, quando a pressão imobiliária ou

congelamento de certas áreas tornam-se mais vigorosos numa cidade ou região, novas favelas

surgem ou são transferidas para municípios vizinhos, onde a especulação imobiliária ainda

não se apresenta tão lucrativa, ocorrendo o que se denomina “limpeza” de uma região

marcada por intensa valorização de terrenos.

Lúcio Kowarick chama a atenção para uma série de fatores que contribuem para o

agravamento da crise habitacional no Brasil. O primeiro deles está assentado no baixo poder

aquisitivo das pessoas que não dispõem de recursos para aquisição de habitação, o outro seria

a especulação imobiliária e o terceiro fator apontado seria a timidez das políticas públicas do

governo para dar conta de grave questão.

Sobre a solução da crise habitacional, cumpre trazer à colação os seguintes

argumentos do citado autor: 274 KOWARICK, op. cit., p.25. 275 Idem., Ibidem., p.40. 276 Idem., Ibidem., p .40-41.

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Assim, o chamado problema habitacional deve ser equacionado tendo em vista dois

processos interligados. O primeira refere-se às condições de exploração do trabalho

propriamente ditas, ou mais precisamente às condições de pauperização absoluta

ou relativa a que estão sujeitos os diversos seguimentos da classe trabalhadora. O

segundo processo, que decorre do anterior e que só pode ser plenamente entendido

quando analisado em razão de movimentos contraditórios da acumulação do

capital, pode ser nomeado de espoliação urbana: é o somatório de extorsões que se

operam através da inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo,

apresentados como socialmente necessários em relação aos níveis de subsistência, e

que agudizam ainda mais a dilapidação realizada no âmbito das relações de

trabalho.

[...}

Tendo em conta tais processos é que o problema habitacional transparece

plenamente. De fato, as agências governamentais têm empregado vultosos recursos

no financiamento das habitações . Contudo, a imensa parcela dos montantes

empregados segue uma lógica de financiamento ditada pela lei do lucro, destinando-

se aos estratos de renda que podem pagar o preço de mercado da construção

habitacional.277

Nessa conjuntura, convém ponderar com Betânia Alfosin e Edésio Fernandes278,

citando Scott Leckie, que no tocante ao direito humano à moradia adequada, a década de 90

representou em período muito importante no tocante aos avanços legais, com o

reconhecimento do direito à moradia no âmbito dos direitos humanos, propiciando uma

base legal sólida para implementação de futuras ações rumo à melhoria das condições de vida

e de moradia das população pobre.

Tal se deu, segundo os autores citados, com a Declaração Universal dos Direitos

Humanos de 1948, que em seu artigo XXV, item 1, expressamente reconhece o direito à

moradia, adequada, além da garantida do direito de propriedade, individual ou coletivamente,

em seu artigo 17, valendo a pena referenciar passagem da citada obra, onde os autores

destacam que o direito à moradia é reconhecido como direito humano em declarações e

tratados internacionais de direito humanos:

Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais de 1966, art 11 (1); Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial de 1965, art 5 (e) (iii); na Declaração sobre Raça e Preconceito de Racial de 1978, art. 9 (2); na Convenção sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher de 1979, art. 14 (2) (h); Convenção

277 KOWARICK, op.cit., p.62-63. 278 ALFONSIN, Betânia e FERNANDES, Edésio. Direito à Moradia e Segurança no Estatuto da Cidade. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004, p.31

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sobre Direitos da Criança de 1989, art. 27 (3); Convenção dos Trabalhadores Migrantes de 1990, art. 43; e Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais de 1989, arts. 13 a 19.

Por fim, cumpre destacar que um dos aspectos da implementação do direito à

moradia como direito humano fundamental é o referente à regularização fundiária, destinada à

regularização das áreas de assentamento das favelas, mocambos, palafitas e loteamentos

irregulares, intensamente articulada com uma política de urbanização e saneamento dessas

áreas, conforme adverte o professor Ricardo Lira.279

Segundo o citado professor, as campanhas implementadas na cidade do Rio de

Janeiro objetivando a remoção das favelas tiveram efeitos sociais desastrosos em que nas

áreas desocupadas efetivaram-se a construção de edifícios suntuosos a serem ocupados pela

alta classe média, tendo os seus primitivos ocupantes sido removidos para locais distantes e

afastados do perímetro urbano, com conseqüente desagregação das famílias e conseqüência

sociais e morais as piores possíveis. 280

Para o urbanista a questão da remoção de favelas deve ser tratada com certo

cuidado, posto ser medida drástica a ser tomada pela autoridade administrativa somente em

casos extremos, quando houver comprometimento para a vida dos próprios moradores,

devendo a remoção dar-se para locais próximos ao inicialmente ocupado, em homenagem ao

direito fundamental à moradia insculpido no artigo 6º, da Constituição Federal de 1988.

Para finalizar este capítulo, no qual cuidou-se da função social da cidade e da

propriedade urbana, deve-se anotar que as questões urbanas devem merecer a atenção dos

governantes, no sentido de criarem políticas públicas para solução das várias questões

ligadas ao déficit habitacional, evitando-se o crescimento desordenando das cidades e os

males daí decorrentes, tais como a violência, a miséria, o comprometimento da qualidade de

vida da população decorrente da escassez dos serviços públicas e da ausência do Estado

nesses locais que passam ser dominados pelo crime organizado.

Urge ressaltar que o Estatuto da Cidade, criado por força da Lei nº 10.257, de 10 de

Juno de 2001, criou vários mecanismos para viabilizar o ordenamento do solo e, via de

conseqüência ordenar o crescimento das cidades, de forma a minimizar os problemas

oriundos da concentração de pessoas nos grandes centros.

Um desses institutos é o direito de superfície que se prestaria, se bem utilizado, a

resolver o problema aquisição de imóvel próprio, uma vez instituída cláusula de opção de 279 LIRA, Direito Urbanístico, Estatuto da Cidade e Regularização Fundiária, p. 160-161. 280 Idem., Ibidem., p.161.

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compra do imóvel construído ao término do prazo de concessão da área objeto do direito de

superfície, posto vislumbrar-se no instituto da superfície um instrumento útil à

implementação da função social da propriedade, evitando-se a propriedade ociosa em mãos

de especuladores no aguardo de melhores oportunidades para negociarem esses, mormente

após a supervalorização dessas áreas, em razão de infra-estrutura implementada pelo Estado a

custo dos impostos pagos por todos, conforme lúcidas ponderações do Professor Ricardo

Lira281, ao se manifestar quanto a regularização fundiária, in verbis:

Como se vê, a existência de uma política pública, voltada para a solução da questão urbana, sobretudo para a difícil questão da regularização fundiária, é de fundamental importância para a observância de toda a comunidade à dignidade da pessoa humana, à erradicação da pobreza, eliminação da marginalidade e das desigualdades sociais, à promoção do bem de todos, sem preconceitos de qualquer natureza, e à construção de uma sociedade, justa e solidária.

Uma última observação precisa ser feita neste capítulo, no que diz respeito ao

direito à moradia, ou seja, que o direito à moradia é responsabilidade do Estado, que deverá

garanti-lo através de políticas públicas e habitacionais destinadas a resolver o problemas da

escassez de moradia, posto que o direito à moradia por ser considerado um direito humano

fundamental requer ação positiva do Estado, através de implementação de políticas públicas,

instituição de organismos, criação de legislação, programas, planos de ação e instrumentos de

modo a garantir esse direito para os seus cidadãos. 282

Por último, cumpre asseverar que as atividades do Estado consistentes na efetivação

de medidas tendentes a regularizar o processo de expansão urbana devem levar em conta

aspectos ambientais, com vistas a evitar a degradação do meio ambiente, por serem

conciliáveis o direito fundamental à moradia com o direito ao meio ambiente saudável e

protegido, para as presentes e futuras gerações.

De maneira que o exercício do direito de morar deve ser compatibilizado com o

direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, posto ser perfeitamente viável que a

regularização fundiária se harmonize com políticas ambientais, de maneira a haver um

impacto positivo entre moradores e natureza, conforme nos adverte Betânia Moraes

281 LIRA, op. cit. p.164. 282 JÚNIOR, Nelson Saule. Formas de proteção do direito à moradia e de combate aos despejos forçados no Brasil. In: FERNANDES, Edésio (Org.). Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil . Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p.101-126

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Alfonsin283, ao asseverar que: “A urbanização recebida pelo assentamento implica que a área

passe a ser servida por coleta de lixo, e esgotamento pluvial e cloacal, o que previne a

poluição ambiental do assentamento e de seu entorno, bem como a contaminação de solos,

córregos e lençóis freáticos”.

283 ALFONSIN, Betânia de Moraes. Políticas de Regularização Fundiária: justificação, impactos e sustentabilidade. In: FERNANDES, Edésio (Org.). Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil . Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p.247.

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6. O DIREITO DE SUPERFÍCIE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

6.1. Noções Gerais e Natureza Jurídica

6.1.1 Noções gerais

Conforme adverte o Professor Ricardo Lira284 o direito de superfície foi admitido no

ordenamento jurídico pátrio até o advento da Lei nº 1.237, de 24/09/1864, ao fazer

referência a esclarecimentos de Lafayette Rodrigues Pereira, no sentido de que antes da

promulgação da referida lei havia uma hipótese em que a casa podia ser hipotecada sem solo,

ou seja, quando a superfície do solo pertencia ao devedor, sendo que a superfície constituía

um direito real denominado ius superficiei e o superficiário podia hipotecá-lo.

Assim, de acordo com o citado autor, o direito de superfície teria deixado de existir

com a promulgação da referida norma legal e, apesar de ter constado do Projeto Clóvis

Beviláqua, o Código Civil de 1916 não a incluiu no rol do artigo 674, dentre os direitos

reais limitados. De maneira que para o Professor Ricardo Lira,285 ante a omissão legislativa, o

direito de superfície não existia no sistema civil revogado, sustentando o citado autor que a

doutrina posterior ao Código reafirmou a teoria do numerus clausus, significando que o

direito real somente pode existir havendo previsão legislativa, não havendo margem para

criação de outras espécies, a par das já existentes.

No Código Civil de 1916 não havia nenhum dispositivo cuidando do instituto da

superfície, conforme anotou-se em capítulos anteriores, uma vez que o primeiro diploma

jurídico civil, influenciado pelo Direito Romano, não tratou do instituto embora houvessem

vozes, como a do jurista Teixeira de Freitas, posicionando-se pelo tratamento do instituto

superficiário na lei civil.

Contudo, cumpre ressaltar que a aquisição da propriedade imobiliária no Código

Civil de 1916 se dava, entre outras formas, pela acessão, conforme preconizava o artigo

530, que a regulava no artigo 536, onde enumerava as formas de acessão existentes,

contemplando, dentre elas, a acessão pela construção de obras ou plantação, sendo a acessão

forma originária de aquisição da propriedade em que passava a pertencer ao proprietário do

solo tudo aquilo que a ele se unia, tais como sementes e construção.

Adotou-se então, por força do artigo 545 do referido diploma legal, dois princípios

que orientaram o direito de propriedade, quais sejam, acessorium sequitur principalis (o

284 LIRA, Ricardo Pereira, Elementos de Direito Urbanístico, p.86-96 285 Idem., Ibidem., op. cit., 88.

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bem acessório segue a sorte do principal) e o princípio solo cedit, por força do qual a

propriedade do solo abarca também a propriedade da superfície, sendo que por esses

princípios, a pessoa que construísse ou plantasse em solo alheio sem possuir título de

domínio, perdia o direito às construções ou plantações, não existindo prédio sem terreno e,

via de conseqüência, não contemplou-se o direito de superfície.

Para o revogado Código Civil, não havia a possibilidade da existência separada da

plantação ou construção, sendo que o proprietário do terreno sempre adquiria a propriedade

da construção ou da plantação a ela anexada.

Contudo, recentemente, o ordenamento jurídico pátrio passou a adotar o instituto da

superfície, primeiro através do Estatuto da Cidade, instituído pela Lei nº 10.257, de 10-7-

2001, nos artigos 21 a 24 e, posteriormente, com a edição do Novo Código Civil, por força

da Lei nº 10.406, de 10-01-2002, tendo o direito de superfície recebido tratamento nos artigos

1.369 a 1.377.

Por derradeiro, cumpre anotar que embora o revogado Código Civil de 1916

estabelecesse o numerus clausus de direitos reais, não havia impedimento a que leis

especiais criassem direitos reais de maneira a aumentar a relação disposta no referido

dispositivo, tanto que foi editado o Estatuto da Cidade tratando do instituto, ainda na

vigência do Código Civil de 1916.

Apesar da falta de previsão legislativa quanto ao instituto da superfície, quando ainda

em vigor o Código Civil de 1916, ecoavam vozes no sentido de que o ordenamento jurídico

civil pátrio admitia a dissociação da propriedade do solo em relação à obra construída, por

força de seus artigo 545,286 existindo, segundo tal entendimento, a possibilidade da

concessão de uso da superfície, conforme ponderações de Frederico Henrique Viegas de

Lima287, in verbis:

Os constantes problemas concernentes à moradia, a necessidade de uma utilização adequada do solo, a formação no Brasil de grandes cidades e a constante falta de espaço e locais para a construção têm aberto as portas para a criação de novos institutos jurídicos que de forma efetiva possam ser úteis à solução destes problemas. Desta forma, não se podia deixar de utilizar uma faculdade que concede o Código Civil de 1916 no artigo 545 para dissociar a propriedade do construído da propriedade do solo. Por isto, negar a existência jurídica da concessão de uso da superfície e do direito de superfície chamado urbanístico, simplesmente em virtude de uma antiga regra romanística de presunção, seria negar também a solução destes problemas.

286 Art. 545. Toda construção, ou plantação, existente em um terreno, se presume feita pelo proprietária e à sua custa, até que o contrário se prove. 287 LIMA, op.cit., p. 294.

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No presente capítulo cuidou-se do direito de superfície no Estatuto da Cidade e no

Novo Código Civil sob enfoque funcional, levando em conta o princípio constitucional da

função social da propriedade.

Também abordou-se a questão urbana, em conexão com o direito fundamental à

moradia, tratado no capítulo anterior, para concluir com uma abordagem voltada para a

questão da função social do instituto da superfície no âmbito do Estatuto da Cidade e do

Novo Código Civil.

Contudo, antes mesmo de abordar-se o direito de superfície sob os enfoques acima

propostos, cumpre tecer algumas digressões sobre os elementos do direito de superfície e

uma analogia com outros institutos semelhantes, como a propriedade horizontal, a enfiteuse,

o usufruto e a hipoteca.

Mas, antes de aprofundar-se no estudo dos elementos do direito superficiário

conforme propô-se acima, cumpre cuidar de sua natureza jurídica.

6.1.2. Natureza jurídica do direito de superfície

Em capítulos anteriores mencionamos que, concedido o direito de superfície, o

edifício construído ou a plantação realizada pertencem exclusivamente ao superficiário, sendo

certo que a propriedade do solo continua a pertencer ao dominus soli, posto que por força da

instituição do direito superficiário fica suspensa a incidência do efeito aquisitivo da acessão,

coexistindo dois direitos de propriedades de bases superpostas e separadas por um plano

horizontal, ou seja, o solo, conforme nos esclarece Josserand288, citado por José Guilherme

Braga Teixeira (1993).

Para José Guilherme289 o término do prazo do direito de superfície coincide com o

termo resolutivo da propriedade e, por isso mesmo, com o termo final da suspensão da

acessão, cujo efeito aquisitivo volve o incidir imediata e automaticamente, atribuindo ao

senhor do solo a propriedade da construção ou da plantação neste existente, em

conseqüência de que superfícies solo cedit, sendo que em algumas legislações existe a

previsão de uma indenização a ser paga ao concessionário ou superficiário.

Ao tratar da natureza jurídica de determinado instituto, cuidar-se-á de apontar em que

categoria se enquadra, ressaltando as teorias explicativas de sua existência.

288 JOSSERAND, L. Cours de Droit Civil Positif Français. 3 ed. Paris: Librairie du Recueil Sirey S.A, 1938. v.I. 289 TEIXEIRA, op.cit., p.60-61.

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Entrementes, os autores não se mostram concordes no que concerne à natureza do

direito de superfície, apresentando diversas teorias com que visam a explicá-la. 290

Conforme observações de Rima Goraib291, “determinar a natureza jurídica significa

dizer qual o lugar que um certo direito ocupa na ordem jurídica vigente.”

Para a citada autora, a classificação ou determinação da natureza jurídica do direito

de superfície é problemática, porque se trata de relação complexa e de um direito in fieri.

Contudo, com a inserção do instituto no Novo Código Civil, diminuem-se as

dificuldades apontadas pela citada autora, para determinar a natureza jurídica do instituto da

superfície.

Assim, sob o ponto de vista supramencionado, o direito de superfície passou por

várias transformações e adaptações ao longo dos tempos, tendo sofrido desde o feudalismo

até o presente momento, sobretudo a partir do Renascimento, em fins do século XIX, uma

evolução semelhante à ocorrida no Direito Romano, conforme esclarece GORAIEB.292

Desse modo, de direito pessoal que era, o direito de superfície passou a ser

considerado e tratado como posse, ou como um direito real sobre a coisa alheia a ser

protegido pelo interdito “de superficiebus” concedido pelo Pretor e, mais tarde, como um

verdadeiro direito real – ius in rem - amparado pelas ações reais próprias de um Dominus,

conforme esclarece De Los Mozos, citado por Rima Goraieb,293 in verbis:

Não chegaram porém os romanos à concepção de propriedade autônoma, embora como tal fosse tratada no direito bizantino.

Também no direito intermédio concebe-se, para explicá-lo, ainda uma teoria unitária, o artifício da propriedade dividida em domínio útil e domínio eminente ou direto. Mas essa teoria foi adotada como critério de transação entre as exigências da prática e o respeito à técnica romana, abandonada pelo direito moderno, permanecendo naqueles ordenamentos em que se conserva como um arcaísmo, uma mera sobrevivência do passado.

Referentemente à natureza jurídica do direito de superfície, Rima Goraiebfaz

menção a passagem da obra de COVIELLO294, nos seguintes termos:

O direito de superfície não é senão o direito de propriedade sobre a superfície. A tese do grande jurista resume-se assim: o direito de propriedade do solo abrange o subsolo e o sobresolo porque são dependentes e unidos materialmente. Assim como uma planta precisa ter suas raízes entranhadas no subsolo para dele retirar os meios

290 TEIXEIRA, op.cit., p.61. 291 GORAIEB, op.cit., p. 132. 292 Idem., Ibidem., op. cit., p. 133. 293 LOS MOZOS, José Luiz de. Derecho de Superfície em General y em Relacion com la Planificacion Urbana. Madri: Ministério de la Vivenda, 1974. 294 COVIELLO, Nicola. Della superfície in archivio giurídico. Vol XLIX. Bologna: Tipi Fava e Guaraguani, 1892, p.114.

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de sobrevivência, também necessita do espaço aéreo para se desenvolver, respirar, e receber luz e calor, o mesmo ocorre também com as construções.

Desta forma, os romanos ao conceberem o direito de propriedade do subsolo e do

espaço aéreo como essencial à idéia de propriedade fundiária, deram ensejo à rigidez do

princípio da acessão, não admitindo propriedades distintas de algum desses três elementos.

No tocante ao objeto, deve ser sempre um imóvel, podendo ser todas as coisas

imóveis aderentes ao solo de forma permanente, até mesmo construções ou plantações já

existentes, ou ter por objeto a aquisição do direito de construí-las. 295

Ainda no tocante à natureza jurídica do direito de superfície as teorias que a

concebem binariamente, vislumbram duas ordens de relacionamento, ou seja,

concessionário – bem superficiário e concessionário – dono do solo.

Segundo o Professor Ricardo Lira296 inexistem dúvidas maiores quanto ao primeiro

consubstanciar direito de propriedade. Segundo o citado autor, o debate cingiu-se em torno

da natureza jurídica do vínculo concessionário – dono do solo, tendo alguns doutrinadores

vislumbrado o caso de servidão oneris ferendi ou inominada, como RUGGIERO e

MESSINEO, sob o prisma do Código Civil Italiano.

Ainda segundo o Professor Ricardo Lira297 outros doutrinadores sustentaram

adquirir o superficiário a propriedade do solo, verificando-se um fenômeno de acessão em

sentido contrário ao normal, concepção que não recebeu guarida dos ordenamentos jurídicos,

tendo se cogitado, inclusive, de se explicar a relação entre solo e propriedade superficiária

como uma limitação legal, partindo-se da premissa de que o titular da superfície é proprietário

do espaço existente sobre o solo, criando-se situação análoga à das relações de vizinhança.

Contudo, para o citado autor, modernamente, a relação concessionário – dono do

solo é uma relação autônoma, consubstanciando um direito real de construir acima ou abaixo

do solo de outrem, ou de nele plantar, valendo a pena citar suas breves colocações sobre o

tema, in verbis:

A estrutura da relação superficiária é plástica. Tem a propriedade de partir de uma relação simples, evoluindo para uma relação complexa. Poderá, em modalidade possível, nascer complexa.

Procuraremos lançar algumas luzes sobre essas afirmações. Existem mecanicamente três momentos possíveis na relação superficiária:

a) o direito real de construir ou plantar em solo alheio;

295 GORAIEB, op.cit.,p.138. 296 LIRA, Elementos de Direito Urbanístico, p.55-56. 297 Idem., Ibidem.,p.55.

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b) a propriedade separada superficiária, efeito da concreção do direito real de construir ou plantar em solo alheio;

c) a propriedade separada superficiária, efeito da alienação que o dominus soli separadamente faz a outrem do solo, reservando-se a construção; ou efeito da alienação separada que o dominus soli faz a duas pessoas, transferindo a uma o solo, a outra a construção já existente.

Nesse último tipo se tem a propriedade separada superficiária gerada por cisão.

Para o professor Ricardo Lira298 a relação superficiária é plástica porque ela pode

sofrer mutações, alterando-se o conteúdo estrutural, registrando-se evolução do simples para

o composto, ou seja, pode nascer composto, assim ficando até perecer, mas pode nascer

simples, ficando simples até extinguir-se.

Cuida-se, no primeiro caso, do direito de superfície criado como direito de construir

ou plantar, de concessão ad aedificandum ou ad plantandum.

Exercido esse direito surge a propriedade separada superficiária, sem que se extinga

o direito de construir ou plantar, conduzido a um período de quiescência ou adormecimento,

enquanto existente a propriedade separada superficiária.

Assim, segundo o professor Ricardo Lira:299

Se a concessão é ad tempus e há o perecimento da coisa superficiária, o superficiário pode reconstruí-la, se ainda lhe resta prazo de concessão. Só não terá direito de reconstruir se o negócio jurídico superficiário dispõe em contrário. Ocorre, na hipótese considerada, que o momento da concessão ad aedificandum ou ad plantandum é sucedido no tempo pelo momento da propriedade separada superficiária, sem que, contudo, desapareça: fica quiescente. Fica impedindo a incidência do princípio da acessão. Fica evitando a expansão da propriedade do solo. Fica evitando que a titularidade do dominus soli se estenda à coisa superficiária. Normalmente o proprietário do solo adquiriria a “acessão”, se não existisse, no caso determinado, o direito de superfície obstaculizando essa aquisição. Vale salientar que uma expansão da propriedade do dominus soli acontecerá, abrangendo a coisa superficiária, no momento da expiração do termo previsto no negócio superficiário. Como decorrência do atributo da elasticidade do direito de propriedade – desaparecida a causa da limitação produzida ao direito do proprietário do solo pela interposição de um direito real de construir ou plantar em favor de outrem – o domínio do dominus soli ganha em plenitude, com a extinção do direito real de superfície. Incide normalmente o princípio superficies solo cedit, passando conseqüentemente ao proprietário do solo, de pleno direito, a propriedade da coisa superficiária. O domínio do titular do direito de superfície sobre a coisa superficiária é, em princípio, resolúvel, existindo enquanto exista o direito de superfície. Expirada a concessão, se desvanecem a propriedade superficiária e o direito de construir ou plantar. Pela operação normal do princípio superfícies solo cedit a titularidade do dominus soli projeta sua força absorvente sobre a coisa superficiária que da titularidade do superficiário passa à titularidade do proprietário do solo. No direito alemão a construção deixa de ser parte integrante essencial do direito de superfície para ser parte integrante essencial do solo.

298 LIRA, Elementos. op.cit., p.56. 299 Idem., Ibidem., p.56.

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Trata-se de um direito real autônomo de construir ou plantar em solo alheio, sendo

que a relação assim estabelecida, consistente no direito de construir ou plantar, pode continuar

simples, extinguindo-se simples, se o titular deixa exaurir o prazo da concessão, sem jamais

edificar ou plantar.300

O direito de manter a construção ou plantação em solo alheio existe como simples

manifestação da propriedade separada superficiária do titular do direito de superfície.301

Para o professor Ricardo Lira302 a concessão para construir ou plantar em solo alheio

é um direito real autônomo, temporário ou perpétuo, transmissível inter vivos ou causa

mortis, hipotecável; suscetível de decadência pelo não-exercício do direito de construir ou

plantar no prazo da concessão.

Trata-se, segundo o citado autor, de um direito subjetivo ao qual corresponde o dever

jurídico do dono do solo da abstenção da prática de qualquer ato ou fato incompatível com a

concessão conferida.303

É um direito real sobre coisa alheia, cujo exercício cria um direito de propriedade

separada embutido em outro direito de propriedade. A aquisição do direito real de construir

ou plantar é derivada, constitutiva.304

Ainda sobre a natureza jurídica do instituto da superfície, vale a pena destacar com o

Professor Ricardo Lira305 o seguinte:

A propriedade separada superficiária, gerada pela realização de construção ou plantação, bem como decorrente de cisão, é propriedade imobiliária, sujeita aos princípios reguladores desta, atendidas as peculiaridades da relação superficiária, como a existência da obrigação do pagamento de cânon (solarium) ou de uma certa importância paga de uma só vez, na conformidade do negócio jurídico superficiário, sendo certo que essa obrigação de pagamento só existe quando expressamente estipulada. Não se pode afirmar seja o solarium da natureza, e não da essência, do direito de superfície. Simplesmente porque deve entender-se que, no silêncio do título da concessão, não há obrigação de pagamento.

A propriedade separada superficiária é transferível inter vivos e causa mortis; hipotecável; não extingue pelo não-uso, já que o não-exercício é manifestação do poder dominical; é tutelada pelas ações possessórias e petitórias; consideradas as limitações eventuais do título, ainda pode ser considera plena.

Sua aquisição pelo exercício do direito de construir ou plantar, é aquisição originária, pois o direito de propriedade sobre a coisa superficiária nasce ex novo, não estando ligada por relação de causalidade ao título de nenhum proprietário precedente. Importa esclarecer um ponto que a doutrina corrente não aflora. É o

300 LIRA, Elementos, op.cit., p.59. 301 Idem., Ibidem., p. 59. 302 Idem., Ibidem., p.59. 303 Idem., Ibidem., p.59. 304 Idem., Ibidem., p.60. 305 Idem., ibidem., p.60-61.

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fato de que a propriedade separada superficiária pode vir a ser sacrificada pelo fato de a concessão para edificar ou plantar haver sido conferida a non domino. É preciso atentar que essa circunstância não é de molde a fazer com que se qualifique a aquisição da propriedade separada superficiária como derivada constitutiva. Ela é atingida, porque precedentemente o foi, de maneira direta, o direito real de construir ou plantar em solo alheio (esse adquirido derivadamente), base e fomento indeclinável de sua razão de ser.

[...]

Vale considerar, finalmente, que a renúncia do proprietário do solo ao direito de acessão não explica o direito de superfície senão de uma maneira unilateralizada. Em outras palavras, não explica o direito de superfície, enquanto direito real de construir ou plantar.

As premissas acima estabelecidas são suficientes para indicar, de maneira isenta de dúvidas, que o direito de superfície é um direito real autônomo.

Para finalizar as colocações acima expostas acerca da natureza jurídica da superfície,

pode-se afirmar que existem várias teorias sobre o tema que, segundo Marise Pessoa

Cavalcanti306 procura equipará-la a outros direitos reais limitados. Contudo, sob o ponto de

vista da citada autora, o direito de superfície tem matizes próprios e traços distintivos

evidentes de institutos, como o usufruto, a enfiteuse, o arrendamento, a servidão, numa

evidência de que o direito de superfície possui contornos próprios e definidos, diferenciando-

se sobremaneira de outros institutos afetos aos direitos reais.

Relativamente aos institutos afetos aos direitos reais e suas distinções com o instituto

da superfície, cumpre trazer à colação as ponderações de Marise Pessoa Cavalcanti, in verbis:

Comparando-se a superfície ao arrendamento, por exemplo, confronta-se o caráter real daquela com o obrigacional deste, tornando-se o superficiário proprietário da construção ou plantação pagando ou não uma renda ao dominus soli. No arrendamento, o pagamento de uma renda periódica é característica do instituto, sendo que o arrendatário jamais se tornará proprietário.

Do mesmo modo em relação à enfiteuse, instituto contemporâneo à superfície, há que ressaltar as diferenças evidentes. A remuneração na superfície é opcional, enquanto na enfiteuse é característica do instituto o pagamento do “foro” sob pena de comisso e, conseqüente, extinção da mesma. Ademais, não se confere ao foreiro a propriedade dos bens enfitêuticos, tendo ele, entretanto, o direito de resgate que não se observa na superfície. Pode-se dizer que a enfiteuse costuma ser utilizada para fins agrícolas e cultivo da terra, enquanto a superfície se presta a construções de edifícios.

Em relação ao usufruto há por sua vez evidente distinção. O usufruto é constituído intuitu personae, é intransmissível, sempre temporário, extingue-se com a morte do usufrutuário e, além disso, este é obrigado a respeitar a substância da coisa. Já a superfície é transmissível inter vivos e causa mortis, o superficiário é proprietário, mesmo que resolúvel, podendo alterar a substância da res. Além disso, existem ordenamentos que conferem caráter perpétuo à superfície.

No que se refere à servidão, a mais clara distinção é não ser esta alienável, diferentemente da superfície. Além do que, para que se constitua a servidão há necessidade de prédios distintos pertencentes a donos diversos.

306 CAVALCANTI, Maria Pessoa. Superfície Compulsória: instrumento de efetivação da função social da propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 12-20.

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Finalmente, considerando-se a concessão de direito real de uso, deve-se atentar para o fato de que nesta não há o abrandamento do princípio supeficies solo cedit, não se criando uma propriedade separada do solo como ocorre na superfície. Assim, ambos os institutos são direitos reais limitados, mas guardam suas peculiaridades.

Sob esse enfoque José Guilherme Braga Teixeira307 realizou relevante estudo,

apresentando diversas teorias objetivando comparar o instituto da superfície com outros

direitos reais limitados, especialmente com o arrendamento, a enfiteuse, o usufruto e a

servidão.

No tocante ao arrendamento, por consistir na cessão de uma coisa para uso de outra

pessoa, mediante o pagamento de um aluguel, grande semelhança apresenta com a superfície,

por se tratar de cessão de uma coisa – parte superior do solo - para uso e gozo de outra

pessoa, mediamente o pagamento de um aluguel, no passado denominado solarium. A

semelhança entre os dois institutos também reside no fato de que, assim como o superficiário

pode fazer construção ou plantação no solo de outrem, pode o arrendatário realizá-las no

imóvel a ele arrendado.

Contudo, a diferença entre os dois institutos reside no fato de ser a superfície um

instituto de caráter real por conferir ao superficiário a propriedade da construção ou plantação,

tendo o arrendamento caráter estritamente obrigacional, não podendo jamais conduzir o

arrendatário a tornar-se dono da coisa arrendada. Sem falar no pagamento de aluguel que é

requisito inerente ao arrendamento, sendo certo que o pagamento de uma renda periódica ao

senhor do solo não é essencial ao direito de superfície, como mostra o professor José

Guilherme.308

Quanto a superfície e enfiteuse, informa o citado autor que ambos os institutos

nasceram praticamente ao mesmo tempo e caminharam lado a lado pelo Direito Romano pós-

clássico e bizantino, sendo a primeira para fins de construção e a segunda para os de cultivo

da terra, prosseguindo juntas essa caminhada pelo Direito Intermédio, onde deram base à

doutrina da propriedade dividida e à criação da ignominiosa classe dos servos da gleba, pelo

que se tornaram malditas para os revolucionários franceses, os quais as extinguiram. 309

A diferença entre os dois institutos não foi observada com rigor, sendo que na Idade

Média admitia-se a incidência da superfície sobre plantações, sendo que ao enfiteuta era

permitido fazer construções no prédio enfitêutico.

307 TEIXEIRA, op.cit., p.61-74. 308 Idem., Ibidem., p.61-62. 309 Idem., Ibidem., p. 62.

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A codificação civil revogada, por não tratar do instituto da superfície, concebeu a

enfiteuse com finalidade extensiva à edificação, enquanto as modernas codificações

estrangeiras consagraram os dois institutos lado a lado. Contudo, os dois institutos não se

confundem, havendo grandes diferenças entre ambos, bastando perceber que, enquanto a

remuneração não é essencial na superfície, o é na enfiteuse, podendo a falta do pagamento

do foro conduzir o enfiteuta ao comisso e o aforamento à extinção, o que não se dá com a

superfície.

Ademais, a enfiteuse não confere a propriedade dos bens enfitêuticos ao foreiro,

enquanto a superfície outorga ao superficiário a propriedade separada do edifício e da

plantação, ainda que em caráter resolúvel.

Quanto ao usufruto, várias foram as tentativas de assimilá-lo à superfície, sob o

argumento de que com a instituição da superfície surgia para o superficiário direito de uso e

fruição do solo e da edificação (quando esta preexista no domínio do dominus soli) ou, se

inexistente a construção, um direito de uso e fruição do solo, com a finalidade concreta e

específica de nele o superficiário construir, cabendo o mesmo raciocínio quando se cuida de

superfície consistente em plantação, sendo que tal entendimento não se sustentou por muito

tempo, haja vista as evidentes distinções entre os dois institutos.

Grandes são as diferenças entre os dois institutos, ou seja: a) o usufruto é constituído

intuitu personae, o que não ocorre com a superfície; b) esta é transmissível entre vivos e por

causa de morte, sendo aquele intransmissível; c) o superficiário é proprietário (resolúvel,

embora), não o sendo o usufrutuário; d) o usufruto se extingue com a morte do usufrutuário,

enquanto a morte do superficiário não acarreta a extinção da superfície; e) o usufrutuário é

obrigado a respeitar a substância da coisa, o que não ocorre com o superficiário. Além do

mais, o usufruto é sempre temporário (mesmo quando vitalício), ao passo que a superfície não

o é sempre, havendo ordenamentos que lhe possibilitam a perpetuidade.310

Quanto à equiparação da superfície à servidão, sustentou-se essa idéia, havendo

argumentos no sentido de ser a superfície uma servidão especial no Código Civil suíço,

consubstanciada em seu artigo 675.

Porém, na Itália, houve vozes sustentando que na vigência do Código Civil de 1865,

a superfície tratava-se de uma servidão, sem uma maior precisão; e a que a qualificava como

310 TEIXEIRA, op. cit., p.64.

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uma servidão oneris ferendi, que obrigava o proprietário do solo a suportar a existência do

edifício alheiro, como Roberto de Ruggiero.311

Tal equiparação, contudo, não procede, uma vez que para a instituição de uma

servidão exige-se a existência de prédios distintos, de proprietários diversos, o que não ocorre

com a superfície posto constituir-se no mesmo prédio.

O que caracteriza o instituto da superfície é a suspensão, pelo prazo acordado, do

efeito aquisitivo da acessão para o dominus soli e a constituição de uma propriedade

superficiária.

Por esse motivo, pode-se dizer que a natureza jurídica do direito de superfície é de

direito real imobiliário, limitado e autônomo, consistente em manter, ou de fazer e manter

construção ou plantação em solo alheio, conferindo ao titular, denominado superficiário, a

propriedade resolúvel da construção ou plantação separada da propriedade do solo, podendo

ser direito complexo se a construção ou plantação não preexistirem no terreno, devendo ser

realizadas pelo superficiário.312

O direito de superfície como direito real que é, constitui-se por contrato registrado

no Registro de Imóveis, testamento ou sentença judicial, nada impedindo que se constitua,

também, por usucapião.313

Por sua vez, o contrato deve ter forma escrita, sendo negócio jurídico solene,

devendo a extensão e efeitos da superfície estar bem delineados, destacando-se os sujeitos da

relação superficiária, ou seja, proprietário do solo ou concedente e superficiário ou

concessionário, com seus respectivos direitos e obrigações.

O novo Código Civil de 2002 (Lei nº 10. 406/2002) se refere apenas ao direito de

superfície tendo por objeto construção ou plantação, não fazendo menção ao direito correlato

consistente em manter no local as plantações ou construções já existentes, como no Código

Civil português de 1948, art. 1.542, não havendo impedimento para que tal ocorra, por

desempenhar o instituto importante função social, não somente quem constrói e planta, mas

também quem mantém plantações ou construções já existentes no terreno de outrem. 314

311 DE RUGGIERO, Roberto, Instituições de Direito Civil, p. 456, apud TEIXEITA, José Guilherme Braga. Op. cit. p.65., 312 CAVALCANTI, op.cit., p. 14. 313 CAVALCANTI, op.cit., p. 15. 314 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direitos Reais. 3ª ed. atual. São Paulo: Atlas, 2003, p. 392.

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Marise Pessoa Cavalcanti315 ao exemplificar os casos de constituição de superfície

por sentença judicial, traz-nos o seguinte exemplo elucidativo:

Para que se configure a hipótese de sentença judicial como meio de constituição pode-se considerar as seguintes possibilidades, a título de exemplificação: o Ministério Público, mediante ação civil pública, requerer a superfície compulsória tendo em vista o não cumprimento da função social da propriedade por parte do proprietário; a Defensoria Pública, na defesa de réu turbador ou esbulhador, via pedido reconvencional.

Quanto à duração, pode a superfície ser temporária ou perpétua. Contudo, sendo

temporária, ocorrerá ao final do prazo acordado a reversão ou ingresso da coisa superficiária

para o patrimônio do dominus soli, ou seja, a construção ou plantação reverte para o

patrimônio do proprietário, com ou sem indenização quando já preexistente, ou incrementa

seu patrimônio se a superfície teve por objeto construir ou plantar. 316

No tocante à regularização das favelas, cumpre destacar que o direito de superfície

seria bastante útil, mas desde que fosse instituído com cláusula de opção de compra ao final

da concessão pelo superficiário ou concessionário ou por seus herdeiros, efetivando-se dessa

forma a função social da propriedade.

Cumpre destacar que o novo Código Civil ao disciplinar o instituto da superfície nos

artigos 1.369 a 1.377 não vislumbrou a hipótese de concessão do direito de superfície por

sentença judicial ou através da usucapião, podendo se inferir da leitura do artigo 1.369, tratar

de concessão do proprietário do imóvel.

Porém, cuidar-se-á do instituto da superfície no novo Código Civil e no Estatuto da

Cidade, oportunamente, em capítulo dedicado ao tema, ocasião em que a questão será objeto

de nova abordagem .

Por ora, cumpre destacar que o ideal é constituir-se superfície temporária, podendo

admitir-se a perpetuidade, para que as partes exerçam a mais ampla liberdade contratual e

tirem o máximo proveito da instituição, lembrando que para o caso de regularização fundiária

o ideal seria a inserção de cláusula de opção de compra ao fim do contrato.

De outro norte, a superfície compulsória sugerida por Marise Pessoa Cavalcanti em

sua obra várias vezes citada, pode acarretar o desvirtuamento do instituto, configurando-se a

desapropriação, instituto cujos contornos são bem diversos do da superfície e tratado por

315 CAVALCANTI, op.cit.,p.16. 316 Idem., Ibidem., p.18.

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ramo do direito diverso do direito privado, por inserir-se no campo do direito público,

mormente do direito administrativo.

No que se refere à extinção da superfície, pode-se afirmar que a primeira causa é a

caducidade, ou seja, o término do prazo acordado para a mesma que faz com que a

propriedade superficiária retorne ou ingresse no patrimônio do dominus soli, através da

reversão.

Além da reversão, admite-se a renúncia, a confusão, a resolução, o distrato, a

prescrição, a desapropriação e o perecimento do objeto, sendo certo que a desapropriação só

extinguirá a superfície se não for parcial, pois, em assim sendo, remanescerá o edifício ou

plantação, conforme esclarece Marise Pessoa Cavalcanti.317

Para a citada autora, o principal efeito da extinção da superfície é o restabelecimento

do efeito aquisitivo da acessão. Ocorrerá o fenômeno da reversão da construção ou plantação

preexistente à constituição da superfície, para o patrimônio do dominus soli.

Algumas legislações estrangeiras prevêem o pagamento de uma indenização do

dominus soli ao superficiário. No ordenamento jurídico pátrio a previsão consta do artigo

1.375318 ao preconizar que com extinção da concessão superficiária, o proprietário passará a

ter a propriedade plena sobre o terreno, construção ou plantação, independentemente de

indenização, se as partes não houverem estipulado o contrário.

Igual disposição consta do artigo 24 do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257, de 10 de

julho de 2001).319

Ademais, havendo extinção da concessão superficiária em conseqüência de

desapropriação, a indenização cabe ao proprietário e ao superficiário, no valor

correspondente ao direito real de cada um, nos termos artigo 1.376 do novo Código Civil.

Por fim, cumpre destacar que o professor Ricardo Lira320 enumera quatro hipóteses

de extinção da superfície, ou seja, pelo advento do termo, pelo descumprimento das

obrigações assumidas pelo superficiário, quando a resolução do direito for a conseqüência

prevista, pelo não exercício do direito de construir ou plantar dentro de prazo legalmente

317 CAVALCANTI, op.cit., p. 19-20. 318 Art. 1.375. Extinta a concessão, o proprietário passará a ter a propriedade plena sobre o terreno, construção ou plantação, independentemente de indenização, se as partes não houverem estipulado o contrário. 319 Art. 24. Extinto o direito de superfície, o proprietário recuperará o pleno domínio do terreno, bem como das acessões e benfeitorias introduzidas no imóvel, independentemente de indenização, se as partes não houverem estipulado o contrário no respectivo contrato. 320 LIRA, Elementos, op.cit.,p.79.

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assinado (não-uso) e pelo abandono, destacando o citado professor, ainda, outras hipóteses,

como a confusão dos titulares do domínio do solo e do direito de superfície, usucapio

libertatis, e pela expropriação do solo e da propriedade separada superficiária.

Porém o ordenamento pátrio, no artigo 1.374, prevê além do termo final da

concessão, a resolução se o superficiário der ao terreno destinação diversa daquela para a

qual foi concedida, norma que também consta do artigo 24 do Estatuto da Cidade.

6.2. Elementos do Direito de Superfície

No que concerne aos elementos constitutivos do direito de superfície, pode-se

afirmar que os sujeitos da relação jurídica superficiária são de um lado, o proprietário do solo,

na qualidade de concedente; de outro lado, na qualidade de concessionário, o superficiário.

Ao concessionário ou superficiário concede o proprietário do solo o direito de

construir ou plantar, fazendo sua a construção ou plantação que realizar, como propriedade

separada da propriedade do solo, que remanesce no domínio do proprietário do terreno, sendo

possível ao proprietário do solo, outrossim, transferir ao superficiário, como propriedade

separada do terreno sobre o qual estiverem realizadas, construção e plantações

preexistentes.321

Relativamente aos elementos do direito de superfície o Professor Ricardo Lira322

aponta a existência de elementos subjetivo e objetivo, sendo que quanto ao elemento subjetivo

da relação superficiária, o citado autor identificou as seguintes figuras: a) o concedente

(proprietário do solo, dominus soli) que outorga o direito de construir ou plantar, ou aliena a

construção ou o solo reservando-se o remanescente; b) o concessionário (superficiário,

proprietário da construção ou da plantação) a quem é conferido o direito de construir ou

plantar, ou a quem é transferida a propriedade do solo, da construção ou plantação nas

situações referidas.

Já no que se refere ao elemento objetivo, o citado doutrinador faz menção ao fato de

que o direito de superfície pode ser relativo à construção ou à plantação, denominando-se

superfície edilícia no primeiro caso e no segundo, vegetal, rústica ou agrícola, entendendo-se

por construção toda obra realizada na propriedade, podendo consistir num edifício, ponte,

321 TEIXEIRA, José Guilherme, op. cit., p. 75. 322 LIRA, Elementos, op. cit., p. 137.

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dique, muro, monumento, fonte, podendo a instituição da superfície constituir numa

pluralidade de construções.323

Dois sujeitos fazem parte do contrato superficiário, quais sejam, o concedente e o

superficiário, que deverão possuir capacidade para a prática de atos da vida civil, sendo certo

que o concedente terá ao mesmo tempo, que ser o proprietário do imóvel e ter capacidade

de disposição deste.

Pode ser objeto do direito de superfície tudo o que seja suscetível de acessão, pois a

propriedade superficiária pressupõe a suspensão (propriedade superficiária temporânea) ou

interrupção (propriedade superficiária perpétua) da eficácia do princípio superfícies solo

cedit.324

Realizado o direito de superfície, direitos e obrigações decorrem para as partes que

nele figuram, sendo certo que ao concedente, proprietário do solo, confere-se o direito de se

utilizar a parte do imóvel que não foi objeto de superfície, incluindo o subsolo e o espaço

aéreo, observadas as vedações e restrições constantes do contrato, podendo receber

remuneração periódica ajustada denominada solarium, se convolada a superfície

onerosamente.

Ao concedente ainda é permitido exercer o direito de preferência na aquisição da

superfície, quando o superficiário quiser aliená-la onerosamente, sendo-lhe permitido

promover a resolução da superfície antes do advento do termo, se o superficiário não edificar

ou plantar no prazo fixado, ou se edificar ou plantar em desacordo com o título negocial que

lha conferiu, ou ainda, se lhe der destinação diversa da prevista no título.325

Pode ainda o concedente constituir gravames reais sobre o solo, tornar-se dono do

edifício ou da plantação, indenizando, ou não, o superficiário, uma vez extinta a superfície,

pelo término da suspensão do efeito aquisitivo da acessão.

Por outro lado tem ele a obrigação de abster-se da prática de atos que dificultem ou

impeçam a realização da construção ou plantação ou ao exercício do direito de superfície,

devendo dar preferência ao superficiário, em igualdade de condições com qualquer terceiro, à

aquisição do solo quando esta se faça onerosamente. 326

323 LIRA, Elementos, op. cit., p.137. 324 LIRA. Elementos, op.cit., p.137. 325 TEIXEIRA, José Guilherme, op. cit., p.76. 326 TEIXEIRA, op.cit., p.76.

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Ao superficiário cabem os seguintes direitos: a) utilizar a superfície do solo alheio,

nos limites do negócio superficiário; b) usar, gozar e dispor da construção ou plantação

superficiária como coisa sua, separada da propriedade do solo; c) constituir gravames reais

sobre construção ou plantação, os quais se extinguirão no termo da superfície; d) exercer a

preferência na aquisição do solo, quando o proprietário deste aliená-lo onerosamente, e)

reconstruir a construção ou refazer a plantação, se houverem perecido, enquanto durar o

direito de superfície.327

Porém, deverá cumprir as seguintes obrigações: a) pagar a remuneração

convencionada, na forma ajustada, em caso de superfície onerosamente concedida; b) fazer a

construção ou plantação exatamente conforme o que for estabelecido no título constitutivo da

superfície; c) efetuar o pagamento dos encargos e tributos que, durante o prazo da superfície,

incidirem sobre a obra superficiária, como também sobre o solo; d) conservar a obra

superficiária e não demoli-la; e) dar preferência ao senhor do solo, em igualdade de

condições com terceiro, à aquisição da coisa superficiária. 328

Cumpre ressaltar que outras obrigações poderão vir preestabelecidas no título

constitutivo da superfície.

No que se refere ao objeto da superfície, pode-se afirmar que a superfície pode se

referir a construção ou plantação, sendo certo que alguns ordenamento jurídicos admitem a

realização de obras no subsolo e até mesmo a construção acima de edificação já existente.

Referentemente ao objeto da superfície o artigo 1.369, parágrafo único do Código

Civil veda a realização de obras no subsolo, salvo se for inerente ao objeto da concessão.

Contudo, disposição em sentido contrário consta do artigo 21 do Estatuto da Cidade (Lei nº

10.257/2001), uma vez que o parágrafo primeiro do referido dispositivo legal preconiza que o

direito de superfície abrange o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo relativo

ao terreno, na forma estabelecida no contrato respectivo, atendida a legislação urbanística.

6.3. O Direito de Superfície no Código Civil Brasileiro

Conforme exposto em outra oportunidade o direito de superfície não resulta de

tradição jurídica do ordenamento jurídico pátrio, posto não ter figurado no rol dos direitos

reais preconizados pelo Código Civil de 1916.

327 TEIXEIRA, op.cit., p. 76. 328 TEIXEIRA, op.cit., p.76.

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Em artigo sobre o tema o professor Orlando Gomes329 destacou que a restauração do

direito de superfície em moldes modernos foi sugerida no anteprojeto de Código Civil que ele

apresentou ao Ministério da Justiça em 31 de março de 1963, ao então Ministro João

Mangabeira, porém, a Comissão Revisora o rejeitara inteiramente.

Segundo o citado autor, nesse projeto, o instituto da superfície foi disciplinado pelo

por ele em oito artigos, concernentes a constituição da superfície, transferência, objeto,

concessão, reversão, tributos, preferência e taxa de transferência.

Sobre esse enfoque vale a pena citar passagem de escritos de José Rogério Cruz e

Tucci330, in verbis:

O direito de superfície, como se sabe, não resulta da tradição jurídica de nosso ordenamento jurídico como também não figurava nas legislações revogadas pelos atuais Códigos da Itália e de Portugal. No Brasil, aliás, foi abolido pela lei de 24 de setembro de 1864, que deixou de enumerá-lo entre os direitos reais.

É bem verdade que CLÓVIS BEVILÁQUA, provavelmente sentido a necessidade de ressuscitar o instituto estudado, inseriu-o no Projeto de Código Civil por ele revisto, no artigo 802: “Somente se consideram direitos reaes, além da propriedade: a) ...; b) a superfície;...”, sistematizando-o nos arts. 826 a 832 (“Art. 826. O proprietário de um imóvel pode conceder a terceiro, por título oneroso ou gratuito, o direito de plantar, edificar, ou assentar qualquer obra ou usar de qualquer modo da superfície do solo...”).

Quando de sua tramitação no Congresso Nacional, a matéria foi examinada por BENEDITO DE SOUZA, que, em seu parecer, assim se expressou: “A Comissão, desconhecendo qualquer utilidade na restauração deste instituto, há muitos anos abolido entre nós, é de parecer que seja eliminado do projecto” (Código Civil brasileiro, trabalhos relativos à sua elaboração, Rio de Janeiro, Impr. Nacional, 1918, p.904).

E, desse modo, acolhida tal proposição, o nosso Código Civil foi promulgado deixando de contemplar o instituto da superfície.

Cumpre ressaltar que antes mesmo da entrada em vigor do Novo Código Civil, por

força da Lei nº 10.406, de janeiro de 2002, que acabou por contemplar o instituto da

superfície dentre o rol de seus direitos reais, com o advento do Estatuto da Cidade, por obra

da Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, o referido diploma legal cuidou do instituto da

superfície, que foi definido em seu artigo 21 como sendo o instituto através do qual o

proprietário urbano poderá conceder a outrem o direito de usufruir da superfície do imóvel,

por tempo determinado ou indeterminado, mediante escritura pública registrada no Cartório

329 GOMES, Orlando. O Direito de Superfície. Revista Trimestral, nº 119. out-dez.1972. 330 CRUZ E TUCCI, José Rogério. A Superfície no Novo Código Civil. Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, nº 22, março-abril de 2003, p.99.

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de Registro de Imóveis, abrangendo o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo

relativo ao terreno, na forma estabelecida no contrato, atendida a legislação urbanística.331

No que se refere ao tratamento do instituto da superfície no Estatuto da Cidade, será

objeto de enfoque mais à frente, lembrando que o referido diploma legal tem por objetivo o

disciplinamento físico–territorial urbano, com vistas a organizar o parcelamento e a ocupação

físico-territorial urbana, estabelecendo padrões urbanísticos para a implantação de

loteamentos.

Por ora, cuidar-se-á do direito de superfície no Código Civil vigente, analisando seus

elementos, características, vicissitudes e finalidade.

Com a entrada em vigor do Novo Código Civil houve significativas alterações na

estrutura das regras que tratam das relações privadas, em consonância com as transformações

sociais ocorridas nas últimas décadas, conforme informa Cruz e Tucci,332 fazendo menção a

Miguel Reale, afirmou que:

Quanto aos direitos reais, em especial, estabeleceu-se “um espírito de maior comunhão no sentido da propriedade. Se esse espírito tivesse existido, o Estado não teria motivo para interferir. Quer dizer, é uma espécie de previsão: que a sociedade civil o faça antes que o Estado se lembre de fazê-lo pela força” (MIGUEL REALE, O Estado de São Paulo, 26.11.1983, e em publicação do Ministério da Justiça, 1984, p.XXVII).

Ora, seguindo essas diretrizes básicas é de supor-se que EBERT CHAMOUN, emérito romanista, a quem coube a revisão da matéria pertinente ao direito das coisas, fora buscar nas fontes da experiência jurídica romana a idéia de inserir na nova legislação o modelo legal da superfície, a fim de que se desse maior mobilização ao direito de propriedade.

O instituto da superfície, com redação um pouco diferente da do Projeto, passou a

ser disciplinado pelo Novo Código Civil, nos artigos 1.369 a 1.377.333

331 MUKAI, op.cit., p. 15. 332 333 Art. 1.369. O proprietário pode conceder a outrem o direito de construir ou de plantar em seu terreno, por tempo determinado, mediante escritura pública devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis. Parágrafo único. O direito de superfície não autoriza obra no subsolo, salvo se for inerente ao objeto da concessão. Art. 1.370. A concessão da superfície será gratuita ou onerosa; se onerosa, estipularão as partes se o pagamento será feito de uma só vez, ou parceladamente. Art. 1.371. O superficiário responderá pelos encargos e tributos que incidirem sobre o imóvel. Art. 1.372. O direito de superfície pode transferir-se a terceiros e, por morte do superficiário, aos seus herdeiros. Parágrafo único. Não poderá ser estipulado pelo concedente, a nenhum título, qualquer pagamento pela transferência. Art. 1.373. Em caso de alienação do imóvel ou do direito de superfície, o superficiário ou o proprietário tem direito de preferência, em igualdade de condições. Art. 1.374. Antes do termo final, resolver-se-á a concessão se o superficiário der ao terreno destinação diversa daquela para que foi concedida. Art. 1.375. extinta a concessão, o proprietário passará a ter a propriedade plena sobre o terreno, construção ou plantação, independentemente de indenização, se as partes não houverem estipulado o contrário.

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Ao analisar o instituto no Novo Código Civil, verificou-se poder a superfície recair

sobre construções e plantações, conforme se infere do artigo 1.369 e quanto aos requisitos de

formalidade, verifica-se dever a superfície ser instituída mediante escritura pública

devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis.

Outra inovação digna de nota refere-se aos encargos e tributos incidentes sobre o

imóvel que ficaram a cargo do superficiário, por força do artigo 1.371 do novo Código Civil.

Por outro lado, a superfície pode ser transferida a outrem, sendo vedado ao

concedente estipular qualquer pagamento pela transferência, conforme pode-se verificar do

artigo 1.372, parágrafo único. Ao proprietário é dado alienar o imóvel, e o superficiário

poderá ceder e transferir o seu direito de superfície, respeitando o direito de preferência de

cada um, nos termos do artigo 1.373 e, conseqüentemente, em caso de alienação ou cessão,

cumpre observar que a superfície, como direito real, vincula o imóvel gravado,

acompanhando-o sempre, sendo que com a ocorrência do termo final, o proprietário passará a

ter a propriedade plena sobre o imóvel, construção ou plantação, independentemente de

indenização, nos termos do que preconiza o artigo 1.375 da nova codificação civil.

Quanto ao inadimplemento, por parte do superficiário, das obrigações decorrentes da

instituição da superfície, mormente o não pagamento do solarium, ou o desvio de finalidade

quanto ao uso da superfície, seja com finalidade de construção ou plantação, enseja a rescisão

do contrato, podendo o proprietário pleitear perdas e danos, conforme pontifica José

Rogério Cruz e Tucci,334 em seu artigo versando sobre o instituto da superfície no Novo

Código Civil.

Cumpre acrescentar que apesar da nova roupagem que foi conferida ao instituto

da superfície no novo diploma civil, o instituto guarda relação de semelhança com os

princípios tradicionais que contornam o instituto em outras legislações modernas, em

especial, a portuguesa, guardando íntima relação com o instituto superficiário previsto no

Estatuto da Cidade, apesar de sua maior amplitude neste diploma legal, posto ter previsto

maior abrangência da superfície, fomentando a utilização do solo, do subsolo ou do espaço

aéreo do terreno, conforme estabelecido no artigo 21, § 1º do Estatuto da Cidade (Lei nº

10.257, de 10-7-2001).

Art. 1.376. No caso de extinção do direito de superfície em conseqüência de desapropriação, a indenização cabe ao proprietário e ao superficiário, no valor correspondente ao direito real de cada um. Art. 1.377. O direito de superfície, constituído por pessoa jurídica de direito público interno, rege-se por este Código, no que for diversamente disciplinado em lei especial.” 334 CRUZ E TUCCI, op. cit., p.7.

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Por fim, o instituto da superfície cuida-se de uma concessão que o proprietário faz

a outrem (o superficiário), para que utilize sua propriedade, tanto para construir como para

plantar, tendo o Código Civil de 2002 se referido apenas ao direito de o superficiário

construir ou plantar, não cuidando de direito correlato e previsto no código civil português,

consistente em manter no local as plantações ou construções já existentes, sendo

perfeitamente possível tal atividade em razão de não haver restrição em nosso ordenamento

jurídico.

O instituto da superfície desempenhará importante função social não só quanto a

utilização do imóvel por quem constrói ou planta, mas também por quem mantém

plantações ou construções já existentes no terreno, como no caso de um prédio inacabado que

o superficiário se propõe a terminar ou no caso de plantações abandonadas cuja continuação é

de todo interessante ao superficiário.

Dada a escassez de moradia nos grandes aglomerados urbanos, o direito de superfície

se bem empregado, servirá para diminuir os conflitos sociais oriundos da má distribuição do

espaço urbano, principalmente para os ocupantes de residências em favelas e o grande

número de “sem-terras” e “sem-tetos”, desde que no contrato de superfície seja inserida

cláusula de opção de compra ao termo da instituição, podendo haver a regularização da

situação daqueles que ocupam lotes nos denominados condomínios irregulares, numa

tentativa de conter a proliferação desordenada de condomínios irregulares nos grandes

centros urbanos em prejuízo da qualidade de vida e em total afronta à dignidade da pessoa

humana, um dos princípios fundamentais de nosso Estado Democrático de Direito, inscrito

no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988 e que se irradiou para todo o

ordenamento jurídico, inclusive para o direito civil.

No campo do direito de propriedade, preservar o princípio da dignidade humana

significa conciliar o exercício do direito de propriedade com princípios maiores, garantindo-

se moradia digna, dotada de um mínimo de infra-estrutura e salubridade, evitando expor a

população de baixa renda a situações de humilhação e desrespeito a seus direitos

fundamentais, em prol de um capitalismo selvagem que se mantém à custa do alto preço pago

por aqueles que dão sua força de trabalho sem nada recebem, a não ser um mísero salário que

mal dá para suas necessidades básicas.

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6.4. O Direito de Superfície no Novo Código Civil e a sua Função Social

Traçadas as premissas acerca do direito de superfície, cumpre tratar de sua

aplicação prática, no que se refere ao exercício do direito de propriedade, com ênfase ao

princípio da função social da propriedade, posto considerar de suma importância o

tratamento do princípio da função social da propriedade como elemento condicionante da

efetivação do instituído da superfície.

A análise do instituto da superfície exige uma multiplicidade de enfoques e um

deles é o seu tratamento sob o prisma da função social da propriedade, com vistas a

demarcar os seus contornos e seu âmbito de abrangência, levando em conta que o tratamento

do princípio da função social da propriedade não é tarefa fácil, notadamente no caso do

Brasil, onde no ordenamento jurídico civil o tratamento dado ao direito de propriedade esteve

sempre marcado por influências individualistas e exclusivista do século que marcaram as

primeiras codificações.

Múltiplos são os sentidos da idéia de função social, valendo a pena mencionar alguns

comentários de Eros Roberto Grau,335 abaixo transcritos:

A análise do instituto da propriedade, no Direito de nosso tempo, reclama uma multiplicidade de enfoques e critérios específicos. Ainda quando tomemos como objeto de pesquisa o princípio da função social, na tentativa de demarcação dos contornos de sua concepção e do seu raio de abrangência, ainda assim nos colocaremos, sempre, diante dum leque de aspectos a serem explorados, a reclamar a enunciação de um deles como o primordial, em razão do qual se pretenda desenvolver a análise ensaiada.

[...]

A observação da evolução da propriedade – que de plena in re potestas de Justiniano, da propriedade como expressão do direito natural vai desembocar, modernamente, na idéia de propriedade-função social – apresenta momentos e matizes realmente encantadores, bastantes para desviar o estudioso da senda que tencione explorar. Tal evolução consubstancia, como afirmou André Piettre, a revanche da Grécia sobre Roma, da filosófica sobre o direito: a concepção romana, que justifica a propriedade por sua origem ( família, dote, estabilidade dos patrimônios), sucumbe diante da concepção aristotélica, finalista, que a justifica por seu fim, seus serviços, sua função.

Sob tais premissas, cuidou-se no presente tópico da análise detida de alguns aspectos

da função social da propriedade para depois verificar-se a possibilidade do instituto da

superfície desempenhar esse papel, principalmente no que toca ao tratamento da propriedade

urbana.

335 GRAU, Eros Roberto. Direito Urbano: regiões metropolitanas, solo criado, zoneamento e controle ambiental, projeto de Lei de Desenvolvimento Urbano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982, p.62-71.

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Para o jurista Eros Roberto Grau336 a palavra “propriedade” pode ser vista sob vários

aspectos, constituindo um conjunto de várias instituições distintas, relacionadas a diversas

espécies de bens, estando o princípio da função social da propriedade devidamente

instrumentado no plano normativo, o que não pode ser dito acerca da propriedade urbana,

cujas unidades se encontram inseridas em um conjunto mais amplo, ou seja, a cidade, sendo

injustificável essa carência de instrumentação posto que o fenômeno da urbanização está

relacionado aos mecanismos de desenvolvimento econômico.

Segundo o citado autor, deve-se proceder com cautela ao afirmar que o instituto da

propriedade deixou de ser entendida e vista como um direito subjetivo dos indivíduos, uma

vez que a propriedade não consubstancia mais um direito subjetivo justificado exclusivamente

pela sua origem, mas que remanesce exclusivamente a medida que atentemos a que seu

fundamento é inseparável da consideração do seu uso. Daí a fórmula segundo a qual não

pode a propriedade ser usada de modo contrário à utilidade social. Preservando-se o direito

do proprietário somente enquanto o seu uso contrário ao interesse social não ocorrer.337

Assim, o direito de propriedade hoje deve ser visto como um direito-função,

notadamente com vistas a preservar interesses alheios e, para tanto, devem ser analisados os

diversos sentidos da palavra propriedade, com vistas a garantir a efetivação de seus efeitos,

numa tentativa de superar a aparente contradição existente entre um direito-poder e um

direito-função imbricados na concepção moderna de propriedade, conforme nos elucida

Jacques Távora Alfonsin,338 verbis:

As “referências” de tais sentidos, porém, como adiante poder-se-á verificar, são bem diferentes. Espera-se contribuir, talvez, com todo o esforço hermenêutico que se tem desenvolvido no País, para garantir o princípio constitucional da função social das cidades e do direito de propriedade urbana os efeitos político-jurídicos que dele esperam todas as vítimas do histórico desrespeito com que o mesmo princípio tem sido tratado.

É que, do ponto de vista da eficácia de tais efeitos, a partir da forma de distribuição do espaço urbano como ela se dá hoje, aqui no Brasil, confrontada com o nosso ordenamento jurídico, particularmente aquele expresso na Constituição Federal, no Estatuto da Cidade e no novo Código Civil, correm o risco de não serem alcançados, na hipótese de a interpretação de tudo quanto está implicado em tais funções ficar reduzida ao puro raciocínio que, diante da expressão mesma função social, ignora o conteúdo axiológico do “social” da função e da “função” do social.

[...]

336 GRAU, op.cit.,p. 64. 337 Idem., Ibidem., op. cit., p.65. 338 ALFONSIN, Jacques Távora. A função Social da Cidade e da Propriedade Privada Urbana como Propriedades de Funções. In: ALFOSIN, Betânia e FERNANDES, Edésio (Org.). Direito à Moradia e Segurança da Posse no Estatuto da Cidade. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004, p. 41-79.

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Assim, a palavra “propriedade” vai ser usada aqui com um duplo sentido: primeiro, o de direito real, cuja referência não ignore a capacidade que esse direito tem de violar direitos alheios; segundo, um sentido de adequação (coisa apropriada para um determinado fim) de uma função capaz de, senão impedir de todo, pelo menos inibir ao máximo aquela violação.

Por ora, destaca-se que o direito de propriedade sofreu profundas alterações ao

longo dos diferentes paradigmas de sociedade e de Estado, pelos quais passou a humanidade

e uma dessas grandes modificações consistiu na inserção no pensamento jurídico da idéia de

propriedade ligada à função, de maneira que a propriedade privada vem recebendo contornos

diferentes com vistas a viabilizar o exercício do direito de propriedade de forma a atender

interesses públicos, transformando-se numa propriedade orientada socialmente.

A Constituição Federal de 1988, a seu turno, trouxe diversas inovações no tratamento

do direito de propriedade, sendo uma delas a inserção em seu texto do princípio da função

social da propriedade que representa o ponto culminante de todas as evoluções pelas quais

passou o conceito de propriedade.

Segundo Liana Portilho Mattos339, para atender a sua função social, a propriedade

deverá andar junto com os interesses coletivos, não podendo sobrepor-se a eles. Para ela a

função social é um princípio que condiciona e afeta a propriedade privada em sua estrutura,

sendo condicionante do próprio direito de propriedade.

Pode-se conceituar a função social, de maneira simplificada, como sendo a

submissão do direito de propriedade, essencialmente excludente e absoluto pela natureza que

se lhe conferiu modernamente, a um interesse coletivo.

Dentre os vários institutos jurídicos criados para viabilizar a concretização da função

social da propriedade merece destaque o instituto da superfície, instituído primeiramente no

Estatuto da Cidade, como um princípio vetor do direito urbanístico brasileiro e,

posteriormente, ressurge no novo Código Civil, consistente numa concessão que o

proprietário faz a outrem para construir ou plantar em seu imóvel, podendo ser gratuita ou

onerosa.

Por ser a superfície um direito real de ter uma construção ou plantação em solo

alheiro, o referido instituto pode ser de grande valia na questão da regularização fundiária

de áreas ocupadas por “sem-terras” e “sem-tetos”, um vez que o proprietário do solo

utilizado continua sendo proprietário, mas apenas concede o direito de superfície, sendo o

339 MATTOS, Nova Ordem Jurídico-Urbanística: função social da propriedade na prática dos tribunais. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006. p. 37.

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titular desse direito, proprietário da construção ou plantação sobre ele levantada, podendo ser

instituída cláusula de opção de compra em favor do superficiário, ao término do prazo de

concessão, tendo em vista que a norma codificada já lhe garante a preferência na compra,

conforme se infere do artigo 1.373.

Conclui-se com Marise Pessoa Cavalcanti340 que o direito de superfície possui

natureza jurídica de direito real, tendo sido elencado no novo Código Civil dentre os direitos

reais, sendo que a função social da propriedade, constitucionalmente exigida integra a sua

estrutura, apresentando-se o direito de superfície como instrumento útil, passível de

colaborar para que se atinja esse estágio de utilização do solo urbano e rural através da

superfície edilícia ou agrícola, respectivamente, diminuindo-se as mazelas sociais decorrentes

da má distribuição do espaço urbano.

A integração do princípio da função social no conceito de propriedade (ou nos

conceitos de propriedade) importa em que se coloque sob contestação, por tímida e

incompleta, a fórmula segundo a qual apenas não pode a propriedade ser usada de modo

contrário à utilidade social, conforme adverte Eros Roberto Grau.341

6.5. O Direito de Superfície no Estatuto da Cidade

O direito de superfície é tratado no Estatuto da Cidade, instituído por força da Lei nº

10.257, de 10-7-2001, Capítulo II que cuida dos instrumentos da política urbana, nos artigos

21 a 24.

Tal instituto jurídico veio regulamentar as disposições do artigo 182 da Constituição

Federal de 1988, dispondo sobre as diretrizes de desenvolvimento urbano no Capítulo I,

estabelecendo normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade

urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do

equilíbrio ambiental, devendo-se ressaltar que embora o referido diploma legal tenha sido

denominado oficialmente Estatuto da Cidade, suas diretrizes e normas não se destinam

apenas ao direito urbanístico, mas também ao direito ambiental, sendo que em seu artigo 2º

estão traçadas as diretrizes da política urbana que terão de ser observadas pelos Estados e

Municípios, com vistas a ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e

garantir o bem-estar de seus habitantes, conforme preconizado pelo artigo 182 da Constituição

Federal de 1988.

340 CAVALCANTI, op.cit., p. 84 e ss. 341 GRAU, op.cit., p.65.

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Dentre os vários objetivos a serem buscados com o referido estatuto vale a pena

mencionar alguns deles apontados por Toshio Mukai:342

Destacamos dentre esses objetivos: gestão democrática por meio da participação popular e de associações representativas; cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização; planejamento do desenvolvimento das cidades; ordenação e controle do uso do solo, visando evitar: a) a utilização inadequada dos imóveis urbanos; b) a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes; c) o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivo ou inadequado em relação à infra-estrutura; d) a instalação de empreendimentos ou atividades que possam funcionar como pólos geradores de tráfego, sem a previsão da infra-estrutura correspondente; e) a retenção especulativa do imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não-utilização; f) a deterioração das áreas urbanizadas; g) a poluição e a degradação ambiental; a integração e complementaridade entre as atividades urbanas e rurais; justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização; adequação dos instrumentos de política econômica, tributária e financeira e dos gastos públicos aos objetivos do desenvolvimento urbano, de modo a privilegiar os investimentos geradores de bem-estar geral e a fruição dos bens pelos diferentes seguimentos sociais, contribuição de melhoria; proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico; audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população; simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias, com vistas a permitir a redução de custos e o aumento da oferta dos lotes e unidades habitacionais; isonomia de condições para os agentes públicos e privados na promoção de empreendimentos e atividades relativos ao processo de urbanização, atendido o interesse social.

Percebe-se que várias são as diretrizes gerais importantes para a efetivação da

política urbana, de observação obrigatória pelo Municípios que deverão incluí-las em seus

planos diretores e nas leis de uso e ocupação do solo, bem como nas de parcelamento do solo

urbano, conforme sugere Toshio Mukai343 .

Dos instrumentos da política urbana previstos no referido Estatuto, vale destacar o

do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, por exigência do § 4º do art. 182 da

Constituição Federal de 1988, objetivando a forçar o proprietário o promover o adequado

aproveitamento do solo, além do IPTU progressivo no tempo, da desapropriação com

pagamento em títulos, da usucapião especial de imóvel urbano previsto no artigo 183 da

norma fundamental, da concessão de uso especial para fins de moradia, do direito de

superfície, do direito de preempção, da outorga onerosa do direito de construir, das

operações urbanas consorciadas, da transferência do direito de construir e do estudo do

impacto de vizinhança, sendo certo que no presente estudo deu-se importância ao direito de

superfície posto constituir em objeto principal da pesquisa.

342 MUKAI, op.cit., p. 5-7. 343 Idem., Ibidem., p.6.

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Antes mesmo de abordar o direito de superfície na perspectiva do Estatuto da

Cidade, vale a pena mencionar com Rogério Gesta Leal344 sobre o plano diretor enquanto

elemento jurídico-político ordenador da ocupação da propriedade urbana e da cidade o

seguinte:

Os precursores do denominado e moderno direito urbanístico no Brasil defendem que qualquer estudo que busque enfrentar a normatização e ordenação da ocupação do espaço urbano tem de levar em conta vários aspectos, como o político, o social, o econômico e o jurídico. Tal normatização tem de alcançar não só o uso da propriedade urbana e urbanizável, de seus equipamentos e de suas atividades, mas de qualquer área, elemento ou atividade em zona rural que interfira no agrupamento urbano enquanto ambiente natural do homem em sociedade.

Conforme adverte o professor Ricardo Pereira Lira 345 “o Direito Urbanístico,

quando bem considerado e devidamente aplicado, pode trazer soluções aos inúmeros e graves

problemas decorrentes da má distribuição do espaço urbano, por ser um conjunto de normas

destinadas a dispor sobre a ordenação da Cidade, sobre a ocupação do espaço urbano de

maneira justa e regular, procurando as condições melhores de edificação, habitação, trabalho,

circulação e lazer, organizando os espaços habitáveis, de modo a propiciar melhores

condições de vida ao homem na comunidade.

Cuidar-se-á de abordar o instituto da superfície como instrumento jurídico do

direito urbanístico do Estatuto da Cidade, tomando por suporte teórico as anotações do

professor Ricardo Lira346, in verbis:

A forma mais direta de definir o direito de superfície será a partir do fenômeno da acessão, que tem suas raízes no direito romano.

Por força do princípio da acessão, tudo aquilo que acede permanentemente ao solo passa a ser da propriedade do dono do solo, por mais valioso que seja o incremento.

Existindo em determinado ordenamento o direito de superfície, duas pessoas podem convencionar entre si que a primeira (concessionário) possa construir sobre o terreno de propriedade da segunda (concedente), de tal forma que a edificação seja do domínio daquela e o lote permaneça no domínio desta. Os sistemas poderão estabelecer que a pactuação seja perpétua ou provisória. No caso da superfície perpétua, haverá uma interrupção dos efeitos da acessão. No caso da superfície temporária, haverá uma suspensão dos efeitos da acessão. Com o direito de superfície – e esse é um sonho acalentado pelos arquitetos – é possível separar negocialmente o direito de construir do direito de propriedade do solo, pois quem constrói é o concessionário, e não o dono do lote (concedente). Concretizada a concessão de edificar, identificam-se duas propriedades: a propriedade do terreno, que continua sendo do concedente; a propriedade da construção (propriedade superficiária), de que é titular o concessionário

344 LEAL, Rogério Gesta. A Função Social da Propriedade e da Cidade no Brasil: aspectos jurídicos e políticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p.131. 345 LIRA, Direito Urbanístico, Estatuto da Cidade e Regularização Fundiária. Revista de Direito da Cidade, Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, v.1. n.1, p.149-164, maio 2006. 345 Idem., Ibidem., p.156. 346 Idem., Ibidem,. p.154-155.

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superficiário. O instrumento é valioso, por isso que amplia o leque de possibilidades de utilização da propriedade imóvel, com as galas de um direito real.

Para o professor Ricardo Lira 347 o instituto da superfície da forma como prevista

pelo Estatuto da Cidade resolveria o problema da utilização do solo, no caso de o

proprietário do imóvel não dispuser de recursos financeiros para implementar uma

construção, obtendo-se resultado urbanístico pela concessão do direito de superfície do

terreno a um terceiro, que se interesse pela construção naquele local, permanecendo com a

propriedade da edificação durante o prazo assinado no contrato superficiário, findo o qual a

propriedade construída retornaria ao patrimônio do concedente, com ou sem indenização,

dependendo de estipulação em contrato escrito.

Cumpre ressaltar que nosso Código Civil não previu a instituição da superfície no

subsolo, salvo se inerente ao objeto da concessão.

Contudo, no Estatuto da Cidade o direito de superfície abrange a utilização do solo,

subsolo ou do espaço aéreo relativo ao terreno, na forma prevista no contrato, desde que

atendida a legislação urbanística, conforme se infere do artigo 21, § 1º, do Estatuto.

6.6. O Direito de Superfície como Instrumento de Regularização Fundiária das

Favelas e Populações Carentes

Com a inserção do direito à moradia no rol dos direitos fundamentais sociais insertos

no artigo 6º da Constituição Federal de 1988, o direito à moradia se insere dentre as

preocupações da pesquisa, posto cuidar-se de um dos aspectos da ordenação do espaço

urbano, com vistas à efetivação da função social da propriedade e da cidade.

O direito à moradia, funda-se no direito à vida e dignidade da pessoa, razão pela qual

deve ser considerado como prioridade dentre as políticas públicas a serem implementadas

pelo Estado.

Sob esse enfoque, valendo-se das palavras do professor Ricardo Lira, quanto ao

processo de ordenação do espaço urbano, especial atenção é de ser dirigida a uma política de

regularização fundiária destinada à titulação das áreas de assentamento das favelas,

mocambos, palafitas e loteamentos irregulares em articulação com política de urbanização e

saneamento das áreas irregularmente ocupadas.

Em outra oportunidade da pesquisa enfocou-se o problema da favelização, o

crescimento desordenado dos centros urbanos provocado pelo êxodo rural, causando

347 LIRA, Direito Urbanístico..., op.cit., p.155.

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conseqüências graves na qualidade de vida das pessoas, sem contar o prejuízo ao meio

ambiente que se vê deteriorado em razão do avanço das favela sobre áreas verdes, conforme

notícia veiculada no O Globo348, em que uma auditoria do Tribunal de Contas do Município

do Rio de Janeiro, comprovou que comunidades avançam rapidamente sobre áreas de

preservação.

Na auditoria descobriu-se que 17 favelas, entre elas Vila Parque da Cidade (Gávea),

Babilônia (Leme), Formiga (Tijuca) e Floresta da Barra (Itanhangá) ocupam áreas de

preservação ambiental no Rio de Janeiro.

O professor Ricardo Lira349 em seu artigo publicado na Revista de Direito da

Cidade teceu severas críticas ao movimento de remoção das favelas, por considerá-la medida

extrema, somente admissível quando haja perigo de vida para os próprios moradores, sendo

que para o citado autor, diante de situações já consolidadas, nem os imperativos ambientais

mais fortes devem prevalecer, devendo as remoções serem feitas com critérios e em caráter

excepcional, para locais próximos ao inicialmente ocupado.

O direito à moradia é direito humano fundamental, erigido em norma constitucional

por força do artigo 6º da Constituição Federal de 1988, motivo pelo qual as autoridades

responsáveis pelo problema da regularização fundiária devem implementar a regularização

dos assentamentos ocorridos em bens públicos, utilizando-se de igual prática quanto a

regularização de tais ocupações em bens particulares, com mapeamento fundiário do país,

conforme pontifica o professor Ricardo Lira.350

No mais, a par das dificuldades que o problema apresenta, o instituto da superfície

tanto a prevista no novo Código Civil quanto a estipulada no Estatuto da Cidade daria conta,

se bem utilizado pelo poder público, de enfrentar a questão dos assentamentos irregulares,

principalmente se fomentada pelo Estado, com a inserção de cláusula de opção de compra

pelo superficiário ao final do prazo de concessão, conforme já ressaltado alhures.

Desta forma, o Município deve, com base nas diretrizes gerais estabelecidas pela

União e pela Lei Orgânica, de acordo com sua realidade específica, ordenar o pleno

desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.351

348 SCHMIDT, Selam. A prefeitura não pode agir. O Globo. Rio de Janeiro, p. 19, 02 out. 2005. 349 LIRA, Direito urbanístico, estatuto da cidade, p.161. 350 Idem., Ibidem., p. 161-162 351 LEAL, op. cit,, p. 135.

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7. CONCLUSÃO

Com a presente pesquisa objetivou-se compreender o instituto da superfície

preconizado pela Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001 que instituiu o Estatuto da Cidade e

pelo Novo Código Civil, nos artigos 1.369 a 1.377.

Analisou-se o fenômeno do crescimento dos centros urbanos e verificou-se que os

aglomerados urbanos, em certos aspectos, foi provocado pelo êxodo rural decorrente da saída

das pessoas da zona rural para as grandes cidades em busca de melhores condições de vida.

Em razão do alto custo dos imóveis nos grandes centros e baixo poder aquisitivo da

população mais pobre, estas tendem a se assentarem nas periferias das cidades daí

formando-se as favelas, mocambos, cortiços, etc em que as pessoas vivem em péssimas

condições, em residências insalubres, sem água encanada e rede de esgotos e sem a presença

efetiva de órgãos do Estado.

Em razão desses fatores, constatou-se ao longo da pesquisa que as cidades vão

crescendo de forma desordenada em prejuízo da qualidade de vida.

Sugeriu-se que o direito de superfície seja utilizado como instrumento eficiente na

solução de problemas relacionados com a ocupação desordenada do espaço, mas ele não é o

único instrumento cabível, posto que o Estatuto da Cidade disciplina outros instrumentos

para resolver o problema e reordenar o espaço habitável.

Contudo, a pesquisa cingiu-se ao direito de superfície, posto tratar de um instituto

novo no ordenamento jurídico, em razão do Código Civil de 1916 não ter cuidado da

superfície dentre o rol dos direitos reais.

Por esse motivo, procurou-se abordar o instituto da superfície traçando seu perfil

histórico, momento no qual optou-se por estudar, primeiramente, o direito de propriedade e

suas transformações ao longo dos séculos, passando de uma propriedade coletiva para a

individualização caracterizada pelos direitos elementares do jus utendi, jus fruendi e jus

abutendi.

Percebeu-se que através da evolução do direito de propriedade e, conseqüentemente,

com o advento das servidões, os romanos passaram a admitir a existência de direito sobre

coisa alheia, denominados iura in re aliena.

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Abordou-se vários aspectos relacionados ao direito de propriedade e percebeu-se

que a propriedade sofreu grandes modificações uma vez que seu caráter exclusivista foi

sendo atenuado.

No Brasil, o direito de propriedade teve caráter absoluto, exclusivo e perpétuo, a teor

do que preconiza o artigo 524 do Código Civil de 1916 e que foi reproduzido no artigo

1.228, caput, do Código Civil vigente, mas o seu exercício deve ser orientado por finalidades

econômicas e sociais, objetivando a preservação ambiental e o patrimônio histórico e

artístico, sendo defesos atos que não tragam ao proprietário qualquer comodidade, ou

utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.

Contudo, o direito de propriedade recebeu roupagem nova, em razão da adoção do

princípio da função social da propriedade. Prosseguiu-se com o estudo do direito de

propriedade no Brasil onde abordou-se o regime de Sesmarias adotado no período colonial

por força da Lei Sesmarial de D. Fernando I, de 1375, caracterizada pela obrigatoriedade do

cultivo das terras como condição de posse da terra e seu conseqüente resgate, caso não fosse

cultivada por seu proprietário.

Constatou-se que em Portugal a Lei das Sesmarias teve como objetivo principal

solucionar o problema da crise de alimentos, mediante a imposição do dever de lavrar a terra.

Verificou-se que a característica comum às sesmarias fernandinas, afonsinas,

manuelinas e filipinas é o fato da existência de uma propriedade não-absoluta, calcada no

cultivo da terra, existindo então uma forma de propriedade condicionada, fundamento com o

qual o sistema de Sesmarias passou a vigorar no Brasil colonial, apesar de ter entrado em

decadência em Portugal.

Por outro lado, a passagem de uma economia calcada na mão-de-obra escrava, a

uma economia baseada na mão-de-obra livre faz com que o sistema de propriedade assuma

um valor econômico fundamental, tendo ocorrido a suspensão das concessões das sesmarias

em 1822, iniciando-se o regime das posses e que prevaleceu até 1850, consistente no mero

apossamento de terrenos para exploração agrícola e pecuária.

Com a Lei de Terras de 1850, ocorreu a passagem do patrimônio fundiário da Coroa

às mãos dos particulares, numa tentativa de disciplinar as questões agrárias de então,

ocasionadas pelas doações de Sesmarias que não foram cultivadas, demarcadas ou mesmo

registradas.

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A Lei de Terras proibia os apossamentos, regulamentava e delimitava as terras

devolutas, estabelecendo-se, com isso, as bases da propriedade privada no Brasil.

Percebeu-se que a Lei de Terras procurou conferir estatuto jurídico à propriedade

privada, adaptando-a à nova realidade econômico-social ocorrida com introdução de relações

capitalistas de produção que se deu na América latina, por volta da metade do século XIX,

ocorrida no caso do Brasil com a expansão da economia cafeeira e com as pressões vindas da

Europa para o fim do tráfico de escravos e implementação de mão-de-obra assalariada.

Outro marco fundamental no sistema de propriedade brasileira ocorreu com a

instituição da denominada Lei Hipotecária de 1864 que contribuiu para o processo de

absolutização do direito de propriedade, disciplinando a hipoteca que foi largamente

utilizada como instrumento de mobilização do patrimônio fundiário, instituiu o registro de

imóveis base da propriedade e oponibilidade erga omnes dos direitos reais, que serviu de base

à criação do instituto da transcrição como modo de aquisição da propriedade imobiliária que

se incorporou ao Código Civil de 1916.

Por outro lado comprovou-se que a propriedade da terra no Brasil esteve associada a

problemas cruciais, como o da escravidão e o da imigração ocorrendo a ocupação do solo

urbano.

Constatou-se ter havido no Brasil colônia, praticamente, três grandes regimes de

propriedade das terras, sendo o das Sesmarias entre 1500 e 1822, em que as doações eram

feitas pelos capitães ou governadores; o da posse, desde 1822, ocasião em que foram

suspensas as doações de sesmarias por decreto de 17 de julho, até setembro de 1850, com o

surgimento da Lei nº 601 (Lei de Terras) e, posteriormente, o regime surgido com o advento

da Lei nº 317, de 1843, e com o Código Civil de 1916 que introduziram grandes mudanças

no sistema de propriedade com a adoção do princípio da transferência pela transcrição.

No tocante ao instituto da superfície verificou-se ser ele fruto de evolução no direito

romano que de início estabelecia o princípio superfícies solo cedit (D.41, 1,7,10) que

estabelecia a aquisição do domínio da construção ou plantação a favor do proprietário do

solo, sem indenização.

O direito de superfície surge com as primeiras concessões a possuidores de

edificação em solo alheio das ações para proteger seus interesses com o interdictum de

superficiebus e a actio de superfície, resultando o direito de superfície da inalienabilidade do

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solo público e de seu arrendamento, no qual o pagamento do solarium foi seu traço

característico.

Os romanos entendiam que tudo que estava sobre o solo a ele se incorporava, por

força do princípio superfícies solo cedit, por força do qual a construção ou plantação feita

em solo de outrem acedia à propriedade do proprietário do solo, não conhecendo os

romanos, de início, a propriedade da construção separada da propriedade do solo. Porém,

com o passar do tempo, na época clássica o princípio é amenizado com a utilização de um

contrato denominado locatio conductio ou emptio venditio celebrado entre o dominus e o

superficiário, assegurando a este último o direito de construir e de gozar, perpétua ou

temporariamente, da edificação realizada, tendo o instituto da superfície ganhado

importância no período pré-clássico.

O direito de superfície desenvolve-se no direito romano, levando em consideração a

existência do princípio da acessão que esteve em vigor em todos os períodos do direito

romano, chegando até a época clássica quando então começou a ser atenuado.

No Direito Intermédio o instituto da superfície se desenvolveu, passando a ser

constituída também sobre plantações, tendo sido admitida a existência de propriedade da

construção e da plantação separada da propriedade do solo.

No âmbito do direito moderno o Código Civil germânico foi uma das primeiras

codificações a regulamentar expressamente o direito de superfície, que foi utilizado como

instrumento para reforma imobiliária da época, uma vez que os terrenos públicos, em vez de

serem alienados, tornavam-se objeto de superfície viabilizando a locação social, por meio de

utilidade pública, ou a construção da casa própria para as classes trabalhadoras e média,

coibindo-se a especulação imobiliária, tornando-se o Poder Público beneficiário da mais-

valia, podendo influenciar na maneira de construir.

O instituto foi regulado nos direitos italiano, francês, inglês, espanhol, chinês, russo e

argentino.

No tocante ao tratamento do direito de superfície no Brasil constatou-se que o

instituto superficiário vigeu no Brasil durante o período de colonização portuguesa uma vez

que o instituto era disciplinado em Portugal por força da Lei Pombalina de 1773, em relação

a construções, árvores e plantações, tendo o Código Civil Português de 1867 disciplinado o

instituto em seu artigo 2.038.

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Contudo o instituto acabou sendo banido do ordenamento jurídico pátrio em 1864,

por força da Lei nº 1.257, de 24 de setembro.

No processo de elaboração da primeira codificação civil o instituto voltou a ser

objeto de atenção dos juristas nacionais, mas idéia de inclusão do instituto da superfície no

ordenamento jurídico acabou não prevalecendo, em razão de termos adotado a teoria do

numerus clausus dos direitos reais no Código Civil de 1916.

Com o movimento de reforma do Código Civil à questão atinente a inclusão do

instituto da superfície no rol dos direitos reais e voltou a ser objeto de discussão através do

Anteprojeto do Professor Orlando Gomes, que inseriu o instituto da superfície no referido

anteprojeto apresentado ao Ministro da Justiça em 31 de março de 1963 e que se transformou

em Projeto revisto pelos juristas Caio Mário da Silva Pereira, Orosimbo Nonato e o próprio

Orlando Gomes. O instituto acabou não fazendo parte do rol dos direitos reais constante do

artigo 499 do Projeto, que não teve seguimento junto ao Congresso Nacional.

Reiniciados os trabalhos de reforma da codificação civil, formou-se nova comissão

incumbida dos trabalhos de reforma e, o Anteprojeto inicial referente ao direito das coisas,

elaborado pelo Professor Ebert Vianna Chamoun, não contemplou o direito de superfície

dentre os direitos reais, sendo certo que a comissão o previu no artigo 1.418, inciso III,

dentre os direitos reais, provocando críticas de vários juristas pátrios, como Caio Mário da

Silva Pereira e Afrânio de Carvalho, tendo a idéia da introdução do instituto da superfície

sido bem aceita por seguimento da doutrina pátria, sendo o instituto admitido no anteprojeto

de 1973.

Na redação final do Projeto de lei 634-B, de 1975 o instituto da superfície foi

incluído dentre os direitos reais em sua redação final.

Porém, vale destacar, a guisa de comentário, que antes da entrada em vigor do Novo

Código Civil, o instituto da superfície foi disciplinado no Estatuto da Cidade, instituído pela

Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2002, nos artigos 21 a 24, tendo o instituto da superfície

sido definido no artigo 21 do referido Estatuto, como sendo o direito segundo o qual o

proprietário urbano poderá conceder a outrem o direito de usufruir da superfície do imóvel,

por tempo determinado, mediante escritura pública registrada no Cartório de Registro de

Imóveis, direito que abrange o de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo relativo ao

terreno, na forma estabelecida no contrato, de acordo com a legislação urbanística.

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O instituto da superfície foi amplamente tratado no Novo Código Civil, nos artigos

1.369 a 1.377, apesar de seu disciplinamento também no Estatuto da Cidade.

Em seguida tratou-se do princípio da função social da propriedade e sua importância

para compreensão do sentido atual da idéia de propriedade.

Verificou-se que a Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional nº 01 de 1969,

inseriram em seus textos o princípio da função social da propriedade, mas foi com o advento

da Constituição Federal de 1988 que o instituto ganhou importância, juntamente com o

princípio da dignidade da pessoa humana, o primeiro inserido no artigo 5º, inciso XXIII e o

segundo passou a constar do artigo 1º, inciso III.

Pelo princípio da função social da propriedade compreendeu-se que a propriedade

deve atender a interesses coletivos, não sendo admissível o direito de propriedade como

direito absoluto nos moldes em que foi concebida no passado.

Concluiu-se que o direito de superfície seria um instituto jurídico capaz de

possibilitar a solução de conflitos oriundos da ocupação irregular do solo urbano,

minimizando-se com o seu uso a denominada segregação urbana ocasionada pelo

inchamento das grandes cidade, forçando as populações de baixo poder aquisitivo a se

concentrarem nas periferias dessas cidades em prejuízo da qualidade de vida.

O sentido social do direito de propriedade trazido com a Constituição Federal de

1988 e recepcionado pelo novo Código Civil e pelo Estatuto da Cidade proporcionará uma

visão crítica acerca do exercício do direito de propriedade, contrastado com seu sentido

individualista, que prevaleceu no período de vigência do Código Civil de 1916, pautado no

caráter exclusivista do direito de propriedade.

Verificamos, de início, que o direito de propriedade, sobre o prisma de sua função

social, está sujeito a várias restrições, todas calcadas no interesse público e no próprio

interesse privado, sendo perceptível que o seu traço nitidamente individualista,

essencialmente excludente de que se revestia no passado, cedeu lugar a concepção diversa, de

conteúdo socializante, possibilitando-se a efetivação do exercício do direito à terra, como

instrumento de concreção da justiça social no campo e na cidade.

Cumpre consignar que a Igreja Católica exerceu grande influência na doutrina da

função social, através do que denominou-se doutrina social da Igreja, a partir de Santo

Tomás de Aquino que concebeu a propriedade como um dos direitos naturais do homem,

consubstanciada na idéia de que todo homem tem direito de possuir os bens de que necessita

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para sua sobrevivência e realização de seus ideais de vida, uma vez que a propriedade é

vista como um bem que contém em si uma preocupação com o bem-estar comum, de modo a

conduzir o seu uso na busca efetiva da justiça social.

Sob essa concepção o direito de propriedade é visto como um direito natural em que

o homem supre suas necessidades básicas de alimentação e moradia, por meio da produção,

atendendo-se a função primeira do direito de propriedade, consistente na efetivação da

sobrevivência da humanidade, adaptando-se aos interesses de toda comunidade.

Percebe-se nos pronunciamentos da Igreja, através das encíclicas papais, o

reconhecimento da função social na propriedade privada, cujo fundamento é o destino

comum dos bens que devem servir à inclusão social por intermédio do trabalho e

distribuição de riquezas através do uso justo da terra, sem que com isso houvesse a

transformação da propriedade em patrimônio coletivo, mas seu objetivo consiste apenas em

subordinar a propriedade privada aos interesses da sociedade, base da teoria da função social.

No caso do Brasil, o direito de propriedade está disciplinado por normas

constitucionais, que a reconhecem como direito fundamental em seu artigo 5º, caput, que

estabelecem sua garantia e a condicionam à sua função social, permitindo-se a

desapropriação para efetivação de tais comandos, conforme se infere dos artigos 5º, XXII, e

XXIV, além das normas ordinárias constantes do Código Civil, nos artigos 1.196 a 1.510 e

leis especiais, como por exemplo, o Estatuto da Cidade, tendo a idéia de propriedade perdido

seu alcance tradicional, devendo ser vista e tratada sobre duplo aspecto, ou seja, o estrutural

e o funcional, representando a função social da propriedade o ponto de convergência de

todas as gradativas evoluções pelas quais passou o direito de propriedade ns últimas

décadas.

No capítulo seguinte abordou-se a questão da função social da cidade e da

propriedade urbana, onde voltou-se à temática da função social da propriedade.

Percebeu-se que o tema da função social da propriedade não é novo no mundo

jurídico, remontando à doutrina Cristã da Idade Média, onde a utilização da propriedade

visava atingir o bem comum da coletividade, calcada na idéia de que a propriedade só teria

sentido se utilizada com o objetivo de realização da justiça divina.

A idéia da função social se desenvolve com o liberalismo do século XIX e, após

grandes transformações ocorridas na sociedade, principalmente após o primeiro pós-guerra,

com o crescimento das desigualdades sociais e com a intervenção do Estado no domínio

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econômico, a propriedade passa a ser vista como tendo uma função primordial, consistente

na distribuição de rendas, surgindo para o titular do direito de propriedade o dever de

respeitar o contingente de não proprietários, passando o proprietário a não desfrutar de

posição de supremacia em razão de sua titularidade, uma vez que o direito de propriedade

passou a ser questionado sob o prisma de sua função social.

Quanto ao tratamento do direito de propriedade no ordenamento jurídico brasileiro,

notadamente na Constituição Federal de 1988, o direito de propriedade e sua função social

estão disciplinados nos incisos XXII e XXIII, do artigo 5º, tendo a nova ordem constitucional

incluído a propriedade privada dentre os fundamentos da ordem econômica no artigo 170, II

e III, para em seguida, nos artigos 182 e 184 cuidar da propriedade urbana e rural em

capítulo dedicado ao tratamento da política agrícola, fundiária e de reforma agrária.

Constatou-se que a Constituição Federal criou diversos estatutos para tratar da

propriedade, levando em conta sua localização, se rural ou urbana, sua potencialidade

produtiva e não produtiva e a titularidade da apropriação, se por nacionais ou estrangeiros.

Por outro lado, observou-se que o direito urbanístico brasileiro ganhou lugar de

destaque com o advento da Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, objetivando resolver os

problemas decorrentes do parcelamento do solo urbano e das mazelas provocadas pelo

crescimento desordenado das cidades e o surgimento dos aglomerados periféricos em que

grande parte da população, notadamente a de baixa renda, vive em condições precárias, em

moradias sem infra-estrutura, até sem esgoto e água encanada.

Notou-se que essas questões têm relação com fatores de ordem econômica e social,

sem que as pessoas de baixo poder aquisitivo, não podendo adquirir imóveis nos grandes

centros dado o seu elevado custo por estarem localizados em áreas nobres, acabam se

alojando nas periferias dessas cidades, formando as favelas, cortiços etc, surgindo o

problema da violência associada à precariedade das condições de vida dessas pessoas.

Para solucionar ou amenizar esses problemas percebeu-se que seria necessária uma

tomada de posição do governo com vistas a implementar políticas públicas de criação de

moradias, podendo as questões do parcelamento do solo urbano e da escassez de moradia

serem solucionados através da utilização, em larga escala, do instituto da superfície,

associado à criação de programas de construção de moradias baratas e a melhorias das

condições habitacionais e de saneamento básico, objetivando o combate às causas da

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pobreza e dos fatores de marginalização, com vistas à promoção social dos setores

desfavorecidos.

Verificou-se que o Estatuto da Cidade, instituído pela Lei nº 10.257, de 10-07-2001,

criou diversos mecanismos para implantação da política urbana, conforme previsão

constitucional, através da servidão administrativa, limitações administrativas, tombamento de

imóveis ou de mobiliário urbano, instituição de unidades de conservação, de zonas de

interesse social, dentre outros, além do direito de superfície.

Tais instrumentos jurídicos visam resolver o problema da falta de moradia e de suas

conseqüências, podendo ser utilizado o direito de superfície com essa finalidade,

possibilitando-se ao superficiário a compra do imóvel ao final do contrato, fazendo com que

a propriedade seja utilizada de forma justa, exercendo sua função social.

Por outro lado, a edificação e o parcelamento compulsórios, criados por força dos

artigos 5º e seguintes do Estatuto da Cidade terão eficácia na solução dos problemas

relacionados à especulação imobiliária, compelindo o proprietário a providenciar a edificação

do imóvel em prazo preestabelecido em lei, com a possibilidade de imposição de sanções

consistentes no aumento do IPTU e no parcelamento compulsório, sem contar o direito de

preferência conferido ao município sobre determinadas áreas.

Anotou-se que o direito à moradia foi erigido em direito fundamental inserido na

artigo 6º da Constituição Federal de 1988, tendo sido reconhecido como princípio

constitucional relacionado ao princípio da dignidade da pessoa humana, objetivando a

proteção da pessoa contra as necessidades de ordem material, garantindo-se-lhe uma

existência digna, em razão da gravidade dos problemas relacionados à escassez de moradia,

associados ao aumento da violência nas periferias das grandes cidades.

Assim, o direito de superfície, se bem utilizado, poderia viabilizar a efetivação do

direito à moradia, principalmente porque a falta de moradia está relacionada ao problema da

má distribuição do espaço habitável, uma vez que a ocupação do espaço urbano caracteriza-

se pelo déficit habitacional, além da deficiência dos serviços públicos, como os de transporte,

de saúde, ocorrendo também a deterioração do meio ambiente.

Os conflitos ocorrentes nos grandes centros urbanos são derivados da desigualdade

social que se agrava com a concentração de renda nas mãos de poucos, com o fenômeno do

êxodo rural .

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Notou-se que a urbanização e a concentração de pessoas nas cidades não foi

acompanhada da adoção de políticas públicas urbanas que viabilizassem o crescimento das

cidades de forma racionalizada, tendo ocorrido o crescimento desordenando de suas

periferias, uma vez que a urbanização se deu com o êxodo rural desacompanhada da

necessária oferta de unidades habitacionais à população que afluía às cidades.

Ao abordar o tema da função social da propriedade verificou-se que o

desenvolvimento da propriedade passou por vários estágios, sendo que, inicialmente, esteve

vinculada à produção de subsistência, com atividades eminentemente agrícolas, em períodos

primitivos da história, onde verificou-se que o instituto da propriedade esteve relacionado a

fatores de mercado, bem assim ao sistema capitalista, sendo que o desenvolvimento da

civilização esteve relacionado à divisão de trabalho, sistema de trocas e à produção mercantil

que atingindo seu pleno desenvolvimento viabilizou grandes transformações sociais,

surgindo com a divisão de trabalho a propriedade individual, instalando-se a oposição entre a

cidade e o campo.

A propriedade individual surge na Roma antiga, apesar de seu sistema de

propriedade estar calcado na organização das famílias, fundadas no culto do lar e aos mortos,

com organização autocrática, havendo duas formas de propriedade coletiva, ou seja, a da

cidade (gens) e a da família, prevalecendo a idéia da propriedade coletiva.

Na República em Roma, desaparece a idéia de propriedade coletiva, sobrevindo a

familiar, em razão da presença do pater famílias, sobrevindo a propriedade individual em

Roma, primeiramente sobre os objetos produzidos para o uso do indivíduo que eram objeto

de troca entre outros indivíduos, decorrendo daí a propriedade dos meios de produção.

Novo conceito de propriedade surge na Idade Média, em contraste com o

exclusivismo dos romanos, surgindo a distinção do domínio direto da propriedade, que

pertencia ao senhor feudal e o domínio útil do vassalo.

O Mercantilismo e a Revolução Comercial impulsionam o modelo feudal de

sociedade e da idéia de propriedade, implantando-se a propriedade produtiva, responsável

pelo desenvolvimento econômico da Idade Moderna.

Por outro lado, a Revolução Francesa foi responsável por novo tratamento conferido

ao instituto da propriedade, com importância conferida à propriedade imobiliária que mereceu

tratamento no Código Napoleão de 1804, passando a garantir a seu titular ampla liberdade,

surgindo com os estudos de Duguit, de maneira mais intensa, uma nova idéia de propriedade,

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qual seja, a da propriedade tendo uma função social, sendo certo que com a Revolução

Francesa a propriedade passou a figurar dentre os direitos fundamentais, juntamente com a

vida e a liberdade, por força do artigo 17 da Declaração dos Direitos do Homem e do

Cidadão.

Analisando a questão da formação urbana no Brasil, verificou-se que a Constituição

de 1988 trouxe em seu bojo um capítulo dedicado à política urbana e que contém um

conjunto de princípios, responsabilidades e obrigações do Poder Público e de instrumentos

jurídicos e urbanísticos a serem aplicados na solução de diversos problemas, tais como o da

degradação ambiental e das desigualdades sociais nas grandes cidades, por ser a cidade

considerada de grande importância para o desenvolvimento humano.

Além da proteção à propriedade privada, inserida no artigo 5º, XXII, da Constituição

Federal de 1988 e do tratamento da função social no inciso XXIII, do mesmo dispositivo

constitucional, encontrou-se na norma fundamental outros dispositivos cuidando da proteção

à pequena propriedade rural, conforme se infere do artigo 5º, inciso XXV, que se tornou

insuscetível de penhora por débitos decorrentes da atividade produtiva e de reforma agrária,

nos termos do artigo 185, da referida Constituição, desde que trabalhada pela família do

proprietário .

No caso do Brasil, destacou-se que a função social da propriedade na Constituição

Federal de 1988, consta dos artigos 182, §§ 2º e 4º e 186, onde o princípio da função social

tem caráter impositivo, devendo a propriedade cumprir sua função social, segundo o plano

diretor municipal.

No tocante à importância da regularização fundiária, principalmente das áreas

constantes das periferias dos grandes centros urbanos, com vistas a solucionar os problemas

decorrentes da má distribuição do espaço habitável, destacou-se a importância da função

social do instituto da superfície, lembrando que a superfície engloba o direito de construir ou

plantar em terreno alheio, através de contrato entre concedente e concessionário e a

estipulação do pagamento de um solarium ao proprietário do terreno utilizado dessa forma

pelo superficiário.

O instituto veio disciplinado, como instrumento de regularização fundiária, no

Estatuto da Cidade, por força da Lei nº 10.257, de 10-07-2001, para viabilizar a regularização

do uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e sobretudo do meio

ambiente, garantindo-se aos cidadãos direito a cidades sustentáveis, com a participação

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popular e cooperação dos organismos governamentais e não-governamentais e até da

iniciativa privada.

Verificamos que o direito à moradia foi também erigido em norma fundamental,

conforme se infere do artigo 6º da Constituição Federal de 1988, modificado pela Emenda

Constitucional n. 26, de 14/02/2000, que cuida dos direitos sociais, apesar de vivermos uma

crise de habitação no país, com imensa multidão de “sem-terra”, “sem-teto” e outros, tanto

vivendo em casas sem a mínima condição de habitabilidade, nas favelas e palafitas por esse

imenso país.

Tal situação é fator agravante dos problemas de marginalização e da violência tão

comum nas periferias dos grandes centros urbanos, dominados pelo poder paralelo do crime

organizado, bem assim da violência no campo, cujo fator é a disputa pela posse da terra, em

razão de uma reforma agrária prometida e nunca realizada na sua inteireza.

Esses problemas são solucionáveis, a longo prazo, por meio da implantação de

políticas públicas de construção de moradia e melhoria das condições das moradias

existentes, num país em que a crise de habitação está relacionada, dentre outros fatores, com

o baixo poder aquisitivo das pessoas e também pela especulação imobiliária, bem assim pela

timidez com o governo trata dessas questões no plano prático.

Anotou-se que o direito a moradia foi erigido à categoria de direitos humanos, a

partir da década de 90, propiciando o surgimento de uma base legal sólida para

implementação de futuras ações rumo à melhoria das condições de vida e de moradia da

população pobre.

O direito a moradia digna também foi reconhecido na Declaração Universal dos

Direitos Humanos de 1948, em seu artigo XXV, item 1, além da garantia da propriedade

individual ou coletiva, sendo o direito a moradia também reconhecido como direito humanos

em declarações e tratados internacionais, como a Convenção Internacional sobre a eliminação

de todas a s formas de discriminação racial de 1965, dentre outros.

No caso do Brasil, além da Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Cidade e o

novo Código Civil trouxeram profundas inovações nas questões relacionadas ao direito de

propriedade, urbanismo e direito a moradia digna, tendo sido instituídos diversos instrumentos

de controle do crescimento das cidades e ordenamento do solo, sendo o direito de superfície

um desses instrumentos.

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Notou-se que o instituto da superfície, se bem utilizado, com inserção de cláusula de

opção de compra do imóvel ao término do prazo de concessão da área objeto do direito de

superfície seria instrumento hábil à implantação da função social da propriedade, evitando-se

a especulação imobiliária, viabilizando a erradicação da pobreza, eliminação da

marginalidade e das desigualdades sociais e regionais, voltando-se a atenção governamental

para a efetivação de tais medidas.

Finalmente, cuidou-se do direito de superfície no ordenamento jurídico pátrio, onde

no sexto capítulo, tratamos das noções gerais, bem assim da natureza jurídica do instituto,

onde destacou-se a importância do instituto na questão da implementação da função social da

propriedade, além de uma abordagem em seus elementos.

Tratou-se do instituto da superfície no novo Código Civil que foi disciplinado nos

artigos 1.369 a 1.377 e no Estatuto da Cidade, onde é previsto nos artigos 21 a 24, onde

destacamos sua importância na questão da implementação da função social da propriedade e

da cidade, quanto à utilização do imóvel por quem constrói ou planta, bem assim para quem

mantém plantação ou construção já existente, podendo o superficiário continuar o cultivo ou

implementar a construção em seu interesse e proveito, com vistas à preservação da dignidade

humana.

Como instrumento de regularização fundiária das favelas, viu-se que o instituto da

superfície seria de grande valia para conter o problema da favelização dos grandes centros e

regularização das favelas há muito tempo existentes, evitando-se atitudes governamentais

consistentes em remoção de favelas só admissível em casos de perigo para os próprios

favelados ou em casos de preservação ambiental, ante o avanço das favelas sobre áreas

verdes e de preservação ambiental em proveito das presentes e futuras gerações.

O direito à moradia, erigido em norma Constitucional, conforme se infere do artigo

6º da Constituição Federal de 1988 ao lado da dignidade da pessoa humana e da função social

da propriedade podem ser buscados através dos institutos tratados na presente pesquisa,

principalmente do instituto da superfície que carece de maiores estudos para conhecer suas

implicações e conseqüências, objetivando entendimento mais profundo das questões ligadas

ao parcelamento do solo, da ordenação das cidades, visando uma vida digna com o espaço de

cada um sendo respeitado e a propriedade exercendo sua função social, posto não ser cabível

a visão individualista e exclusivista do passado.

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Com a presente pesquisa, esperou-se ter dado alguma contribuição para a

compreensão do instituto da superfície e de sua função social no direito privado e no Estatuto

da Cidade, apesar de saber que o assunto não se esgotou aqui, havendo várias outras

questões dignas de estudo, quais sejam, a da moradia digna no contexto civil-constitucional e

a questão da cidade sustentável, favelização e reforma agrária que poderão ser objetos de

estudos futuros.

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DISSERTAÇÃO APRESENTADA AO MESTRADO EM DIREITO DA UNIVERSIDADE GAMA FILHO, NO RIO DE JANEIRO, E APROVADA PELA COMISSÃO EXAMINADORA FORMADA PELOS SEGUINTES PROFESSORES:

PROF. DR. RICARDO CESAR PEREIRA LIRA

UNIVERSIDADE GAMA FILHO – UGF

(ORIENTADOR)

PROF. DR. GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA

UNIVERSIDADE GAMA FILHO – UGF

PROFª. DRA. ROSÂNGELA LUNARDELLI CAVALLAZZI

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UERJ

Rio de Janeiro, 22 de novembro de 2006.

Prof. Dr. JOSÉ RIBAS VIEIRA

Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito