Universidade, licenciatura e interculturalidade: anúncio de aprendizagens na floresta

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O contexto da globalização vem provocando mudanças do ponto de vista cultural produzindo uma feição mais plural nas sociedades; mudanças que têm relação direta com os deslocamentos – físicos ou virtuais. As razões dos deslocamentos geralmente envolvem questões econômicas, políticas e culturais, dentre outras. Esses deslocamentos produzem encontros e estranhamentos entre os grupos – por expressarem linguagens, sentimentos ou olhares diferentes, ou por pertencerem a contextos étnicos, raciais, religiosos, de gênero, de orientação sexual, também diferentes. Nessa dinâmica social, o jogo de valorização/subalternização opera no âmbito das relações, daí a necessidade de elaborações emancipatórias de novos arranjos sociais e de desconstrução de hierarquias. Destacamos duas expressões correntes nesse esforço de tradução da atual realidade: o Multiculturalismo e a Interculturalidade – palavras consideradas, muitas vezes, como sinônimas, no entanto, isso pode ser um equívoco conceitual, pois o Multiculturalismo diz respeito à constatação do heterogêneo, uma justaposição de grupos étnicos, já Interculturalidade significa uma posição a favor da convivência cultural entre diferentes, uma aposta de que é possível construir relações e reciprocidades nas diferenças. É nesse terreno tenso e problematizador que o livro Universidade, licenciatura e interculturalidade: anúncio de aprendizagens na floresta está situado. Com o apoio do Programa PRODOCÊNCIA/CAPES foi possível materializar este conjunto de textos acadêmicos escritos na Amazônia cuja preocupação central é divulgar os saberes ali construídos. Rondônia, que constitue nosso espaço referência de trabalho, é um estado que apresenta elementos de diversidade expressos nas múltiplas ações de seus habitantes diaspóricos: migrantes de vários lugares do país, povos indígenas – de aldeias e de centros urbanos –, populações tradicionais – quilombolas, extrativistas, além de ribeirinhos –, enfim, um quadro que nos mobiliza a pensar as diferenças na perspectiva da formação pedagógica o intuito de elaborar possíveis contribuições.

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  • ORGANIZADORES

    JOSLIA GOMES NEVESJURACY MACHADO PACFICOJOS LUCAS PEDREIRA BUENO

    UNIVERSIDADE , LICENCIATURA E

    INTERCULTURALIDADE anncio de aprendizagens na floresta

    Rondnia2013

  • IU58 Universidade, licenciatura e interculturalidade : anncio de aprendizagens na floresta / Joslia Gomes Neves, Juracy Machado Pacfico, Jos Lucas Pedreira Bueno, organizadores. Rondnia : [S.n.], 2013.

    286p. Inclui referncias ISBN: 978-85-60946-88-4

    1. Educao. 2. Abordagem interdisciplinar do conhecimento na educao. 3. Currculos Estudos interculturais. 4. Prtica de ensino. 5. ndios Educao. 6. Socializao. 7. Relaes culturais. I. Neves, Joslia Gomes. II. Pacfico, Juracy Machado. III. Bueno, Jos Lucas Pedreira.

    CDU: 37

    Catalogao na publicao por: Onlia Silva Guimares CRB-14/071

    O presente trabalho foi realizado com o apoio da CAPES, entidade do Governo Brasileiro voltada para a formao de recursos humanos.

    ISBN: 978-85-60946-88-4

    1 Edio pela Editora Pandion

    Impresso no Brasil

    2013

    2013, Joslia Gomes NevesJuracy Machado Pacfico

    Jos Lucas Pedreira Bueno

    Organizadores

    Direitos autorais reservados. No pode ser comercializado ou impresso

    sem a devida autorizao dos autores.(Lei n 5.988/73)

  • SUMRIO

    APRESENTAO .......................................................... 7

    POVOS INDGENAS, SUSTENTABILIDADE E EDUCAO ESCOLAR: desafios das polticas de desenvolvimento na Amaznia Cristovo Teixeira Abrantes ........................................ 13

    FAZ SENTIDO PENSAR UM CURRCULO INTERCULTURAL? Genivaldo Frois Scaramuzza ....................................... 41

    AFRO-PEDAGOGIA E ESPAO ESCOLAR: entre muros, paredes e murais o desfazimento de prticas racistas atravs da leitura de imagens Paulo Srgio Dutra ...................................................... 71

    A PEDAGOGIA DA ALTERNNCIA ROMPENDO COM AS HIERARQUIAS SOCIAIS NO CAMPO E CONTRIBUINDO NA FORMAO DO PEDAGOGO E DA PEDAGOGA DA UNIR CAMPUS DE JI-PARAN Alberto Dias Valado, Andr Manoel Pereira dos Santos, Vanderleia Barbosa da Silva .......................... 95

  • FORMAO E INTERCULTURALIDADE: dilogos sobre diferenas na universidade Marli Lcia Tonatto Zibetti, Josiane Regina Monteiro da Rocha .................................................................... 141

    MATERIAL DIDTICO, INTERCULTURALIDADE E ESCOLAS INDGENAS: lies da prtica pedaggica na graduao Edineia Aparecida Isidoro, Joslia Gomes Neves ........ 165

    TRAJETRIA DAS POPULAES INDGENAS NO ENSINO SUPERIOR DE RONDNIA: o que os dilogos revelam? Rozane Alonso Alves, Maria Isabel Alonso Alves, Jonatha Daniel dos Santos .......................................... 193

    CRIANAS INDGENAS, ESCOLAS URBANAS E VIOLNCIA INSTITUCIONAL: h lugar para trocas interculturais? Juracy Machado Pacfico, Maria Ivonete Barbosa Tamboril ...................................................................... 221

    INCLUSO DIGITAL E INTERCULTURALIDADE: uma experincia junto aos professores e professoras das etnias Arara e Gavio de Rondnia Vanubia Sampaio dos Santos ..................................... 245

    A PERSPECTIVATECNOLGICA DA EDUCAO SUPERIOR INDGENA EM RONDNIA Maria Isabel Alonso Alves, Nair Ferreira Gurgel do Amaral, Jos Lucas Pedreira Bueno ......................... 269

    SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES ......................... 281

  • 7APRESENTAO

    No tenho outra maneira de superar a quotidia-neidade alienante seno atravs da minha pr-xis histrica em si mesma social e no individual. Somente na medida em que assumo totalmente minha responsabilidade no jogo desta tenso dramtica, que me fao uma presena cons-ciente no mundo. Como tal no posso aceitar ser mero expectador, mas pelo contrrio, devo buscar o meu lugar, o mais humilde, o mais m-nimo que seja no processo de transformao do mundo [...].

    Paulo Freire

    O contexto da globalizao vem provocando mu-danas do ponto de vista cultural produzindo uma feio mais plural nas sociedades; mudanas que tm relao di-reta com os deslocamentos fsicos ou virtuais. As razes dos deslocamentos geralmente envolvem questes eco-nmicas, polticas e culturais, dentre outras. Esses des-locamentos produzem encontros e estranhamentos entre os grupos por expressarem linguagens, sentimentos ou olhares diferentes, ou por pertencerem a contextos tni-cos, raciais, religiosos, de gnero, de orientao sexual,

  • 8tambm diferentes. Nessa dinmica social, o jogo de valo-rizao/subalternizao opera no mbito das relaes, da a necessidade de elaboraes emancipatrias de novos arranjos sociais e de desconstruo de hierarquias.

    Destacamos duas expresses correntes nesse es-foro de traduo da atual realidade: o Multiculturalismo e a Interculturalidade palavras consideradas, muitas vezes, como sinnimas, no entanto, isso pode ser um equvoco conceitual, pois o Multiculturalismo diz respeito constatao do heterogneo, uma justaposio de gru-pos tnicos, j Interculturalidade significa uma posio a favor da convivncia cultural entre diferentes, uma apos-ta de que possvel construir relaes e reciprocidades nas diferenas.

    nesse terreno tenso e problematizador que o li-vro Universidade, licenciatura e interculturalidade: ann-cio de aprendizagens na floresta est situado. Com o apoio do Programa PRODOCNCIA/CAPES foi possvel ma-terializar este conjunto de textos acadmicos escritos na Amaznia cuja preocupao central divulgar os saberes ali construdos. Rondnia, que constitue nosso espao re-ferncia de trabalho, um estado que apresenta elemen-tos de diversidade expressos nas mltiplas aes de seus habitantes diaspricos: migrantes de vrios lugares do pas, povos indgenas de aldeias e de centros urbanos , populaes tradicionais quilombolas, extrativistas, alm de ribeirinhos , enfim, um quadro que nos mobiliza a pensar as diferenas na perspectiva da formao peda-ggica no intuito de elaborar possveis contribuies.

  • 9A feitura deste livro representa um gesto nessa direo. Assim, em Povos Indgenas, sustentabilidade e educao escolar: desafios das polticas de desenvolvi-mento na Amaznia de Cristovo Teixeira Abrantes ob-servaremos, numa perspectiva macro, um estudo sobre a relao entre as polticas pblicas de desenvolvimento e a sustentabilidade, a partir da implementao da edu-cao escolar nas aldeias indgenas, frente s prticas geradas nas relaes de contato com a sociedade na-cional.

    Faz sentido pensar um currculo intercultural? Essa a questo que Genivaldo Frois Scaramuzza apresenta para discutir currculo na educao escolar e seus desdobramentos: ideologia, reproduo, desi-gualdade, diferena e escolarizao numa perspectiva ps-crtica.

    No texto Afro-pedagogia e espao escolar: entre muros, paredes e murais o desfazimento de prticas ra-cistas atravs da leitura de imagens, Paulo Srgio Dutra por meio do termo Afro-pedagogia problematiza suas im-plicaes no ambiente escolar a partir das experincias com atividades que refletem a temtica das relaes t-nico-raciais no cotidiano.

    A Pedagogia da Alternncia rompendo com as hie-rarquias sociais no campo e contribuindo na formao do pedagogo e da pedagoga da UNIR - Campus de Ji--Paran de Alberto Dias Valado, Andr Manoel Pereira dos Santos e Vanderleia Barbosa da Silva trata de discutir a interculturalidade a partir da educao no campo e as

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    experincias de formao possibilitadas na interlocuo entre educao escolar, trabalho e movimentos sociais do campo, evidenciadas na proposta educativa na qual, a alternncia famlia-escola, escola-famlia seu ponto forte, agregador dos princpios tericos e prticos indis-pensveis formao do jovem e da jovem do campo e de sua famlia com possveis repercusses para a licen-ciatura da Pedagogia.

