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UNIVERSIDADE GAMA FILHO
VICE-REITORIA ACADÊMICA
COORDENAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E
ATIVIDADES COMPLEMENTARES
CURSO DE MESTRADO EM DIREITO, ESTADO E CIDADANIA
O DIREITO DE SUPERFÍCIE NO CÓDIGO CIVIL E NO ESTATUTO DA CIDADE E A SUA FUNÇÃO SOCIAL
Mauro Luiz Bento
Rio de Janeiro 2006
UNIVERSIDADE GAMA FILHO
VICE-REITORIA ACADÊMICA
COORDENAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E
ATIVIDADES COMPLEMENTARES
CURSO DE MESTRADO EM DIREITO, ESTADO E CIDADANIA
O DIREITO DE SUPERFÍCIE NO CÓDIGO CIVIL E NO ESTATUTO DA CIDADE E A SUA FUNÇÃO SOCIAL
Dissertação de Mestrado apresentada à Coordenação de Pós-Graduação e Atividades Complementares da Universidade Gama Filho-UGF como requisito parcial para conclusão do Curso de Mestrado em Direito, Estado e Cidadania. Mauro Luiz Bento Professor orientador: Ricardo Pereira Lira
Rio de Janeiro 2006
Verso da 2ª folha O (A) autor (a), abaixo assinado(a), autoriza as Bibliotecas da Universidade Gama Filho a reproduzir este trabalho para fins acadêmicos, de acordo com as determinações da legislação sobre direito autoral, n(s) seguintes(s) formatos(s) ( X ) Fotocópia (X ) Meio digital Assinatura do autor:__________________________________________________________
Aluno: Mauro Luiz Bento Matrícula: 20042950031
O Direito de superfície no novo Código Civil e sua função social
Trabalho de conclusão de Curso apresentado à Coordenação de Pós-Graduação da
Universidade Gama Filho como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre.
AVALIAÇÃO
1. CONTEÚDO
Grau:_____
2. FORMA
Grau:______
3. GRAU FINAL:______
AVALIADO POR
Prof. Ricardo Pereira Lira ________________________
Prof. Guilherme Calmon ________________________
Profa. Rosângela Lunardelli Cavalazzi ________________________
Rio de Janeiro, 22 de novembro de 2006.
A minha esposa Edna e a meus filhos Ramon, Rafael e Raul, por terem acreditado no meu sonho.
Manifesto, nesta página, meus agradecimentos ao Prof. Ricardo Pereira Lira pela orientação efetiva que contribuiu para o êxito do trabalho, aos funcionários das bibliotecas da PUC do Rio de Janeiro e da UERJ, às Secretárias da Coordenação de Pós-graduação da Universidade Gama Filho, Neuza, Fábiana e Adriana, bem como ao colega de magistério, Prof. José Maria Feres, pelo seu empenho em trazer o curso de Mestrado da UGF a Barbacena. Agradeço também ao Prof. Ingo Wolfgang Sarlet, da PUC do Rio Grande Sul, pelo envio de material de pesquisa e aos juízes Mauro Francisco Pittelli, Liliane Rossi dos Santos Oliveira, Joaquim Martins Gamonal e Maria Aparecida Consentino pelo incentivo.
RESUMO
A opção pelo tema em estudo deve-se, principalmente, ao fato de que sobre o
instituto da superfície existem poucos trabalhos de pesquisa e por considerá-lo um tema
atraente, juntamente com o da função social da propriedade, reinserida na nova ordem
constitucional por força do artigo 5º, inciso XXIII da Constituição Federal de 1988. O
problema a ser enfrentado com a pesquisa refere-se à questão do crescimento desordenado
dos grandes centros urbanos, em razão do êxodo rural provocado pela saída das pessoas
do campo para as cidades em busca de melhores condições de vida. Como conseqüência,
houve um crescimento desordenado das cidades e conseqüente aumento da população
vivendo em condições degradantes em razão do surgimento das favelas, mocambos,
cortiços, palafitas e ante a omissão do Estado em criar políticas públicas de
implementação do direito à moradia garantido no artigo 6º da Constituição Federal de
1998, dentre o rol dos direitos sociais. Buscou-se no direito de superfície instrumento
jurídico hábil a viabilizar o direito à moradia, efetivando-se alguns princípios
constitucionais, como o da dignidade da pessoa humana e o da função social da
propriedade, solucionando-se o problema da falta de moradia e melhorando as condições
das existentes. Na parte introdutória, buscou-se justificar a escolha do tema, e, no
primeiro capítulo, traçou-se o perfil histórico do instituto da superfície, onde fez-se uma
abordagem do direito de propriedade no Brasil, desde sua colonização por Portugal, até o
surgimento de nossa primeira codificação civil, ocasião em que optou-se por cuidar do
instituto da superfície, abordando o tema sob o ponto de vista do direito moderno, fazendo
estudo comparado do instituto da superfície no direito germânico, italiano, francês, inglês,
espanhol, chinês, russo e argentino e, por fim, analisou-se o instituto sob o ponto de vista
do direito pátrio. A função social da cidade e da propriedade urbana teve atenção especial,
sendo objeto de especulação o tema referente à importância da regularização fundiária,
onde propô-se a adoção do direito de superfície para solução do problema da escassez de
moradia, regularização da propriedade irregular e sua titulação, desde que no contrato
fosse prevista cláusula de opção de compra ao final da contratação em favor do
superficiário. Por fim, o instituto da superfície foi enfocado sob o prisma do Estatuto da
Cidade, como instrumento de regularização fundiária das favelas e também como
instrumento de pacificação de conflitos ligados ao parcelamento desordenado do solo com
vistas a melhores condições de vida da pessoas que habitam as periferias das grandes
cidades, implementando-se o direito social à moradia digna.
RIASSUNTO
La scelta per il tema dello studio si deve, principalmente, al fatto de sulla
proprietà superficiaria ci sono pochi lavori di ricerchi e per considerarla un tema
interessante insieme alla funzione sociale della proprietà introdotta sulla nuova ordine
constituzionale per força dell’articolo 5º, inciso XXIII della Costituzione Federale del
1988. Il problema ad essere affrontato attraverso la ricerca si referisce alla questione
dello sviluppo disordinato dei grandi centri urbani, di fronte all’esodo rurale provocato
della migrazione campesina per la città in cerca di migliore condizioni di vita. Come
effetto di questo fenomeno e accorso negli ultimi anni lo sviluppo disordinato delle città
e di conseguenza l’aumento della populazione che vive in condizioni degradanti a causa
della sorta bassofondi, capanne, palifitte e davanti all’ommissione dello Stato in creare
delle politiche pubbliche d’incrementazione del diritto all’abitazione garantita
nell’articolo 6º della Costituzione Federale del 1998, dentro il ruolo dei diritti socioali. Si
sono cercati nel diritto dela superfície (nella proprietà superficiaria) lo strumento giuridico
abile a viabilizzare il diritto all’abitazione, effetivandosi alcuni principi castituzionali
come della dignità della persona umana e quello della funzione sociale della proprietà,
risolvendosi il problema della mancanza d’abitazione e migliorando le condizioni già
aventi. Nella parte introduttoria si è cercato di giustificare la scelta del tema ed al primo
capitolo abbiamo tratto il profilo storico della proprietà superficiaria dove approffittiamo
l’oportunità per aver cura del diritto del privato (della proprietà) in Brasile fin dalla sua
colonizzazione da Portogallo fino alla nascita della nostra prima codificazione civile,
occasione in cui abbiamo curato alla proprietà superficiaria parlando del tema sull’ottica
del diritto moderno, passando per il diritto germanico, italiano, francese, inglese,
spagnolo, cinese, russo e argentino e, alla fine, osserviamo la proprietà sul punto di vista
del patrio diritto. La funzione sociale della città e quella della proprietà urbana ha avuto
uma speciale attenzione, essendo oggetto della nostra indagine il tema riguardante
dell’importanza della regolarizzazione fondiaria, dove abbiamo proposto l’adozione del
diritto di superfície per la soluzione del problema della mancanza d’abitazione,
regolarizzazine della proprietà irregolare e la sua titolazione, finchè nel contratto sià
prevista clausola di opzione di compra alla fine della contrattazione a favore del
superficiario. Dunque l’stituto della superfície è stata vista sotto il l’angolo dello Statutto
della Città come strumento di regolarizzazione fondiaria delle bassifondi ed anche come
mezzo di pacificare dei confliti legatti alla particella disordinata del suolo, con lo scopo
d’aver migliori condizioni di vita delle persone che abitano nei dintorni delle grandi
città, incrementandosi il diritto sociale ad uma degna abitazione.
SUMÁRIO
DEDICATÓRIA .......................................................................................................03
AGRADECIMENTOS .............................................................................................04
RESUMO ..................................................................................................................05
RIASSUNTO ............................................................................................................06
1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................11
2. NOÇÕES HISTÓRICAS DO DIREITO DE SUPERFÍCIE ...................................14
2.1. Direito de propriedade ......................................................................................14
2.2. Direito de propriedade no Brasil ......................................................................20
2.3. Lei de Terras e a expansão da agricultura no Brasil: a absolutização do
direito de propriedade no Brasil ..................................................................................24
2.4 Noções históricas do direito de superfície ........................................................31
2.4.1 A superfície no direito romano ..................................................................31
2.4.2. O princípio superfícies solo cedit e a evolução do Direito de Superfície ..37
2.4.3. A superfície no Direito Intermédio ............................................................38
2.4.4. O instituto da superfície no direito moderno ....................................................40
2.4.4.1. direito germânico .................................................................................41
2.4.4.2. direito italiano ......................................................................................43
2.4.4.3. direito francês ......................................................................................47
2.4.4.4. direito inglês ........................................................................................49
2.4.4.5. direito espanhol ....................................................................................51
2.2.4.6. direito chinês ........................................................................................54
2.4.4.7. direito russo ..........................................................................................54
2.4.4.8. direito argentino ...................................................................................55
3. O DIREITO DE SUPERFÍCIE NO BRASIL ..........................................................57
3.1. Considerações iniciais .......................................................................................57
3.2. Período Colonial (Direito Português e Brasileiro) .................................................57
3.3. O Direito de superfície no Brasil .............................................................................60
3.4. Movimento de reforma do Código Civil de 1916 ...................................................67
3.5. O novo Código Civil e o direito de superfície .......................................................70
4. A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE ............................................................72
4.1. Noções introdutórias .........................................................................................72
4.2. O Princípio da socialidade no novo Código Civil .................................................76
4.3. A função social .........................................................................................................77
4.4. Função social da propriedade ..................................................................................83
5. FUNÇÃO SOCIAL DA CIDADE E DA PROPRIEDADE URBANA ....................86
5.1. Noções gerais .....................................................................................................86
5.2. O direito de propriedade na Constituição de 1988 .................................................88
5.3. O direito à moradia como direito humano fundamental ......................................91
5.4. A função social da propriedade e da cidade ............................................................99
5.5. Formação da propriedade urbana no Brasil ........................................................102
5.6. Importância da regularização fundiária ...............................................................105
5.7. Direito à moradia na Constituição Federal de 1988 .............................................107
6. O DIREITO DE SUPERFÍCIE NO ORDENAMENTO JURÍDICO.....................113
6.1. Noções gerais e natureza jurídica ...................................................................113
6.1.1 Noções gerais ...................................................................................................113
6.1.2. Natureza jurídica do direito de superfície .......................................................115
6.2. Elementos do direito de superfície ........................................................................126
6.3. O Direito de superfície no novo Código Civil Brasileiro .....................................128
6.4. O Direito de superfície no novo Código Civil e a sua função social ...................133
6.5. O Direito de superfície no Estatuto da Cidade ....................................................136
6.6. O direito de superfície como instrumento de regularização fundiária das favelas e
populações carentes .............................................................................................................139
7. CONCLUSÃO .................................................................................................................141
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................155
APÊNDICE........................................................................................................................... 160
11
1. INTRODUÇÃO
O objetivo do presente estudo é tratar do direito de propriedade, mais
especificamente, do direito de superfície com enfoque na sua função social frente às
inovações introduzidas no ordenamento jurídico pátrio pelo novo Código Civil, instituído
pela Lei nº 10.406, de 1º de janeiro de 2002.
Além de uma análise histórica do instituto da superfície, faz-se algumas incursões
acerca do direito de propriedade e sua evolução no tempo, desde o seu caráter coletivo,
familiar e individual, com os atributos do jus utendi, jus fruendi e jus abutendi que
influenciaram o direito de propriedade no Brasil.
Aborda-se a propriedade quiritária do sistema romano de propriedade, o
momento histórico em que se desenvolveu o ius in re aliena (direito sobre coisa alheia)
para então cuidar do momento histórico no qual surgiu o instituto da superfície tal com os
contornos atuais.
Analisa-se o direito de propriedade no Brasil, desde a fase colonial, com o
sistema de Sesmarias, passando pelas Ordenações do Reino de Portugal, pela Lei de
Terras de 1850, além da realização de um estudo comparativo com sistemas de
propriedades de outros países, quando então passa-se a detida análise do processo de
codificação do ordenamento jurídico civil, onde nos debates que o antecederam
verificar-se-á que a discussão em torno do instituto da superfície esteve presente.
Como o objetivo da pesquisa consiste no tratamento do instituto da superfície no
Código Civil e sua função social, frente às demandas por espaço ocorrentes nos grandes
aglomerados urbanos, numa tentativa de equacionar os problemas relacionados à má
distribuição do espaço urbano e as mazelas daí resultantes, o instituto da superfície será
objeto de acurada análise, de caráter histórico-evolutivo, objetivando uma melhor visão
do tema, ocasião em que o instituto será enfocado à luz dos direitos germânico, italiano,
francês, inglês, espanhol, chinês, russo e argentino.
No capítulo seguinte, o direito de superfície será abordado frente ao sistema
jurídico pátrio, oportunidade na qual o instituto será descortinado a partir do período
colonial, onde verificar-se-á que, sob a influência do Direito Português, o direito de
superfície vigeu no período colonial, por força da Lei Pombalina de 09/07/1773, em
relação a construções, árvores e plantações, tendo o instituto sido banido da ordem
jurídica por força da Lei nº 1.257, de 24 de setembro de 1864, ressurgindo a discussão em
12
torno de seu restabelecimento quando do processo de nossa primeira codificação civil, na
Consolidação das Leis Civis e no Esboço de Teixeira de Freitas.
Verificar-se-á, ainda, que o instituto da superfície acabou não sendo contemplado
na primeira codificação civil, em razão da adoção, pelos juristas da época, da teoria do
numerus clausus dos direitos reais, não havendo espaço para interpretação extensiva ou
ampliativa quanto aos direitos reais existentes no sistema de propriedade então criado.
Dar-se-á ênfase ao movimento de reforma do Código Civil, iniciado em 1963
pelo jurista Orlando Gomes, onde inseriu-se o direito de superfície no rol dos direitos
reais, tendo o instituto passado a constar do Projeto nº 634, de 1975, em seu artigo 1.263 e
regulamentado nos artigos 1.401 a 1408.
Constata-se que a demora na tramitação do Projeto do Novo Código Civil acabou
favorecendo o surgimento de várias leis extravagantes para regulamentação de diversas
relações jurídicas surgidas a partir da vigência do Código de 1916, razão pela qual acabou
vindo à luz a Lei nº 10.257 de 10 de julho de 2001 – Estatuto da Cidade - que nos artigos
21 a 24 cuidou de disciplinar o direito de superfície urbano, sendo que o instituto só
passou a constar da legislação civil com o advento do Novo Código Civil, por força da
Lei nº 10.406/2-2002.
Em seguida, aborda-se o tema relativo à função social da propriedade, seus
contornos, suas implicações e sua utilização como princípio norteador do direito de
propriedade, como via hábil a implementar políticas de regularização fundiária com vistas
a cumprir dispositivo constitucional de garantia de acesso à moradia e preservação da
dignidade humana, como direitos fundamentais a serem respeitados pelo Estado e pela
sociedade como um todo.
Para cumprir esse desiderato fez-se necessária uma abordagem conceitual acerca
da idéia de função social, tendo como pano de fundo o princípio da socialidade inserto no
Novo Código Civil, ocasião em que ter-se-á oportunidade de tratar de várias questões
ligadas à função social da propriedade e da cidade, dando-se um enfoque sob o prisma da
Constituição Federal de 1988, em razão da função social ser um princípio decorrente da
norma fundamental.
Mais adiante, cuida-se, de forma mais abrangente, da função social da cidade e da
propriedade urbana, onde analisou-se vários aspectos ligados à escassez de moradia,
13
ao êxodo rural e as conseqüências decorrentes da aglomeração nos grandes centros
urbanos, ocasionando uma ocupação irregular dos espaços.
Novamente será necessária uma abordagem do direito de propriedade, desta feita
sob uma perspectiva civil-constitucional, com destaque também para o Estatuto da
Cidade, onde o direito de superfície vem disciplinado dentre os instrumentos de política
urbana.
Na seqüência será dado destaque ao aspecto do direito à moradia como direito
humano fundamental, onde destaca-se as desigualdades sociais como causa geradora de
uma série de conflitos, muitos dos quais relacionados com a ocupação desordenada do
espaço habitável, principalmente por populações de baixa renda.
Será abordada a questão da função social da propriedade e da cidade, onde o
direito de superfície será apontando como sendo um instituto hábil a implementar a
função social, preservando-se a dignidade humana através da reordenação dos espaços
habitáveis, oportunidade em que será destacada a importância da regularização fundiária,
utilizando-se do instituto da superfície.
Por fim, aborda-se novamente o instituto da superfície, desta feita fazendo estudo
comparativo do instituto da superfície no Estatuto da Cidade e no Novo Código Civil,
onde serão traçados os seus contornos, características e natureza jurídica, além de seus
elementos e sua função social com vistas à efetivação do direito à moradia inserto no
artigo 6º da Constituição Federal de 1988, bem assim ao princípio da dignidade humana,
com a proposta de regularização fundiária das favelas e populações carentes, através da
efetivação do direito à moradia, utilizando-se do instituto da superfície com cláusula de
opção de compra ao final do contrato.
Ao longo do trabalho tratar-se-á de várias questões ligadas à posse da terra, ao
problema do crescimento desordenado das cidades e de suas conseqüências na vida das
pessoas, numa tentativa de demonstrar que o crescimento desordenado dos grandes
centros urbanos provocado, dentre outras causas, pelo êxodo rural, tem assento em
tradição histórica quanto à forma da distribuição das terras no Brasil, quanto ao
tratamento do direito de propriedade na primeira codificação civil, como direito absoluto,
quadro que sofreu transformações drásticas com a nova roupagem que a função social
deu à noção moderna de propriedade.
14
2. NOÇÕES HISTÓRICAS DO DIREITO DE SUPERFÍCIE
2.1. O Direito de Propriedade
Antes de uma abordagem própria do instituto da superfície, cumpre tecer alguns
aspectos ligados à origem e à história do direito de propriedade, bem como do surgimento
dos direitos reais em Roma, voltando a atenção para época bem remota em que os
romanos conceberam a idéia de propriedade, com o escopo de verificarmos se aquele
povo teve noção acerca dos iura (direitos) ou se eles compreenderam somente a
propriedade das coisas materiais, também denominadas coisas corpóreas.
Vale a pena mencionar que o instituto da propriedade sofreu profundas
transformações ao longo dos séculos, principalmente levando em conta os principais
modelos de sociedade e de Estado, pelos quais passou a humanidade.
Nesse aspecto são esclarecedoras as lições de Liana Portilho Mattos1 no sentido
de que a linha evolutiva da propriedade privada teve início numa forma coletiva de uso
para, posteriormente, reverter essa tendência primitiva no sentido de uma
individualização levada a níveis extremos em determinados momentos de nossa história.
Contudo, segundo a citada autora, modernamente, a propriedade privada vem
recebendo ingerências de ordem pública cada vez mais freqüentes, situação que traduz a
tendência de uma propriedade com contornos cada vez mais coletivos.
Cumpre esclarecer, com a citada autora, que nas hordas primitivas, a primeira
forma de propriedade foi a da propriedade coletiva, posto que as terras e os instrumentos
de defesa e de produção pertenciam à coletividade.
Apesar de rudimentar, a organização do trabalho também se sustentava sobre o
interesse coletivo, sendo certo que somente quanto a pequenos objetos de uso pessoal é
que pode-se falar em propriedade individual.
Com os gregos e romanos, na Antiguidade Clássica, a propriedade começou a
incorporar seus primeiros traços individualistas, conforme elucida Liana Portilho Mattos2,
in verbis:
“A propriedade grega era um fator de importância fundamental na estruturação da cidade. Associada a elementos de natureza religiosa, a propriedade era então protegida com extremismo contra invasões estrangeiras. Antes mesmo das leis, a
1 MATTOS, Liana Portilho, Limitações Urbanísticas à Propriedade. In: FERNANDES, Edésio (Org.). Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. p. 55-75. 2 Idem. Ibidem. p. 58.
15
religião já protegia o direito de propriedade. A propriedade grega era pois sagrada, indivisível, individual e familiar. Entre os romanos, a primeira forma de propriedade foi a das tribos que deram início à formação da cidade de Roma nos primórdios daquela civilização. A propriedade era basicamente coletiva: não havia proprietários individuais das terras. Os membros da tribo exploravam a terra, sem que fossem proprietários; pois o que tinham era só o direito de gozo dela. A propriedade romana, num segundo momento, assumiu uma forma familial, vinculada ao pater família. O chefe de família cuidava do cultivo da faixa de terra recebida, em conjunto com sua família, mas não podia aliená-la em vida e nem transmiti-la por testamento. Dada essa concentração de poderes dispersa pelo grupo, a propriedade familial ainda não apresentava o caráter individualista que posteriormente veio a ter a propriedade romana”.
Com o passar dos tempos, conforme adverte a citada autora, os demais integrantes
do grupo familiar foram adquirindo alguns direitos, como o dote e o pecúlio castrense, com
a propriedade, aos poucos, tornando-se individual.
Cumpre destacar que a propriedade romana passou por três estágios evolutivos
distintos, quais sejam, a propriedade coletiva, a familial e a individual, tendo esta última
fórmula prevalecido por muito tempo, influenciado a concepção do direito de propriedade
vigente por longo período no Ocidente, conforme colocação de Liana Portilho Mattos3.
Deve-se ter presente uma visão histórica da propriedade romana que na fase
individual era basicamente absoluta e personalíssima, onde se entreviam os atributos
consistentes no jus utendi, o jus fruendi e o jus abutendi, poderes que permaneceram ao
longo do tempo, influenciando o direito de propriedade até nossos dias.
Pode-se afirmar que as principais formas de propriedade na civilização romana
foram a quiritária, a provincial, a pretoriana ou bonitária e a peregrina, tendo sido a primeira
a mais importante delas, por ter decorrido da ocupação de bens sem dono ou tomados do
inimigo, dando surgimento a rei vindicatio.
É necessário frisar que a propriedade passou por grandes transformações em seus
característicos, mantendo seu traço individualista, sofrendo algumas limitações no período
justinianeu, decorrentes de restrições de vizinhança e de normas regulamentadoras de
faixas de recuo de imóveis em vias públicas, com respaldo na Lei das XII Tábuas.
3 Idem.Ibidem. p. 58.
16
Para uma melhor abordagem de tão importante período da história do direito,
mormente do direito de propriedade e seus desdobramentos, vale a pena trazer à colação
algumas passagens da obra do professor José Guilherme Braga Teixeira4, in verbis:
“Lançando, porém, umas vistas a uma época ainda mais remota, poderemos notar que os romanos não discerniram sequer tais coisas (corpóreas, frise-se ), voltando-se o seu raciocínio especialmente para tudo quanto, por ser material, podia ser tocado (qui tangi possunt) e apreendido: Meum est - diziam, sem distinguir a coisa do direito sobre ela. Cumpre esclarecer que, nessas priscas eras, ainda estavam os romanos longe de conceber a propriedade como um poder sobre as coisas. Tal poder achava-se englobado (e sem distinguir entre o próprio poder e o seu objeto) na potestas do paterfamiliar sobre tudo quanto estivesse a ele sujeito: mulher, filhos e coisas, escravos, inclusive. O exercício dessa potestas era o mancipium, que estava em relação a ela da mesma forma em que, muito tempo depois, o dominium se encontrou em relação à res”.
Seguindo o curso da história do direito de propriedade prossegue o professor:
“O herctum (equivalente, longo tempo depois, à domus) familiar, por albergar o altar e o fogo sacros, o túmulo e as demais coisas santas da família, era sagrado e, assim sendo, não deveria ser alienado nem abandonado. Não o ius, mas o fas foi que, a princípio, estabeleceu o romano sobre determinada porção de terra: o seu herctum, onde enterrava os seus antepassados e lhes rendia culto, por isso que ali construíra a sua domus, plantara e cultivara o seu campo e criara o seu rebanho, tudo sob a proteção dos seus penates... É sintomática a fórmula empregada, então, pelo paterfamilias, para referir tudo quanto se achava sob a sua potestas: Meum est!
Por tudo o que foi dito até agora, pode-se concluir que no período mencionado
acima, a importância do direito privado romano esteve diretamente ligada ao papel que a
própria família desempenhava na sociedade romana em particular, sendo certo que o direito
de propriedade (dominium) era uma espécie também de jurisdição, de poder de comandar as
coisas e as pessoas da família e não surpreende que o pai dê origem ao patrão5.
De acordo com as informações colhidas de José Guilherme Braga Teixeira 6 na
época da Lei das XII Tábuas, que foi o primeiro texto do Direito Romano, já a evolução do
fas para o ius determinara a dessacralização do herctum, exceto apenas a do sepulchrum;
e as coisas já puderam ser partilhadas entre os irmãos.
Com o passar dos séculos, Roma evolui, tornando-se uma potência mercantilista,
razão pela qual sucedeu o desmembramento da antiga potestas do paterfamilias, ou seja,
manus, sobre a mulher; patria potestas, sobre os filhos; domenica potestas, sobre os 4 TEIXEIRA, José Guilherme Braga. O Direito Real de Superfície. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 12-15. 5 LIMA LOPES, José Reinaldo de. O Direito Na História: Lições Introdutórias, 2ª ed. rev. São Paulo: Max Limonad, 2002. p.59. 6 Idem.ibidem. p.12.
17
escravos; dominium, as demais coisas corpóreas, sendo proprietas vocábulo que só veio a
surgir mais tarde, como sinônimo de dominium 7.
Com efeito, no tocante à res incorporales (qui tangi nom possunt) ainda estava a
séculos por ser concebida, sendo certo que os romanos somente admitiam a existência de
coisas materiais, tendo a concepção de coisa incorpórea só ocorrido muito tempo depois,
com a recepção do ensinamento dos filósofos gregos, mormente dos estóicos.
Ao conhecerem as servidões, por intermédio dos estóicos, puderam os romanos
conceber a idéia de res incorporales ( qui tangi, non possunt), bem assim, de iura (direitos),
a incidirem sobre coisas corpóreas, podendo-se a partir dessa época, falar-se em efetivas
servidões, admitindo-se então, a existência de iura in re aliena.
Por conseguinte, pode-se dizer que foram necessários séculos de amadurecimento
cultural para que os romanos pudessem desenvolver a idéia de bens imateriais, surgindo
então o ius in re aliena ( direito sobre coisa alheia).
Relativamente ao direito sobre a coisa alheia e posterior surgimento das servidões é
curial mencionar outra passagem da obra do professor José Guilherme Braga Teixeira 8,
senão vejamos:
“Foi só depois da admissão da existência de coisas incorpóreas (iura) que pôde um dominus soli conceder o direito de trânsito, através do seu terreno, a terceiro, sem que este viesse a adquirir a faixa do terreno utilizada para o trânsito pela continuidade de seu uso, pois o usucapião não atingia senão coisas materiais, não alcançando direitos, o que, talvez, para espancar dúvidas, foi preceituado por certa lei Scribonia. Surgida, destarte, a servidão como o primeiro dos iura in re aliena, apareceu, pouco depois, o usufruto também como direito na coisa de outrem, tendo como forma o uso (mais tarde, sob Justiniano, forma o usufruto, o uso e também a habitação configurados como servidões, ditas pessoais, a par das verdadeiras servidões, que passaram a ser denominadas prediais ou reais).
Relativamente ao direito de superfície, informa o citado autor que o instituto da
superfície, como ius in re aliena, surgiu séculos depois, já no direito romano-helênico.
Ainda no tocante à história evolutiva do direito de propriedade vale a pena destacar
os esclarecimentos do Professor José Reinaldo de Lima Lopes9 para quem a propriedade
passou por profundas mudanças ao longo da história, contudo, de acordo com o citado
doutrinador, a história é um processo de apropriação, sendo certo que o regime jurídico da
propriedade é o regime da exclusão, ou seja, exclusão de uns em relação às coisas e aos
7 TEIXEIRA, José Guilherme Braga. O Direito Real de Superfície. p.13. 8 Idem.Ibidem. p. 15-16. 9 Idem.ibidem. p. 401.
18
produtos das coisas e do trabalho. Regime de exclusão! Eis o que caracteriza o regime
jurídico da propriedade na visão do citado autor.
Por ser o direito romano um direito de privilégios, conforme menciona o Professor
José Reinaldo,10 os pais de família eram os sujeitos do direito e todos os negócios da
família giravam em torno dele, sendo a propriedade um aspecto central da vida familiar,
posto que as terras da família eram a base da vida da comunidade produtiva.
As terras da família, no direito romano original, subordinavam-se a um regime
próprio, qual seja, ao direito quiritário e, esta propriedade se limita aos cidadãos romanos
livres, denominados sui iuris, e nas famílias romanas apenas pelo pater famílias, restringia a
circulação da terra e assegurava a unidade patrimonial, de maneira que o escravo e os filhos
não emancipados não podiam ter acesso à propriedade quiritária.
Sobre esta questão vale apenas referir os ensinamentos do Professor José Reinaldo
de Lima Lopes11, in verbis:
“Assim, falar-se em propriedade no direito romano era muito diferente de falar-se em propriedade hoje. O pai de família tinha junto com a propriedade um poder jurídico de dirigir os negócios da família, inclusive poderes sobre as pessoas, filhos e escravos: ser pai de família era ao mesmo tempo ter propriedade de coisas e poder pessoal sobre as pessoas envolvidas na exploração daquela coisa”.
Na linguagem jurídica, por amor à tradição romano-canônica, utiliza-se dois termos
vindos do latim, quais sejam, domínio e propriedade, sendo que propriedade indicava a
qualidade do que era próprio, ou melhor, à coisa mesma e domínio tinha vários significados,
ora o governo da casa (domus) e posteriormente o poder exercido pelo pater familias sobre
as coisas, como a casa, a terra, os móveis.
O domínio, além de representar poder sobre a coisa, no período medieval significou
também poder de direito, ou seja, poder político, posto que o senhor, além dos direitos sobre
os frutos da terra, detinha uma jurisdição, entendida como uma certa competência normativa,
nos dizeres do Professor José Reinaldo.12
Tal se deu no direito inglês, pois embora a terra estivesse dividida em vários
senhorios, era, primeiramente domínio do rei, que sobre ela exercia uma jurisdição, sendo
todos os habitantes tidos como vassalos do rei e seus sucessores, permitindo aos reis ingleses
10 Op.cit. p.401. 11 Op.cit. p.402. 12 Op.cit. p. 402.
19
interferir nas jurisdições locais para ouvir as queixas de todos os seus súditos, já que em
última instância toda terra lhes era sujeita.
Não há, nas lições do Professor José Reinaldo13distinção entre propriedade,
soberania e posse na Idade Média, e somente com a transformação da renda em preço é que
podem desaparecer os laços vassálicos na Inglaterra em 1660.
Interessante notar que na Idade Média também não se tornou assente a idéia
unitária e individualista de propriedade, tendo em vista que sobre uma mesma coisa
exerciam-se diversos direitos por diferentes sujeitos, ou seja, os domínios eram de duas
espécies: o domínio útil, exercido por mais de um sujeito por comportar várias divisões e o
domínio direto. Sobre essa questão vale a pena citar trecho da obra do Professor José
Reinaldo14 :
“Em verdade, os domínios sobre a terra dão origem a rendas de poderes, cuja partilha e divisão é aparentemente natural. Os frutos da terra são divisíveis e cada parte vai para quem tem sobre a terra algum direito. A terra é um bem de produção e a propriedade dela nada ou pouco tem a ver com a propriedade dos bens de consumo pessoal. Para forjar um conceito unitário de propriedade será preciso ignorar esta diferença fundamental. Desta forma, a propriedade, entendida no seu complexo de poder sobre algumas coisas (a terra) e respectivas faculdades ou poderes de exploração e direção (recebimento de tributos e exercícios de jurisdição), não é um direito natural e universal, mas um privilégio. O servo, por seu turno, tem seu direito de trabalhar a terra, do qual não pode ser privado nem por seus vizinhos e iguais, nem pelo próprio senhor. Este, por seu turno, tem direito a receber os frutos e exercer poderes políticos sobre a comunidade. Cada um tem suas próprias regras, seus privilégios.”
Assim, o domínio compreendia, no mínimo dois poderes, quais sejam, o direito de
jurisdição e a renda equivalente a parcelas de poder sobre a terra. Nesse período havia
ligações perpétuas entre os diversos detentores, de cunho pessoal, sendo certo que a posse e
detenção da terra imediatamente, era um direito que se transmitia, se conservava e não
permitia a alienabilidade, sendo os direitos limitados quanto a seu exercício, de maneira que
um senhor ou um detentor não podia tudo, não havendo direito absoluto, que excluísse o de
outros titulares, podendo ser limitados quanto ao tempo. De maneira que quando se começa
a aceitar a alienabilidade da terra começa a acabar o feudalismo.
A noção moderna de propriedade modificou a antiga, tendendo para o exclusivismo,
sendo certo que aos poucos passará a ser a soma de todos os direitos anteriormente
dispersos entre vários detentores. O que se percebeu, na Idade Média, é que a detenção, a
posse, as diferentes rendas devidas e recebidas convivem lado a lado, não sendo natural que
13 op.cit. p.403 14 op.cit. p.403
20
um só senhor tenha todos estes direitos, posto que desde o lavrador até o rei tem, sobre a
mesma terra, direitos próprios, embora distintos, conforme nos ensina o Professor José
Reinaldo.15
Daí Liana Portilho Mattos16 ter afirmado que:
Desse modo, com a sofisticação da sociedade romana, novas exigências sociais foram surgindo, tornando obrigatória a submissão dos proprietários às limitações legais cada vez mais crescentes (basicamente as referentes a direitos de vizinhança), e, assim, a propriedade romana desatrelou-se um pouco do individualismo extremado do início, para conhecer leve colorido social. Na primeira fase da Idade Média, o cristianismo – tendo como maiores expoentes Santo Agostinho e São Tomás de Aquino – exerceu significativa influência nas concepções de propriedade que começavam a ser esboçadas. São Tomás não propunha a propriedade coletivizada, mas sim uma propriedade individual que atendesse aos interesses coletivos, aos interesses gerais no contexto de uma sociedade elitizada. O mais importante, contudo, a ser ressaltado desse período e do pensamento de São Tomás, foi o surgimento do antecedente de um princípio que mais tarde se consolidaria como a função social da propriedade.
Para finalizar esse tópico atinente ao perfil histórico da propriedade em Roma,
cumpre trazer mais esclarecimentos no sentido de que ainda na Idade Média, o período
feudal representou um estágio singular e inédito pelo qual passou a propriedade em sua
evolução. De acordo com Liana Portilho Mattos,17 nesse período a temática fundiária foi o
eixo de quase todas as relações do homem – políticas, sociais, econômicas, religiosas e
jurídicas. Basicamente, a propriedade passou a abrigar dois direitos coexistentes de modo
hierárquico: o domínio útil, do feudatário; e o domínio eminente, do Estado. Pode-se dizer
que, devido a esse fato, a propriedade sofreu certa desintegração e, em conseqüência, seu
caráter individualista foi fortemente atenuado, tendo sido o jus utendi, fruendi et abutendi
substituído pelo jus curandi et dispensandi.
2.2 Direito de Propriedade no Brasil
Ao abordar-se o tema referente ao direito de propriedade no Brasil, não deve-se
esquecer de que nossa tradição jurídica consagrou o direito de propriedade como um direito
subjetivo, absoluto, exclusivo, perpétuo,18 conforme se infere da leitura do artigo 524 do
15 op. cit.p.405 16 op.cit. p.59 17 op.cit. pp-60. 18 É o que observa Laura Beck Varela em sua obra Das Sesmarias à Propriedade Moderna: Um Estudo de História do Direito Brasileiro, Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 2, nota 2. Para a citada autora, observando a lenta erosão operada no direito luso-brasileiro rumo à propriedade moderna, o artigo 524 do Código Civil de 1916 constituiu uma ruptura, inovação em relação à cultura jurídica anterior. Inovou ao consagrar, num conceito abstrato e unitário, o poder da vontade, fundamento jurídico na relação do homem com as coisas, nos moldes do individualismo jurídico que anima as codificações européias do séc. XIX (p.06).
21
Código Civil de 1916, reproduzido no artigo 1.228, caput, do novo Código Civil de 2002,
mas que em seu parágrafo 1º, consagrou o princípio de função social da propriedade,
seguindo o modelo dos código códigos ocidentais.
Conforme adverte Laura Beck Varela19 o princípio da obrigatoriedade do cultivo
que justificava a apropriação de bens imóveis e que remonta à Lei das Sesmarias,
promulgada por D. Fernando em 1375, perpetua-se nas fontes jurídicas por meio das
Ordenações régias e, posteriormente, por uma série de avisos, alvarás e cartas-régias, que
disciplinaram as sesmarias no Brasil-colônia, sendo que tal princípio só é afastado no século
XIX, tendo como causa a introdução, no Brasil, das relações capitalistas de produção que
exigia a formação de um direito de propriedade privada absoluta da terra, com limites
precisos, registrada e que pudesse servir de garantia a financiamentos.
Para a citada autora é na Lei Sesmarial de D. Fernando I, de 1375, que encontra-se
uma primeira consagração desta fórmula da efetividade, que se traduz na obrigatoriedade do
cultivo, posto ser a característica das sesmarias a obrigatoriedade de cultivo como condição
de posse da terra e a expropriação da gleba ao proprietário que a deixasse inculta.
Daí, Virgínia Rau apud Laura Beck Varela 20 fazer a seguinte observação: “A
chamada Lei das Sesmarias, elaborada com o auxílio de um conselho de justiça, surge com
o objetivo de combater uma aguda crise de abastecimento, queda demográfica e conseqüente
escassez de mão-de-obra, acentuada pela Grande Peste que assolara a Europa em 1348.”
O que importa agora é percebe que a sesmaria consistia na atribuição de bens
incultos, em razão de terem sido abandonados ou por nunca terem sido cultivados, a
determinada pessoa, com o encargo de aproveitar, dentro do prazo previsto na lei ou na
carta de adjudicação. Solucionava-se, assim, o problema da crise agrícola e demográfica,
também à falta de braços e de alimentos, mediante a imposição do dever de lavrar a terra e
das demais restrições referentes aos trabalhadores.
Na verdade, a Lei das Sesmarias nada mais fez do que fixar o costume, posto que
dar terras em sesmarias remontava a antigo costume da região, que o rei, atendendo às
constantes demandas das Cortes, tornara lei geral, uma vez que até o século XIII, o costume
19 RAU, Virginia. Sesmarias Medievais Portuguesas. Lisboa: Presença, 1946 apud VARELA, Laura Beck. Das Sesmarias à Propriedade Moderna: Um Estudo de História do Direito Brasileiro, Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp 06. 20 Idem., Ibidem. p.-20-21.
22
constituíra a principal fonte de direito em Portugal, e continuaria a ser de vital importância
por vários séculos.
Embora o regime de sesmarias fosse assentado no domínio útil, ou seja, na
obrigatoriedade do cultivo, porém o conteúdo material desta forma dominial do direito
luso não se esgotava no induzimento ao cultivo.
Não se tratava de um cultivo qualquer, posto que atenta à crise na agricultura, a
Lei determinava a cultura de gêneros alimentícios, impondo restrições quanto a criação de
gado que constrangia o lavrador a ter somente o gado necessário à lide no campo, sendo
certo que em paralelo às restrições à pecuária, procura-se incentivar o cultivo de produtos
como trigo, cevada, milho, que haviam de prover o sustento da população, num contexto de
escassez e carestia, sendo objetivo central da lei a agricultura de gêneros alimentícios para
o abastecimento.21
Outro ponto importante sobre a implantação da Lei de Sesmarias em Portugal, diz
respeito aos sujeitos, destinatários da norma e que deveriam exercer o cultivo da terra.
Conforme destacado acima, a lei objetivava compelir às lides rurais os servos da gleba e
seus descendentes, sendo obrigados à lavoura os filhos e netos de lavradores, aqueles que
possuíam menos de quinhentas libras em bens e também aqueles que não tivessem ocupação
nem senhor certo. Também a lei se dirigia aos senhores de terras, tanto leigos quanto
eclesiásticos, que tinham o dever de compelir tais pessoas à lide no campo, pena de
expropriação da gleba.22
Por fim, cumpre mencionar que traço comum às sesmarias fernandinas, afonsinas,
manuelinas e filipinas, é a caracterização de uma propriedade não-absoluta, cuja condição
sine qua non, razão de ser, reside no dever de cultivo. O fundamento do cultivo perpetua-
se, assim, através das Ordenações Filipinas, legitimando uma forma de propriedade
essencialmente condicionada. 23
De maneira que é com as características e o fundamento até agora vistos que as
sesmarias passam a vigorar no Brasil colonial, quando já em Portugal havia caído em
desuso.
21 VARELA, op.cit., p.34-35. 22 VARELA, op. cit., p.37-38. 23 VARELA, op. cit., p.69-70.
23
Contudo, vale a pena referir que no tocante à passagem de uma economia assentada
na mão-de-obra escrava, a uma economia baseada na mão-de-obra livre, a propriedade da
terra assume valor econômico fundamental. 24
Com a suspensão das concessões das sesmarias, ocorrida em 1822, teve início o
regime das posses, que durou até a lei de 1850, consistente no mero apossamento de
terrenos para exploração agrícola e pecuária.
Cumpre esclarecer que com o advento da Lei de Terras de 1850, ocorre a passagem
do patrimônio fundiário da Coroa às mãos dos particulares, disciplinando o caos da
realidade agrária de então, composta pelas terras doadas em sesmaria e que na maioria das
vezes não eram cultivadas, tão pouco demarcadas, nem eram registradas, sendo que tal lei
proibira os apossamentos, delimitando-se as chamadas terras devolutas, objetivando separar
o público do privado, estabelecendo-se as bases da propriedade privada no Brasil25 .
Desta forma, não só nas leis vigentes, mas sobretudo nos litígios envolvendo a
posse de terrenos, freqüentemente são invocados o cultivo e a moradia habitual como
fundamentos jurídicos a legitimarem pretensões, tanto de pequenos posseiros quanto de
latifundiários, sendo esses últimos, meros posseiros na maioria dos casos, de grandes
extensões de terras, ou sesmeiros que não haviam cumprido as exigências legais da
medição e confirmação. 26
Houve um processo de absolutização da propriedade, sendo que na maior parte dos
ordenamentos jurídicos da família romano-germânica, essa absolutização consistiu num
processo de ruptura em relação a uma estrutura hierarquicamente organizada de deveres,
24 A extinção do regime das sesmarias ocorre no contexto do início da expansão da economia cafeeira e do movimento que resultou na Independência, estando na pauta de discussões a necessidade de regulamentação da propriedade privada - exigência do próprio desenvolvimento do Estado, agora politicamente independente da metrópole. Não se pode olvidar que a Inglaterra, parceira comercial de longa data, tanto da metrópole quanto da colônia, colhendo os lucros da Revolução Industrial e detendo o monopólio do comércio internacional, pressionava pelo fim do tráfico negreiro - o que implicaria a reformulação de todo o sistema produtivo no Brasil, essencialmente ancorado na economia escravocrata. Urgia encontrar uma válvula de escape, um substituto ao escravo como categoria econômica central. A essa crise do trabalho escravo responderia a elite colonial com o processo de organização da propriedade privada e mercantilização da terra. A expansão cafeeira favorece a valorização da propriedade da terra, oferecendo bases econômicas para a passagem à mão-de-obra livre. A extinção do regime sesmarial é um passo importante neste processo de organização da propriedade privada da terra, que se consolida com a Lei de 1850 e com o Código Civil de 1916, adiante examinados (LAURA BECK VARELA, op.cit., p-111). 25 VARELA, op. cit., p-07. 26 VARELA, op., cit., p-115.
24
obrigações, honra e lealdade, o que caracteriza uma propriedade do tipo feudal, ou seja,
propriedade de diversos níveis sobre a terra.27
Conforme adverte Laura Beck Varela,28 no caso do direito luso-brasileiro,
contudo, é uma ruptura em relação à propriedade pública, cuja veste é a sesmaria,
privilégio ou concessão de domínio condicionada à sua exploração, com cláusula de
reversibilidade, tendo ocorrido no processo de absolutização da propriedade modificações
de natureza legislativa, doutrinária e jurisprudencial, tendo as de cunho doutrinário surgindo
nas primeiras obras de direito civil brasileiro, conforme atesta a citada doutrinadora.
2.3. A Lei de Terras e a expansão da agricultura no Brasil: a absolutização do
direito de propriedade no Brasil.
Várias transformações sociais começam a ocorrer na economia do país,
principalmente por conta da gradativa introdução das relações capitalistas de produção
ocorrida na América Latina, a partir da segunda metade do século XIX e, no caso do Brasil,
esse fato se deu através da expansão econômica do café, bem assim com a pressão para o
fim do tráfico de escravos e introdução da mão-de-obra assalariada.