    Formao e Interculturalidade: dilogos sobre di-ferenas na universidade de Marli Lcia Tonatto Zibetti e Josiane Regina Monteiro da Rocha discute a necessidade de que a formao de professores e professoras na uni-versidade tome como ponto de partida a prpria histria das pessoas que aprendem para que se percebam como diferentes e assim possam analisar e compreender a di-versidade caracterstica daqueles e daquelas com quem iro trabalhar.

    Material didtico, interculturalidade e escolas ind-genas: lies da prtica pedaggica na graduao de Edi-neia Aparecida Isidoro e Joslia Gomes Neves apresenta uma narrativa sobre experincia vivenciada no curso de Licenciatura em Educao Bsica Intercultural nos anos de 2011 e 2012 no mbito da disciplina Produo de Ma-terial Didtico I e II. Dentre outros aspectos, focaliza a importncia do poder pblico cumprir a lei asseguran-do os materiais adequados aos interesses e realidades dos povos indgenas, por sua vez articulados a projetos curriculares elaborados por suas comunidades, para uma efetiva contribuio s problemticas presentes.

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    Em Trajetria das populaes indgenas no ensino superior de Rondnia: o que os dilogos revelam? Rozane Alonso Alves, Maria Isabel Alonso Alves e Jonatha Daniel dos Santos apresentam um estudo desenvolvido no m-bito do Grupo de Pesquisas em Educao na Amaznia (GPEA), cujo objetivo foi observar a integrao dos estu-dantes indgenas do curso de graduao em Licenciatura em Educao Bsica Intercultural da Universidade Federal de Rondnia (UNIR) Campus de Ji-Paran, no sentido de perceber seu reconhecimento identitrio frente ao novo, ao diferente, que o fato de estarem na universidade.

    Crianas indgenas, escolas urbanas e violncia institucional: h lugar para trocas interculturais? Com essa pergunta, Juracy Machado Pacfico e Maria Ivonete Barbosa Tamboril abordam as diferentes feies da vio-lncia institucional com crianas indgenas em escolas urbanas, com destaque para o municpio de Porto Velho.

    Incluso digital e interculturalidade: uma experin-cia junto aos professores e professoras das etnias Arara e Gavio de Rondnia, de Vanubia Sampaio dos Santos diz respeito a uma experincia junto a docentes Arara e Gavio durante atividades do Projeto de Extenso Inclu-so Digital e Identidade Cultural na Amaznia pela UNIR Campus de Ji-Paran em 2010. O objetivo foi possibilitar a incluso digital nas aldeias atravs da formao docente indgena por meio do uso adequado das TICs dialogando e produzindo conhecimento intercultural com esses grupos.

    Maria Isabel Alonso Alves, Nair Ferreira Gurgel do Amaral e Jos Lucas Pedreira Bueno apresentam o texto

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    A perspectiva tecnolgica da educao superior indge-na em Rondnia que se refere a um estudo desenvolvi-do no mbito do Grupo de Estudos Integrados sobre a Aquisio da Linguagem (GEAL) e no Grupo de Pesquisa Multidisciplinar em Educao (EDUCA), que teve o obje-tivo de observar como as tecnologias de informao e comunicao (TICs) so abordadas no curso de gradu-ao em Licenciatura em Educao Bsica Intercultural da Universidade Federal de Rondnia (UNIR), Campus de Ji-Paran, no sentido de analisar como as disciplinas de TIC so organizadas no contexto do projeto pedaggico do curso em questo.

    Portanto, neste livro encontramos temticas en-volvendo diferentes verses da interculturalidade po-vos indgenas, educao no campo e relaes raciais , com uma maior visibilidade e nfase para os povos ind-genas considerando a experincia recente o vestibular diferenciado de 2009 que possibilitou o acesso dessas etnias graduao na UNIR.

    Esperamos que as leituras advindas deste livro contribuam para novas aprendizagens sobre as diferen-as tnicas, raciais, camponesas, de gnero, de orien-tao sexual, religiosas, dentre outras e que possa mo-bilizar prticas pedaggicas efetivamente interculturais mais comprometidas com os direitos de todos e todas, os direitos humanos.

    Joslia Gomes Neves

  • POVOS INDGENAS, SUSTENTABILIDADE E EDUCAO ESCOLAR: desafios das polticas de desenvolvimento na Amaznia1

    Cristovo Teixeira Abrantes

    1 Trabalho apresentado na disciplina Teoria do Desenvolvimento que se cons-tituiu parte do captulo da dissertao apresentada ao Programa de Mestra-do em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente PGDRA, 2006.

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    Sabe-se que as populaes indgenas ocupam mi-lenarmente o continente americano, e ao chegar a esta regio, que hoje chamamos Brasil, os portugueses en-contraram uma populao estimada em mais de seis mi-lhes de pessoas, povos etnicamente diferentes que se distribuam por todo o territrio, nas mais distintas paisa-gens (RIBEIRO, 1990). Por um equvoco de localizao, esses habitantes foram identificados pelo termo genrico como ndios e at hoje so assim conhecidos.

    Sobre a densidade demogrfica dessa populao em 1500, h uma polmica, uma vez que dificilmente mtodos quantitativos so capazes de recuperar as informaes mais precisas, uma vez que para Neves (1995), s na bacia amaznica teria mais de cinco milhes e seiscentos mil habitantes, embora demgrafos e antroplogos estejam longe de um consenso acerca da densidade populacional no sculo XV:

    [...] j que os documentos para a elabora-o dessas estimativas crnicas de viajan-tes e oficiais das coroas, relatos de missio-nrios, stios arqueolgicos do margem a estimativas bastante diferentes (NEVES, 1995, p. 174).

    Segundo Berta Ribeiro (1990), a densidade popu-lacional da Amrica indgena pode ser considerada su-

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    perior da Europa na poca da colonizao europeia, porm, a superioridade demogrfica dos povos amern-dios no evitou que fossem dominados pelos europeus. No perodo de expanses comerciais e geogrficas, os pases europeus tinham como objetivo em relao s novas terras, ampliar o processo de acumulao capita-lista e sua reproduo, o que implicava na dominao e no exerccio da fora militar para garantir a dilatao geogrfica do capital, da o confronto, a subjugao e a negao do outro em suas variadas dimenses da ex-presso humana (TODOROV, 1993; DIAMOND, 1998). As-sim, cabe salientar que, agregada a esses fatores, houve tambm no plano cultural e ideolgico, uma negao do outro em funo de uma suposta superioridade cultural, o que ocorre quando o ser humano v o mundo a partir de sua cultura (etnocentrismo), o que o leva a considerar o seu modo de vida como o mais correto e o mais natural, ocasionando conflitos.

    S depois de inmeros equvocos cometidos ao longo da histria da humanidade, muitas vezes decorren-tes da prtica etnocntrica, que passamos a compreen-der a importncia da diversidade dos sistemas vivos do planeta em funo do avano cientfico e tecnolgico e das novas teorias sobre o funcionamento da vida no pla-neta como o pensamento sistmico e a complexidade. No entanto, no mbito das culturas, apesar dos estudos relativistas, ainda prevalecem fortes evidncias do et-nocentrismo e do evolucionismo cultural, principalmen-te quando grande parte da sociedade nacional acredita

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    ainda ser a condio indgena algo transitrio e que a homogeneizao cultural ser inevitvel. Nessa perspec-tiva, contribuies recentes, inclusive nos vrios campos cientficos, apontam para a necessidade de se encontrar uma alternativa para o desenvolvimento de uma sociabi-lidade que possa incorporar as formas diferenciadas de cultura (LEV-STRAUSS, 1996).

    Compreender conceitos indgenas da natureza, ou ambiente, como fatores da manuteno de econo-mias saudveis e duradouras fundamental, mesmo sa-bendo que h um abismo entre os dois modos de vida, dos povos da floresta2 e da sociedade urbana (LEONEL, 1998).

    Os relatos histricos sobre os povos indgenas brasileiros podem apontar para indicadores de sustenta-bilidade pela forma que sempre foram lembrados pelos primeiros viajantes europeus que tiveram contato com eles, pela boa sade, beleza, pela fartura de alimentos, pelo tempo de horas trabalhadas, pela satisfao com suas moradias, liberdade e qualidade de vida. Entretan-to, o bem-estar dessas populaes no era visto como algo positivo e que merecesse ser mantido ou seguido, o interesse dos colonizadores estava no potencial econ-mico da regio e na fora que homens e mulheres repre-sentavam para o trabalho, ou seja, mera mo de obra, inclusive escrava.

    2 Extrativistas, indgenas, seringueiros e ribeirinhos conceito utilizado a partir dos anos de 1980 para designar o conjunto de grupos que convivem de forma mais har-moniosa ou adequada com a Amaznia.

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    Ainda h muito a ser pesquisado sobre a histria da mo de obra escrava dos ndios no Brasil. De acordo com Darcy Ribeiro (1995), a base econmica da regio amaznica no perodo colonial era a coleta de produtos nativos, conhecidos como drogas do serto, em que foi utilizada mo de obra escrava indgena. Segundo ele, a escravido indgena predominou em todo o primeiro s-culo do perodo colonial. S a partir do sculo XVII, a es-cravido negra veio a tender substitu-la. As afirmaes de Darcy Ribeiro corroboram as informaes de John Mon-teiro (1994), de que na segunda metade do sculo XVII e incio do sculo XVIII aconteceu um declnio vertiginoso na concentrao de mo de obra indgena (MONTEIRO, 1994, p. 210). Um dos motivos da substituio parcial da mo de obra indgena, para Silva e Grupioni (1995), diz respeito ao rentvel trfego negreiro, pois se constitua uma atividade bem mais lucrativa do que a escravizao de indgenas.

    Evidncias empricas fundamentadas em trajet-ria profissional e acadmica nos permitem afirmar que embora cinco sculos tenham se passado, grande parte da sociedade brasileira ainda acredita que as populaes indgenas representam um entrave para o desenvolvi-mento da regio amaznica, ou que a sua condio con-diz apenas a uma herana cultural, algo atrelado ao pri-mitivismo e ao passado, por conseguinte, atrasado. No raras vezes, a mdia regional e nacional noticia assassi-natos de lideranas indgenas, denncias de desnutrio das crianas nas aldeias, biopirataria, invases de terras

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    indgenas por grandes grupos empresariais, a exemplo da explorao ilegal da madeira e extrao de diamantes na Terra Indgena Roosevelt, no estado de Rondnia; e as tmidas manifestaes de apoio s populaes indgenas por parte de autoridades pblicas.

    Corroboram com essas assertivas o modo como o Estado brasileiro e a opinio pblica se posicionam frente aos grandes empreendimentos, quando da execuo dos projetos e programas em reas que envolvem terras ind-genas. Por meio das instncias governamentais executi-vas, a sociedade nacional de um modo geral no valoriza as observaes e posicionamento dos povos indgenas. Para Carneiro da Cunha (1992), o juzo de valores pode ser invertido desde que se saiba avaliar os benefcios possveis:

    Os ndios tm preservado, nas grandes reas da Amaznia que ocupam, uma es-pantosa riqueza em biodiversidade e um saber acumulado cujo valor de mercado ainda no reconhecido. A valorizao ade-quada desses recursos diversidade o de sua diversidade cultural e natural (CUNHA, 1992, p. 142).

    Dessa forma, no imaginrio coletivo dos civiliza-dos parece haver uma pergunta, um questionamento sobre a identidade da populao indgena: ser que os ndios pretendem continuar a ser ndios para o resto da vida?. O tratamento da sociedade nacional para com as populaes indgenas sugere a ideia de uma representa-o do passado que continua a nos envergonhar frente aos pases desenvolvidos, e as pessoas ficam indignadas

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    quando relacionam a Regio Amaznica com os povos indgenas. Tambm faz parte desse pensamento a viso da floresta e sua representao do atraso, o que dever ser dominado e modificado, ou seja, alterado pelo ser humano (THOMAS, 1988).

    Para Carneiro da Cunha (1992), enquanto nas d-cadas de 1950 e 1960 previa-se o desaparecimento dos povos indgenas, atualmente se constata uma recupera-o demogrfica e um ressurgimento de etnias que se ocultavam diante do preconceito. Assim mesmo, ainda so lamentam os que os consideram como empecilhos ao desenvolvimento poucos ndios para muita terra (OLIVEIRA, 1995).

    Para fazer a anlise do desenvolvimento de um grupo indgena importante levar em considerao o nvel de contato daquele grupo tnico uma vez que h questes que, historicamente, tm sido desconsideradas nos projetos de desenvolvimento e que devem fazer par-te dos trabalhos mais recentes quando da implementa-o das polticas pblicas. Segundo Leonel (1998, p. 10), para assegurar a sustentabilidade do planeta e da vida humana, inclusive quando o tema um de seus desafios contemporneos, como no caso da Amaznia, a coope-rao das intercincias fundamental formulao ne-cessria de referncias para o desenvolvimento susten-tvel. Seria muito irnico e injusto tratar a Amaznia, um ponto privilegiado de concentrao da biodiversidade do planeta para expanso da fronteira econmica, com con-sequncias sobre as populaes tradicionais, sem se dar

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    ao trabalho de pensar sobre novas formas de desenvol-vimento, desconsiderando esses povos tradicionais e os ecossistemas existentes.

    No podemos ter como modelo de desenvolvi-mento na Regio Amaznica o processo que ocorreu em estados como Rondnia, Mato Grosso e Par, onde hou-ve inmeras invases de terras e conflitos com os povos indgenas, com a organizao de muitas expedies ar-madas que foram responsveis pelo extermnio de co-munidades inteiras no interior da floresta. pertinente at interrogar se h lugar na contemporaneidade para as sociedades indgenas de economia de subsistncia, con-siderando o crescente processo de expanso do capital, em especfico na Amaznia.

    No atual contexto, a partir da delimitao de seus territrios, os povos indgenas tero que pensar sobre suas prticas e seus modos de se relacionar com o es-pao fsico que ocupam. Mas por se tratar de uma rea significativamente frgil em vrios aspectos, torna-se ne-cessrio pensar em alternativas sustentveis de carter intercultural que conservem os aspectos mais importan-tes relacionados cultura, associados com elementos dos no ndios, principalmente, os relativos economia.

    A partir do contato com a sociedade nacional, as populaes indgenas adquiriram prticas e criaram ne-cessidades diferentes das dos seus antepassados, uma delas diz respeito educao escolar que a princpio foi imposta, primeiro pelos missionrios, e mais tarde, pelo Estado brasileiro. Atualmente, de forma sistemtica e

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    equivalente, o direito sade e educao tem lembrado as reivindicaes dos povos indgenas, durante os anos 70 e 80 do sculo XX, quando defendiam o direito terra.

    Considerando os aspectos socioeconmicos, cultu-rais e ambientais, quais as contribuies que a educao escolar tem dado aos povos indgenas? E se a oferta da educao escolar formal para os povos indgenas sempre esteve atrelada a uma proposta pedaggica integracio-nista que, historicamente, se ps a servio dos interesses nacionais, como as populaes indgenas atualmente se utilizaro desse espao, que foi impreterivelmente de do-minao, diante do desejo de revitalizar valores das suas culturas? Uma pesquisa realizada por Tassinari (2001) com o povo Tucano do Vaups na Colmbia, a partir de depoimentos e anlises feitas por alguns professores in-dgenas, apresenta como principais dificuldades e impas-ses dos projetos de etno-educao e de revitalizao cultural, que nos colocam diante de uma situao similar que vivemos atualmente no Brasil:

    As dificuldades de operacionalizar em ter-mos governamentais e administrativos os direitos indgenas garantidos legalmente por sade e educao diferenciada (TASSI-NARI, 2001, p. 61).

    Nesse sentido, pertinente saber se o nvel de escolaridade entre as populaes indgenas contribuir como indicador de desenvolvimento e sustentabilidade nas populaes de economia de subsistncia, em pro-cesso de interao com a economia de mercado. im-portante tambm saber como construir indicadores de

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    sustentabilidade para os povos indgenas, com prticas culturalmente coletivas de produo, no contexto das inter-relaes com a sociedade nacional moderna. Mas ainda no inteno neste trabalho responder a essa questo, mesmo que ela seja pr-requisito para uma dis-cusso mais detalhada e ampliada sobre etnoeconomia.

    No Brasil, assim como em outros pases das Am-ricas, as minorias tnicas viveram importantes processos de luta poltica que levaram os Estados Nacionais ao reco-nhecimento de direitos relacionados ao respeito e preser-vao de suas culturas. Como consequncia desse fato, nos ltimos anos consolidou-se uma mudana profunda no campo da educao escolar. Essa mudana respal-dada por uma legislao que permite aos indgenas de-senvolverem propostas educacionais que valorizem suas lnguas, suas prticas culturais e seus lugares de per-tencimento tnico, ao mesmo tempo que lhes abrem as portas para novas formas de insero na sociedade no indgena com nfase em uma cidadania que respeite e integre as diferenas, o outro. nessa direo que vem sendo discutida a proposta da educao escolar indgena no pas, proposta pedaggica que se apresenta como um espao poltico e de debate de questes relevantes sobre o destino dessas comunidades.

    Para Leonel (1998), o entendimento sobre as re-laes entre sociedades e natureza na Amaznia parece mais ser tributria da complementaridade multidiscipli-nar, sobretudo, uma grande contribuio das cincias hu-manas, de suas posies crticas e de seu saber acumula-

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    do, devido ao dilogo entre etnologia, histria, geografia e sociologia e da retomada das questes postas pela eco-nomia poltica. Mas, nenhuma disciplina tem precedn-cia intelectual numa tentativa to importante quanto a de assegurar a sustentabilidade argumentam os promo-tores da Ecological Economics (LEONEL, 1998, p.10-11).

    ECONOMIA DE SUBSISTNCIA, POVOS INDGENAS E EDUCAO ESCOLAR

    Popularmente, h uma interpretao que conside-ra a economia de subsistncia ou primitiva como aquela que gera produtos apenas para a satisfao imediata das necessidades, sem produzir excedentes, sobras para estoque. Assim, no modelo de subsistncia est implci-ta, supostamente, a ideia de uma economia da escassez e do trabalho constante para a obteno de alimentos.

    Esse tipo de juzo de valor, na concepo de Clas-tres (1982), oculta trs ideias: a de que as sociedades indgenas so preguiosas por natureza; a de que so incapazes de produzirem excedentes; e de que vivem em situao de muita pobreza e falta de alimentao. E desdobrando essas ideias, por serem preguiosos, so incapazes de produzirem uma tecnologia mais eficiente, e, por terem essa incapacidade, no conseguem viver na abundncia, porm pobres e mal alimentados. Da mes-ma forma relacionam-se com o saber sociocultural e com a educao desses povos.

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    As referncias a respeito da economia indgena tm a tendncia de denomin-la de economia de subsis-tncia, imagem antiga, mas sempre eficaz, da econo-mia dos selvagens (CLASTRES, 1982, p. 128). A respeito do assunto, Clastres acrescenta que numerosos autores trataram a economia primitiva com uma incrvel superfi-cialidade, quando no se abandonaram simplesmente a uma verdadeira deformao dos fatos etnogrficos. Esse autor diz ainda que:

    [...] no somente a economia primitiva no uma economia da misria, mas que ela, ao contrrio, permite determinar a socieda-de primitiva como a primeira sociedade de abundncia (op. cit.).

    Entretanto, o desenvolvimento de indicadores de sustentabilidade torna-se aplicvel do ponto de vista so-cial, econmico e ambiental nas sociedades de economia de subsistncia, uma vez que em perodos curtos, de fra-ca densidade, a mquina de produo primitiva garan-te a satisfao das necessidades materiais das pessoas, isso porque ela funciona aqum de suas possibilidades objetivas (CLASTRES, 1982, p. 130).

    Se tomarmos como base o ponto de vista sistmi-co do movimento ecolgico para compreender o conceito de sustentabilidade, de que uma sociedade sustentvel aquela que satisfaz suas necessidades sem diminuir as perspectivas das geraes futuras, esse perfeitamente aplicvel s economias de subsistncia dos povos indge-nas (CAPRA, 1999; BRUDTLAND, 1983).

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    Segundo Bellen (2005), todo o supersistema da atual tecnosfera criticamente dependente da base de recursos naturais da mesma maneira que a mais primiti-va civilizao da Idade da Pedra. A respeito disso, acres-centa Clastres:

    [...] entretanto, devemos considerar que os povos primitivos no so to loucos quanto os economistas formalistas que, incapazes de perceber no ser humano primitivo a psi-cologia de um dono de empresa industrial ou comercial, preocupado em aumentar sem parar sua produo a fim de multiplicar seus lucros, deduzem deste fato, tolos que so, a inferioridade intrnseca da economia pri-mitiva, como se a filosofia do capitalismo contemporneo fosse o ideal e a medida de todas as coisas (CLASTRES, 1982, p. 131).

    Alm disso, sabe-se que para sobreviver em um ambiente, qualquer grupo humano deve dominar o meio geogrfico que ocupa. E as sociedades indgenas so especialistas nesse conhecimento e no manejo do meio ambiente. De acordo com alguns autores, a relao que as sociedades indgenas mantm com o meio ambiente to complexa que s agora os no ndios comearam a entend-la. Do mesmo modo, para sobreviver no mundo moderno, urbanizado, tecnolgico e capitalizado, inevi-tavelmente, necessrio compreender a lgica e os pro-blemas do capital, bem como as relaes geradas nesse ambiente que orientam as vidas.

    Da mesma forma, pode-se dizer sobre o domnio de tecnologias, pois no se pode falar de culturas ou tec-nologias inferiores ou superiores, mas que s se pode

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    medir um equipamento tecnolgico pela sua capacidade de satisfazer, num determinado meio, as necessidades da sociedade (SILVA, 1995, p. 342). Sob esse prisma, a tecnologia indgena extremamente eficiente, uma vez que garante a existncia dessas sociedades h milha-res de anos com o mesmo padro de qualidade de vida, dentro de um padro cultural de estabilidade ora per-turbado pelas disputas intertnicas, mas sempre sem o auxlio da tecnologia dos europeus que esto aqui h apenas cinco sculos.

    perfeitamente compreensvel a supervaloriza-o e o fascnio das pessoas pelos tempos modernos, principalmente quando utilizam as inmeras facilidades, quando se desfruta de todo o conforto que a tecnologia pode propiciar. Tambm inegvel que estamos em um mundo dominado pela tecnologia, na Era da Informtica, mas segundo o documento intitulado Agenda 21 brasi-leira - Bases para Discusso (NOVAES; RIBAS; NOVAES, 2000), a governabilidade dos pases est em risco, uma vez que a privatizao e a concentrao de tecnologias tm ultrapassado os limites previstos. As corporaes que definem a agenda de pesquisas e controlam seus resultados, portanto, os pases pobres correm o risco de ficar margem desse regime que controla o conheci-mento no mundo. As novas tecnologias tm seu preo estabelecido para quem pode pagar por elas. Direitos de propriedade mais restritos elevam o preo de transfern-cia das tecnologias e impedem o acesso dos pases mais pobres aos setores dinmicos do conhecimento.

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    Diante desse contexto, mais seguro conside-rar os conhecimentos construdos milenarmente pe-los povos indgenas, os quais j foram testados pelos seus antepassados e fazem parte de seu modo de vida. Se abandonarem os conhecimentos inerentes cultura de seu grupo tnico correm o risco de ficar margem da sociedade nacional e muito mais em-pobrecidos do que atualmente, uma vez que econo-micamente buscam a autossuficincia do grupo por meio de outros mecanismos que muitas vezes no so compreendidos sem um estudo mais dedicado.

    Toda comunidade primitiva aspira au-tonomia completa, do ponto de vista de sua produo de consumo. Aspira a excluir toda relao de dependncia com os grupos vizinhos. Exprimindo o fato em uma frmula condensada: o ideal autrquico da sociedade primitiva. Produz-se um mnimo suficiente para satisfazer a todas as necessidades, mas organiza-se para produzir a totalida-de deste mnimo (CLASTRES, 1982, p. 132).

    Parece absurdo o discurso de que para desen-volver no importa o desastre ecolgico, e se no temos tecnologias menos degradantes somos obri-gados a usar as de que dispomos. Por isso impor-tante saber se existe compatibilidade entre desen-volvimento socioeconmico, preservao ambiental e qualidade de vida para as populaes indgenas.

    Segundo Batista (2001), os municpios de maior desenvolvimento no estado de Rondnia foram os que

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    mais desmataram causando a degradao do meio am-biente, mas o autor acrescentou tambm que o referido modelo insustentvel e em longo prazo estar fada-do ao fracasso. A atualidade da degradao ambiental refere-se antes de tudo a um processo social, e deve ser compreendido como uma questo socioambiental.

    Ao longo da histria de relacionamento dos po-vos indgenas com representantes do poder colonial e, posteriormente, com representantes do Estado--Nao, a escola se imps por meio de diferentes mo-delos e formas, cumprindo objetivos e funes muito diversas. Como em um movimento pendular, pode-se dizer que a escola se moveu num longo percurso, do passado aos dias de hoje, de algo que foi imposto aos ndios a uma demanda, que atualmente por eles reivindicada. Utilizada para aniquilar culturalmente esses povos, a escola hoje tem sido vista como um instrumento que pode lhes trazer de volta o senti-mento de pertencimento tnico, resgatando valores, prticas e histrias esmaecidas pelo tempo e pela imposio de outros padres socioculturais.

    As escolas indgenas podem se tornar espao privilegiado para valorizar a memria e os costumes da comunidade, em prol do afloramento da identi-dade e do fortalecimento da autoestima. Em lugar da fragmentao do conhecimento seria importan-te ampliar as possibilidades de questionamentos e interpretao, assim como o respeito diversidade cultural, tradies e diferenas.

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    SOCIEDADE NACIONAL E POVOS INDGENAS CONFRONTO E MUDANAS UMA QUESTO SOBRE A SUSTENTABILIDADE

    Grande parte da populao indgena da Amaznia sofreu diretamente as consequncias dos projetos de-senvolvimentistas implementados pelo governo brasilei-ro durante o sculo passado, principalmente pela poltica de ocupao, expanso e colonizao da regio, viabili-zada pela malha viria brasileira a partir da construo das grandes rodovias federais de interligao das regi-es brasileiras como a Belm-Braslia, a Transamaznica, a BR-364 e outras (DAVIS, 1978; OTT, 2002).

    So nas relaes intertnicas estabelecidas pelo contato entre os povos indgenas e os no indgenas que se constroem as novas configuraes culturais. Tambm nesse momento que se instituem as formas comerciais distintas culturalmente entre as duas sociedades, que nem sempre so positivas do ponto de vista sociocultu-ral, mas pela sua complexidade devem ser observadas e estudadas com maior dedicao metodolgica e cientfi-ca, uma vez que podem contribuir para uma compreen-so mais ampliada do ambiente e de como se relacionar com ele de forma mais criativa e eficaz. Mauro Leonel (1998) chama ateno para o assunto:

    O dilogo comparativo pode ser ampliado e datado, ir alm do modo de ser do coloniza-dor e o modo de ser tradicional dos povos tribais de floresta, tomados abstratamente. Pode levar em conta como se configuram na atualidade, em confronto e mudana.

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    Porque h sobreviventes testemunhando estes modos de ser diferenciados e vivendo mudanas, o que basta para mostrar que as relaes destas sociedades entre si consti-tuem um desafio contemporneo (LEONEL, 1998, p. 19).

    Essas questes pouco so observadas pelas insti-tuies quando da implementao de programas e pro-jetos com as comunidades indgenas. Muitas pesquisas realizadas na dcada de 1970, junto s populaes da Regio Sul constataram que os povos haviam sido sub-metidos dominao e dependncia aos sistemas de produo e consumo da sociedade nacional, principal-mente por meio dos servios prestados pelos rgos go-vernamentais, e a escola, historicamente, reforava es-ses valores.

    Os padres culturais deveriam ser identificados para serem considerados quando da implementao des-ses programas, projetos ou trabalhos institucionais do governo, pois os padres, inclusive de uso dos recursos naturais, modificam-se tambm para as populaes ind-genas, mas moda do pensamento ocidental industrial.

    Inevitavelmente, os povos indgenas vo tomando de emprstimo novas referncias simblicas, inclusive a do dinheiro e do consumo que contrapem s formas cul-turais de se relacionar com o ambiente e com o grupo, des-toando do pensamento e dos interesses da coletividade.

    Segundo Leonel, as sociedades indgenas resisti-ram e algumas ainda resistem s modificaes. Prote-gem e preservam seu modo de ser mantendo um nvel de vida sofisticado, orientado pela renovao dos recursos

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    naturais. As regras de casamento permitem o equilbrio demogrfico, bem como, as guerras, o aleitamento pro-longado, a abstinncia sexual, o infanticdio. No caso dos povos indgenas da floresta, quando uma aglomerao torna-se insustentvel, ou competitiva, trazendo confli-tos, criam-se novas aldeias localizadas por critrios eco-lgicos, beira de rio, caa abundante e solos para roa (LEONEL, 1998, p. 221).

    A compreenso do desenvolvimento sustentvel para populaes indgenas na Amaznia e para que se possa desvendar o que acontece nas relaes estabe-lecidas pelo pensamento organizado pela economia de subsistncia frente s relaes modernas estabelecidas pelo capital, devero passar pelo entendimento do teci-do das relaes internas de sociabilidade, que fundam a diferena e orientam um modo de ser, que no se limita fragmentao de alguns aspectos.

    De acordo com Batista (2001, p. 106), as terras indgenas no so consideradas unidades de conserva-o e seu objetivo no a proteo ou preservao da biodiversidade e sim para atender, prioritariamente, s necessidades das comunidades indgenas, portanto, re-as protegidas. E como as atividades desenvolvidas pe-los povos indgenas, de um modo geral, so compatveis com a conservao ambiental, contribuiro com o equil-brio do ambiente e, consequentemente, com a manuten-o dos ecossistemas.

    A sustentabilidade, de certo modo, est embutida nos sistemas indgenas de vida tradicional das popula-

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    es da Amaznia. Ela se refere evidncia histrica, que demonstra a produtividade sustentada de sistemas indgenas, em alguns casos, por milhares de anos na mesma terra. Da mesma forma, a educao indgena e os processos prprios de ensino e aprendizagem dos povos indgenas se mostraram extremamente eficazes, uma vez que foram capazes de manter elementos e es-truturas socioculturais do grupo por milhares de anos ga-rantindo a sobrevivncia fsica e cultural desses povos.

    Entretanto, os elementos que se mostraram efi-cientes por milhares de anos, frente modernidade se mostram frgeis e em crise, devido a fenmenos gerados a partir das relaes de ordens diversas, principalmente, as comerciais estabelecidas pelo contato dessas popula-es com a sociedade moderna.

    Nesse sentido, o tempo parece maduro para o de-senvolvimento de uma etnoeconomia que enxergue de que maneira povos indgenas conceituam as diversas re-laes econmicas que tm construdo, caracterizado e mantido suas sociedades; uma disciplina, ou campo de trabalho, que examine a ideia de progresso entre povos de economias culturalmente arcaicas, que considere as noes de riqueza, justia e equidade, que interprete as mltiplas manifestaes de mercados, comrcio, ddiva e troca, que tente compreender a maneira pela qual inte-resses individuais se combinam para erguer um sistema social durvel e um processo econmico sustentvel.

    Diante do acelerado modo como as pessoas tm se relacionado e compreendido os ecossistemas, e o

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    meio ambiente tem ocupado um segundo plano, torna-se urgente a tomada de decises no campo do desenvol-vimento socioeconmico dos pases, principalmente do ponto de vista operacional e de resultados. Reunir esfor-os acadmicos para conhecimento e discusso das te-orias sistmicas tem sido uma alternativa, que, por mais significativa que seja, ainda pouco contribuiu para conter a degradao e os impactos sobre o meio ambiente.

    Ao longo dos anos de 1990, de acordo com Lima e Pozzobon (2005), a sociedade ocidental consolidou um novo referencial cientfico sobre a relao entre as popula-es humanas e o meio ambiente. Formado por conceitos oriundos da ecologia e da teoria biolgica da evoluo, e tambm influenciado pelas propostas do movimento am-bientalista, esse referencial elegeu o conceito de susten-tabilidade ecolgica como o indicador mais importante de suas anlises. Nessa perspectiva, Capra (1999) aponta para um projeto ecolgico, que possa elevar ao mximo a sustentabilidade da teia da vida, gerando um ambiente econmico, social e cultural que apoia a vida, sem a de-gradao, tanto no sentido social como ecolgico.

    Por sustentabilidade ecolgica entende-se a capa-cidade de uma dada populao de ocupar uma determi-nada rea e explorar seus recursos naturais sem amea-ar, ao longo do tempo, a integridade ecolgica do meio ambiente (LIMA; POZZOBON, 2005, p. 45).

    O ambiente exige atitudes consistentes e posies mais claras sobre o tema. Entretanto, a relao da socie-dade moderna com as formas de produo e as tecno-

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    logias aplicadas agricultura, indstria e pecuria tm se mostrado, cada vez mais, significativas para a gerao de riqueza e concentrao de capital, negando essa preocupao com a natureza dos sistemas vivos. Assim, o elemento econmico pode estar relacionado s questes tradicionais, como gerao de riqueza ou pros-peridade fsica.

    CONSIDERAES FINAIS

    Apesar das avaliaes apontarem para a degrada-o ambiental, os investidores nacionais e internacionais, detentores de capital, no tm expressado confiana no modelo sustentvel de desenvolvimento, pelo contrrio, esses investidores defendem que tal modelo represen-ta uma armadilha produzida por pases desenvolvidos que no querem competio econmica com os pases considerados em desenvolvimento. Muito prximo disso, grande quantidade de pessoas pensam sobre a oferta da educao escolar indgena diferenciada, bi/multilngue e intercultural defendida para os povos indgenas.

    Nesse contexto do desenvolvimento sustentvel devem ser avaliados os ensinamentos que uma socieda-de ou cultura pode oferecer outra, mas para que isso acontea ser necessrio compreender as diferenas culturais para que ocorra o respeito mtuo a fim de que no haja dominao de uma cultura majoritria.

    Nesse sentido, o investimento em alternativas para o desenvolvimento em terras indgenas de alta re-

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    levncia, principalmente, do ponto de vista sociocultural e ambiental. Quanto ao econmico h de se investir em alternativas rentveis, mas que se aproxime das ativida-des desenvolvidas culturalmente pelos grupos tnicos. Isso no significa isol-los da sociedade nacional e sim estabelecer relaes de equidade compatveis com o n-vel de contato de cada povo.

    Na contramo, o ensino do modelo ocidental impe um fator social que seria a fragmentao, sendo que nas sociedades indgenas o saber socializado e apreendido por todos. Nesse sentido, a escola indgena, por meio do currculo especfico, pode se transformar em um organis-mo em que professores e alunos discutiro a gesto dos seus projetos de futuro com vistas ao desenvolvimento socioeconmico e preservao do meio, de forma a:

    contribuir para a conservao da biodiver-sidade, para a autorrealizao individual e comunitria e para a autogesto poltica e econmica, mediante processos educativos que promovam a melhoria das condies ambientais e da qualidade de vida (LEO-NARDI, 1997).

    No livro Meio ambiente, desenvolvimento susten-tvel e polticas pblicas, organizado por Clvis Caval-canti, Leonardi (1997) trata das diversas concepes de educao ambiental e desenvolvimento sustentvel que se relacionam s diferentes formas de faz-los. Essas di-ferentes formas so classificadas por ela em quatro gran-des conjuntos, com destaque para os temas ou objetivos da educao ambiental que agregam elementos sobre o desenvolvimento sustentvel. So eles:

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    biolgicos: referem-se a proteger, conser-var e preservar espcies, o ecossistema e o planeta como um todo; espirituais/culturais: dedicam-se a promover o autoconhecimen-to e o conhecimento do universo, segundo uma nova tica; polticos: buscam desen-volver a democracia, a cidadania, partici-pao popular, dilogo e autogesto; eco-nmicos: defendem a gerao de empregos em atividades ambientais no alienantes e no exploradoras e tambm a autogesto e participao de grupos e indivduos nas de-cises polticas (LEONARDI, 1997, p. 396) (Grifos dos autores).

    Nesse caso, h muito que se pensar quanto aos ob-jetivos da educao na perspectiva da sustentabilidade, uma vez que os povos indgenas tiveram a limitao do es-pao geogrfico e muitas de suas prticas tradicionais de relao com o meio devero ser repensadas, assim como os hbitos adquiridos a partir do contato com a sociedade, que se mostram insustentveis por apresentarem impac-tos negativos, de degradao, no meio ambiente.

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    FAZ SENTIDO PENSAR UM CURRCULO INTERCULTURAL?

    Genivaldo Frois Scaramuzza

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    CONSIDERAES INICIAIS

    Os estudos referentes constituio do currculo tem sido, ao longo da histria, um campo terico e con-ceitual de extrema importncia para a educao. Silva (2005, p. 14), em sua obra Documentos de Identidade: uma introduo s teorias do currculo, apontou que:

    [...] mais importante e mais interessante do que a busca da definio ltima de cur-rculo, seja a de saber quais questes uma teoria do currculo ou um discurso curricular busca responder.

    Para o autor, os estudos curriculares tm como cen-tralidade saber quais so os conhecimentos que devem ser ensinados, assim, a questo central para qualquer te-oria do currculo, seria perguntar: O que ensinar? Como ensinar? A favor de quem ensinar? Para quem ensinar? Por que ensinar? Nesse sentido, o autor esclarece que:

    O currculo sempre o resultado de uma seleo: de um universo mais amplo de co-nhecimento e saberes, seleciona-se aque-la parte que vai constituir precisamente o currculo. As teorias do currculo, tendo de-cidido quais conhecimentos devem ser se-lecionados, buscam justificar porque esses conhecimentos e no aqueles devem ser selecionados (SILVA, 2005, p. 15).

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    Mediante esses apontamentos, as teorias curricu-lares buscam responder expectativa de determinado grupo a respeito dos saberes a serem implementados no contexto da educao escolar, posicionando-se assim, em trs grandes grupos tericos, quais sejam, teorias tradicionais do currculo, teorias crticas e teorias ps--crticas (SILVA, 2005).

    Neste estudo, buscamos recorrer reviso de al-gumas discusses acerca dos saberes curriculares, ten-do como elemento, problematizar no apenas as ideias tericas de currculo, mas apontar a emergncia de um pensamento multi/intercultural curricular. Tal opo pos-sibilita questionar a constituio dos saberes em educa-o no presente, principalmente aqueles que objetivam escolarizar minorias tnicas, tais como os povos indge-nas. Considerando o exposto, perguntamos: Quais so os elementos que constituem as teorias curriculares? Por que pensar em um currculo com feies interculturais?

    Mediante esses questionamentos, centraliza-se a reflexo, tentando abordar elementos que privilegiem a compreenso da necessidade de pensar saberes inter-culturais nas prticas de escolarizao.

    O CURRCULO ESCOLAR: algumas concepes

    As prerrogativas inerentes aos estudos curricula-res foram sendo viabilizadas mediante a constituio de pressupostos histricos, muitas vezes tensos, que poten-

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    cializaram a construo de sujeitos, que igualmente se fi-zeram existir a partir dessas tensas relaes. Nesse sen-tido, ao analisar a constituio dos estudos curriculares, observa-se pouca literatura que trata de sua constituio a partir das noes de interculturalidade.

    Observa-se ainda que os principais conceitos uti-lizados para interpretar nossa escola foram produzidos em lugares cujas realidades so muitas vezes distancia-das das nossas, e o transplante desses conceitos para compreender as peculiaridades de nossos dinmicos pro-cessos educativos, dadas as dimenses socioculturais que temos, no so totalmente aplicveis e suficientes. Nesse sentido, tentando compreender a escola e os sa-beres que compem o currculo, pertinente percorrer uma breve reflexo histrica acerca de seu funcionamen-to. Muitos desses conceitos e discusses se traduzem em ausncias e presenas conceituais em nossas escolas, o que nos lembra que ainda estamos em rduo caminho para (des)construirmos modelos e conceitos que poten-cializem a imerso de discursos interculturalmente cons-trudos acerca do currculo.

    Tais observaes so ainda mais distanciadas, ou de certa forma fragilizadas, quando os estudos curricula-res so remetidos para a constituio da educao esco-lar indgena. Essas constataes se do mediante a com-preenso de que o longo processo de descaso, traduzido muitas vezes em ausncias, tanto de polticas quanto de estudos capazes de efetivamente potencializar a educa-o escolar indgena sob a gide do interculturalismo,

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    produziram enganos, muitas vezes conduzidos por dis-cursos elaborados de que aos indgenas convinha uma educao menor resultado de noes estereotipadas e fragmentadas da realidade indgena.

    Diante disso, percebe-se a necessidade de explo-rar/retomar os principais conceitos estabelecidos sobre a produo curricular na histria recente e como, nesse con-texto, apesar da aparente ausncia, foram se construindo as discusses acerca do interculturalismo e do currculo intercultural, o grande desafio da educao no sculo XXI.

    Pressupe-se, nesta anlise, as contribuies e caracterizaes das tendncias crticas do currculo pelo vis estabelecido por Silva (2005). A partir da dcada de 60 do sculo XX, foram grandes as preocupaes que envolviam a escola, muitas vezes inquietaes que eram traduzidas em importantes questionamentos curricula-res. A maior parte dos estudos efetivados sobre o curr-culo na segunda metade do sculo XX buscava compre-ender a escola como importante mecanismo do sistema capitalista, sobretudo, como organismo de dominao. Nessa perspectiva, imperam anlises ps-marxistas dos saberes curriculares e das conjunturas que possibilita-vam a existncia escolar. mediante essas conjunturas, que a suposta neutralidade da escola vai ser contestada.

    Pacheco (2001, p. 50-51) argumenta que:

    Inscrita na teoria marxista, a teoria crtica por princpio um espao de contestao, uma outra forma de olhar a realidade e um compromisso poltico na medida em que a neutralidade existe somente nas explica-es tcnicas.

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    O autor em questo argumenta que mediante a constatao das instabilidades/intencionalidades da pro-duo do existente, as prticas pedaggicas no pode-riam ser compreendidas fora das relaes sociais em que eram produzidas, sendo assim, os educadores cr-ticos deveriam, necessariamente, identificar, discutir e propor alternativas para as injustias sociais, traduzidas em grande parte em prticas de escolarizao. Assim, continua o autor:

    Precisamos de uma ao poltica para que o educador crtico no fique limitado ao discurso, linguagem da soluo terica e falta de um compromisso que lhe exige a luta contra o que so as desigualdades construdas pelo exerccio das relaes de poder (Idem, p. 53).

    No mbito das discusses crticas do currculo emergiram questes importantes para a compreenso do espao escolar, sobretudo pelo espectro da repro-duo, dominao e explorao. As anlises em torno do currculo, que eram efetivadas, inicialmente, por intermdio das teorias crticas, possibilitaram compre-ender os saberes escolares sob os aspectos da produ-o social, cultural e poltica, no intuito de instaurar processos profundos de dominao. Mediante essas consideraes, e postulando a existncia de contradi-es produzidas no discurso escolar, Pacheco (2001) argumenta que existe a necessidade de construo de novas posturas frente produo curricular, levando em conta o contexto micro, e no global, como local de produo poltica, com a estruturao de teorias que

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    permitam compreender a complexa relao entre po-der e conhecimento.

    A partir dessas prerrogativas e da possibilidade de interpretar o novo sujeito emergido dos profundos conflitos na segunda metade do sculo XX, a teoria crti-ca props suas bases de anlises, no s no mbito das teorias educacionais, como tambm no julgamento dos novos sujeitos produzidos. Autores como Nobre (2008, p. 11-12) tm argumentado que a teoria crtica apresen-ta o existente do ponto de vista das oportunidades de emancipao relativamente dominao vigente. A ta-refa primeira da teoria crtica , portanto, apresentar as coisas como so sob a forma de tendncias presentes no desenvolvimento histrico.

    Para o autor, as discusses referentes a um novo posicionamento na forma de proceder s anlises dentro das cincias humanas, conhecida como teoria crtica, teria sua origem em textos e discusses de Max Horkheimer, que aps a segunda guerra mundial pensou em uma nova forma de encarar a existncia humana, principalmente sob o aspecto do materialismo interdisciplinar que congre-gava pesquisadores de diferentes especialidades traba-lhando em regime interdisciplinar e tendo como referncia comum a tradio marxista (Idem, p. 15).

    Sob a gide das tradies marxistas, possvel ve-rificar pelo menos dois grandes grupos de discusses nas teorias curriculares, que so: o Idealismo Marxista que evidenciava a substituio e consequente deslocamento do trabalho enquanto categoria fundamental do ser so-

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    cial, por outras formas categricas como a linguagem e os valores culturais; e o marxismo estruturalista, compos-to pela marcante presena de tericos como Althusser, que empreendeu um retorno s concepes ontolgicas materialista-mecanicistas do marxismo. Um dos princi-pais conceitos utilizados no mbito da corrente crtica do currculo era a prpria noo de ideologia como sistema estruturante, potencialmente utilizado para mascarar os reais interesses da escola.

    A histria da ideologia marca pontos contradit-rios dentro do pensamento filosfico, porm o que inte-ressa compreender a estrutura de anlise da ideologia, j que em todo caso, a partir dessas contribuies que grande parte das reflexes acerca da escola e dos sabe-res escolares foram sendo pensados no mbito das an-lises crticas do currculo.

    Autores como Chau (1980) tm argumentado que para entender as condies de produo da histria, bem como, a fora avassaladora da ideologia, preciso visitar o legado de Marx, que identifica no trabalho o motor da histria. Nessa concepo, a autora evidencia que o tra-balho pode ser identificado como relaes dos homens com a natureza, para negar as coisas naturais, transfor-mando-as em coisas humanizadas ou culturais, produtos do trabalho (CHAU, 1994, p. 53). Desse modo, seria nos entrelaamentos das relaes humanas, emanadas por processos profundos de contradio que o foco na ideolo-gia, enquanto produto humano, possibilitaria a percepo da explorao, bem como a coisificao humana. Nesse

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    sentido, o trabalho humano passa a ser visto como coisa, o prprio trabalhador visto como aquele que disponibi-liza a fora de trabalho e, em consequncia, recebe ou-tra coisa chamada salrio. O produto do trabalho, imple-mentado nessa relao, passa a ser compreendido como mercadoria e, portanto, possui um preo. Ainda de acordo com Chau, o proprietrio dos meios de produo e das condies de trabalho compreendido como capital, as-sim, os seres humanos do lugar existncia de coisas.

    Nessas condies se daria a realizao da histria, ou melhor, seria a forma real de como os seres humanos produziriam sua existncia:

    a histria de como os seres humanos pro-duzem a si mesmo, (pelo consumo direto ou imediato dos bens naturais e pela procria-o), como produzem e reproduzem suas relaes com a natureza (pelo trabalho), do modo como produzem suas relaes sociais (pela diviso social do trabalho e pela forma da propriedade, que constituem as formas das relaes de produo). tambm his-tria do modo como os homens interpretam todas estas relaes, seja numa interpre-tao imaginria, como na ideologia, seja numa interpretao real, pelo conhecimen-to da histria que produziu ou produz tais relaes (CHAU, 1994, p. 47).

    Mediante essas consideraes, o grande pressu-posto da ideologia seria mascarar o real, de forma que as relaes sociais, sobretudo as relaes entre classes, pu-dessem parecer natural e, portanto, inquestionveis. Nes-se sentido, e fazendo uso de instrumentos de dominao, a ideologia aparece como um processo subjetivo cons-

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    ciente, mas um fenmeno objetivo e subjetivo involunt-rio, produzidas pelas condies objetivas da existncia so-cial dos indivduos (CHAU, 1994, p. 78). O processo de produo da dominao, sutilmente, encarna toda a concepo existencial de uma classe que, amplamente amparada na prpria constituio do Estado, utiliza-se de mecanismos a fim de tornar a realidade aparentemente sem contradio, consequentemente, natural. O Estado, enquanto representante de uma classe especfica, muito embora se apresente como espao de constituio/cons-truo democrtica, regula e ordena, segundo interesses particulares. Desse modo, no interior desse pensamento, o Estado teria o poder de definir o direito como subjetivo e imparcial, caracterizando-o como constituio de um cole-tivo. Entretanto, no podemos deixar de observar que sua existncia no ultrapassa a concepo, ou melhor, cons-tituio da preservao dos interesses particulares da classe que domina a sociedade (Idem, p. 71). A escola, nesse sentido, funcionaria como local em que interesses seriam colocados e direitos sobrepostos.

    As teorias curriculares crticas emergiram, prin-cipalmente, no perodo imediatamente aps a Segunda Guerra, quando iniciaram reflexes sobre a escola, prin-cipalmente sob o enfoque das teorias da reproduo. Al-gumas ocorrncias colaboraram para o surgimento dessa forma de analisar a educao, isso porque se observava nesse perodo:

    [...] uma srie de conflitos raciais, culturais e entre naes que eclodiram principalmen-te no final dos anos 1960 at meados dos

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    anos de 1970. Para citar alguns exemplos, observa-se na Frana o Maio Francs, em 1968, contra o sistema de ensino vigente; na Inglaterra, movimentos de contracultura newleft (nova esquerda); e nos Estados Uni-dos, o incio da guerra do Vietn propiciou manifestaes de estudantes americanos. neste contexto de crise cultural e turbu-lncia poltica que surgem as Teorias da Reproduo (BERNARDINO, 2010, p. 2).

    Cumpre esclarecer que as teorias da reproduo, so principalmente postuladas pelos estudos de autores como Bourdieu e Passeron (2010) que verificam a escola pelo funcionamento e pela capacidade de reproduzir os saberes dominantes, porm, com certa abertura e inde-pendncia da esfera material, como tambm por autores como Althusser (1985), cuja centralidade da escola vista como aparelho ideolgico corroborar para a reprodu-o das relaes sociais de produo. Nessa perspectiva, o desenvolvimento dessas correntes do pensamento, pos-teriormente transmutadas sob a compreenso de socio-logia da educao crtica, permitiu olhar a relao entre escola/Estado e sociedade a partir de um vis amplo. Au-tores como Cassin (2003, p. 328) tm argumentado que:

    As novas conjunturas exigem da sociologia a retomada com vigor da temtica da edu-cao como uma das reas a serem priori-zadas, ou seja, preciso retomar anlises mais amplas e estruturais que possibilitem entender a educao neste contexto de re-organizao do capital.

    Tais postulaes referem-se aos amplos desafios de se compreender a educao dentro das novas circuns-

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    tncias estabelecidas pelo capital globalizado, neoliberal e qui capital ps-moderno.

    Em todo caso, a escola pensada como mecanis-mo social de perpetuao e legitimao de hierarquias e divises sociais, sobretudo um espao capaz de provocar a inculcao de saberes advindos da classe dominante. Nesse sentido, o estudo curricular envolvendo as teorias da reproduo:

    [...] dominou amplamente a pesquisa e os debates da Sociologia da Educao a partir do final dos anos 60 e incio dos anos 70, e ainda hoje encontra seu vigor em diferentes correntes do pensamento sociolgico, em-bora na atualidade, se veja mitigada pelas tendncias mais recentes de recusa do de-terminismo (social e econmico) rgido na compreenso da organizao e do funcio-namento social da instituio escolar, e de busca de uma postura mais interpretativa que evita as abordagens globalizantes e se interessa mais de perto pelas situaes concretas construdas e vividas pelos ato-res sociais no cotidiano das instituies, e pelas interpretaes que eles fazem nelas (NOGUEIRA, 1990, p. 48-49).

    Mediante essas consideraes, a escola contem-pornea, ocidentalmente embasada na prpria histria do capitalismo, vai ser amplamente acusada de promover, e sobretudo, manter a classe dominante pertencendo de for-ma estratgica aos sistemas de dominao e servindo para a manuteno do sistema produtivo/reprodutivo. A partir dessas concepes, Althusser analisou a sociedade capita-lista propondo responder s questes centrais do sistema de dominao atravs da ideia de Aparelhos Ideolgicos de

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    Estado, e pela utilizao de uma ideologia pensada para controlar. Para Albuquerque, ao introduzir a obra Aparelhos Ideolgicos de Estado, a escola no mundo capitalista, antes de tudo, foi pensada para reproduzir e naturalizar as estru-turas produtivas. Assim, para essa escola:

    [...] formar o trabalhador significa, no propriamente, ou no apenas, qualificar seu trabalho, mas tornar, para o indivduo, natural e necessria a equivalncia entre qualidade do trabalho e quantidade da for-a de trabalho; tornar natural e necessria a venda da fora de trabalho, a submisso s normas de produo, a racionalidade da hierarquia na produo, etc. (ALBUQUER-QUE, 1985, p. 12).

    Os apontamentos efetivados do conta de que os saberes escolares, sobretudo a cultura, as cincias e todas as formas de apropriao de saberes pela esco-la, deixam de ser instrumentos neutros do progresso da humanidade tornando-se lugar de lutas pela direo e controle da sociedade.

    Nessa forma de compreender:

    Universidade e escola, particularmente, deixam de ser uma conquista da humanida-de a ser preservadas das querelas peque-no-burguesas, para se tornarem no mais instrumentos de saber, mas mquinas de sujeio ideolgica (Idem, p. 17).

    No mbito das discusses postas, a escola foi sen-do pensada e vista como espao em que a produo da dominao evidente. Isso se deve prpria natureza dessa instituio no mundo capitalista que desde seus primrdios presta especial servio a grupos especficos.

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    Nesse contexto, os saberes escolares no s foram ques-tionados como tambm a constituio desses saberes transmutada no currculo remetia ideia da existncia de algum que os pensou para dominar. Nesse sentido, diferente das concepes explicativas marxistas, para quem a ideologia constitua-se como uma construo posta como representao imaginria a servio da domi-nao, para Althusser a ideologia jamais imaginria, e no poderia ser concebida como:

    Invertida, deformada e de que baste inter-pretar tal inverso e deformao para res-gatar seu contedo verdadeiro. Pois para Althusser o objeto da ideologia no o mundo, a relao do sujeito com o mundo, ou mais precisamente com suas condies reais de existncia (ALBUQUERQUE, 1985, p. 39).

    Nessa forma de perceber as coisas:

    [...] Althusser fornecia uma definio de ideologia que destacava sua dimenso pr-tica, material. A ideologia, nessa definio, expressava-se mais atravs de rituais, ges-tos e prticas corporais do que atravs de manifestaes verbais (SILVA, 2005, p. 77).

    Althusser, ao propor que o processo de domina-o se efetivasse pela ampla participao do Estado na constituio do universo civil, e que a suposta neutrali-dade desse espao esconderia atrocidades mascaradas pela manifestao da ideologia, aponta para a constru-o de uma nova forma terica de ver as coisas, ou me-lhor, de ver a relao sociedade-Estado. Essa forma seria a anlise do processo de dominao pelas ideias mate-

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    rializadas dos Aparelhos Ideolgicos de Estado. A consti-tuio desses aparelhos no s garantiriam a existncia do processo de explorao, como tambm efetivaria a neutralizao de possveis combates diretamente insti-tudos no espao civil pelo possvel domnio da mquina social, assim, para Althusser, o principal aparelho de do-minao seria a escola, responsvel direta em manter a hegemonia da classe dominante. Os saberes escolares, nesse sentido, deveriam ser compreendidos dentro do universo capitalista, isso porque, na voz de Althusser o principal questionamento efetivado :

    [...] ora o que se aprende na escola? pos-svel chegar-se a um ponto mais ou menos avanado dos estudos, porm de qualquer maneira aprende-se a ler, escrever e con-tar, ou seja, algumas tcnicas, e outras coisas tambm, inclusive elementos (que podem ser rudimentares, ou ao contrrio aprofundados) de cultura cientfica, ou lite-rria diretamente utilizvel nos diferentes postos da produo. Aprende-se na escola as regras do bom comportamento, isto , as convenincias que devem ser observadas por todo o agente da diviso do trabalho conforme o posto que ele esteja destinado a ocupar; as regras de moral e de conscin-cia cvica e profissional, o que na realidade so regras de respeito diviso social tc-nica do trabalho e, em definitivo, regras da ordem estabelecida pela dominao de classe (ALTHUSSER, 1985, p. 57-58).

    O principal servio oferecido pela escola, na viso do autor, era assegurar a reproduo da fora de traba-lho, indispensvel para manter a ordem capitalista, no somente a reproduo do processo direto de qualificao

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    e preparao do homem e da mulher que mantero em pleno funcionamento a ordem do capital, mas a reprodu-o de formas submissas ideologia dominante. Ao ser evidenciada a expresso formas submissas, chama-se a ateno para o fato de que o poder ideolgico, enquan-to forma indispensvel de subjugao, produziria ento, comportamentos formatados pela ordem dominante, o que no impede o questionamento: Se a construo da lgica de reproduo antecipadamente pensada, qual seria o espao de inventabilidade da cultura?

    necessrio compreendermos que as produes curriculares desenvolvidas no perodo logo aps a se-gunda guerra do sculo XX centraram esforos em en-tender, sobretudo, a escola capitalista. Nesse sentido que surgiram tanto as construes tericas mencionadas previamente, como aquelas desencadeadas por autores como Bourdieu e Passeron (2010), cujos ecos se fazem ouvir nos dias atuais e cuja historiografia conceitual importante para a formulao de indagaes acerca do currculo escolar. Autores como Catani (2003) tm apon-tado que Bourdieu empreende passos significativos no sentido de elaborar uma teoria do funcionamento e das funes sociais do sistema escolar, principalmente ao demonstrar que:

    [...] os estudantes provenientes de famlias desprovidas de capital cultural apresentam uma relao com as obras da cultura veicu-ladas pela escola que tende a ser interes-sada, laboriosa, tensa, esforada, enquan-to para os indivduos originrios de meios culturalmente privilegiados essa relao

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    est marcada por diletantismo, desenvol-tura, elegncia, facilidade verbal natural (Idem, 2003, p. 305).

    Mediante essas constataes, a escola, bem como os diversos discursos defendidos por ela, traduz-se em es-paos de produo de intensas violncias, sobretudo por um tipo particular de violncia conhecida a partir de Bour-dieu como simblica, isto , discursos elaborados que:

    reproduzem a cultura dominante, contri-buindo desse modo para reproduzir a estru-tura das relaes de fora, numa formao social onde o sistema de ensino dominante tende a assegurar-se do monoplio da vio-lncia simblica (BOURDIEU; PASSERON, 2010, p. 17).

    Nesse sentido, a prpria educao definida como um conjunto:

    [...] dos mecanismos institucionais ou ha-bituais pelos quais se encontra assegurada a transmisso entre as geraes da cultura herdada do passado (isto , a informao acumulada) (idem, p. 32).

    E assim, a educao responde aos anseios de grupos especficos que, ao possurem autoridade sobre a produo da cultura, reproduzem os espa-os sociais de dominao estabelecendo as relaes simblicas como a principal responsvel na reprodu-o das relaes de fora. Mediante essas considera-es, toda ao pedaggica seria paulatinamente uma violncia simblica enquanto injuno de um poder ex-tremamente arbitrrio. A concepo de arbitrariedade dentro dessa forma de ver as coisas baseia-se na expo-

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    sio da cultura dominante como cultura geral e verda-deira.

    No houve pretenso de discorrer exaustivamen-te sobre as teorias da reproduo, pelo contrrio, esse breve enfoque demonstra como a educao, sobretudo aquela efetivada a partir da concepo de classes, foi construda sem, contudo, conceber qualquer possibili-dade de dilogo com a constituio da diferena, mas apenas com a desigualdade socioeconmica. A noo de diferena seria resultado de uma intensa violncia ex-cludente com base na economia em que a linguagem escolar refletiria apenas a formao social validada pelo discurso cultural de grupos dominantes, escondendo ten-ses camufladas em discursos supostamente democrti-cos, mas cujo principal objetivo era a garantia de poder, assegurado por violncias mascaradas.

    Ao considerar essas proposies, verifica-se que nas discusses crticas desenvolvidas para entender a escola e seus saberes, nota-se uma ausncia de debates que levem em considerao a presena no espao esco-lar, das mltiplas formas de linguagens e da presena de atores socialmente distintos, cujas vozes podem ser ouvidas para alm da reproduo de classe.

    Grandes avanos foram dados com autores como Paulo Freire, muito embora ainda esteja presente uma for-te concepo de reproduo vista a partir das desigual-dades econmicas. A escola passou a ser vista tambm como possibilidade dialgica, em que se inicia uma nova percepo a respeito da cultura para alm do capital.

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    Desse perodo, destaca-se tambm a obra Escola e Cultura: as bases sociais e epistemolgicas do conhe-cimento escolar de Forquin (1993) entrelaando no m-bito das discusses curriculares a relao entre cultura e educao. Em sua obra, o autor argumenta que conside-rando o fato de que a constituio escolar resultado da produo cultural de determinada sociedade:

    Toda crtica envolvendo a verdadeira natu-reza dos contedos ensinados, sua perti-nncia, sua consistncia, sua utilidade, seu valor educativo e cultural, constitui para os professores um motivo privilegiado de in-quietao (FORQUIN, 1993, p. 9).

    preciso verificar que alguns apontamentos pro-postos por Forquin (1993) no mbito das discusses ini-ciais do currculo ainda so vlidos para a proposio de reflexes sobre o objeto educativo. Destaca-se algumas premissas evidenciadas pelo autor, e que podem cons-tituir importantes questionamentos acerca do currculo: Pertinncia, Consistncia, Utilidade, Valor Educa-tivo. Essas proposies ainda parecem atuantes e ne-cessrias, quando, por decorrncia de estudos que en-volvam o currculo, podem orientar diretrizes e apontar caminhos sobre a viabilidade dos saberes embutidos nos contedos escolares.

    O ganho de Forquin, naquele momento histrico, foi tentar compreender os saberes escolares como resul-tados de uma produo cultural, ou seja, como lutas por significados no interior da escola. Para ele, as discusses sobre a cultura eram importantes no sentido de, ao se-

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    rem desvendadas as cortinas culturais, os valores dos sa-beres escolares eram facilmente elucidados. Nesse senti-do, a escola era vista como lugar de transmisso cultural, e como tal, visava assegurar:

    essencialmente, um patrimnio de conheci-mento e de competncias, de instituies, de valores e de smbolos, constitudos ao longo de geraes e caracterstico de uma comunidade humana (Idem, p. 12).

    Os desafios para os estudantes do currculo esta-riam, de acordo com esse autor, em verificar e compre-ender o que de fato pode ser eleito e digno de fazer parte do que chamou de contedo da educao. Isso estaria ligado ao entendimento de que:

    Toda educao sempre a educao de algum por algum, ela supe sempre a aquisio de alguma coisa: conhecimentos, crenas, hbitos, valores, que constitui o que chamamos precisamente de contedo da educao (Ibidem, p.10).

    Diante dessas prerrogativas, os enfrentamentos do objeto educativo estariam ligados de forma insepa-rvel construo dos smbolos e significados culturais construdos no mbito das esferas sociais pelos sujeitos. Esses sujeitos teriam capacidade de potencializar uma continuidade histrica dos saberes culturais resultando em equilbrio entre ao e discurso. Assim, refletir sobre educao seria tambm refletir sobre a cultura, ao passo que refletir sobre a cultura seria refletir sobre a educa-o, por isso, para Forquin (1993, p. 14):

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    Toda reflexo sobre a cultura pode assim partir da ideia segundo a qual o que justifi-ca fundamentalmente, sempre, o empreen-dimento educativo a responsabilidade de ter que transmitir e perpetuar a experincia humana considerada como cultura, isto , no como soma bruta (e, alis, inimputvel) de tudo o que pode ser vivido, pensado, produzido pelos homens desde o comeo dos tempos, mas como aquilo que, ao longo dos tempos, pde acender a uma existn-cia pblica, virtualmente comunicvel e memorvel, cristalizandose nos saberes cumulativos e controlveis, nos sistemas de smbolos inteligveis, nos instrumentos aperfeioveis, nas obras admirveis.

    Nesse sentido, Forquin compreende a educao como o lugar principal, em que a cultura, como obje-to de realizao humana, se realiza como memria viva, como possibilidade e como promessa de continuidade do empreendimento humano.

    Toda a educao do tipo escolar, alerta o autor, sempre uma seleo/reelaborao no interior da pr-pria cultura de saberes a serem transmitidos s novas geraes. A escola, enquanto lugar de continuidade da prpria cultura, s seria possvel porque possui a capa-cidade de equilibrar tenses e privilegiar saberes. Nesse contexto, os saberes escolares no seriam mais que uma seleo de aspectos culturalmente tidos como importan-tes, alis, o prprio autor esclarece que:

    [...] a educao escolar no consegue ja-mais incorporar em seus programas e seus cursos seno um espectro estreito de sabe-res, de competncias, de formas de expres-so, de mitos e de smbolos socialmente mobilizadores (Idem, p. 16).

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    Uma das questes condizentes levantadas pelo autor est relacionada natureza dos saberes esco-lares: diante de uma gama quase infinita de possibi-lidades de saberes, e ainda, da imensido que surge do entrelaamento entre eles, o que faz um saber ser mais importante do que outro? Assim, nem tudo o que constitui a cultura em seus aspectos simblicos vai ser considerado como potencialmente mobilizador de pro-jetos educativos. Faz-se necessria uma seleo dos chamados aspectos importantes da cultura, a fim de que se tenha uma construo curricular possvel que responda aos anseios e desejos de comunidades es-pecficas. Nessa direo, cumpre retomar a pergunta inicial: O que privilegiar na construo de um currculo intercultural?

    REFLETINDO AS MATRIZES DOS SABERES NAS PRTICAS DE ESCOLARIZAO

    Historicamente, a escola, enquanto campo de produo, construo e disseminao de saberes, tem representado o ocidente e as matrizes de sabe-res que alimentam essa ideia a partir do sculo XVI. Tal compreenso refere-se percepo da ideia de cincia cartesiana. Foi com Descarte que se instituiu uma forma de pensar completamente diferente do que a humanidade havia experimentado em toda a histria e odisseia do passado. Descarte, ao romper com a forma de pensamento medieval, estabeleceu

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    dvidas sobre as matrizes de saberes transcendentes e postulou a vontade de conhecimento mediada por prticas especficas de reflexo a razo. A partir des-se momento, emergiu, portanto, um conjunto de tc-nicas de pensamento e produo de conhecimento, sendo imediatamente espalhado pelo mundo atravs dos diversos projetos coloniais. Nesse sentido, Lander (2005, p. 26) chama a ateno para o fato de que:

    Com o incio do colonialismo na Amrica Latina inicia-se no apenas a organizao colonial do mundo, mas simultaneamen-te a constituio colonial dos saberes, das lnguas, da memria (MIGNOLO, 2005) e do imaginrio (QUIJANO, 1992).

    O autor em evidncia explora os processos de co-lonizao, principalmente a ideia de que os saberes, os poderes e as formas como constitumos nossa sociedade, so produes de um longo processo de dominao e que, nesse processo, o saber tem ocupado lugar privi-legiado. Seguindo as pistas do autor mencionado, pode-mos compreender que:

    A ideia de que um certo tipo de saber, a cincia, teria valor universal, enquan-to outros conhecimentos teriam validade particular, no vem de nenhum tipo de agncia interplanetria para a certifica-o da validade universal do conheci-mento. Pelo contrrio, essa ideia provm do processo histrico que se iniciou com a expanso militar e comercial de alguns povos da Europa, suas vises de mundo e instituies jurdicas, econmicas e polti-cas, sobre o resto do planeta (MATO, 2009, p. 79).

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    Verificamos que todo o nosso complexo modo de vida e organizao tem origem distante de nossos locais de vivncia, e que, por estarmos enredados no mbito das prticas discursivas que nos constituem, perceber outras possibilidades de conhecimentos pode tornar a situao muito complexa. Nesse sentido, a ideia de ver-dade reivindicada pelas formas de produo dos saberes ocidentais impediram/impedem que outras concepes e prticas incorporem nossas dinmicas educativas, impos-sibilitando uma prtica autntica de interculturalidade.

    No mbito da educao escolar indgena, por exemplo, tem-se observado que:

    Apesar de termos uma lngua materna e os processos de aprendizagem como eixos orientadores de nossas prticas, tnhamos (e temos) lacunas no sentido epistemolgi-co que estes aportes conceituais deveriam produzir para a construo de uma escola indgena diferenciada (NASCIMENTO, 2012, p. 158).

    Argumenta-se, desta forma, a necessidade de construir alternativas s matrizes e formas de organiza-o do conhecimento, provocando a construo de um currculo que, alm das relaes de binarismos, compre-enda os saberes como produo social, culturalmente distintos, mas que podem ser vistos com o mesmo teor de verdade. Percebemos, assim, que a interculturalida-de no pode ser pensada a partir de saberes universali-zados, de prticas que incorporam metas-narrativas, de verdade absoluta. Cumpre empreender uma reviso dos mtodos que validam nossos saberes, como tambm,

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    permitir que outras fontes de conhecimentos dialoguem no interior do currculo.

    CONSIDERAES FINAIS

    O texto ora exposto constitui-se como uma bre-ve reviso dos aspectos principais que foram permitindo a construo do currculo escolar. Nesse sentido, foram abordadas as contribuies das teorias crticas, principal-mente, as anlises efetivadas dos saberes transpostos em forma de currculo. Percebemos a impossibilidade de neutralidade desse artefato escolar, que, a partir do pon-to de vista do capitalismo, incorpora ideologias, repre-sentaes e vises de grupos especficos.

    Compreendemos com isso, que os processos de produo dos saberes escolarizveis representam, por-tanto, a dinmica hegemnica, a luta pela manuteno de prticas que legitimam a desigualdade no interior da sociedade. Percebemos o papel da ideologia, da reprodu-o e da violncia com que muitos saberes escolares so disponibilizados na escola, a forma como vo legitiman-do determinados grupos, validando a injustia. Eviden-ciamos assim que as reflexes pautadas apenas no olhar econmico desigualdades sociais no do conta de compreender o processo de construo, vivncia e arti-culao das diferenas no interior do currculo.

    Constata-se tambm que o processo de constru-o da interculturalidade , de fato, uma possibilidade de romper com formas paradigmticas que historicamente

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    acirraram as desigualdades econmicas e o no respei-to s diferenas sociais. Percebe-se que nossos saberes escolarizveis, so, contudo, advindos de um projeto de modernidade e racionalidade que legitima verdades de determinados grupos, impossibilitando a construo de uma interculturalidade crtica.

    Chama-se a ateno, para o fato de que, a racio-nalidade com que foi se fundamentando nossa sociedade pode estar diminuindo a atuao de outros saberes no in-terior do currculo, emergindo a necessidade de revisar-mos nossas metodologias, e principalmente, as episte-mologias que alimentaram/alimentam nossos processos de escolarizao. A partir dessas compreenses, pode-mos afirmar: Sim, faz sentido pensar em um currculo intercultural.

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