Por outro lado, a propriedade privada absoluta da terra e a possibilidade de sua
mercantilização são pressupostos essenciais do sistema capitalista, tendo a Lei de Terras, de
1850, vindo à lume para propiciar condições jurídicas possibilitando que a terra pudesse
se tornar mercadoria aceitável nos negócios entre os fazendeiros.29
Com o advento da Lei n. 601, a conhecida Lei de Terras, procura-se conferir
estatuto jurídico à propriedade privada, adaptando-a às novas exigências econômicas,
além de fomentar a colonização, tendo se instituído a formalidade do registro, conceituando
terras devolutas, proibindo sua aquisição de outro modo que não fosse a compra e venda,
tendo a referida lei sido considerada como norma de transição que procura, de um lado,
legitimar as apropriações anteriores, obtidas através de apossamentos e das sesmarias,
tendo por critério o do efetivo cultivo e morada sobre as terras.
27 VARELA, op. cit., p.122-123. 28 Op.cit. p. 121-122 29 VARELA, Laura Beck, op. cit, p-128, esclarece que o novo modelo de propriedade introduzido com a Lei de Terras, distingue-se da antiga propriedade sesmarial, posto que mesmo para o sesmeiro adimplente, não atribuía um direito pleno, em termos absolutos, ao contrário do novo sistema de propriedade que a partir da Lei de Terras transforma-se em mercadoria, sendo a referida lei considerada verdadeiro marco na história da propriedade privada brasileira.
25
Por outro lado, instituiu novas regras, propiciando ao Estado tomar providências
quanto ao processo de apropriação do território e controle da colonização.
Na passagem para uma forma jurídica absoluta da propriedade, o cultivo – velho
princípio de lei portuguesa é um fundamento para instauração de uma nova ordem
proprietária, tendo o cultivo deixado de ser o elemento central da concessão e
revogabilidade das sesmarias, retirando-se do Estado a possibilidade jurídica de reaver as
terras não cultivadas, a não ser nos casos de desapropriação mediante o pagamento de prévia
indenização. Assim, passou-se de uma forma jurídica de propriedade (as sesmarias) para
outra, pré-moderna, propriedade absoluta e incondicionada.
Cumpre ressaltar que no direito brasileiro, no tocante à propriedade moderna, a lei
hipotecária trouxe inovações quanto aos aspectos da transcrição e do registro, alicerces
fundamentais para a construção uma nova ordem proprietária. 30
Por outro lado, não pode deixar de ser mencionado que a Lei Hipotecária de 1864,
constituiu em outro marco fundamental no processo de absolutização do direito de
propriedade, posto que além de disciplinar juridicamente a hipoteca, instrumento útil à
mobilização do patrimônio fundiário, institui também o registro de imóveis, fundamento à
publicidade e à oponibilidade erga omnes dos direitos reais que posteriormente serviu de
base à construção do instituto da transcrição como modo de aquisição da propriedade
imobiliária, sendo incorporado ao Código Civil de 1916.
É no movimento revolucionário burguês – cujo paradigma é o ocorrido em França
- que encontram-se as bases para uma profunda mudança no regime jurídico da
propriedade privada, tanto nos antecedentes filosóficos que lhe dão sustento, quanto no
aparato técnico-jurídico que cristaliza as transformações da época. Instaura-se
verdadeiramente uma nova “antropologia dominial”, que viria a criar raízes na mentalidade
jurídica posterior. 31 Tendo o direito de propriedade sido concebido como direito absoluto,
exclusivo, ilimitado, sagrado, inviolável, de usar, gozar e dispor, consagrado no apogeu do
liberalismo pelo artigo 544 do Código Civil francês.32
A menção às faculdades de usar, gozar, dispor, é signo do legado das elaborações
dos comentadores, que vestem a roupagem do individualismo - deixando à mostra, em plena
30 VARELA, op.cit. p-178. 31 VARELA, op. cit., p-201. 32 VARELA, op. cit.p-205.
26
codificação revolucionária, símbolo da ruptura, as profundas permanências da “utensilagem
mental” anterior.33
Sendo assim, percebe-se que o direito de propriedade é concebido como direito
eminentemente individualista, direito do homem, exigência do direito natural. Todavia, a
construção técnico-jurídica da propriedade, de direito natural a direito absoluto, grandes
transformações na idéia de propriedade como instrumento para manutenção do status quo
do grupo social dominante.34
Com base nesses princípios compreende-se a propriedade moderna como um direito
eminentemente individualista, direito do homem, exigência do direito natural, centro ao
redor do qual gira toda estrutura do Código Civil francês, sendo que a propriedade por meio
da contribuição jusnaturalista, passa de direito natural a absoluto, revelando a passagem de
seu caráter revolucionário a conservador, concepção que é fruto de um longo processo de
ruptura em relação à propriedade feudal e que foi assimilada pelos juristas nacionais, que
viveram um período de transição para uma forma absoluta da propriedade, através de um
conceito unitário, absoluto e abstrato de propriedade de tradição francesa e alemã e que foi
incorporado ao artigo 524 do Código Civil de 1916.
Conforme elucidações o Professor José Reinaldo de Lima Lopes35 a propriedade da
terra no Brasil esteve associada a dois problemas cruciais, quais sejam, o da escravidão e o
da imigração, com reflexos na mão-de-obra, sendo certo que houve quem reconhecesse a
existência de um feudalismo brasileiro, outros porém, como Marcelo Caetano apud José
Reinaldo de Lima Lopes reconheceu que as doações ocorridas durante a expansão atlântica
tiveram cunho senhorial, caracterizando-se por doações de senhorio.
O certo é que, com o passar dos tempos, houve o reconhecimento de que as
formas de exercício do poder político tais como o coronelismo ou mandonismo, baseou-se
na propriedade territorial.
Sustenta o referido Professor que o latifúndio foi sempre um problema nacional,
originado sob a forma de direitos de propriedade do ponto de vista econômica e político.
33 VARELA, op. cit., p-206. 34 VARELA, op. cit., p-210. 35 LIMA LOPES, op. cit., p. 352-360.
27
Relativamente à formação da sociedade brasileira, tendo como suporte o exercício
do direito de propriedade vale a pena colacionar algumas reflexões do Professor José
Reinaldo,36 in verbis:
“A sociedade brasileira começa a formar-se sobre uma base essencialemnte agrária. Na origem de nosso sistema jurídico encontramos primeiramente a união entre propriedade fundiária e poder político. Em segundo lugar, uma atividade agrícola de exportação, inserida na formação do capitalismo moderno. Em terceiro lugar, a exploração da mão-de-obra escrava num período em que na Europa ocidental o regime de servidão era praticamente extinto. Finalmente, em razão da falta de qualquer contrapoder ou controle, o exercício de poderes arbitrários, exclusivos e individualistas por parte dos grandes proprietários”.
É neste cenário político, contraditório por sinal, que ocorre a ocupação do solo
urbano em nosso território, tendo como conseqüências uma estrutura social e jurídica com
dificuldades para absorver de fato as exigências do liberalismo do século XIX, pervertido
aqui numa justificação da propriedade ilimitada, e sobretudo associada ao exercício quase
que despótico do poder político dos proprietários, conforme esclarece o Professor José
Reinaldo.37
Por outro lado, adota-se na colônia o modelo de distribuição de terras usado em
Portugal consistente no sistema de sesmarias para o cultivo das terras e estabelecimento dos
camponeses, aplicado a imensas áreas de terras, trazendo como conseqüência a
impossibilidade da presença das autoridades nesses locais, propiciando o exercício da
justiça privada.
Existiram no Brasil, basicamente, três grandes regimes de propriedade das terras,
quais sejam, o das sesmarias, entre 1500 e 1822, cujas doações eram de competência dos
capitães ou governadores; o da posse, desde 1822, ocasião em que se suspendem as doações
de sesmarias por decreto de 17 de julho, até setembro de 1850, com surgimento da Lei n.
601 (Lei de Terras) e, finalmente, o regime surgido com o advento da Lei n. 317, de 1843 e
com o Código Civil de 1916 que mudaram os serviços de registros públicos, introduzindo o
princípio da transferência da propriedade pela transcrição.38
A origem das sesmarias deve-se a uma lei de D. Fernando I, datada de 26 de junho
de 1375, momento no qual Portugal passava por grave crise, provocada pela tragédia
demográfica causada pela peste negra por volta de 1348-1350, como instrumento para
viabilizar o cultivo das terras não cultivas por aqueles que se dispusessem a cultivá-las, 36 LIMA LOPES, p.353. 37 Idem., Ibidem., p.353. 38 Idem., Ibidem., p.353.
28
contribuindo para manter o homem no campo, tendo como resultado a concentração dessas
terras nas mãos daqueles que tivessem recursos para cultivá-las, como nobres e grandes
lavradores.
O trabalho de distribuição dessas terras era incumbido aos sesmeiros, mais tarde
denominados donatários ou beneficiários de sesmarias, sendo certo que o instituto das
sesmarias permaneceu e acabou sendo incorporado nas Ordenações Afonsinas e também nas
Filipinas de 1603.
Referentemente ao Brasil, as sesmarias implicou fomentar a ocupação e exploração
da terra, concedidas àqueles que tivessem capital suficiente e capacidade para explorá-las,
consistindo pois em doações de terras de domínio da Coroa portuguesa.
Ocorreu que o regime das sesmarias, ao ser aplicado no Brasil, consistiu em
doações de extensas glebas de terras que foram entregues às pessoas para cultivo, sendo que
cada posseiro deveria receber somente uma sesmaria. Contudo, o que ocorreu foi que às
doações recebidas somaram-se outras, tendo alguns recebido mais de uma sesmaria que
permanecia inculta, com a agravante de que várias sesmarias eram doadas a diferentes
integrantes de um mesmo núcleo familiar, dando origem aos primeiros latifúndios.
É importante lembrar que pela lei existiam limites à concessão das sesmarias, ou
seja, um limite territorial máximo, dependendo da capacidade do donatário, tendo variado
muitas vezes ao longo dos séculos de colonização, conforme menciona o Professor José
Reinaldo39, sendo certo que a terra abandonada deveria retornar à Coroa para ser
redistribuída.
Com o escopo de consolidar a legislação referente ao Brasil, foi editada a Lei das
Sesmarias, pelo Alvará de 05 de outubro de 1795, que dispunha, dentre outros assuntos, da
vedação de concessão de sesmaria a quem já a tivesse, proibiu doação a estrangeiro,
determinava limites de áreas para concessão e instituiu registros para as sesmarias, sendo um
nas Juntas de Fazenda quanto as áreas rurais e outro nas Câmaras Municipais, para os
terrenos urbanos, sendo certo que dito alvará terminou por não ter aplicabilidade prática,
sendo então suspenso por decreto de 10/12/1796, sob o pretexto de falta de recursos para
fazê-lo cumprir. Em seguida, por Resolução de Consulta da Mesa do Desembargo do Paço
de 17/07/1822, o sistema foi extinto oficialmente pelo Príncipe Regente40.
39 op. cit. p. 355. 40 op. cit. p.356.
29
Com o fim das doações mediante sesmarias, a posse ou ocupação passou a ser
utilizada, sendo certo que no regime de sesmarias o sesmeiro recebia o título e em seguida
tomava posse da terra, já no caso da posse, o possuidor primeiro trabalhava a terra para
depois tentar receber o título.
Para finalizar-se essa abordagem acerca da história do direito de propriedade no
Brasil, para então abordar a questão do aparecimento do direito de superfície neste contexto,
cumpre acrescentar a tudo o que foi dito a mentalidade proprietária moderna é fruto de
influências principalmente francesa e alemã, tendo em vista a formação dos primeiros
juristas pátrios, influenciados pelas idéias da Europa, tendo a idéia de uma propriedade
individualista se incorporado ao Direito Divil, por intermédio dos civilistas que primeiro
sistematizaram a legislação civil, quais sejam, o Conselheiro Ribas e Augusto Teixeira de
Freitas, através da sua Consolidação das Leis Civis e do Esboço.
As contribuições deste último civilista foram muito importantes, principalmente no
tocante ao fato de não ter se limitado aos ideais individualistas de seu tempo, tendo
percebido que a propriedade constitui-se de dois elementos principais, um individual e
outro social, devendo ambos serem combinados de maneira a que o direito individual de
propriedade não se perca no direito social, podendo refletir as relações orgânicas existentes
entre o indivíduo e a sociedade.
Por outro lado, outra grande contribuição de Teixeira de Freitas, desta vez no
Esboço, consistiu na elaboração do conceito de domínio. O domínio perfeito,
caracterizado, como o direito real perpétuo de uma só pessoa sobre uma coisa própria, com
todos os direitos sobre sua substância e utilidade, conceito que revela a preocupação
sistemática do autor, nos moldes da escola dos pandectistas alemães, embora não tivesse
tido contato diretamente com a obra dos pandectistas, sendo evidente sua contribuição na
caracterização do direito de propriedade.
Não pode ficar esquecido outro importante jurista da época, que foi Lafayette
Rodrigues Pereira, autor da primeira obra brasileira de Direito das Coisas e grande
admirador de Savigny e Teixeira de Freitas e que também define o domínio como poder
absoluto, ilimitado e exclusivo.
Pode-se observar uma maior aproximação de nossos civilistas dos Oitocentos, uma
grande afinidade com a escola dos pandectistas, mais do que os juristas franceses, fato que
refletiu no direito de propriedade, principalmente na obra dos juristas, Coelho Rodrigues e
30
Clóvis Bevilacqua, Contudo, outros juristas seguiram mais o modelo francês, quando
insistem em definir a propriedade tomando por base o feixe de poderes contidos no domínio,
colocando o direito de propriedade como na livre faculdade de poder, usar e dispor dos bens
e de os demandar através das ações reais, como se observa nas obras dos juristas Trigo de
Loureiro, Felício dos Santos e Carlos de Carvalho, todos citados por Laura Beck Varela.41
Conforme afirma a citada autora, seja qual for a matriz doutrinária que tenha
influenciado os juristas do século XIX, o certo é que a caracterização do direito de
propriedade se dá por ser um vínculo com o poder da vontade, como direito absoluto,
ganhando roupagem abstrato-unitária própria dos códigos oitocentistas, afastando-se do
cultivo, seu fundamento de origem, fatos que influenciaram diversos juristas pátrios, na
elaboração de nosso direito de propriedade, mormente na redação do artigo 524 do Código
Civil de 1916, que passou a assegurar ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de
seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que, injustamente, os possua.
Ainda de acordo com a citada autora, a propriedade privada imobiliária brasileira é
fruto de um longo processo que marca a saída dos bens do patrimônio público régio, um
esforço gradativo de delimitação da esfera privada, em oposição ao que era público, ou seja,
as terras do rei, tendo sido o direito de propriedade então vigente, o resultado de uma
complexa construção, forjada em meio às tensões sociais e às condicionantes da
infraestrutura econômica e que serviu à consolidação do poder da elite local, que se
perpetuou sob a forma de grandes latifúndios.
De certa forma, este estado de coisas serviu para dinamizar a economia brasileira,
ante a crise do modelo escravocrata, a partir da segunda metade do século XIX, dando-se,
na linguagem de Laura Beck Varela, a absolutização do direito de propriedade no Brasil.
Fundamenta-se a distinção entre domínio público e privado, institui-se o registro
imobiliário e sua eficácia contra terceiros, surge a aquisição da propriedade pela via da
transcrição, surge a conceituação de domínio em termos abstratos, admitindo-se a
indenizabilidade da propriedade particular em caso de desapropriação. De maneira que
passou-se das sesmarias, forma de apropriação da terra condicionada ao dever jurídico do
cultivo, revogável pela coroa, tendo surgido por intermédio da Lei Agrária de D. Fernando
I, em 1375, como resposta à crise de abastecimento e queda demográfica que se seguiu à
Grande Peste de 1348.
41 VARELA, op. cit., p.228-229.
31
O regime das sesmarias acompanha as transformações da sociedade portuguesa,
tendo sido incorporado pelas Ordenações do Reino, com a manutenção do princípio jurídico
do cultivo, sendo certo que ao ser implantado no Brasil o regime das sesmarias adapta-se às
exigências de um modelo econômico escravocrata e latifundista, sendo certo que além do
dever jurídico de cultivo, outros deveres e condições são exigidos para sua concessão, tais
como a posse de escravos, a construção de engenhos de açúcar e fortificações militares,
tendo convivido com o fenômeno dos apossamentos, ou a posse sobre terras devolutas, que
a Lei de 1850 procurou coibir, realidade fundiária que prevaleceu até meados do séc. XIX.
De início, a existência de um grande número de sesmeiros, em situação irregular,
não respeitadores dos deveres de cultivo, medição e demarcação das terras, e outro
significativo número de posseiros, todos distantes no que concerne à titularidade jurídica,
de um direito de propriedade absoluto, preciso, exclusivo, que foi sendo construído ao
longo do século XIX, consubstanciando nas transformações sociais e nas mudanças de
ordem econômica que se deu por intermédio de debates jurídicos e assimilação do
pensamento europeu, mormente da França e da Alemanha.
2.4 Noções Históricas do Direito de Superfície
2.4.1 A Superfície no Direito Romano
Depois de termos feito algumas considerações sobre o direito de propriedade e,
finalmente sobre o direito de propriedade no Brasil, das sesmarias à propriedade moderna,
cumpre traçar o perfil histórico do direito de superfície, iniciando a pesquisa passando pelo
Direito Romano, seguindo pelo período Pós-Clássico, fazendo um estudo comparativo
entre as legislações de diversos povos, tais como o direito germânico, o direito italiano, o
direito francês, o direito inglês,o direito espanhol e, finalmente, o direito brasileiro.
O direito de superfície no direito romano é resultante de uma intensa evolução,
tendo em vista que no ius civile estava estabelecido o princípio superfícies solo cedit,
constante do D. 41, 1,7, 10. Segundo este princípio quem construísse em solo alheio perdia a
propriedade da obra imediatamente a favor do proprietário do solo, sem direito a indenização. 42
Conforme esclarecimentos de vários doutrinadores, tais como Ricardo Pereira Lira,
Frederico Henrique Viegas de Lima e Rogério Gesta Leal, que cuidaram do assunto, as
42 LIMA, Frederico Henrique Viegas de. O Direito de Superfície como Instrumento de Planificação Urbana, Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p.15.
32
origens do direito de superfície não são precisas e o mesmo se pode dizer quanto ao momento
em que começa se desenvolver, até chegar à configuração do período pós-clássico com a
caracterização do direito real. 43
Segundo a doutrina dominante, o direito de superfície apareceu utilizado nas
concessões privadas. Como direito real foi resultado de uma evolução iniciada por obra do
Pretor, ao conceder aos possuidores de edificações em solo alheio o interdictum de
superficiebus e uma ação de caráter real, a actio de superfície.44 Etimologicamente, a palavra
superfície forma-se por dois termos super e facere, que, num sentido rigoroso, quer dizer
tudo aquilo que está realizado, ou tudo aquilo que se levanta, por obra artificial do homem ou
da natureza sobre um plano horizontal. 45
Seguindo-se essa linha de raciocínio, pode-se afirmar que as relações existentes
eram obrigacionais, sendo certo que não existiu nenhuma proteção real ao concessionário,
uma vez que este não tinha o ius fruendi nem o ius utendi da propriedade, possuindo
somente um re frui licere, entendido como uma garantia para a utilização do solo, pois o ius
fruendi e o ius utendi pertenciam ao proprietário do solo.
Assim, o direito de superfície nos primeiro tempos é resultante da inalienabilidade
do solo público e de seu arrendamento, no qual o pagamento do solarium constitui um
elemento essencial para que se reconheça o domínio do Estado, não guardando nenhuma
semelhança com o agri vectigales devido pela constituição da enfiteuse. Era direito
obrigacional, sendo estabelecido, conforme afirma Ulpiano em D. 43, 18,1,1, mediante
contrato de arrendamento ou alienação, porque existia o princípio superfícies solo cedit, que
determinava que tudo que se incorporasse ao solo pertencia a seu proprietário. A alienação
também se movia dentro da esfera do direito obrigacional, não sendo negócio translativo do
domínio. Sendo arrendamento, este não guarda muitas características do arrendamento
tradicional, sendo bem mais um arrendamento anômalo. Por estes motivos, dentro do âmbito
do ius civile o direito de superfície não tinha autonomia.46
Conforme elucidações do professor Orlando Gomes 47 o direito de superfície foi um
instituto de origem romana que, na República, serviu para que os particulares se utilizassem
de terrenos pertencentes ao Estado, conservando este a propriedade do solo e aquele o 43 LIMA, Frederico Henrique Viegas de, op.cit., p-15. 44 LIMA, op. cit., p.16. 45 LIMA, op. cit., p.17. 46 LIMA, op. cit., p-19. 47 GOMES, Orlando. O Direito de Superfície, Jurídica-revista trimestral, nº 119, ano XVII. Out.-Dez – 1972, Biblioteca da PUC/Rio.
33
direito de uso que era transferível, direito que passou para a Idade Média com caracteres
próprios, tendo sido rejeitado e posteriormente recondicionando no direito moderno,
mormente no alemão, suíço e italiano.
Contudo, no tocante à origem do direito de superfície, remontando ao Direito
Romano, vale a pena mencionar as constatações de José Guilherme Braga Teixeira48
pontificando que no Direito Romano clássico vigorava o princípio superficies solo cedit (as
benfeitorias acompanham o solo), segundo o qual tudo quanto fosse acrescido ao solo, como
plantações e construções, passava a integrá-lo e ao seu dono pertencia, não podendo ser
objeto de transferência senão juntamente com o solo, uma vez que nessa época, imperava o
caráter absoluto do domínio.
Porém, com o passar do tempo, quando já se admitia entre os romanos a existência
de coisas incorpóreas (iura), foi que o caráter absoluto da propriedade abrandou-se, tendo o
domínio passado a sofrer limitações na sua plenitude, impostas por servidões, usufruto e
uso.
Com base nas informações do citado doutrinador, o imóvel que compreendia o solo
e suas acessões, ainda que sofresse limitações impostas pelos gravames mencionados,
continuava a pertencer, por inteiro e com exclusividade, ao dominus soli, a quem competia
dele dispor por inteiro, não se cogitando da possibilidade da existência de propriedade de
construção ou de plantação separada da propriedade do solo, ainda que em caráter temporário
e resolúvel, tendo a superfície se originado não de um ius in re aliena, mas no arrendamento
de longo prazo (locatio conductio rei).
O Professor Ricardo Pereira Lira49, citando Roberto de Ruggiero ensina que
romanistas e civilistas, estrangeiros e pátrios, notaram a presença do direito de superfície no
direito romano, embora os romanos tenham atribuído ao solo importância qualificada. Sendo
assim, até o direito justinianeu, o princípio superfícies solo cedit, ou seja, o princípio
segundo o qual a construção ou plantação feitos em solo de outrem acedia à propriedade do
dono do solo prevaleceu, durante um certo tempo, entre os romanos.
48 BRAGA TEIXEIRA, op.cit., p.16. 49 LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.18.
34
Tal situação, ensina o Professor Ricardo Lira,50 se deve ao fato de que prevalecia
entre os romanos a absoluta senhoria sobre a coisa, projetando-se o poder do proprietário ao
ponto máximo do desfrute.
Pelo princípio da acessão, duas coisas se unem fisicamente, formando um todo
unitário e indissolúvel, estando cada parte em relação de dependência uma com a outra, de
maneira que, em princípio, os romanos não conceberam a propriedade superficiária
separada, de maneira que terreno e construção ou terreno e plantação, eram vistos e
compreendidos como coisa única e não como coisas diferentes, embora estivessem
intimamente conexas, conforme registra o Professor Ricardo Lira.
Por outro lado, no caso do direito romano, no que se referia à plantação (plantatio)
havia duas situações bem distintas, ou seja, na primeira a planta era extraída e posta sobre
o solo de outrem ( positio), tendo-se a segunda quando a planta começava a enraizar-se
(coalitio).
Das lições de Ebert Vianna Chamoun 51 colhe-se que a superfície nasceu, no seio
do direito romano, como um mecanismo para corrigir determinadas conseqüências do
conceito romano de domínio que as novas transformações do instituto tornavam
antieconômicas.
Segundo o citado autor, os romanos entendiam que tudo que estava sobre o solo se
incorporava, necessariamente, por direito natural, ao seu proprietário, donde o princípio
superfícies solo cedi.
Com isso, conclui o citado autor que os romanos não concebiam a propriedade da
construção separada da propriedade do solo. Contudo, quando o número de propriedades
particulares se rarefez, introduziu-se o uso de conceder a particulares o direito de edificar no
solo público e gozar da construção, perpetuamente ou não.
Ebert Chamoun52, depois de tecer vários comentários acerca do direito de superfície
no sistema jurídico romano, ensina:
“O particular tinha apenas o uso do edifício e a faculdade de o transferir, devendo pagar um aluguel anual (solarium, pensio), ou uma quantia única. Mais tarde esse uso se generalizou entre as cidades e os particulares e, afinal, apenas entre estes. A superfície originava-se em geral de um contrato de locação do solo, ficando o superficiário armado com uma actio conducti contra o proprietário do edifício, o
50 LIRA, op.cit., p.2. 51 CHAMOUN, Ebert Vianna. Instituições de Direito Romano. 3ª ed. rev. e aumentada. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1957. p. 280. 52 Idem., Ibidem., p. 281.
35
qual era sempre o proprietário do solo. Contudo a superfície assumiu uma tal importância que o pretor concedeu ao superficiário um interdito especial, análogo ao uti possidetis, o interdito de superficiebus, que protegia a posse de quem quer que tivesse o gozo do edifício nec vi nec clam nec precário autorizado por um contrato de locação do solo.”
Pode-se referir, ainda, com base no citado doutrinador que posteriormente, se as
fontes foram fiéis no direito clássico, ou então somente no pós-clássico, deu-se ao
superficiário uma ação real, uma actio in rem, espécie de rei vindicatio utilis contra o
dominus. As ações oriundas das relações de vizinhança, segundo o Professor Chamoun
também foram estendidas ao superficiário ou contra ele, tornando-se assim a superfície um
direito real alienável e transmissível aos herdeiros.
Chamoun 53 considera que no direito justinianeu, o direito do superficiário é quase
absoluto, sendo certo que o superficiário não tinha obrigações perante o proprietário e o
pagamento do solarium parece não ser essencial à superfície. De acordo com o citado autor,
além da locação e da venda, a superfície pode constituir-se pela doação, quando o solarium é
objeto de renúncia, extinguindo-se pela destruição do imóvel, pela confusão dos titulares,
pelo resgate, prescrição extintiva, ocorrendo, o que se denominou usucapio libertatis, não
tendo a decadência aplicação na superfície.
De tudo quanto foi dito até agora, pode-se concluir que desde o direito romano
arcaico se possibilitava ao cidadão ou superficiário, o direito de construir um edifício em
solo público e, mais tarde, em solo particular, não próprio, mediante o pagamento de certa
quantia anual denominada solarium ao proprietário do terreno.
De início, por força do princípio superfícies solo cedit, tudo que fosse edificado
sobre o solo pertencia exclusivamente ao seu proprietário. No entanto, como mecanismo
para minimizar esse inconveniente, na época clássica, através de um contrato denominado
locatio conductio ou emptio venditio celebrado entre o dominus e o superficiário,
assegurava-se a este o direito de construir e de gozar, perpétua ou temporariamente, da
edificação.
Tal negócio jurídico fazia nascer entre o dominus e o superficiário um direito real,
ou seja, o ius in re aliena, contrariando, então o princípio do ius civile romano, tendo em
vista que o superficiário podia alienar o edifício que era transmissível por ato entre vivos ou
por causa da morte, na sucessão hereditária, podendo o titular do direito de superfície
53 CHAMOUN, op. cit., p. 281.
36
desfrutar de todos os poderes inerentes à propriedade, embora não fosse proprietário do
edifício, sendo tal direito assegurado pelo interdictum de superficiebus, consistente em tutela
erga omnes.
Conforme ponderações de José Rogério Cruz e Tucci 54 no período pós-clássico,
em decorrência de fatores econômicos, o instituto da superfície ganha importância.
Contudo, o citado autor pontifica que os romanistas não são unânimes quanto à natureza
jurídica da superfície nessa época do Direito Romano, pois ao que tudo indica, existem
sérias dúvidas de ordem doutrinária sobre se no direito justinianeu havia a propriedade de
edifício separada da do solo. Ademais, o direito real de gozo concedido ao superficiário
jamais poderia ser equiparado ao direito de propriedade, exclusivo do proprietário do solo.
Com relação ao surgimento do direito de superfície no Direito Romano, vale a pena
mencionar as ponderações do Professor Ricardo Pereira Lira55 a esse respeito:
“ Eis em última análise a causa do nascimento do direito de superfície: necessidade de adaptação às condições sociais dos novos tempos, dando-se paliativo às conseqüências antieconômicas do conceito romano de domínio. Assim, embora a genialidade dos romanos tenha formalmente preservado até a época justinianéia a inteireza do princípio da acessão, o espírito criador encontrou meios de conferir ao edificador em solo alheio o direito de gozo sobre o resultado de sua atividade. ”
Por fim, cumpre salientar que várias teorias foram propostas quanto a origem do
instituto da superfície. Contudo, conforme lições do Professor Ricardo Lira56, a origem do
direito de superfície está nas concessões de solo público a particulares, dando-lhes a
faculdade de nele construir e gozar da construção de modo exclusivo, sendo a relação
jurídica estabelecida entre concedente e o concessionário de caráter obrigacional,
pagando o segundo ao primeiro um solarium, com natureza vectigal e significava o
reconhecimento da propriedade do titular do solo público.
Posteriormente, o que ocorreu foi que a pressão do desenvolvimento edilício
determinou a expansão da superfície entre os particulares nos mesmos moldes da concedida
em solo público, podendo-se afirmar que o instituto da superfície acabou migrando do direito
público para o direito privado, por força da escassez das terras e das transformações sócio-
econômicas, pelas quais a sociedade passou.
54 CRUZ E TUTTI, José Rogério. A Superfície no Novo Código Civil. Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil. São Paulo: Juris Síntese, nº 22, p.99, mar-abr. 2003. 55 LIRA, op.cit., p. 20. 56 Idem., Ibidem., p.22.
37
2.4.2. O Princípio superfícies solo cedit e a evolução do Direito de Superfície
Conforme manifestações de Frederico Henrique Viegas de Lima57, dentro das
normas do ius civile, o direito de superfície não tinha uma autonomia própria, em virtude
do princípio superfícies solo cedit. A situação do princípio no ius civile era clara, tendo sua
origem no caráter de atratividade da antiga propriedade fundiária romana de onde vem a
expressão. Também não é resultante de nenhuma lei, mas é reconhecido e imposto ao
direito romano como a expressão de uma realidade intuitiva.
Durante a época do ius civile, a configuração do princípio começa a fortalecer-se,
sendo sua aplicação sempre ampliada, conforme nos demonstram os exemplos que podemos
encontrar em Gayo, D.43, 18,2; Paulo, D.44, 7, 44, e em Ulpiano, D. 9,2,50. 58
Ainda de acordo com o citado doutrinador, a partir desta orientação, tem-se no
âmbito do ius civile, a transferência do domínio da superfície e a constituição de um direito
real separado da propriedade do solo eram impossíveis. A impossibilidade de derrogação do
princípio superfícies solo cedit está fundada num antigo significado social, no qual a
propriedade em Roma era independente, exclusiva e perpétua, apesar de que, já num estágio
evolutivo posterior, esta começa a assumir uma nova finalidade econômica e social. 59
Assim, é inegável que o princípio começa a se revelar antieconômico em virtude de sua
inderrogabilidade e não alcança a autonomia conseguida pelo conceito individualista da
propriedade. 60
Desta forma, o direito de superfície desenvolve-se no direito romano, levando em
consideração a existência do princípio da acessão. Em todos os períodos do direito romano o
princípio está em vigor, chegando até a época pós-clássica, quando no direito justinianeu
começa a ser atenuado, mas continua existindo. 61
Conforme adverte o professor Ricardo César Pereira Lira 62 da propriedade do solo
decorria que tudo o que nele viesse a acrescentar pertenceria, por acessão, ao proprietário do
solo, sendo certo que essa rigidez de princípios se tornou inconveniente na medida em que
cresciam as cidades e se desenvolviam as obras públicas, ocorrendo que o solo romano
57 LIMA., op. cit., p. 20-22. 58 Idem., Ibidem., p. 20. 59 Idem., Ibidem., p. 21. 60 Idem., Ibidem., p. 21. 61 LIMA, op.. cit., p. 21. 62 op. cit., p. 20 e ss.
38
passou a ser propriedade de corporações e de uns poucos particulares, fatores esse que
viabilizaram o surgimento do direito de superfície.
Por isso o direito de superfície se desenvolveu como um direito pessoal, sob a
forma de arrendamento, chegando a caracterizá-la e concluir a melhor forma para a
inclusão das concessões superficiárias. 63
Para Frederico Henrique Viegas de Lima64 apud Pastori, é indiscutível que no ius
civile o direito de superfície não podia ser considerado um direito real, existindo por isto
uma tendência a atribuir à locatio do solo uma atribuição superficiária. Desta forma, a
locatio da superfície assume uma autonomia com respeito à locatio tradicional de solo,
sendo a partir disto que o instituto da superfície começa a delinear-se, constituindo num frui
da superfície com independência do gozo do solo.
Com a intervenção do pretor, reconhecendo o significado econômico que passou a
ter a locatio, começou a atribuir aos concessionários uma proteção real, através do
interdictum de superficiebus, depois é ampliado com a actio de superfície.
Dessa forma, o direito de superfície começa a deixar sua característica de direito
pessoal, passando a ter uma proteção real, sendo obra iniciada no direito pretoriano. 65
Por outro lado, a adaptação do direito de superfície para adequar-se à finalidade a
que se propunha, ou seja à possibilidade de conclusão de uma construção e que esta
construção venha a pertencer ao superficiário em propriedade separada do solo, é mais ampla
do que propriamente está contido na locatio no direito romano, sendo admitida a
constituição do direito de superfície por diversas formas de negócio jurídico. 66
A alienação como negócio jurídico constitutivo da superfície deriva-se de outro
estágio evolutivo do instituto, quando esta modalidade de negócio jurídico passou a ser
admitida também para a constituição do direito de superfície.67
3.4.3. A Superfície no Direito Intermédio
A influência do antigo direito germânico, que atribuía maior valor ao trabalho do
construtor do que ao direito de propriedade do solo, aliada ao interesse da Igreja em
legitimar as construções feitas sobre os terrenos de propriedade eclesiástica, deu grande
63 LIMA, op. cit., p.21. 64 PASTORI, Franco. La Superficie no Dirrito Romando apud VIEGAS DE LIMA, op.cit., p. 23. 65 Idem., Ibidem,. p. 23. 66 Idem., Ibidem., p. 25. 67 Idem., Ibidem., p. 27.
39
desenvolvimento à superfície no direito intermédio, conforme expõem os estudiosos do tema,
sem maiores discrepâncias.68
Conforme elucidações de José Guilherme Braga Teixeira69 nessa época a superfície
passou a ser constituída também sobre plantações, tendo se admitido a existência de
propriedade da construção e da plantação separada da propriedade do solo.
Argumenta o citado autor que por se admitir a propriedade separada de construções
e plantações em diversos estatutos e costumes itálicos, o renascer dos estudos romanísticos,
principalmente por influência da Escola de Bolonha, fundada em 1808, fez com que muitos
desses costumes e estatutos reafirmassem a regra romana de que superfícies solo cedit.
De outro lado, pondera o citado autor que o feudalismo por ter dado importância e
aplicação à superfície e, principalmente, à enfiteuse, contribuiu significativamente na
concepção da doutrina do domínio dividido, fragmentado em direto ou iminente
(pertencente ao dominus soli) e útil (cabente ao enfiteuta) e que deu origem à escravidão do
homem à terra, criando a classe dos servos da gleba, formada pelos enfiteutas e
subenfiteutas dos latifúndios feudais. 70
Fazendo um breve comentário acerca do surgimento do instituto da superfície,
Marise Pessoa Cavalcanti71 esclarece que embora o direito de superfície tenha surgido no
direito romano-helênico, pós-clássico ou justinianeu, como mecanismo de abrandamento do
princípio superfícies solo cedit, foi no Direito Intermédio que a superfície teve grande
desenvolvimento, principalmente por força do direito germânico que valorizava o trabalho
do construtor em detrimento da propriedade do solo.
De outra parte, o direito canônico por expressar interesse da Igreja em legitimar as
construções feitas em seus terrenos também influenciou no desenvolvimento do referido
instituto. Segundo a citada autora, o fato do desconhecimento pelos povos germânicos, a
respeito do princípio romano da acessão, aliada à doutrina do domínio dividido originária do
feudalismo, redundou na fragmentação do domínio em direto ou iminente (dominus soli) e
útil (enfiteuta ou superficiário), passando o superficiário a ter domínio útil, estendendo-se o
objeto da superfície às plantações.
68 TEIXEIRA, op. cit., p.23. 69 Idem., Ibidem., p. 23-24. 70 Idem., Ibidem., p. 24. 71 CAVALCANTI, Marise Pessoa. Superfície Compulsória: Instrumento de Efetivação da Função Social da Propriedade, Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p.1-10.
40
Assim, o direito superficiário deixou de ser um ius in re aliena, como era no direito
justinianeu, para tornar-se, no direito intermédio, uma verdadeira propriedade paralela à do
dominus soli, pois o superficiário passou a ter o domínio útil, tendo sido o instituto
largamente utilizado nas plantações.
Cumpre ressaltar que o Direito Canônico também se serviu amplamente da
superfície para legitimar as construções realizadas sobre terrenos de propriedade eclesiástica
e para explorar suas terras incultas, mediante concessões superficiárias ad plantandum dadas
pela Igreja, tendo por característica conterem a ressalva que impedia serem as edificações e
as plantações alienáveis pelo superficiário.
Os abusos a que deram causa a superfície e a enfiteuse tornaram-nas extremamente
odiosas, pois escravizaram o homem à terra, em razão dos absurdamente altos preços dos
censos que deviam pagar os enfiteutas e superficiários, e, principalmente, os inúmeros e
incontáveis subenfiteutas e subsuperficiários. Esse ódio tornou-se uma bandeira dos
revolucionários franceses, que foi desfraldada mesmo além das fronteiras gaulesas. A
Revolução Francesa baniu tanto a enfiteuse quanto a superfície, restaurando a unidade do
ius proprietatis ( uti + frui + consummere) na pessoa do dominus soli.
2.4.4. O Instituto da Superfície no Direito Moderno
O professor Ricardo Pereira Lira72 cuidou, de forma bem aprofundada da
questão ligada ao direito de superfície e o direito comparado, tendo abordado o instituto da
superfície no âmbito dos direitos francês, alemão, italiano, inglês, austríaco, suíço, holandês
e belga, soviético, espanhol, no direito português e argentino, senão vejamos.
Para uma melhor abordagem do tema o citado autor tratou de dividi-lo em três
grandes grupos, cuidando primeiro daqueles que disciplinam expressamente o instituto,
como por exemplo, o direito alemão, o direito italiano, o direito espanhol, o direito holandês,
o direito belga, o direito suíço.
Num segundo grupo o autor relacionou aqueles povos em que o direito de superfície
é resultado de construção doutrinária, como o direito francês e o direito italiano ao tempo do
Código Civil de 1865.
De outra feita, num terceiro agrupamento posicionou os que não reconhecem a
existência do direito de superfície, prevalecendo nesses ordenamentos o numerus clausus
72 LIRA, op. cit., p.31-52.
41
para os direitos reais, com o banimento do instituto, como a Argentina e o Brasil ao tempo
do Código Civil de 1916.
Segundo o professor Ricardo Lira 73 o direito francês é de ser incluído no segundo
dos grupos supracitados, por ter consagrado o direito de superfície, em razão da
manifestação de seus juristas.
Por outro, salienta o citado autor que inexiste uma regulamentação genérica do
direito de superfície no direito francês, tendo ele despontado de interpretação doutrinária do
artigo 553 do Código Civil francês ao estatuir que as construções, plantações e obras
presumivelmente pertencem ao proprietário do solo se o contrário não for provado, sendo o
superficiário proprietário das construções e plantações.
Segundo o professor Ricardo Lira 74, o Código Civil alemão foi uma das primeiras
codificações a regulamentar expressamente o direito de superfície, nos seus §§ 1.012 a
1.017, esclarecendo com base em Arminjon-Nolde e Wolf, que o direito de superfície se
tornou um dos meios a serem utilizados pelo movimento da reforma imobiliária, iniciado por
Adolf Damaschke, para resolver o problema da concentração da propriedade em mãos de
particulares, sendo a cidade de Frankfurt-sur-Mein a primeira a dar o exemplo seguido pelos
alemães, por ter tido o privilégio de abandonar a prática funesta da venda de extensas glebas
às empresas de construção e outros especuladores que tratavam a terra como simples
mercadorias.
A prática adotada consistiu em não mais vender terrenos destinados à construção
de moradias.
Veja-se, a seguir, o tratamento dado ao direito de superfície, através de um estudo
comparativos entre as legislações de diversos povos.
2.4.4.1. Direito Germânico
Conforme esclarece Frederico Henrique Viegas de Lima 75 somente com as
invasões dos povos bárbaros, passa-se a conhecer a propriedade privada dos solos de
cultivos, já não sendo estas designadas pela capacidade de produção de cada pessoa.
Estabelecem-se cotas iguais a cada um, convertendo um simples direito de desfrute em
propriedade.
73 LIRA, op.cit., p.32 74 Idem., Ibidem., p. 36-37 75 VIEGAS DE LIMA, op. cit., p.38-40.
42
Desta forma estabeleceram-se as relações econômicas nos povos germânicos antes
do contato com a cultura romana. Não existia uma propriedade privada, nem um desfrute de
uma parcela de terras em exclusividade. A todo ano eram designados os direitos de
utilização de cada pessoa, não constituindo um direito de exploração em longo prazo por um
tempo determinado, não existindo, portando, o princípio do trabalho.
Para Simoncelli, citado por Frederico Henrique Viegas de Lima,76 baseada no
princípio do trabalho, em oposição ao princípio romano da acessão, a propriedade era
adquirida como compensação à obra realizada num terreno alheio. Contudo, a partir do
império franco, estas relações começam a sofrer modificações. A cultura germânica põe-se
em contato com a cultura romana, modificando as características das explorações nômades e
pratenses para uma utilização intensa da terra. Passam a existir as propriedades de terras
em separado, desaparecendo a igualdade até então existente na posse imobiliária.
Pelas conquistas, as terras vêm a ser de propriedade do Rei, que as concedia, por
livre arbítrio, a determinadas pessoas, a fim de que estas contratassem com os demais, seus
cultivos. Tais senhores, chamados de feudais, eleitos pelo Rei, concediam as terras a
particulares nas condições de precarium, isto consistindo, na Alemanha, a principal forma
de concessão durante séculos. 77
Para o citado autor, dentre os censos, o principal e o que ganhou um significado
maior foi o censo livre. Nele, somente era necessário o pagamento do cânon, de
reconhecimento, depois convertido em hereditário, sendo certo que através destes censos, a
partir do século XII realizou-se a colonização do interior. Posteriormente, já no século
XIII, aparece, pela primeira vez, uma palavra para designar “propriedade”, eingentum, na
cidade de Colônia em 1230.
De acordo com Windscheid, é a partir das concessões feudais que aparecem, na
vida jurídica germânica, os direitos de desfrute, distintos das concessões romanas. Com as
concessões de precário, variáveis de pessoa a pessoa, cria-se um direito real. Suas relações
baseavam-se na vontade de uma das partes, quando se referiam a um imóvel. Já a superfície
só passou a ser conhecida no direito germânico a partir da influência romana, por referir-se
a uma edificação urbana. 78
76 LIMA, op.cit., p.38. 77 Idem., Ibidem., p. 39. 78 Idem., Ibidem., p. 40.
43
Segundo Marise Pessoa Cavalcanti79, o Direito Alemão foi um dos primeiros a
regulamentar, expressamente, o instituto da superfície, no BGB, de 1896, utilizando-a como
um instrumento para reforma imobiliária na época.
Sendo assim, os terrenos públicos, em vez de serem alienados, tornavam-se objeto
de superfície viabilizando a locação social, através de associações de utilidade pública, ou a
construção da casa própria para as classes trabalhadoras e média. Essa prática, por óbvio,
tinha por objetivo coibir a especulação imobiliária, tornar o Poder Público beneficiário da
mais-valia, além de poder influenciar na maneira de construir.
Terminada a Primeira Guerra Mundial, vislumbrou-se o direito de superfície como
um meio de fornecer aos ex-combatentes um modo de adquirir moradia própria, criar
habitabilidade. A reforma de 1919, aprimorando o texto do BGB, teve por finalidade
propiciar um caráter mais prático e efetivo à superfície, tornando-a mais comercial, através
de previsões úteis no plano prático, evidenciando a capacidade hipotecária desta, tendo sido
o instituto da superfície no Direito Alemão limitado-se às edificações.
O direito de superfície alemão é necessariamente alienável, transmissível pela via
sucessória. Não pode ter por objeto uma plantação, inexistindo a superfície sob a modalidade
vegetal.80
Quanto a este aspecto do direito de superfície alemão vale a pena transcrever as
observações feitas por Rima Goraieb81 , verbis:
“ Quanto ao conteúdo, o direito de superfície é o direito que visa ter uma edificação, em sua totalidade, sobre um fundo alheio. Não pode ter por objeto plantações, nem apenas partes de um edifício. Neste particular há grande diferença do BGB, sob cujo regime tudo o que era convencionado entre as partes tinha apenas caráter obrigacional, enquanto sob a Ordenança, fazem parte do conteúdo do próprio direito de superfície e têm força real. O direito de superfície é um direito, não uma coisa, porém é tratado como uma coisa, e precisamente como uma coisa imóvel, de acordo com o § 1.017 ap. 1C.c. do § 11 do Regulamento. É um fundus jurídico”.
2.4.4.2. Direito Italiano
No direito intermédio italiano, as relações de propriedade podem ser nitidamente
separadas em dois grupos, estando um grupo composto pela propriedade urbana, onde
marcadamente se encontra a influência germânica da propriedade separada e o outro está
composto pela propriedade rústica, influenciada pela regra romana da acessão, época
79 CAVALCANTI, op.cit., p.22-23. 80 LIRA, op.cit., p. 41. 81 GARAIEB, Rima. O direito de superfície. 1980. Dissertação ( Mestrado em Direito) – Departamento de Ciências Jurídicas, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. p.81.
44
caracterizada pela tradição romana com o princípio da acessão e a recepção germânica da
propriedade separada.
Como afirma Frederico Henrique Viegas de Lima 82 a partir do Estatuto das
cidades italianas, renasce a influência romana e, em particular, ressurge o princípio romano
da acessão. Sem embargo, o superfícies solo cedit vem a ser muito mais uma regra
destinada à propriedade rústica, enquanto a propriedade urbana continuava sendo
influenciada pelos princípios germânicos. Segundo o citado autor, no Estatuto de Bologna, o
concessionário vem a ser caracterizado como o titular do domínio direto, existindo a
propriedade separada da edificação, sendo o concessionário obrigado a pagar um cânon. O
direito consuetudinário e o Estatuto da cidade de Bologna transformaram o ius superficiei
romano, concebido como um ius inre aliena, num efetivo direito de propriedade para a
construção.
Por outro lado, existiam dois direitos análogos ao direito de superfície romano. Um
era ius intraterrae, relativo às edificações urbanas, estando regulado no estatuto da cidade
de Florença e aplicável especialmente aos comerciantes desta cidade. Outro, o ius de
gazagá, utilizado pelo Estado Pontifício a fim de realizar suas concessões. 83
Os ius intraturai representava um direito concedido ao comerciante estabelecido e
que desenvolvesse sua atividade em determinado local arrendado. Este comerciante não
poderia ser expulso a não ser pelos modos especialmente determinados pelo estatuto,
podendo atribuir tal direito a uma terceira pessoa. O ius de gazagá era utilizado pelo Estado
Pontifício, visando ajudar aos hebreus impossibilitados pela lei de serem proprietários de
imóveis. Assim, por estas concessões, eles tinham uma posse por longo prazo. Pelo direito
podiam habitar, conservar e dispor do bem, sempre que para isto efetuassem o pagamento
de uma pensão impossível de ser reajustada. A concessão permitia realizar a venda, a
hipoteca, o subarrendamento e a transmissão aos herdeiros por parte do concessionário. 84
O ius de gazagá suscita dúvidas quanto à sua natureza jurídica, sendo que alguns
autores o assemelhavam a um ius in re aliena, enquanto outros à enfiteuse, sendo certo que
de acordo com Coviello, citado por Frederico Henrique Viegas de Lima, tratava-se de um
direito muito semelhante ao direito de superfície romano. Em ambos existe a impossibilidade
de existência da propriedade superficiária. No direito romano tal impossibilidade resultava
82 LIMA, op. cit., p. 43. 83 Idem., Ibidem., p.43. 84 Idem., Ibidem., p. 43-44.
45
do princípio superfícies solo cedit. Já no ius de gazagá o impedimento advinha da própria
condição dos hebreus, que estavam legalmente proibidos de possuírem a propriedade de
terras. 85
Para Rima Goraieb 86 o silêncio do Código Civil Italiano de 1865, no tocante ao
direito de superfície, causou o surgimento de polêmicas entre os juristas e doutrinadores,
tendo versado, a princípio, muito mais sobre sua existência ou sobrevivência, do que
propriamente sobre suas características, tendo em vista tratar-se de um instituto vigente
tanto nos costumes, quanto nos Estatutos de várias cidades italianas até a promulgação do
Código, tendo sido reconhecido o direito de se obter uma propriedade de plantações, ou
construções sobre ou sob o solo , distinta da propriedade do terreno,derivando desse direito a
possibilidade de alienação separada.
Relativamente ao princípio da acessão, o Código estabelecia que, tudo o que se
incorporasse ou se unisse à coisa, pertencia ao proprietário dela (art. 446), tendo havido a
presunção de que toda obra ou plantação, realizada sob ou sobre o solo, pertencia ao
proprietário. 87
Contudo, foi com base no artigo 448, igual ao artigo 553 do Código Civil Francês,
que teve início a indagação quanto a admissibilidade do direito de superfície e sua natureza,
sendo certo que a exemplo da doutrina francesa, a italiana acabou admitindo a propriedade
superficiária, ou seja, um direito de propriedade só em relação aos bens superficiários,
separado do direito de propriedade do solo, e com esse coexistente, conforme no informa
Rima Goraieb.88
Conforme a citada autora, o reconhecimento da propriedade superficiária foi feito
pela maioria dos escritores, dentre eles, Bianchi, De Filippis, Lomonaco, Ricci, Coviello e
Lucci, divergindo Gabba dessa corrente de civilistas adeptos da tese da existência da
propriedade superficiária.
Concluiu-se ser o direito de superfície distinto do direito sobre as construções,
perdurando mesmo se o edifício fosse destruído e podia ser alienado a qualquer momento.
Por outro lado, discutia-se o limite desse direito, tanto em relação ao espaço aéreo, quanto ao
85 LIMA, op. cit., p. 44. 86 GORAIEB, op.cit., p. 91-ss. 87 Idem., Ibidem., p. 92. 88 Idem., Ibidem., p. 92.
46
subsolo, embora se preocupassem muito mais em estabelecer limites em relação a este, do
qual percebiam melhor valor econômico, do que em relação ao espaço aéreo.89
No tocante às suas principais características, ressalta Rima Goraieb que a
propriedade superficiária, como outra qualquer propriedade, continha o direito de gozar e
dispor da coisa de maneira mais absoluta, sendo esse o seu objeto, nos termo do art. 436.
Por outro lado, o proprietário do solo dele podia dispor, bem como do subsolo, desde que
respeitasse o direito outorgado ao superficiário, podendo exigir dele o cânon superficiário.
Quanto ao superficiário, este detinha o direito de usar e gozar da superfície, sem as
limitações impostas ao usufrutuário, bem como a faculdade de dispor e gravar, podendo usar
dos meios judiciais para defendê-la.
Apesar de não vir expressamente mencionado no Código Civil de 1865, o direito de
superfície foi reconhecido e admitido pela doutrina, sendo posteriormente consagrado pela
jurisprudência, com fundamento no artigo 448 que previa a possibilidade de se provar a
propriedade de um imóvel separada da propriedade do solo sobre o qual se acha construído,
apesar das dúvidas e debates provocados, levando grande parte da doutrina a reconhecer a
possibilidade de se criar legalmente um direito de superfície, ainda que o Código tivesse
adotado o numerus clausus para os direitos reais.
Contudo, conforme aponta Rima Goraieb, com o novo Código Civil de 1942, o
direito de superfície foi acolhido e regulamentado, exceção feita quanto ao direito de
superfície sobre plantações. 90
O Professor Ricardo Lira diz claramente que, o Código Civil italiano de 1942, no
tocante à superfície, expressa o esforço jurisprudencial e doutrinário anteriormente tratado,
ao tempo da codificação precedente, sendo resultado de longa e sistemática tarefa
construtiva. Para o citado autor, no Código Civil italiano vigente, o direito de superfície está
expressamente regulamentado em seus artigos 952 a 956, sob o título De la Superfície, sendo
que o seu artigo 952 cuida da propriedade separada superficiária gerada por cisão. 91
Já em seu artigo 955, disciplinou o direito do superficiário fazer e manter
construção no subsolo de outrem, determinando a aplicabilidade em tal caso das regras de
direito relativas à construção sobre o solo.
89 GORAIEB, op.cit., p. 94. 90 Idem., Ibidem., p.97. 91 LIRA, op. cit., p. 43.
47
Por fim, cumpre acrescentar que no Direito Italiano, o direito de superfície surgiu,
primeiramente, como fruto de construção doutrinária, sendo em seguida, prevista,
expressamente, no Código Civil de 1942, artigos 952 a 956, não tendo cuidado da
constituição de superfície tendo como objeto plantações, mas contemplou as obras
realizadas no subsolo, seguindo o modelo do Código Civil Suíço.
No tocante à impossibilidade de constituição de superfície sobre plantações vale a
pena mencionar passagem da obra de Alberto Trabucchi 92, verbis: “Nom è invece ammessa
la proprietà separata delle piantagioni. La esclude nettamente l’art. 956, perché il
legislatore há ritenuto che la promiscuità in questa matéria sai fonte di litigi e dannosa
all’agricoltura. Le eventuali piantagioni sul suolo altrui sono regolate dalle norme sulle
accessioni degli art. 934 e ss. (supra, § 182). ”
Sendo assim, o Código concebe o direito de superfície como forma especial de
propriedade, ou seja, a propriedade superficiária, sem defini-la ou regulamentá-la, dando
apenas normas básicas para sua constituição, determinando seu objeto (construção),
proibindo que recaia sobre plantações, conforme se infere de seu artigo 956.93
Por derradeiro, cumpre salientar que no artigo 955 94o legislador italiano cuidou do
direito de fazer e manter construção no subsolo de outrem, determinando que as regras de
direito relativas à construção sobre o solo se lhe aplicam.95
2.4.4.3. Direito Francês
Dando um visão sistemática do direito de superfície na França, o professor Ricardo
Lira 96 arrola o direito francês dentre aqueles cujo direito de superfície foi resultado de
construção doutrinária, como exceção ao princípio da acessão, tendo consagrado o direito
superficiário, em virtude do trabalho doutrinário de seus juristas.
No direito francês, as concessões de terras originaram-se das tenures, depois da
época Carolíngea, os censos se transformaram e evoluíram, partindo de uma concepção
restritiva, reconhecendo-se direitos mais amplos aos concessionários. 97
92 TRABUCCHI, Alberto. Istituzioni di Diritto Civile, ventitreesima edizione, aggiornata com le riforme. Padova: CEDAM, 1978. 93 Art. 956 Divieto di proprietà separata delle pinatagioni. Non può essere constituita o transferita la proprietà delle piantagioni (821) separatamente dalla proprietà del suolo. 94 Art. 555 Construzioni al disotto Del suolo. Lê disposizioni precedenti (art. 954) si applicano anche nel caso in cui e concesso il diritto di fare e mantenere construzioni al disotto del suolo altrui (840). 95 LIRA, op. cit., p. 43-44. 96 IDEM., Ibidem., p. 32. 97 LIMA, op. cit., p.44.
48
As tenures configuravam-se através de diversos tipos e classes, resultantes de
contratos completos, podendo, também, ser regionais em virtude da analogia com os censos.
Assim, cada região apresentava uma espécie própria de tenure, sendo certo que na
Normandia, o bourgage; Bretanha, o bail à domanie ou à convenant, enquanto na Alsacia
existia o bail hereditaire, em Bourbonnais e Nivernais, o bourdelage e em Artois, em
Hainaut e Flandres, o écheninage. 98
O Código Civil Francês de 1804, não contempla o instituto da superfície, podendo-
se afirmar que por trabalho da doutrina, a superfície decorre, implicitamente, do art. 553, o
qual estabelece, nos termos do já citado Código Civil Italiano, uma presunção relativa de que
as construções, plantações e obras são presumidamente pertencentes ao proprietário do solo,
se o contrário não for provado, o que consagra a possibilidade de uma divisão horizontal
entre proprietários sobrepostos. 99
Conforme ponderações do Professor Ricardo Lira100, citando Josserand, o direito
de superfície desponta implicitamente do art. 553, a teor do qual as construções, plantações e
obras presumivelmente pertencem ao proprietário do solo se o contrário não for provado,
entendendo a doutrina francesa que se o proprietário pode dispor da coisa por partes, tem a
faculdade de alienar “le dessus”, conservando “le tréfonds et la surface” e, sendo assim, em
direito francês, o superficiário é proprietário das construções e plantações.
Em que pese não ser objeto de disposições específicas do Código Civil Francês, o
direito de superfície existe na França não só como instituição de fato, mas também de
direito.
O direito de superfície derroga o princípio da acessão, separando a propriedade dos
bens superficiários da do solo, inexistindo comunhão, co-propriedade, sendo cada um
proprietário de coisas diferentes.
Pondera Rima Goraieb101, citando Moreira Alves, que a omissão do Código
Napoleônico em relação ao direito de superfície, apesar de o direito consuetudinário
reconhecê-lo,deve-se à falta de simpatia com que deviam ser vistos institutos como o censo,
a enfiteuse e a superfície depois do rompimento de vínculos vindos do feudalismo, tendo
98 LIMA, op. cit., p.45. 99 CALVACANTI, Marise Pessoa. op.cit., p. 26. 100 LIRA, op.cit., p. 34. 101 GORAIEB, op. cit., p.46.
49
adotado em seu artigo 544 o sistema romano da propriedade individual, com seu caráter
absoluto, exclusivo e perpétuo.
Para a citada autora, ao aplicar esses princípios à superfície, não implicava em
admitir a coexistência de dois direitos sobre o mesmo objeto, pois o direito francês
considera que o direito de propriedade e o de superfície recaem sobre objetos distintos, quais
sejam, solo e construção.
Não tratando expressamente do direito de superfície, o código deu margem, no
entanto, a que a doutrina e a jurisprudência o abrigassem e desenvolvessem, em decorrência
do tratamento dado à acessão, que não tem um valor imperativo e absoluto como no Direito
Romano, mas uma concepção muito particular: é a acessão reputada uma presunção
refutável. 102
Em seu artigo 546 consagra a regra geral do princípio da acessão, cuidando das
coisas imobiliárias através dos artigos 551 e 552, sendo que as construções são tratadas pelo
artigo 553.
2.4.4.4 Direito Inglês
Na Inglaterra, as concessões de terras têm sua origem no sistema feudal, com as
conquistas normandas, evoluindo com o costume e o desenvolvimento das decisões dos
tribunais, formando o common law. O Rei distribuía as terras aos lords e estes
concretizavam as concessões para a população. Com isto, criaram-se as relações de tenure
entre o lord e o camponês, sendo esta uma relação de serviço. Pela utilização da terra, os
camponeses eram obrigados a prestar serviço aos lords, em geral, no âmbito militar.
Também, em tais relações permitia-se o subarrendamento das terras, quando os lords
consentiam. 103
É a partir dos leases que a terra começa a ter significado na Inglaterra. O contrato
de lease era uma concessão, cujo objeto visava a concluir uma pequena construção ou
exploração agrícola. Nela, o concessionário obrigava-se a pegar uma renda durante toda a
concessão, e também podia realizar um sublease. 104
No direito inglês há um conjunto de contratos superficiários, reunidos sob a
denominação comum de building-lease, criados pela prática, existentes até a época de hoje,
102 GORAIEB, op. cit., p. 47. 103 LIMA, Frederico Henrique Viegas de.op.cit., p. 48. 104 LIMA, op. cit., p. 49.
50
podendo-se distinguir duas formas de building-lease. Na primeira, a mais rara, o
proprietário do terreno faz o parcelamento, arruamento, canalização, para em seguida
construir e vender as casas. Na outra, entrega o terreno a um empresário, que realiza as
obras e infra-estrutura, e os contratos, próximos do tipo superficiário, assumem forma
diversificada. Em termos genéricos, há uma cessão, sob a forma de lease, mediante o
pagamento de cânon, com o prazo máximo de noventa e nove anos e especificação de
classe e condições principais das edificações a serem levantadas. A eficácia do lease não
tem começo senão com a construção das casas, de forma que, enquanto isso não ocorre, há
uma posse precária (tenancy at will), mera expectativa de lease, gerando as obrigações de
edificar e pagar o cânon, tuteladas por ação destinada à rescisão do contrato por
inadimplemento. Completada a construção o direito real surge, e o lease-holder pode opô-lo
eficazmente contra terceiros, inclusive contra o novo adquirente do solo. Vencido o prazo, o
imóvel com as construções reverte ao proprietário (landlord).105
Para Marise Pessôa Cavalcanti106 a utilização dos building-leases , ou seja, conjunto
de contratos superficiários utilizados na Inglaterra justifica-se sua larga aplicação,
principalmente em Londres, uma vez que nesta cidade o solo pertence a alguns poucos
magnatas.
É partir dos leases que a terra começa a ter significado na Inglaterra. O contrato de
lease era uma concessão, cujo objeto visava a concluir uma pequena construção ou
exploração agrícola. Nela, o concessionário obrigava-se a pagar uma renda durante toda a
concessão, e também podia realizar um sublease. Os contratos de leases concretizavam-se
de diversos modos, porém até 1926, os leases mais comuns eram os perpetually renewable
leases. Como seu próprio nome caracteriza, eram leases contratados para a perpetuidade,
sem tempo definido e, ao final da concessão podiam ser renovados. Pelo law of property act
of 1922, todos os leases perpétuos foram reduzidos a 2.000 anos, contados da data de seu
início, sendo incluídos neste prazo também os subleases. Depois de 1926, com a edição do
law of property act of 1925, todos os leases deveriam ter um tempo designado de concessão,
sendo comum os de 99 ou 999 anos.107
105 LIRA, op.cit., p. 44. 106 CAVALCANTI, op. cit., p.27. 107 VIEGAS DE LIMA, op. cit., p.49.
51
2.4.4.5. Direito Espanhol
A respeito do direito de superfície na Espanha, Frederico Henrique Viegas de
Lima108, esclarece que no direito espanhol antigo, não se podia dizer que o direito de
superfície se encontrava regulado, não existindo nenhuma disposição semelhante ao
interdictum de superficiebus romano, de forma que o direito de superfície encontrava-se
absorvido pela enfiteuse.
Nas Siete Partidas, que seguem o direito romano, não se pode encontrar nenhuma
regulamentação específica do direito de superfície. Seus preceitos se encontram, uma vez
mais, em conjunto com a enfiteuse e com os arrendamentos.109
De acordo com Gregório Lopes, apud Frederico Henrique Viegas110, não é
considerada válida a venda do solo quando a finalidade de compra reside nos acessórios do
terreno e não no solo em si mesmo. Também, se houvesse a obrigação de pagar uma renda
pelo solo, passando à destruição da casa, olival ou vinha, não subsiste a obrigatoriedade do
pagamento, mesmo quando existe o terreno.
No tocante à denominada Lei 74 de Touro e Disposições Posteriores, pode-se
afirmar que ao contrário do que ocorre nas Partidas em que o direito de superfície vem
absorvido pela enfiteuse, nas Leyes de Toro, mais precisamente na Lei 74, não se pode
duvidar de que se trata de um direito de superfície, ao afirmar que “quando concurriren em
sacarla cosa vendida por el tanto, el pariente mas propinquo com el señor de directo
dominio, o con el superficiario o con el que tine parte em ea, porque era comum prefierarle
en dicho retracto el señor de directo dominio y el suerficiario y el que tiene parte em ea a
pariente mais propinquo.” 111
O referido dispositivo legal faz menção para situação em que na venda de coisa a
parente próximo do senhorio do domínio direto, do superficiário ou de quem tenha parte na
aludida transação, sendo certo que em tal venda terá preferência o parente mais próximo,
sendo certo que existe uma ordem estabelecida na referida lei para o exercício do direito de
preferência, podendo haver pagamento de cânon superficiário, possibilitando a existência de
regulamento autônomo da superfície, podendo esta se encontrar também debaixo das
normas da enfiteuse.
108 LIMA, op.cit., p. 50. 109 Idem., Ibidem., op.cit., p.50. 110 Apub, LIMA, op.cit., p.52. 111 LIMA, op.cit., p.52
52
Conforme averba o professor Ricardo Lira112, o Código Civil espanhol não
regulamentou de forma substantiva o direito de superfície, tendo-o regulamentado de forma
implícita, fazendo alusão expressa à lei hipotecária em seu artigo 107, nº 05, para o fim de
declarar suscetível de hipoteca e de natureza real o direito de superfície, sendo certo que a
ausência de regulamentação mais precisa ocasiona dificuldades para se examinar com
profundidade o conteúdo, estrutura e natureza do direito de superfície, tendo o citado
professor afirmado ser discutível sua autonomia e existência diante do mencionado artigo
1.655, que ao disciplinar o regime dos foros e quaisquer outros gravames de natureza
análoga, com referência implícita ao direito de superfície, termina por determinar a aplicação
ora das normas pertinentes ao arrendamento, ora concernentes à enfiteuse.
Contudo, é na denominada Lei do Solo de 1956, regulamentada pelo Decreto de 17
de março de 1959, que introduziu modificações no Regulamento Hipotecário Espanhol,
que se desenvolveu modalidade urbanística de direito de superfície, seguindo o moderno
modelo para o instituto, conforme elucida o professor Ricardo Lira.113
Sobre o pouco interesse dos juristas espanhóis quanto ao desenvolvimento do direito
de superfície naquele país, vale a pena citar passagem interessante da obra de Rima
Goraieb114 dando conta de que o direito de superficiário espanhol preservou valores e
instituições da Idade Média, como o regime dos Senhorios, modo de povoar as terras sem,
no entanto, aliená-las, uma vez que o ocupante deveria se retirar tendo o direito de levar
apenas os bens móveis. Por outro lado, a grande utilização do regime dos censos como
forma de obtenção de rendas sobre imóveis acabava por desempenhar o papel atribuído ao
direito de superfície, sendo questão de dúvida por parte de alguns doutrinadores a existência
do instituto da superfície.
Por outro lado, o Código Civil Espanhol em vigor desde 1º de maio de 1889,
seguindo o modelo francês, não regulamentou o direito de superfície, tendo estabelecido
como princípio geral que o dono de um terreno é também o proprietário das superfícies e do
subsolo, em seu artigo 350115 e, quanto às acessões, o artigo 353116 estabelece que a
propriedade de um bem dá direito por acessão à propriedade de tudo quanto se une ou 112 LIRA, op.cit., p.49. 113 Idem., Ibidem., p.50. 114 GORAIEB, op.cit., p.65- ss. 115 Artículo 350 – El proprietario de un terreno es dueño de su superficie y de lo que está debajo de ella, y puede hacer em él obras, plantaciones y excavaciones que lê convengan, salvas las servidumbres, y con sujeción a lo dispuesto em lãs leyes sobre Minas y Aguas y em los reglamentos de policia.. 116 Artículo 353 - La propiedad de los bienes da derecho por accessión a todo lo que ellos prodecen, o se les une o incorpora, natural o artificialmente.
53
incorpore a ele, natural ou artificialmente, sendo admitida a presunção relativa de que as
acessões artificiais são realizadas pelo proprietário e às suas expensas (construções,
semeaduras e plantações), sendo admitida prova em contrário, nos termos do artigo 359117,
como na hipótese do direito de superfície.
Tal interpretação só é possível, tendo em vista que naquele país é facultada a
criação de direitos reais, posto ser adotado o regime de numerus appertus, nos termos do
artigo 2-2º da Lei Hipotecária e 7º de seu Regulamento, sendo que na prática essa
possibilidade de criação de direitos reais foi pouco utilizado, tendo-lhe sido atribuído pouco
valor, conforme elucida Rima Goraieb. 118
Contudo, atentos ao que preconizam os artigos 1.611 e 1655, os estudiosos são
unânimes em admitirem a coexistência do direito de superfície com outros gravames
semelhantes ao foros, incluindo-se o direito de superfície. No entanto, o pouco
desenvolvimento doutrinário e a escassa jurisprudência demonstram a inexpressiva
vitalidade do direito superficiário, sendo certo que as raras manifestações práticas do
instituto se davam sempre sob o amparo dos esquemas dos censos, por ser o direito espanhol
assentado no tradicionalismo, pouco afeito a influências estrangeiras, tendo dado mais
ênfase aos censos, não tendo a doutrina se preocupado em aprofundar no estudo do instituto
da superfície, dada a sua pouca utilidade prática naquele país.
De acordo com lições de Rima Goraieb119 em face do sistema do numerus appertus
dos direitos reais e com base no artigo 350 do Código Civil Espanhol, a doutrina passou a
admitir o direito de superfície como direito real limitado de gozo, que dá lugar à propriedade
superficiária ou propriedade temporal, limita o direito do dono do solo, seja suspendendo a
eficácia do princípio da acessão, seja facultando ao superficiário a construção ou plantações.
Posteriormente, sofrendo a Espanha com o fenômeno do crescimento das cidades
que culminou por agravar o aspecto habitacional aquele país acabou por promulgar a Lei do
Solo (Ley del Suelo y de ordenación urbana, de 12 de maio de 1956), cujo objetivo era a
ordenação do território para as finalidades urbanísticas, iniciando-se uma reforma fundiária
tendo por base princípios constitucionais, consubstanciados na Constituição Republicana de
1931.
117 Artículo 359 – Todas las obras, siembras y plantaciones se presumen hechas por el propietario y a su costa, mientras no se pruebe lo contrario. 118 GORAIEB, op. cit., p. 64. 119 Idem., Ibidem., p. 64.
54
Trata-se de uma lei nitidamente de Direito Administrativo, que vem dar novos
contornos a um instituto do Direito Privado, preenchendo o vazio que causava a confusão do
direito de superfície com o censo enfitêutico e com o arrendamento. O Regulamento
Hipotecário Espanhol, com as modificações introduzidas pelo Decreto de 17 de março de
1959, também disciplinou o direito de superfície, cuidando do direito de superfície urbano
em seu artigo 16, nº 1 e no nº 2 cuidou do direito de construir, fazendo referência ao direito
de superfície rústico no artigo 30, nº 3, sendo certo que é no artigo 16 que se encontram os
requisitos para inscrição da superfície.
No entanto, conforme elucida Rima Goraieb120 a Lei do Solo não conseguiu
preencher as falhas do Direito Civil quanto ao disciplinamento do instituto da superfície, não
tendo conseguido harmonizar a legislação esparsa existente sobre o instituto, não atingindo
seu objetivo consistente em ser instrumento eficiente para a reforma fundiária pretendida,
razão pela qual foi publicada a Lei 19/1975 de 02 de maio, objetivando superar os defeitos
da lei anterior, empregando o direito de superfície com o objetivo de disciplinar o uso do
solo e com estímulo aos proprietários privados para colocarem no mercado bens (solo) sem
renunciarem a sua recuperação futura, sendo certo que a lei reformada veio por cobro às
especulações doutrinárias possibilitando com a criação da superfície, uma propriedade
autônoma e distinta do solo, denominada propriedade superficiária.
2.4.4.6. Direito Chinês
Na China, o Código Civil de 1929, cujo Livro III, regulador dos direitos reais,
entrou em vigor em 5.5.1930, referiu, expressamente, se o superficiário proprietário das
construções e outras obras, que fizesse, e dos bambus e árvores, que plantasse. 121
2.4.4.7. Direito Russo
De acordo com José Guilherme Braga Teixeira,122 alguns autores referem a
existência de um direito de construção soviético como similar à superfície, com o qual
apresenta grandes afinidades, pretendendo para esse direito a categoria de direito real,
enquanto outros informam, incisivamente, tratar-se de efetivo direito de superfície, existente
na Rússia desde o ano de 1912.
Para o autor citado, a revolução russa de 1917 extinguira a ordem jurídica existente
no regime extinto, passando a terra a ser propriedade exclusiva do Estado. Mas faz-se 120 GORAIEB, op. cit., p.69. 121 TEIXEIRA, op.cit., p.31. 122 Idem., Ibidem., p. 32-35.
55
necessário reorganizar a ordem econômica e a social, bem assim, a fortiori, a jurídica. Era
preciso, outrossim, enfrentar o problema habitacional, pois, ainda que se apresentasse a via
da locação, esta tinha o prazo máximo de doze anos. Restava a solução de serem novas
construções edificadas pelo Estado e pelos municípios, solução inviável porquanto estavam
eles reduzidos à pobreza. Dessarte, o caminho encontrado pelo Governo foi readmitir na
legislação positiva o direito de construção, sob forma iniludivelmente superficiária.123
Quanto ao problema das plantações, vale a pena ser dito que o legislador procurou
resolver o impasse através da concessão, sob determinadas condições, do uso do solo aos
particulares, obedecidas condições previstas no Código Agrário de 30.10. 1922, instituição
denominada de usufruto agrário, seguindo-se a criação de uma modalidade de concessão
para construção nas cidades, sem necessidade de um ato especial de permissão, ou seja, sem
a regulamentação e as restrições que o denominado direito de construção, de 1922, impunha:
o usufruto de terreno urbano de 1925. 124
Os usufrutos mencionados acima eram formas do direito de superfície, na visão do
professor José Guilherme, uma vez que tinham caráter real, eram passíveis de transmissão
aos herdeiros e a terceiros, podendo ser onerados por hipoteca e penhor, não se extinguindo
pela só destruição da construção ou das florestas e outras plantações; impondo pagamento de
uma renda.
A superfície foi, no entanto, abolida do sistema jurídico soviético na reorganização
da ordem política, econômica, social e jurídica que se seguiu ao término da segunda guerra
mundial (1929-1945). 125
2.4.4.8. Direito Argentino
Na Argentina, cujo Código Civil foi sancionado em 29.09.1869 e entrou em vigor no
dia 1º.1.1871, tem-se um caso oposto a toda essa formação doutrinária, jurisprudencial e
legal do direito de superfície, que relatou-se. 126
Conforme afirma o professor Ricardo César Pereira Lira127 o Código Civil argentino
não arrola o direito de superfície no elenco dos direitos reais enumerados no artigo 2.503128,
123 TEIXEIRA, op.cit., p. 33. 124 Idem.,ibidem., p.34. 125 Idem., Ibidem., op. cit., p. 35. 126 Idem., Ibidem., p. 44. 127 LIRA, op. cit., p.52. 128 Artículo 2503 – Son derechos reales: 1 – El dominio y el condominio; 2- El usufruto; 3 – El uso y la habitación; 4 – Las servidumbres activas; 5 – El derecho de hipoteca; 6 – La prenda; 7- La antivresis.
56
posto que, segundo o citado autor, a codificação projetada por Vélez Sarsfield é expressa no
impor o critério do numerus clausus, determinado no artigo 2.502.129
A codificação platina, impondo expressamente o critério do numerus clausus dos
direitos reais, não aludiu à superfície como sendo um dos direitos que elencou. As razões do
codificador argentino para deixar de contemplar o instituto(como o não fez outro tanto, com a
enfiteuse) estão expostas em longa nota de Vélez Sarsfield ao Código Civil Argentino. E não
se limitou o codificador em excluir a superfície, por sua omissão no rol dos direitos reais
admitidos e pelo caráter taxativo do elenco destes, tendo feito uma exclusão expressa do
instituto. 130
O artigo 2.614131 do Código Civil argentino não arrola o direito de superfície no rol
dos direitos reais, podendo-se concluir que o Código Civil daquele país inadmite
expressamente o direito de superfície.
Após tecidas todas essas considerações sobre o direito de superfície no direito
comparado, passa-se a vê-lo no sistema jurídico pátrio.
129 Artículo 2502 – Los derechos reales solo pueden ser creados por la ley. Todo contrato o disposición de última voluntad que constituuese otros derechos reales, o modificas elos que por este Código se reconocen, valdrá solo como constitución de derechoes personales, si como tal pudiese valer. 130 TEIXEIRA, op.cit., p.45. 131 Artículo 2614 - Los propietarios de bienes raíces no pueden constituir sobre ellos derechos enfitéuticos, ni de superficie, ni imponerles censos, ni rentas que se extiendan a mayor término que el de cinco años, cualquiera que sea el fin de la imposición; ni hacer en ellos vinculación alguna.
57
3. O DIREITO DE SUPERFÍCIE NO BRASIL
3.1. Considerações Iniciais
Após o estudo do direito de superfície sob a ótica de vários ordenamentos jurídicos
estrangeiros, enfoca-se agora o instituto da superfície no ordenamento jurídico brasileiro,
ocasião em que será necessária uma breve incursão sobre o direito anterior ao Código Civil
brasileiro; logo após falará-se da codificação civil de 1916, através de uma abordagem de
posicionamentos doutrinários brasileiro acerca do instituto para, logo em seguida, cuidará-se
do instituto superficiário no âmbito do movimento de reforma do Código Civil brasileiro de
1916 e, por fim, abordar-se-á o tema já sob a égide do novo Código Civil de 2002.
Para tanto, será necessária a divisão do presente Capítulo em vários subitens, a fim
de facilitar o enfoque do tema proposto e uma melhor compreensão do desenvolvimento do
instituto da superfície em sistema jurídico.
Ao abordar o presente capítulo levar-se-á em consideração um pouco da história
do ordenamento jurídico pátrio, sobretudo a primeira codificação, sendo de grande valia
reportar-se ao texto do Professor Ricardo Pereira Lira132 Campo e Cidade no Ordenamento
Jurídico Brasileiro, onde o autor aborda a questão da terra rural e urbana no Brasil, desde o
período colonial.
Contudo, cumpre salientar que existem duas teorias, antagônicas entre si, acerca da
taxatividade ou não dos direitos reais, constituindo vexata quaestio entre os jurisconsultos,
nacionais e estrangeiros, sendo certo que no presente caso, mesmo na vigência do Código
Civil de 1916 em que não contemplou-se o direito de superfície dentre os direitos reais
existiam aqueles defensores cujas vozes ecoavam no sentido da viabilidade da instituição da
superfície no ordenamento jurídico brasileiro por meio de lei extravagante.
3.2. Período Colonial (Direito Português e Brasileiro)
No período que compreende 1500 e 1822 estiveram vigentes no Brasil todas as leis
portuguesas praticamente sem alterações em relação à sua aplicação em Portugal. Inclusive,
132 “ Portugal transplantou para o Brasil o regime sesmarial, que lá já havia sido adotado há cerca de dois séculos, instituído pela Lei Régia de 16 de junho de 1375, sob o reinado de D. Fernando, o Formoso. Ocorriam na metrópole, à época da edição dessa lei, distorções no uso e posse das terras rurais, com a conseqüente escassez de alimentos, êxodo rural e “ociosidade generalizada”. Registram os fatos que a atenção européia, em geral, e a portuguesa, em particular, se endereçavam para a Índia, sendo raros os que se não deixavam obcecadamente por ela fascinar. (LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico, Rio de Janeiro: Renovar, 1997, pág. 314-).
58
ainda depois da independência política foi ratificada, integralmente, a legislação que se
encontrava em vigor até 1823, passando, assim, a constituir o que se chamou de direito
brasileiro puro, conforme elucida Frederico Henrique Viegas de Limas.133
No Brasil vigoraram como leis gerais por toda vida colonial as Ordenações do
Reino, ou Ordenações Filipinas. Foram editadas em 1603 por Felipe II de Portugal tanto para
reorganizar o direito régio português, quanto para agradar os portugueses, segundo José
Reinaldo Lima Lopes.134
Conforme elucida Pontes de Miranda, citado por Frederico Henrique Viegas de
Lima 135 dentre todos os direitos existentes no período intermediário, talvez seja o direito
português o que tenha maior importância para a formação do direito brasileiro, posto que,
o direito brasileiro nasceu de um ramo do direito português, sendo certo que com o
descobrimento do Brasil em 1500, Portugal levou para a sua nova colônia suas leis
vigentes, sendo estas aplicadas durante muitos séculos.
A evolução legislativa portuguesa e também a brasileira, são abundantes. Sua
aplicação no Brasil foi tão forte a ponto de as Ordenações Filipinas, mandadas formar pelo
Rei Felipe II da Espanha e I de Portugal, vigoraram até 1º de janeiro de 1917, momento da
edição do Código Civil brasileiro, muitos anos depois que Portugal tivesse seu Código
Civil. Em particular, esteve vigente até este ano o livro quarto das Ordenações, que tratava
do direito das coisas e direito das pessoas, permanecendo praticamente tais leis intocáveis
até 1916.136
Nas origens do direito português, encontram-se o direito romano, o direito
germânico e o direito canônico. É a partir da reconquista no século XII, à semelhança do
resto da península ibérica, nos primeiros anos da monarquia, que se difunde em Portugal o
direito romano justinianeu. São aportados como fontes de direito subsidiário,
principalmente, as Siete Partidas, o Fuero Real, as Flores de Las Leys e os Nueve Tiempos
de los Pleitos. 137
Tanto nas Ordenações Afonsinas, como no direito civil das demais Ordenações,
percebe-se a presença de dois elementos principais, ou seja, de uma lado, a legislação
nacional, concebida a partir das idéias, opiniões e costumes da população e o direito romano,
133 LIMA, op.cit., p.56. 134 LOPES, op.cit., p. 401 e ss. 135 Idem., Ibidem., p.56. 136 Idem., Ibidem., p.57. 137 Idem., Ibidem., p.58.
59
considerado direito comum, que era aplicado subsidiariamente, com o objetivo de preencher
as lacunas do direito privado, que não eram poucas, sendo utilizadas as glosas de Acúrsio e
Bártolo, bem como as Siete Partidas, das quais as Ordenações eram uma transcrição quase
fiel, conforme nos elucida Frederico Henrique Viegas de Lima.138
Ante tais argumentos, por ter como fonte mais próxima as Siete Partidas, nas
Ordenações Afonsinas, não encontrou-se uma autonomia do direito de superfície, como
direito definido e caracterizado, estando esta, à semelhança das Partidas, absorvido entre os
regulamentos de enfiteuse e do arrendamento, de maneira que nas Ordenações Afonsinas,
livro 4, título 74, cuida-se de censo enfitêutico, constituído para toda a vida, no qual se dá
ao enfiteuta a faculdade de alienar seu direito de domínio útil, desde que garanta a
preferência ao senhorio direto, pelo mesmo valor oferecido a outra pessoa.
Tal dispositivo legal das Ordenações Afonsinas contempla os casos que em estando
uma casa arrendada, ainda que se à venda, o arrendatário não será obrigado a sair dela, sendo
certo que uma das causas possíveis a obrigar o arrendatário a desocupar o imóvel é o não
pagamento do cânon devido e, não estando o direito de superfície regulado, muito embora o
arrendamento seja a longo prazo e por tempo certo, conforme lúcidas colocações de
Frederico Henrique Viegas de Lima139, ao acrescentar que nas Ordenações Afonsinas, em
virtude da grande influência recebida do direito romano dos glosadores, desconhecia-se o
direito de superfície, sendo o instituto assimilado pela enfiteuse e pelos arrendamentos, não
gozando de autonomia.
Posteriormente, em 1512, o Rei D. Manuel manda editar as Ordenações
Manuelinas, trabalho concluído em 1521. Nestas Ordenações, cujas fontes se ancoram nas
Ordenações Afonsinas, conseqüentemente o direito de superfície se mostra encoberto
novamente pela enfiteuse e os arrendamentos.140
Por outro lado, foram incorporados novos preceitos sobre a maneria, notadamente
influenciados, pelo direito romano, seus glosadores e o direito subsidiário. Uma primeira
alteração inclui-se nas Ordenações Manuelinas, livro 4, título 61 que, diz respeito ao
pagamento da renda devida pelo arrendatário. Caso ocorra a destruição da imóvel arrendado,
138 LIMA, op. cit., p.58. 139 Idem. Ibidem., p.59-60. 140 Idem.,Ibidem., p.60.
60
por alguns dos casos previstos na copiosa enumeração do presente título, o arrendatário não
será obrigado a satisfazer o pagamento da renda. 141
Já nas Ordenações Filipinas, publicadas em 1603 quando Portugal se encontrava
sob dominação espanhola, praticamente repetia todas as disposições das Ordenações que lhes
antecederam. Entre as três Ordenações, é a que terá maior significado para o Brasil, sendo
seu livro quarto aplicado até 1º de janeiro de 1917, momento em que entrou em vigor o
Código Civil. À semelhança das outras duas Ordenações, o direito subsidiário aplicável
continua sendo o direito romano, o direito canônico e as leis espanholas. 142
Nas Ordenações Filipinas, livro 4, título 43 aparece a definição de Sesmarias. Para
Mendes de Almeida, citado por Frederico Henriques Viegas de Lima143, o conceito de
sesmarias não podia ser aplicado no Brasil, porque naquela época só existiam terras que
nunca tinham sido cultivadas.
Pelo Alvará de 05 de dezembro de 1785, as concessões de sesmarias eram
realizadas nas terras da coroa portuguesa e tinham o caráter “essencialíssimo” de cultivo.Para
isto era possível seu arrendamento e concessão enfitêuticas, não fazendo previsão do direito
de superfície que se encontrava absorvido por estas duas primeira concessões. Pela
concessão de sesmarias era obrigatório o pagamento de um cânon ou pensão equivalente a
uma sexta parte dos frutos percebidos no terreno. No Brasil, sua finalidade era
essencialmente agrícola. 144
Assim, as Ordenações reconheciam apenas a enfiteuse e os censos como forma de
domínio dividido, sem considerar as outras formas de concessão a longo prazo, conforme
elucida Frederico Henriques Viegas de Lima.145
3.3. O Direito de Superfície no Brasil
Conforme esclarece Marise Pessôa Cavalcanti,146 durante o período de colonização
portuguesa, vigorou no Brasil colônia o direito de superfície, sendo certo que em Portugal o
instituto da superfície, com outra designação, foi regulado, primeiramente, no direito antigo,
pela Lei Pombalina de 09/07/1773, em relação a construções, árvores e plantações. O
141 LIMA, op.cit., p. 61. 142 Idem., Ibidem., p. 62. 143 Idem., Ibidem., p. 64. 144 Idem., Ibidem., p. 64. 145 Idem., Ibidem., p.65. 146 CAVALCANTI, op. cit., p. 29-37.
61
Código Civil Português de 1867, por sua vez, no artigo 2.308 possuía previsão igual à lei
supracitada, mas com designação de acessão imobiliária.
No Brasil, conforme esclarece José Guilherme Braga Teixeira 147, enquanto colônia
de Portugal, vigeu o direito de superfície. Porém, com a independência, a lei de 20.10.1823
determinou continuasse a vigorar aqui a legislação do Reino de Portugal, razão pela qual o
instituto manteve sua existência no Direito pátrio. Mas já por volta do sexto decênio do
século XIX pugnavam os juristas pelo seu banimento do nosso Direito, o que ocorreu no ano
de 1864, por força da Lei nº 1.237, do dia 24 de setembro.148
No mesmo sentido são as elucidações do professor Ricardo Pereira Lira149 dando
conta de que o direito de superfície foi admitido em nosso direito até o advento da Lei nº
1.237, de 24 de setembro de 1864. Ainda de acordo com o professor Ricardo Lira, o jurista
Teixeira de Freitas, em nota ao artigo 52, § 2º, da Consolidação das Leis Civis, quando arrola
entres “as cousas do domínio do Estado” “quaesquer accumulações de terras casuaes, ou
artificiaes, que assentão sobre o fundo do mar (18), terras devolutas (19), minas e terrenos
diamantinos (20), pau-brasil (21)”, faz remissão a essa nota 21, onde indica: “(21) Regime de
12 de Dezembro de 1605, Lei nº 243, de 30 de Novembro de 1841 Art. 11, e Regul. De 11
de Janeiro de 1842. É um direito de superfície.”(grifo do autor). 150
Na sua consolidação das Leis Civis, Augusto Teixeira de Freitas praticamente não
tratava do direito de superfície. Para o autor, o direito de superfície se encontra absorvido
quase por completo pela enfiteuse. Um arrendamento contratado por dez ou mais anos é um
contrato enfitêutico que tem sua fundamentação no D.43,18,1. 151
De qualquer maneira, ao realizar a relação de espécies existentes de propriedade,
admite que a superfície é uma propriedade limitada dos direitos reais, conseguida através
do desmembramento desta.152
Também o artigo 52 de sua Consolidação das Leis Civis, quando trata dos bens de
domínio nacional e em particular, em seu parágrafo segundo, sobre os bens do domínio do
Estado, entende Teixeira de Freitas que existe um verdadeiro direito real de superfície em
relação a exploração do pau-brasil e de outras madeiras consideradas reservadas. Na
147 TEIXEIRA, op.cit., p.45. 148 Idem., Ibidem., p.45-46. 149 LIRA, op.cit., p.86-87. 150 Idem., Ibidem., p.87. 151 LIMA, op.cit., p.65. 152 Idem., Ibidem., p.66.
62
exploração do pau-brasil, assim como em outras espécies de madeiras, o Estado detinha o
direito real de superfície, ou qualquer imóvel, destinado a extração. Porque estas madeiras,
apesar de poderem estar localizadas em imóveis particulares, constituíam propriedade do
Estado e a ele competia realizar sua extração e comercialização, possuindo, assim, seu
monopólio.153
Findo o monopólio, o Estado perdia o direito de superfície, como um ius in re
aliena, nos terrenos dos particulares. Contudo, continuava mantendo, com um domínio
pleno, a exploração de tais madeiras nos imóveis de domínio nacional.154
Marcadamente, existia na Consolidação das Leis Civis uma supremacia da enfiteuse
e do arrendamento sobre o direito de superfície. A regulamentação do direito real de
superfície não existia, estando este sempre à sombra dos outros dois institutos jurídicos. O
único caso de direito real de superfície existente foi a concessão de pau-brasil, tendo sido
abandonado posteriormente. A supremacia da enfiteuse sobre o direito de superfície se torna
cada vez mais forte, como se pode notar no Esboço de Código Civil, também realizado por
Teixeira de Freitas e em outras tentativas de codificações posteriores.
Por Decreto Imperial n. 2.318, de 1858, o Governo Imperial atribuiu ao Ministro da
Justiça o poder de confiar a elaboração de um código civil a um jurista de renome, tendo
sido indicado o próprio Teixeira de Freitas, que em 1865 desincumbiu-se da árdua tarefa,
publicando o Esboço, que continha 1.702 artigos, sendo 1.314 dedicados aos direitos reais e
que acabou por não contemplar o direito de superfície entre os direitos reais.
Daí, o professor Ricardo Lira155 fazer colocação no sentido de mostrar que o artigo
3.706 do Esboço considerava não escrita qualquer estipulação no sentido de criar outros
direitos reais ou modificar os permitidos em contrariedade às disposições regulatórias de tais
direitos, em trecho de sua obra que vale a pena transcrever, in verbis:
Será ilustrativo recuar no tempo, lembrando a determinação de TEIXEIRA DE FREITAS, no artigo 3.706 do Esboço: “Julgar-se-á não escrita, para valer somente como constitutiva de direitos pessoais (art. 19), se por tal puder valer, toda estipulação, ou disposição de última vontade, que constitua outros direitos reais, ou que modifique os permitidos ao contrário das disposições que os regulam [1997,p. 90].
153 LIMA, op.cit., p.67. 154 Idem.Ibidem., p.67. 155 LIRA, op.cit., p.90.
63
Para o renomado civilista, seguramente a concepção de Teixeira de Freitas levou
Veles Sarsfield a enunciar para o Código Civil argentino disposição análoga em seu artigo
2.502 (Los derechos reales solo puedem ser creados por la ley. Todo contrato o disposición
de última voluntad que constituyse outros derechos reales o modificase los que por este
Codigo se reconocen, valdrá solo como constitución de derechos personales, si como tal
pudiese valer).
Sendo assim, podemos afirmar com Frederico Henrique Viegas de Lima156 que no
Esboço de Código Civil, Teixeira de Freitas silenciou-se acerca do direito de superfície e
acolheu amplamente a efiteuse.
Os projetos de Código Civil de Joaquim Felício dos Santos e de Antônio Coelho
Rodrigues não inseriram a superfície no elenco dos direitos reais que, de lege ferenda,
arrolaram, e o instituto permaneceu banido desse elenco como se vê da Consolidação de
Carlos de Carvalho e do Código. Civil vigente.157
Relativamente ao período anterior à elaboração Código Civil de 1916, vale a pena
citar passagem do obra do professor Ricardo Lira158, quando nos informa que:
LAFAYETTE RODRIGUES PEREIRA esclarece que antes da promulgação da Lei nº 1.237, de 1864, “havia uma hipótese em que a casa podia ser hipotecada sem solo - quando a superfície do solo pertencia ao devedor. A superfície constituía um direito real (ius superficiei) e o superficiário podia hipotecá-lo (MAYNZ, § 241, TROPLONG, II, nº 404, PONT. nº 391). Mas a citada lei aboliu a superfície, deixando de enumerá-la entre os direitos reais cuja existência respeitou (Lei, art. 6º, I). A superfície, sem a natureza de direito real é incompreensível, e se confundiria plenamente como arrendamento. Ainda no seu clássico “Direito das Coisas” - depois de referir o silêncio da lei de 1864 - afirma ter o direito de superfície deixado de existir: “a essência da superfície consiste em ser direito real, tirando-se-lhe a natureza de direito real, ela deixa de existir. Arnoldo Wald adverte que anteriormente “os direitos reais de fruição sobre a coisa alheia eram o uso, o usufruto, a habitação, as servidões prediais, a enfiteuse, a superfície, o censo consignativo e o reservativo”, acrescentando que, com a legislação superveniente, “deixaram de ser contemplados no rol dos direitos reais os censos e a superfície..” (Os grifos são do autor).
Porém, adverte o professor Frederico Henrique Viegas de Lima159 que se, por um
lado, nas codificações e leis do direito intermediário, tanto português quanto brasileiro,
existiu uma relação do direito de superfície, não se pode dizer o mesmo relativamente ao
direito consuetudinário, brasileiro, posto que segundo Pontes de Miranda, no norte do Brasil
156 LIMA, op.cit., p.68. 157 TEIXEIRA, José Guilherme Braga. op.cit.,p.47. Em referência ao Código Civil de 1916, por não contemplar o direito de superfície. 158 LIRA, op.cit., p.87-88. 159 Idem., Ibidem., p.70.
64
existia o costume de plantar o coco em terreno alheio. Deste modo, era possível que uma
pessoa fosse proprietária de inúmeras árvores de coco em terreno de outrem. Todavia, tinha
a obrigação de pagar uma renda anual em dinheiro ou em natura, sendo facultada a exclusão
contratual desta obrigação. Nesta relação também era possível a concessão de plantação, sua
alienação e constituição de servidão de passagem. Para o autor tais concessões
representavam um direito de superfície.
Como se percebe, a partir das considerações acima expostas, era costume que uma
pessoa plantasse árvores de coco em terreno alheio, com a obrigação de pagar uma renda
em dinheiro ou in natura, nos moldes de um direito de superfície, apesar de não ter havido
nesse período regulamentação do instituto, conforme adverte José Guilherme Braga
Teixeira.160
Ao apresentar o seu “Projeto de Codigo Civil Brazileiro”, em 1900, Clóvis
Bevilaqua manteve-se fiel à velha e clássica regra romana de que superfícies solo cedit. Mas
a comissão revisora procurou restaurar o superfície no ordenamento, o que foi, afinal,
obstado pela comissão especial da Câmara dos Deputados.161
Relativamente a essa fase da elaboração do Código Civil de 1916, vale a pena citar
nota do professor José Guilherme Braga Teixeira162, acerca dos trabalhos da comissão
revisora do Projeto Bevilaqua, no tratamento do instituto da superfície, verbis:
A comissão revisora do Projeto Bevilaqua, formada pelos juristas Aquino e Castro, Costa Barradas, Bulhões Carvalho, Freire de Carvalho e Lacerda de Almeida, houve por bem incluir a superfície entre os direitos reais na coisa alheia, apresentando novo capítulo – Da superfície – contendo sete artigos redigidos por Costa Barradas. Constituiu o “Capítulo III – Da superfície” do “ Projeto Revisto” remetido ao Congresso Nacional, onde um dos seus artigos (o de n. 828) perdeu os seus três parágrafos, os quais vieram a tornar-se os §§ 1º, 2º e 3º do art. 838, inserto no “Capítulo IV – Das servidões prediais”. Da leitura de tais dispositivos projetados nota-se que a Comissão Revisora visava à constituição da superfície tanto em relação à edificação quanto à plantação, assentamento de obras e uso do supra-solo, de qualquer modo, para fins industriais ou de simples gozo; e que equiparava expressamente os direitos do superficiário, quando não estipulados entre este e o proprietário do solo, aos do titular do prédio dominante nas servidões, aproveitando, de certa maneira, a fórmula suíça, mas equiparando, outrossim, tais direitos aos do usufrutuário quando fosse convencionando o não pagamento de pensão (o solarium ou pensio dos romanos), de tal modo que, extinta a superfície concedida , o proprietário dos solo não estaria obrigado a indenizar o superficiário, assim equiparado ao usufrutuário, do valor das edificações, plantações e benfeitorias por este feitas, das quais poderia apropriar-se sem qualquer despesa. Entretanto, a comissão especial da Câmara dos Deputados, em parecer subscrito por Benedito de Souza, “desconhecendo qualquer utilidade na restauração deste
160 TEIXXEIRA, op.cit, .p.47. 161 Idem., Ibidem., p.47. 162 Idem., Ibidem., p.47-48.
65
instituto, há annos abolido entre nós, é de parecer que seja eliminado do projeto” (V. “Cód. Civil Brasileiro – Trabalhos relativos à sua elaboração”, vol., II, p. 904).
Cumpre ressaltar que ao ser promulgado, o Código Civil brasileiro - através da Lei
nº 3.071, de 1º.01.1916 – em vigor a partir de 1º .01.1917 (artigo 1.806) não relacionou a
superfície entre os direitos reais que admitiu. Contudo, conforme esclarece o professor José
Guilherme Braga Teixeira163, desde o início de sua vigência, não foram poucos os que
insistiram existir o instituto, com caráter de direito real, no Brasil, sem embargo da sua
extinção tácita pela Lei n. 1.257, de 24.9.1864, da sua extinção explícita nos termos do art.
404 da Consolidação de Carlos de Carvalho e de não figurar no rol dos direitos reais do art.
674 do Cód. Civil.
Basearam-se os defensores dessa opinião no entendimento daqueles que
propugnavam porque os direitos reais concernem à sua própria natureza e não ao conceito
que lhe é dado pelo legislador, razão pela qual o seu rol deve se constituir numerus
apertus.164
O professor Ricardo Lira165 esclarece que o Projeto Clóvis Bevilaqua revisto
acrescentava ao rol dos direitos reais o direito de superfície. Contudo, de acordo com o citado
autor, o Código Civil brasileiro de 1916 não contemplou o direito de superfície entre os
direitos reais limitados constantes do artigo 674, tendo o referido autor concluído que, ante a
omissão do texto codificado, no existiu naquele ordenamento jurídico o direito de
superfície.
Em outra passagem de sua obra166, o professor da UERJ e da UGF afirmou que a
teoria do numerus clausus, significando que o direito real só pode existir de acordo com a
lei ou por intermédio de previsão legislativa, não podendo ser deixado à convenção das
partes liberdade para a configuração de outras espécies.
Ainda na esteira do citado autor, os juristas Clóvis Beviláqua, autor do anteprojeto
do Código Civil de 1916, se pronunciou no sentido do critério numerus clausus, opinião
seguida por Pontes de Miranda, Silvio Rodrigues, Serpa Lopes, Arnoldo Wald. De outro
lado, existiram aqueles que, minoritariamente, se posicionaram no sentido do numerus
163 TEIXEIRA, Op.cit., p.48-49 164 Idem. Ibidem., p.48. 165 LIRA, op.cit., p.88-89. 166 Idem. Ibidem., p.89.
66
apertus, dentre os quais, Arnoldo Medeiros da Fonseca, Orozimbo Nonato, Carvalho Santos,
Washington de Barros Monteiro.
Finalizando sua exposição, o professor Ricardo Lira167 adverte não haver a mínima
dúvida quanto à inexistência do direito de superfície no regime do Código Civil de 1916, em
que pesem opiniões em contrário de alguns poucos civilistas.
Maria Pessoa Cavalcanti168, ao abordar a questão da existência ou não do instituto
da superfície no ordenamento jurídico pátrio anterior o Código Civil de 1916 traz as
seguintes elucidações:
“Entretanto, em 1864, por intermédio da Lei n. 1.237, de setembro, baniu-se o direito de superfície do ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que não o relacionou entre os direitos reais, sendo certo que para a citada doutrinadora a essência do instituto da superfície é sua natureza de direito real, sem a qual se confundiria com o arrendamento, inclusive, por ser de tradição de nosso direito a teoria do numerus clausus no tocante aos direitos reais, sustentada por diversos doutrinadores, dentre eles Pontes de Miranda, Silvio Rodrigues, Serpa Lopes e Arnold Wald e Ricardo Pereira Lira 169, sendo certo que para este último as obrigações propter rem e os direitos reais são numerus clausus, existindo desde que criados por lei, não podendo ser instituídos pelas partes (numerus apertus), posto que a taxatividade dos direitos reais resultaria, segundo ele, do próprio artigo 674, do Código Civil de 1916, podendo ser criados por leis extravagantes, a exemplo da alienação fiduciária em garantia, instituída pela Lei n. 4.728, de 14 de julho de 1965.”
Dessa forma, o Código Civil de 1916 não albergou o instituto da superfície dentre os
direitos reais, apesar de alguns doutrinares de escol se baterem pela existência instituto em
nosso ordenamento jurídico, conforme já mencionado alhures.
Com relação a essa questão, vale a pena mencionar os ensinamentos do professor
Ricardo Pereira Lira170, se referindo ao Código Civil de 1916:
A par da literalidade do texto, a natureza mesma dos direitos reais permite a ilação de que só podem eles existir em função das espécies criadas em lei: sejam os direitos reais de garantia, sejam os direitos reais de fruição. Do que antes se diz, não é de concluir que os direitos reais só possam ser aqueles enumerados no art. 674, do Código Civil. Abre-se-lhes o caminho da criação pelas leis extravagantes,...
Em conclusão, pode-se dizer como base na obra do Professor Ricardo Lira171, que o
direito de superfície foi admitido no ordenamento jurídico pátrio até o surgimento da Lei nº
1.237, de 24 de setembro de 1864, que deixou de relacioná-lo entre os direitos reais. Já o 167 LIRA, op.cit., p.90. 168 CAVALCANTI, op. cit., p. 30. 169 op. cit., p. 230-231. 170 op. cit., p. 231. 171 op.cit., p.86-89.
67
Projeto Clóvis Beviláqua, revisto, acrescentou o instituto da superfície no rol dos direitos
reais, contudo, o Código Civil brasileiro de 1916 não inseriu o instituto na lista dos direitos
reais contidos no artigo 674 do referido Código, “por ser tradicional no Direito pátrio a
teoria numerus clausus, no que concerne aos direitos reais, sendo esta sustentada por
doutrinadores como Pontes de Miranda, Silvio Rodrigues, Serpa Lopes, Arnold Wald e
outros.”172
3.4. Movimento de Reforma do Código Civil de 1916
A discussão quanto à admissibilidade do direito de superfície no sistema jurídico
pátrio não cessou, vindo à tona com o movimento de reforma do Código Civil iniciado em
1963, com o Anteprojeto de Código Civil apresento por Orlando Gomes, com a finalidade
de substituir o ordenamento em vigor, tendo ele inserido a superfície dentre os direitos reais,
justificando-se a inclusão do instituto da superfície no Anteprojeto, para facilitar as
construções, principalmente nos terrenos de domínio do Estado, numa tentativa de
solucionar o problema inerente à deficiência de moradia, que àquela época já se fazia sentir.
Esclarece o Professor Ricardo Lira que o Anteprojeto de Código Civil de Orlando
Gomes, apresentado ao Ministro da Justiça e Negócios Interiores, João Mangabeira, em 31 de
março de 1963, incluiu no rol dos direitos reais o direito de superfície em seu artigo 513, II,
cuidando de disciplinar o instituto superficiário em oito artigos173.
Ainda de acordo com o citado autor na Memória Justificativa do Anteprojeto,
Orlando Gomes justificou a restauração do instituto da superfície e, simultaneamente, propôs
e extinção da enfiteuse, tendo aduzido que: “...Códigos recentes retomaram-na, dando-lhe
novos traços, admitindo a sua utilidade para certos fins, dentre os quais, como se reconhece
na Alemanha, o de facilitar as construções, principalmente nos terrenos de domínio do
Estado, concorrendo para a solução do problema da habitação. Volta, assim, a ter 172 CAVALCANTI, op.cit. p.30. 173 LIRA, op. cit., p.91 “...concessão temporário do direito de construir ou plantar, mediante escritura pública devidamente inscrita no registro imobiliário (art. 524); transferibilidade do direito por negócio entre vivos, a título oneroso ou gratuito, bem como por disposição de última vontade (art. 525); objeto do direito podendo ser qualquer construção, ou plantação, suscetível de ser adquirida por acessão, pelo dono do solo (art. 526); a concessão podendo ser gratuita ou onerosa, a remuneração ao concedente pagável de uma só vez ou periodicamente, excluído o comisso, e ressalvada a pretensão de cobrança das prestações vencidas e não pagas, acrescidas de juros moratórios (art. 527, §1º e 2º); reversão ao condente, em princípio sem indenização, salvo estipulação contrária, não podendo o decurso do prazo estabelecido para que a construção passe ao domínio do concedente ser inferior a vinte e cinco anos (art. 528); responsabilidade do superficiário pelos encargos e tributos que recaírem sobre o prédio (art. 529); preferência conferida a ambos, em igualdade de condições, no caso de alienação dos correspondentes direitos, estabelecida a necessidade de intimação do concedente, sob pena de nulidade, no caos de penhora da construção ou plantação, para poder fazer valer o seu direito de preferência na hasta pública (art. 531); vedação peremptória da estipulação do pagamento de qualquer quantia pela transferência da acessão (art. 532).”
68
aplicação, sob forma nova e em outra perspectiva, um direito que fora condenado e caíra em
desuso.”174
Transformado o Anteprojeto em Projeto, após revisão feita pela comissão de juristas
formada por Caio Mário da Silva Pereira, Orosimbo Nonato e o próprio Orlando Gomes, o
instituto da superfície terminou por não fazer parte do rol dos direitos reais do artigo 499 do
Projeto que, enviado ao Congresso Nacional, não teve seguimento.
Contudo, de acordo com o professor José Guilherme Braga Teixeira175, em
28.02.1967, foi promulgado o Decreto-lei 271, que instituiu direito real resolúvel, a
concessão de uso de terrenos públicos ou particulares, remunerada ou gratuita, por tempo
certo ou indeterminado, para fins específicos de urbanização, industrialização, edificação,
cultivo da terra, ou outra utilização de interesse social, convolável por instrumento público
ou particular, ou, ainda, por termo administrativo, suscetíveis de inscrição no cartório do
registro imobiliário e transmissíveis por ato entre vivos ou por causa de morte, na qual
alguns viram a reintronização da superfície no Brasil, tese refutada por outros, como o
Professor Ricardo César Pereira Lira, tendo o Professor José Guilherme se posicionado ao
lado daqueles que refutam o ressurgimento do direito de superfície neste contexto, por
entender que a concessão de direito real de uso, concedida por pessoa jurídica de direito
público ou por particular, não se confunde com o direito de superfície, posto que o direito
real de uso e o direito de superfície são categorias diversas de direitos reais limitados, cada
qual com conteúdo e característica própria.
Com a retomada da reforma do Código Civil de 1916, constituiu-se Comissão
Elaboradora e Revisora do Código Civil em 23 de maio de 1969, sendo certo que o
anteprojeto inicial referente ao Direito da Coisas, elaborado por Ebert Chamoun, não
contemplou o direito de superfície dentre os direitos reais, tendo a Comissão o previsto no
artigo 1.418, II, dentre os direitos reais, propondo regulamentação nos artigos 1.556 a 1.563,
conforme esclarece o Professor Ricardo Lira176, que, além do que já foi dito, afirma que:
O Supervisor MIGUEL REALE, em sua exposição de 23 de maio de 1972 – depois de referir que o Decreto-lei nº 271, de 28 de fevereiro de 1967, estende a “concessão de uso” às relações entre particulares - observa que “consoante justa ponderação de JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES, a “migração” desse modelo jurídico, que passou da esfera do Direito Administrativo para a do Direito Privado, veio restabelecer, sob novo enfoque, o antigo instituto da superfície... A necessidade de restabelecer o instituto da superfície já fora, aliás, sustentada, sob ângulos diversos, por outros juristas, como fez o Prof. SYLVIO MEIRA...”
174 LIRA, op.cit., p.92. 175 TEIXEIRA, op.cit., p. 50. 176 Idem., Ibidem., p. 93.
69
A suposta reintrodução do instituto da superfície no ordenamento jurídico brasileiro,
conforme mencionado acima, provocou sérias críticas de vários seguimentos de juristas,
dentre eles, Caio Mário da Silva Pereira e Afrânio de Carvalho, tendo havido também quem
gostasse da reentronização, como o jurista Milton Fernandes, citado por Ricardo Lira177 , ou
aqueles que apenas tenham vislumbrado uma proposta de restabelecimento do instituto, como
o jurista José Paulo Cavalcanti, também referido por Lira.
Com retomada dos estudos pela comissão de juristas liderada pelo saudoso Miguel
Reale, também dela integrante, a superfície foi admitida dentre o rol dos direitos reais,
embora não constasse do anteprojeto inicial elaborado por Ebert Chamoun, sendo certo que
o anteprojeto – versão 1973 - manteve a superfície, tendo arrolando o instituto em seu artigo
1.405, II, dentre os direitos reais, com regramento nos artigos 1.543 a 1.550.
Após, o Anteprojeto de Código Civil transformou-se em Projeto de Código Civil, ,
tendo sido enviado ao Congresso Nacional pelo Presidente da República, através da
Mensagem nº 160, de 10.06.1975, onde, na Câmara dos Deputados, passou a constituir o
Projeto de Lei nº 634, de 1975, tendo o direito de superfície sido mencionado dentre os
direitos reais em seu artigo 1.263, II, com regulamentação proposta nos artigos 1.401 a
1.408.
Publicado no Diário do Congresso Nacional de 10 de abril de 1976, com
publicação das emendas oferecidas em plenário ao Projeto 634, de 1975, duas emendas
disseram respeito ao direito de superfície, conforme relata o Professor Ricardo Lira178 e,
após longa tramitação, recebeu redação final que foi publicada no Diário do Congresso
Nacional, no dia 17 de maio de 1984, sob a denominação de Redação final do Projeto de lei
634-B, de 1975, que instituiu o Código Civil, tendo, nessa redação final a superfície sido
catalogada entre os direitos reais e disciplinada em título próprio, tímida, falha, insuficiente e
insatisfatoriamente, nos dizeres do professor José Guilherme Braga Teixeira.179
Antes da entrada em vigor do novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de
2002), o instituto da superfície passou a viger no sistema legislativos brasileiro, através da
Lei nº 10. 257, de 10.07.2001 (Estatuto da Cidade), nos artigos 21 a 24 onde o legislador
cuidou do denominado direito de superfície urbana.
177 LIRA, op.cit.,p. 94. 178 Idem., Ibidem., p.95. 179 TEIXEIRA, op.cit., p.52.
70
No artigo 21, o instituto da superfície foi definido como sendo o direito segundo o
qual o proprietário urbano poderá conceder a outrem o direito de usufruir da superfície do
imóvel, por tempo determinado ou indeterminado, mediante escritura pública registrada no
Cartório de Registro de Imóveis, sendo que esse direito abrange o direito de utilizar o solo, o
subsolo ou o espaço aéreo relativo ao terreno, na forma estabelecida no contrato, atendida a
legislação urbanística.180
Já o artigo 22 prevê que, em caso de alienação do terreno, ou do direito de
superfície, o superficiário e o proprietário, respectivamente, terão direito de preferência, em
igualdade de condições com ofertas de terceiros, numa demonstração de que o direito de
superfície é completamente autônomo em relação ao direito de propriedade, sendo que os
casos de sua extinção estão tratados no artigo 23 do Estatuto da Cidade.
O artigo 24 cuida da recuperação, pelo proprietário, do pleno domínio do terreno,
das acessões e benfeitorias introduzidas no imóvel, independentemente de indenização, se
as partes não houverem estipulado em contrário, sendo certo que antes do termo final do
contrato, extinguir-se-á o direito de superfície se o superficiário der ao terreno destinação
diversa daquela para a qual foi concedida, conforme observa Toshio Mukai.181
3.5. O Novo Código Civil e o Direito de Superfície
Conforme destacou-se linhas atrás, o direito de superfície existiu em nosso País
antes da promulgação do Código Civil de 1916, quando o Brasil ainda era colônia
portuguesa, por intermédio da Lei Pombalina de 09.07.1773, §§11, 17 e 26, que regulou o
instituto da superfície, sem tal denominação, consistente no direito de efetuar a manter
construções e plantações, inclusive árvores, em imóvel alheio.
Com a proclamação da independência, o referido instituto continuou a fazer parte
da legislação brasileira, uma vez que por intermédio da Lei de 20.10.1823, determinou-se
que vigorasse no Império as Ordenações, leis e decretos promulgados pelos reis de Portugal,
até 25.04.1821, com autoridade provisória, até que fosse promulgado Código Civil, sendo
que àquele tempo a superfície era tratada como direito real imobiliário de uso e gozo em
prédio alheio.
Porém, com a passar dos anos e as transformações sociais ocorridas no país, foi o
instituto abolido do rol dos direitos reais pela Lei n. 1.237, de 24.09.1864, tendo sido a sua 180 MUKAI, Toshio, O Estatuto da Cidade: Anotações à Lei n. 10.257, de 10-7-2001. São Paulo: Saraiva, 2001. p.15. 181 Idem., Ibidem., p.20.
71
reintrodução objeto de debate entre os juristas, tendo Teixeira de Freitas feito menção ao
instituto em sua Consolidação, tendo o Projeto Clóvis Bevilaqua revisto acrescentado a
superfície no rol dos direitos reais, mas que não vingou, uma vez que o Código Civil de
1916 – Lei n. 3.071 de 1º de janeiro não a contemplou, conforme já comentado acima,
tendo havido tentativa de reintrodução no movimento de reforma do Código de 1965/6 e a
iniciativa de 1972.
No período que antecedeu à primeira codificação civil, principalmente nos
projetos de Joaquim Felício dos Santos de Antônio Coêlho Rodrigues houve a inserção do
instituto da superfície no rol dos direitos reais, mas o instituto permaneceu banido desse
elenco, como se depreende da Consolidação de Carlos de Carvalho e dos dispositivos do
Código Civil de 1916, vigente até o advento de Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 que
instituiu o novo Código Civil, desta feita colocando no rol dos direitos reais o direito de
superfície, a partir dos artigos 1.369.
Contudo, da Redação final do Projeto de lei 634-B, de 1975, a superfície foi
catalogada dentre os direitos reais, nos artigos 1.368 a 1.375.
O Código Civil vigente, aprovado pela Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002,
publicado no Diário Oficial da União do dia seguinte e programado para entrar em vigor um
ano após essa data, acabou por disciplinar o direito de superfície dos artigos 1.369 a 1.377,
dispositivos que serão objeto de acurado estudo nos capítulos que se seguirão. Porém, uma
coisa precisa ser dita: o direito de superfície foi admitido pelo Direito brasileiro, ante as
vantagens que oferece, posto ser um instituto capaz de eliminar ou amenizar a crise
habitacional que assola o país, possibilitando um melhor aproveitamento do solo, mormente
das terras incultas ou não edificadas.
Percebe-se, nas grandes cidades do país, que as favelas e moradias irregulares
cresceram e se multiplicaram na beira das rodovias, ferrovias e nas encostas, causando o que
se denominou caos urbano, com sérios comprometimentos quanto a qualidade de vida. Mas
o instituto da superfície será estudado Capitulo VII, ao tratar-se do tema relativo ao Direito
de Superfície em nosso Ordenamento Jurídico.
72
4. A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
4.1. Noções Introdutórias
Antes de iniciar o estudo referente a Função Social da Cidade e da Propriedade
Urbana no capítulo seguinte, cumpre tecer algumas considerações sobre o instituto da
Função Social da Propriedade, principalmente pelo fato de que o tema a ser enfrentado na
presente dissertação se refere ao direito de superfície e de sua função social
Sendo assim, importa fazer alguns aportes no tocante ao conceito e importância da
função social, para logo em seguida tratar-se da questão de sua aplicação no âmbito do
direito de propriedade, mormente da questão atinente à função social da propriedade e seu
tratamento no ordenamento jurídico positivo pátrio.
Tal como a palavra propriedade, a locução função social é uma daquelas cujo
conteúdo é indeterminado, por si só, mas determinável em função de fatores que variam no
tempo, no espaço, na cultura, e nas regras específicas aplicáveis.182
Cumpre relembrar que até a independência o Brasil regeu-se pela legislação
portuguesa, mormente pelas Ordenações do Reino de Portugal (Manoelinas, Afonsinas e
Filipinas), sendo certo que além das leis régias, a primeira legislação pátria, com o país já
independente, foi a Constituição Imperial de 1824, outorgada por D. Pedro I e que em seu
artigo 179, XXII, por inspiração liberal, preconizava a garantia do direito de propriedade em
toda a sua plenitude, embora permitisse a desapropriação por utilidade pública (por bem
público), não se inferindo desse fato que tivesse albergado uma função social da propriedade.
Por outro lado, a primeira Constituição Republicana de 1891 foi inspirada pelos
ideais individualistas da concepção de propriedade, mas acrescentou a possibilidade de
desapropriação por necessidade ou utilidade pública, tendo a emenda constitucional de 1926
instituído a primeira limitação ao direito de propriedade quanto às minas e jazidas, tendo a
Constituição de 1934 acrescido a tais restrições o concernente às quedas d’água, tendo
ressaltado em seu artigo 113, n. 17 que o direito de propriedade não seria exercitável contra
o interesse social ou coletivo. Tais princípios foram mantidos no texto constitucional de
1937 (art. 122, n.14 e 143) na Lei Constitucional n. 05, de 1942, tendo a Constituição de
1946 condicionado o exercício da propriedade ao bem estar social e a preconizar a justa
182 CASTRO, Sonia Rabello de. Limitações Urbanísticas à Propriedade. In: FERNANDES, Edésio (Org.). Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey , 2000. p.89-92.
73
distribuição da propriedade com igualdade de oportunidades para todos (art.141, §16 e 147),
conforme elucidações de Mezzomo, Marcelo Colombelli e Coelho, José Fernando Lutz183.
Por outro lado, a Constituição de 1967 (art. 150, § 22 e 157 e parágrafos) e a
Emenda Constitucional n.01, de 1969 (art. 153, §22, e 161) inseriram em seus textos o
princípio da função social da propriedade. Porém, a Constituição de 1988 dedicou diversos
dispositivos à disciplina da propriedade, podendo ser enumerados os artigos 5º, XXIV a
XXX, 170,II e III, 176, 177, 178, 182, 183, 184, 185, 186, 191 e 222, conforme enumeração
de José Afonso da Silva.184.
Com base nas informações de ordem constitucional acima, pode-se conceituar a
função social como sendo um princípio inserido no bojo da norma fundamental, objetivando
garantir a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, nos termos do artigo
170, da Constituição federal de 1988. A função social tem por escopo transformar a
propriedade capitalista, sem socializá-la.185
Vale a pena mencionar ensinamento do Professor Luiz Edson Fachin apud Sonia
Rabello de Castro186, in verbis:
“A função social é mais evidente na posse e muito menos evidente na propriedade, que mesmo sem uso, pode se manter como tal. A função social da propriedade corresponde a limitações fixadas no interesse público e tem por finalidade instituir um conceito dinâmico de propriedade em substituição ao conceito estático, representando uma projeção de reação anti-individualista” .
Segundo Liana Portilho Mattos187, a função social da propriedade representa o
ponto de convergência de todas as gradativas evoluções pelas quais passou o conceito de
propriedade. Para a citada autora, com o escopo de atender a sua função social, a
propriedade deverá andar junto como os interesses coletivos, afetando a propriedade privada
em sua estrutura.
183 MEZZOMO, Marcelo Colombelli e COELHO, José Fernando Lutz . A função social da propriedade nos contratos agrários. Jus Navigandi, Teresina, a.7, n. 66, jun. 2003. Disponível em: <http:jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4125>. Acesso em: 15 abr. 2006. 184 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 280. 185 SILVA, José Afonso da, op. cit., p. 283. 186 FACHIN, Luiz Edson. A Função Social da Posse e a Propriedade Contemporânea: Uma Perspectiva da Usucapição Imobiliário Rural. Porto Alegre: Fabris apud CASTRO, Sônia Rabello, Algumas formas direferentes de se pensar e de reconstruir o direito de propriedade e os direitos de posse nos “países novos”. In: FERNANDES, Edésio (Org.). Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 19. 187 MATTOS, Liana Portilho, Limitações Urbanísticas à Propriedade. In: FERNANDES, Edésio (Org.). Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. p. 63-64.
74
Nesse diapasão, por causa do princípio da função social, o direito de propriedade
não pode ser considerado como preexistente a uma legislação urbanística que venha a
regular seu exercício, mas, ao contrário, segundo a citada autora, a legislação urbanística é
que precede esse direito, tratando-se de especificar as condições para que ele seja legítimo
ou não, ou seja, estabelecendo requisitos para seu reconhecimento.
Nesse sentido, acredita-se ser o direito de superfície um instituto capaz de dotar os
cidadãos e o Estado de um instrumento capaz de viabilizar a solução dos conflitos ligados à
questão do parcelamento do solo urbano, de sua utilização adequada, visando minimizar ou
até mesmo solucionar de vez o que se convencionou chamar segregação urbana, em que as
camadas sociais dotadas de menor poder aquisitivo são forçadas a se instalarem nas
periferias dos grandes centros urbanos, vivendo em situação de escassez de serviços públicos
prestados pelo Estado, notadamente os de luz, água, esgoto, transporte coletivo, educação e
segurança, conforme aponta o Professor Ricardo Pereira Lira188.
Podemos considerar a função social da propriedade não apenas como um princípio
vetor do direito urbanístico brasileiro, conforme nos esclarece Liana Portilho Mattos189 ,
mas como instituto estruturante do Direito Urbanístico em vários países, inclusive no
Brasil, em que o princípio da função social vem expressamente definido em normas que
tratam da questão fundiária.
Sob prisma histórico, pode-se afirmar que a primeira Constituição brasileira, de
1824, seguida pela Constituição de 1891 garantiam o direito de propriedade em toda a sua
plenitude, ressalvando apenas os casos de desapropriação, prevalecendo o exercício pleno
da propriedade, por influência do pensamento liberal daquele período histórico.
Porém, conforme leciona Liana Portilho Mattos 190 o princípio da função social da
propriedade surge pela primeira vez no ordenamento jurídico brasileiro, por força da
Constituição de 1934, sendo certo que a partir de então o instituto passou a fazer parte dos
textos constitucionais posteriores, inclusive a de 1937, bastante semelhante à Constituição de
1934 no tocante à reafirmação do princípio da função social da propriedade,
condicionando-a ao interesse público.
Cumpre salientar que a Constituição de 1946 trouxe novos avanços, ressaltando a
idéia de bem-estar social como condicionadora do direito de propriedade, prevendo a
188 LIRA, op.cit., p. 189 MATTOS, op. cit, p. 63-64. 190 Idem., Ibidem.,p. 64.
75
desapropriação por interesse social. Contudo, com a Constituição de 1967 e a Emenda
Constitucional n. 1 de 1969, a função social da propriedade foi consolidada expressamente
como princípio constitucional, o que foi reafirmado na de 1988, em que o legislador regulou
o princípio, prevendo condições para se atendimento e estabelecendo as sanções cabíveis,
em caso de descumprimento de tais normas.
Tal regulamentação encontra-se nos artigos 5º, XXIII ( A propriedade atenderá a
sua função social), vindo o princípio reafirmado no artigo 170, II e III , sendo certo que o
princípio da função social da propriedade teve seu conteúdo definido no tocante às
propriedades urbanas e rurais , com previsão de sanções em caso de descumprimento, nos
artigos 182, 184 e 186.
Com base no tratamento constitucional dispensado ao princípio da função social da
propriedade e nos ensinamentos de Liana Portilho Mattos191, pode-se afirmar que o direito
de propriedade passou por grandes transformações ao longo das últimas décadas, não
devendo mais ser visto como um direito individualista.
O tema da função social da propriedade tem íntima relação com o planejamento e a
gestação democrática das cidades e também do campo, sendo certo que a participação
popular é de fundamental importância como modelo de gestão, conforme ensina Liana
Portilho Mattos192.
Para a citada autora a participação popular é a garantia constitucional de
democratização dos modelos de gestão, mormente na gestação das cidades. Segundo ela, o
planejamento urbanístico participativo é um instrumento de democratização da gestão das
cidades e se materializa, principalmente, por intermédio do plano de diretor que é visto pela
citada autora como instrumento no qual estão definidas as exigências fundamentais para que
a propriedade cumpra sua função social.
Ainda no tocante à questão da função social, Gustavo Tepedino193 chama a atenção
para o fato de que a Constituição Federal de 1988 introduziu profundas transformações no
instituto da propriedade, através de ampla reforma de ordem econômica e social, na
tentativa de preencher enorme lacuna existente entre a edição do Código Civil de 1916, de
corte nitidamente individualista exclusivista, numa tentativa de adaptar a disciplina da
191 op. cit, p. 66 192 op. cit.,p.63-65. 193 TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil, 2ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p.267-291.
76
propriedade aos novos tempos, posto que a função social da propriedade apresentava-se
estranha ao Código Civil (Código Civil de 1916).
Salienta o referido civilista, que a Constituição Federal de 1946 introduziu, pela
primeira vez, a preocupação com a função social da propriedade, estabelecendo em seu
artigo 147 que o uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social, com previsão
inclusive da justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos (art. 141,
§16), além do artigo 160, III, da EC/69 que previa a função social da propriedade como um
dos princípios da ordem econômica e social.
Contudo, numa reflexão sobre o tema, o citado autor pontifica que apesar disso o
Estado brasileiro do primeiro pós-guerra, adotou política intervencionista de sucessivas
restrições à propriedade privada, contudo, incapaz de criar bases mínimas de justiça
distributiva e do bem-estar social, ressaltando que a Constituição de 1967, apesar de ter
revelado preocupação com a questão da função social, concebeu o instituto da função
social da propriedade como princípio de ordem econômica e social, ao passo que a
Constituição de 1988, inseriu a matéria no âmbito do direitos e garantias fundamentais
(artigo 5º, XXIII).
4.2. O Princípio da Socialidade no Novo Código Civil
Conforme manifestações do professor Miguel Real, coordenador-geral da equipe
elaboradora do novo Código Civil (Lei n. 10.406 de 10-01-2002), composta pelos insignes
jurisconsultos José Carlos Moreira Alves (Parte Geral); Agostinho de Arruda Alvim (Direito
das Obrigações); Sylvio Marcondes (Direito de Empresa); Ebert Vianna Chamoun (Direito
das Coisas); Clóvis do Couto e Silva (Direito de Família); Torquato Castro (Direito das
Sucessões), quatro dos quais já falecidos, o novo diploma que passou a regulamentar as
relações sociais no âmbito privado, está assentado em três pilares fundamentais, quais sejam,
no princípio da sociabilidade, no princípio da eticidade e no da operabilidade, denominados
pelo referido civilista de princípios norteadores do novo Código Civil.
O “sentido social” é uma das características mais importantes do código,
contrastando com o sentido individualista que condicionava o Código Civil de 1916,
elaborado em fins do século XIX, que primava principalmente pela exclusividade do direito
de propriedade.
De outro turno, o princípio da eticidade inserto no novo Código Civil confere ao
Juiz não só poder para suprir lacunas, mas também para resolver, onde e quando previsto, de
77
conformidade com valores éticos, dizendo de outro modo, se a regra jurídica for deficiente
ou inajustável à especificidade do caso concreto.
No tocante ao princípio da operabilidade, pode-se dizer que ele está assentado nas
alterações ocorridas no plano técnico e operacional ocorridas no corpo do novo diploma civil,
podendo ser dado como exemplo que toda a matéria de escrituração empresarial passa por
uma transformação fundamental para que tudo possa ser feito através de processos
eletrônicos, superando-se os entraves formalistas em matéria de contabilidade e gestão da
empresa, conforme palavras do próprio Miguel Reale194.
Contudo, o que importa para o desenvolvimento da presente pesquisa é o princípio
da sociabilidade, consubstanciado na chamada função social que, a seguir, se verá, posto
que o princípio da função social é de extrema importância e aplicabilidade em diversos
setores do novo Código Civil, mormente no setor contratual, no setor empresarial (função
social da empresa) e, no caso em estudo, no tocante ao direito de propriedade, naquilo que se
convencionou denominar função social da propriedade que deixou de ser direito absoluto,
conforme dispositivo Constitucional (art. 170,III da CF/88).
4.3. A Função Social
Com as transformações da sociedade contemporânea, a idéia do social começa a
prevalecer sobre a do individual, levando a uma intervenção crescente do Estado no
domínio econômico, que suscita dois novos temas, o da função social e o do abuso do
direito.195
No presente capítulo, por razões metodológicas, abordar-se-á o tema da função
social por ter íntima relação com o assunto da dissertação, posto cuidar-se do Direito de
Superfície no novo Código Civil e sua Função Social, sendo necessário um aprofundamento
acerca da teoria da função social.
Cumpre salientar que as transformações sociais, econômicas e políticas ensejam
mudanças na sociedade. Tais transformações provocam mudanças no direito; mudam-se os
princípios, alteram-se os paradigmas legais, surgem novas formas contratuais. A
194 REALE, Miguel. Visão Geral do Projeto de Código Civil. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 752, p. 22-30, 1987. 195 AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução, 4ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.142, apud Francesco Lucarelli.
78
massificação da sociedade e das relações sociais, provocadas pela intensa intervenção da
economia e da sociologia no direito, legou à massificação contratual.196
Injustiças sociais acontecem em todas as fases da história da humanidade. Verifica-
se, por vezes, um descompasso entre o direito e os fenômenos sociais. Como no eterno fluxo
e refluxo das ondas, as matrizes filosóficas do Direito procuram manter o equilíbrio social.
Equilíbrio social esse, que a cada momento histórico se transmuda ao sabor do ir e vir das
demandas e das necessidades da própria sociedade. 197
Assim é que “a doutrina da função social, emerge como uma dessas matrizes”,
limitando institutos de conformação nitidamente individualista, em contraposição aos ditames
do interesse coletivo – que se apresentam acima dos interesses particulares - concedendo aos
sujeitos de direito não só uma igualdade em seu aspecto estritamente formal, mas permitindo
uma igualdade e liberdade aos sujeitos de direito os igualando de modo a proteger a
liberdade, de cada um deles, em seu aspecto material.198
Relativamente ao conceito de função social da propriedade, traz-se à colação
esclarecimentos de MEZZOMO, Marcelo Colombelli e COELHO, José Fernando Lutz, 199
in verbis:
“A função social pode ser conceituada de forma simples como sendo a submissão do direito de propriedade, essencialmente excludente e absoluto pela natureza que se lhe conferiu modernamente, a um interesse coletivo. ... José Cretella Júnior, ao tratar da função social da propriedade conclui que:” ... o direito de propriedade, outrora absoluto, está sujeito em nossos dias a numerosas restrições, fundamentadas no interesse público e também no próprio interesse privado de tal sorte que o traço nitidamente individualista, de que se revestia, cedeu lugar a concepção bastante diversa, de conteúdo social, mas do âmbito do direito público. Luiz Ernani Bonesso de Araújo afirma, quanto à propriedade à luz da função social, que “antes de se pensá-la a partir dos interesses individuais, ela deve ser pensada pelo interesse da coletividade, da sociedade” e adiante segue: “Em outros termos, da exigência de que a propriedade rural cumpra sua função social, passa-se a vê-la como ela sendo a própria função social, determinada pelo exercício do direito à terra, como forma de alcance da justiça social no campo.”
No tocante à origem da função social no curso da história do direito, pode-se
afirmar com Augusto Geraldo Teizen Júnior, que: “A concepção individualista do direito
tem como origem a Revolução Francesa no século XVIII, seu eixo fundamental é
196 TEIZEN JÚNIOR, Augusto Geraldo. A Função Social no Código Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 114. 197 TEIZEN JÚNIOR, op.cit., p. 114. 198 Idem., Ibidem., p.114-115. 199 MEZZOMO, Marcelo Colombelli; COELHO, José Fernando Lutz. A função social da propriedade nos contratos agrários. Jus Navigandi, Teresina, a.7, n. 66, jun. 2003. Disponível em: <http:jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4125>. Acesso em: 15 abr. 2006.
79
representado pela defesa dos direitos do homem, limitando os privilégios da realeza e do
clero, obtidos durante os séculos de construção do sistema econômico feudal.”200
A revolução permitiu a libertação das instituições e a humanização dos direitos,
contribuindo para a mitigação do servilismo do regime feudal. Dentre os institutos jurídicos,
destacou-se o direito de propriedade, já que “a Revolução, numa palavra, liberta o solo”,
conforme nos elucida Teizen Júnior201, citando Orlando Gomes, sendo certo que o Código
Napoleão trazia em seu bojo um conceito novo e revolucionário da propriedade, consistente
no direito de uso, gozo e disposição das coisas de maneira absoluta.
Determinados valores do passado vêm moldar a dogmática jurídica na Idade
Contemporânea. Todos os ordenamentos jurídicos privados resultaram permeados por
determinados valores, os quais, na realidade, não subsistiram com o mesmo e idêntico perfil,
vindo, paulatinamente, a sofrer o influxo de valores diferentes. E é exatamente essa mutação
de valores – especialmente implicados na transição do individualismo para a sociabilidade -,
que acaba explicando os pontos-chave do Código Civil a começar pelo art. 421 e outros
dispositivos que são tributários desse, no qual se expressa a função social.202
Assim, dentre aqueles valores, a utilização da propriedade para o bem comum teve
preocupação constante. E, segundo Gustavo Tepedino, o tema não é novo, nem
revolucionário, remonta, ao menos, à doutrina cristã da Idade Média, como na “Suma
Teológica” de Santo Tomás de Aquino. Os bens disponíveis na terra pertenceriam a todos,
sendo destinados provisoriamente à apreensão individual. O jusnaturalismo, inspirado em
critérios de eqüidade e justiça superlegislativa, proclamaria, posteriormente, a função social
da propriedade traduzida na necessidade de utilização do bem como instrumento de
realização da justiça divina. 203
Com o liberalismo do século XIX, a marca do individualismo ajudaria a moldar a
função social como instrumento da afirmação da inteligência e da liberdade humana. Esta
dogmática inspiraria, com efeito, as codificações dos países da Europa do século XIX e em
sua esteira o nosso Código de 1916. 204
200 Idem.,Ibidem., op.cit., p.115. 201 TEIZEN JÚNIOR, op. cit., p.115. 202 Idem., Ibidem., p. 116, citando Arruda Alvim (A função social dos contratos no novo Código Civil). 203 Idem., Ibidem., p.116. 204 Idem., Ibidem., p.116.
80
Arruda Alvim lembra que o direito obrigacional é operacionalizado basicamente
pelo contrato, afirmando também que a estrutura dos contratos é exatamente a estrutura
daquilo que foi denominado “ato jurídico”, mas que hoje é denominado “negócio jurídico”.205
Cumpre salientar que a Revolução Francesa foi engendrada por uma burguesia rica
e abastada, mas enfraquecida politicamente, tendo em vista que o poder residia na nobreza,
sendo certo que ao tomar o poder com a Revolução tal burguesia tratou de modificar a
sociedade de então, realizando idéias fundamentais de sua pregação e implementando o
que foi sua concepção de liberdade e sua noção de direito de propriedade, conforme elucida
Augusto Geraldo Teizen Júnior206, o que lhe valeu importante espaço para expansão com
mais riqueza em suas mãos, tendo o direito de propriedade representado um dos aspectos de
segurança jurídica pretendida pela burguesia de então, consubstanciada na não-intervenção
estatal – no denominado Estado de Polícia.
Pode-se afirmar que toda disciplina jurídica do século XIX gravitou em torno da
liberdade e no exercício da atividade econômica pelos contratos, e paralelamente, a garantia
do direito de propriedade. A burguesia assumiu, assim, o domínio da sociedade e a
continuação desse domínio na sociedade se deu justamente pelo domínio dos corpos
legislativos e, mais ainda, em seqüência a isto, na ordem jurídica, de tal modo que essa
ordem jurídica viesse a assegurar continuadamente o prevalecimento dos seus interesses. 207
A forma pela qual a burguesia conseguiu dominar foi exatamente por meio do
instrumento da lei, e, dentro do sistema jurídico, criando a noção de que a lei não podia
sequer ser interpretada, num primeiro momento, ou, então, sucessivamente, que havia de
comportar, apenas, interpretação literal. Não havia espaço ou liberdade de atuação maior para
os magistrados.208
Foram, como nos conta Franz Wieacker, as associações econômicas e profissionais
dos empresários e dos trabalhadores e a sua influência sobre o mercado que permitiram uma
evolução social. Essa evolução sentiu-se a partir da 1ª Grande Guerra, “que trouxe pela
primeira vez consigo graves restrições à liberdade contratual e à liberdade de utilização da
propriedade, ao publicizar a comercialização de quase todos os bens e ao tomar medidas
legislativas relativas à carência de habitação. Os movimentos sociais e filosóficos assim
como a evolução econômica, permitiram desmistificar a crença igualitária da Revolução 205 Idem., Ibidem., p.116. 206 TEIZEN JUNIOR, p.117. 207 Idem., Ibidem., p.117. 208 Idem., Ibidem., p.118.
81
Francesa. A meta da justiça retributiva, conquista da Revolução Francesa, dá lugar à justiça
redistributiva, com o acentuado intervencionismo estatal e dirigismo contratual que, no
Brasil, é fartamente documentado a partir de 1930.209
Por outro lado, vale a pena referir que a Igreja Católica exerceu grande influência
na doutrina da função social, pelo que se denominou “doutrina social da Igreja”, que teve
ponto culminante com Santo Tomás de Aquino, para quem a propriedade é um dos direitos
naturais do homem, isto é, a faculdade de que todo homem tem de possuir os bens que
necessite para sua sobrevivência e realização de seus ideais. Tendo tal propriedade, na
concepção de Santo Tomás, apropriada e dividida como decorrência do direito humano, do
direito das gentes, não contraria o direito natural, mas revela um acréscimo que a
constituição humana introduziu neste direito que se traduziu em regras, de ordem positiva,
que visam efetivar a divisão dos bens entre os homens. 210
No pensamento de Santo Tomás a propriedade é tida como um bem de produção e
não como um bem inserido na riqueza de alguém, sem outra finalidade que a não
especulativa, contém em si uma função social, isto é, “uma preocupação com o bem-estar
comum, de modo a conduzir o seu uso às melhores formas de justiça social. 211
Vislumbra-se, na doutrina tomista, a idéia de que o direito de propriedade decorre do
direito natural; que o homem para sobreviver, se alimentar, tem na terra, por meio da
produção, suas necessidades básicas atendidas; assim uma sociedade justa é aquela que
garante a todos pelo menos o essencial à vida, ainda que “compreenda ser legítimo o fato de
que alguns possam mais que os outros, desde que a estes últimos não escasseie o vital”.212
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka apud Augusto Geraldo Tezen Júnior213
elucida que a função social entendida como essência qualitativa do direito de propriedade, a
exigir dela a produção, sua atribuição primeira, como a intenção justa, divina e única de
permitir a sobrevivência da humanidade.
Como afirmou Giselda Hironaka, a função social, como qualidade inerente ao
conceito de propriedade, visa adaptar este direito aos interesses maiores de toda a
coletividade, além da figura singular do proprietário.214
209 TEIZEN JÚNIOR, op.cit.p. 118-119. 210 Idem., Ibidem., p.119-120. 211 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes apud TEIZEN JUNIOR, op.cit.,.120-121. 212 Idem., Ibidem., p.121. 213 Idem., Ibidem. .p.121. 214 Idem., Ibidem. p. 121.
82
Quanto à concepção filosófica de Santo Tomás de Aquino podem ser citadas
algumas encíclicas papais que derivaram de tal concepção: a Rerum Novarum, de Leão
XIII, de 1891, que reconhecia à propriedade privada sua função social, sua função de
utilidade comum a todos, deixando a salvo a iniciativa privada, garantindo dessa forma a
liberdade e a dignidade humanas; a Encíclica Quadragésimo Anno, de Pio XI, em 1931,
defendeu as mesmas idéias de Santo Tomás, observando os princípios da Lei Natural e da
Lei Divina, tendo advertido sobre a necessidade de se harmonizar a intervenção estatal, na
hipótese de ser mesmo necessária e fazer valer a função social.
Por outro lado, as Mensagens de Pio XII, tais como La Solemita (1941) e Oggi
(1944), reabrem o tema da doutrina da função social da propriedade, relembrando, na
primeira, que o reconhecimento da propriedade privada era fundamental para que se pudesse
obter uma justiça social e um desenvolvimento econômico favorável, e que só o respeito à
iniciativa privada é que poderia assegurar a prosperidade da própria função social da
propriedade (grifo do autor).215
Ao fim da Segunda Grande Guerra, o Pontífice, em Oggi chamava a atenção dos
povos para as injustiças do capitalismo moderno, em que alguns poucos detêm a maior parte,
em detrimento dos menos favorecidos e mais injustiçados. Pedia o Papa a regulamentação do
uso da propriedade e a própria expropriação, como medida de sanção àqueles que não dessem
à propriedade um uso harmonioso com o interesse comum.216
Na Encíclica Mater et Magistra, o Papa João XXIII recordou as advertências de
Leão XIII, tendo se referido ao fato de que a propriedade privada tem, naturalmente
intrínseca, uma função social, de tal forma que quem desfruta de tais direitos deve exercitá-
los em benefício próprio e para utilidade de todos os demais.
Já na Encíclica Populorum Progressio, o Papa Paulo VI, reiterando o pensamento de
Santo Agostinho e Santo Tomás, manifestou-se contra o fato de que aqueles que possuam a
mais conservem para si os excessos, em detrimento dos que nada possuem.
Em resumo, percebe-se que Igreja em seus pronunciamentos reconhece na
propriedade privada uma função social, cujo fundamento reside no destino comum dos
bens217, percebendo-se das Encíclicas Papais o destaque quanto a importância da inclusão
social via trabalho e distribuição das riquezas, ideal que foi impulsionado mais tarde pelo
215 TEIZEN JÚNIOR, p.122. 216 TEIZEN JÚNIOR, p.122. 217 TEIZEN JÚNIOR, op.cit. p.123.
83
Concílio Vaticano II e pela Teologia da Libertação que deram forte impulso a discussão
acerca do uso da terra e do tributo social que sobre ela repousa.218
Conforme elucida Giselda Hironaka, citada por Augusto Geraldo Tezen Júnior219,
dois elementos se verificam do discurso da Igreja quanto ao direito de propriedade, ou seja,
no primeiro deles o direito individual, que se refere ao fato de que todo homem tem direito e
se trata de um direito absoluto, a tantos bens quantos sejam necessários para satisfação de
sua condição pessoal, social e humana, já o segundo elemento se refere ao direito social,
pelo qual tudo aquilo que excede deve ser redistribuído em proveito da sociedade, cuidando-
se de um tipo de administração, remunerada, sem dúvida, que se passa por conta do interesse
social.
Contudo, tal concepção pode parecer que se esteja transformando a propriedade em
patrimônio coletivo da humanidade, contudo, tal idéia não é verdadeira, posto que a
preocupação social, pretende apenas subordinar a propriedade privada aos interesses da
sociedade, cuja idéia base é a doutrina da função social, consubstanciada na idéia geral de
que os bens de produção cumprem sua finalidade produtiva, afetando a propriedade.
4.4. Função Social da Propriedade
Conforme lúcidas observações de Francisco Amaral220 a propriedade é um dos
institutos jurídicos fundamentais e o mais importante dos direitos privados, principalmente
por sua ligação com os demais institutos do direito civil, é considerado pelo citado autor o
elemento básico do direito patrimonial.
Nos últimos anos, graças sobretudo ao reconhecimento operado pela atual
Constituição de que a propriedade deve atender também aos interesses da sociedade, muito
tem-se escrito e debatido acerca da função social da propriedade.221
Protegida pela Constituição como direito fundamental (CF, art. 5º, XXII) e como
princípio da Ordem Econômica e Financeira (CF, art. 170, II), é regulada, como categoria
unitária, pelo Código Civil (arts. 524 a 647).222 Juntamente com a autonomia privada, é
projeção imediata, na ordem jurídica, do individualismo que marcou o direito civil dos
séculos passados. Contudo, é na propriedade que se refletem as transformações ocorridas na
218 COLARES, Marcos. Breves Notas Sobre a Função Social da Propriedade. Jus Navigandi, Teresina, a.5, n. 51, out. 2001. 219 HIRONACA apud TENZEN JUNIOR, op.cit., p.123. 220 AMARAL, op. cit., p. 139-140. 221 GONDINHO, André Osório. Função Social da Propriedade. 222 Os artigos citados se referem ao Código Civil de 1916.
84
sociedade, no século XX, constatando-se o declínio da noção unitária de propriedade,
desenvolvendo-se a idéia de um instituto plural, passando a prevalecer a idéia do social sobre
o individual, surgindo a função social, relacionando o uso da propriedade de acordo com as
exigências do bem comum.
O tema referente à denominada função social da propriedade tem despertado a
atenção dos juristas que tratam de assunto relacionado com a propriedade e seus
desdobramentos, uma vez que vários problemas ligados à violência seja no campo ou na
cidade, à falta de moradia, à escassez de alimentos, bem assim, a questões de degradação do
meio ambiente, estão intimamente relacionados com a distribuição da terra no Brasil.
A função social liga-se ao exercício da propriedade de acordo com as exigências do
bem comum. Significa que o proprietário não tem apenas poderes, mas também deveres no
exercício da seu direito. No caso da propriedade rural, ela cumpre a sua função social quando
tem aproveitamento adequado; quando utiliza bem os recursos naturais disponíveis e preserva
o ambiente; quando respeita as disposições normativas do trabalho, e quando a sua
exploração favorecer o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores (CF art. 186).223
O sistema jurídico da propriedade compõe-se hoje, no direito brasileiro, de a)
normas constitucionais, que a reconhecem como direito fundamental (C.F. art. 5º, caput),
estabelecem a sua garantia (C.F. art. 5º, XXII), e a condicionam à sua função social e
permitem a desapropriação (C.F. art. 5º, XXIV); b) normas ordinárias, do Código Civil (arts.
524 a 648) e leis especiais.224
Hoje não há mais que falar em propriedade no mesmo sentido e alcance tradicional.
A propriedade pode ser estudada em dois aspectos, o estrutural e o funcional.
A dogmática tradicional preocupa-se somente com a estrutura do direto subjetivo
proprietário – em seu aspecto estático – ou seja, os poderes do titular do domínio quais
sejam:
1 . O aspecto interno – cujo conteúdo é o econômico que é composto pelas
faculdades de usar, fruir e dispor.
2. O aspecto externo - o jurídico que se traduz na faculdade de exclusão das
ingerências alheias. 225
223 AMARAL, op. cit., p.142. 224 AMARAL, op. cit., p.142. 225 TEIZEN JÚNIOR, op.cit., p.139-140.
85
A função social da propriedade representa o ponto de convergência de todas as
gradativas evoluções pelas quais passou o conceito de propriedade. Para atender a sua
função social, a propriedade deverá andar junto com os interesses coletivos, não podendo
sobrepor-se a eles. Se, por um lado, as limitações à propriedade interferem no exercício do
direito de propriedade, a função social é um princípio que condiciona e afeta a propriedade
privada em sua estrutura. Ela é condicionante do próprio direito de propriedade, e não apenas
de seu exercício. Segundo Seabra Fagundes, o direito de propriedade está condicionado “à
sua compatibilidade e ao seu entrosamento com o interesse comum, na plenitude dessa
compatibilidade e desse entrosamento se traduzindo a sua função social. 226
Por meio da função social da propriedade, o direito de propriedade não pode mais
ser considerado como preexistente a uma legislação urbanística que venha a regular seu
exercício. Ao contrário, a legislação urbanística é que precede esse direito, tratando de
especificar as condições para que ele seja legítimo ou não, ou seja, estabelecendo requisitos
para seu reconhecimento.227
A função social da propriedade não é apenas um princípio vetor do direito
urbanístico brasileiro. Ela é estruturante do Direito Urbanístico em vários países, e, tal como
no ordenamento pátrio, o princípio da função social vem expressamente definido em normas
versantes sobre matéria fundiária. A exemplo, cite-se a Ley sobre el régimen del suelo y
ordenación urbana espanhola, de 1922, que assegura e dispõe que “la función social de la
propiedad delimita el contenido de las facultades urbanísticas susceptibles de adquisición
(derechos a urbanizar, al aprovechamiento urbanístico, a edificar y a la edificación) y
condiciona su ejercicio”. 228
226 MATTOS, Liana, op.cit., p.63. 227 Idem., Ibidem., p. 63. 228 Idem., Ibidem., p. 64.
86
5. FUNÇÃO SOCIAL DA CIDADE E DA PROPRIEDADE URBANA
5.1. Noções Gerais
No capítulo primeiro do presente trabalho aborda-se aspectos históricos do direito
de propriedade no Brasil, incluindo aí o tratamento do instituto da superfície posto ser
impossível cuidar de assunto tão interessante sem traçar seu contorno histórico.
Em seguida, cuida-se do instituto da superfície no Brasil, passando pelo período de
colonização portuguesa, em que estiveram em vigor as Ordenações do Reino de Portugal,
tendo sido abordados aspectos da fase de elaboração do Código Civil de 1916, de Teixeira
de Freitas a Clóvis Bevilácqua, onde noticia-se as diversas tentativas de inserção do instituto
da superfície no ordenamento jurídico positivo, o que acabou ocorrendo com a entrada em
vigor do Estatuto da Cidade, através da Lei nº 10.257, de 10-7-2001 e, posteriormente, com
o advento do novo Código Civil ( Lei nº 10.406, de 02 de janeiro de 2002).
Logo após, aborda-se a questão da função social da propriedade, ocasião em que
enfoca-se o princípio da sociabilidade, norteador do novo diploma civil, com destaque para
sua importância quanto ao tratamento a ser dado ao direito de propriedade.
Por agora, dando seqüência à pesquisa, cujo objetivo reside no tratamento do direito
de superfície no novo Código Civil e a sua função social, desenvolver-se-á um capítulo que
tem íntima relação com o anterior, em que será feita abordagem da função social da cidade e
da propriedade urbana com vistas ao entendimento de diversas questões ligadas à má
distribuição da terra e suas conseqüências na formação das cidades.
No entanto, antes mesmo de tratar da questão da função social da cidade e da
propriedade urbana, tema do presente capítulo, cumpre tecer algumas considerações
reputadas importantes a respeito da função social da propriedade, para não perder de vista o
fio condutor da presente pesquisa.
Referentemente ao estudo do direito de propriedade e seus contornos na nova ordem
jurídica, cumpre trazer à colação ponderações do professor Gustavo Tepedino229, nos
seguintes termos:
A propriedade pode ser estudada em dois aspectos, o estrutural e o funcional. A dogmática tradicional e, na sua esteira, o Código Civil brasileiro, preocupa-se somente com a estrutura do direito subjetivo proprietário. O art. 524 do C. Civ.230, com efeito, evitando defini-la, dispõe sobre os poderes do titular do domínio,
229 TEPEDINO, Gustavo. A Nova Propriedade (o seu conteúdo mínimo, entre o Código Civil, a legislação ordinária e a Constituição). Revista Forense, Rio de Janeiro: Forense, vol. 51, n. 306, p. 73-78, abr.1989. 230 Referência ao Código Civil de 1916.
87
fixando o aspecto interno ou econômico, caracterizador do senhorio, e outro externo, o aspecto propriamente jurídico da estrutura da propriedade. O primeiro aspecto, interno ou econômico, é composto pelas faculdades de usar, fruir e dispor, O segundo, o jurídico, traduz-se na faculdade de exclusão das ingerências alheias.
Estes dois aspectos, o interno e o externo, compõem a estrutura da propriedade, o seu aspecto estático. Já o segundo aspecto, mais polêmico, é alvo de disputa ideológica, refere-se ao aspecto dinâmico da propriedade, a função que desempenha no mundo jurídico e econômico a chamada função social da propriedade.
Colocadas tais considerações, percebe-se que o tratamento do direito de propriedade
passou por profundas transformações nas últimas décadas, onde o legislador passou a se
preocupar com outro aspecto inerente ao direito proprietário, qual seja, o referente à sua
função social.
Conforme adverte o autor supracitado, o tema referente à função social da
propriedade não é novo, remontando à doutrina cristã da Idade Média, na preocupação com
a utilização da propriedade com vistas a atingir o bem comum da coletividade e, com base no
jusnaturalismo, construiu-se a noção de função social da propriedade traduzida na idéia de
que a propriedade só teria sentido quando utilizada com o objetivo de realização da justiça
divina.
Porém, com o liberalismo do século XIX, concebeu-se a idéia de função social da
propriedade, com a apropriação em si, como mecanismo de expressão e de desenvolvimento
da liberdade humana, por inspiração das primeiras codificações da Europa e que acabou por
influenciar nossa primeira codificação.
Após a primeira guerra mundial, ocorreram graves mudanças no papel do Estado que
de mero espectador das atividades privadas, passou a intervir sistematicamente na economia,
com vistas a evitar o crescimento das desigualdades sociais, no pronto atendimento de
interesses básicos da população carente, como os “sem terra”, os “sem teto” e o contingente
enorme de desassistidos dos serviços públicos prestados pelo Estado, formam uma classe de
reivindicantes que culminou em incontáveis movimentos sociais, conforme pondera Gustavo
Tepedino. 231
Nesse diapasão, a propriedade passou a ser enxergada de forma diferente pelo
legislador, que a partir de então vai dotá-la de uma função primordial na distribuição de
rendas, sendo certo que a situação de proprietário passou a implicar para o titular no dever de
respeitar o contingente de não proprietários.
231 TEPEDINO, op.cit., p. 73-78.
88
Por outro lado, o proprietário passa a não desfrutar de sua posição de supremacia em
razão da titularidade de proprietário, sendo que a fórmula do jus utendi et abutendi
originários do direito de propriedade romano passou a não servir mais como fundamento de
manutenção do status de absoluto do direito de propriedade frente aos não proprietários,
passando este a ser questionado sob o prisma de sua função social e de seu conteúdo, diante
da nova ordem jurídica então existente, conforme adverte o professor Gustavo Tepedino.
5.2. O direito de propriedade na Constituição de 1988
O direito de propriedade, bem como sua função social disciplinados nos incisos XXII
e XXIII do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 que trata dos direitos e garantias
individuais irradiou para todo o ordenamento jurídico vigente, garantindo o direito de
propriedade atrelado à sua função social.
No caso do Brasil o texto Constitucional de 1988 passou a incluir a propriedade
privada como um de seus fundamentos, ou seja, como um dos princípios da ordem
econômica, ao lado da função social da propriedade, no artigo 170, incisos II e III.
De outro norte, os artigos 182 e seguintes da atual Constituição Federal traça regras
incidentes sobre a propriedade territorial urbana, bem como o artigo 184 e seguintes, que
trata da propriedade rural no capítulo dedicado ao tratamento da política agrícola, fundiária e
da reforma agrária.
Assim, o Constituinte de 1988 criou estatutos diversos para a propriedade, segundo
sua localização – rural e urbana-, potencialidade produtiva e não produtiva – e titularidade –
apropriação por estrangeiros ou por nacionais, conforme adverte o professor Gustavo
Tepedino.232
No tocante ao direito urbanístico brasileiro, cumpre salientar que com a entrada em
vigor do Estatuto da Cidade, através da Lei nº 10.257 de 10 de julho de 2001, passou por
um processo de consolidação conceitual de seus principais institutos, pela contribuição de
diversos renomados doutrinadores como Eros Roberto Grau, Nelson Saule Júnior, José
Afonso da Silva, Toshio Mukai, Ricardo Pereira Lira, Edésio Fernandes, Diogo de
Figueiredo Moreira Neto e Hely Lopes Meirelles que grandes contribuições trouxeram para o
desenvolvimento do direito urbanístico brasileiro233, na esteira das grandes transformações
232 TEPEDINO, op. cit., p. 75. 233 DIAS, Maurício Leal. A função social ambiental da cidade como princípio constitucional. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n.565, 23 jan. 2005. Disponível em http://jus2.com.br/doutrina/texto. asp?id=10. Acesso em 18 jun..2006.
89
ocorridas na sociedade brasileira nas últimas décadas, com sua industrialização e conseqüente
crescimento das cidades e as conseqüências daí resultantes.
Sabe-se que grande parte da população vive nas cidades, com prejuízo da qualidade
de vida e do meio ambiente, além de outros fatores de marginalização da população de baixa
renda, como o surgimento das favelas, mocambos, palafitas e de um sem número de “sem
teto”, conforme adverte o Professor Ricardo Lira234.
O instituto da superfície talvez servirá, se bem utilizado, para eliminar ou quem sabe
diminuir os problemas surgidos com a vinda das pessoas do campo para as cidades em busca
de melhores condições de vida não encontráveis no meio rural em razão da pouca infra-
estrutura inerente ao meio rural e do conforto que a cidade grande promete oferecer, como
possibilidade de emprego, escola, oferta de produtos para consumo, etc.
Neste capítulo enfrentou-se tais questões e procurou-se demonstrar que o instituto da
superfície, se bem compreendido por aqueles que administram as cidades, poderá ser de
grande utilidade na busca de uma justa distribuição do espaço urbano e contribuirá para uma
vida mais saudável da população que vive nos grandes aglomerados urbanos.
Entendeu-se que todas essas questões estão intimamente relacionadas com a má
distribuição do espaço urbano, sendo certo que os princípios do direito urbanístico são
encontráveis na Constituição Federal, mormente no artigos 21, IX quanto a elaboração e
execução de planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento
econômico e social, no artigo 21, XX, ao instituir diretrizes para o sistema nacional de
viação, no artigo 23, IX e X, no tocante à promoção de programas de construção de
moradias e a melhorias das condições habitacionais e de saneamento básico e ao combate às
causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores
desfavorecidos.
Por outro lado, o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257, de 10-07-2001), em seu artigo
4º e seguintes, fornece os instrumentos jurídicos e políticos a serem utilizados para viabilizar
a implantação de uma política urbana nos moldes previstos no texto constitucional, quais
sejam, servidão administrativa, limitações administrativas, tombamento de imóveis ou de
mobiliário urbano, instituição de unidade de conservação, de zonas de interesse social,
concessão de direito real de uso, concessão de uso especial para fins de moradia,
parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, usucapião especial de imóvel urbano;
234 LIRA, op. cit., p. 108 e s.
90
direito de superfície, direito de preempção, outorga onerosa do direito de construir e de
alteração de uso, transferência do direito de construir, operações urbanas consorciadas,
regularização fundiária e assistência técnica e jurídica gratuita para as comunidades e
grupos sociais menos favorecidos, além do referendo popular e plebiscito e estudo prévio de
impacto ambiental (EIA) e estudo prévio de impacto de vizinhança (EIV).
Observe-se que o administrador está munido de instrumentos jurídicos e políticos
que lhe ajudarão a minimizar o problema da falta de moradia e das conseqüências dela
decorrentes, sendo o direito de superfície um desses instrumentos, mas desde que bem
utilizado, com cláusula de opção de compra do imóvel ao término do contrato.
Na efetivação da função social da propriedade urbana ganha realce o instituto da
superfície, como importante instrumento de regularização fundiária, principalmente nas
favelas, desde que utilizada com o contrato contendo cláusula de opção de compra do
imóvel ao seu término, conforme sugere o professor Ricardo Lira235, in verbis:
As utilidades do instrumento podem igualmente ser valiosas, sobretudo em uma política de regularização fundiária, para titulação de áreas de assentamento de populações de baixa renda (favelas, mocambos, palafitas, loteamentos irregulares do ponto de vista dominial), pactuando-se no final do prazo de concessão uma opção de compra, com o que se ensejará a essas populações o acesso à propriedade da terra urbana.
Assim, segundo Fernanda Lousada Cardoso,236 “a doutrina civilista, atenta à
realidade social vivida nos dias de hoje, afirma que a propriedade urbana só será reconhecida
e tutelada pelo ordenamento jurídico, caso esteja exercendo sua função social, propiciando o
exercício das chamadas funções urbanísticas de moradia, trabalho, circulação e recreação”.
Ainda no que se refere ao uso do solo urbano, o professor Ricardo Lira237 adverte
para o fato de que “sobre a edificação e o parcelamento compulsórios, contemplados nos
artigos 5º, 6º e 8º do Estatuto da Cidade, seriam armas eficazes na repressão à especulação
imobiliária, podendo o proprietário ser notificado para edificar dentro de prazo
preestabelecido em lei, pena de exacerbação do IPTU, além da possibilidade do parcelamento
compulsório previsto no segundo dispositivo legal supracitado, bem como no direito de
235 LIRA, Ricardo Pereira. Direito urbanístico, estatuto da cidade e regularização fundiária. Revista de Direito da Cidade/Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Harbra, v.1, n.1, p.149-164, maio.2006-semestral. 236 CARDOSO, Fernanda Lousada. Instrumento de efetivação da função social da propriedade: o usucapião especial urbano. Revista de Direito da Cidade/Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Harbra, v.1, n.1, p.91, maio.2006-semestral. 237 Idem., Ibidem., p. 156.
91
preempção, consistente no direito de preferência que o município teria, sobre imóveis
localizados em determinadas áreas, objeto de transação entre particulares.
5.3. O direito à moradia como direito humano fundamental
Com a sua inserção no rol dos direitos fundamentais sociais no artigo 6º da
Constituição Federal de 1988, não há dúvida de que o direito à moradia foi reconhecido
expressamente pela norma jurídica fundamental, por sua íntima relação com outro princípio
constitucional, qual seja, o da dignidade da pessoa humana, cujo objetivo é a proteção da
pessoa contra as necessidades de ordem material e a garantia de uma existência digna.238
Quanto ao tratamento do direito à moradia como direito humano fundamental
cumpre averbar, inicialmente, que no tocante à autonomia conferida ao município pela
Constituição de 1988, destaca-se o constante do artigo 30, inciso III, consistente na outorga
de competência ao município para prover, no que couber, adequado ordenamento territorial,
mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano.
Contudo, importa consignar, neste tópico, que embora o artigo 6º da Constituição
Federal de 1988 tenha inserido o direito à moradia dentre os direitos sociais constantes do
referido dispositivo constitucional, graves são os problemas atinentes à escassez de moradia e
muito ainda precisa ser feito para que o direito à moradia não seja apenas uma previsão sem
conteúdo prático no texto constitucional.
Sobre a questão da efetividade de referido dispositivo legal lúcidos são os
esclarecimentos de Ingo Wolfgang Sarlet, verbis:
Voltando-nos agora mais especificamente para a questão do conteúdo do direito fundamental à moradia, deparamo-nos possivelmente com um dos mais angustiantes e complexos problemas que o tema suscita e que, de certa forma, é comum aos assim designados direito sociais, notadamente quando examinados pelo prisma da sua condição de direitos a prestações, já que da definição de qual o seu conteúdo (ou objeto, se assim preferirmos), decorrem importantes conseqüências até mesmo no que diz com a locação de recursos materiais e humanos para a sua efetiva realização.
Iniciando a abordagem do ponto de vista terminológico, andou bem o nosso legislador constitucional ao referir o direito à moradia de forma genérica,
238 SARLET, Ingo Wolfgang. O Direito Fundamental à Moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. Arquivos de Direito Humanos. In: TORRES, Ricardo Lobo; MELLO, Celso D. Albuquerque.(Org.). Arquivos de Direito Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, 4, p.137-191, ao destacar que o direito à moradia tem íntima vinculação com a dignidade da pessoa da pessoa humana, posto tratar-se de direito à condições materiais mínimas para uma existência digna. Para o citado autor, sem que a pessoa tenha um lugar adequado para proteger-se a si próprio e a sua família contra as intempéries, sem um local para gozar de sua intimidade e privacidade, enfim, de um espaço essencial para viver com um mínimo de saúde e bem estar, certamente a pessoa não terá assegurada a sua dignidade, não tendo sequer assegurado o direito à própria existência física e, conseqüentemente, o seu direito à vida.
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desacompanhado de qualquer adjetivo. Com efeito, tendo em conta a previsão, na esfera dos tratados internacionais, de um direito à moradia adequada (como ocorre no Pacto Internacional de 1966) ou mesmo de um direito a uma moradia decente, como dispõe a Constituição da Bélgica, não nos parece, especialmente à luz da nossa atual Carta Magna, que um direito à moradia possa, em qualquer hipótese, ser interpretado como um direito à moradia não adequada ou, pior ainda, não decente. Uma moradia minimamente compatível com as exigências da dignidade da pessoa humana, à evidência, sempre deverá ser adequada e decente. De qualquer modo, cuidando-se certamente de aspecto de menor relevância, convém levar em consideração que a adjetivação tem o mérito inquestionável de afastar interpretações demasiadamente restritivas, que possam vir a reduzir excessivamente o objeto do direito à moradia ou (o que dá no mesmo) deixá-lo na completa dependência do legislador infraconstitucional.
Não se pode deixar de mencionar o fato de que com o escopo de efetivar existência
digna, o direito à moradia assume posição preferencial em relação ao direito de propriedade
que atualmente encontra-se limitado pela sua função social, no sentido que apenas a
propriedade socialmente útil, ou seja, aquela que cumpre sua função social, é protegida e
tutelada pela norma fundamental, uma vez que sob a nova roupagem a propriedade tem que
cumprir função existencial e não simplesmente patrimonial, conforme adverte Ingo
Wolfgang Sarlet239.
Nesse sentido, pode-se dizer que o direito à moradia tem íntima conexão com o
princípio da dignidade humana inserto no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal de
1988, consistente em preservar ao cidadão padrões mínimos e indispensáveis a uma vida
saudável, completo bem-estar físico, mental e social, posto que uma vida digna poderá ser
menos que uma vida com saúde, não restringindo apenas a mera sobrevivência física, o que
deverá ser assegurado pelo Estado, por tratar-se de um complexo de direitos e deveres
fundamentais a serem tutelados pelo poder público com vistas a garantir condições
existenciais mínimas para uma vida digna e pautada na oportunização, aos cidadãos, de
poderem participar das tomadas de decisões que refletirão em seus destinos.
É preciso mencionar que a implementação do direito à moradia digna requer o
atendimento de uma série de elementos básicos estabelecidos pela Comissão de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais da ONU para nortear as autoridades legislativas, executivas
e judiciárias, conforme descrição de Ingo Wolfgang Sarlet240, in verbis:
a) Segurança jurídica para a posse, independentemente de sua natureza e origem.
b) Disponibilidade de infra-estrutura básica para a garantia da saúde, segurança, conforto e nutrição dos titulares do direito (acesso à água potável, energia para o preparo da alimentação, iluminação, saneamento, básico, etc).
239 SARLET, op. cit., p. 157-158. 240 Idem., ibidem., p. 159.
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c) As despesas com a manutenção da moradia não podem comprometer a satisfação de outras necessidades básicas.
d) A moradia deve oferecer condições efetivas de habitabilidade, notadamente assegurando a segurança física aos seus ocupantes.
e) Acesso em condições razoáveis à moradia, especialmente para os portadores de deficiência. f) A moradia e o modo de sua construção devem respeitar e expressar a identidade e diversidade cultural da população.
Ante tais considerações, pode-se afirmar com Matthew Craven citado por Ingo Sarlet
que das diretrizes supracitadas decorrem que o direito à moradia não implica apenas em
“um teto sobre a cabeça” ou “espaço físico” para viver, pressupondo a observância de
critérios qualitativos mínimos.241
Importa consignar, ainda, que o direito à moradia digna deve ser meta a ser
perseguida e atingida pelo Estado que deve implementar políticas públicas objetivando
reconhecer, respeitar e proteger o direito à moradia, por ser direito fundamental relevante,
sustentando com Ingo Sarlet o seguinte:
Sem que se vá aqui examinar de modo mais detalhado cada obrigação a ser assumida pelos Estados na esfera internacional, o que se verifica, desde logo, é que tais compromissos apenas enrobustecem a constatação de que o direito à moradia apresenta uma face defensiva e prestacional, implicando um feixe complexo, conexo e diversificado de posições jurídicas fundamentais, com notas distintas até mesmo no âmbito interno da classificação em direitos negativos e prestacionais.
Ademais, sob esse anglo de visão, cumpre trazer à baila as lúcidas ponderações do
professor Ricardo César Pereira Lira,242 in verbis:
Nos países subdesenvolvidos, e nos países em desenvolvimento como o nosso, a ocupação do espaço urbano faz-se marcada pelo déficit habitacional, pela deficiência de qualidade dos serviços de infra-estrutura, pela ocupação predatória de áreas inadequadas, pelos serviços de transporte deficientes, estressantes poluentes, pela agressão frontal ao meio ambiente natural e ao meio ambiente construído, pela deslegitimação da autoridade pública fomentando um sentimento generalizado de impunidade – sobretudo nas classes abastadas, como demonstra o episódio ocorrido há algum tempo em Brasília, quando jovens da alta classe média atearam fogo em um índio Pataxó que dormia na via pública – e determinando em inúmeros centros urbanos o aparecimento de um estado paralelo penetrado pelo crime organizado, com espantoso poder de fogo, freqüentemente impondo-se à comunidade e ao próprio Estado formal. Esse “estado paralelo”, pelo menos no seu braço visível, instala-se nas favelas, nos cortiços, nas periferias, tornando-se cada vez mais problemática a sua dominação e conseqüente extinção pela infiltração que logra nos segmentos do mundo oficial, sendo muitas vezes difícil, senão impossível, distinguir entre o agente oficial e o bandido, tamanha a imbricação entre eles existente.
241 CRAVEN, Matthew apud SARLET, op. cit., p. 159-160. 242 LIRA, Direito urbanístico, estatuto da cidade e regularização fundiária, p.149-164.
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A América Latina é das regiões mais desigual do mundo. Essa desigualdade refere-se
a vários aspectos da vida dos cidadãos, como a distribuição de renda, a educação, a saúde, a
moradia, os serviços públicos, o trabalho, o tratamento policial e judicial, a participação
política, dentre outros. Quanto à concentração de riqueza, tem-se que 10% dos indivíduos
mais ricos recebem entre 40 e 70% do total da renda, na maior parte dos países da América
Latina, enquanto os 20% mais pobres recebem apenas de 2% a 4%. Dentre os países de maior
concentração de renda da região figuram Brasil, Chile, Guatemala, Honduras, México e
Panamá, e de menor concentração tem-se a Costa Rica, Jamaica, Uruguai e Venezuela. 243
Contudo, não restam dúvidas de que tais fatores de desigualdades têm íntima relação
com o processo de colonização e estão relacionados com a distribuição de terras nos países
citados, notadamente o Brasil, uma vez que não obtiverem êxito as tentativas de
implementação da reforma agrária, situação que tem contribuído para o agravamento dos
conflitos pela posse da terra rural e pela violência no campo.
Sob esse enfoque vale a pena citar passagem do texto de Letícia Marques Osório,244
in verbis:
A desigual distribuição de terras na América Latina é um dos fatores responsáveis pelo exacerbamento da marginalização dos segmentos mais vulneráveis da população. Nas regiões não urbanizadas, a desigualdade no acesso à terra e aos serviços essenciais de infra-estrutura tem contribuído para a proliferação dos assentamentos precários e irregulares em áreas inadequadas ou impróprias à moradia. De acordo com o Conselho Econômico para América Latina das Nações Unidas, a desigualdade na distribuição de renda nos últimos 20 anos declinou apenas na Bolívia, Honduras e Uruguai. O número de pobres cresceu de 40 milhões para 180 milhões, correspondendo a cerca de 36% da população. Destes, 78 milhões vivem em extrema pobreza, sem condições de pagar pelas refeições básicas diárias.
A América Latina é também a região mais urbanizada do mundo, tendo 75% da população vivendo em cidade no ano de 2000. Em 2030, este índice chegará a 83% da população. O índice regional de urbanização, entretanto, não reflete as situações urbanas nacionais, pois encobre o alto grau de heterogeneidade existente entre os países latino-americanos, tanto no que se refere ao grau de urbanização, quanto no que diz respeito à velocidade do processo. Diferenças de grau de urbanização também podem ser percebidas dentro de um mesmo país, como é o caso do Panamá, onde determinadas províncias possuíam, em 1995, 76% de população urbana, enquanto a média nacional era de 56%.
Conforme adverte a citada autora o crescimento vertiginoso da população urbana nos
paises da América Latina é explicado em parte pela explosão demográfica, mas
principalmente pelo êxodo rural, que se iniciou e se manteve devido à ausência de políticas
consistentes de reforma agrária. Em geral, as leis e as políticas públicas criadas para tentar
243 OSÓRIO, Letícia Marques. Direito À Moradia Adequada na América Latina. In: ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio (Org. e Co-autores). Direito à Moradia e Segurança da Posse no Estatuto da Cidade. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004, p.17. 244 Idem., Ibidem,. op. cit.,p.18.
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conter o crescimento desordenado das cidades eram discriminatórias e de cunho excludente,
gerando mais pobreza, marginalização, analfabetismo, desemprego e subemprego, carência de
serviços e equipamentos, déficits habitacionais e degradação ambiental.245
Enquanto nos países desenvolvidos as mudanças ocorrem à medida que determinadas
inovações tecnológicas amadurecem, nos países não-desenvolvidos, ramos inteiros de
produção são implantados, de uma só vez, submetendo a estrutura econômica a choques
muito mais profundos. Veja-se que nos países desenvolvidos, o conjunto da população está,
em regra, integrado na economia de mercado, enquanto nos subdesenvolvidos boa parte da
população ainda se encontra numa economia cuja organização produtiva lhe provê apenas a
subsistência imediata, ou seja, não produz excedentes agrícolas de vulto à comercialização.246
O processo migratório campo-cidade, nesses países, dá-se por pressões positivas,
através da oferta de melhores empregos nas cidades, e negativas ou expulsadoras do campo,
tanto por um crescimento vegetativo dessas populações como por alterações na tecnologia de
produção agrícola e formas organizacionais da produção e da criação de tipos de produtos
liberadores de mão-de-obra. Tal migração, todavia, não provoca, de imediato, aumento da
demanda por produtos urbanos considerando a pobreza do imigrante, não conseguindo, por
isso, traduzir em demanda com capacidade aquisitiva, todo o tipo de carência que carrega,
conforme adverte Rogério Gesta Leal. 247
Para Ronaldo L. Coutinho,248 a questão urbana sob comento, pode ser assim
analisada:
A intensa aceleração do processo de urbanização da formação social brasileiro conjugada às reestruturação produtiva operada no capitalismo, com a mundialização e a financeirização do capital, acentua e agrava as condições de vida nas concentrações urbanas brasileiras, sobretudo nas regiões metropolitanas, com a eclosão de conflitos que explicitam as próprias contradições inerentes à ordem social capitalista.
O autor continua sua análise fazendo um exame do problema urbano, sustentando
que:
São conflitos derivados da desigualdade social ampliada por uma concentração de renda situada entre as maiores do mundo atual e que traduzem, especialmente no âmbito das cidades, elevadas taxas de iniqüidade social. Estabeleceu-se no espaço
Idem., Ibidem., op. cit., p. 62.
245 OSÓRIO, op. cit., p. 19. 246 LEAL, Rogério Gesta. A Função Social da Propriedade e da Cidade no Brasil: aspectos jurídicos e políticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 61. 247
248 COUTINHO, Ronaldo L. Direito da Cidade: o direito no seu lugar. Revista de Direito da Cidade/Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Harbra, v.1, n.1, p.1-12, maio.2006-semestral.
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urbano brasileiro, entre outras, uma crise que se requer, cada vez mais, intervenções do Poder Público e, em última instância do Poder Judiciário. Mas não se trata apenas da proposição e edição de novas leis, como supõem, ainda, algumas almas ingênuas e bem intencionadas do universo jurídico; exige-se na verdade, uma nova forma de pensar o próprio Direito e suas práticas, vista a patética impotência do ordenamento jurídico (a despeito dos inquestionáveis avanços da Constituição atual e da regularização de alguns de seus dispositivos, a exemplo da Lei Federal 10.257/01, para gerar soluções minimamente razoáveis no sentido de pelo menos atenuar determinadas situações incompatíveis com a decantada defesa da dignidade da pessoa humana alardeada por uma corrente de juristas afinados com os princípios da “solidariedade”.
Relativamente ao tratamento do assunto relacionado ao crescimento da periferia,
Ellade Imparato 249 salienta que a ocupação informal do solo brasileiro não é exatamente uma
novidade, posto que a própria Lei de Terras publicada pelo governo imperial em 1850
objetivou coibir a posse de terras sem titulação. Tal fato se deu em razão de que com a
independência, ocorrida em 1822, as terras brasileiras deixaram de ser propriedade da Coroa
portuguesa, apesar de apenas parte da ocupação do território nacional estar respaldada nas
concessões de terras feitas em consonância com as leis de Portugal.
Por outro lado, a forma de ocupação das terras brasileiras determinou não só a
perpetuação do latifúndio, como também a formação de uma nação agrícola, uma vez que o
Brasil foi exclusivamente agrícola até aos anos 20, momento no qual começou a se
industrializar, ainda que de forma lenta.
Com relação a esse período de industrialização brasileira, vale a pena citar
passagem, do texto de Ellade Imparato,250 verbis:
A industrialização traz consigo a urbanização, ou seja, a concentração da população nas cidades. A industrialização brasileira concentrou-se, no primeiro momento, na cidade de São Paulo, que foi se urbanizando. E com o correr dos anos a população brasileira urbanizou-se, ocorrendo uma total inversão entre as décadas de 40 e 80. Se nos anos 40 o grau de urbanização era de 31%, em 1980 atingia 68% e em 1991 75,6%, ou seja, desde o início desta década ¾ da população brasileira reside em cidades. A concentração não se deu de modo uniforme no Brasil, e sim na região Sudeste, que em 1980 abrigava a residência de 43.5% da população brasileira. Este fluxo populacional ocorreu através de um maciço êxodo rural. Entre 1990 e 1980 cerca de 30 milhões de brasileiros deixaram as áreas rurais.
Ainda de acordo com a citada autora, com a urbanização a concentração de seus
habitantes nas cidades não foi acompanhada da adoção de políticas públicas urbanas que
viabilizassem o crescimento racional das cidades brasileiras, que assistiram impassíveis ao
crescimento desordenado de suas periferias. Assim, grandes cidades como São Paulo tiveram 249 IMPARATO, Ellade. A Regularização Fundiária na Cidade de São Paulo: A Problemática da Zona Leste. In: FERNANDES, Edésio (Org.). Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil . Belo Horizonte: Del Rey, 2001. cap. 9, p. 272. 269-301. 250 Idem., Ibidem., p.269-301.
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expansão em toda sua periferia, sendo certo que a urbanização se deu com o êxodo rural sem
a necessária oferta de unidades habitacionais à população que afluía às cidades.
Ainda de acordo com Ellade Imparato251 a população de migrantes, desprovida de
recursos econômicos, num primeiro momento adquiriu lotes de terra onde o preço era
acessível e no segundo momento deu início à ocupação pura e simples dos vazios urbanos, e,
após esse processo de ocupação do solo, as moradias são construídas através do processo de
autoconstrução e, sem qualquer investimento do Estado ou da indústria, possibilitou-se alojar
a mão-de-obra necessária ao processo de industrialização recém instalado em nosso país.
Nesses grandes centros urbanos, geralmente, os lotes de terreno são adquiridos a
preço acessível por meio de loteamentos informalmente constituídos e localizados nas
periferias das cidades, sem qualquer infra-estrutura urbana, sendo certo que esses lotes são
adquiridos por população que compra de boa-fé, desconhecendo a ilegalidade.
Com relação a esse fatos, Ellade Imparato252 assevera que a urbanização brasileira
se deu pela ocupação informal do território de suas cidades com a expansão de suas periferias,
tendo o assentamento informal do solo trazido múltiplas e nefastas conseqüências para a
cidade e seus moradores. Sobre esse aspecto IMPARATO ( 201, p.274) afirma que:
O parcelamento do solo urbano feito em desacordo com a legislação pertinente traz a impossibilidade de transferência do título de propriedade daqueles que o detenha para os ocupantes de fato. Esses moradores que compraram de boa-fé lotes ilegais – ou mesmo que os tenham ocupado -, assentando-se em caráter definitivo, constroem suas moradias primeiramente de forma rústica, as quais vão transformando em alvenaria aos poucos e fazendo contínuos aprimoramentos em suas casas. Criam seus filhos e formam seu círculo social. Porém, não têm título de propriedade sobre aquilo que possuem. A ausência de título de domínio traz uma instabilidade perene a este enorme contingente populacional que vive na informalidade.
Deste modo, conforme adverte o Professor Ricardo Lira253 (1997, p.169) que:
o direito de superfície, partindo de terras públicas, poderia perfeitamente ser utilizado como meio de absorção e abrigo das populações pobres, com vistas a evitar a criação de novas favelas, o que se concretizaria com “a implantação de uma séria política de regularização fundiária, com especial atenção dirigida às populações carentes, procedendo-se à urbanização e titulação das áreas faveladas, mocambos, palafitas e loteamentos irregulares, bem como, simultaneamente, executando-se até mesmo a fundo perdido, através do comprometimento das terras públicas em concessões de superfície temporários (30, 40 a 50 anos) (forma de utilização do solo, sem saída da gleba do domínio público); com o que, a par da regularização das áreas já atualmente a serem tituladas, se evitarão as favelizações futuras.
251 IMPARATO, op. cit., p. 273. 252 Idem., Ibidem., p.274. 253 Idem., Ibidem., p.169.
98
No tocante às políticas públicas adotadas no Brasil para resolver ou minimizar o
problema da regularização do espaço urbano, vale a pena trazer à colação observações de
Liliane Moraes Pestana254, in verbis:
Já em relação aos programas de regularização fundiária, em particular no Brasil, estes têm sido implementados em diversos municípios desde meados da década de 1980, sobretudo a partir do começo da década de 1990, abrangendo as favelas e, em menor escala, os loteamentos clandestinos ou irregulares, de modo a promover a integração sócio-espacial, a qual consiste no tema central da Campanha Global pela Segurança da Posse, promovida, desde 1999, pela agência Habit da ONU, propugnando pelo reconhecimento do direito de moradia em detrimento do simples reconhecimento de títulos de propriedade, já que esta política não atinge o objetivo maior de regularização fundiária, que seria o de solucionar a pobreza em várias comunidades, atraindo sim outros problemas, como o despertar do interesse da especulação imobiliária.
No caso específico do Brasil pode-se destacar a criação e atuação do Ministério das
Cidades com suas políticas e programas, levando-se em consideração que, depois de mais de
20 anos de ausência de uma política urbana nacional e de um rumo errático nas políticas de
saneamento e habitação, o Governo Federal formulou uma proposta para médio e longo
prazo, mas também para curto prazo, com resultados concretos em mais ou menos 30 meses
de atuação do Ministério das Cidades.255
Combater as desigualdades sociais, transformando as cidades em espaços mais
humanizados, ampliando o acesso da população à moradia, ao saneamento e ao transporte.
Esta é a missão do Ministério das Cidades, criado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva
em 1º de janeiro de 2003, contemplando uma antiga reivindicação dos movimentos sociais
de luta pela reforma urbana.256
Ao Ministério das Cidades compete cuidar da política de desenvolvimento urbano,
bem assim, das políticas de habitação, saneamento ambiental, transporte urbano e trânsito,
de forma articulada com os estados e municípios, movimentos sociais, organizações não
governamentais, setores privados e demais segmentos da sociedade, assegurando os direitos
humanos fundamentais de acesso à moradia e vida em ambiente salubre nas cidades e no
campo.
254 PESTANA, Liliane Moraes. A Agenda Marrom: o planejamento urbano:ambiental. Revista de Direito da Cidade/Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Harbra, v.1, n.1, p.79, maio.2006-semestral. 255 Idem., Ibidem., p.82. 256 Idem., ibidem., p.82.
99
5.4. A Função Social da Propriedade e da Cidade
Para tratar deste tópico, relacionado com a função social da propriedade e da cidade,
serão tecidas algumas considerações em torno das transformações pelas quais a propriedade
passou durante as últimas décadas, para logo em seguida, abordar-se a questão da função
social da propriedade e da cidade.
Conforme adverte Rebeca de Souza,257 “ a cidadania e a dignidade da pessoa humana
são fundamentos da República Federativa do Brasil, expressamente dispostos no artigo 1º
da Constituição de 1988, irradiando-se sobre toda a constituição.”
Ainda segundo a citada autora, com base na concepção de Marshall, a cidadania
pode ser compreendida modernamente como o conjunto de direitos civis, políticos e sociais,
os quais foram sendo construídos e incorporados gradualmente ao longo da história.258
No entanto, cumpre observar, com Rogério Gesta Leal259, que a partir da segunda
metade do século XVIII, por intermédio do pensamento iluminista, surge a idéia de
codificação e sistematização das normas jurídicas em compêndios, cujo maior resultado e
prova encontra-se no Código Napoleônico de 1804, que, somado à codificação justinianéia,
revela-se de fundamental importância na formação do pensamento jurídico-positivo do
Ocidente, principalmente no tocante à propriedade privada.
Quanto ao direito de propriedade na tradição da cultura ocidental cumpre referir ao
pensamento de Rogério Gesta Leal260, verbis:
A propriedade enquanto instituto social e político, antes de jurídico, tem sido tratada de diversas formas pela cultura ocidental. Estudos clássicos, como o de Coulanges, dão conta de que há três coisas que desde a mais remota Antigüidade se encontram fundadas e solidamente estabelecidas: a religião, a família e a propriedade.
Nos estudos de Engels, percebemos que, em razão de aspectos econômicos e também físico-naturais, vinculou-se estreitamente a propriedade com a existência de agrupamentos humanos e familiares, relevando-se aqui a causa de produção da subsistência e suas conexões espontaneístas com o cotidiano dos indivíduos, sem existir uma nítida e presente intenção dirigida à sociabilidade. Tal situação leva-nos a crer que a primeira idéia de propriedade surgida em nossa cultura seja a comunal, distinta pois, da propriedade privada.
257 SOUZA, Rebeca de. Breves reflexões sobre os direitos sociais no Brasil e a nova política habitacional do Governo Federal. Revista de Direito da Cidade/Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Harbra, v.1, n.1, p.129, maio.2006-semestral. 258 Idem., ibidem., p. 129. 259 LEAL, Rogério Gesta. A Função Social da Propriedade e da Cidade no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, Santa Cruz do Sul:Edunisc, 1998, p.37. 260 Idem, ibidem., p.37.
100
Assim, segundo o citado autor, o desenvolvimento da propriedade passa por um
estágio em que, inicialmente vinculada a produção de subsistência, com atividades
eminentemente agrícolas em períodos primitivos da história, pode-se compreender o processo
de apreensão e individualização da propriedade comunitária, transformada em propriedade
primitiva, sendo esse processo marcado por lutas de interesses entre produtores e posseiros
proprietários.
Por outro lado, o desenvolvimento do instituto da propriedade esteve relacionado a
fatores de mercado, bem como ao próprio sistema capitalista, conforme destaca Rogério
Gesta261, citando Engels, ao afirmar que a civilização está pautada no desenvolvimento da
sociedade em que a divisão do trabalho, a troca entre os indivíduos e a produção mercantil
atingem seu pleno desenvolvimento, causando uma revolução em toda sociedade, fazendo
surgir a divisão do trabalho e, conseqüentemente, a propriedade individual, fixando-se a
oposição entre a cidade e o campo.
Contudo, cumpre acrescentar que foi em Roma que a concepção de uma propriedade
rigidamente individual se firmou de uma maneira mais dogmática e positivada, apesar de na
Roma antiga, conforme adverte Rogério Gesta262, o regime de bens era dominado por dois
fatores, quais sejam, a concepção do Direito e a organização das famílias, uma vez que esta
era fundada no culto ao lar e aos mortos, com uma organização autocrata, exigindo um
sistema de bens assecuratório de sua auto-suficiência,existindo, então, duas formas de
propriedade coletiva: a da cidade (gens) e a da família, sendo forte nesse período a idéia de
uma propriedade coletiva.
Com o passar do tempo, já na República em Roma, a idéia de propriedade coletiva da
cidade desaparece, sobrevindo a familiar, que, por sua vez, submerge ante a autoridade cada
vez mais presente e intensa da figura do pater famílias, podendo ser destacadas algumas fases
do desenvolvimento da propriedade individual em Roma que, inicialmente apresentou-se
uma propriedade individual sobre os objetos necessários à sobrevivência dos indivíduos,
surgindo em seguida a propriedade individual sobre os objetos produzidos para o uso do
indivíduo passíveis de troca com outros indivíduos, decorrendo daí a propriedade dos meios
de produção, passando o direito de propriedade romana, com o tempo, a sofrer limitações
legais em razão de motivos de ordem pública, privada, ética, higiênica ou prática.
261 GESTA, apud, ENGELS, op.cit, p.39. 262 Idem., Ibidem., p.40-41.
101
Na Idade Média surge novo conceito de propriedade que contrastava com o
exclusivismo dos romanistas, passando-se a distinguir o domínio direto da propriedade, que
pertencia ao senhor feudal, e o domínio útil do vassalo.
O Mercantilismo e a Revolução Comercial dão um impulso no modelo feudal de
organização social e da idéia de propriedade, sendo implantada a idéia de propriedade
produtiva, responsável pelo desenvolvimento econômico, sendo certo que na Idade Moderna,
com a expansão comercial, implementação da produção manufatureira, pela formação de
impérios financeiros e com a descoberta do Novo Mundo, no século XVI, a idéia de
propriedade imobiliária torna-se senso comum, tendo a propriedade industrial passado a
ganhar relevo e que associada à propriedade imobiliária foram vistas como forma de servir
ao capital com vistas à constituição de mais capital.
Porém, com o advento da Revolução Francesa, instituiu-se novo tratamento a ser
conferido à propriedade, com ampliação de seu significado, abolição de privilégios, o
cancelamento dos direitos perpétuos, com certo desprezo pela coisa móvel em prol dos bens
imóveis, tendo resultado em grande preocupação jurídica envolvendo a propriedade que, a
partir do Código de Napoleão de 1804, que garantiu ao seu titular ampla liberdade, razão
pela qual a doutrina jurídica francesa enfrentou o problema da propriedade, com avanços
teórico que culminou com estudos de Duguit, que passou a vislumbrar na propriedade uma
função social, relacionada com a capacidade de utilização da propriedade.
Sob esse aspecto Rogério Gesta Leal263 destaca que:
Com a tomada do poder pela burguesia, na Revolução Francesa (1789), a propriedade passa a figurar dentre os direitos fundamentais, juntamente com a vida e a liberdade; prova disso é o constante no art. 17 da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, que afirma ser o direito de propriedade inviolable et sacré, posição ratificada, claramente, pelo Código de Napoleão (1804), onde é considerada um direito, o assento territorial da independência do indivíduo. Era possível, a seu detentor, utilizar-se de seu bem segundo os princípios do jus utendi e jus abutendi do Direito Romano.
[...]
Se o titular do direito não utiliza as faculdades inerentes ao domínio para extrair do bem os frutos que este tem capacidade de produzir, ficará sujeito às cominações legais, para que a propriedade possa ser recolocada em seu cominho normal. A função social, aqui, visa justamente a fazer com que ela seja utilizada de maneira a cumprir o fim a que se destina, ao menos dogmaticamente, não gerando contraposição entre os interesses individuais e coletivos.
A concepção política e jurídica de propriedade privada tida como direito absoluto vai vigorar, principalmente, nos países de colonização real, até o início do século XX, com o advento das constituições sociais.
263 GESTA, op. cit., p.50-51.
102
Atrelados a tal concepção de propriedade encontram-se o processo de constituição do espaço urbano e a própria ocupação deste espaço...
Neste contexto, adverte Fernanda Lousada Cardoso264 que o advento da Lei nº
10.257/01 representou um grande avanço na sistematização do direito urbanístico, elencando
diversos instrumentos relevantes para a ordenação do espaço urbano, além de determinar
diretrizes a serem seguidas por todos, sociedade civil e Poder Público, no estabelecimento de
um adequado meio ambiente urbano.
O instituto da função social da propriedade inserida na Constituição Federal de
1998, por força dos artigos 5º, inciso XXIV e 170, inciso III, migrou para o direito privado,
viabilizando a funcionalização do direito de propriedade que não mais se circunscreve aos
padrões liberais burgueses como direito real absoluto, como expõe a citada autora:
Assim, a doutrina civilista, atenta à realidade social vivida nos dias de hoje, afirma que a propriedade urbana só será reconhecida e tutelada pelo ordenamento jurídico, caso esteja exercendo sua função social, propiciando o exercício das chamadas funções urbanísticas de moradia, trabalho, circulação e recreação.
Assim, é apresentado o direito de superfície como importante instrumento de
regularização fundiária, com assento no Novo Código Civil (arts. 1.369 a 1.377) e nos artigos
21 a 24 da Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001 (Estatuto da Cidade).
Analisando tal fenômeno social assim expôs Dalmo de Abreu Dallari, citado por
Fernanda Lousada Cardoso265:
Reflexos desse fenômeno é o surgimento do princípio constitucional da “função social da propriedade”, que introduz nova qualidade no direito de propriedade, ficando este incompatível com a ociosidade dos imóveis e com seu aproveitamento insuficiente do ponto de vista dos interesses sociais. De acordo com essa nova concepção, o proprietário já não tem o direito de não usar, não vigorando mais o conceito de propriedade como direito absoluto.
De maneira que o princípio da função social constitui uma espécie de limitação ao
direito de propriedade, ambos previstos dentre os direitos e garantias individuais e coletivos
do artigo 5º, incisos XVII e XVIII da Constituição Federal de 1988.
5.5. Formação da propriedade urbana no Brasil
A Constituição brasileira de 1988 inova o ordenamento jurídico brasileiro ao
estabelecer pela primeira vez um capítulo específico da política urbana, que contém um
conjunto de princípios, responsabilidades e obrigações do Poder Público e de instrumentos
264 CARDOSO, Fernanda Lousada. Instrumento de Efetivação da Função Social da Propriedade: o usucapião especial urbano. Revista de Direito da Cidade/Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Harbra, v.1, n.1, p.79, maio.2006-semestral. 265 Idem., Ibidem., p.105.
103
jurídicos e urbanísticos para serem aplicados e respeitados com o objetivo de reverter o
quadro de degradação ambiental e das desigualdades sociais nas cidades, possibilitando uma
condição digna de vida para a população urbana.266
Por outro lado, não pode ser desconsiderado que a cidade foi e continua sendo de
grande importância para o desenvolvimento das potencialidades humanas, podendo ser dito
que a multiplicação das cidades, de uma forma ou de outra, contribuiu para que os homens
estreitassem seus laços de sociabilidade, tendo se desenvolvimento as relações sociais em que
a vida em aglomerados urbanos propiciou a construção de relações fundadas em direitos e
deveres, com intensa participação dos moradores nos negócios da cidade.
Sob tais aspectos, vale a pena mencionar passagens da texto Cidade, Cidadania e
Segregação Urbana, de Luiz César de Queiroz Ribeiro267, verbis:
As palavras cidade, cidadão e cidadania foram, historicamente, ganhando o mesmo sentido. Podemos identificar três momentos dessa evolução. Antes de tudo, na antiguidade clássica, cidadania tem a ver com a condição de civitas adquirida pelos homens, vivendo em aglomerados urbanos, contraem relações fundadas em direitos e deveres mutuamente respeitados. Posteriormente, à condição de civitas somou-se a de polis, ou seja, o direito de os moradores das cidades participarem nos negócios públicos. Já no século XIX, a condição de cidadania é expandida com a inclusão de direitos de proteção do morador da cidade contra o arbítrio do Estado. No final do século XIX e no início do século XX, a condição de cidadão expressava também os direitos relacionados à proteção social, inicialmente relacionados aos riscos do trabalho assalariado (desemprego, acidente do trabalho etc.) e posteriormente estendidos à própria condição de cidadão.
[...]
O sentido moderno da palavra cidadania expressa, portanto, três focos: o democrático, o liberal e o social. O primeiro é o polis, o segundo o civitas e o terceiro societas. Este último foco tem a ver com a descoberta de que o civitas e o polis somente poderiam existir com o mínimo de Justiça Social. Podemos, então, imaginar uma seqüência: cidadania cívica, cidadania política e cidadania social.
Com base em tudo quanto foi dito, segue-se a linha da presente pesquisa, no sentido
de analisar-se os reflexos que a aglomeração urbana causaram nos padrões de vida das
pessoas, mormente com o surgimento dos grandes aglomerados urbanos e suas conseqüências
visíveis, quais sejam, a violência crescente, falta de infra estrutura viária e de esgotos,
deficiência no transporte coletivo, escassez de moradia e moradias insalubres, sem falar do
fenômeno do crescimento das favelas que vão sendo formadas em razão da expulsão das
266 SAULE JÚNIOR, Nelson. Formas de Proteção do Direito à Moradia e de Combate aos Despejos Forçados no Brasil. In: FERNANDES, Edésio (Org.). Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p 101- 126. 267 RIBEIRO, Luiz César de Queiroz. Cidade, Cidadania e Segregação Urbana, On-line. Disponível em : <http//www.planum.neto – The European Journal of Plannina>. Acesso em: 29 maio 2006.
104
pessoas de baixa renda para as periferias das grandes cidade e as conseqüências daí
resultantes.
Todas essas questões têm íntima relação com ocupação desordenada do solo urbano
e, como adverte o Professor Ricardo Lira (1997, p.109), tais problemas são explicáveis por
uma série de causas, tais como as migrações internas e a forma pela qual o modelo
econômico vem traçando o desenvolvimento industrial, provocando a concentração
populacional urbana.
Nesse diapasão, vale a pena citar outra passagem da obra de Ricardo Lira268, verbis:
Informações oficiais revelam que, em 1940, a população urbana do País, da ordem de 13 milhões de habitantes, correspondia a apenas 31% da população total. Em 1970, atingia 52 milhões, equivalentes a 56% do global. Para o ano em curso, 1980, a população urbana foi estimada em 78 milhões, significando 63% do todo. O aumento é atualmente à razão de 3 milhões de habitantes novos nas cidades por ano (Pronunciamento do Ministro do Interior, na instalação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano – CNDU, em maio de 1979).
Cumpre ressaltar que a Constituição Federal de 1988 garante a inviolabilidade da
propriedade em seu artigo 5º, tendo garantido a propriedade no art. 5º, XXII, contudo,
dispõe que tal propriedade deverá atender a sua função social, conforme preconizado no
artigo 5º, XXIII, podendo concluir da leitura de tais dispositivos constitucionais que a
propriedade foi inserida no rol dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo e da
coletividade.
O texto constitucional protege ainda a pequena propriedade rural trabalhada pela
família, não podendo ser objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua
atividade produtiva, nos termos do artigo 5º, XXV da CF/88, além de ser insuscetível de
reforma agrária, conforme estabelecido no artigo 185 da Carta Magna.
Cuidou a nova Constituição de incluir a propriedade privada como um dos
princípios da ordem econômica e ditames da justiça social, ao lado da função social da
propriedade, agora erigida em princípio, conforme dicção do artigo 170, II e III, permitindo,
ainda, que a política urbana se estabeleça com base na função social da propriedade tendo
por base o plano diretor, nos termos do artigo 182, § 2º da CF/88.
Nesse sentido se expressa Fábio Konder Comparato269 ao esclarecer que a
Constituição brasileira de 1988 em pelo menos dois dispositivos, quais sejam, os artigos 182,
§2º e 4º, e 186, a função social da propriedade é apresentada com imposição do dever 268 LIRA, op. cit., 109. 269 COMPARATO, Fábio Konder. Estado, Empresa e Função Social. RT 732:38-46, out.1996. São Paulo: RT, 1996, apud JÚNIOR, Augusto Geraldo Teizen, op. cit. p.142.
105
positivo de uma adequada utilização dos bens, em proveito da coletividade, concluindo o
citado autor que o Estado exerce o papel decisivo e insubstituível na aplicação normativa,
reconhecendo que nos dispositivos constitucionais supracitados, a propriedade urbana deve
cumprir sua função social, de acordo com o plano diretor municipal, bem assim que a
propriedade rural também deva atender ao princípio da função social.
Para o citado autor, cabe ao Estado implementar os referidos conceitos, pressupondo
a existência de uma política urbana e de uma política agrária, bem assim de atuação
governamental objetivando criar diretrizes para a adequada utilização desses bens em
proveito da sociedade.
5.6. Importância da regularização fundiária
Nos tópicos anteriores a este capítulo, abordar-se alguns aspectos relacionados ao
uso do solo urbano e rural, com vistas à implementação da função social da propriedade,
visando minimizar as conseqüências da má distribuição de terras ou do uso inadequado do
solo.
Contudo, cumpre não perder de vista que o objeto da presente pesquisa é relacionar
o instituto da superfície com as questões ligadas à crise habitacional provocada pelo inchaço
dos grandes centros urbanos, em razão da vinda do homem do campo para as cidades.
Antes de mais nada, cumpre atentar para o fato de que a tendência de urbanização
do planeta não será revertida e, à medida em que as cidades concentram o mercado de
trabalho, mesmo a parcela da população que permanecer no campo deverá mais e mais se
reportar às cidades para o escoamento de produção, cuidados com a saúde, educação e lazer,
conforme adverte Ellade Imparato.270
Levando em conta que grande parte da população vive abaixo do nível de pobreza e
em habitações irregulares, o uso adequado do solo urbano só será obtido se forem adotadas
políticas públicas e medidas jurídicas que viabilizem a posse da terra e, possibilitem a
regularização da propriedade, com vistas a minimizar a degradação do meio, conter a
violência urbana e no campo, ocorrida em razão das condições precárias que a população
mais pobre vive nas periferias dos grandes centros urbanos.
270 IMPARATO, Elade. A Regularização Fundiária na Cidade de São Paulo: A Problemática da Zona Leste. In: FERNANDES, Edésio (Org.). Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil . Belo Horizonte: Del Rey, 2001. cap. 9, p.269-301.
106
Dentre essas medidas, levando em conta o princípio da função social da propriedade
alhures comentado, o instituto da superfície seria de grande utilidade na solução de tais
problemas, mormente considerando que o direito de superfície consiste em um poder
autônomo consistente no direito real sobre solo alheio, sendo certo que a concessão ad
aedificando ou ad plantandum é um direito real autônomo, temporário ou perpétuo,
transmissível inter vivos ou causa mortis, hipotecável, sucetível de decadência pelo não
exercício do direito de construir ou plantar no prazo da concessão, conforme definições do
professor Ricardo Lira271 que, a propósito nos esclarece que:
A propriedade assegurada em nossa Constituição como um direito individual (art. 153, § 22), cuja função social é declarada como um dos princípios da Justiça Social (art. 160, III), apresenta-se como instituição diferenciada, no sentido de poder variar de conteúdo, conforme o tipo de bem que lhe serve de objeto e a natureza do titular, exatamente por ser uma função social e um dos instrumentos da Justiça Social. A propriedade de bens de consumo, a propriedade de bens de capital, a propriedade de bens de uso pessoal, a propriedade agrícola, a propriedade industrial, a propriedade empresarial, a propriedade rural e a propriedade urbana, são todas elas tipos de propriedade que, pela própria natureza das coisas, não podem ser uniformes em seu conteúdo.
Cumpre não esquecer de mencionar que o Estatuto da Cidade, instituído pela Lei n.
10. 257/2002, do qual ocupar-se-á em momento oportuno, regulamentadora dos artigos 182
e 183 da Constituição Federal de 1988, criou normas de ordem pública e de interesse social
regulatórias do uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-
estar dos cidadãos, além do equilíbrio ambiental, tendo como diretrizes a garantia do direito
a cidades sustentáveis, gestão democrática por meio da participação popular, cooperação
entre os governos, a iniciativa privada e demais seguimentos da sociedade no processo de
urbanização e implementação da função social, oferta de servidos públicos adequados aos
interesses e necessidades da população; regularização fundiária e urbanização de áreas
ocupadas por população de baixa renda, sendo o instituto da superfície um dos instrumentos
constantes do referido Estatuto para viabilizar a política de planejamento urbano,
regularização fundiária urbana, como meio de conferir às populações de baixa renda, a
possibilidade de integração à cidadania mediante a concretização e posse de uma morada, a
estabilidade de um endereço, de um meio urbano ordenado, equilibrado e saudável.272
271 LIRA, op. cit., p.133. 272 ARRUDA, Maria Stela Queiroga; SÁ, Lucilene A. C. M. de; CARNEIRO, Andréa e CANDEIAS, Ana Lúcia. O Estatuto da Cidade e a Regulamentação fundiária de zona especiais de interesse social – ZEIS. Disponível em: <http//geodesia.ufrs.br/Br/Geodesia/arquivo/cobrac-2002/084.htm>. Acesso em 26 maio 2006.
107
5.7. Direito à moradia na Constituição Federal de 1988
O direito à moradia está previsto na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 6º,
nos seguintes termos:
Art.6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição (grifo nosso).
Por outro lado, o artigo 23 da norma fundamental preconiza ser competência comum
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios promover programas de
construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico.
Contudo, em que pese ter a norma fundamental inscrito o direito à moradia dentre os
direitos sociais, no país vive-se uma crise de habitação gerando um grande número de
pessoas sem moradia ou de pessoas vivendo em casas sem a mínima condições de
habitabilidade, como as que vivem em favelas e palafitas, sem contar os sérios problemas
sociais que disso decorrem, tais como a marginalização e a violência comuns nas periferias
dos grandes centros urbanos e também no campo, onde a disputa por espaço geram outros
conflitos, tão agudos quantos ocorrentes nos aglomerados urbanos.
No entanto, cumpre ponderar que tal quadro social se deve, principalmente, ao fato
de que as normas legais existentes no ordenamento jurídico pátrio, como instrumento para
equacionar o problema da escassez de moradia, como as normas constitucionais mencionadas
alhures ainda não foram colocadas totalmente em prática, ante a falta de políticas públicas
nesse sentido, tornando mais evidente o problema das populações periféricas, que se
agravaram nas últimas décadas, com a expansão do capitalismo que logrou transformar as
sociedades e as cidades num palco de desigualdades que se expressam, como afirma Lúcio
Kowarick273, “tanto na deterioração salarial como nas condições de transporte, saúde,
saneamento e outros componentes básicos para a reprodução da força de trabalho”.
Ao lado da fragilidade das normas jurídicas aliada ao descaso das autoridades com a
questão da moradia, tem-se também a pouca expressividade dos movimentos sociais de base,
que não lograram conquistas importantes e de caráter básico, como transporte coletivo,
habitação e saneamento, sem contar o fato de que o fenômeno mais grave seja a expulsão
das camadas pobres para a periferia da cidade, quando investimentos públicos e privados
273 KOWARICK, Lúcio. A Espoliação Urbana. 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, p.18.
108
valorizam determinadas áreas, causando especulação imobiliária, conforme alerta Lúcio
Kowarick274 nos seguintes termos:
Como acumulação e especulação andam juntas, a localização da classe trabalhadora passou a seguir os fluxos dos interesses imobiliários. No contexto explosivo do crescimento metropolitano, o poder público só se muniu tardiamente de instrumentos legais para tentar dar um mínimo de ordenação ao uso do solo. No entanto tal iniciativa ocorre num período em que o desenho urbano já está em grande parte traçado em conseqüência da retenção dos terrenos por parte de grupos privados. Dessa forma a ação governamental restringiu-se, tanto agora como no passado, a seguir os núcleos de ocupação criados pelo setor privado, e os investimentos públicos vieram colocar-se a serviço da dinâmica de valorização-especulação do sistema imobiliário-construtor.
De outro lado, esclarece o citado autor que a especulação imobiliária não se
exprime somente pela retenção de terrenos que se situam entre um centro e zonas
periféricas, mas apresenta-se também nas áreas centrais, quando zonas estagnadas ou
decadentes recebem investimentos em serviços ou infra-estruturas básicas. Ademais, observa
o autor que o surgimento de uma rodovia ou vias expressas, a canalização de um simples
córrego, enfim, uma melhoria urbana de qualquer tipo, repercute imediatamente no preço
dos terrenos, ocorrendo um processo de expulsão da população de baixa renda para as
periferias das grandes cidades275.
Tomando por parâmetro o Estado de São Paulo, Lúcio Kowarick276 esclarece que a
localização das favelas tendeu a seguir a trilha da industrialização, amontoando-se em áreas
próximas ao mercado de mão-de-obra qualificada e, quando a pressão imobiliária ou
congelamento de certas áreas tornam-se mais vigorosos numa cidade ou região, novas favelas
surgem ou são transferidas para municípios vizinhos, onde a especulação imobiliária ainda
não se apresenta tão lucrativa, ocorrendo o que se denomina “limpeza” de uma região
marcada por intensa valorização de terrenos.
Lúcio Kowarick chama a atenção para uma série de fatores que contribuem para o
agravamento da crise habitacional no Brasil. O primeiro deles está assentado no baixo poder
aquisitivo das pessoas que não dispõem de recursos para aquisição de habitação, o outro seria
a especulação imobiliária e o terceiro fator apontado seria a timidez das políticas públicas do
governo para dar conta de grave questão.
Sobre a solução da crise habitacional, cumpre trazer à colação os seguintes
argumentos do citado autor: 274 KOWARICK, op. cit., p.25. 275 Idem., Ibidem., p.40. 276 Idem., Ibidem., p .40-41.
109
Assim, o chamado problema habitacional deve ser equacionado tendo em vista dois
processos interligados. O primeira refere-se às condições de exploração do trabalho
propriamente ditas, ou mais precisamente às condições de pauperização absoluta
ou relativa a que estão sujeitos os diversos seguimentos da classe trabalhadora. O
segundo processo, que decorre do anterior e que só pode ser plenamente entendido
quando analisado em razão de movimentos contraditórios da acumulação do
capital, pode ser nomeado de espoliação urbana: é o somatório de extorsões que se
operam através da inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo,
apresentados como socialmente necessários em relação aos níveis de subsistência, e
que agudizam ainda mais a dilapidação realizada no âmbito das relações de
trabalho.
[...}
Tendo em conta tais processos é que o problema habitacional transparece
plenamente. De fato, as agências governamentais têm empregado vultosos recursos
no financiamento das habitações . Contudo, a imensa parcela dos montantes
empregados segue uma lógica de financiamento ditada pela lei do lucro, destinando-
se aos estratos de renda que podem pagar o preço de mercado da construção
habitacional.277
Nessa conjuntura, convém ponderar com Betânia Alfosin e Edésio Fernandes278,
citando Scott Leckie, que no tocante ao direito humano à moradia adequada, a década de 90
representou em período muito importante no tocante aos avanços legais, com o
reconhecimento do direito à moradia no âmbito dos direitos humanos, propiciando uma
base legal sólida para implementação de futuras ações rumo à melhoria das condições de vida
e de moradia das população pobre.
Tal se deu, segundo os autores citados, com a Declaração Universal dos Direitos
Humanos de 1948, que em seu artigo XXV, item 1, expressamente reconhece o direito à
moradia, adequada, além da garantida do direito de propriedade, individual ou coletivamente,
em seu artigo 17, valendo a pena referenciar passagem da citada obra, onde os autores
destacam que o direito à moradia é reconhecido como direito humano em declarações e
tratados internacionais de direito humanos:
Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais de 1966, art 11 (1); Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial de 1965, art 5 (e) (iii); na Declaração sobre Raça e Preconceito de Racial de 1978, art. 9 (2); na Convenção sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher de 1979, art. 14 (2) (h); Convenção
277 KOWARICK, op.cit., p.62-63. 278 ALFONSIN, Betânia e FERNANDES, Edésio. Direito à Moradia e Segurança no Estatuto da Cidade. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004, p.31
110
sobre Direitos da Criança de 1989, art. 27 (3); Convenção dos Trabalhadores Migrantes de 1990, art. 43; e Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais de 1989, arts. 13 a 19.
Por fim, cumpre destacar que um dos aspectos da implementação do direito à
moradia como direito humano fundamental é o referente à regularização fundiária, destinada à
regularização das áreas de assentamento das favelas, mocambos, palafitas e loteamentos
irregulares, intensamente articulada com uma política de urbanização e saneamento dessas
áreas, conforme adverte o professor Ricardo Lira.279
Segundo o citado professor, as campanhas implementadas na cidade do Rio de
Janeiro objetivando a remoção das favelas tiveram efeitos sociais desastrosos em que nas
áreas desocupadas efetivaram-se a construção de edifícios suntuosos a serem ocupados pela
alta classe média, tendo os seus primitivos ocupantes sido removidos para locais distantes e
afastados do perímetro urbano, com conseqüente desagregação das famílias e conseqüência
sociais e morais as piores possíveis. 280
Para o urbanista a questão da remoção de favelas deve ser tratada com certo
cuidado, posto ser medida drástica a ser tomada pela autoridade administrativa somente em
casos extremos, quando houver comprometimento para a vida dos próprios moradores,
devendo a remoção dar-se para locais próximos ao inicialmente ocupado, em homenagem ao
direito fundamental à moradia insculpido no artigo 6º, da Constituição Federal de 1988.
Para finalizar este capítulo, no qual cuidou-se da função social da cidade e da
propriedade urbana, deve-se anotar que as questões urbanas devem merecer a atenção dos
governantes, no sentido de criarem políticas públicas para solução das várias questões
ligadas ao déficit habitacional, evitando-se o crescimento desordenando das cidades e os
males daí decorrentes, tais como a violência, a miséria, o comprometimento da qualidade de
vida da população decorrente da escassez dos serviços públicas e da ausência do Estado
nesses locais que passam ser dominados pelo crime organizado.
Urge ressaltar que o Estatuto da Cidade, criado por força da Lei nº 10.257, de 10 de
Juno de 2001, criou vários mecanismos para viabilizar o ordenamento do solo e, via de
conseqüência ordenar o crescimento das cidades, de forma a minimizar os problemas
oriundos da concentração de pessoas nos grandes centros.
Um desses institutos é o direito de superfície que se prestaria, se bem utilizado, a
resolver o problema aquisição de imóvel próprio, uma vez instituída cláusula de opção de 279 LIRA, Direito Urbanístico, Estatuto da Cidade e Regularização Fundiária, p. 160-161. 280 Idem., Ibidem., p.161.
111
compra do imóvel construído ao término do prazo de concessão da área objeto do direito de
superfície, posto vislumbrar-se no instituto da superfície um instrumento útil à
implementação da função social da propriedade, evitando-se a propriedade ociosa em mãos
de especuladores no aguardo de melhores oportunidades para negociarem esses, mormente
após a supervalorização dessas áreas, em razão de infra-estrutura implementada pelo Estado a
custo dos impostos pagos por todos, conforme lúcidas ponderações do Professor Ricardo
Lira281, ao se manifestar quanto a regularização fundiária, in verbis:
Como se vê, a existência de uma política pública, voltada para a solução da questão urbana, sobretudo para a difícil questão da regularização fundiária, é de fundamental importância para a observância de toda a comunidade à dignidade da pessoa humana, à erradicação da pobreza, eliminação da marginalidade e das desigualdades sociais, à promoção do bem de todos, sem preconceitos de qualquer natureza, e à construção de uma sociedade, justa e solidária.
Uma última observação precisa ser feita neste capítulo, no que diz respeito ao
direito à moradia, ou seja, que o direito à moradia é responsabilidade do Estado, que deverá
garanti-lo através de políticas públicas e habitacionais destinadas a resolver o problemas da
escassez de moradia, posto que o direito à moradia por ser considerado um direito humano
fundamental requer ação positiva do Estado, através de implementação de políticas públicas,
instituição de organismos, criação de legislação, programas, planos de ação e instrumentos de
modo a garantir esse direito para os seus cidadãos. 282
Por último, cumpre asseverar que as atividades do Estado consistentes na efetivação
de medidas tendentes a regularizar o processo de expansão urbana devem levar em conta
aspectos ambientais, com vistas a evitar a degradação do meio ambiente, por serem
conciliáveis o direito fundamental à moradia com o direito ao meio ambiente saudável e
protegido, para as presentes e futuras gerações.
De maneira que o exercício do direito de morar deve ser compatibilizado com o
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, posto ser perfeitamente viável que a
regularização fundiária se harmonize com políticas ambientais, de maneira a haver um
impacto positivo entre moradores e natureza, conforme nos adverte Betânia Moraes
281 LIRA, op. cit. p.164. 282 JÚNIOR, Nelson Saule. Formas de proteção do direito à moradia e de combate aos despejos forçados no Brasil. In: FERNANDES, Edésio (Org.). Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil . Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p.101-126
112
Alfonsin283, ao asseverar que: “A urbanização recebida pelo assentamento implica que a área
passe a ser servida por coleta de lixo, e esgotamento pluvial e cloacal, o que previne a
poluição ambiental do assentamento e de seu entorno, bem como a contaminação de solos,
córregos e lençóis freáticos”.
283 ALFONSIN, Betânia de Moraes. Políticas de Regularização Fundiária: justificação, impactos e sustentabilidade. In: FERNANDES, Edésio (Org.). Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil . Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p.247.
113
6. O DIREITO DE SUPERFÍCIE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
6.1. Noções Gerais e Natureza Jurídica
6.1.1 Noções gerais
Conforme adverte o Professor Ricardo Lira284 o direito de superfície foi admitido no
ordenamento jurídico pátrio até o advento da Lei nº 1.237, de 24/09/1864, ao fazer
referência a esclarecimentos de Lafayette Rodrigues Pereira, no sentido de que antes da
promulgação da referida lei havia uma hipótese em que a casa podia ser hipotecada sem solo,
ou seja, quando a superfície do solo pertencia ao devedor, sendo que a superfície constituía
um direito real denominado ius superficiei e o superficiário podia hipotecá-lo.
Assim, de acordo com o citado autor, o direito de superfície teria deixado de existir
com a promulgação da referida norma legal e, apesar de ter constado do Projeto Clóvis
Beviláqua, o Código Civil de 1916 não a incluiu no rol do artigo 674, dentre os direitos
reais limitados. De maneira que para o Professor Ricardo Lira,285 ante a omissão legislativa, o
direito de superfície não existia no sistema civil revogado, sustentando o citado autor que a
doutrina posterior ao Código reafirmou a teoria do numerus clausus, significando que o
direito real somente pode existir havendo previsão legislativa, não havendo margem para
criação de outras espécies, a par das já existentes.
No Código Civil de 1916 não havia nenhum dispositivo cuidando do instituto da
superfície, conforme anotou-se em capítulos anteriores, uma vez que o primeiro diploma
jurídico civil, influenciado pelo Direito Romano, não tratou do instituto embora houvessem
vozes, como a do jurista Teixeira de Freitas, posicionando-se pelo tratamento do instituto
superficiário na lei civil.
Contudo, cumpre ressaltar que a aquisição da propriedade imobiliária no Código
Civil de 1916 se dava, entre outras formas, pela acessão, conforme preconizava o artigo
530, que a regulava no artigo 536, onde enumerava as formas de acessão existentes,
contemplando, dentre elas, a acessão pela construção de obras ou plantação, sendo a acessão
forma originária de aquisição da propriedade em que passava a pertencer ao proprietário do
solo tudo aquilo que a ele se unia, tais como sementes e construção.
Adotou-se então, por força do artigo 545 do referido diploma legal, dois princípios
que orientaram o direito de propriedade, quais sejam, acessorium sequitur principalis (o
284 LIRA, Ricardo Pereira, Elementos de Direito Urbanístico, p.86-96 285 Idem., Ibidem., op. cit., 88.
114
bem acessório segue a sorte do principal) e o princípio solo cedit, por força do qual a
propriedade do solo abarca também a propriedade da superfície, sendo que por esses
princípios, a pessoa que construísse ou plantasse em solo alheio sem possuir título de
domínio, perdia o direito às construções ou plantações, não existindo prédio sem terreno e,
via de conseqüência, não contemplou-se o direito de superfície.
Para o revogado Código Civil, não havia a possibilidade da existência separada da
plantação ou construção, sendo que o proprietário do terreno sempre adquiria a propriedade
da construção ou da plantação a ela anexada.
Contudo, recentemente, o ordenamento jurídico pátrio passou a adotar o instituto da
superfície, primeiro através do Estatuto da Cidade, instituído pela Lei nº 10.257, de 10-7-
2001, nos artigos 21 a 24 e, posteriormente, com a edição do Novo Código Civil, por força
da Lei nº 10.406, de 10-01-2002, tendo o direito de superfície recebido tratamento nos artigos
1.369 a 1.377.
Por derradeiro, cumpre anotar que embora o revogado Código Civil de 1916
estabelecesse o numerus clausus de direitos reais, não havia impedimento a que leis
especiais criassem direitos reais de maneira a aumentar a relação disposta no referido
dispositivo, tanto que foi editado o Estatuto da Cidade tratando do instituto, ainda na
vigência do Código Civil de 1916.
Apesar da falta de previsão legislativa quanto ao instituto da superfície, quando ainda
em vigor o Código Civil de 1916, ecoavam vozes no sentido de que o ordenamento jurídico
civil pátrio admitia a dissociação da propriedade do solo em relação à obra construída, por
força de seus artigo 545,286 existindo, segundo tal entendimento, a possibilidade da
concessão de uso da superfície, conforme ponderações de Frederico Henrique Viegas de
Lima287, in verbis:
Os constantes problemas concernentes à moradia, a necessidade de uma utilização adequada do solo, a formação no Brasil de grandes cidades e a constante falta de espaço e locais para a construção têm aberto as portas para a criação de novos institutos jurídicos que de forma efetiva possam ser úteis à solução destes problemas. Desta forma, não se podia deixar de utilizar uma faculdade que concede o Código Civil de 1916 no artigo 545 para dissociar a propriedade do construído da propriedade do solo. Por isto, negar a existência jurídica da concessão de uso da superfície e do direito de superfície chamado urbanístico, simplesmente em virtude de uma antiga regra romanística de presunção, seria negar também a solução destes problemas.
286 Art. 545. Toda construção, ou plantação, existente em um terreno, se presume feita pelo proprietária e à sua custa, até que o contrário se prove. 287 LIMA, op.cit., p. 294.
115
No presente capítulo cuidou-se do direito de superfície no Estatuto da Cidade e no
Novo Código Civil sob enfoque funcional, levando em conta o princípio constitucional da
função social da propriedade.
Também abordou-se a questão urbana, em conexão com o direito fundamental à
moradia, tratado no capítulo anterior, para concluir com uma abordagem voltada para a
questão da função social do instituto da superfície no âmbito do Estatuto da Cidade e do
Novo Código Civil.
Contudo, antes mesmo de abordar-se o direito de superfície sob os enfoques acima
propostos, cumpre tecer algumas digressões sobre os elementos do direito de superfície e
uma analogia com outros institutos semelhantes, como a propriedade horizontal, a enfiteuse,
o usufruto e a hipoteca.
Mas, antes de aprofundar-se no estudo dos elementos do direito superficiário
conforme propô-se acima, cumpre cuidar de sua natureza jurídica.
6.1.2. Natureza jurídica do direito de superfície
Em capítulos anteriores mencionamos que, concedido o direito de superfície, o
edifício construído ou a plantação realizada pertencem exclusivamente ao superficiário, sendo
certo que a propriedade do solo continua a pertencer ao dominus soli, posto que por força da
instituição do direito superficiário fica suspensa a incidência do efeito aquisitivo da acessão,
coexistindo dois direitos de propriedades de bases superpostas e separadas por um plano
horizontal, ou seja, o solo, conforme nos esclarece Josserand288, citado por José Guilherme
Braga Teixeira (1993).
Para José Guilherme289 o término do prazo do direito de superfície coincide com o
termo resolutivo da propriedade e, por isso mesmo, com o termo final da suspensão da
acessão, cujo efeito aquisitivo volve o incidir imediata e automaticamente, atribuindo ao
senhor do solo a propriedade da construção ou da plantação neste existente, em
conseqüência de que superfícies solo cedit, sendo que em algumas legislações existe a
previsão de uma indenização a ser paga ao concessionário ou superficiário.
Ao tratar da natureza jurídica de determinado instituto, cuidar-se-á de apontar em que
categoria se enquadra, ressaltando as teorias explicativas de sua existência.
288 JOSSERAND, L. Cours de Droit Civil Positif Français. 3 ed. Paris: Librairie du Recueil Sirey S.A, 1938. v.I. 289 TEIXEIRA, op.cit., p.60-61.
116
Entrementes, os autores não se mostram concordes no que concerne à natureza do
direito de superfície, apresentando diversas teorias com que visam a explicá-la. 290
Conforme observações de Rima Goraib291, “determinar a natureza jurídica significa
dizer qual o lugar que um certo direito ocupa na ordem jurídica vigente.”
Para a citada autora, a classificação ou determinação da natureza jurídica do direito
de superfície é problemática, porque se trata de relação complexa e de um direito in fieri.
Contudo, com a inserção do instituto no Novo Código Civil, diminuem-se as
dificuldades apontadas pela citada autora, para determinar a natureza jurídica do instituto da
superfície.
Assim, sob o ponto de vista supramencionado, o direito de superfície passou por
várias transformações e adaptações ao longo dos tempos, tendo sofrido desde o feudalismo
até o presente momento, sobretudo a partir do Renascimento, em fins do século XIX, uma
evolução semelhante à ocorrida no Direito Romano, conforme esclarece GORAIEB.292
Desse modo, de direito pessoal que era, o direito de superfície passou a ser
considerado e tratado como posse, ou como um direito real sobre a coisa alheia a ser
protegido pelo interdito “de superficiebus” concedido pelo Pretor e, mais tarde, como um
verdadeiro direito real – ius in rem - amparado pelas ações reais próprias de um Dominus,
conforme esclarece De Los Mozos, citado por Rima Goraieb,293 in verbis:
Não chegaram porém os romanos à concepção de propriedade autônoma, embora como tal fosse tratada no direito bizantino.
Também no direito intermédio concebe-se, para explicá-lo, ainda uma teoria unitária, o artifício da propriedade dividida em domínio útil e domínio eminente ou direto. Mas essa teoria foi adotada como critério de transação entre as exigências da prática e o respeito à técnica romana, abandonada pelo direito moderno, permanecendo naqueles ordenamentos em que se conserva como um arcaísmo, uma mera sobrevivência do passado.
Referentemente à natureza jurídica do direito de superfície, Rima Goraiebfaz
menção a passagem da obra de COVIELLO294, nos seguintes termos:
O direito de superfície não é senão o direito de propriedade sobre a superfície. A tese do grande jurista resume-se assim: o direito de propriedade do solo abrange o subsolo e o sobresolo porque são dependentes e unidos materialmente. Assim como uma planta precisa ter suas raízes entranhadas no subsolo para dele retirar os meios
290 TEIXEIRA, op.cit., p.61. 291 GORAIEB, op.cit., p. 132. 292 Idem., Ibidem., op. cit., p. 133. 293 LOS MOZOS, José Luiz de. Derecho de Superfície em General y em Relacion com la Planificacion Urbana. Madri: Ministério de la Vivenda, 1974. 294 COVIELLO, Nicola. Della superfície in archivio giurídico. Vol XLIX. Bologna: Tipi Fava e Guaraguani, 1892, p.114.
117
de sobrevivência, também necessita do espaço aéreo para se desenvolver, respirar, e receber luz e calor, o mesmo ocorre também com as construções.
Desta forma, os romanos ao conceberem o direito de propriedade do subsolo e do
espaço aéreo como essencial à idéia de propriedade fundiária, deram ensejo à rigidez do
princípio da acessão, não admitindo propriedades distintas de algum desses três elementos.
No tocante ao objeto, deve ser sempre um imóvel, podendo ser todas as coisas
imóveis aderentes ao solo de forma permanente, até mesmo construções ou plantações já
existentes, ou ter por objeto a aquisição do direito de construí-las. 295
Ainda no tocante à natureza jurídica do direito de superfície as teorias que a
concebem binariamente, vislumbram duas ordens de relacionamento, ou seja,
concessionário – bem superficiário e concessionário – dono do solo.
Segundo o Professor Ricardo Lira296 inexistem dúvidas maiores quanto ao primeiro
consubstanciar direito de propriedade. Segundo o citado autor, o debate cingiu-se em torno
da natureza jurídica do vínculo concessionário – dono do solo, tendo alguns doutrinadores
vislumbrado o caso de servidão oneris ferendi ou inominada, como RUGGIERO e
MESSINEO, sob o prisma do Código Civil Italiano.
Ainda segundo o Professor Ricardo Lira297 outros doutrinadores sustentaram
adquirir o superficiário a propriedade do solo, verificando-se um fenômeno de acessão em
sentido contrário ao normal, concepção que não recebeu guarida dos ordenamentos jurídicos,
tendo se cogitado, inclusive, de se explicar a relação entre solo e propriedade superficiária
como uma limitação legal, partindo-se da premissa de que o titular da superfície é proprietário
do espaço existente sobre o solo, criando-se situação análoga à das relações de vizinhança.
Contudo, para o citado autor, modernamente, a relação concessionário – dono do
solo é uma relação autônoma, consubstanciando um direito real de construir acima ou abaixo
do solo de outrem, ou de nele plantar, valendo a pena citar suas breves colocações sobre o
tema, in verbis:
A estrutura da relação superficiária é plástica. Tem a propriedade de partir de uma relação simples, evoluindo para uma relação complexa. Poderá, em modalidade possível, nascer complexa.
Procuraremos lançar algumas luzes sobre essas afirmações. Existem mecanicamente três momentos possíveis na relação superficiária:
a) o direito real de construir ou plantar em solo alheio;
295 GORAIEB, op.cit.,p.138. 296 LIRA, Elementos de Direito Urbanístico, p.55-56. 297 Idem., Ibidem.,p.55.
118
b) a propriedade separada superficiária, efeito da concreção do direito real de construir ou plantar em solo alheio;
c) a propriedade separada superficiária, efeito da alienação que o dominus soli separadamente faz a outrem do solo, reservando-se a construção; ou efeito da alienação separada que o dominus soli faz a duas pessoas, transferindo a uma o solo, a outra a construção já existente.
Nesse último tipo se tem a propriedade separada superficiária gerada por cisão.
Para o professor Ricardo Lira298 a relação superficiária é plástica porque ela pode
sofrer mutações, alterando-se o conteúdo estrutural, registrando-se evolução do simples para
o composto, ou seja, pode nascer composto, assim ficando até perecer, mas pode nascer
simples, ficando simples até extinguir-se.
Cuida-se, no primeiro caso, do direito de superfície criado como direito de construir
ou plantar, de concessão ad aedificandum ou ad plantandum.
Exercido esse direito surge a propriedade separada superficiária, sem que se extinga
o direito de construir ou plantar, conduzido a um período de quiescência ou adormecimento,
enquanto existente a propriedade separada superficiária.
Assim, segundo o professor Ricardo Lira:299
Se a concessão é ad tempus e há o perecimento da coisa superficiária, o superficiário pode reconstruí-la, se ainda lhe resta prazo de concessão. Só não terá direito de reconstruir se o negócio jurídico superficiário dispõe em contrário. Ocorre, na hipótese considerada, que o momento da concessão ad aedificandum ou ad plantandum é sucedido no tempo pelo momento da propriedade separada superficiária, sem que, contudo, desapareça: fica quiescente. Fica impedindo a incidência do princípio da acessão. Fica evitando a expansão da propriedade do solo. Fica evitando que a titularidade do dominus soli se estenda à coisa superficiária. Normalmente o proprietário do solo adquiriria a “acessão”, se não existisse, no caso determinado, o direito de superfície obstaculizando essa aquisição. Vale salientar que uma expansão da propriedade do dominus soli acontecerá, abrangendo a coisa superficiária, no momento da expiração do termo previsto no negócio superficiário. Como decorrência do atributo da elasticidade do direito de propriedade – desaparecida a causa da limitação produzida ao direito do proprietário do solo pela interposição de um direito real de construir ou plantar em favor de outrem – o domínio do dominus soli ganha em plenitude, com a extinção do direito real de superfície. Incide normalmente o princípio superficies solo cedit, passando conseqüentemente ao proprietário do solo, de pleno direito, a propriedade da coisa superficiária. O domínio do titular do direito de superfície sobre a coisa superficiária é, em princípio, resolúvel, existindo enquanto exista o direito de superfície. Expirada a concessão, se desvanecem a propriedade superficiária e o direito de construir ou plantar. Pela operação normal do princípio superfícies solo cedit a titularidade do dominus soli projeta sua força absorvente sobre a coisa superficiária que da titularidade do superficiário passa à titularidade do proprietário do solo. No direito alemão a construção deixa de ser parte integrante essencial do direito de superfície para ser parte integrante essencial do solo.
298 LIRA, Elementos. op.cit., p.56. 299 Idem., Ibidem., p.56.
119
Trata-se de um direito real autônomo de construir ou plantar em solo alheio, sendo
que a relação assim estabelecida, consistente no direito de construir ou plantar, pode continuar
simples, extinguindo-se simples, se o titular deixa exaurir o prazo da concessão, sem jamais
edificar ou plantar.300
O direito de manter a construção ou plantação em solo alheio existe como simples
manifestação da propriedade separada superficiária do titular do direito de superfície.301
Para o professor Ricardo Lira302 a concessão para construir ou plantar em solo alheio
é um direito real autônomo, temporário ou perpétuo, transmissível inter vivos ou causa
mortis, hipotecável; suscetível de decadência pelo não-exercício do direito de construir ou
plantar no prazo da concessão.
Trata-se, segundo o citado autor, de um direito subjetivo ao qual corresponde o dever
jurídico do dono do solo da abstenção da prática de qualquer ato ou fato incompatível com a
concessão conferida.303
É um direito real sobre coisa alheia, cujo exercício cria um direito de propriedade
separada embutido em outro direito de propriedade. A aquisição do direito real de construir
ou plantar é derivada, constitutiva.304
Ainda sobre a natureza jurídica do instituto da superfície, vale a pena destacar com o
Professor Ricardo Lira305 o seguinte:
A propriedade separada superficiária, gerada pela realização de construção ou plantação, bem como decorrente de cisão, é propriedade imobiliária, sujeita aos princípios reguladores desta, atendidas as peculiaridades da relação superficiária, como a existência da obrigação do pagamento de cânon (solarium) ou de uma certa importância paga de uma só vez, na conformidade do negócio jurídico superficiário, sendo certo que essa obrigação de pagamento só existe quando expressamente estipulada. Não se pode afirmar seja o solarium da natureza, e não da essência, do direito de superfície. Simplesmente porque deve entender-se que, no silêncio do título da concessão, não há obrigação de pagamento.
A propriedade separada superficiária é transferível inter vivos e causa mortis; hipotecável; não extingue pelo não-uso, já que o não-exercício é manifestação do poder dominical; é tutelada pelas ações possessórias e petitórias; consideradas as limitações eventuais do título, ainda pode ser considera plena.
Sua aquisição pelo exercício do direito de construir ou plantar, é aquisição originária, pois o direito de propriedade sobre a coisa superficiária nasce ex novo, não estando ligada por relação de causalidade ao título de nenhum proprietário precedente. Importa esclarecer um ponto que a doutrina corrente não aflora. É o
300 LIRA, Elementos, op.cit., p.59. 301 Idem., Ibidem., p. 59. 302 Idem., Ibidem., p.59. 303 Idem., Ibidem., p.59. 304 Idem., Ibidem., p.60. 305 Idem., ibidem., p.60-61.
120
fato de que a propriedade separada superficiária pode vir a ser sacrificada pelo fato de a concessão para edificar ou plantar haver sido conferida a non domino. É preciso atentar que essa circunstância não é de molde a fazer com que se qualifique a aquisição da propriedade separada superficiária como derivada constitutiva. Ela é atingida, porque precedentemente o foi, de maneira direta, o direito real de construir ou plantar em solo alheio (esse adquirido derivadamente), base e fomento indeclinável de sua razão de ser.
[...]
Vale considerar, finalmente, que a renúncia do proprietário do solo ao direito de acessão não explica o direito de superfície senão de uma maneira unilateralizada. Em outras palavras, não explica o direito de superfície, enquanto direito real de construir ou plantar.
As premissas acima estabelecidas são suficientes para indicar, de maneira isenta de dúvidas, que o direito de superfície é um direito real autônomo.
Para finalizar as colocações acima expostas acerca da natureza jurídica da superfície,
pode-se afirmar que existem várias teorias sobre o tema que, segundo Marise Pessoa
Cavalcanti306 procura equipará-la a outros direitos reais limitados. Contudo, sob o ponto de
vista da citada autora, o direito de superfície tem matizes próprios e traços distintivos
evidentes de institutos, como o usufruto, a enfiteuse, o arrendamento, a servidão, numa
evidência de que o direito de superfície possui contornos próprios e definidos, diferenciando-
se sobremaneira de outros institutos afetos aos direitos reais.
Relativamente aos institutos afetos aos direitos reais e suas distinções com o instituto
da superfície, cumpre trazer à colação as ponderações de Marise Pessoa Cavalcanti, in verbis:
Comparando-se a superfície ao arrendamento, por exemplo, confronta-se o caráter real daquela com o obrigacional deste, tornando-se o superficiário proprietário da construção ou plantação pagando ou não uma renda ao dominus soli. No arrendamento, o pagamento de uma renda periódica é característica do instituto, sendo que o arrendatário jamais se tornará proprietário.
Do mesmo modo em relação à enfiteuse, instituto contemporâneo à superfície, há que ressaltar as diferenças evidentes. A remuneração na superfície é opcional, enquanto na enfiteuse é característica do instituto o pagamento do “foro” sob pena de comisso e, conseqüente, extinção da mesma. Ademais, não se confere ao foreiro a propriedade dos bens enfitêuticos, tendo ele, entretanto, o direito de resgate que não se observa na superfície. Pode-se dizer que a enfiteuse costuma ser utilizada para fins agrícolas e cultivo da terra, enquanto a superfície se presta a construções de edifícios.
Em relação ao usufruto há por sua vez evidente distinção. O usufruto é constituído intuitu personae, é intransmissível, sempre temporário, extingue-se com a morte do usufrutuário e, além disso, este é obrigado a respeitar a substância da coisa. Já a superfície é transmissível inter vivos e causa mortis, o superficiário é proprietário, mesmo que resolúvel, podendo alterar a substância da res. Além disso, existem ordenamentos que conferem caráter perpétuo à superfície.
No que se refere à servidão, a mais clara distinção é não ser esta alienável, diferentemente da superfície. Além do que, para que se constitua a servidão há necessidade de prédios distintos pertencentes a donos diversos.
306 CAVALCANTI, Maria Pessoa. Superfície Compulsória: instrumento de efetivação da função social da propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 12-20.
121
Finalmente, considerando-se a concessão de direito real de uso, deve-se atentar para o fato de que nesta não há o abrandamento do princípio supeficies solo cedit, não se criando uma propriedade separada do solo como ocorre na superfície. Assim, ambos os institutos são direitos reais limitados, mas guardam suas peculiaridades.
Sob esse enfoque José Guilherme Braga Teixeira307 realizou relevante estudo,
apresentando diversas teorias objetivando comparar o instituto da superfície com outros
direitos reais limitados, especialmente com o arrendamento, a enfiteuse, o usufruto e a
servidão.
No tocante ao arrendamento, por consistir na cessão de uma coisa para uso de outra
pessoa, mediante o pagamento de um aluguel, grande semelhança apresenta com a superfície,
por se tratar de cessão de uma coisa – parte superior do solo - para uso e gozo de outra
pessoa, mediamente o pagamento de um aluguel, no passado denominado solarium. A
semelhança entre os dois institutos também reside no fato de que, assim como o superficiário
pode fazer construção ou plantação no solo de outrem, pode o arrendatário realizá-las no
imóvel a ele arrendado.
Contudo, a diferença entre os dois institutos reside no fato de ser a superfície um
instituto de caráter real por conferir ao superficiário a propriedade da construção ou plantação,
tendo o arrendamento caráter estritamente obrigacional, não podendo jamais conduzir o
arrendatário a tornar-se dono da coisa arrendada. Sem falar no pagamento de aluguel que é
requisito inerente ao arrendamento, sendo certo que o pagamento de uma renda periódica ao
senhor do solo não é essencial ao direito de superfície, como mostra o professor José
Guilherme.308
Quanto a superfície e enfiteuse, informa o citado autor que ambos os institutos
nasceram praticamente ao mesmo tempo e caminharam lado a lado pelo Direito Romano pós-
clássico e bizantino, sendo a primeira para fins de construção e a segunda para os de cultivo
da terra, prosseguindo juntas essa caminhada pelo Direito Intermédio, onde deram base à
doutrina da propriedade dividida e à criação da ignominiosa classe dos servos da gleba, pelo
que se tornaram malditas para os revolucionários franceses, os quais as extinguiram. 309
A diferença entre os dois institutos não foi observada com rigor, sendo que na Idade
Média admitia-se a incidência da superfície sobre plantações, sendo que ao enfiteuta era
permitido fazer construções no prédio enfitêutico.
307 TEIXEIRA, op.cit., p.61-74. 308 Idem., Ibidem., p.61-62. 309 Idem., Ibidem., p. 62.
122
A codificação civil revogada, por não tratar do instituto da superfície, concebeu a
enfiteuse com finalidade extensiva à edificação, enquanto as modernas codificações
estrangeiras consagraram os dois institutos lado a lado. Contudo, os dois institutos não se
confundem, havendo grandes diferenças entre ambos, bastando perceber que, enquanto a
remuneração não é essencial na superfície, o é na enfiteuse, podendo a falta do pagamento
do foro conduzir o enfiteuta ao comisso e o aforamento à extinção, o que não se dá com a
superfície.
Ademais, a enfiteuse não confere a propriedade dos bens enfitêuticos ao foreiro,
enquanto a superfície outorga ao superficiário a propriedade separada do edifício e da
plantação, ainda que em caráter resolúvel.
Quanto ao usufruto, várias foram as tentativas de assimilá-lo à superfície, sob o
argumento de que com a instituição da superfície surgia para o superficiário direito de uso e
fruição do solo e da edificação (quando esta preexista no domínio do dominus soli) ou, se
inexistente a construção, um direito de uso e fruição do solo, com a finalidade concreta e
específica de nele o superficiário construir, cabendo o mesmo raciocínio quando se cuida de
superfície consistente em plantação, sendo que tal entendimento não se sustentou por muito
tempo, haja vista as evidentes distinções entre os dois institutos.
Grandes são as diferenças entre os dois institutos, ou seja: a) o usufruto é constituído
intuitu personae, o que não ocorre com a superfície; b) esta é transmissível entre vivos e por
causa de morte, sendo aquele intransmissível; c) o superficiário é proprietário (resolúvel,
embora), não o sendo o usufrutuário; d) o usufruto se extingue com a morte do usufrutuário,
enquanto a morte do superficiário não acarreta a extinção da superfície; e) o usufrutuário é
obrigado a respeitar a substância da coisa, o que não ocorre com o superficiário. Além do
mais, o usufruto é sempre temporário (mesmo quando vitalício), ao passo que a superfície não
o é sempre, havendo ordenamentos que lhe possibilitam a perpetuidade.310
Quanto à equiparação da superfície à servidão, sustentou-se essa idéia, havendo
argumentos no sentido de ser a superfície uma servidão especial no Código Civil suíço,
consubstanciada em seu artigo 675.
Porém, na Itália, houve vozes sustentando que na vigência do Código Civil de 1865,
a superfície tratava-se de uma servidão, sem uma maior precisão; e a que a qualificava como
310 TEIXEIRA, op. cit., p.64.
123
uma servidão oneris ferendi, que obrigava o proprietário do solo a suportar a existência do
edifício alheiro, como Roberto de Ruggiero.311
Tal equiparação, contudo, não procede, uma vez que para a instituição de uma
servidão exige-se a existência de prédios distintos, de proprietários diversos, o que não ocorre
com a superfície posto constituir-se no mesmo prédio.
O que caracteriza o instituto da superfície é a suspensão, pelo prazo acordado, do
efeito aquisitivo da acessão para o dominus soli e a constituição de uma propriedade
superficiária.
Por esse motivo, pode-se dizer que a natureza jurídica do direito de superfície é de
direito real imobiliário, limitado e autônomo, consistente em manter, ou de fazer e manter
construção ou plantação em solo alheio, conferindo ao titular, denominado superficiário, a
propriedade resolúvel da construção ou plantação separada da propriedade do solo, podendo
ser direito complexo se a construção ou plantação não preexistirem no terreno, devendo ser
realizadas pelo superficiário.312
O direito de superfície como direito real que é, constitui-se por contrato registrado
no Registro de Imóveis, testamento ou sentença judicial, nada impedindo que se constitua,
também, por usucapião.313
Por sua vez, o contrato deve ter forma escrita, sendo negócio jurídico solene,
devendo a extensão e efeitos da superfície estar bem delineados, destacando-se os sujeitos da
relação superficiária, ou seja, proprietário do solo ou concedente e superficiário ou
concessionário, com seus respectivos direitos e obrigações.
O novo Código Civil de 2002 (Lei nº 10. 406/2002) se refere apenas ao direito de
superfície tendo por objeto construção ou plantação, não fazendo menção ao direito correlato
consistente em manter no local as plantações ou construções já existentes, como no Código
Civil português de 1948, art. 1.542, não havendo impedimento para que tal ocorra, por
desempenhar o instituto importante função social, não somente quem constrói e planta, mas
também quem mantém plantações ou construções já existentes no terreno de outrem. 314
311 DE RUGGIERO, Roberto, Instituições de Direito Civil, p. 456, apud TEIXEITA, José Guilherme Braga. Op. cit. p.65., 312 CAVALCANTI, op.cit., p. 14. 313 CAVALCANTI, op.cit., p. 15. 314 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direitos Reais. 3ª ed. atual. São Paulo: Atlas, 2003, p. 392.
124
Marise Pessoa Cavalcanti315 ao exemplificar os casos de constituição de superfície
por sentença judicial, traz-nos o seguinte exemplo elucidativo:
Para que se configure a hipótese de sentença judicial como meio de constituição pode-se considerar as seguintes possibilidades, a título de exemplificação: o Ministério Público, mediante ação civil pública, requerer a superfície compulsória tendo em vista o não cumprimento da função social da propriedade por parte do proprietário; a Defensoria Pública, na defesa de réu turbador ou esbulhador, via pedido reconvencional.
Quanto à duração, pode a superfície ser temporária ou perpétua. Contudo, sendo
temporária, ocorrerá ao final do prazo acordado a reversão ou ingresso da coisa superficiária
para o patrimônio do dominus soli, ou seja, a construção ou plantação reverte para o
patrimônio do proprietário, com ou sem indenização quando já preexistente, ou incrementa
seu patrimônio se a superfície teve por objeto construir ou plantar. 316
No tocante à regularização das favelas, cumpre destacar que o direito de superfície
seria bastante útil, mas desde que fosse instituído com cláusula de opção de compra ao final
da concessão pelo superficiário ou concessionário ou por seus herdeiros, efetivando-se dessa
forma a função social da propriedade.
Cumpre destacar que o novo Código Civil ao disciplinar o instituto da superfície nos
artigos 1.369 a 1.377 não vislumbrou a hipótese de concessão do direito de superfície por
sentença judicial ou através da usucapião, podendo se inferir da leitura do artigo 1.369, tratar
de concessão do proprietário do imóvel.
Porém, cuidar-se-á do instituto da superfície no novo Código Civil e no Estatuto da
Cidade, oportunamente, em capítulo dedicado ao tema, ocasião em que a questão será objeto
de nova abordagem .
Por ora, cumpre destacar que o ideal é constituir-se superfície temporária, podendo
admitir-se a perpetuidade, para que as partes exerçam a mais ampla liberdade contratual e
tirem o máximo proveito da instituição, lembrando que para o caso de regularização fundiária
o ideal seria a inserção de cláusula de opção de compra ao fim do contrato.
De outro norte, a superfície compulsória sugerida por Marise Pessoa Cavalcanti em
sua obra várias vezes citada, pode acarretar o desvirtuamento do instituto, configurando-se a
desapropriação, instituto cujos contornos são bem diversos do da superfície e tratado por
315 CAVALCANTI, op.cit.,p.16. 316 Idem., Ibidem., p.18.
125
ramo do direito diverso do direito privado, por inserir-se no campo do direito público,
mormente do direito administrativo.
No que se refere à extinção da superfície, pode-se afirmar que a primeira causa é a
caducidade, ou seja, o término do prazo acordado para a mesma que faz com que a
propriedade superficiária retorne ou ingresse no patrimônio do dominus soli, através da
reversão.
Além da reversão, admite-se a renúncia, a confusão, a resolução, o distrato, a
prescrição, a desapropriação e o perecimento do objeto, sendo certo que a desapropriação só
extinguirá a superfície se não for parcial, pois, em assim sendo, remanescerá o edifício ou
plantação, conforme esclarece Marise Pessoa Cavalcanti.317
Para a citada autora, o principal efeito da extinção da superfície é o restabelecimento
do efeito aquisitivo da acessão. Ocorrerá o fenômeno da reversão da construção ou plantação
preexistente à constituição da superfície, para o patrimônio do dominus soli.
Algumas legislações estrangeiras prevêem o pagamento de uma indenização do
dominus soli ao superficiário. No ordenamento jurídico pátrio a previsão consta do artigo
1.375318 ao preconizar que com extinção da concessão superficiária, o proprietário passará a
ter a propriedade plena sobre o terreno, construção ou plantação, independentemente de
indenização, se as partes não houverem estipulado o contrário.
Igual disposição consta do artigo 24 do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257, de 10 de
julho de 2001).319
Ademais, havendo extinção da concessão superficiária em conseqüência de
desapropriação, a indenização cabe ao proprietário e ao superficiário, no valor
correspondente ao direito real de cada um, nos termos artigo 1.376 do novo Código Civil.
Por fim, cumpre destacar que o professor Ricardo Lira320 enumera quatro hipóteses
de extinção da superfície, ou seja, pelo advento do termo, pelo descumprimento das
obrigações assumidas pelo superficiário, quando a resolução do direito for a conseqüência
prevista, pelo não exercício do direito de construir ou plantar dentro de prazo legalmente
317 CAVALCANTI, op.cit., p. 19-20. 318 Art. 1.375. Extinta a concessão, o proprietário passará a ter a propriedade plena sobre o terreno, construção ou plantação, independentemente de indenização, se as partes não houverem estipulado o contrário. 319 Art. 24. Extinto o direito de superfície, o proprietário recuperará o pleno domínio do terreno, bem como das acessões e benfeitorias introduzidas no imóvel, independentemente de indenização, se as partes não houverem estipulado o contrário no respectivo contrato. 320 LIRA, Elementos, op.cit.,p.79.
126
assinado (não-uso) e pelo abandono, destacando o citado professor, ainda, outras hipóteses,
como a confusão dos titulares do domínio do solo e do direito de superfície, usucapio
libertatis, e pela expropriação do solo e da propriedade separada superficiária.
Porém o ordenamento pátrio, no artigo 1.374, prevê além do termo final da
concessão, a resolução se o superficiário der ao terreno destinação diversa daquela para a
qual foi concedida, norma que também consta do artigo 24 do Estatuto da Cidade.
6.2. Elementos do Direito de Superfície
No que concerne aos elementos constitutivos do direito de superfície, pode-se
afirmar que os sujeitos da relação jurídica superficiária são de um lado, o proprietário do solo,
na qualidade de concedente; de outro lado, na qualidade de concessionário, o superficiário.
Ao concessionário ou superficiário concede o proprietário do solo o direito de
construir ou plantar, fazendo sua a construção ou plantação que realizar, como propriedade
separada da propriedade do solo, que remanesce no domínio do proprietário do terreno, sendo
possível ao proprietário do solo, outrossim, transferir ao superficiário, como propriedade
separada do terreno sobre o qual estiverem realizadas, construção e plantações
preexistentes.321
Relativamente aos elementos do direito de superfície o Professor Ricardo Lira322
aponta a existência de elementos subjetivo e objetivo, sendo que quanto ao elemento subjetivo
da relação superficiária, o citado autor identificou as seguintes figuras: a) o concedente
(proprietário do solo, dominus soli) que outorga o direito de construir ou plantar, ou aliena a
construção ou o solo reservando-se o remanescente; b) o concessionário (superficiário,
proprietário da construção ou da plantação) a quem é conferido o direito de construir ou
plantar, ou a quem é transferida a propriedade do solo, da construção ou plantação nas
situações referidas.
Já no que se refere ao elemento objetivo, o citado doutrinador faz menção ao fato de
que o direito de superfície pode ser relativo à construção ou à plantação, denominando-se
superfície edilícia no primeiro caso e no segundo, vegetal, rústica ou agrícola, entendendo-se
por construção toda obra realizada na propriedade, podendo consistir num edifício, ponte,
321 TEIXEIRA, José Guilherme, op. cit., p. 75. 322 LIRA, Elementos, op. cit., p. 137.
127
dique, muro, monumento, fonte, podendo a instituição da superfície constituir numa
pluralidade de construções.323
Dois sujeitos fazem parte do contrato superficiário, quais sejam, o concedente e o
superficiário, que deverão possuir capacidade para a prática de atos da vida civil, sendo certo
que o concedente terá ao mesmo tempo, que ser o proprietário do imóvel e ter capacidade
de disposição deste.
Pode ser objeto do direito de superfície tudo o que seja suscetível de acessão, pois a
propriedade superficiária pressupõe a suspensão (propriedade superficiária temporânea) ou
interrupção (propriedade superficiária perpétua) da eficácia do princípio superfícies solo
cedit.324
Realizado o direito de superfície, direitos e obrigações decorrem para as partes que
nele figuram, sendo certo que ao concedente, proprietário do solo, confere-se o direito de se
utilizar a parte do imóvel que não foi objeto de superfície, incluindo o subsolo e o espaço
aéreo, observadas as vedações e restrições constantes do contrato, podendo receber
remuneração periódica ajustada denominada solarium, se convolada a superfície
onerosamente.
Ao concedente ainda é permitido exercer o direito de preferência na aquisição da
superfície, quando o superficiário quiser aliená-la onerosamente, sendo-lhe permitido
promover a resolução da superfície antes do advento do termo, se o superficiário não edificar
ou plantar no prazo fixado, ou se edificar ou plantar em desacordo com o título negocial que
lha conferiu, ou ainda, se lhe der destinação diversa da prevista no título.325
Pode ainda o concedente constituir gravames reais sobre o solo, tornar-se dono do
edifício ou da plantação, indenizando, ou não, o superficiário, uma vez extinta a superfície,
pelo término da suspensão do efeito aquisitivo da acessão.
Por outro lado tem ele a obrigação de abster-se da prática de atos que dificultem ou
impeçam a realização da construção ou plantação ou ao exercício do direito de superfície,
devendo dar preferência ao superficiário, em igualdade de condições com qualquer terceiro, à
aquisição do solo quando esta se faça onerosamente. 326
323 LIRA, Elementos, op. cit., p.137. 324 LIRA. Elementos, op.cit., p.137. 325 TEIXEIRA, José Guilherme, op. cit., p.76. 326 TEIXEIRA, op.cit., p.76.
128
Ao superficiário cabem os seguintes direitos: a) utilizar a superfície do solo alheio,
nos limites do negócio superficiário; b) usar, gozar e dispor da construção ou plantação
superficiária como coisa sua, separada da propriedade do solo; c) constituir gravames reais
sobre construção ou plantação, os quais se extinguirão no termo da superfície; d) exercer a
preferência na aquisição do solo, quando o proprietário deste aliená-lo onerosamente, e)
reconstruir a construção ou refazer a plantação, se houverem perecido, enquanto durar o
direito de superfície.327
Porém, deverá cumprir as seguintes obrigações: a) pagar a remuneração
convencionada, na forma ajustada, em caso de superfície onerosamente concedida; b) fazer a
construção ou plantação exatamente conforme o que for estabelecido no título constitutivo da
superfície; c) efetuar o pagamento dos encargos e tributos que, durante o prazo da superfície,
incidirem sobre a obra superficiária, como também sobre o solo; d) conservar a obra
superficiária e não demoli-la; e) dar preferência ao senhor do solo, em igualdade de
condições com terceiro, à aquisição da coisa superficiária. 328
Cumpre ressaltar que outras obrigações poderão vir preestabelecidas no título
constitutivo da superfície.
No que se refere ao objeto da superfície, pode-se afirmar que a superfície pode se
referir a construção ou plantação, sendo certo que alguns ordenamento jurídicos admitem a
realização de obras no subsolo e até mesmo a construção acima de edificação já existente.
Referentemente ao objeto da superfície o artigo 1.369, parágrafo único do Código
Civil veda a realização de obras no subsolo, salvo se for inerente ao objeto da concessão.
Contudo, disposição em sentido contrário consta do artigo 21 do Estatuto da Cidade (Lei nº
10.257/2001), uma vez que o parágrafo primeiro do referido dispositivo legal preconiza que o
direito de superfície abrange o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo relativo
ao terreno, na forma estabelecida no contrato respectivo, atendida a legislação urbanística.
6.3. O Direito de Superfície no Código Civil Brasileiro
Conforme exposto em outra oportunidade o direito de superfície não resulta de
tradição jurídica do ordenamento jurídico pátrio, posto não ter figurado no rol dos direitos
reais preconizados pelo Código Civil de 1916.
327 TEIXEIRA, op.cit., p. 76. 328 TEIXEIRA, op.cit., p.76.
129
Em artigo sobre o tema o professor Orlando Gomes329 destacou que a restauração do
direito de superfície em moldes modernos foi sugerida no anteprojeto de Código Civil que ele
apresentou ao Ministério da Justiça em 31 de março de 1963, ao então Ministro João
Mangabeira, porém, a Comissão Revisora o rejeitara inteiramente.
Segundo o citado autor, nesse projeto, o instituto da superfície foi disciplinado pelo
por ele em oito artigos, concernentes a constituição da superfície, transferência, objeto,
concessão, reversão, tributos, preferência e taxa de transferência.
Sobre esse enfoque vale a pena citar passagem de escritos de José Rogério Cruz e
Tucci330, in verbis:
O direito de superfície, como se sabe, não resulta da tradição jurídica de nosso ordenamento jurídico como também não figurava nas legislações revogadas pelos atuais Códigos da Itália e de Portugal. No Brasil, aliás, foi abolido pela lei de 24 de setembro de 1864, que deixou de enumerá-lo entre os direitos reais.
É bem verdade que CLÓVIS BEVILÁQUA, provavelmente sentido a necessidade de ressuscitar o instituto estudado, inseriu-o no Projeto de Código Civil por ele revisto, no artigo 802: “Somente se consideram direitos reaes, além da propriedade: a) ...; b) a superfície;...”, sistematizando-o nos arts. 826 a 832 (“Art. 826. O proprietário de um imóvel pode conceder a terceiro, por título oneroso ou gratuito, o direito de plantar, edificar, ou assentar qualquer obra ou usar de qualquer modo da superfície do solo...”).
Quando de sua tramitação no Congresso Nacional, a matéria foi examinada por BENEDITO DE SOUZA, que, em seu parecer, assim se expressou: “A Comissão, desconhecendo qualquer utilidade na restauração deste instituto, há muitos anos abolido entre nós, é de parecer que seja eliminado do projecto” (Código Civil brasileiro, trabalhos relativos à sua elaboração, Rio de Janeiro, Impr. Nacional, 1918, p.904).
E, desse modo, acolhida tal proposição, o nosso Código Civil foi promulgado deixando de contemplar o instituto da superfície.
Cumpre ressaltar que antes mesmo da entrada em vigor do Novo Código Civil, por
força da Lei nº 10.406, de janeiro de 2002, que acabou por contemplar o instituto da
superfície dentre o rol de seus direitos reais, com o advento do Estatuto da Cidade, por obra
da Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, o referido diploma legal cuidou do instituto da
superfície, que foi definido em seu artigo 21 como sendo o instituto através do qual o
proprietário urbano poderá conceder a outrem o direito de usufruir da superfície do imóvel,
por tempo determinado ou indeterminado, mediante escritura pública registrada no Cartório
329 GOMES, Orlando. O Direito de Superfície. Revista Trimestral, nº 119. out-dez.1972. 330 CRUZ E TUCCI, José Rogério. A Superfície no Novo Código Civil. Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, nº 22, março-abril de 2003, p.99.
130
de Registro de Imóveis, abrangendo o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo
relativo ao terreno, na forma estabelecida no contrato, atendida a legislação urbanística.331
No que se refere ao tratamento do instituto da superfície no Estatuto da Cidade, será
objeto de enfoque mais à frente, lembrando que o referido diploma legal tem por objetivo o
disciplinamento físico–territorial urbano, com vistas a organizar o parcelamento e a ocupação
físico-territorial urbana, estabelecendo padrões urbanísticos para a implantação de
loteamentos.
Por ora, cuidar-se-á do direito de superfície no Código Civil vigente, analisando seus
elementos, características, vicissitudes e finalidade.
Com a entrada em vigor do Novo Código Civil houve significativas alterações na
estrutura das regras que tratam das relações privadas, em consonância com as transformações
sociais ocorridas nas últimas décadas, conforme informa Cruz e Tucci,332 fazendo menção a
Miguel Reale, afirmou que:
Quanto aos direitos reais, em especial, estabeleceu-se “um espírito de maior comunhão no sentido da propriedade. Se esse espírito tivesse existido, o Estado não teria motivo para interferir. Quer dizer, é uma espécie de previsão: que a sociedade civil o faça antes que o Estado se lembre de fazê-lo pela força” (MIGUEL REALE, O Estado de São Paulo, 26.11.1983, e em publicação do Ministério da Justiça, 1984, p.XXVII).
Ora, seguindo essas diretrizes básicas é de supor-se que EBERT CHAMOUN, emérito romanista, a quem coube a revisão da matéria pertinente ao direito das coisas, fora buscar nas fontes da experiência jurídica romana a idéia de inserir na nova legislação o modelo legal da superfície, a fim de que se desse maior mobilização ao direito de propriedade.
O instituto da superfície, com redação um pouco diferente da do Projeto, passou a
ser disciplinado pelo Novo Código Civil, nos artigos 1.369 a 1.377.333
331 MUKAI, op.cit., p. 15. 332 333 Art. 1.369. O proprietário pode conceder a outrem o direito de construir ou de plantar em seu terreno, por tempo determinado, mediante escritura pública devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis. Parágrafo único. O direito de superfície não autoriza obra no subsolo, salvo se for inerente ao objeto da concessão. Art. 1.370. A concessão da superfície será gratuita ou onerosa; se onerosa, estipularão as partes se o pagamento será feito de uma só vez, ou parceladamente. Art. 1.371. O superficiário responderá pelos encargos e tributos que incidirem sobre o imóvel. Art. 1.372. O direito de superfície pode transferir-se a terceiros e, por morte do superficiário, aos seus herdeiros. Parágrafo único. Não poderá ser estipulado pelo concedente, a nenhum título, qualquer pagamento pela transferência. Art. 1.373. Em caso de alienação do imóvel ou do direito de superfície, o superficiário ou o proprietário tem direito de preferência, em igualdade de condições. Art. 1.374. Antes do termo final, resolver-se-á a concessão se o superficiário der ao terreno destinação diversa daquela para que foi concedida. Art. 1.375. extinta a concessão, o proprietário passará a ter a propriedade plena sobre o terreno, construção ou plantação, independentemente de indenização, se as partes não houverem estipulado o contrário.
131
Ao analisar o instituto no Novo Código Civil, verificou-se poder a superfície recair
sobre construções e plantações, conforme se infere do artigo 1.369 e quanto aos requisitos de
formalidade, verifica-se dever a superfície ser instituída mediante escritura pública
devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis.
Outra inovação digna de nota refere-se aos encargos e tributos incidentes sobre o
imóvel que ficaram a cargo do superficiário, por força do artigo 1.371 do novo Código Civil.
Por outro lado, a superfície pode ser transferida a outrem, sendo vedado ao
concedente estipular qualquer pagamento pela transferência, conforme pode-se verificar do
artigo 1.372, parágrafo único. Ao proprietário é dado alienar o imóvel, e o superficiário
poderá ceder e transferir o seu direito de superfície, respeitando o direito de preferência de
cada um, nos termos do artigo 1.373 e, conseqüentemente, em caso de alienação ou cessão,
cumpre observar que a superfície, como direito real, vincula o imóvel gravado,
acompanhando-o sempre, sendo que com a ocorrência do termo final, o proprietário passará a
ter a propriedade plena sobre o imóvel, construção ou plantação, independentemente de
indenização, nos termos do que preconiza o artigo 1.375 da nova codificação civil.
Quanto ao inadimplemento, por parte do superficiário, das obrigações decorrentes da
instituição da superfície, mormente o não pagamento do solarium, ou o desvio de finalidade
quanto ao uso da superfície, seja com finalidade de construção ou plantação, enseja a rescisão
do contrato, podendo o proprietário pleitear perdas e danos, conforme pontifica José
Rogério Cruz e Tucci,334 em seu artigo versando sobre o instituto da superfície no Novo
Código Civil.
Cumpre acrescentar que apesar da nova roupagem que foi conferida ao instituto
da superfície no novo diploma civil, o instituto guarda relação de semelhança com os
princípios tradicionais que contornam o instituto em outras legislações modernas, em
especial, a portuguesa, guardando íntima relação com o instituto superficiário previsto no
Estatuto da Cidade, apesar de sua maior amplitude neste diploma legal, posto ter previsto
maior abrangência da superfície, fomentando a utilização do solo, do subsolo ou do espaço
aéreo do terreno, conforme estabelecido no artigo 21, § 1º do Estatuto da Cidade (Lei nº
10.257, de 10-7-2001).
Art. 1.376. No caso de extinção do direito de superfície em conseqüência de desapropriação, a indenização cabe ao proprietário e ao superficiário, no valor correspondente ao direito real de cada um. Art. 1.377. O direito de superfície, constituído por pessoa jurídica de direito público interno, rege-se por este Código, no que for diversamente disciplinado em lei especial.” 334 CRUZ E TUCCI, op. cit., p.7.
132
Por fim, o instituto da superfície cuida-se de uma concessão que o proprietário faz
a outrem (o superficiário), para que utilize sua propriedade, tanto para construir como para
plantar, tendo o Código Civil de 2002 se referido apenas ao direito de o superficiário
construir ou plantar, não cuidando de direito correlato e previsto no código civil português,
consistente em manter no local as plantações ou construções já existentes, sendo
perfeitamente possível tal atividade em razão de não haver restrição em nosso ordenamento
jurídico.
O instituto da superfície desempenhará importante função social não só quanto a
utilização do imóvel por quem constrói ou planta, mas também por quem mantém
plantações ou construções já existentes no terreno, como no caso de um prédio inacabado que
o superficiário se propõe a terminar ou no caso de plantações abandonadas cuja continuação é
de todo interessante ao superficiário.
Dada a escassez de moradia nos grandes aglomerados urbanos, o direito de superfície
se bem empregado, servirá para diminuir os conflitos sociais oriundos da má distribuição do
espaço urbano, principalmente para os ocupantes de residências em favelas e o grande
número de “sem-terras” e “sem-tetos”, desde que no contrato de superfície seja inserida
cláusula de opção de compra ao termo da instituição, podendo haver a regularização da
situação daqueles que ocupam lotes nos denominados condomínios irregulares, numa
tentativa de conter a proliferação desordenada de condomínios irregulares nos grandes
centros urbanos em prejuízo da qualidade de vida e em total afronta à dignidade da pessoa
humana, um dos princípios fundamentais de nosso Estado Democrático de Direito, inscrito
no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988 e que se irradiou para todo o
ordenamento jurídico, inclusive para o direito civil.
No campo do direito de propriedade, preservar o princípio da dignidade humana
significa conciliar o exercício do direito de propriedade com princípios maiores, garantindo-
se moradia digna, dotada de um mínimo de infra-estrutura e salubridade, evitando expor a
população de baixa renda a situações de humilhação e desrespeito a seus direitos
fundamentais, em prol de um capitalismo selvagem que se mantém à custa do alto preço pago
por aqueles que dão sua força de trabalho sem nada recebem, a não ser um mísero salário que
mal dá para suas necessidades básicas.
133
6.4. O Direito de Superfície no Novo Código Civil e a sua Função Social
Traçadas as premissas acerca do direito de superfície, cumpre tratar de sua
aplicação prática, no que se refere ao exercício do direito de propriedade, com ênfase ao
princípio da função social da propriedade, posto considerar de suma importância o
tratamento do princípio da função social da propriedade como elemento condicionante da
efetivação do instituído da superfície.
A análise do instituto da superfície exige uma multiplicidade de enfoques e um
deles é o seu tratamento sob o prisma da função social da propriedade, com vistas a
demarcar os seus contornos e seu âmbito de abrangência, levando em conta que o tratamento
do princípio da função social da propriedade não é tarefa fácil, notadamente no caso do
Brasil, onde no ordenamento jurídico civil o tratamento dado ao direito de propriedade esteve
sempre marcado por influências individualistas e exclusivista do século que marcaram as
primeiras codificações.
Múltiplos são os sentidos da idéia de função social, valendo a pena mencionar alguns
comentários de Eros Roberto Grau,335 abaixo transcritos:
A análise do instituto da propriedade, no Direito de nosso tempo, reclama uma multiplicidade de enfoques e critérios específicos. Ainda quando tomemos como objeto de pesquisa o princípio da função social, na tentativa de demarcação dos contornos de sua concepção e do seu raio de abrangência, ainda assim nos colocaremos, sempre, diante dum leque de aspectos a serem explorados, a reclamar a enunciação de um deles como o primordial, em razão do qual se pretenda desenvolver a análise ensaiada.
[...]
A observação da evolução da propriedade – que de plena in re potestas de Justiniano, da propriedade como expressão do direito natural vai desembocar, modernamente, na idéia de propriedade-função social – apresenta momentos e matizes realmente encantadores, bastantes para desviar o estudioso da senda que tencione explorar. Tal evolução consubstancia, como afirmou André Piettre, a revanche da Grécia sobre Roma, da filosófica sobre o direito: a concepção romana, que justifica a propriedade por sua origem ( família, dote, estabilidade dos patrimônios), sucumbe diante da concepção aristotélica, finalista, que a justifica por seu fim, seus serviços, sua função.
Sob tais premissas, cuidou-se no presente tópico da análise detida de alguns aspectos
da função social da propriedade para depois verificar-se a possibilidade do instituto da
superfície desempenhar esse papel, principalmente no que toca ao tratamento da propriedade
urbana.
335 GRAU, Eros Roberto. Direito Urbano: regiões metropolitanas, solo criado, zoneamento e controle ambiental, projeto de Lei de Desenvolvimento Urbano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982, p.62-71.
134
Para o jurista Eros Roberto Grau336 a palavra “propriedade” pode ser vista sob vários
aspectos, constituindo um conjunto de várias instituições distintas, relacionadas a diversas
espécies de bens, estando o princípio da função social da propriedade devidamente
instrumentado no plano normativo, o que não pode ser dito acerca da propriedade urbana,
cujas unidades se encontram inseridas em um conjunto mais amplo, ou seja, a cidade, sendo
injustificável essa carência de instrumentação posto que o fenômeno da urbanização está
relacionado aos mecanismos de desenvolvimento econômico.
Segundo o citado autor, deve-se proceder com cautela ao afirmar que o instituto da
propriedade deixou de ser entendida e vista como um direito subjetivo dos indivíduos, uma
vez que a propriedade não consubstancia mais um direito subjetivo justificado exclusivamente
pela sua origem, mas que remanesce exclusivamente a medida que atentemos a que seu
fundamento é inseparável da consideração do seu uso. Daí a fórmula segundo a qual não
pode a propriedade ser usada de modo contrário à utilidade social. Preservando-se o direito
do proprietário somente enquanto o seu uso contrário ao interesse social não ocorrer.337
Assim, o direito de propriedade hoje deve ser visto como um direito-função,
notadamente com vistas a preservar interesses alheios e, para tanto, devem ser analisados os
diversos sentidos da palavra propriedade, com vistas a garantir a efetivação de seus efeitos,
numa tentativa de superar a aparente contradição existente entre um direito-poder e um
direito-função imbricados na concepção moderna de propriedade, conforme nos elucida
Jacques Távora Alfonsin,338 verbis:
As “referências” de tais sentidos, porém, como adiante poder-se-á verificar, são bem diferentes. Espera-se contribuir, talvez, com todo o esforço hermenêutico que se tem desenvolvido no País, para garantir o princípio constitucional da função social das cidades e do direito de propriedade urbana os efeitos político-jurídicos que dele esperam todas as vítimas do histórico desrespeito com que o mesmo princípio tem sido tratado.
É que, do ponto de vista da eficácia de tais efeitos, a partir da forma de distribuição do espaço urbano como ela se dá hoje, aqui no Brasil, confrontada com o nosso ordenamento jurídico, particularmente aquele expresso na Constituição Federal, no Estatuto da Cidade e no novo Código Civil, correm o risco de não serem alcançados, na hipótese de a interpretação de tudo quanto está implicado em tais funções ficar reduzida ao puro raciocínio que, diante da expressão mesma função social, ignora o conteúdo axiológico do “social” da função e da “função” do social.
[...]
336 GRAU, op.cit.,p. 64. 337 Idem., Ibidem., op. cit., p.65. 338 ALFONSIN, Jacques Távora. A função Social da Cidade e da Propriedade Privada Urbana como Propriedades de Funções. In: ALFOSIN, Betânia e FERNANDES, Edésio (Org.). Direito à Moradia e Segurança da Posse no Estatuto da Cidade. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004, p. 41-79.
135
Assim, a palavra “propriedade” vai ser usada aqui com um duplo sentido: primeiro, o de direito real, cuja referência não ignore a capacidade que esse direito tem de violar direitos alheios; segundo, um sentido de adequação (coisa apropriada para um determinado fim) de uma função capaz de, senão impedir de todo, pelo menos inibir ao máximo aquela violação.
Por ora, destaca-se que o direito de propriedade sofreu profundas alterações ao
longo dos diferentes paradigmas de sociedade e de Estado, pelos quais passou a humanidade
e uma dessas grandes modificações consistiu na inserção no pensamento jurídico da idéia de
propriedade ligada à função, de maneira que a propriedade privada vem recebendo contornos
diferentes com vistas a viabilizar o exercício do direito de propriedade de forma a atender
interesses públicos, transformando-se numa propriedade orientada socialmente.
A Constituição Federal de 1988, a seu turno, trouxe diversas inovações no tratamento
do direito de propriedade, sendo uma delas a inserção em seu texto do princípio da função
social da propriedade que representa o ponto culminante de todas as evoluções pelas quais
passou o conceito de propriedade.
Segundo Liana Portilho Mattos339, para atender a sua função social, a propriedade
deverá andar junto com os interesses coletivos, não podendo sobrepor-se a eles. Para ela a
função social é um princípio que condiciona e afeta a propriedade privada em sua estrutura,
sendo condicionante do próprio direito de propriedade.
Pode-se conceituar a função social, de maneira simplificada, como sendo a
submissão do direito de propriedade, essencialmente excludente e absoluto pela natureza que
se lhe conferiu modernamente, a um interesse coletivo.
Dentre os vários institutos jurídicos criados para viabilizar a concretização da função
social da propriedade merece destaque o instituto da superfície, instituído primeiramente no
Estatuto da Cidade, como um princípio vetor do direito urbanístico brasileiro e,
posteriormente, ressurge no novo Código Civil, consistente numa concessão que o
proprietário faz a outrem para construir ou plantar em seu imóvel, podendo ser gratuita ou
onerosa.
Por ser a superfície um direito real de ter uma construção ou plantação em solo
alheiro, o referido instituto pode ser de grande valia na questão da regularização fundiária
de áreas ocupadas por “sem-terras” e “sem-tetos”, um vez que o proprietário do solo
utilizado continua sendo proprietário, mas apenas concede o direito de superfície, sendo o
339 MATTOS, Nova Ordem Jurídico-Urbanística: função social da propriedade na prática dos tribunais. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006. p. 37.
136
titular desse direito, proprietário da construção ou plantação sobre ele levantada, podendo ser
instituída cláusula de opção de compra em favor do superficiário, ao término do prazo de
concessão, tendo em vista que a norma codificada já lhe garante a preferência na compra,
conforme se infere do artigo 1.373.
Conclui-se com Marise Pessoa Cavalcanti340 que o direito de superfície possui
natureza jurídica de direito real, tendo sido elencado no novo Código Civil dentre os direitos
reais, sendo que a função social da propriedade, constitucionalmente exigida integra a sua
estrutura, apresentando-se o direito de superfície como instrumento útil, passível de
colaborar para que se atinja esse estágio de utilização do solo urbano e rural através da
superfície edilícia ou agrícola, respectivamente, diminuindo-se as mazelas sociais decorrentes
da má distribuição do espaço urbano.
A integração do princípio da função social no conceito de propriedade (ou nos
conceitos de propriedade) importa em que se coloque sob contestação, por tímida e
incompleta, a fórmula segundo a qual apenas não pode a propriedade ser usada de modo
contrário à utilidade social, conforme adverte Eros Roberto Grau.341
6.5. O Direito de Superfície no Estatuto da Cidade
O direito de superfície é tratado no Estatuto da Cidade, instituído por força da Lei nº
10.257, de 10-7-2001, Capítulo II que cuida dos instrumentos da política urbana, nos artigos
21 a 24.
Tal instituto jurídico veio regulamentar as disposições do artigo 182 da Constituição
Federal de 1988, dispondo sobre as diretrizes de desenvolvimento urbano no Capítulo I,
estabelecendo normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade
urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do
equilíbrio ambiental, devendo-se ressaltar que embora o referido diploma legal tenha sido
denominado oficialmente Estatuto da Cidade, suas diretrizes e normas não se destinam
apenas ao direito urbanístico, mas também ao direito ambiental, sendo que em seu artigo 2º
estão traçadas as diretrizes da política urbana que terão de ser observadas pelos Estados e
Municípios, com vistas a ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e
garantir o bem-estar de seus habitantes, conforme preconizado pelo artigo 182 da Constituição
Federal de 1988.
340 CAVALCANTI, op.cit., p. 84 e ss. 341 GRAU, op.cit., p.65.
137
Dentre os vários objetivos a serem buscados com o referido estatuto vale a pena
mencionar alguns deles apontados por Toshio Mukai:342
Destacamos dentre esses objetivos: gestão democrática por meio da participação popular e de associações representativas; cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização; planejamento do desenvolvimento das cidades; ordenação e controle do uso do solo, visando evitar: a) a utilização inadequada dos imóveis urbanos; b) a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes; c) o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivo ou inadequado em relação à infra-estrutura; d) a instalação de empreendimentos ou atividades que possam funcionar como pólos geradores de tráfego, sem a previsão da infra-estrutura correspondente; e) a retenção especulativa do imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não-utilização; f) a deterioração das áreas urbanizadas; g) a poluição e a degradação ambiental; a integração e complementaridade entre as atividades urbanas e rurais; justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização; adequação dos instrumentos de política econômica, tributária e financeira e dos gastos públicos aos objetivos do desenvolvimento urbano, de modo a privilegiar os investimentos geradores de bem-estar geral e a fruição dos bens pelos diferentes seguimentos sociais, contribuição de melhoria; proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico; audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população; simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias, com vistas a permitir a redução de custos e o aumento da oferta dos lotes e unidades habitacionais; isonomia de condições para os agentes públicos e privados na promoção de empreendimentos e atividades relativos ao processo de urbanização, atendido o interesse social.
Percebe-se que várias são as diretrizes gerais importantes para a efetivação da
política urbana, de observação obrigatória pelo Municípios que deverão incluí-las em seus
planos diretores e nas leis de uso e ocupação do solo, bem como nas de parcelamento do solo
urbano, conforme sugere Toshio Mukai343 .
Dos instrumentos da política urbana previstos no referido Estatuto, vale destacar o
do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, por exigência do § 4º do art. 182 da
Constituição Federal de 1988, objetivando a forçar o proprietário o promover o adequado
aproveitamento do solo, além do IPTU progressivo no tempo, da desapropriação com
pagamento em títulos, da usucapião especial de imóvel urbano previsto no artigo 183 da
norma fundamental, da concessão de uso especial para fins de moradia, do direito de
superfície, do direito de preempção, da outorga onerosa do direito de construir, das
operações urbanas consorciadas, da transferência do direito de construir e do estudo do
impacto de vizinhança, sendo certo que no presente estudo deu-se importância ao direito de
superfície posto constituir em objeto principal da pesquisa.
342 MUKAI, op.cit., p. 5-7. 343 Idem., Ibidem., p.6.
138
Antes mesmo de abordar o direito de superfície na perspectiva do Estatuto da
Cidade, vale a pena mencionar com Rogério Gesta Leal344 sobre o plano diretor enquanto
elemento jurídico-político ordenador da ocupação da propriedade urbana e da cidade o
seguinte:
Os precursores do denominado e moderno direito urbanístico no Brasil defendem que qualquer estudo que busque enfrentar a normatização e ordenação da ocupação do espaço urbano tem de levar em conta vários aspectos, como o político, o social, o econômico e o jurídico. Tal normatização tem de alcançar não só o uso da propriedade urbana e urbanizável, de seus equipamentos e de suas atividades, mas de qualquer área, elemento ou atividade em zona rural que interfira no agrupamento urbano enquanto ambiente natural do homem em sociedade.
Conforme adverte o professor Ricardo Pereira Lira 345 “o Direito Urbanístico,
quando bem considerado e devidamente aplicado, pode trazer soluções aos inúmeros e graves
problemas decorrentes da má distribuição do espaço urbano, por ser um conjunto de normas
destinadas a dispor sobre a ordenação da Cidade, sobre a ocupação do espaço urbano de
maneira justa e regular, procurando as condições melhores de edificação, habitação, trabalho,
circulação e lazer, organizando os espaços habitáveis, de modo a propiciar melhores
condições de vida ao homem na comunidade.
Cuidar-se-á de abordar o instituto da superfície como instrumento jurídico do
direito urbanístico do Estatuto da Cidade, tomando por suporte teórico as anotações do
professor Ricardo Lira346, in verbis:
A forma mais direta de definir o direito de superfície será a partir do fenômeno da acessão, que tem suas raízes no direito romano.
Por força do princípio da acessão, tudo aquilo que acede permanentemente ao solo passa a ser da propriedade do dono do solo, por mais valioso que seja o incremento.
Existindo em determinado ordenamento o direito de superfície, duas pessoas podem convencionar entre si que a primeira (concessionário) possa construir sobre o terreno de propriedade da segunda (concedente), de tal forma que a edificação seja do domínio daquela e o lote permaneça no domínio desta. Os sistemas poderão estabelecer que a pactuação seja perpétua ou provisória. No caso da superfície perpétua, haverá uma interrupção dos efeitos da acessão. No caso da superfície temporária, haverá uma suspensão dos efeitos da acessão. Com o direito de superfície – e esse é um sonho acalentado pelos arquitetos – é possível separar negocialmente o direito de construir do direito de propriedade do solo, pois quem constrói é o concessionário, e não o dono do lote (concedente). Concretizada a concessão de edificar, identificam-se duas propriedades: a propriedade do terreno, que continua sendo do concedente; a propriedade da construção (propriedade superficiária), de que é titular o concessionário
344 LEAL, Rogério Gesta. A Função Social da Propriedade e da Cidade no Brasil: aspectos jurídicos e políticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p.131. 345 LIRA, Direito Urbanístico, Estatuto da Cidade e Regularização Fundiária. Revista de Direito da Cidade, Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, v.1. n.1, p.149-164, maio 2006. 345 Idem., Ibidem., p.156. 346 Idem., Ibidem,. p.154-155.
139
superficiário. O instrumento é valioso, por isso que amplia o leque de possibilidades de utilização da propriedade imóvel, com as galas de um direito real.
Para o professor Ricardo Lira 347 o instituto da superfície da forma como prevista
pelo Estatuto da Cidade resolveria o problema da utilização do solo, no caso de o
proprietário do imóvel não dispuser de recursos financeiros para implementar uma
construção, obtendo-se resultado urbanístico pela concessão do direito de superfície do
terreno a um terceiro, que se interesse pela construção naquele local, permanecendo com a
propriedade da edificação durante o prazo assinado no contrato superficiário, findo o qual a
propriedade construída retornaria ao patrimônio do concedente, com ou sem indenização,
dependendo de estipulação em contrato escrito.
Cumpre ressaltar que nosso Código Civil não previu a instituição da superfície no
subsolo, salvo se inerente ao objeto da concessão.
Contudo, no Estatuto da Cidade o direito de superfície abrange a utilização do solo,
subsolo ou do espaço aéreo relativo ao terreno, na forma prevista no contrato, desde que
atendida a legislação urbanística, conforme se infere do artigo 21, § 1º, do Estatuto.
6.6. O Direito de Superfície como Instrumento de Regularização Fundiária das
Favelas e Populações Carentes
Com a inserção do direito à moradia no rol dos direitos fundamentais sociais insertos
no artigo 6º da Constituição Federal de 1988, o direito à moradia se insere dentre as
preocupações da pesquisa, posto cuidar-se de um dos aspectos da ordenação do espaço
urbano, com vistas à efetivação da função social da propriedade e da cidade.
O direito à moradia, funda-se no direito à vida e dignidade da pessoa, razão pela qual
deve ser considerado como prioridade dentre as políticas públicas a serem implementadas
pelo Estado.
Sob esse enfoque, valendo-se das palavras do professor Ricardo Lira, quanto ao
processo de ordenação do espaço urbano, especial atenção é de ser dirigida a uma política de
regularização fundiária destinada à titulação das áreas de assentamento das favelas,
mocambos, palafitas e loteamentos irregulares em articulação com política de urbanização e
saneamento das áreas irregularmente ocupadas.
Em outra oportunidade da pesquisa enfocou-se o problema da favelização, o
crescimento desordenado dos centros urbanos provocado pelo êxodo rural, causando
347 LIRA, Direito Urbanístico..., op.cit., p.155.
140
conseqüências graves na qualidade de vida das pessoas, sem contar o prejuízo ao meio
ambiente que se vê deteriorado em razão do avanço das favela sobre áreas verdes, conforme
notícia veiculada no O Globo348, em que uma auditoria do Tribunal de Contas do Município
do Rio de Janeiro, comprovou que comunidades avançam rapidamente sobre áreas de
preservação.
Na auditoria descobriu-se que 17 favelas, entre elas Vila Parque da Cidade (Gávea),
Babilônia (Leme), Formiga (Tijuca) e Floresta da Barra (Itanhangá) ocupam áreas de
preservação ambiental no Rio de Janeiro.
O professor Ricardo Lira349 em seu artigo publicado na Revista de Direito da
Cidade teceu severas críticas ao movimento de remoção das favelas, por considerá-la medida
extrema, somente admissível quando haja perigo de vida para os próprios moradores, sendo
que para o citado autor, diante de situações já consolidadas, nem os imperativos ambientais
mais fortes devem prevalecer, devendo as remoções serem feitas com critérios e em caráter
excepcional, para locais próximos ao inicialmente ocupado.
O direito à moradia é direito humano fundamental, erigido em norma constitucional
por força do artigo 6º da Constituição Federal de 1988, motivo pelo qual as autoridades
responsáveis pelo problema da regularização fundiária devem implementar a regularização
dos assentamentos ocorridos em bens públicos, utilizando-se de igual prática quanto a
regularização de tais ocupações em bens particulares, com mapeamento fundiário do país,
conforme pontifica o professor Ricardo Lira.350
No mais, a par das dificuldades que o problema apresenta, o instituto da superfície
tanto a prevista no novo Código Civil quanto a estipulada no Estatuto da Cidade daria conta,
se bem utilizado pelo poder público, de enfrentar a questão dos assentamentos irregulares,
principalmente se fomentada pelo Estado, com a inserção de cláusula de opção de compra
pelo superficiário ao final do prazo de concessão, conforme já ressaltado alhures.
Desta forma, o Município deve, com base nas diretrizes gerais estabelecidas pela
União e pela Lei Orgânica, de acordo com sua realidade específica, ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.351
348 SCHMIDT, Selam. A prefeitura não pode agir. O Globo. Rio de Janeiro, p. 19, 02 out. 2005. 349 LIRA, Direito urbanístico, estatuto da cidade, p.161. 350 Idem., Ibidem., p. 161-162 351 LEAL, op. cit,, p. 135.
141
7. CONCLUSÃO
Com a presente pesquisa objetivou-se compreender o instituto da superfície
preconizado pela Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001 que instituiu o Estatuto da Cidade e
pelo Novo Código Civil, nos artigos 1.369 a 1.377.
Analisou-se o fenômeno do crescimento dos centros urbanos e verificou-se que os
aglomerados urbanos, em certos aspectos, foi provocado pelo êxodo rural decorrente da saída
das pessoas da zona rural para as grandes cidades em busca de melhores condições de vida.
Em razão do alto custo dos imóveis nos grandes centros e baixo poder aquisitivo da
população mais pobre, estas tendem a se assentarem nas periferias das cidades daí
formando-se as favelas, mocambos, cortiços, etc em que as pessoas vivem em péssimas
condições, em residências insalubres, sem água encanada e rede de esgotos e sem a presença
efetiva de órgãos do Estado.
Em razão desses fatores, constatou-se ao longo da pesquisa que as cidades vão
crescendo de forma desordenada em prejuízo da qualidade de vida.
Sugeriu-se que o direito de superfície seja utilizado como instrumento eficiente na
solução de problemas relacionados com a ocupação desordenada do espaço, mas ele não é o
único instrumento cabível, posto que o Estatuto da Cidade disciplina outros instrumentos
para resolver o problema e reordenar o espaço habitável.
Contudo, a pesquisa cingiu-se ao direito de superfície, posto tratar de um instituto
novo no ordenamento jurídico, em razão do Código Civil de 1916 não ter cuidado da
superfície dentre o rol dos direitos reais.
Por esse motivo, procurou-se abordar o instituto da superfície traçando seu perfil
histórico, momento no qual optou-se por estudar, primeiramente, o direito de propriedade e
suas transformações ao longo dos séculos, passando de uma propriedade coletiva para a
individualização caracterizada pelos direitos elementares do jus utendi, jus fruendi e jus
abutendi.
Percebeu-se que através da evolução do direito de propriedade e, conseqüentemente,
com o advento das servidões, os romanos passaram a admitir a existência de direito sobre
coisa alheia, denominados iura in re aliena.
142
Abordou-se vários aspectos relacionados ao direito de propriedade e percebeu-se
que a propriedade sofreu grandes modificações uma vez que seu caráter exclusivista foi
sendo atenuado.
No Brasil, o direito de propriedade teve caráter absoluto, exclusivo e perpétuo, a teor
do que preconiza o artigo 524 do Código Civil de 1916 e que foi reproduzido no artigo
1.228, caput, do Código Civil vigente, mas o seu exercício deve ser orientado por finalidades
econômicas e sociais, objetivando a preservação ambiental e o patrimônio histórico e
artístico, sendo defesos atos que não tragam ao proprietário qualquer comodidade, ou
utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.
Contudo, o direito de propriedade recebeu roupagem nova, em razão da adoção do
princípio da função social da propriedade. Prosseguiu-se com o estudo do direito de
propriedade no Brasil onde abordou-se o regime de Sesmarias adotado no período colonial
por força da Lei Sesmarial de D. Fernando I, de 1375, caracterizada pela obrigatoriedade do
cultivo das terras como condição de posse da terra e seu conseqüente resgate, caso não fosse
cultivada por seu proprietário.
Constatou-se que em Portugal a Lei das Sesmarias teve como objetivo principal
solucionar o problema da crise de alimentos, mediante a imposição do dever de lavrar a terra.
Verificou-se que a característica comum às sesmarias fernandinas, afonsinas,
manuelinas e filipinas é o fato da existência de uma propriedade não-absoluta, calcada no
cultivo da terra, existindo então uma forma de propriedade condicionada, fundamento com o
qual o sistema de Sesmarias passou a vigorar no Brasil colonial, apesar de ter entrado em
decadência em Portugal.
Por outro lado, a passagem de uma economia calcada na mão-de-obra escrava, a
uma economia baseada na mão-de-obra livre faz com que o sistema de propriedade assuma
um valor econômico fundamental, tendo ocorrido a suspensão das concessões das sesmarias
em 1822, iniciando-se o regime das posses e que prevaleceu até 1850, consistente no mero
apossamento de terrenos para exploração agrícola e pecuária.
Com a Lei de Terras de 1850, ocorreu a passagem do patrimônio fundiário da Coroa
às mãos dos particulares, numa tentativa de disciplinar as questões agrárias de então,
ocasionadas pelas doações de Sesmarias que não foram cultivadas, demarcadas ou mesmo
registradas.
143
A Lei de Terras proibia os apossamentos, regulamentava e delimitava as terras
devolutas, estabelecendo-se, com isso, as bases da propriedade privada no Brasil.
Percebeu-se que a Lei de Terras procurou conferir estatuto jurídico à propriedade
privada, adaptando-a à nova realidade econômico-social ocorrida com introdução de relações
capitalistas de produção que se deu na América latina, por volta da metade do século XIX,
ocorrida no caso do Brasil com a expansão da economia cafeeira e com as pressões vindas da
Europa para o fim do tráfico de escravos e implementação de mão-de-obra assalariada.
Outro marco fundamental no sistema de propriedade brasileira ocorreu com a
instituição da denominada Lei Hipotecária de 1864 que contribuiu para o processo de
absolutização do direito de propriedade, disciplinando a hipoteca que foi largamente
utilizada como instrumento de mobilização do patrimônio fundiário, instituiu o registro de
imóveis base da propriedade e oponibilidade erga omnes dos direitos reais, que serviu de base
à criação do instituto da transcrição como modo de aquisição da propriedade imobiliária que
se incorporou ao Código Civil de 1916.
Por outro lado comprovou-se que a propriedade da terra no Brasil esteve associada a
problemas cruciais, como o da escravidão e o da imigração ocorrendo a ocupação do solo
urbano.
Constatou-se ter havido no Brasil colônia, praticamente, três grandes regimes de
propriedade das terras, sendo o das Sesmarias entre 1500 e 1822, em que as doações eram
feitas pelos capitães ou governadores; o da posse, desde 1822, ocasião em que foram
suspensas as doações de sesmarias por decreto de 17 de julho, até setembro de 1850, com o
surgimento da Lei nº 601 (Lei de Terras) e, posteriormente, o regime surgido com o advento
da Lei nº 317, de 1843, e com o Código Civil de 1916 que introduziram grandes mudanças
no sistema de propriedade com a adoção do princípio da transferência pela transcrição.
No tocante ao instituto da superfície verificou-se ser ele fruto de evolução no direito
romano que de início estabelecia o princípio superfícies solo cedit (D.41, 1,7,10) que
estabelecia a aquisição do domínio da construção ou plantação a favor do proprietário do
solo, sem indenização.
O direito de superfície surge com as primeiras concessões a possuidores de
edificação em solo alheio das ações para proteger seus interesses com o interdictum de
superficiebus e a actio de superfície, resultando o direito de superfície da inalienabilidade do
144
solo público e de seu arrendamento, no qual o pagamento do solarium foi seu traço
característico.
Os romanos entendiam que tudo que estava sobre o solo a ele se incorporava, por
força do princípio superfícies solo cedit, por força do qual a construção ou plantação feita
em solo de outrem acedia à propriedade do proprietário do solo, não conhecendo os
romanos, de início, a propriedade da construção separada da propriedade do solo. Porém,
com o passar do tempo, na época clássica o princípio é amenizado com a utilização de um
contrato denominado locatio conductio ou emptio venditio celebrado entre o dominus e o
superficiário, assegurando a este último o direito de construir e de gozar, perpétua ou
temporariamente, da edificação realizada, tendo o instituto da superfície ganhado
importância no período pré-clássico.
O direito de superfície desenvolve-se no direito romano, levando em consideração a
existência do princípio da acessão que esteve em vigor em todos os períodos do direito
romano, chegando até a época clássica quando então começou a ser atenuado.
No Direito Intermédio o instituto da superfície se desenvolveu, passando a ser
constituída também sobre plantações, tendo sido admitida a existência de propriedade da
construção e da plantação separada da propriedade do solo.
No âmbito do direito moderno o Código Civil germânico foi uma das primeiras
codificações a regulamentar expressamente o direito de superfície, que foi utilizado como
instrumento para reforma imobiliária da época, uma vez que os terrenos públicos, em vez de
serem alienados, tornavam-se objeto de superfície viabilizando a locação social, por meio de
utilidade pública, ou a construção da casa própria para as classes trabalhadoras e média,
coibindo-se a especulação imobiliária, tornando-se o Poder Público beneficiário da mais-
valia, podendo influenciar na maneira de construir.
O instituto foi regulado nos direitos italiano, francês, inglês, espanhol, chinês, russo e
argentino.
No tocante ao tratamento do direito de superfície no Brasil constatou-se que o
instituto superficiário vigeu no Brasil durante o período de colonização portuguesa uma vez
que o instituto era disciplinado em Portugal por força da Lei Pombalina de 1773, em relação
a construções, árvores e plantações, tendo o Código Civil Português de 1867 disciplinado o
instituto em seu artigo 2.038.
145
Contudo o instituto acabou sendo banido do ordenamento jurídico pátrio em 1864,
por força da Lei nº 1.257, de 24 de setembro.
No processo de elaboração da primeira codificação civil o instituto voltou a ser
objeto de atenção dos juristas nacionais, mas idéia de inclusão do instituto da superfície no
ordenamento jurídico acabou não prevalecendo, em razão de termos adotado a teoria do
numerus clausus dos direitos reais no Código Civil de 1916.
Com o movimento de reforma do Código Civil à questão atinente a inclusão do
instituto da superfície no rol dos direitos reais e voltou a ser objeto de discussão através do
Anteprojeto do Professor Orlando Gomes, que inseriu o instituto da superfície no referido
anteprojeto apresentado ao Ministro da Justiça em 31 de março de 1963 e que se transformou
em Projeto revisto pelos juristas Caio Mário da Silva Pereira, Orosimbo Nonato e o próprio
Orlando Gomes. O instituto acabou não fazendo parte do rol dos direitos reais constante do
artigo 499 do Projeto, que não teve seguimento junto ao Congresso Nacional.
Reiniciados os trabalhos de reforma da codificação civil, formou-se nova comissão
incumbida dos trabalhos de reforma e, o Anteprojeto inicial referente ao direito das coisas,
elaborado pelo Professor Ebert Vianna Chamoun, não contemplou o direito de superfície
dentre os direitos reais, sendo certo que a comissão o previu no artigo 1.418, inciso III,
dentre os direitos reais, provocando críticas de vários juristas pátrios, como Caio Mário da
Silva Pereira e Afrânio de Carvalho, tendo a idéia da introdução do instituto da superfície
sido bem aceita por seguimento da doutrina pátria, sendo o instituto admitido no anteprojeto
de 1973.
Na redação final do Projeto de lei 634-B, de 1975 o instituto da superfície foi
incluído dentre os direitos reais em sua redação final.
Porém, vale destacar, a guisa de comentário, que antes da entrada em vigor do Novo
Código Civil, o instituto da superfície foi disciplinado no Estatuto da Cidade, instituído pela
Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2002, nos artigos 21 a 24, tendo o instituto da superfície
sido definido no artigo 21 do referido Estatuto, como sendo o direito segundo o qual o
proprietário urbano poderá conceder a outrem o direito de usufruir da superfície do imóvel,
por tempo determinado, mediante escritura pública registrada no Cartório de Registro de
Imóveis, direito que abrange o de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo relativo ao
terreno, na forma estabelecida no contrato, de acordo com a legislação urbanística.
146
O instituto da superfície foi amplamente tratado no Novo Código Civil, nos artigos
1.369 a 1.377, apesar de seu disciplinamento também no Estatuto da Cidade.
Em seguida tratou-se do princípio da função social da propriedade e sua importância
para compreensão do sentido atual da idéia de propriedade.
Verificou-se que a Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional nº 01 de 1969,
inseriram em seus textos o princípio da função social da propriedade, mas foi com o advento
da Constituição Federal de 1988 que o instituto ganhou importância, juntamente com o
princípio da dignidade da pessoa humana, o primeiro inserido no artigo 5º, inciso XXIII e o
segundo passou a constar do artigo 1º, inciso III.
Pelo princípio da função social da propriedade compreendeu-se que a propriedade
deve atender a interesses coletivos, não sendo admissível o direito de propriedade como
direito absoluto nos moldes em que foi concebida no passado.
Concluiu-se que o direito de superfície seria um instituto jurídico capaz de
possibilitar a solução de conflitos oriundos da ocupação irregular do solo urbano,
minimizando-se com o seu uso a denominada segregação urbana ocasionada pelo
inchamento das grandes cidade, forçando as populações de baixo poder aquisitivo a se
concentrarem nas periferias dessas cidades em prejuízo da qualidade de vida.
O sentido social do direito de propriedade trazido com a Constituição Federal de
1988 e recepcionado pelo novo Código Civil e pelo Estatuto da Cidade proporcionará uma
visão crítica acerca do exercício do direito de propriedade, contrastado com seu sentido
individualista, que prevaleceu no período de vigência do Código Civil de 1916, pautado no
caráter exclusivista do direito de propriedade.
Verificamos, de início, que o direito de propriedade, sobre o prisma de sua função
social, está sujeito a várias restrições, todas calcadas no interesse público e no próprio
interesse privado, sendo perceptível que o seu traço nitidamente individualista,
essencialmente excludente de que se revestia no passado, cedeu lugar a concepção diversa, de
conteúdo socializante, possibilitando-se a efetivação do exercício do direito à terra, como
instrumento de concreção da justiça social no campo e na cidade.
Cumpre consignar que a Igreja Católica exerceu grande influência na doutrina da
função social, através do que denominou-se doutrina social da Igreja, a partir de Santo
Tomás de Aquino que concebeu a propriedade como um dos direitos naturais do homem,
consubstanciada na idéia de que todo homem tem direito de possuir os bens de que necessita
147
para sua sobrevivência e realização de seus ideais de vida, uma vez que a propriedade é
vista como um bem que contém em si uma preocupação com o bem-estar comum, de modo a
conduzir o seu uso na busca efetiva da justiça social.
Sob essa concepção o direito de propriedade é visto como um direito natural em que
o homem supre suas necessidades básicas de alimentação e moradia, por meio da produção,
atendendo-se a função primeira do direito de propriedade, consistente na efetivação da
sobrevivência da humanidade, adaptando-se aos interesses de toda comunidade.
Percebe-se nos pronunciamentos da Igreja, através das encíclicas papais, o
reconhecimento da função social na propriedade privada, cujo fundamento é o destino
comum dos bens que devem servir à inclusão social por intermédio do trabalho e
distribuição de riquezas através do uso justo da terra, sem que com isso houvesse a
transformação da propriedade em patrimônio coletivo, mas seu objetivo consiste apenas em
subordinar a propriedade privada aos interesses da sociedade, base da teoria da função social.
No caso do Brasil, o direito de propriedade está disciplinado por normas
constitucionais, que a reconhecem como direito fundamental em seu artigo 5º, caput, que
estabelecem sua garantia e a condicionam à sua função social, permitindo-se a
desapropriação para efetivação de tais comandos, conforme se infere dos artigos 5º, XXII, e
XXIV, além das normas ordinárias constantes do Código Civil, nos artigos 1.196 a 1.510 e
leis especiais, como por exemplo, o Estatuto da Cidade, tendo a idéia de propriedade perdido
seu alcance tradicional, devendo ser vista e tratada sobre duplo aspecto, ou seja, o estrutural
e o funcional, representando a função social da propriedade o ponto de convergência de
todas as gradativas evoluções pelas quais passou o direito de propriedade ns últimas
décadas.
No capítulo seguinte abordou-se a questão da função social da cidade e da
propriedade urbana, onde voltou-se à temática da função social da propriedade.
Percebeu-se que o tema da função social da propriedade não é novo no mundo
jurídico, remontando à doutrina Cristã da Idade Média, onde a utilização da propriedade
visava atingir o bem comum da coletividade, calcada na idéia de que a propriedade só teria
sentido se utilizada com o objetivo de realização da justiça divina.
A idéia da função social se desenvolve com o liberalismo do século XIX e, após
grandes transformações ocorridas na sociedade, principalmente após o primeiro pós-guerra,
com o crescimento das desigualdades sociais e com a intervenção do Estado no domínio
148
econômico, a propriedade passa a ser vista como tendo uma função primordial, consistente
na distribuição de rendas, surgindo para o titular do direito de propriedade o dever de
respeitar o contingente de não proprietários, passando o proprietário a não desfrutar de
posição de supremacia em razão de sua titularidade, uma vez que o direito de propriedade
passou a ser questionado sob o prisma de sua função social.
Quanto ao tratamento do direito de propriedade no ordenamento jurídico brasileiro,
notadamente na Constituição Federal de 1988, o direito de propriedade e sua função social
estão disciplinados nos incisos XXII e XXIII, do artigo 5º, tendo a nova ordem constitucional
incluído a propriedade privada dentre os fundamentos da ordem econômica no artigo 170, II
e III, para em seguida, nos artigos 182 e 184 cuidar da propriedade urbana e rural em
capítulo dedicado ao tratamento da política agrícola, fundiária e de reforma agrária.
Constatou-se que a Constituição Federal criou diversos estatutos para tratar da
propriedade, levando em conta sua localização, se rural ou urbana, sua potencialidade
produtiva e não produtiva e a titularidade da apropriação, se por nacionais ou estrangeiros.
Por outro lado, observou-se que o direito urbanístico brasileiro ganhou lugar de
destaque com o advento da Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, objetivando resolver os
problemas decorrentes do parcelamento do solo urbano e das mazelas provocadas pelo
crescimento desordenado das cidades e o surgimento dos aglomerados periféricos em que
grande parte da população, notadamente a de baixa renda, vive em condições precárias, em
moradias sem infra-estrutura, até sem esgoto e água encanada.
Notou-se que essas questões têm relação com fatores de ordem econômica e social,
sem que as pessoas de baixo poder aquisitivo, não podendo adquirir imóveis nos grandes
centros dado o seu elevado custo por estarem localizados em áreas nobres, acabam se
alojando nas periferias dessas cidades, formando as favelas, cortiços etc, surgindo o
problema da violência associada à precariedade das condições de vida dessas pessoas.
Para solucionar ou amenizar esses problemas percebeu-se que seria necessária uma
tomada de posição do governo com vistas a implementar políticas públicas de criação de
moradias, podendo as questões do parcelamento do solo urbano e da escassez de moradia
serem solucionados através da utilização, em larga escala, do instituto da superfície,
associado à criação de programas de construção de moradias baratas e a melhorias das
condições habitacionais e de saneamento básico, objetivando o combate às causas da
149
pobreza e dos fatores de marginalização, com vistas à promoção social dos setores
desfavorecidos.
Verificou-se que o Estatuto da Cidade, instituído pela Lei nº 10.257, de 10-07-2001,
criou diversos mecanismos para implantação da política urbana, conforme previsão
constitucional, através da servidão administrativa, limitações administrativas, tombamento de
imóveis ou de mobiliário urbano, instituição de unidades de conservação, de zonas de
interesse social, dentre outros, além do direito de superfície.
Tais instrumentos jurídicos visam resolver o problema da falta de moradia e de suas
conseqüências, podendo ser utilizado o direito de superfície com essa finalidade,
possibilitando-se ao superficiário a compra do imóvel ao final do contrato, fazendo com que
a propriedade seja utilizada de forma justa, exercendo sua função social.
Por outro lado, a edificação e o parcelamento compulsórios, criados por força dos
artigos 5º e seguintes do Estatuto da Cidade terão eficácia na solução dos problemas
relacionados à especulação imobiliária, compelindo o proprietário a providenciar a edificação
do imóvel em prazo preestabelecido em lei, com a possibilidade de imposição de sanções
consistentes no aumento do IPTU e no parcelamento compulsório, sem contar o direito de
preferência conferido ao município sobre determinadas áreas.
Anotou-se que o direito à moradia foi erigido em direito fundamental inserido na
artigo 6º da Constituição Federal de 1988, tendo sido reconhecido como princípio
constitucional relacionado ao princípio da dignidade da pessoa humana, objetivando a
proteção da pessoa contra as necessidades de ordem material, garantindo-se-lhe uma
existência digna, em razão da gravidade dos problemas relacionados à escassez de moradia,
associados ao aumento da violência nas periferias das grandes cidades.
Assim, o direito de superfície, se bem utilizado, poderia viabilizar a efetivação do
direito à moradia, principalmente porque a falta de moradia está relacionada ao problema da
má distribuição do espaço habitável, uma vez que a ocupação do espaço urbano caracteriza-
se pelo déficit habitacional, além da deficiência dos serviços públicos, como os de transporte,
de saúde, ocorrendo também a deterioração do meio ambiente.
Os conflitos ocorrentes nos grandes centros urbanos são derivados da desigualdade
social que se agrava com a concentração de renda nas mãos de poucos, com o fenômeno do
êxodo rural .
150
Notou-se que a urbanização e a concentração de pessoas nas cidades não foi
acompanhada da adoção de políticas públicas urbanas que viabilizassem o crescimento das
cidades de forma racionalizada, tendo ocorrido o crescimento desordenando de suas
periferias, uma vez que a urbanização se deu com o êxodo rural desacompanhada da
necessária oferta de unidades habitacionais à população que afluía às cidades.
Ao abordar o tema da função social da propriedade verificou-se que o
desenvolvimento da propriedade passou por vários estágios, sendo que, inicialmente, esteve
vinculada à produção de subsistência, com atividades eminentemente agrícolas, em períodos
primitivos da história, onde verificou-se que o instituto da propriedade esteve relacionado a
fatores de mercado, bem assim ao sistema capitalista, sendo que o desenvolvimento da
civilização esteve relacionado à divisão de trabalho, sistema de trocas e à produção mercantil
que atingindo seu pleno desenvolvimento viabilizou grandes transformações sociais,
surgindo com a divisão de trabalho a propriedade individual, instalando-se a oposição entre a
cidade e o campo.
A propriedade individual surge na Roma antiga, apesar de seu sistema de
propriedade estar calcado na organização das famílias, fundadas no culto do lar e aos mortos,
com organização autocrática, havendo duas formas de propriedade coletiva, ou seja, a da
cidade (gens) e a da família, prevalecendo a idéia da propriedade coletiva.
Na República em Roma, desaparece a idéia de propriedade coletiva, sobrevindo a
familiar, em razão da presença do pater famílias, sobrevindo a propriedade individual em
Roma, primeiramente sobre os objetos produzidos para o uso do indivíduo que eram objeto
de troca entre outros indivíduos, decorrendo daí a propriedade dos meios de produção.
Novo conceito de propriedade surge na Idade Média, em contraste com o
exclusivismo dos romanos, surgindo a distinção do domínio direto da propriedade, que
pertencia ao senhor feudal e o domínio útil do vassalo.
O Mercantilismo e a Revolução Comercial impulsionam o modelo feudal de
sociedade e da idéia de propriedade, implantando-se a propriedade produtiva, responsável
pelo desenvolvimento econômico da Idade Moderna.
Por outro lado, a Revolução Francesa foi responsável por novo tratamento conferido
ao instituto da propriedade, com importância conferida à propriedade imobiliária que mereceu
tratamento no Código Napoleão de 1804, passando a garantir a seu titular ampla liberdade,
surgindo com os estudos de Duguit, de maneira mais intensa, uma nova idéia de propriedade,
151
qual seja, a da propriedade tendo uma função social, sendo certo que com a Revolução
Francesa a propriedade passou a figurar dentre os direitos fundamentais, juntamente com a
vida e a liberdade, por força do artigo 17 da Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão.
Analisando a questão da formação urbana no Brasil, verificou-se que a Constituição
de 1988 trouxe em seu bojo um capítulo dedicado à política urbana e que contém um
conjunto de princípios, responsabilidades e obrigações do Poder Público e de instrumentos
jurídicos e urbanísticos a serem aplicados na solução de diversos problemas, tais como o da
degradação ambiental e das desigualdades sociais nas grandes cidades, por ser a cidade
considerada de grande importância para o desenvolvimento humano.
Além da proteção à propriedade privada, inserida no artigo 5º, XXII, da Constituição
Federal de 1988 e do tratamento da função social no inciso XXIII, do mesmo dispositivo
constitucional, encontrou-se na norma fundamental outros dispositivos cuidando da proteção
à pequena propriedade rural, conforme se infere do artigo 5º, inciso XXV, que se tornou
insuscetível de penhora por débitos decorrentes da atividade produtiva e de reforma agrária,
nos termos do artigo 185, da referida Constituição, desde que trabalhada pela família do
proprietário .
No caso do Brasil, destacou-se que a função social da propriedade na Constituição
Federal de 1988, consta dos artigos 182, §§ 2º e 4º e 186, onde o princípio da função social
tem caráter impositivo, devendo a propriedade cumprir sua função social, segundo o plano
diretor municipal.
No tocante à importância da regularização fundiária, principalmente das áreas
constantes das periferias dos grandes centros urbanos, com vistas a solucionar os problemas
decorrentes da má distribuição do espaço habitável, destacou-se a importância da função
social do instituto da superfície, lembrando que a superfície engloba o direito de construir ou
plantar em terreno alheio, através de contrato entre concedente e concessionário e a
estipulação do pagamento de um solarium ao proprietário do terreno utilizado dessa forma
pelo superficiário.
O instituto veio disciplinado, como instrumento de regularização fundiária, no
Estatuto da Cidade, por força da Lei nº 10.257, de 10-07-2001, para viabilizar a regularização
do uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e sobretudo do meio
ambiente, garantindo-se aos cidadãos direito a cidades sustentáveis, com a participação
152
popular e cooperação dos organismos governamentais e não-governamentais e até da
iniciativa privada.
Verificamos que o direito à moradia foi também erigido em norma fundamental,
conforme se infere do artigo 6º da Constituição Federal de 1988, modificado pela Emenda
Constitucional n. 26, de 14/02/2000, que cuida dos direitos sociais, apesar de vivermos uma
crise de habitação no país, com imensa multidão de “sem-terra”, “sem-teto” e outros, tanto
vivendo em casas sem a mínima condição de habitabilidade, nas favelas e palafitas por esse
imenso país.
Tal situação é fator agravante dos problemas de marginalização e da violência tão
comum nas periferias dos grandes centros urbanos, dominados pelo poder paralelo do crime
organizado, bem assim da violência no campo, cujo fator é a disputa pela posse da terra, em
razão de uma reforma agrária prometida e nunca realizada na sua inteireza.
Esses problemas são solucionáveis, a longo prazo, por meio da implantação de
políticas públicas de construção de moradia e melhoria das condições das moradias
existentes, num país em que a crise de habitação está relacionada, dentre outros fatores, com
o baixo poder aquisitivo das pessoas e também pela especulação imobiliária, bem assim pela
timidez com o governo trata dessas questões no plano prático.
Anotou-se que o direito a moradia foi erigido à categoria de direitos humanos, a
partir da década de 90, propiciando o surgimento de uma base legal sólida para
implementação de futuras ações rumo à melhoria das condições de vida e de moradia da
população pobre.
O direito a moradia digna também foi reconhecido na Declaração Universal dos
Direitos Humanos de 1948, em seu artigo XXV, item 1, além da garantia da propriedade
individual ou coletiva, sendo o direito a moradia também reconhecido como direito humanos
em declarações e tratados internacionais, como a Convenção Internacional sobre a eliminação
de todas a s formas de discriminação racial de 1965, dentre outros.
No caso do Brasil, além da Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Cidade e o
novo Código Civil trouxeram profundas inovações nas questões relacionadas ao direito de
propriedade, urbanismo e direito a moradia digna, tendo sido instituídos diversos instrumentos
de controle do crescimento das cidades e ordenamento do solo, sendo o direito de superfície
um desses instrumentos.
153
Notou-se que o instituto da superfície, se bem utilizado, com inserção de cláusula de
opção de compra do imóvel ao término do prazo de concessão da área objeto do direito de
superfície seria instrumento hábil à implantação da função social da propriedade, evitando-se
a especulação imobiliária, viabilizando a erradicação da pobreza, eliminação da
marginalidade e das desigualdades sociais e regionais, voltando-se a atenção governamental
para a efetivação de tais medidas.
Finalmente, cuidou-se do direito de superfície no ordenamento jurídico pátrio, onde
no sexto capítulo, tratamos das noções gerais, bem assim da natureza jurídica do instituto,
onde destacou-se a importância do instituto na questão da implementação da função social da
propriedade, além de uma abordagem em seus elementos.
Tratou-se do instituto da superfície no novo Código Civil que foi disciplinado nos
artigos 1.369 a 1.377 e no Estatuto da Cidade, onde é previsto nos artigos 21 a 24, onde
destacamos sua importância na questão da implementação da função social da propriedade e
da cidade, quanto à utilização do imóvel por quem constrói ou planta, bem assim para quem
mantém plantação ou construção já existente, podendo o superficiário continuar o cultivo ou
implementar a construção em seu interesse e proveito, com vistas à preservação da dignidade
humana.
Como instrumento de regularização fundiária das favelas, viu-se que o instituto da
superfície seria de grande valia para conter o problema da favelização dos grandes centros e
regularização das favelas há muito tempo existentes, evitando-se atitudes governamentais
consistentes em remoção de favelas só admissível em casos de perigo para os próprios
favelados ou em casos de preservação ambiental, ante o avanço das favelas sobre áreas
verdes e de preservação ambiental em proveito das presentes e futuras gerações.
O direito à moradia, erigido em norma Constitucional, conforme se infere do artigo
6º da Constituição Federal de 1988 ao lado da dignidade da pessoa humana e da função social
da propriedade podem ser buscados através dos institutos tratados na presente pesquisa,
principalmente do instituto da superfície que carece de maiores estudos para conhecer suas
implicações e conseqüências, objetivando entendimento mais profundo das questões ligadas
ao parcelamento do solo, da ordenação das cidades, visando uma vida digna com o espaço de
cada um sendo respeitado e a propriedade exercendo sua função social, posto não ser cabível
a visão individualista e exclusivista do passado.
154
Com a presente pesquisa, esperou-se ter dado alguma contribuição para a
compreensão do instituto da superfície e de sua função social no direito privado e no Estatuto
da Cidade, apesar de saber que o assunto não se esgotou aqui, havendo várias outras
questões dignas de estudo, quais sejam, a da moradia digna no contexto civil-constitucional e
a questão da cidade sustentável, favelização e reforma agrária que poderão ser objetos de
estudos futuros.
155
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161
DISSERTAÇÃO APRESENTADA AO MESTRADO EM DIREITO DA UNIVERSIDADE GAMA FILHO, NO RIO DE JANEIRO, E APROVADA PELA COMISSÃO EXAMINADORA FORMADA PELOS SEGUINTES PROFESSORES:
PROF. DR. RICARDO CESAR PEREIRA LIRA
UNIVERSIDADE GAMA FILHO – UGF
(ORIENTADOR)
PROF. DR. GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA
UNIVERSIDADE GAMA FILHO – UGF
PROFª. DRA. ROSÂNGELA LUNARDELLI CAVALLAZZI
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UERJ
Rio de Janeiro, 22 de novembro de 2006.
Prof. Dr. JOSÉ RIBAS VIEIRA
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito