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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE THIAGO CAVALCANTE JERONIMO FIGURAÇÕES DO ROMANCE DE FORMAÇÃO E RECURSOS DISCURSIVOS EM UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES São Paulo 2016

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

THIAGO CAVALCANTE JERONIMO

FIGURAÇÕES DO ROMANCE DE FORMAÇÃO E RECURSOS

DISCURSIVOS EM UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS

PRAZERES

São Paulo

2016

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THIAGO CAVALCANTE JERONIMO

FIGURAÇÕES DO ROMANCE DE FORMAÇÃO E RECURSOS

DISCURSIVOS EM UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS

PRAZERES

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Letras, da Universidade

Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial

para a obtenção do título de mestre em Letras.

Orientadora: Profa. Dra. Aurora Gedra Ruiz Alvarez

São Paulo

2016

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Figurações do romance de formação e recursos discursivos em uma aprendizagem

ou o livro dos prazeres

J56v Jeronimo, Thiago Cavalcante.

Figurações do romance de formação e recursos discursivos em uma aprendizagem ou o livro dos prazeres / Thiago Cavalcante Jeronimo – São Paulo, 2016.

121 f. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2016.

Orientador: Profª. Drª. Aurora Gedra Ruiz Alvarez Referência bibliográfica: p. 114-121

1. Lispector, Clarice. 2. Literatura brasileira. 3. Romance de

formação. 4. Bildungsroman. 5. Recursos discursivos. I. Título.

CDD 869.93

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À minha mãe – Elaine – pela tal maneira de amar a mim direcionada.

Para Divina – minha avó – meu Céu na Terra.

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AGRADECIMENTOS

Ao Deus que é verbo e vive nas minhas orações. Àquele que dividiu o calendário em

dois tempos: antes da vírgula, depois dos dois-pontos.

À minha família, que está bem perto do meu coração: Joaquim, Divina, Elaine (o meu

mundo começou com um sim: a afirmação que a senhora disse à gestação da minha vida

aqui se manifesta, outra vez, em superação), Eliseu, Diego, Stephany e Eduarda.

À minha orientadora, professora Aurora Gedra Ruiz Alvarez, exemplo eficaz e

inspirador de profissionalismo. Se para Clarice Lispector “escrever é abençoar uma

alma que não foi abençoada”, para mim, sua orientação ampliou significativa e

vivencialmente essa premissa: orientar é abençoar. Obrigado pela atmosfera de milagre

que vi nascer em cada sugestão de pesquisa e escrita.

À professora Gloria Carneiro do Amaral e ao professor Ricardo Iannace, membros da

banca examinadora, pela crença, sugestões e afabilidade com que participaram e leram

este trabalho.

Às professoras que me indicaram os primeiros passos às Letras: Marisa Balthasar

Soares e Wilma Rigolon: meu abraço em reconhecimento.

Ao núcleo de professores do programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade

Presbiteriana Mackenzie, e particularmente à professora Neusa Maria Oliveira Barbosa

Bastos, pela compreensão humana a mim direcionada enquanto cursava sua disciplina.

Reitero meus agradecimentos à professora Gloria Carneiro do Amaral pela crença em

meu projeto, convidando-me para expor parte desta pesquisa aos alunos de Letras da

graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie no período de realização deste

estudo.

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Agradeço à professora Nádia Battella Gotlib o estímulo que recebi de suas aulas no

curso “Encontros com Clarice”, bem como a leitura do terceiro capítulo desta

dissertação e sugestões.

A todos os meus queridos que me auxiliaram no decorrer dos anos, e em particular aos

amigos que participaram mais de perto do processo desta escrita que aqui se materializa:

Leandro Parreira, Wesley Oliveira e Igor Magalhães; Kátia Medeiros, Sandra Fliess e

Keyla Kenya; Eliana Zuanella, Edson Santos Silva e Wallas Jefferson de Lima; Danielli

Morelli, Luciana Luciani, Camila Concato, Danielle Ojima e Elaine Viacek; Danilo

Castro, Paulo Roberto Farias e Mario Leão; Daniel Frateschi, Mari Pereira, Rita

Barbosa e Aguinaldo Campos; Geruza e Eládio Amado; Mercedes e José Olivar; Inês e

Alana Queiroz; Diógenes de Oliveira, Ivo Yonamine, Lúcio Henrique, Mauro Teixeira,

Lilian Gomes e Meire Mineo.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES – pela

bolsa de estudo.

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Agradeço à minha amiga Wilma Rigolon. A história desta dissertação é,

sobretudo, a história de um encontro de vida: a minha vida com os textos de Clarice

Lispector. Encontro intermediado pela competência e amabilidade de sua docência,

minha mãe-de-letras.

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Ah, ter de prosseguir nesse aprendizado que se prolonga desde tempos imemoráveis, e

que poderá cessar um dia abruptamente, como uma lâmpada que de repente se apaga, e

muito da tarefa ainda terá restado a ser feita. E isto, sem glória, mesmo a pobre glória de

puramente existir, mas existir integralmente, em todas as direções, com todas as forças,

intensamente. Intensamente, como um grito que leva em si toda a carga, todo o fulgor, o

fulgor da mistura de graça, de acertos e até mesmo de desatinos.

Elisa Lispector

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RESUMO

A importância da renovação narrativa trazida por Clarice Lispector é inegável,

não obstante a dificuldade que se interpõe, desde sua estreia, em enquadrá-la nos

protótipos da literatura nacional. Busca-se nesta pesquisa uma intervenção valorativa

acerca do romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, um texto em simbiose

com todo o processo escritural da autora. Examina-se a trajetória da protagonista

Loreley na sua busca de ser e estar no mundo, sua construção identitária desencadeada

numa consciência de liberdade íntima e social. As análises interpretativas alcançam a

fortuna crítica de Clarice Lispector; as epígrafes desse romance; a reformulação do

romance de formação alemão – Bildungsroman – à realidade do corpus; as

contribuições de Mikhail Bakhtin acerca dos recursos discursivos inscritos na narrativa

e as variantes do diálogo socrático; a junção do corpo da protagonista em interação com

a natureza.

Palavras-chave: Clarice Lispector. Literatura brasileira. Romance de formação.

Bildungsroman. Recursos discursivos.

ABSTRACT

The importance the Narrative of Renewal brought by Clarice Lispector is

undeniable, despite the difficulty in framing it in the prototypes of the national literature

since her debut. This work searches an evaluative intervention on the novel The

apprenticeship or the book of delight, a text in symbiosis with all the entry process of

the author. It examines the trajectory of Loreley, the protagonist, in her search for being

in the world and her identity construction triggered in an intimate and social freedom

consciousness. Interpretative analyzes reach the critical fortune of Clarice Lispector; the

epigraphs of this novel; the reformulation of the German Novel of Formation -

Bildungsroman - the reality of the corpus; the contributions of Mikahil Bakhtin about

subscribers discursive resources in the narrative and the Socratic dialogue variants; the

interaction with the protagonist's body protagonist with nature.

Keywords: Clarice Lispector. Brazilian literatura. Novel of formation. Bildungsroman.

Discursive resources.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 12

CAPÍTULO 1: A FORTUNA CRÍTICA DE CLARICE LISPECTOR E DE UMA

APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES ...................................................... 15

CAPÍTULO 2: UMA APRENDIZAGEM CONSTANTE: A ESCRITA FORMATIVA

DE CLARICE LISPECTOR .......................................................................................... 37

2.1 AS EPÍGRAFES DE UMA APRENDIZAGEM ........................................................ 40

APOCALIPSE ................................................................................................................ 41

AUGUSTO DOS ANJOS ............................................................................................... 44

PAUL CLAUDEL .......................................................................................................... 47

2.2 O LIVRO DOS PRAZERES E O BILDUNGSROMAN ............................................. 50

2.3 OS RECURSOS DISCURSIVOS NA FORMAÇÃO DA PERSONAGEM LÓRI 63

2.4 AS VARIANTES DO DIÁLOGO SOCRÁTICO EM UMA APRENDIZAGEM OU

O LIVRO DOS PRAZERES ............................................................................................ 67

CAPÍTULO 3: A POÉTICA DO CORPO INTEIRO EM UMA APRENDIZAGEM OU

O LIVRO DOS PRAZERES ............................................................................................ 86

3.1 PRIMAVERA/VERÃO ............................................................................................ 88

3.2 OUTONO ................................................................................................................. 97

3.3 INVERNO ................................................................................................................ 99

3.4 PRIMAVERA ......................................................................................................... 101

CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 111

REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 114

DE CLARICE LISPECTOR ........................................................................................ 114

ACERCA DE CLARICE LISPECTOR ....................................................................... 115

GERAL ......................................................................................................................... 119

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INTRODUÇÃO

Acharam por bem dar-me uma caneta de ouro. Sempre escrevi com

lápis-tinta ou, é claro, à máquina. [...] com caneta de ouro eu cairia

no problema do Rei Midas, e tudo o que ela escrevesse teria a rigidez

faiscante e implacável do ouro? [...] contanto que a caneta escreva,

qualquer uma serve.

Clarice Lispector, A descoberta do mundo

as palavras também têm caminhos por dentro, há que percorrê-los.

Valter Hugo Mãe, O apocalipse dos trabalhadores

Clarice Lispector é a autora que em todo seu processo criativo permitiu que

estudiosos estabelecessem novos conceitos referentes à linguagem literária. Se

comparada à figura mítica de Midas, o rei dotado do poder de transformar tudo o que

estivesse ao alcance de suas mãos em ouro, a escritura clariciana, com seus

desdobramentos inerentes às esferas em que atuou, modificou em amplitude satisfatória

o processo criador da produção literária brasileira à sua época, isto é, de 1943, com o

surgimento de Perto do coração selvagem, seu primeiro livro, até com seus textos

publicados postumamente, 1977, Um sopro de vida, A descoberta do mundo, e tantos

outros textos que têm surgido no decorrer de investigações acerca de suas produções.

Segundo Antonio Candido, a contribuição de Clarice Lispector à literatura

nacional, já em sua estreia, vale-se pelo fato de que a escrita inovadora da autora “[...]

soube transformar em valores as palavras nas quais muitos não vêm [sic] mais do que

sons ou sinais” (CANDIDO, 1970, p. 131). Transformação intrínseca nos romances,

novelas, contos, entrevistas, crônicas, literatura infantojuvenil, textos inclassificáveis

sob a norma vigente de literatura, isto é, em todo o percurso de escrita no qual a

produção lispectoriana se firmou. Desta forma, a ficção da autora passeia por diversos

gêneros literários e discursivos, modificando-os em novidade de sentidos, valorando-os

com significações além de seus paradigmas.

No conto, no romance, na crônica de Clarice Lispector, o caráter fixo

concernente aos gêneros é irrelevante, porque o escrever para a autora brasileira

evidencia uma potência renovadora que não se vinca ao protótipo.

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Clarice tinha ciência de que sua escrita era de cunho transformador1. “Sei que o

romance se faria muito mais romance de concepção clássica se eu o tornasse mais

atraente, com a descrição de algumas das coisas que emolduram uma vida, um romance,

um personagem, etc2. Mas exatamente o que não quero é a moldura” (LISPECTOR,

1999a, p. 271).

Dentro desse processo de narrativas que se erigem para registar o percurso de

uma escritora que ousou ficcionalmente uma postura criativa sem rédeas, convenções ou

“molduras”, pode-se aludir ao seu livro de estreia, Perto do coração selvagem (1943),

bem como ao escrito inclassificável Água viva (1973), alcançando em primazia no

corpus desta dissertação o texto Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.

A elaboração da presente dissertação tem por objetivo analisar o processo

constitutivo da protagonista de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres,

procedimento de construção identitária que desvela de modo significativo a natureza

peculiar desse romance de Clarice Lispector, publicado em 1969.

Considerado por alguns especialistas como um texto malogrado, se comparado

às obras Laços de família (1960) e A paixão segundo G.H. (1964), o livro que narra a

história de Loreley em uma aprendizagem centrada na personalização de sua

consciência, longe de ser um projeto frustrado dentro do percurso pulsante de Clarice

Lispector, vinca-se como uma obra palimpséstica, em que textos originalmente

publicados no Jornal do Brasil ganham nova dimensão e valor inscritos no romance

clariciano.

Dividido em três capítulos, que se somam à Introdução e às Considerações

finais, este trabalho focaliza a produção ficcional de Clarice Lispector concernente ao

texto Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, com a seguinte estrutura: o primeiro

capítulo, destinado à fortuna crítica da obra da escritora, atém-se à importância da

contribuição literária de Clarice Lispector no panorama da literatura brasileira.

1 Em crônica do Jornal do Brasil, a escritora esclarece: “Bem sei o que é o chamado verdadeiro romance.

No entanto, ao lê-lo, com suas tramas de fatos e descrições, sinto-me apenas aborrecida. E quando

escrevo não é o clássico romance. No entanto é romance mesmo. Só o que me guia ao escrevê-lo é

sempre um senso de pesquisa e de descoberta. Não, não de sintaxe pela sintaxe em si, mas de sintaxe o

mais possível se aproximando do que estou pensando na hora de escrever. Aliás, pensando melhor, nunca

escolhi linguagem. O que eu fiz, apenas, foi ir me obedecendo” (LISPECTOR, 1999a, p. 306, grifo da

autora). 2 Arnaldo Franco Júnior, ao analisar esse excerto, chama atenção à “‘consciência quanto a saber tonar

mais atraente’ o texto, valendo-se de procedimentos e recursos que agradariam uma recepção

automatizada pelo hábito e por uma produção literária que referendasse os paradigmas usuais de crítica,

gosto e recepção do texto literário. Note-se, também, a inflexibilidade quanto a fazer concessões ao

sistema literário, resistência que a escritora manteve até o fim da vida, mesmo quando obrigada a escrever

por encomenda” (FRANCO JÚNIOR, 2003/2004, p. 131).

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Recuperando as análises críticas que, a exemplo de Antonio Candido, saudaram a obra

de Lispector com prestígio e valoração, este capítulo ressalta o lugar do texto Uma

aprendizagem ou o livro dos prazeres na produção da autora.

O segundo capítulo pontua interpretações acerca das epígrafes referentes ao

corpus – paratextos que desvelam o reportório de leitura da escritora e, ao mesmo

tempo, preludiam o que sobrevirá na narrativa – e analisa Uma aprendizagem ou o livro

dos prazeres como romance de formação, reconhecendo sua gênese no Bildungsroman,

isto é, o romance de formação alemão, mas adaptando-o aos conceitos de romance de

formação feminino. O processo formativo de Loreley, a heroína de Clarice Lispector, é

examinado sob o viés dos recursos discursivos postulados por Mikhail Bakhtin:

solilóquio, diálogo socrático e diálogo no limiar, bem como dos recursos discursivos do

kitsch, conforme contribuições de Arnaldo Franco Júnior, e da ironia, na esteira da

pesquisa de Marcia Lúcia Vianna.

A abordagem do terceiro capítulo sinaliza uma poética do corpo da heroína de

Clarice Lispector. Essa interpretação examina as fases da constituição da protagonista

concernentes aos aspectos temporais da narrativa, isto é, persegue a trajetória de Loreley

que se consolida durante um ano, abarcando as quatro estações. Desta forma, busca-se

uma compreensão de como o corpo da personagem se reorganiza à completude de sua

autoconsciência em simbiose com o fluxo da natureza. O alicerce teórico considera as

sinestesias condizentes às características de Lóri em comparação ao texto bíblico

“Cântico dos cânticos”; as interpretações de Mikhail Bakhtin ao permanente construto

do ser humano, bem como as contribuições de Lúcia Pires acerca da andrógina escritura

de Clarice Lispector: a integração das personagens desse romance. Sublinhe-se ainda

um misticismo heterogêneo à escritura clariciana, isto é, nas letras de Clarice Lispector

o sincretismo religioso tem caráter de “água viva”, flui por entre as diversas religiões,

seja a judaica, a espírita, a cristã, crendices populares etc.

Descritos a proposta desta dissertação, os alicerces teóricos, os processos

metodológicos, assim como a sua organização, passa-se ao Capítulo I.

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CAPÍTULO 1: A FORTUNA CRÍTICA DE CLARICE LISPECTOR E DE UMA

APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES

Como uma forma de depuração, eu sempre quis um dia escrever sem

nem mesmo o meu estilo natural. Estilo, até próprio, é um obstáculo a

ser ultrapassado. Eu não queria meu modo de dizer. Queria apenas

dizer. Deus meu, eu mal queria dizer. E o que eu escrevesse seria o

destino humano na sua pungência mortal. A pungência de se ser

esplendor, miséria e morte. A humilhação e a podridão perdoadas

porque fazem parte da carne fatal do homem e de seu modo errado na

terra. O que eu escrevesse ia ser o prazer dentro da miséria. É a

minha dívida de alegria a um mundo que não me é fácil.

Clarice Lispector, A descoberta do mundo

Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de

acontecer?

Clarice Lispector, A hora da estrela

Discorrer acerca de Clarice Lispector (1920-1977) pressupõe a análise da vasta

fortuna apreciativa liada ao grande ícone feminino da literatura brasileira. Expoente

ímpar do cânone literário nacional, a obra clariciana agrega qualidades artísticas que

estão além de rótulos e possíveis definições. “Inútil querer me classificar: eu

simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais” (LISPECTOR, 1998a,

p. 13), explicita a narradora de Água viva (1973).

Impelida pela vontade de pôr em letras o clímax das sensações vivenciadas por

suas personagens, a experiência pulsante de “estar no mundo”, quer nos contos, quer

nos romances – inclusive no grande acervo de crônicas de sua autoria – depara-se com

“a pobreza da coisa dita”3; a concretização da narrativa, para Clarice, pressupõe uma

experiência incompleta, inenarrável. Segundo a autora, “escrever é um dos modos de

fracassar” (LISPECTOR, 1999a, p. 60). É por isso que o narrador de A hora da estrela,

Rodrigo S. M., expõe: “A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente

interior e não tem uma só palavra que a signifique” (LISPECTOR, 1998b, p. 11).

Clarice Lispector é uma escritora que conseguiu, ao longo de sua vasta e

precursora carreira literária, percorrer, afirmando-se em renovação, os diversos gêneros

3 “As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior

parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou”

(RILKE, 2013, p. 21).

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literários. Sua primeira obra publicada foi o repercutido romance Perto do coração

selvagem (1943)4, que lhe rendeu ensaios de alguns dos principais críticos literários

brasileiros da época, uma vez que sua escrita, logo de início, apontava para um abalo

nos alicerces da linguagem ficcional do novo romance brasileiro.

Considerado um divisor na estética literária nacional até então produzida nos

decênios de 1930/1940, Perto do coração selvagem, escrito entre março e novembro de

19425, introduz uma nova maneira de narrar, uma ruptura em que as noções

cristalizadas de tempo, espaço, personagens, a exemplo de José Lins do Rego (1901-

1957) e Jorge Amado (1912-2001), tornam-se subjetivadas ao universo lispectoriano de

narrar, uma vez que o engajamento da escritora é com – e extrapola – a própria

linguagem, como bem observou Antonio Candido. Para o crítico, Clarice fez da

linguagem uma aventura em que “antes de ser coisa narrada, a narrativa é forma que

narra” (CANDIDO, 1996, p. XVIII).

Sucedendo aos romances chamados “regionalistas” e “locais”, de origem,

sobretudo, nordestina e gaúcha, que anos após a Semana de Arte Moderna de 1922

vincaram à escrita brasileira um processo de documentar a realidade do Brasil em tom

de denúncia, num engajamento evidentemente social, mas tendo como mote a

linguagem passiva à linearidade narrativa e ao tema (da miséria e escassez), Perto do

coração selvagem avança numa perspectiva diferenciada de produção literária: o sertão

para Clarice não está condicionado ao local físico, repercute a esfera íntima, tendo como

alcance o universal. Eis aí o diferencial revelador das letras claricianas: um mergulho

nas profundezas do ser. Imersão, com efeito, centralizando a soberania da palavra.

Evidenciando essa premissa, João Guimarães Rosa (1908-1967), nome igualmente

importante e inovador na literatura brasileira, num encontro com a autora de Felicidade

clandestina expôs suas impressões acerca da escrita de Lispector, revelando que lia

Clarice “não para a literatura, mas para a vida” (LISPECTOR, 1999a, p. 135).

4 “Em 1944, aos 17 anos, terminou Perto do coração selvagem, seu primeiro romance. Procurou então o

crítico Álvaro Lins e perguntou-lhe se valia a pena publicá-lo. O crítico pediu-lhe que telefonasse uma

semana depois. Findo o prazo disse-lhe que não entendera o livro e recomendou-lhe que conversasse com

outro crítico. Otto Maria Carpeaux. Ela, porém, não falou com ninguém. Dirigiu-se a uma editora

importante: o original foi recusado. Publicou-o assim mesmo; fez um arranjo com A Noite: não custeou

nada e também não ganhou nada” (BORELLI, 1981, p. 46) Cabe frisar que a 1ª edição de Perto do

coração selvagem data 1943, e não 1944, como pontua Borelli (GOTLIB, 2009, p. 193). 5 “Num de seus depoimentos, Clarice afirma ter levado muito tempo para escrever este romance: uns

cinco anos, no período em que tinha a idade de treze a dezoito anos quando já estava no Rio de Janeiro.

Noutros, afirma que levou doze meses, quando, então, conseguiu fazer e reunir as notas. Afirma ainda que

escreveu o livro durante dez “sofridos” meses, quando era aluna da Faculdade de Direito. E para o

jornalista Ziraldo, que lhe pergunta quanto tempo gasta em cada livro, responde: “Depende. O meu

primeiro livro foi de nove meses. Como uma gravidez”” (apud GOTLIB, 2009, p. 199).

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Carlos Mendes de Sousa orienta a atenção para o não lugar do texto clariciano

no conjunto da literatura produzida no Brasil nos decênios acima pontuados, justamente

por conter, em sua escrita, traços heterogêneos, descontínuos e instáveis, assim como é

a alma humana. Sintetiza que Clarice Lispector “vai aparecer num período em que a

afirmação se fazia via localismo, o qual mesmo quando em articulação dialética com o

universalismo, fazia supor necessariamente a especificação da região” (SOUSA, 2012,

p. 14). Para o pesquisador: “A novidade de Clarice Lispector advém [... da] assunção do

seu lugar a partir de um despaisamento territorial –, esse despaisamento projetar-se-á na

afirmação do território-língua, território devindo escrita” (SOUSA, 2012, p. 17).

O estilo clariciano de narrar, que foge às regras lineares e à passividade de tema,

tem seu viso logo na infância da escritora. Quando criança, ainda no Recife, Clarice se

empenhava em escrever pequenas narrativas, encaminhando-as para a sessão infantil do

Diário de Pernambuco, na expectativa de ter uma de suas histórias publicada no

referido jornal. Desejo que nunca aconteceu. Na crônica intitulada Ainda impossível, a

escritora, que também se debruçou nas narrativas infantojuvenis, publicando cinco

livros direcionados a essa faixa etária, explica o porquê da negação às suas produções:

Eu as enviava para a página infantil das quintas-feiras do jornal de

Recife, e nenhuma, mas nenhuma mesmo, foi jamais publicada. E

mesmo então era fácil de ver por quê. Nenhuma contava propriamente

uma história com os fatos necessários a uma história. Eu lia as que

eles publicavam, e todas relatavam um acontecimento. (LISPECTOR,

1999a, p. 449).

Por transmitir em seus textos “sensações” e não apenas “acontecimentos”,

Bernadete Grob-Lima aponta que Clarice “assimilou de seus antecessores um

procedimento no qual a representação cede lugar à não representação, ao silêncio da

escritura” (GROB-LIMA, 2009, p. 228). É de Clarice que ecoa a afirmação: “Meus

livros, felizmente para mim, não são superlotados de fatos, e sim da repercussão dos

fatos no indivíduo” (LISPECTOR, 1999a, p. 392).

Antonio Candido, um dos primeiros críticos a saudar Perto do coração

selvagem, ao publicar uma resenha crítica meses depois da estreia literária de Clarice,

isto é, início de 1944, reconhece que o livro inaugural de Lispector “[...] dentro da nossa

literatura, é performance da melhor qualidade. [...] O seu ritmo é um ritmo de procura,

de penetração que permite uma tensão psicológica poucas vezes alcançada em nossa

literatura contemporânea” (CANDIDO, 1970, p. 128-129).

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Também sob essa perspectiva, ao citar a estreia impactante da então jovem de

vinte e quatro anos nas letras brasileiras, Massaud Moisés aponta que “[...] Clarice

Lispector vinha renovar e, de certo modo, definir a tendência introspectiva de nossa

ficção dos anos 30” (MOISÉS, 2007, p. 554).

As observações postas em relevo pelos críticos acima estão em consonância com

as impressões que Berta Waldman resgata da fala de Samuel Rawet, ao tecer

considerações acerca da tendência introspectiva batizada nas letras claricianas:

[...] o que ocorre com Clarice é um tipo de consciência particular que

ela tem. Um modo específico e completamente diferente de ver a

realidade. [...] A relação de Clarice com a realidade não é a mesma,

por exemplo, de José Lins do Rego. Não pode ser. José Lins tem uma

relação com a realidade imediata. Um cajueiro é um cajueiro. Uma

fazenda é uma fazenda. Para Clarice, muitas vezes, não é

imediatamente um cajueiro. Ela tem que trabalhar interiormente até

chegar ao cajueiro como cajueiro, na realidade brasileira, é claro

(RAWET apud WALDMAN, 2003, p. XXIV).

E é moldada com essa consciência particular6 que Lispector percorre na escrita

as diversas manifestações literárias em que se firma como escritora: romances, novelas,

contos, crônicas, peça teatral, literatura infantojuvenil, entrevistas, textos sem

classificações definidas, a exemplo do texto poético em prosa Água viva.

Dessa variada produção, foi selecionado para corpus desta dissertação o livro

Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969). Publicado vinte e seis anos após a

aclamação do seu primeiro romance, e cinco anos após a consagração de A paixão

segundo G.H (1964), O livro dos prazeres chega para dar ênfase ao diálogo na produção

clariciana, fato também constatado pela crítica canadense Claire Varin: “Depois do

aprendizado do monólogo pela eremita G.H. no quarto fechado, vem o do diálogo e do

desejo” (VARIN, 2002, p. 146).

No início da década de 1960, Clarice Lispector revigora a atenção da crítica para

si com a publicação de duas grandes obras; primeiramente, o livro de treze contos

saudado com primazia pela academia, Laços de família (1960), que, segundo o escritor

sulista Érico Veríssimo, “[...] é a mais importante coleção de histórias publicadas neste

país na era pós-machadiana” (apud GOTLIB, 2009, p. 360); e a segunda obra, a já

citada A paixão segundo G.H., que, como evidencia Benedito Nunes, no percurso

lispectoriano, esse livro “amplia os aspectos singulares de sua obra, extremando as

6 É de Clarice, no livro póstumo Um sopro de vida, a precisa explanação: “A minha vida tem enredo

verdadeiro. Seria a história da casca de uma árvore e não da árvore” (LISPECTOR, 1999, p. 20).

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possibilidades que nela se concretizam [...] um dos textos mais originais da moderna

ficção brasileira” (NUNES, 1996, p. XXIV). Cabe pontuar que ambas as publicações,

contos e romance, apresentam uma síntese à escritura de Clarice Lispector, “o estado de

graça”, segundo a autora; e em crítica, o termo se reveste da nomenclatura epifania,7

isto é, “o relato de uma experiência que a princípio se mostra simples e rotineira, mas

que acaba por mostrar toda a força de uma inusitada revelação” (SANT’ANNA, 2013,

p. 128).

Sem uma voz dissonante a quebrar a unicidade da crítica, a narrativa de G.H.,

trazida à luz num período sombrio da história do Brasil, uma vez que o país estava

mergulhado no autoritarismo da ditadura, é o ápice da consolidação de Clarice no

cânone literário brasileiro. A narrativa, em primeira pessoa, tem em seu início e em sua

conclusão seis travessões, percurso também observado no livro que aqui é objeto de

estudo, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, que traz sua introdução marcada

por uma vírgula e seu desfecho assinalado com dois-pontos.

Clarice Lispector dá voz à personagem G.H. para, por meio da paixão da

palavra escrita – paixão no sentido de sofrimento – expor a repercussão do clímax

vivenciado pela protagonista: o confronto com a barata e o desequilíbrio sentido pela

heroína.

G.H., ao colocar a barata em sua boca, traz para si, num percurso ritualístico de

passagem, como já apontado pela crítica, a hóstia sagrada, o corpo de Cristo. Há todo

um aparato emblemático focalizado por Benedito Nunes, O itinerário místico de G.H.

(NUNES, 1995, p. 58), em que o resgate de sua essência se dá, em G.H., por meio da

desestrutura, “da perda do eu” desembocada na solidão e, em última instância, ao

divino.

Impossibilitada de voltar à rotina, G.H. se apossa das palavras tentando

reformular sua vida, “[...] não sei que forma dar ao que me aconteceu. E sem dar uma

forma, nada me existe” (LISPECTOR, 1998c, p. 14). Para tanto, “a personagem, que

chega à visão silenciosa onde o monólogo interior se esgota, inventa, para garantir a

possibilidade da narrativa, a presença de um interlocutor imaginário que finge segurar

suas mãos” (NUNES, 1995, p. 78).

7 Luciana Stegagno Picchio pontua três referências epifânicas em Clarice Lispector: “Epifania

imaginativamente, como revelação através da escritura de algo essencial que inesperadamente se fixa e se

torna visível. Epifania criticamente, terminologicamente, como aparição instantânea e transfiguradora,

com explícita alusão à estética joyceana. Mas epifania, também, metaforicamente, como advento nas

letras brasileiras, tão viçosas de ambientes e de folclore, tão marcadas pelo sol e pelo trópico, de uma

escritura mais esquiva e discreta” (PICCHIO, 1989, p. 17).

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Ao contrário de G.H., que traz para dentro de sua confissão de sofrimento um

interlocutor imaginário, Loreley, a protagonista do romance Uma aprendizagem ou o

livro dos prazeres, tem seu interlocutor expresso na tessitura do texto, Ulisses, para em

comunhão passarem pelo processo de uma possível felicidade.

Cabe mencionar que, em O livro dos prazeres, há uma supressão no nome da

protagonista, que se apresenta por meio da alcunha Lóri, sendo seu nome em extensão

Loreley, informação que surge ao leitor, a exemplo da revelação do nome de Macabéa,

em A hora da estrela (LISPECTOR, 1998b, p. 43), quando a narrativa já está avançada

em seu fluxo, isto é, nos momentos decisivos do texto. Essa observação será distendida

no decorrer deste capítulo.

Galardoado com o prêmio Golfinho de Ouro8, do Museu da Imagem e do Som,

O livro dos prazeres merece destaque no conjunto da obra da escritora por se tratar de

um texto que inova não apenas os atributos narrativos da moderna ficção brasileira,

mas, como na observação de Benedito Nunes, Uma aprendizagem é “um romance de

romances” (1995, p. 81, grifo do autor), isto é, evoca nesse livro traços marcantes de

todos os livros até então publicados pela autora, um tributo literário, e dialoga com

textos vindouros, a exemplo de Água viva (1973) e A hora da estrela (1977). Acerca

dessa questão, Olga de Sá aponta que “os romances de Clarice dialogam entre si,

levando-nos a concluir que ela realizou, às vezes, nos traços de suas personagens, a

paródia de si mesma” (SÁ, 1993b, p. 181).

Claire Varin articula uma abordagem entre os textos anteriores e posteriores aO

livro dos prazeres, isto é, A paixão segundo G.H. e Água viva unem-se por meio do

romance de 1969.

Se A paixão segundo G.H. constituía uma narrativa, G.H. nos

contando o que havia passado em seu quarto às vésperas, a narradora

de Água viva, dez anos depois, nos fala com as palavras ardentes de

seu presente, nosso presente de leitura. Oferece-nos fragmentos de sua

vida. Mas antes terá sido necessário um aprendizado dos prazeres para

aceitar abandonar-se à liberdade de sentir e pensar. Ao cabo de sua

iniciação, Lóri – tal como a sereia Loreley, que, de seu rochedo, joga-

se no mar – abre via à Água Viva do texto Água viva. [...] O poder da

água informe molda todas as formas (VARIN, 2002, p. 152).

8 Os prêmios ganhos por Clarice foram: Graça Aranha, em 1944, pelo livro Perto do coração selvagem;

Carmen Dolores, em 1956, por A maçã no escuro; em 1967, o Calunga, da Campanha Nacional da

Criança, pela publicação de O mistério do coelho pensante; o Golfinho de Ouro, do Museu da Imagem e

Som (RJ), em 1969, por Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres; no X Concurso Literário Nacional,

da Fundação Cultural de Brasília, em 1976, pelo conjunto da obra; e o Jabuti, em 1978, por A hora da

estrela.

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A narrativa de Uma aprendizagem expõe a vida recortada de Loreley,

mencionada pela alcunha Lóri, professora primária, numa progressão e amadurecimento

como mulher, processo intrincado para o outro protagonista da história, Ulisses9,

professor de Filosofia, que, como mentor, não mais imaginário se relacioná-lo ao livro

A paixão segundo G.H., é presentificado nessa narrativa com o intento de sugerir a sua

companheira, esta, “autodidata” (LISPECTOR, 1998d, p. 113), o conhecimento e a

identificação de si pelo amor.

Nadia Battella Gotlib, referência crítica nos estudos biográficos e ficcionais de

Clarice Lispector, aponta que a originalidade de Uma aprendizagem não se regula

apenas pelo teor de aprendizagem, uma vez que, como os outros escritos de Clarice, “o

aprender pela desaprendizagem de saberes estereotipados” já é pano de fundo em suas

criações. “Mas esse romance, diferentemente dos demais, narra uma história de

evolução progressiva da mulher que caminha, corajosamente, da dor ao prazer”

(GOTLIB, 2009. p. 491).

É o que pontua Berta Waldman. Acunhado pela crítica de “livro de experiência”,

Waldman esclarece que Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres

se compõe da aprendizagem que nela vai tomando forma. Nisso é

semelhante à A paixão segundo G.H. Mas a aprendizagem aponta em

cada um dos romances para caminhos opostos. Enquanto em A paixão

segundo G.H., G.H. se submete a uma desaprendizagem das coisas

humanas, O livro dos prazeres é uma recuperação corajosa do sentido

da existência humana (WALDMAN, 1992, p. 67).

Se a experiência vivenciada por G.H. a dimensiona à negação “da perda do eu”,

em Lóri, a “sabedoria de que é feita dimensiona-a para a vida humana. A lucidez que

vai adquirindo é tranquila, fora de qualquer espécie de transe” (WALDMAN, 1992, p.

67).

Destarte, O livro dos prazeres, cabe frisar,

pela primeira e única vez, um texto de Clarice situa a entrega amorosa

sem reservas, capaz de conduzir à consciência de si no outro e à

consciência da própria condição social. É fato único, ainda, que o

diálogo tenha a força de aproximar e não separar as personagens

(WALDMAN, 1992, p. 67, 68, grifo da autora).

9 Além de ser o título do livro mais famoso de Joyce, Ulisses é também o nome do cão de Clarice e o

protagonista da história infantil Quase de verdade. Segundo Olga Borelli, Ulisses era o nome de “um

rapaz que ela [Clarice] conheceu na Suíça e se apaixonou por ela. Ele era estudante não sei se de pintura.

E esse Ulisses tinha uma paixão tão violenta, que ele precisou mudar de cidade, ele foi embora. Porque a

Clarice era belíssima, apaixonava as pessoas. E ele foi embora e ela guardou sempre uma recordação. Era

um rapaz louro, de olhos claros. [...] Então, em homenagem a ele, ela pôs o nome de Ulisses no Uma

aprendizagem” (BORELLI, 1987, p. 7-8).

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Essa aproximação ocasionada pelo diálogo é reconhecida e ampliada por Yudith

Rosenbaum. A crítica pontua que “raros são os finais felizes na obra de Clarice, e

poucas vezes, como nesse caso, o diálogo se efetiva como real comunicação”

(ROSENBAUM, 2002, p. 49). Acrescenta que “além dessa diferença, o romance se

afasta do predomínio da introspecção, marca registrada da autora, para abrir-se a uma

explicitação maior da vida exterior” (ROSENBAUM, 2002, p. 49).

O processo evolutivo de Lóri, tecido numa narrativa polarizada pelo diálogo10

, é

apresentado ao leitor de forma destoante11

de todo o percurso romanceiro da escritora,

ou seja, Clarice narra a evolução de sua personagem valendo-se de um fio condutor

aparentemente perceptível em sua narrativa: progressão e continuidade nos fatos

narrados, dando voz, em diálogo, tanto à protagonista feminina quanto ao protagonista

masculino. O livro dos prazeres, numa primeira leitura rasa, não se isenta dessa

aparente simplicidade de enredo, que, por sua vez, clareia em seus protagonistas, Lóri e

Ulisses, traços caricatos de passividade e pedantismo, respectivamente.

Atendo-se à aparente simplicidade de um enredo linear com personagens

facetados, Vilma Arêas rotula Uma aprendizagem como o livro “malogrado” e

“falhado” de Clarice Lispector. O posicionamento de Arêas é de que “[...] não haveria

erro em se afirmar que Uma aprendizagem é um romance surpreendentemente

malogrado, pois que falhado de modo mais complexo que outros textos, sobretudo se

compararmos com A paixão segundo G.H.” (ARÊAS, 2005, p. 27). Para a crítica, o

ápice da produção clariciana se realiza no livro de 1964; as produções posteriores

seriam os escritos produzidos “com a ponta dos dedos”, metonímia utilizada para

expressar uma desvalorização dessas obras.

Ainda segundo a ensaísta, “o fio por ventura muito explícito da trama” (ARÊAS,

2005, p. 25) e o processo palimpséstico que permeia a escritura de Uma aprendizagem

contribuem para o erro de “tom e composição” que perpassam sua narrativa. “Na

verdade, o erro – de tom e composição – é de tal modo evidente e insistente que acaba

10

Olga de Sá, elencando as contribuições de Benedito Nunes acerca de Uma aprendizagem ou o livro dos

prazeres, conclui que a narrativa em questão “se polariza no diálogo, porque nesse romance duas

consciências se reconhecem e, por fim, se comunicam” (SÁ, 1993a, p. 55). 11

Na pesquisa intitulada Clarice Lispector: A paixão segundo C.L., Berta Waldman pontua que nos

romances claricianos anteriores aO livro dos prazeres, “a utilização do discurso indireto livre e do

monólogo é abundante, enquanto o diálogo, quando ocorre, tem caráter acidental, não chegando a se

constituir no lugar onde dois interlocutores interagem. Em A maçã no escuro, o diálogo, repetidas vezes,

toma até mesmo a forma de uma conversa onde os interlocutores não se ouvem, o que lhe dá uma carga

de incomunicabilidade tal que o faz retornar à situação de dois monólogos cruzados. Contrastando com os

romances anteriores, em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969), a narrativa está polarizada

pelo diálogo e não pelo monólogo (WALDMAN, 1992, p. 66).

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por fazer sentido, transformando o livro num jogo claro com regras expostas [...] uma

espécie de extravio ou equívoco envolve o livro como atmosfera” (ARÊAS, 2005, p. 27,

grifo da autora).

O tom errado de Uma aprendizagem, segundo Arêas, seria uma história que se

preocupa em narrar o processo evolutivo da personagem que se desprende da dor para

elevar-se ao prazer por meio de sua autoconsciência desencadeada no outro, uma

história em que a concretização do amor é celebrada; já o erro composicional, em seu

entendimento, ocorre pelo fato de Lispector ter se utilizado de outros textos de suas

produções na tessitura do livro em questão. A ensaísta aborda como negativa a costura

realizada por Clarice, isto é, junção de crônicas no romance. Sua negação alcança até

mesmo a pontuação significativa do O livro dos prazeres: A “pontuação supostamente

vanguardista que abre e fecha o livro acaba por perturbar e banalizar a expressão”

(ARÊAS, 2005, p. 31).

Postos em síntese alguns dos posicionamentos arrazoados por Vilma Arêas, cabe

sinalizar o percurso de Lispector atrelado à esfera jornalística, colocando em relevo

traços de sua produção como cronista junto ao Jornal do Brasil. A coluna semanal do

referido jornal, efetivada de 1967 a 1973, impeliu a escritura de Clarice Lispector, nessa

esfera de escrita, a uma entonação mais pessoal e próxima aos leitores. No entanto, em

diversas publicações, a autora assinalava que o que escrevia não era propriamente

crônica: “Vamos falar a verdade: isto aqui não é crônica coisa nenhuma. Isto é apenas.

Não entra em gênero. Gêneros não me interessam mais. Interessa-me o mistério”

(LISPECTOR, 1999a, p. 379). É evidente a tentativa escapatória de Clarice para o novo

rótulo de sua produção: “Clarice, a cronista.” Em crônica direcionada a Rubem Braga, a

escritora revela que telefonou para o autor, “o criador da crônica, e disse-lhe

desesperada: ‘Rubem, não sou cronista, e o que escrevo está se tornando

excessivamente pessoal. O que é que eu faço?’ E ele respondeu: ‘É impossível, na

crônica, deixar de ser pessoal’” (LISPECTOR, 1999a, p. 381).

Reconhecendo a impossibilidade de se manter neutra às questões de sua vida

pessoal, Clarice oferecia ao leitor de sua coluna textos dos mais variados temas,

relembrando acontecimentos e experiências próprias, mas sem seguir

concomitantemente às formulações intricadas ao gênero crônica12

. Por essa razão, a

12

Evandro Nascimento, em seu livro Clarice Lispector: uma literatura pensante, ao pontuar a forma com

que a autora procedia com suas entrevistas aponta que: “Clarice Lispector [...] mistura forma e registros,

atravessa os códigos, confunde as regras, expõe suas idiossincrasias, desfazendo assim o ingente gênero

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escritora não só rompeu com o modelo tradicional de crônica ou de coluna opinativa,

como em sua produção jornalística alternou textos pessoais com apontamentos

filosóficos, fragmentos de romances que escrevia na época, entrevistas, e, em última

instância, de forma sucursal, textos que em análise poderiam ser nomeados crônicas.

Ao apresentar a crônica Mal-estar de um anjo, na compilação organizada por

Teresa Montero, Joaquim Ferreira dos Santos resume o processo criador de Clarice

junto à esfera jornalística da seguinte forma:

Clarice, que já não é romancista típica, também se carregava de

estranhezas quando escrevia esses textos rotulados de ligeiros. [...]

Clarice é sempre a palavra inesperada, aquela que não serve para

espelhar uma coisa, uma cena de rua, essas aproximações que o

cronista gosta de ter com o cotidiano. Clarice jamais seria cotidiana.

Há sempre um milagre acontecendo. Ela quer, nos seus romances, nos

seus contos, em “Mal-estar de um anjo” [crônicas], remexer com as

sensações escondidas, desconfortos da alma que não chegam a ter

nome ainda, pois estão sendo anunciados pela primeira vez. [...]

Clarice deixa de lado o descritivo da crônica comum, e mergulha

fundo nas relações com o desconhecido (FERREIRA DOS SANTOS,

2012, p.71-72).

Assim posto, as crônicas publicadas por Clarice evidenciam uma escrita que

foge às regras do gênero jornalístico, algo comum ao estilo da autora, que em seu

processo criativo fez uso de uma linguagem única, transgressora e revitalizadora. O

“mergulho nas relações com o desconhecido”, isto é, uma abordagem própria ao estilo

clariciano, no enfoque recorrente à fala de Ferreira dos Santos, é tensionado em crônica

da própria autora com a seguinte explanação:

[Um amigo disse-me:] escreva qualquer coisa que lhe passe pela

cabeça, mesmo tolice, porque coisas sérias você já escreveu, e todos

os seus leitores hão de entender que sua crônica semanal é um modo

honesto de ganhar dinheiro. No entanto, por uma questão de

honestidade para com o jornal, que é bom, eu não quis escrever tolices

(LISPECTOR, 1999a, p. 113).

Outra vertente da produção jornalística de Clarice Lispector vinculada ao fato de

que, como cronista, a autora não escreveu banalidades, manifesta-se na preocupação que

seu público literário direcionava à romancista Clarice com a seguinte recomendação: Ao

escrever crônicas, “seja você mesma”.

Recomendação publicada por Clarice na crônica Perguntas grandes, com o

seguinte desdobramento:

entrevista, tal como fez com a crônica e praticamente todo tipo de escrita em que pôs as mãos. Tal é sua

atipicidade singular” (NASCIMENTO, 2012, p. 162, grifo nosso).

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Pessoas que são leitoras de meus livros parecem ter receio de que eu,

por estar escrevendo em jornal, faça o que se chama de concessões. E

muitas disseram: “Seja você mesma.” Um dia desses, ao ouvir um

“seja você mesma”, de repente senti-me entre perplexa e

desamparada. É que também de repente me vieram então perguntas

terríveis: quem sou eu? como sou? o que ser? quem sou realmente? e

eu sou? Mas eram perguntas maiores do que eu (LISPECTOR, 1999a,

p. 180).

As perguntas grandes pontuadas por Clarice Lispector na crônica transcrita neste

corpus evidenciam a preocupação central da narrativa clariciana, seja no âmbito

jornalístico, com seus desdobramentos nas entrevistas que Lispector realizou, seja na

produção dos seus romances, contos e textos inclassificáveis: o ser em constante

indagação a si próprio. Fato, por sua vez, amplamente tensionado na tessitura de Uma

aprendizagem ou o livro dos prazeres.

Os textos Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres e Água viva inserem-se no

período em que Clarice transitava entre a escrita jornalística e literária13

. Edgar Cézar

Nolasco analisa essas duas obras, sinalizando as crônicas reescritas pela escritora na

composição dos textos supracitados. Para o crítico, esse processo palimpséstico,

híbrido, instaura dentro da obra de Lispector “[...] uma prática inteligente da autora de

rearticular seus textos já-escritos e transformá-los em um outro, completamente novo e

diferente” (2001, p. 261).

Sônia Roncador, considerando esse processo de escrita, discorre que

a hibridização de gêneros narrativos, ou a inclusão de crônicas no

espaço da sua ficção literária [... apontam para] o desejo de [Clarice]

manter uma certa coerência estilística, e temática, em sua escrita.

Nesses textos [Uma aprendizagem e Água viva], a autora procura

adaptar suas crônicas às idiossincrasias de sua ficção – não somente

ficcionalizando suas crônicas (ou suprimindo delas o “eu”

autobiográfico), como também adaptando-as às singularidades de sua

prosa artística (RONCADOR, 2002, p. 63).

Reconhecendo a rearticulação proposta por Clarice na tessitura do romance Uma

aprendizagem, e indo a contrapelo do posicionamento vincado numa expressão

incondicional de Vilma Arêas, uma vez que a ensaísta conclui seu posicionamento

negativo acerca de Uma aprendizagem com o vocábulo “amém”, perpassado de

13

Além destes títulos, Uma aprendizagem e Água Viva, durante o período em que foi cronista do Jornal

do Brasil, Clarice escreveu a obra infantil A mulher que matou os peixes; e lançou as antologias

Felicidade Clandestina (1971) e A imitação da rosa (1973), que reuniam contos já publicados. É de 1967

a publicação de O mistério do coelho pensante.

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disforia, extensa parte da crítica aprecia O livro dos prazeres como um livro inovador

que se soma à produção sólida e pulsante de Clarice Lispector.

Lúcia Helena Viana, refletindo acerca das discussões formais atreladas aO livro

dos prazeres,

[...] como a desenvolvida por Vilma Arêas que o vê “um romance

falhado”, um texto polêmico quanto à composição formal, polêmico

quanto às questões ideológicas, apesar de não se lhe poder negar,

contudo, a condição de texto provocador, transgressor, que coloca em

jogo, como ela afirma, “um novo estatuto do texto literário (VIANNA,

1999, p. 157).

Considera que apesar da rica contribuição para fortuna crítica da autora, as

leituras de Arêas à época das décadas de 1980/1990 “não deram maior relevo à questão

crucial que sustenta esse livro, no qual se ousa desnudar de maneira radical o mundo da

subjetividade feminina” (VIANA, 1999, p. 157). Ainda segundo a pesquisadora,

Clarice ao dar vazão a uma parte do romanesco e da fantasia que

recobre as chamadas histórias de amor, que tanto atraem a afetividade

feminina, abre lugar para que a mulher se pense e pense no homem

como alteridades que precisam atravessar abismos para efetivarem a

possibilidade de um encontro (VIANNA, 1999, p. 167).

Gabriela Ruggiero Nor, refutando, também, o argumento de Uma aprendizagem

ser “um jogo claro com regras expostas”, aponta que a afirmação levantada por Arêas,

dentro do percurso narrativo de Clarice, é redutora e “por mais produtivas que sejam as

contribuições de especialistas para o entendimento de Uma aprendizagem, o incômodo

provocado pelo romance indica a permanência da crítica numa leitura centrada naquilo

que o livro apresenta de mais imediato” (2012, p.107). Isto é, “o suposto fio explícito da

trama”. Nor atém-se aos nomes dos protagonistas para reforçar a discussão levantada

em acerto por Dirce Cortês Ridel, já em 1970, acerca dos elementos paródicos tecidos

na narrativa, isto é, “há distanciamento e diferenças entre o enunciado representado das

personagens e o enunciado do autor”:

A seleção de grande parte das expressões, das construções, das

estruturas frasais são dadas do estilo da personagem Lóri, do seu

romantismo sentimental que vai se despojando dos chavões do

pieguismo ou os vai restaurando na plenitude vital, para atingir outros

lugares-comuns bíblicos que são redimensionados à proporção que a

personagem caminha na sua “aprendizagem” (RIDEL, 1970, p. 139).

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A partir das reflexões referentes ao teor paródico14

apresentadas por Cortês Ridel

e consideradas por Olga de Sá, Terezinha Goreti dos Santos, ao analisar Uma

aprendizagem ou o livro dos prazeres como romance de formação feminino15

, sinaliza

que diferente do Bildungsroman tradicional, em que a evolução do protagonista

(masculino) e do enredo se caracteriza linearmente, no romance de formação feminino

há momentos circulares, uma vez que o amadurecimento da personagem é consolidado

por epifanias, proporcionando à protagonista avanços e recuos no seu desenvolvimento.

Salienta que o

Bildungsroman é um gênero que dialoga intensamente com o meio

social; portanto, modifica-se com ele. Além disso, o processo de

formação será diferente conforme o protagonista ocupe um lugar mais

ou menos privilegiado dentro do seu grupo social (SANTOS, 2006, p.

43).

Portanto, um Bildunsgroman com protagonista feminino será, evidentemente,

diferente de um masculino.

Tendo por pressuposto teórico a contribuição de Mikhail Bakhtin (2011) acerca

do romance de formação, Goreti dos Santos postula que Uma aprendizagem ou o livro

dos prazeres “corresponde à narração do processo de amadurecimento – à passagem da

infância à adolescência, e desta à idade adulta” (SANTOS, 2006, p. 71).

A aprendizagem vivenciada por Lóri implica, justamente, a passagem de um

estado a outro.

Lúcia Pires, ao analisar a trajetória da heroína na obra de Clarice Lispector,

traçando um paralelo entre Joana, G.H. e Lóri, protagonistas de Perto do coração

selvagem, A paixão segundo G.H. e Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres,

respectivamente, enxerga na união das personagens claricianas a concretude do mito da

Psiqué.

Joana encarnaria o estágio inicial do mito da heroína [pois...] reage

diante da vida de forma muito mais apegada ao instinto do que ao

sentimento ou mesmo à razão. [...] Por força de sua condição heroica,

Joana perde o amor logo após encontrá-lo e é a nostalgia desse

encontro que a guiará pelo sofrimento e pela solidão que se seguirão

[...] G.H. é o mergulho mais profundo com os monstros primitivos,

com a privação, com o delírio. [...] G.H. representa o momento em

que a mulher descobre que, após enfrentar o vale sombrio da morte e

14

Lúcia Helena Vianna defende que a fina ironia e a paródia são recursos recorrentes na obra de Clarice

e, discordando das posições de Márcia Lígia Guidin, que em sua dissertação de mestrado os relega a um

plano secundário, pontua que estes são os principais mecanismos usados em Uma aprendizagem

(VIANNA, 1999, p. 158). 15

Goreti dos Santos dá sequência à pesquisa iniciada por Cristina Ferreira Pinto, que analisou Perto do

coração selvagem com a mesma temática formativa: romance de formação feminino.

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dele voltar vencedora, sua maior bravura será a desistência – por meio

dela atingirá a grande revelação. Cabe à frágil e incerta Lóri finalizar

esse percurso (PIRES, 2006, 19, 20).

Se atreladas ao mito, Joana vivencia a separação, G.H., a iniciação, e Lóri, o

retorno. Se Joana é aquela que se separa e G.H. é quem se inicia, Lóri é a que

retorna, e de diversas maneiras. De imediato, pode-se dizer que Lóri

retorna para Ulisses ao fim de Uma aprendizagem. Mas, antes de

retornar para Ulisses, Lóri retorna para Lóri como alguém que se

extraviou de si mesma, lançou-se à sua própria procura e se

reencontrou (PIRES, 2006, p. 220).

Na bem articulada hipótese da pesquisadora, tendo em vista que na trajetória de

Lorí a personagem evidencia momentos de separação, iniciação e retorno, isto é,

preenche em si os percursos atribuídos ao mito da Psiquê, “Lóri poderia ser a heroína

clariciana completa” (PIRES, 2006, p. 221),16

pois, “Lóri termina o que as outras duas

começaram e as três se unem em um só destino” (PIRES, 2006, p. 222).

Bernadete Grob-Lima, analisando o percurso das personagens de Clarice

Lispector, ressalta que em Uma aprendizagem o processo de amadurecimento se

consolida porque o amor é reconhecido em autonomia.

O estado de submissão de Lóri é um obstáculo à realização do amor.

Ulisses, o professor de filosofia, não deseja ter ao seu lado uma

mulher que aceita o comando masculino. Seu estado de submissão

intelectual com relação a Ulisses é uma manifestação dos arquétipos

do inconsciente coletivo, dos quais ela terá que se libertar para

assumir a vida amorosa. Ulisses espera, pacientemente, o processo de

personalização da consciência em Lóri; uma paciência vigilante, que

não “queima nenhuma etapa”. Ele respeita o tempo de sua amada,

fundamentando-se na sua própria experiência (GROB-LIMA, 2009, p.

62-63).

O processo de personalização da consciência, configurado no romance Uma

aprendizagem ou o livro dos prazeres no empenho de uma mulher para sobressair-se à

rotina e repetição imposta pelos atributos de uma sociedade patriarcal, dá-se por meio

da experiência amorosa, mas não tem aí seu início e/ou limite; em verdade, “o saber se

efetiva como suporte do prazer”:

Na concepção de Clarice, a realização amorosa depende também do

desempenho mental, expoente do amor autônomo, livre da linguagem

fossilizada da ancestralidade inspirada no código da ética social. Ela

atribui à idealização mútua, assumida corajosamente, um valor que

16

“Essa afirmação não é de forma alguma descabida, pois não há dúvidas de que o percurso de Lóri seja

heroico do começo ao fim e que abarque as três referidas fases: Lóri se separa de suas origens em

Campos, enfrenta sozinha as agruras de sua iniciação no Rio de Janeiro e retorna, pelos braços de Ulisses,

ao destino inicial do qual anteriormente se apartara, de casamento e filhos. Um ciclo completo” (PIRES,

2006, p. 221).

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engrandece o ser, deslocando-o dos pesares recalcados para uma vida

deliberadamente nova. Através da experiência amorosa, o homem

consegue aceitar-se tal como é, restaurar a linguagem que lhe pertence

e definir sua própria condição. Clarice considera que a experiência

amorosa gera a linguagem que nos anima a examinar as forças que

nos desfalecem quando ouvimos o chamamento de uma inesperada

aurora (GROB-LIMA, 2009, p. 214-215, grifos da autora).

Considerando o saber como meio de transporte para o prazer, isto é, “a

racionalidade não é uma condição oposta ao sentimento”, a protagonista de Uma

aprendizagem é observada por Solange Ribeiro de Oliveira como a única personagem

clariciana que, pouco à vontade num relacionamento com seu companheiro, consegue

vislumbrar em si uma espécie de “Eva futura”, isto é, uma mulher emancipada, em igual

poder de liberdade com seu par, que, antes de sua entrega amorosa/erótica, busca “a

conquista da própria identidade”, por meio da “personalização de sua consciência”.

Fato constatado pela crítica por meio da liberdade que o amor ocasiona aos heróis da

narrativa. “[...] um amor que não exclui, mas amplia a liberdade de ambos”

(OLIVEIRA, 1989, p. 101).

Compete elucidar que a astúcia de um leitor atuante, requisito indispensável,

como bem observa Romilda Mochiuti, terá o fito de delegar a ampliada liberdade

atribuída por Lispector aos seus protagonistas, enxergando não apenas o “desnudar da

intimidade profunda da mulher”, o que já é muito, mas, transcendendo-o, perceberá que

Uma aprendizagem “desnuda e reverte a intimidade profunda da estrutura romanesca,

parodiando ou fazendo uma leitura do avesso das convenções teóricas, do mito e da

mimesis” (MOCHIUTI, 2006, p. 45).

Mochiuti, considerando a maneira descontínua de narrar e a força poética

existente em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, evidencia “uma reinvenção

contínua de aprofundamento arrebatador na densidade psicológica e na estrutura

romanesca” (2006, p. 46, grifos da autora). Para a pesquisadora, a pontuação de abertura

e fechamento do romance que aqui é foco – uma ruptura visível a qualquer regra ou

convenção –, juntamente com a aparente falha estrutural da obra, que, em sua leitura,

denotam vazios e silêncios, lançam ao leitor uma participação efetiva dentro da

narrativa: “é a ele a quem cabe preencher os vazios, ou antes, dar sentido aos silêncios

que permeiam a obra” (2006, p. 45).

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Ao nomear Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, por meio de sua

pontuação perceptível, como um romance que é “o meio do caminho”, Mochiuti salienta

que:

A pontuação [...] incialmente é “singular” e significativa, como se

expressasse a cadência poética (travessões, dois-pontos etc.). Os

espaços em branco entre as linhas e os pensamentos cuidadosa e

pretensamente (des)ordenados servem como mecanismo para insinuar

hesitação, pausas, enfim, silêncios significativos que algumas vezes se

verbalizam através da inclusão – referências explícitas – ou exclusão –

referências implícitas (MOCHIUTI, 2006, p. 50).

É de Clarice, em crônica datada de quatro de fevereiro de 1968, Ao linotipista, a

advertência: “Não me corrija. A pontuação é a respiração da frase, e minha frase respira

assim. E se você me achar esquisita, respeite também. Até eu fui obrigada a me

respeitar” (LISPECTOR, 1999a, p. 74).

Constatando que a ampla significação da pontuação utilizada por Clarice no

livro de 1969 vai além da vírgula e dos dois-pontos utilizados na abertura e no

fechamento do romance, respectivamente, tendo seu desdobramento em vazios e

silêncios perpassados na materialidade de todo texto clariciano, Romilda Mochiuti

atribui silêncios, também, ao título duplo do romance: Uma aprendizagem / ou / O livro

dos prazeres, disjunção passível de ser interpretada como uma adivinhação, a resolução

de um enigma, ou ainda, a decisão de escolha por um dos semas, novamente atribuída

ao leitor.

Revisitando as contribuições de Benedito Nunes acerca da desigualdade rítmica,

isto é, “[... a] diferenciação de temporalidade, desde o passado remoto e impessoal, de

onde a personagem vem ao passado próximo de um acontecimento que a instala em sua

intimidade pessoal.” (NUNES, 1995, p. 80), Romilda postula que essa desigualdade

rítmica reflete uma manobra discursiva, viabilizando uma espécie de esfera lábil do jogo

discursivo da aprendizagem, por outro lado, essa cadência rítmica é a identidade da

narrativa que a faz destoar dos seus demais livros. Para a pesquisadora, essa esfera de

indecisão da personagem “é instaurada semanticamente na narrativa enviesada pelos

seus pensamentos, que, como outro ponto de desequilíbrio em convivência com a sua

percepção no começo do romance, viabilizada a aprendizagem ou a leitura do livro”

(MOCHIUTI, 2006, p. 54).

Destarte, Romilda Mochiuti atrela o aprendizado de Loreley não apenas a seu

percurso narrativo posto em letras claricianas, como também por meio da forma com

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que essa narrativa é estruturada, com suas pontuações (respirações), na sua configuração

de tempo e de espaço, pondo em evidência a participação do leitor em constante atuação

de significações.

Leyla Perrone Moisés observa que:

[...] enquanto escritora, Clarice não acredita nem um pouco na

capacidade da linguagem para dizer “a coisa”, para exprimir o ser,

para coincidir com o real. O que ela queria – ou melhor, “devia”, já

que escrever era, para ela, missão e condenação – era “pescar as

entrelinhas”. O que ela buscava não era da ordem da representação ou

da expressão. Ela operava emergências de real na linguagem,

urgências de ver. Resta ao leitor receber suas mensagens em branco, e

ouvir o que de essencial se diz em seus silêncios (PERRONE-

MOISÉS, 1990, p. 177).

Arnaldo Franco Júnior lê na poética clariciana, sobretudo após a publicação de

Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, a presença do recurso crítico kitsch e/ou

mau gosto. Segundo o pesquisador, a utilização deste recurso discursivo na obra de

Lispector contribui para a abertura de uma nova abordagem para com os textos

publicados após o lançamento de A paixão segundo G.H., enxergando um recurso

crítico da autora em articular sublime e banalidade na materialidade de suas produções.

A identificação dos elementos kitsch presentes na obra de Clarice

Lispector evidencia que [...] ela os utilizava como recurso discursivo

de caráter argumentativo e crítico. Tal fato abre uma nova perspectiva

de leitura dos textos da escritora, sobretudo aqueles que, num primeiro

momento, foram considerados por alguns como fracassos (FRANCO

JÚNIOR, 2000, p. 32, grifo nosso).

Ao analisar a carga do sentido mítico das personagens de Uma aprendizagem,

Vilma Arêas sinaliza que “os nomes dos protagonistas evocam imediatamente figuras

heroicas e proezas extraordinárias impregnadas de significado supostamente profundo,

que se chocam, entretanto, com as situações ligeiras e banais do romance” (2005, p. 32).

Choque que é instaurado quase em uníssono na escrita de Clarice, uma vez que a autora

se utiliza recorrentemente dos atributos do cotidiano como momento revelador para uma

experimentação maior.

A esse olhar apontado para o corriqueiro, àquilo que é simples e por isso mesmo

banalizado, discernindo-o como sumo de uma ascensão necessária, é lícito recorrer a um

excerto da compilação de escritos organizada por Olga Borelli, em que Clarice

Lispector revela seu posicionamento acerca do cotidiano: “[...] os fenômenos naturais

são os mais sobrenaturais de todos” (BORELLI, 1981, p. 56). Com efeito, Loreley, em

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sua travessia de aprendizagem do prazer, descobre o impossível no possível, o

extraordinário no ordinário.

Em sua pesquisa Do silêncio à liberdade: uma aprendizagem ou o livro dos

prazeres, Renata Tavares filia-se ao pensamento clariciano de que o cotidiano é

passaporte poético para uma nova experimentação de vida, com a seguinte aclaração:

“Impossível e extraordinário significam aqui a apropriação de si mesma. [...] Essa é a

grande experimentação do amor que Lóri viverá: infinito no finito e finito no infinito –

liberdade propriamente dita” (TAVARES, 2012, p. 22). E mais: “A realidade não é algo

estático a ser descoberto e dito em conceitos. É uma essencial disputa do limite no

ilimitado, do ilimitado no limite” (TAVARES, 2012, p. 63).

Centralizando as reformulações existentes no livro clariciano acerca da épica

homérica, bem como o mito da sereia, cabe arrazoar os significados dos nomes dos

protagonistas e seus desdobramentos. Ao jogar luz no nome em extensão de sua

personagem, Clarice acrescenta ao seu texto, intermediado por Ulisses (é Ulisses quem

conduz Lóri ao reconhecimento do seu nome)17

, o seu significado:

Loreley é o nome de um personagem lendário do folclore alemão,

cantado num belíssimo poema de Heine. A lenda diz que Loreley

seduzia os pescadores com seus cânticos e eles terminavam morrendo

no fundo do mar... (LISPECTOR, 1998d, p. 98).

A lenda germânica ligada ao nome de Loreley tem sua origem na região rochosa

do Reno e, portanto, uma das regiões de maior perigo e dificuldades para os barqueiros.

“Este perigo sempre suscitou fascinação e Loreley foi cantada em diversas versões. A

versão mencionada por Ulisses é a do poema “Die Loreley”, de Heine, a partir do qual

tenta explicar a beleza do seu nome” (TAVARES, 2012, p. 58).

Ao leitor atuante, fundamentado em Romilda Mochiuti, cabe o desdobramento

de significações acoplado ao nome de Loreley e de Ulisses, isto é, as possibilidades de

interpretações que o livro em questão evoca e permite para as nomenclaturas de suas

personagens.

Renata Tavares direciona um olhar mais atento às possibilidades interpretativas

que o nome da protagonista Loreley suscita. Sendo mítico, os significados se distendem

em intensidades. É possível agregar à protagonista lispectoriana “[...] significados 17

Carlos Mendes de Souza enxerga no nome de Lóri um anagrama. Segundo o pesquisador, “O nome de

Lucrécia [personagem do romance clariciano A cidade sitiada] deixa entrever um jogo com as letras do

nome “Clarice” que estão lá. Mais elaborado é o jogo que conduz o aproveitamento das letras que

formam o nome da protagonista de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. As letras mais repetidas

(lispector/clarice) levam-nos a Lóri. Loreley ou Lóri é claramente um anagrama” (SOUSA, 2012, p. 556).

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intensos relacionados à paixão, à sedução, ao perigo, à morte, à busca, ao surpreender-

se, ao render-se” (TAVARES, 2012, p. 57-58).

Sereia. Apaixonada. Perigosa. Mortal. Em busca de. Várias são as possibilidades

que definem Lóri em sua “travessia”, em sua pulsão de estar no mundo. Sobretudo, o

apelo intrínseco à condição humana de Loreley, “sua travessia não é outra coisa senão a

necessidade de corresponder ao apelo de Ser e não-Ser – o mistério de tudo. Lóri não

busca outra coisa senão transformar-se no que é, originando-se, como a vida, daquilo

que ainda não é” (TAVARES, 2012, p. 59).

Ulisses, como mediador desse processo de transformação e aprendizagem, não

por ser presunçoso, mas por já estar em travessia consigo mesmo, possibilita e direciona

a Lóri uma compreensão de ser e estar no mundo. E é refutando o entendimento crítico

de que Ulisses aguça um pedantismo em suas falas, que a pesquisadora complementa:

“Não se trata de uma inteligência de quem adquiriu uma longa experiência intelectual, e

sim de um trato inteligente com a vida, isto é, de uma postura de quem não tenta fugir

dela, mas desvendar seus enigmas” (TAVARES, 2012, p. 61).

Cabe pontuar que o percurso escolhido por Clarice para revelar o nome da

protagonista de sua obra A hora da estrela é semelhante ao que é feito em O livro dos

prazeres, isto é, a revelação do nome de Macabéa pinta-se aos olhos do leitor quando a

narrativa já está avançada em seu fluxo, nos momentos decisivos do texto. A inversão

encontrada no texto de 1977 é que a personagem Olímpico de Jesus, ao perguntar o

nome da datilógrafa, não compreendendo sua sonoridade, impele à personagem a

clarividência de sua nomenclatura. É Macabéa quem complementa a alcunha captada

pelo metalúrgico:

– E, se me permite, qual é mesmo a sua graça?

– Macabéa.

– Maca, o quê?

– Béa, foi ela obrigada a completar. (LISPECTOR, 1998b, p. 43).

Seguindo em sua narrativa, Macabéa diz a Olímpico que não sabe ao certo quem

é. Sabe que tem um nome, “Mas não sei o que está dentro do meu nome” (LISPECTOR,

1998, p. 56).

Ao contrário de Olímpico, Ulisses não só complementa o nome de Lóri, como a

indaga para além da nomenclatura, uma vez que na visão de mundo de Ulisses, em sua

travessia, conforme aponta Tavares, “O nome não basta: há um eu. Há um eu que é e

não é. Eu, portanto, é liminaridade” (TAVARES, 2012, p. 59).

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Nomear não consegue definir intimamente. É por isso que Macabéa, em diálogo

com Olímpico, põe em foco o desconhecimento do que está dentro do seu nome. É por

isso, também, que Clarice, já na primeira página de Uma aprendizagem ou o livro dos

prazeres, relata a solicitação que Ulisses fez à Lóri: “[...] ele dissera uma vez que queria

que ela, ao lhe perguntarem seu nome, não respondesse “Lóri” mas que pudesse

responder “meu nome é eu”, pois teu nome, dissera ele, é um eu” (LISPECTOR, 1998d,

p. 13).

Assim como Loreley, o nome de Ulisses possui seus desdobramentos. Evocada à

épica homérica, a viagem mítica de Ulisses, galardoada com final feliz, é distinguida

por fortes tempestades que quebram navios, por perigosos acidentes, por monstros

marinhos que ameaçam naufragar as frágeis embarcações e por sereias que, com seus

cantos de sedução, atraem os marinhos para a ruína final, o naufrágio. O Ulisses de

Clarice, na imagem focada por Tavares, “é o barqueiro heroico, capaz de resistir ao

canto de qualquer sereia” (TAVARES, 2012, p. 63).

Por já estar na travessia, Ulisses é o mentor da aprendizagem, é aquele que

consegue desbravar os mares, sublimar suas provações, contornar os apelos de sedução

de Loreley, visando à sua chegada ao litoral acolhedor de sua terra natal.

Inegavelmente, a figura de Ulisses remete à travessia, à busca, ao

retorno para a casa, para a Terra. Remete ainda à fidelidade de nunca

desistir deste retorno. O Ulisses de Clarice demonstra, na busca do

amor, a mesma força e persistência do Ulisses homérico: o

cumprimento heroico de um destino humano (TAVARES, 2012, p.

62).

Ulisses é o mentor que, mesmo embriagado, desvia-se da sedução imposta por

Lóri: “Já tinha sido desejada por outros homens mas era novo Ulisses querendo-a e

esperando com paciência – mesmo quando estava embriagado, o que não lhe tirava o

controle” (LISPECTOR, 1998, p. 41).

Como exemplificado, o episódio mítico de ligação entre os protagonistas

claricianos é o da passagem de Ulisses pelas sereias, na Odisseia:

O herói manda tapar com cera os ouvidos de todos os seus

marinheiros, sendo, porém, o único que escuta o seu canto. Para não

se render, amarra-se ao mastro do navio e manda que os marinheiros

remem o mais rápido possível. [...] Escutar, aqui, é a questão

(TAVARES, 2012, p. 62).

A personagem de Clarice escuta a linguagem verbal e a não verbal evidenciadas

por Loreley: sons e silêncios. A Ulisses compete direcioná-la, em sua travessia, à escuta

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de si mesma. Sem máscaras, sem maquiagens, sem aparatos de sedução física. E o faz,

esperando:

Foi apesar de18

que parei na rua e fiquei olhando para você enquanto

você esperava um táxi. E desde logo desejando você, esse teu corpo

que nem sequer é bonito, mas é o corpo que eu quero. Mas quero

inteira, com a alma também. Por isso [...] esperarei quanto tempo for

preciso (LISPECTOR, 1998d, p. 26).

Aqui há uma inversão no mito, um desdobramento de significações. Na épica

homérica, é Penélope quem aguarda o retorno de Ulisses, tecendo e destecendo uma

mortalha para seu sogro, na tentativa de murar os gritos de lascívia de seus pretendentes.

Cabe o detalhar de seu nome, que, como clareia Adélia de Meneses:

Penélope: aquela que tece. Seu próprio nome (grego: Penelopéia)

revela sua vocação: ‘pene’, fio de tecelagem e, por extensão, trama,

tecido (daí o nosso pano, do latim, ‘pannus’). E o substantivo grego

“penelope” significa dor. Tudo se explica quando pensamos que ela

vivia na nostalgia (= dor do retorno: ‘nostos’ = volta, ‘algia’ = dor) de

Ulisses, e que o pano que ela tecia (que tem a ver com a morte: era

uma mortalha para Laertes, o pai de seu marido) era a garantia de sua

fidelidade, como que vedava o acesso de sua sexualidade aos

pretendentes que a assediavam. Fidelidade e sedução articuladas

(MENESES apud MOCHIUTI, 2006, p. 63).

Sob esta perspectiva, quem tece, na narrativa clariciana, é Ulisses. Tece

esperando a aprendizagem de Loreley, sua travessia por entre as “trevas geladas”

(LISPECTOR, 1998d, p.45) que a protagonista vivencia no decorrer narrativo.

Enquanto espera, tece uma rede discursiva que mortifica – desconstrói – as convenções

sociais machistas de submissão feminina em que Lóri se encontra inserida, submissão

que é um obstáculo à concretização da aprendizagem.

Ainda sob essa perspectiva de inversão, contrariando a lenda alemã em que a

sereia detém para si o aspecto da sedução, a narrativa clariciana transfere a ação de

seduzir ao professor de Filosofia: “[...] quem seduz você sou eu. Sei, sei que você se

enfeita para mim, mas isso já é porque eu seduzo você” (LISPECTOR, 1998d, p. 98).

Assim posto, os mitos de Ulisses, de Penélope e das Sereias, fabulados na

Odisseia, são revisitados em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, mantendo ora

os aspectos comuns à narrativa homérica, ora construindo novos sentidos na prosa de

18

No processo criativo de Clarice Lispector, a locução conjuntiva apesar de tem a sua função sintática

inteiramente subvertida pela cadência poética da autora.

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Clarice19

; com isso, comungam do compasso poético lispectoriano, apontado na obra

por meio de vírgula, dois-pontos, orações iniciadas com letras minúsculas, frases sem

pontos finais, junção de crônicas em seu entrecho narrativo, silêncios estruturais, dentre

outros.

19

A inversão de papéis, criticamente incutida no romance Uma aprendizagem, rompe com o clichê

literário, pedindo ao leitor-atuante o esvaziamento do senso-comum, materializando no texto tensão e

expectativa.

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CAPÍTULO 2: UMA APRENDIZAGEM CONSTANTE: A ESCRITA

FORMATIVA DE CLARICE LISPECTOR

Demoro a aprender que a linha reta é

puro desconforto.

Sou curva, mista e quebrada,

sou humana.

Adélia Prado, Miserere

Conforme especificado no decorrer do primeiro capítulo, concernente à crítica

acerca de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, o romance publicado em 1969,

dentro do conjunto da obra de Clarice Lispector, evoca em análises literárias alacridades

e contrariedades, isto é, o romance clariciano que narra o desenvolvimento da

personagem Loreley desperta diversas apreciações favorecendo ou não sua concepção.

Atendo-se a essa questão no lineamento crítico levantado na análise inicial desta

dissertação, é possível perfilhar o pensamento daqueles que leram O livro dos prazeres

direcionando-o à definição de literatura “malograda”, uma abordagem “apressada” para

com os atributos poéticos vislumbrados na obra em questão.

Contrapelo a este posicionamento, nomes notáveis vinculados à fortuna crítica

de Lispector contemplam no texto Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres uma

concepção de escrita inerente à poética lispectoriana, um livro que, diante de todo o

processo escritural vislumbrado por Clarice, une-se à somatória da novidade que o

nome da autora representa na literatura nacional.

Olga de Sá, Benedito Nunes, Dirce Cortês Ridel, Nádia Battella Gotlib são

exemplos dos que enxergaram no livro Uma aprendizagem, entre as décadas de 1980 a

1990, “um romance dos romances”, isto é, O livro dos prazeres agrega traços de todos

os romances até então publicados por Clarice: uma escrita constante em inovação20

. Ao

lado destes pesquisadores, nos anos 2000 até o presente momento, encontram-se

20

A Coleção Folha: grandes nomes da literatura, lançada em abril de 2016, dentre os vinte e oito

escritores que a integram, a exemplo de Marcel Proust, Lev Tolstói, Virginia Woolf, Honoré de Balzac,

Alice Munro, Machado de Assis, Herta Muller, elegeu o romance Uma aprendizagem ou o livro dos

prazeres, para compor sua coleção. Manuel da Costa Pinto, acerca dessa escolha, esclarece: “No caso de

autores de língua portuguesa, a coleção inclui [...] obras que expressam os desvãos, os abismos e as

inquietações do sujeito moderno [como] os livros de duas das mais importantes escritoras brasileiras:

Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, de Clarice Lispector, e A obscena senhora D, de Hilda Hist”

(PINTO, 2016, p. 54, 55).

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Terezinha Goreti dos Santos, Romilda Mochiuti, Renata Tavares, Lúcia Helena Vianna,

Lúcia Pires, para citar alguns exemplos.

Destarte, a apreciação direcionada à história clariciana que narra o

desenvolvimento de Loreley à “personalização de sua consciência” reafirma a qualidade

ficcional que é própria ao universo de Clarice Lispector.

Qualidade observada também pela cantora brasileira Zélia Duncan21

que, ao

estrear uma coluna no jornal O Globo, em meados de 2015, com a crônica “Sou leitora:

desde criança encantada com a mágica das palavras.”, evidencia a surpresa e o fascínio

que Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres lhe proporcionou:

Escrever é uma farsa. Todos sabem e assumem seus papéis, como tem

que ser. Desconfiei disso ao desabar pra dentro de um livro de Clarice

Lispector e me deparar com uma vírgula, antes de qualquer palavra.

Como assim? A história começou, antes que eu abrisse o livro?

Ninguém me esperou? Depois entendi que era uma quebra

fundamental na minha inocência de leitora. Tudo já estava

acontecendo, antes de se revelar. Claro, claríssimo, Clarice? Mas

houve ainda o golpe fatal. Na última página do mesmo livro, depois da

última palavra, lá estavam eles, dois-pontos! Mas o começo me

ensinou a aceitar o fim. Eis a minha participação. O deleite daquela

leitura, enquanto ela durou, contida entre pontuações, que indicavam

continuidade e nunca conclusão, me levou por caminhos que aceito e

procuro. Caminhos sem fim (DUNCAN, 2015).

A pontuação, não apenas em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, mas

em todo o percurso escritural de Clarice Lispector, numa poética de “respiração da

frase”, aponta para uma quebra nos conceitos normativos da sintaxe e da sinalética, e dá

ao leitor uma narrativa com significados que se ampliam antes e depois da materialidade

do texto.

Atendo-se às significações marcadas e sugeridas no texto em questão, a análise

doravante dará espaço às possíveis interpretações das epígrafes materializadas na

tessitura de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, e, posteriormente, se pautará no

conceito de Bildungsroman, o romance de formação alemão. Acerca deste último

intento, faz-se necessária a compreensão do surgimento do conceito contextualizado à

Alemanha do final do século XVIII até os desdobramentos por que essa narrativa

passou durante os mais de duzentos anos de seu surgimento.

21

O também cantor Caetano Veloso, ao escrever acerca da crônica clariciana “Mineirinho” menciona que,

seu filho, “Moreno, quando tinha 19 anos, leu para mim, com lágrimas nos olhos, longos trechos de Uma

aprendizagem ou o livro dos prazeres. Em todos esses reencontros [com a escrita de Clarice], sempre o

fluxo da vida aflorando por entre as palavras, [...] com intensidade assustadora.” (VELOSO, 2010, p. 26).

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39

A análise, por sua vez, focalizará a constituição da heroína Loreley por meio dos

recursos discursivos propostos por Mikhail Bakhtin, na obra Problemas da poética de

Dostoievski, ou seja, os mecanismos de construção da autoconsciência da personagem

tais como o diálogo socrático e solilóquio, tendo por contribuições, ainda, as pesquisas

promovidas por Arnaldo Franco Júnior em relação ao kitsch na obra de Clarice

Lispector, bem como as observações de Lúcia Helena Vianna acerca da ironia,

compreendidos, ambos, o kitsch e a ironia, como recursos discursivos recorrentes ao

romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.

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40

2.1 AS EPÍGRAFES DE UMA APRENDIZAGEM

Na obra Paratextos editoriais, o crítico literário francês Gérard Genette

empenha-se na explanação do paratexto. Segundo o teórico, desde a invenção do livro

moderno, as obras literárias nunca se apresentam como um texto neutro, nu, sem o

reforço e o acompanhamento de certo número de produções: vem cercado de um

aparato que o completa e protege, impondo-lhe um modo de usar e uma interpretação

congruentes com o propósito do escritor.

Dessa forma, a apresentação editorial, nome do autor, títulos, dedicatórias,

epígrafes, prefácios, notas, dentre outros, para além de regularem a leitura de um livro,

complementam o sentido do texto literário22

, prolongando-o satisfatoriamente.

Segundo o crítico, paratexto “é aquilo por meio de que um texto se torna livro e

se propõe como tal a seus leitores [...] Mais do que um limite ou uma fronteira estanque,

trata-se aqui de um limiar, [...] de um “vestíbulo”, que oferece a cada um a possibilidade

de entrar ou de retroceder” (GENETTE, 2009, p. 9, 10, grifo do autor).

Dentre as possibilidades analíticas dos paratextos existentes na obra Uma

aprendizagem ou o livro dos prazeres, a atenção neste estudo confluirá às três

epígrafes23

escolhidas por Clarice Lispector para acompanhar o processo de

desenvolvimento de suas personagens: trio de citações que possibilitam ao leitor24

, além

de uma observação quanto ao repertório de leitura – cultural e literário – da escritora,

uma abordagem concisa e, ao mesmo tempo, ampla de significações do texto principal,

isto é, O livro dos prazeres.

A definição, grosso modo, de Genette para o paratexto epígrafe vai de encontro

às interpretações comuns do vocábulo: “uma citação colocada em enxergo, em

destaque, geralmente no início de obra ou de parte de obra: “em destaque” significa

literalmente fora da obra, o que é uma coisa exagerada” (GENETTE, 2009, p. 131, grifo

do autor). O vocábulo em destaque, fora, é o termo ressignificado por Genette. Para o

crítico, a epígrafe, isto é, “o enxergo é mais uma borda da obra, geralmente mais perto

do texto” (GENETTE, 2009, p. 131, grifo do autor).

22

“Digo textos, e não somente obras, no sentido “nobre” da palavra: pois a necessidade de um paratexto

impõe-se a toda espécie de livro, mesmo que não tenha nenhuma intenção estética, ainda que nosso

estudo se limite aqui ao paratexto das obras literárias” (GENETTE, 2009, p. 11). 23

A epígrafe tem a função de acompanhar o texto para projetar nele formas de leitura, mas a epígrafe

pode também funcionar como comentário do texto, inscrevendo-se numa tradição de paratextos

enigmáticos nos quais a significação só se esclarece ou se confirma pela leitura do texto. 24

Estando coligada ao texto principal, “epigrafar é sempre um gesto mudo cuja interpretação fica a cargo

do leitor” (GENETTE, 2009, p. 141).

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Desta forma, a análise das epígrafes do sexto romance de Clarice Lispector,

consideradas neste estudo como borda do romance, são paratextos “em estado de

dicionário” (DRUMMOND, 2012, p. 12), ou seja, delegam interpretações ao leitor25

para uma compreensão ainda mais rica da produção articulada da escritora brasileira.

APOCALIPSE

Três são as epígrafes escolhidas por Clarice Lispector para, possivelmente,

nortear a compreensão de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.

A primeira é uma referência explícita ao texto cristão oriundo do livro escrito

pelo apóstolo João, intitulado Apocalipse, isto é, O livro da revelação.

Depois disto olhei, e eis que vi uma porta aberta no céu, e a primeira

voz que ouvi era como a trombeta que falava comigo, dizendo: sobe

aqui, e mostrar-te-ei as coisas que devem acontecer depois destas.

APOCALIPSE, IV, 1.

A explanação recorrente ao nome Apocalipse, encontrada na Bíblia Sagrada

King James, assevera que:

A expressão grega apokalipsis “revelação”, significa literalmente

“tirar o manto”, isto é, “descobrir”, “tornar claro algo obscuro”, “à luz

da compreensão”. Aqui a mensagem (revelação) vem de Cristo, por

meio de um “anjo intermediário”, e é ministrada a João através de

símbolos, que é o sentido do termo grego semaiño “significar”,

“expressar” (ensinar por simbologia). Essa compreensão nos leva à

chave da interpretação geral deste livro: Ensinamento simbólico

(BÍBLIA SAGRADA, 2012, p. 2467).

Ao nome Apocalipse, além de revelação, é possível atrelar o sentido de profecia,

discurso assustador, nebuloso, obscuro, uma vez que, com sua simbologia26

, seus

desdobramentos acerca dos últimos dias se tornam incontáveis.

A finalidade recorrente ao livro cristão é alertar os crédulos acerca das

dificuldades que a comunidade cristã enfrentaria naquele tempo, bem como incentivá-

25

“Chega mais perto e contempla as palavras. / Cada uma / tem mil faces secretas sob a forma neutra”

(DRUMMOND, 2012, p. 12). 26

Como na época de João, as autoridades políticas e militares dominantes começavam a impor o chamado

“culto de adoração ao imperador”, o apóstolo sente a necessidade vital de encorajar os cristãos a se

manterem fiéis e leais a Jesus Cristo. Por vários motivos, incluindo o cultural (o estilo literário peculiar),

o místico (a obra é fruto de uma experiência de êxtase espiritual), e o da segurança (era fundamental que a

mensagem chegasse às igrejas sem a censura ou o bloqueio do exército romano). Por estas razões o

discurso está aqui delineado sob símbolos, metáforas e ilustrações diversas.

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los a guardar sua fé em Cristo Jesus, resistindo às provações terrenas e mantendo firme

a esperança de que o retorno27

messiânico, a segunda vinda de Cristo, não tardaria.28

É

válido clarear que, a volta de Cristo, pautada no livro de João, engloba a profecia de,

após o cumprimento das perseguições e catástrofes apocalípticas, “[...] novo céu e nova

terra” (APOCALIPSE, 21: 1), isto é, uma renovação a toda existência.

Como supramencionado, o mito de Ulisses e Penélope, na Odisseia, tem em seu

fluxo e contexto o retorno do herói a Ítaca, isto é, ao reencontro com sua esposa.

Penélope, esperançosa para rever Ulisses, tece e destece a mortalha de seu sogro,

resistindo aos apelos de seus pretendentes.

As palavras postas em negrito evidenciam uma correlação de sentidos às três

narrativas – homérica, bíblica e clariciana –, a resistência (provação) desencadeada no

retorno (recompensa).

Focalizando as escrituras reveladas ao apóstolo João, é válido destacar dois

versos que são emblemáticos no texto sagrado: “Quem tem ouvidos ouça o que o

Espírito diz às igrejas” (APOCALIPSE 2: 11) e “Quem vencer herdará todas as coisas”

(APOCALIPSE 21: 7).

Um verso do Apocalipse que contém as duas expressões, como impulso

encorajador aos cristãos que sofreriam perseguições, é distendido na profecia

retransmitida por João da seguinte forma: “Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz

às igrejas: Ao que vencer darei eu de comer do maná escondido, e dar-lhe-ei uma pedra

branca, e na pedra um novo nome escrito, o qual ninguém conhece senão aquele que o

recebe” (APOCALIPSE 2: 17, grifo nosso).

O livro da revelação, em síntese, pressupõe em seu discurso uma ordem à Igreja

Primitiva: ouvir.

Como já mencionado, Ulisses é aquele que terá que ouvir tanto o canto de

sedução instaurado por Lóri, como o seu silêncio. Ulisses ouve e possibilita, como

mentor, um suporte necessário à aprendizagem de Loreley, e esta também terá que se

ouvir. Ouvir sua condição humana. “Deus ouve, mas eu me ouvirei?” (LISPECTOR,

1998d, p. 378), mas compete a Ulisses, inicialmente, a dimensão profética atrelada ao

27

“A palavra “apocalipse” tornou-se um termo técnico para a igreja primitiva e passou a designar a

manifestação gloriosa de Jesus Cristo, o Messias, no final dos tempos. Portanto, o “apocalipse” é a

“revelação” da pessoa do Senhor Jesus Cristo como Redentor do mundo e conquistador único e absoluto

do Mal em todas as suas formas e expressões” (BÍBLIA SAGRADA, 2012, p. 2463). 28

É válido marcar que os cristãos primitivos, aguardavam a volta de Cristo naquela época, fato reiterado

por João à igreja em Filadélfia: “Eis que venho sem demora; guarda o que tens, para que ninguém tome a

tua coroa” (APOCALIPSE 3:11).

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novo nome que, após sua aprendizagem, a protagonista Lóri herdará. É por isso que no

parágrafo de abertura de Uma aprendizagem a busca de uma nova identidade é posta em

evidência: “Ele [Ulisses] dissera uma vez que queria que ela, ao lhe perguntarem seu

nome, não respondesse ‘Lóri’ mas que pudesse responder ‘meu nome é eu’, pois teu

nome, dissera ele, é um eu” (LISPECTOR, 1998d, p. 13).

E é no terceiro parágrafo do romance que a busca de um novo nome, em um

sentido profético, é claramente aludida ao divino: “Deitada na palma transparente da

mão de Deus, não Lóri mas o seu nome secreto que ela por enquanto não podia

usufruir” (LISPECTOR, 1998d, p. 14).

Aqui, o “por enquanto” pode ser considerado o meio do caminho da

aprendizagem, que é a forma como o romance clariciano é estruturado, e é somente após

o desfecho simbólico do romance que, se relacionado ao sentido de “novo céu e nova

terra”, a expressão apocalíptica tem seu significado: “as coisas que devem acontecer

depois destas”.

Por consequente, no processo narrativo de Uma aprendizagem, da vírgula aos

dois-pontos, Ulisses terá que silenciar sua voz professoral e ouvir. Loreley silenciará

seu canto e voz, despojando-se de “roupas” e “maquiagens” para iniciar um novo ciclo

de vida.

Ouvir pressupõe um impulso para que a protagonista consiga se reconhecer não

mais no nome contido no seu registro de nascimento, Loreley, mas ao que está dentro

do seu nome, ao “eu” que requer passagem.

Olga de Sá, ao analisar Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, marca,

justamente, a audição apontada a Ulisses como passaporte para uma nova possibilidade

de vida:

[...] deixando suas máscaras de pintura, ela [Lóri] acede à via do

conhecimento amoroso, corpo a corpo com a vida. Ulisses, o

professor, cala a sua voz didática e se rende ao silêncio das palavras,

para esperar o amadurecimento das estações. São elas que marcam o

tempo vivo da aprendizagem (SÁ, 1993a, p. 336).

É com teor profético que Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres tem seu

desfecho. Os dois-pontos, considerados uma sequência na narrativa, compostos de

significados delegados a um leitor atuante, evidenciam, também, “as coisas que devem

acontecer depois destas”, isto é, possivelmente, “novo céu e nova terra”, uma novidade

de vida condicionada à audição.

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AUGUSTO DOS ANJOS

A segunda epígrafe marca uma estrofe do poema “Monólogo de uma sombra”,

do poeta paraibano Augusto dos Anjos29

. Clarice reformula o poema em Uma

aprendizagem ou o livro dos prazeres, isto é, transcreve o texto de forma a eliminar

versos inteiros da estrofe escolhida, bem como palavras dos versos acolhidos.

Evidentemente, essa reformulação acarreta um novo significado poético que vai de

encontro ao postulado pelo poeta. Se no poeta a morte é finitude, em Clarice a morte se

reveste de uma possível novidade de vida. No texto clariciano, a estrofe que, em seu

registro oficial tem seis versos, aparece com apenas três:

Provo

Que a mais alta expressão da dor

Consiste essencialmente na alegria

Já o texto fonte, que abre o único livro de Augusto dos Anjos, Eu, tem sua

estrofe com o seguinte registro:

Provo desta maneira ao mundo odiento

Pelas grandes razões do sentimento,

Sem os métodos da abstrusa ciência fria

E os trovões gritadores da dialética,

Que a mais alta expressão da dor estética

Consiste essencialmente na alegria (ANJOS, 2016, p. 90).

Um dos temas recorrentes ao poeta paraibano Augusto dos Anjos é a

degradação, a precariedade humana. Em seus poemas, a linguagem é trabalhada dando

vazão a um pessimismo extremo desencadeado em uma musicalidade poética, atributos

que corroboram para uma nova expressividade na poesia brasileira.

Alfredo Bosi pontua que Augusto dos Anjos “[...] entre Cruz e Sousa e os

modernistas”, é “o mais original dos poetas brasileiros” (BOSI, 2006, p. 287). Para o

crítico, essa posição “deve-se ao caráter original, paradoxal, até mesmo chocante, da sua

linguagem, tecida de vocábulos esdrúxulos e animada de virulência pessimista sem

igual em nossas letras” (BOSI, 2006, p. 288). Pessimismo, de acordo com o

29

Augusto Carvalho Rodrigues dos Anjos (1884-1914).

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pesquisador, semelhante ao do filósofo alemão Arthur Schopenhauer30

“[...] que

identifica na vontade-de-viver a raiz de todas as dores” (BOSI, 2006, p. 289).

A ficção de Clarice Lispector ora adere, ora se contrapõe ao pensamento de

Schopenhauer31

. A pesquisadora Bernadete Grob-Lima, ao estabelecer vínculos entre o

pensamento do filósofo alemão com os textos claricianos, esclarece:

[... A ficção clariciana] concorda com a premissa do filósofo de que

não existimos para sermos felizes, o máximo “bem-estar” que

podemos alcançar na vida é o de contemplar as experiências superadas

com o poder de nossas próprias forças. [...] Para Clarice, superar as

adversidades da vida com o poder de suas forças é um privilégio

daqueles que sabem aplicá-las adequadamente. Isso implica o domínio

da linguagem como meio de persuasão das potências transformadoras

do homem (GROB-LIMA, 2009, p. 229-230).

Com efeito, as personagens de Clarice Lispector “[...] vivenciam o bem-estar no

âmbito da luta; o verdadeiro prazer está em sentir o poder de suas forças, empregando

todos os meios para encontrar a situação apropriada ao exercício delas” (GROB-LIMA,

2009, p. 169). Clarice atribui à protagonista de Uma aprendizagem a necessidade de,

por meio de suas angústias, enfrentar a dor para concretude de uma nova possibilidade

de vida. O contraste ao poema de Augusto dos Anjos e ao pensamento filosófico de

Schopenhauer se dá porque em Clarice o enfrentamento da dor ocasiona um novo pulsar

de vida. Sob essa premissa, a recusa da dor, em Lóri, ocasiona a impossibilidade da

aprendizagem. “Pensou: eu nunca tive a minha dor. Por falta de grandeza, sofrerá

suportavelmente tudo o que nela havia a sofrer. Mas agora sozinha. [...] Angústia

também era o medo de sentir enfim a dor” (LISPECTOR, 1998d, p. 66-67).

Lóri é a personagem de Clarice que “[...] reunia toda a sua força para parar a dor.

Que dor era? A de existir? A de pertencer a alguma coisa desconhecida? A de ter

nascido?” (LISPECTOR, 1998, p. 49). Indagações narrativas que culminam num

excerto que é ponto chave para compreender a hesitação da personagem: “A vida inteira

tomara cuidado em não ser grande dentro de si para não ter dor” (LISPECTOR, 1998d,

p. 56).

30

Em sua teoria, Schopenhauer atribui o sofrimento humano à incessante vontade de vida, ao desejo que,

uma vez satisfeito, apenas resultará em novos desejos. É a falta do objeto de desejo a causa das dores

humanas. Definida a vontade como força metafísica e irresistível, a controlar os impulsos sexuais e as

outras manifestações de vida e de morte, no mundo orgânico e inorgânico, o homem aparece como

simples joguete manipulado por forças perversas, capazes de submetê-lo aos seus caprichos. É esse o

grande drama da existência (MACEDO, 2006, p. 60). 31

[... Schopenhauer] não crê na regeneração de uma índole corrompida. Em contrapartida, Clarice

descobre que a linguagem dos desejos que animam o psiquismo humano empreende mudanças no querer,

despertando no ser um desejo de criar nova vida (GROB-LIMA, 2009, p. 230).

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É possível estabelecer um contraponto entre as epígrafes até aqui analisadas. Se

na primeira o tema apocalipse, revelação, é pano de fundo, na segunda, a escuridão tem

seu espaço perceptível. Em “Monólogo de uma sombra”, a escuridão (sombra) é

acolhida de forma a marcar a degradação física humana, abrindo o livro do poeta

paraibano para uma abordagem que tem como tema uma nova expressão estética

condicionada à dor, à morte, ao universo das sombras.

“Monólogo de uma sombra”, como já referido em seu título, tem como voz

poética as ponderações pessimistas de uma sombra acerca da degradação humana, a

decomposição da matéria. O início do poema é grafado com aspas, pontuação que terá

seu desfecho somente na vigésima-oitava estrofe, o que confere ao discurso do eu-lírico,

propriamente dito, apenas as três estrofes finais do poema.

Cabe evidenciar que Clarice Lispector recria significados ao marcar em sua

epígrafe, reformulado, o texto de Augusto dos Anjos: “A mais alta expressão da dor

estética”, tornar-se “A mais alta expressão da dor”. A retirada do sema “estética”

possibilita uma amplitude de significados correlacionados ao sofrimento. Sendo assim,

a dor em Clarice não é restrita aos atributos artísticos, mas tem seus desdobramentos no

ser humano.

Augusto dos Anjos, como considerado nesta dissertação, postula um pessimismo

chocante em seus poemas, entretanto, “Monólogo de uma sombra”, cabe frisar, abre

passagem para uma expressão otimista sujeita à dor estética, isto é, à arte.

Clarice, em sentido contrário de uma sombria articulação pessimista, que tem

como negativa a desarticulação humana para com a vida, isto é, ao fluxo contínuo de

satisfações versus insatisfações, pontua na voz de Ulisses o significado atrelado à

reformulação do poema de Augusto dos Anjos:

Na desarticulação haverá um choque entre você e a realidade, é

preferível estar preparada para isso, Lóri, a verdade é que estou

contando a você parte do meu caminho já percorrido. Nos piores

momentos, lembre-se: quem é capaz de sofrer intensamente, também

pode ser capaz de intensa alegria (LISPECTOR, 1998d, p. 98-99).

A desarticulação, processo comum às personagens de Clarice Lispector,

possibilita a experiência epifânica, a passagem de um estado ao outro. É por isso que ao

final do livro, após a entrega mútua corporal dos protagonistas, o sofrimento expresso

na narrativa não é o da dor, mas as personagens sofrem dessa vez “de vida e de amor”

(LISPECTOR, 1998d, p. 159). Um novo processo é instaurado.

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PAUL CLAUDEL

A terceira epígrafe é marcada em itálico na língua francesa e tem em seu registro

a informação de que sua autoria é atribuída ao Oratório de Paul Claudel para a música

de Honneger, Jeanne d’Arc au bucher.32

Segue inscrição:

Jeanne: Je ne veux pas mourir! J’ai peur!

...

Il y a la joie qui est la plus forte!

Pela tradução33

da epígrafe, pode-se correlacionar o texto de Claudel à

reformulação do poema de Augusto dos Anjos marcada por Clarice, isto é, por meio do

sofrimento, enfrentando-o, nasce a possibilidade de um novo ciclo de vida.

Joana: Eu não quero morrer! Eu tenho medo!

...

Há a alegria que é a mais forte!

É possível sintetizar a complexa, simbólica e mitológica figura histórica de

Joana d’Arc da seguinte maneira: Joana34

, ainda criança, ouvia vozes que a direcionam

à missão de libertar a França dos invasores ingleses; embora fosse mulher, liderou um

exército, coroou o seu rei e teve um destino trágico: foi queimada viva como herege.35

Ao registrar em seu texto como epígrafe três versos do Oratório dramático de

Paul Claudel, que principia a história de Joana d’Arc pelo fim, isto é, da morte para a

vida, Clarice acolhe frases soltas do drama para formar sua citação. Embora os três

32

Joana d’Arc entre as chamas. 33

A tradução da obra de Claudel no Brasil é atribuída a Dom Marcos Barbosa. O tradutor, em seu

prefácio à edição brasileira, afirma que Joana d’Arc “não é apenas um episódio francês; ela pertence

também à história da Igreja e do mundo.” (BARBOSA apud CLAUDEL, 1963, p. 9). Ao sintetizar a

biografia de Joana d’Arc, Barbosa define sua vivência como “[...] a epopeia da pastorinha que arranca aos

invasores ingleses várias cidades da França, leva o Delfim a Rheims para ser sagrado, e morre, afinal, nas

mãos dos ingleses e seus aliados, queimada como feiticeira” (BARBOSA apud CLAUDEL, 1963, p. 9-

10). 34 Sublinhe-se que a primeira heroína de Clarice Lispector, apresentada em Perto do coração selvagem, é

nomeada Joana. Olga de Sá cria um vínculo comparativo entre a Joana de Clarice e a Santa Joana. Após

analisar a carga semântica das palavras que designam os quatros elementos no romance inaugural

clariciano (terra, fogo, ar e água), a crítica compara a heroína de Clarice Lispector à Joana d’Arc, ambas

ligadas à audição: “Joana d’Arc ouvia vozes, que não entendia e guiaram seu destino. Joana d’Arc, por

que não? Uma Joana d’Arc da ficção, atormentada pelas próprias fantasias, invenções de palavras, de

vozes, que foram seu brinquedo desde a infância” (SÁ, 1993a, 231). 35 Cabe a citação da leitura de Affonso Romano de Sant’Anna acerca do processo criativo de Clarice

Lispector: “Clarice, aquela que se deixou incendiar na fogueira da linguagem” (SANT’ANNA, 2013, p.

26).

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versos estejam acoplados à última cena do drama, isto é, à décima primeira cena,

Clarice em sua epígrafe reformula-os, como fez com o poema augustino.

Abaixo é possível constatar que a fala do Povo foi subtraída por Clarice na

abertura de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.

Joana: – Eu não quero morrer!

O povo, numa só voz: – Ela diz que ela não quer morrer.

Joana: – Eu tenho medo! (CLAUDEL, 1963, p. 112).

O terceiro verso, “Há a alegria que é a mais forte” (CLAUDEL, 1963, p. 117),

transcrito por Clarice na reformulação de sua epígrafe, possui desdobramentos no

Oratório dramático.

A princípio não é de Joana a afirmativa de que existe uma alegria mais forte que

a morte. É de uma “Voz36

”, primeiramente, a marcação no texto dramático de que a

alegria que é mais forte. Sua afirmativa é completa da seguinte forma: “Voz: – Há a

alegria que é mais forte! Há o amor que é mais forte! Há Deus que é mais forte”

(CLAUDEL, 1963, p. 117).

Metaforizando o rompimento de correntes por Joana, logo após a fala dessa Voz,

inicia-se o posicionamento de liberdade da heroína, liberdade condicionada à morte.

Após o rompimento com suas amarras que a protagonista de Claudel une sua afirmativa

à fala da Voz: “Joana: – Eu vou! Eu vou! Eu estou indo! Eu quebrei as correntes! Eu

parti! Há a alegria que é mais forte!” (CLAUDEL, 1963, p. 117, grifo nosso).

Joana quebra as correntes, que, conforme a voz narrativa “[...] prendiam Joana a

Joana. [...] as correntes que prendiam a alma ao corpo” (CLAUDEL, 1963, p. 117).

Após a morte física de Joana, Claudel deixa evocar, já no final de seu Oratório, a voz da

própria Joana: “– Há o amor que é mais forte! Há Deus que é mais forte” (CLAUDEL,

1963, p. 117).

Alegria, amor e Deus, de acordo com o teatro de Paul Claudel, são os elementos

consoladores que tornam o sofrimento suportável.

Ao compasso dos preceitos cristãos, já sinalizados na análise da primeira

epígrafe, a vida eterna é condicionada à morte. Sendo assim, a decomposição física não

é condição de término existencial para a doutrina cristã. Fato alicerçado por meio das

36 São seis as personagens do drama Joana d’Arc entre as chamas: Joana, São Domingos, A Virgem,

Porcus, Santa Catarina e Santa Margarida. Justapostas às vozes destas personagens, há vozes que se

fundem ao drama: O coro, A voz, Vozes de criança, Vozes, O Povo, Vozes no céu, etc.

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palavras de Cristo em que a morte é vencida pela ressureição: “Quem crê em mim,

ainda que esteja morto, viverá” (SÃO JOÃO, 11: 25). Joana d’Arc, cristã, por ter essa

premissa atrelada à sua fé, mesmo debaixo de tortura psicológica e física, manteve sua

convicção de ressureição, esperança vincada ao cristianismo.

Sob esse aspecto, é possível frisar a possibilidade de um novo patamar de vida

após o ciclo de sofrimento, de intensa dor e morte. Não seria esse um possível percurso

também incrustado no texto A hora da estrela, em que a autora mortifica a personagem

Macabéa, “grávida de futuro” (LISPECTOR, 1998b, p. 79), numa ascensão epifânica

(pós-atropelamento) de um novo estado de vida?

Postulada como herege, Joana d’Arc teve seu nome retratado após quinhentos

anos de sua morte pelo poder máximo da Igreja Católica, o Papa Bento XV, que a

reconheceu como mártir da fé, canonizando-a como santa dessa instituição religiosa.

A protagonista de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, ao contrário de

uma canonização mística – uma vez que a corrente narrativa em Clarice se manifesta

por meio da condição humana – vivencia por meio de uma “mortalha narrativa”, isto é,

o constante limiar de suas experimentações, a possibilidade de criar um novo desejo de

vida.

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2.2 O LIVRO DOS PRAZERES E O BILDUNGSROMAN

Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, obra publicada pelo escritor

alemão Goethe, entre os anos de 1795 a 1796, é o protótipo do que em crítica literária se

denomina Bildungsroman, isto é, romance de formação.

Publicada na Alemanha no final do século XVIII, a obra de Goethe marca um

novo processo de narrativa, é a consolidação do romance como gênero “digno”37

, bem

como o registro histórico dos anseios da classe burguesa que chama para si um ideal de

desenvolvimento pautado numa possível inserção social. Conjecturada a essas duas

observações, a origem do Bildungsroman vincula-se inclusive à elaboração do registro

historiográfico literário alemão, que tem na obra do “príncipe dos poetas” o desejo de

uma arte de caráter nacional.

Analisando o esforço historiográfico pela atribuição de um caráter nacional à

literatura de expressão alemã, a afirmação do romance como gênero “digno” e a

reivindicação burguesa de uma autonomia ante a esfera social vigente, a pesquisadora

Wilma Patricia Maas pontua que:

[O Bildungsroman é] uma forma literária de cunho eminentemente

realista, com raízes fortemente vincadas nas circunstâncias históricas,

culturais e literárias dos últimos trinta anos do século europeu.

Compreendido pela crítica como um fenômeno “tipicamente alemão”,

capaz de expressar o “espírito alemão” em seu mais alto grau (MAAS,

2000, p. 13).

Considerando o aspecto morfológico do termo Bildungsroman, dois termos

coexistem no vocábulo. Justapostos, em uma primeira abordagem de significação,

Bildung é facilmente traduzido por formação, e, por sua vez, Roman, filia-se à acepção

de romance: romance de formação, essa é a nomenclatura com maior recorrência ao

protótipo aludido à obra de Goethe.

Diacronicamente, porém, os dois verbetes se revestem de definições para além

de uma tradução linear. Se em primeira definição o termo resgata um processo social-

político contextualizado inicialmente em meados da década de 1790 na Alemanha, para

além dessa significação, na teoria da literatura, “o recurso ao Bildungsroman passou a

ser uma estratégia teórica e interpretativa capaz de abarcar toda produção romanesca na

qual se representasse uma história de desenvolvimento pessoal” (MAAS, 2000, p. 24).

37

“Na Alemanha, é apenas no fim do século XVIII, quando nomes como Goethe passaram a se dedicar ao

gênero, que o romance deixa de ser considerado literatura trivial e de má qualidade” (MAAS, 2000, p.

13).

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Ao analisar o conceito do Bildungsroman, Flavio Quintale Neto sugere que o

termo é recorrente a “um tipo de romance que se caracteriza pela formação do

protagonista e do leitor nos princípios do humanismo, produzindo uma tentativa de

síntese entre práxis e contemplação” (QUINTALE NETO, 2005, p. 185).

A origem do vocábulo Bildung está atribuída ao Mestre Eckhart38

, frade

dominicano da Idade Média e, portanto, com estreita ligação mística. Bildung,

aponta para o conceito de reconquista do paraíso perdido, significando

também a remodelação do pecado original do homem culpado como

‘superimagem’, novo portador da imagem divina. [...] Contudo, ao

cometer o pecado original, o homem perdeu essa imagem divina

original e só pode reconquistá-la transformando-se a si mesmo

(QUINTALE NETO, 2005, p. 187).

Dessa forma, a origem do conceito Bildung marca, para a compreensão do

homem como imagem da divindade, uma retomada ao jardim edênico, ocasionada por

uma transformação vincada de uma experiência místico-contemplativa: “Bildung não

significa “formação” ou “instrução”, mas o conhecimento de si mesmo através de

iniciação nos mistérios do misticismo esotérico” (QUINTALE NETO, 2005, p. 199).

Na perspectiva analisada por Quintale Neto, a origem da palavra Bildung,

portanto, está vinculada ao domínio religioso.

Atrelada à esfera literária, a expressão Bildungsroman foi usada pela primeira

vez em 1803, pelo professor de filologia clássica Karl Morgenstern39

. Anos depois,

entre 1819 e 1820, o estudioso teria associado o vocábulo Bildungsroman ao Os anos de

aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe, associação que corroborou para que o

romance de Goethe se tornasse paradigma à estética de um romance de formação.

A definição de Bildungsroman, em uma síntese tradicional, exemplifica a escrita

literária que narra a formação do protagonista em seu início e desenvolvimento até

38 Mestre Eckhart, um dos mais importantes filósofos místicos medievais, nasceu em Hochheim, perto de

Gotha, na Turíngia, região que hoje se situa no centro-oeste da Alemanha. Seu pensamento influenciou

muitos outros místicos, entre os quais Julian de Norwich, Teresa de Ávila, São João da Cruz, Nicolau de

Cusa e Hegel. A partir do século 19, com a descoberta de seus manuscritos e a diminuição da perseguição

por parte da Igreja, sua obra é redescoberta e sua imagem se refaz, a ponto de hoje ele ser reconhecido

como um dos mais importantes representantes do misticismo cristão (HUÍSMAN, 2001, p. 436). 39

Morgenstern é representante de uma classe de intelectuais alemães pós-iluministas, que, durante a

passagem do século XVIII ao século XIX, contribui para a constituição de um determinado sistema de

pensamento em que a formação intelectual e moral do filho de família burguesa passa a ser tematizada e

problematizada. A criação do termo Bildungsroman emerge, portanto, como um fato histórico associado a

esse pensamento burguês, em que a preocupação com a acumulação de riquezas passa a coexistir com um

desejo de superação dos limites do conhecimento possível à classe média ascendente. A origem da

"literatura de formação” pode ser compreendida como resultado de um mecanismo social autorreflexivo

desenvolvido por uma classe que quer ver espelhados seus próprios ideais na ficção de cunho realista que

começa a firmar-se como gênero (MAAS, 2000, p. 44).

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alcançar um determinado grau de perfectibilidade, o amadurecimento, tanto na esfera

pessoal como na social, promovendo, também, de uma maneira mais ampla do que em

qualquer outro tipo de romance, a formação do leitor. Nessa conjectura, o aprendizado

do herói se refletiria na construção do leitor participativo a esse tipo de narrativa

formativa.

Algumas das características básicas recorrentes à literatura de formação são

postuladas da seguinte forma: o jovem herói é separado do seu convívio familiar para

viver experiências típicas a essa separação. Durante o seu processo formativo o herói é

instruído por mentores ou instituições educacionais, há uma aproximação, mesmo que

tímida, com a esfera da arte, experiências intelectuais e amorosas, bem como,

eventualmente, experiências relacionadas à vida pública, política.

Um ponto relevante a se considerar ante o aparecimento de uma nova expressão

literária é justamente a abordagem subversiva em que a literatura de formação se coloca

da tradição literária, isto é, suas relações e distinções à epopeia antiga:

Desde suas origens, o romance realista mostra-se como uma forma

capaz de retratar o “homem comum”, mediano. Não se representam

mais seres de capacidade, força e coragem extraordinárias, mas sim o

jovem que se inaugura perante a vida, que busca uma profissão, o

auto-aperfeiçoamento e seu lugar no mundo. Em vez de Ulisses, o

burguês (MAAS, 2000, p. 23).

A vida particular, privada, do protagonista é a matéria narrativa que importa ser

narrada no romance realista de formação, são os homens e o ambiente que agem sobre o

herói, esclarecendo a representação de sua formação íntima, interior. Já a epopeia,

representa o herói agindo em direção ao exterior, interferindo e alterando no mundo

externo.

Tendo como paradigma Os anos de aprendizado, o Bildungsroman, travestido

em novos contextos e épocas, narra, em suma, o desenvolvimento pessoal do herói,

como já observado. Entretanto, as formas estruturais dessa narrativa modificam de

acordo com os contextos e épocas em que ela germina. Dessa forma, entende-se que o

romance de formação, em sua permanência histórica (mais de duzentos anos se

passaram da publicação do livro de Goethe), torna-se amplamente flexível ante as

características pautadas no modelo goethiano.

Partindo desse conceito de transformação no que tange às características do

romance de formação tradicional, Marcus Vinicius Mazzari, na obra Romance de

formação em perspectiva histórica, aponta que:

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[...] os sucessivos desvios que o Bildunsgroman vem apresentando em

relação ao seu protótipo Os anos de aprendizado mostram-se como

reflexos das transformações políticas e econômicas ocorridas nas

estruturas da sociedade em que o herói em formação busca integrar-se.

Se em Goethe a crescente precariedade de tal integração é tratada de

forma a se preservar ainda a integridade humana, em outros autores

podemos observar uma tendência à dissolução caricatural da

concepção clássica de formação. Na verdade, o romance de formação

no sentido de Goethe [...] pressupõe que a incongruência entre

indivíduo e sociedade ainda seja superável, que ambos não se

choquem de forma irreconciliável (MAZZARI, 1999, p. 85).

Cabe frisar que, sendo o protagonista de Goethe do sexo masculino, Wilhelm

Meister, burguês, e não mais o Ulisses homérico, nota-se que tradicionalmente a fortuna

crítica, liada aos romances de formação, direciona uma personagem masculina para

passar pelo aprendizado inerente à literatura formativa, e não uma personagem

feminina.40

George Lukács, no arrazoamento acerca da obra Os anos de aprendizado de

Wilhelm Meister, em seu livro A teoria do romance, comenta que no romance se busca

um caminho intermediário entre o exclusivo orientar-se pela ação do

idealismo abstrato e a ação puramente interna, feita contemplação, do

Romantismo. A humanidade, como escopo fundamental desse tipo de

configuração, requer um equilíbrio entre a atividade e contemplação,

entre vontade de intervir no mundo e a capacidade receptiva em

relação a ele. Chamou-se essa forma de romance de educação

(LUKÁCS, 2007, p. 141).

A definição de romance de educação proposta por Lukács traz luz aos

desdobramentos do aprendizado do herói goethiano, uma tentativa conciliadora entre

ação e contemplação, entre matéria e espírito. “Não se nega a busca da interioridade no

processo de formação humanista”, afirma Quintale Neto, “mas claramente se acentua a

atividade do homem na sociedade, como sujeito da história” (2005, p. 199).

Reconhecendo o enlace da matéria com o espírito, da ação com a contemplação,

este mesmo crítico oferece a seguinte explanação acerca do vocábulo Bildungsromam:

O Bildungsroman seria, portanto, o meio pelo qual se expõe o eterno

movimento de ida e volta da reflexão à ação, da ação à reflexão, que

tornaria o homem consciente de si, como finito que se reconhece

como absoluto, e consciente da vida como atividade. A formação seria

o meio da realização da reflexão e da ação. Não se afirma a ação e se

nega a reflexão, mas também não se nega a ação e se afirma a

40

A sociedade ocidental é fruto da ordem que favoreceu o mito do herói e desconheceu o da heroína. Um

dos resultados desse processo foi a construção da vasta galeria de heróis masculinos que desde os gregos

ensinam ao homem como ser um homem melhor e a inexistência de um similar feminino. Ou, em outras

palavras, aos homens foi oferecida uma gama de modelos de crescimento e aperfeiçoamento; às mulheres,

praticamente nada (PIRES, 2006, p.16).

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reflexão. Pelo contrário, afirma-se a síntese dialética da reflexão e da

ação através do romance e não da filosofia, uma vez que a arte é o

grande meio de realização da educação da humanidade. Wilhelm não

é filósofo, mas sim o artista da reflexão e da ação (QUINTALE

NETO, 2005, p. 203-204).

O alcance classificatório para uma obra ser filiada ao romance de formação, a

partir desse conceito, tende-se a uma ampla abertura conceitual, isto é, nas narrativas

contemporâneas, uma obra com desfecho harmonioso entre herói e sociedade, bem

como um desfecho fracassado, é visto em consonância com a ideia renovada atribuída

aos novos moldes de um romance de formação: é preciso que haja um desenvolvimento

individual.

No texto Clarice e a crítica: por uma perspectiva integradora, a pesquisadora

Ligia Chiappini, ao revisitar alguns posicionamentos críticos acerca da obra de Clarice

Lispector, discute em seu ensaio os temas “das chamadas minorias”, “do Judaísmo”, “a

questão feminina e o problema do gênero narrativo”, e o conceito “Bildungsroman

feminino”.

A pesquisadora se posiciona criticamente contra a redefiniçao do protótipo

alemão aos romances brasileiros que narram uma relação de aprendizagem de suas

personagens. A indagação da crítica é, para que usar a reformulação do protótipo

goetheano ao contexto das letras brasileiras, adaptando-o ao espaço ficcional do Brasil,

uma vez que sua transcrição “nem sempre [contempla] todos os passos do gênero do

Bildungsroman?” (CHIAPPINI, 2004, p. 259).

Atendo-se às características normativas acerca do tradicional romance de

formação, mas transportando-as para uma nova concepção de abordagem, isto é, o

Bildungsroman na contemporaneidade, Wilma Mass considera

impróprias ou infrutíferas as abordagens ao Bildungsroman que levam

em conta exclusivamente o instrumental tradicional da teoria literária,

como por exemplo, o gênero entendido como categoria normativa e

classificatória, sob o qual se identifica um modo específico de

representação, de reprodução da realidade [...] Em lugar disso, o que

possibilita a abordagem ao Bildungsroman é a compreensão de sua

diversidade, de seu estatuto híbrido entre construto literário e projeção

discursiva (MAAS, 2000, p. 263).

Ainda acerca das reflexões teóricas referentes à natureza renovadora, e, ao

mesmo tempo, estável do gênero literário, Mikhail Bakhtin esclarece que:

O gênero sempre conserva os elementos imorredouros da archaica. É

verdade que nele essa archaica só se conserva graças à sua

permanente renovação, vale dizer, graças à sua atualização. O gênero

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sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo.

O gênero renasce e se renova em cada nova etapa da literatura e em

cada obra individual de um dado gênero. Nisto consiste a vida do

gênero. [...] O gênero vive do presente, mas sempre recorda o seu

passado, o seu começo. [...] É precisamente por isso que tem a

capacidade de assegurar a unidade e a continuidade desse

desenvolvimento (BAKHTIN, 2015, p. 121, grifos do autor).

Referente às reflexões teóricas acerca do Bildungsroman, na obra Estética da

criação verbal, Mikhail Bakhtin pontua a tipologia histórica do Romance dividindo-a

em três grandes vertentes: o romance de viagens, o romance de provação e o romance

biográfico. Descrevendo-os, o filósofo da linguagem chega à conclusão de que, para o

romance realista, “é de especial importância o romance de educação, que surgiu na

Alemanha na segunda metade do século XVIII” (BAKHTIN, 2011, p. 216).

Discorrendo acerca do Bildunsgroman, nomeado por Bakhtin de “romance de

educação”, o literato russo caracteriza-o em cinco subtipos: cíclico, em que, numa

primeira abordagem, se enfatiza a trajetória do homem entre a infância e juventude ou

entre a maturidade e a velhice. Ainda nesse tipo de formação cíclica, ligam-se romances

“caracterizados pela representação do mundo e da vida como experiência, como escola,

pela qual todo e qualquer indivíduo deve passar e levar dela o mesmo resultado – a

sobriedade com esse ou aquele grau de resignação” (BAKHTIN, 2011, p. 220).

O terceiro modelo agrupa os romances classificados como biográfico e

autobiográfico, não há elemento cíclico nessa nomenclatura, uma vez que “a formação

se processa no tempo biográfico, passa por etapas individuais, singulares” (BAKHTIN,

2011, p. 221).

Ao quarto tipo de literatura de formação agregam-se os romances que postulam

uma narrativa didático-pedagógica. Na classificação de Bakhtin, esse tipo de romance

baseia-se “em uma determinada ideia pedagógica [que representa] o processo

pedagógico da educação no próprio sentido do termo” (2011, p. 221).

Segundo Bakhtin, é o quinto e último tipo de romance de formação o mais

importante, o realista:

Categoria na qual a evolução do homem não pode ser dissociada da

evolução histórica. A formação do homem efetua-se no tempo

histórico real com sua necessidade, com sua plenitude, com seu

futuro, com seu caráter profundamente cronotópico. [...] O homem se

forma concomitantemente com o mundo, reflete em si mesmo a

formação histórica do mundo. O homem já não se situa no interior de

uma época, mas na fronteira de duas épocas, no ponto de transição de

uma época a outra. Essa transição se efetua nele e através dele. Ele é

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obrigado a tornar-se um novo tipo de homem, ainda inédito

(BAKHTIN, 2011, p. 221-222, grifo do autor).

Nesta última tipologia, o estudioso considera que a personagem se constitui

histórico-socialmente; ela reflete e refrata o seu meio, estabelece com ele relações

contratuais ou polêmicas, constrói-se “concomitantemente com o mundo”. As

personagens de Clarice inscrevem-se nessa tipologia, na medida em que se constituem

como seres ativos, responsivos, diante das diferentes formas de pensar o mundo e a si

mesmas. Por isso a tensão crescente que as empurra para a fronteira entre o quadro

axiológico rançoso do qual se querem despegar e a epifania do novo, que lhes acena

promissora, mas que lhes cobra se tornar um novo ser. A assunção mostra-se-lhes

dolorosa, ameaçadora.

Cristina Ferreira Pinto desenvolveu um estudo pioneiro acerca do romance de

formação tendo, como protagonista diferente do arquétipo encontrado em Goethe, uma

personagem feminina.

No livro basilar para a compreensão dessa nova formulação estética, O

Bildungsroman feminino: quatro exemplos brasileiros (1990), a pesquisadora coloca em

observação as obras Amanhecer, de Lúcia Miguel Pereira, As três Marias, de Raquel de

Queiroz, Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector e Ciranda de pedra, de Lygia

Fagundes Telles; alcunhando, assim, escritoras que desenvolveram romances com

características provenientes do protótipo de Goethe.

Visando a um modelo interpretativo para a narrativa de escrita feminina do

século XX no Brasil, alicerçada em afirmação de que “O Bildungsroman é caracterizado

como tal a partir, não da sua estrutura formal, mas sim dos elementos temáticos da

obra” (PINTO, 1990, p. 10), uma das indagações que Cristina Ferreira Pinto dispõe em

seu livro é: “Por que essa quase total ausência da mulher como personagem central no

Bildungsroman?” (PINTO, 1990, p. 12).

A resposta preponderante à pergunta levantada pela pesquisadora atém-se ao

fato de que, diferente do protótipo masculino de formação que concerne ao herói o

espaço exterior para compreensão de sua interioridade, no caso da protagonista feminina

sua esfera de vida se consolidaria nos limites do lar e da família.

Uma vez que “os poucos exemplos de Bildungsroman femininos que

focalizavam o desenvolvimento pessoal – ou seja – psicológico, emocional e intelectual

– da protagonista terminavam constantemente em fracasso” (PINTO, 1990, p. 13, grifo

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da autora), a condição da mulher, inclusive literariamente, estava fadada ao espaço do

casamento e da maternidade.

Propondo uma redefinição do gênero, Cristina Ferreira Pinto atém-se às

características tradicionais do romance de formação, alicerçado em Goethe, para

estabelecer o que poderia ser chamado de Bildungsroman feminino: romance de

formação feminina.

À nomeação de um romance como Bildungsroman feminino seguem-se etapas

que a personagem feminina deve responder à narrativa:

[a] infância da personagem, conflito de gerações, provincianismo ou

limitação do meio de origem, o mundo exterior, autoeducação,

alienação, problemas amorosos, busca de uma vocação e uma filosofia

de trabalho que podem levar a personagem a abandonar seu ambiente

de origem e tentar uma vida independente (PINTO, 1990, p. 14).

Cabe evidenciar que, considerando a existência reduzida de romances de

formação feminina que começam na infância ou adolescência de suas respectivas

protagonistas, Ferreira Pinto pontua que o desenvolvimento das personagens femininas

se inicia, frequentemente, e de forma contrária ao arquetípico goethiano, na idade

adulta.

Uma das contribuições recorrentes à pesquisa de Cristina Ferreira Pinto é a

compreensão de que, considerando o contexto histórico dos romances de formação

feminina, a teórica literária evidencia desfechos harmoniosos na redefinição do gênero

em questão, e, por sua vez, obras literárias que expressam um fracasso no que tange à

integração social e pessoal de suas protagonistas.

Deve-se considerar que o grande número de “Bildungsromane”

fracassados pode sugerir quanto à posição de suas autoras em seus

diversos contextos sociais. Muitas vezes a interrupção do “Bildung”

da protagonista parece significar a aceitação das normas sociais de

comportamento feminino pela escritora. [...] Essas obras serviam

como modelos exemplares na formação das leitoras, cumprindo assim

a função didática característica do “romance de aprendizagem”. Se o

destino dessas personagens, aos olhos do público de hoje, parece ter

sido interrompido, na época estava simplesmente em conformidade

com o ideal feminino estabelecido (PINTO, 1990, p. 17).

Formas que evidenciam a interrupção do desenvolvimento de uma protagonista

feminina é a sua aceitação de um papel social que lhe fora destinado: ser esposa, ser

mãe; bem como o suicídio, a loucura, a alienação imposta ou voluntária. Em

contrapartida, as protagonistas que conseguem uma integração pessoal, por questões

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sociais nem sempre experimentam, na materialidade do texto narrativo, uma total

inserção com o meio social.

Ao analisar os quatros romances concernentes a sua pesquisa, Cristina Ferreira

Pinto perscruta que, nas duas primeiras obras, Amanhecer, de Lúcia Miguel Pereira, As

três Marias, de Raquel de Queiróz, a integração social e pessoal de suas protagonistas é

frustrada: ambas personagens são fadadas ao completo fracasso e marginalização.

Entretanto, o desfecho encontrado por Clarice Lispector em Perto do coração

selvagem, bem como o final atribuído à protagonista de Ciranda de pedra, de Lygia

Fagundes Telles, evidenciam um otimismo atrelado à integração de suas personagens,

sobretudo na sua uniformidade pessoal, íntima, uma vez que, por questões contextuais,

de época, a integração social da mulher representada nas duas narrativas em foco não é

ao todo vivenciada.

Perto do coração selvagem, obra que inaugura a escritura de Clarice Lispector, é

o título estudado por Cristina Ferreira Pinto como modelo ao romance de formação

feminino. A obra narra a experiência de vida de Joana, primeira heroína clariciana, uma

espécie de súmula matriarcal para todas as outras personagens postas em letras por

Clarice.

Nádia Battella Gotlib, na biografia Clarice, uma vida que se conta, sintetiza os

momentos formativos dessa narrativa:

[...] com capítulos que se seguem alternando os tempos presente e

passado na construção de sua personagem Joana, acompanhando-a

desde a infância até a maturidade, personagem estranha, enfocada

sempre a partir de uma procura de verdade interior, ou seja, de uma

identidade de mulher e de ser a sua complexidade – como ser humano,

vestido com as capas da civilização e delas despido, como ser animal,

livre e selvagem. Nesse percurso, Joana passa por diferentes

experiências de relações com o outro. A menina perde a mãe quando

era ainda bem pequena. [...] Vive com o pai, que também morre. É

difícil para Joana aceitar essa morte. Vive com os tios, e, em seguida,

é mandada para um colégio. Sente-se atraída por um professor, depois

pelo marido, depois por “um homem”, e, finalmente, parte em viagem,

em busca de alguma “coisa” (GOTLIB, 2009, p. 192, grifos da

autora).

A abordagem sintética que a biógrafa de Clarice Lispector recorta do romance

Perto do coração selvagem possibilita, nos moldes reformulados do romance de

formação por Cristina Ferreira Pinto, a adequação dessa narrativa ao romance de

formação feminino.

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O que cabe sinalizar nesta dissertação, dentro do percurso de desenvolvimento

de Joana, é o desfecho escolhido por Clarice Lispector para a integração de sua

protagonista com seu interior, bem como uma possível abertura em sua obra, plena de

significações.

O final do enredo sugere mais um aspecto dos romances de formação

femininos, ou seja, ao invés do “happy end” tradicional, há indícios de

uma viagem solitária. Não foi por acaso que o primeiro romance de

Clarice Lispector tornou-se um marco na literatura brasileira, em

1994, ao enriquecê-la com um estilo novo na forma e no enredo, assim

como na solução revolucionariamente feminina para o final da

narrativa (SANTOS, 2006, p. 66).

Considerando o título do último capítulo de Perto do coração selvagem, “A

viagem”, Lispector direciona o final do seu primeiro livro às águas: por meio de um

navio Joana visualizará novos mundos. Tendo o mar como possibilidade de um novo

desenvolvimento de vida, as palavras finais da primeira protagonista de Clarice a

assemelha a um cavalo41

. É assim que a última frase desse livro é pontuada: “[...] de

qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo”

(LISPECTOR, 1998e, p. 202).

O ponto final que encerra a consagrada estreia de Clarice Lispector às letras

brasileiras não delimita o desenvolvimento atribuído à Joana. Fecha, sim, um ciclo

formativo, e abre, por meio das metáforas recorrentes às águas do mar e do cavalo novo,

possibilidades interpretativas ao leitor.42

Acolhendo a possibilidade de um novo patamar de vida, um novo tratamento

formativo, em que a integração íntima compactue com a integração social, Clarice

Lispector, após vinte e seis anos da publicação do seu primeiro livro, lança Uma

aprendizagem ou o livro dos prazeres, romance que complementa Perto do coração

selvagem como romance de formação feminina.

O caminho em direção à integração do EU, iniciado pela primeira

protagonista de Clarice Lispector, vai ser seguido pelas personagens

das obras seguintes. Estas vivem essencialmente os mesmos

problemas e lutas de Joana, estabelecendo-se, assim, uma

continuidade entre as diversas protagonistas. [...] O destino e o

41

A figura de um cavalo é recorrente na obra de Clarice Lispector. Sua primeira protagonista, Joana, se

iguala ao mamífero para firmar-se em novidade de vida, Lóri, a protagonista de Uma aprendizagem ou o

livro dos prazeres usará da mesma iconografia para exemplificar o processo de desenvolvimento que

vivenciará. 42

“No texto de Clarice é possível surpreender a mulher a deslocar-se, pouco a pouco, da passividade em

que se viu historicamente atrelada. Ela não se deixa morrer nem se suicida. Muito ao contrário, caminha

para a morte em permanente diálogo com esta. Vive uma relação tensionante com a vida em permanente

estado de “pré-meditadação da morte”, na feliz definição de Benedito Nunes” (VIANNA, 1999, p. 173).

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aprendizado de Joana se realizam afinal através de Lóri, protagonista

de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969), obra que

complementa Perto do coração selvagem como Bildunsgroman.

Entretanto, Lóri não representa o fim da trajetória das personagens de

Lispector. A continuidade ainda existe, e é indicada pela falta de um

ponto final no texto de Uma aprendizagem, que, aliás, começa com

uma vírgula (PINTO, 1990, p. 107).

Em Clarice Lispector, o desenvolvimento – a aprendizagem – é constante.

Em seu livro O Bildungsroman feminino: quatro exemplos brasileiros, Ferreira

Pinto considera que o destino de Joana, primeira heroína de Clarice Lispector, se

consolidaria, de fato, por meio do desenvolvimento expresso na materialidade de Uma

aprendizagem ou o livro dos prazeres. Dessa forma, Loreley alcançaria o ponto ápice de

sua formação, numa integração entre práxis e contemplação com o íntimo e social.

Onde termina o texto de Perto do coração selvagem recomeça a

trajetória de Joana, com a promessa de realização pessoal e satisfação

dos seus meios e expectativas. [...] O destino e o aprendizado de Joana

se realizam afinal através de Lóri, protagonista de Uma aprendizagem

ou o livro dos prazeres (1969), obra que complementa Perto do

coração selvagem como Bildungsroman (PINTO, 1990, p. 107).

Ao discorrer a respeito da proposta de Cristina Ferreira Pinto da continuidade da

aprendizagem da primeira heroína clariciana, Joana, desencadeada em Lóri,

protagonista dO livro dos prazeres, Ligia Chiappini reivindica no trabalho de Ferreira

Pinto a inserção de Macabéa nas análises da autora:

Aponta-se uma continuidade entre Perto do coração selvagem, Uma

aprendizagem ou o livro dos prazeres e Água viva, ápice do processo,

mas essa leitura descarta Macabéa: Por quê? Aí o fracasso volta?

Macabéa não comparte da mesma busca empreendida pelas outras

personagens, diz a autora. Pergunto: Macabéa não busca a libertação,

porque busca a sobrevivência? [...] A hora da estrela poderia ser

também romance de aprendizagem, enquanto também pode ser lido

como tentativa de auto-descoberta (CHIAPPINI, 2004, p. 262).

O excerto supracitado questiona o posicionamento de Cristina Ferreira Pinto

quanto à abordagem que a autora faz do livro A hora da estrela. Faz-se necessária a

transcrição de seu enfoque:

A personagem-narradora de Água viva completa a trajetória iniciada

por Joana, realizando plenamente a capacidade de auto expressão e a

integração do EU por que as protagonistas de Lispector lutam. Já A

hora da estrela (1977) afasta-se da sequência estabelecida entre o

primeiro romance e Água viva, pois a protagonista desse romance de

1977, Macabéa, não comparte da mesma busca empreendida pelas

outras personagens. Entretanto, apresentam-se aqui temas recorrentes

na obra de Lispector, como a incapacidade de auto expressão do

Sujeito (Macabéa, Olímpico, o narrador), a luta (do narrador) para

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alcançá-la, e a relação homem-mulher, ainda uma relação em que a

mulher é subordinada ao Outro (PINTO, 1990, p. 107, 108, grifo

nosso).

Chiappini, ao analisar o posicionamento de Ferreira Pinto acerca das

características concernentes à heroína de Lispector, Macabéa, encontra na nota de

rodapé da produção da autora (o excerto acima de Cristina Ferreira Pinto é justamente

uma nota de rodapé) um descuido de expressão que evidencia uma negação ao processo

de aprendizagem recorrente à jovem alagoana de dezenove anos. Macabéa, como

comum às personagens tensionadas na escritura de Clarice Lispector, procura transpor

para além de si a fala que revigora a autoexpressão.

Ocorre que, com o atropelamento de sua personagem, “grávida de futuro”,

ocasionado em morte física, a narrativa do livro de 1977 poderia ser incluída aos

romances de formação incompletos, postulados por Cristina Ferreira Pinto em seu texto,

como os de Lúcia Miguel Pereira, Amanhecer e, Raquel de Queiroz, As três Marias.

Nesses títulos, as protagonistas de cada narrativa não conseguem romper com as

barreiras a elas impostas, impelidas, consequentemente, ao fracasso e à marginalização.

Lúcia Pires atém-se às articulações criadas por Clarice no que tange à construção

de suas heroínas: Joana, Virgínia, Lucrécia, G.H, Lóri, Macabéa e Ângela Pralini. Cabe

transcrever o longo parágrafo da crítica acerca desse elo entre as personagens de Clarice

Lispector:

Joana, Virginia e Lucrécia se equiparam no verdor de uma juventude

rebelde, insubmissa e, acima de tudo, incapaz de se relacionar

satisfatoriamente com o outro. Das três, Joana é a que agita essa

bandeira com maior veemência, e com maior veneno também. G.H.

está um passo à frente de Joana e suas camaradas Virgínia e Lucrécia.

G.H. ainda é rebelde, mas aprende a vitória da submissão ao que é

mais forte e abrangente do que ela própria, mesmo que o encontre

dentro de si, num mergulho em queda livre em seus abismos, para a

partir da matéria primitiva aí encontrada ser capaz de reconhecer-se no

outro. Lóri é quem concretiza o encontro com o outro, um encontro

amoroso, e bastaria isso para torná-la capital na obra de Clarice

Lispector. Lóri é o resultado da persistência de Joana e de G.H. em

continuarem e se superar. Macabéa e Ângela Pralini já são criaturas de

uma outra dimensão. Indissociáveis de seus narradores, elas

representam, na verdade, a união que Lóri conquistara. Já não são

personagens femininas pura e simplesmente, são andróginos com suas

contrapartes masculinas. O percurso da mulher no romance de Clarice

Lispector termina com Lóri (PIRES, 2006, p. 116, 117).

Considerando Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres como um romance de

formação feminino, no qual o desenvolvimento de sua protagonista Loreley se fará

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numa possível alusão à Joana, heroína de Perto do coração selvagem, cabe examinar as

vivências daquela no processo literário formativo de Clarice Lispector.

O livro dos prazeres tem seu início marcado por uma vírgula e a flexão verbal

no gerúndio. “, estando tão ocupada...” (LISPECTOR, 1998d, p. 13). Marcação virgular

que indica o fato de a história ter sido iniciada antes mesmo de o texto ser

materializado. Vírgula que – em meio a tantos significados já apontados nesta

dissertação – assume, se conectada ao pensamento de Ferreira Pinto, a continuidade do

processo de formação de Joana.

Por sua vez, o verbo em sua flexão no gerúndio marca a ação, logo no início da

narrativa, da personagem Loreley: um movimento que pressupõe um determinado grau

de ação não finalizada, em andamento, em desenvolvimento, “estando”. É o percurso da

heroína que se anuncia imediatamente na primeira palavra do romance Uma

aprendizagem. Já a marcação pontuada por uma vírgula possibilita, também, a

compreensão de que, nos moldes da literatura de formação feminina, o desenvolvimento

se pautará na idade adulta da heroína e não na infância, como é recorrente no modelo

tradicional do Bildungsroman.

Outra diferença da literatura formativa feminina, se cotejada com o paradigma

de Goethe, é que, na tradição,

o desenvolvimento do personagem é linear (em contraponto), a

protagonista feminina apresenta um movimento circular, uma vez que

o amadurecimento é feito por intermédio de epifanias, ou seja, de

momentos de iluminação que fazem com que a mulher avance e recue,

assim como os elementos da natureza, aos quais o feminino é

comparado, uma vez que está sujeito às influências da lua, assim

como as marés dos oceanos e as etapas do plantio da terra e colheita

da lavoura (SANTOS, 2006, p. 71).

Assim postas as observações de Terezinha Goreti Rodrigues dos Santos acerca

das epifanias e influências da natureza referentes ao desenvolvimento de Loreley, cabe

pontuar algumas das formulações recorrentes do filósofo da linguagem russo Mikhail

Bakhtin, sobretudo o diálogo socrático e o solilóquio, para o entendimento do processo

de desenvolvimento da personagem central do romance Uma aprendizagem ou o livro

de prazeres.

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2.3 OS RECURSOS DISCURSIVOS NA FORMAÇÃO DA PERSONAGEM

LÓRI

Na nota que abre o romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, Clarice

Lispector apresenta a história que se seguirá como uma forma libertária que a ficcionista

se permite experimentar. O livro estaria, segundo a autora, acima do percurso narrativo

até então instaurado em sua literatura. Em posição de suposta humildade, Lispector

notifica: “Este livro se pediu uma liberdade maior que tive medo de dar. Ele está muito

acima de mim. Humildemente tentei escrevê-lo. Eu sou mais forte do que eu. C. L.”

(LISPECTOR, 1998d, p. 9).

Fernando Sabino, em carta direcionada à escritora pela leitura que fez acerca dos

originais de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, “atordoado” com o novo rumo

libertário que as letras de Clarice se materializam na referida obra, escreve à amiga:

São 3 e 5 da manhã e acabo de ler seu livro há cinco minutos. Li-o

desde meia noite e vinte, de uma só vez, sem interromper um segundo,

e te escrevo ainda sob a parte mais grossa da emoção da leitura. [...]

Deve ser um grande livro, pode ser até o seu melhor livro, mas está do

lado de lá, como as coisas pensadas depois da morte, e eu estou cada

vez mais do lado de cá, agarrado às coisas concretas que se

movimentam ao redor de mim. [...] Esta carta não lhe dá a medida de

como eu quero bem e admiro o seu livro. [...] Talvez se fosse lido com

outro espírito, outra fosse a minha opinião – mais lúcida, crítica, útil e

reconciliadora com o mistério dos sentimentos que não mereço

desvendar. [...] Certamente vou relê-lo, como os outros, uma, muitas

vezes, até que ele também acabe fazendo parte de mim (SABINO,

2001, p. 2005).

Alinhando os dois excertos – acima destacados – pode-se indicar que a liberdade

de experimentação literária encontrada em O livro dos prazeres, enfocada em uma

narrativa que conta “[...] uma história de evolução progressiva da mulher que caminha,

corajosamente da dor ao prazer” (GOTLIB, 2009, p. 491), engloba “o mistério dos

sentimentos” que estão “do lado de lá” de uma suposta razão que invalida a afeição

sentimental, isto é, que se situam na contramão de uma apreensão linear, concreta e

dogmática da racionalidade.

Sabino reconhece, e com admiração, a articulação criada por Clarice na narrativa

em questão: “[...] há passagens que me tocaram profundamente, outras me comoveram,

outras me arrepiaram” (SABINO, 2001, p. 204), entretanto, a esfera sentimental que

perpassa o enredo, traço inédito nos textos de Lispector como já visto neste trabalho,

filiada ao suposto pedantismo direcionado ao professor de filosofia Ulisses, “Quem é

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esse homem? Que é que ele está dizendo? Por que tão pedante e professoral?”

(SABINO, 2001, p. 203), faz com que o autor de O homem nu se sinta atordoado, mas

não desacreditado da qualidade que a produção atual de Clarice, isto é, em 1969, tenha

alcançado.

Em entrevista concedida a João Salgueiro e ao casal Affonso Romano de

Sant’Anna e Marina Colasanti, realizada no Museu da Imagem e do Som (RJ) em 1976,

ao responder se gosta do romance de 1969, Clarice diz monossílaba e abruptamente que

não. Entretanto, enfatiza que o livro “é uma história de amor, e duas pessoas já me

disseram que aprenderam a amar com esse livro... Pois é”43

(LISPECTOR apud, p. 230).

Um dos primeiros registros em que Clarice fala acerca de Uma aprendizagem ou

o livro dos prazeres foi através de uma carta que a escritora envia ao seu filho Paulo

Gurgel Valente, datada de janeiro de 1969. “Acabei de copiar o resto do livro, e

certamente amanhã telefono para a Editora Sabiá pedindo que mandem buscar. Se o

livro é bom? Eu acho ele detestável e malfeito, mas as pessoas que o leram acham-no

bom” (LISPECTOR, 2002, p. 261).

Até que ponto esse distanciamento de Clarice para com o livro de 1969 é de fato

uma negação? É sabido que Clarice após o término de uma nova produção sentia-se

desiludida com a realização da escritura. “Todas as vezes em que eu acabei de escrever

um livro ou um conto, penso com desespero e com toda a certeza de que nunca mais

escreverei nada. [....] Lendo dias depois o que escrevi, sinto certa desilusão,

insatisfação” (LISPECTOR apud BORELLI, 1981 p. 69).

Olga Borelli, amiga pessoal de Clarice, revela que a autora de A maçã no escuro

“Não conseguia reler texto seu. E quando publicado era como livro morto. Não queria

mais saber dele. Quando acontecia alguém citar algum trecho, achava ruim”

(BORELLI, 1981, p. 73-74). É ainda Borelli que, ao lançar luz acerca da publicação de

Água viva, romance posterior a Uma aprendizagem, complementa que, após três anos

de exaustiva produção e estruturação do texto em questão, Clarice hesitou em publicá-

lo: “Quando ficou pronto, sentiu-se sem coragem de publicá-lo” (BORELLI, 1981, p.

88).

43

Não há dúvida de que, entre os textos [Perto do coração selvagem e A paixão segundo G.H.], Uma

aprendizagem é o mais acessível. A paixão segundo G.H. chega às raias do hermetismo, e Perto do

coração selvagem tampouco é o que se pode chamar de livro fácil. Já a história de Lóri e Ulisses é uma

história de amor com o qual o público leitor pode superficialmente se identificar mais. Na verdade, se os

dois romances anteriores de Clarice têm a parte mais densa da intriga transcorrendo em um nível

profundo, como um rio subterrâneo à narrativa, Uma aprendizagem é esse rio vindo à tona e aflorando em

olho d’água, fresca e agradável, embora mineralizada pela terra funda de onde brotou (PIRES, 2006, p.

2008).

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Essa hesitação para publicar um novo livro ou se empenhar na produção de

novos gêneros, tais como crônicas jornalísticas, entrevistas e contos com foco na

sexualidade, acompanhou Clarice em cada nova publicação, entretanto, é imprescindível

marcar que a hesitação comum a Clarice, como pontua Franco Júnior, “em relação à

literatura, à crítica, à imprensa, ao mercado editorial, marca-se pelo cuidado de não se

deixar funcionalizar, de não se deixar reduzir a rótulos” (FRANCO JÚNIOR,

2003/2004, p. 135).

Entre as possibilidades interpretativas do percurso libertário manifestado no

livro que é corpus desta dissertação, sobressai a tessitura da narrativa no e recorrente ao

diálogo. Até então inédito à poética da escritora, a história – “que se pediu uma

liberdade maior” – consiste, dentre outras questões que trata, no desenvolvimento da

protagonista Loreley em direção ao alcance de sua autoconsciência intermediada pelo

outro em referências explícitas de um diálogo constante.

Na concepção bakhtiniana, o desenvolvimento da consciência é viabilizado no

limiar, isto é, “na fronteira entre a minha consciência e a consciência do outro”

(BAKHTIN, 2011, p. 341, grifo do autor).

Empregando atenção ao processo evolutivo de Lóri, desencadeado com a

interação de Ulisses, o mentor da aprendizagem, pode-se atribuir à formação da

protagonista de Clarice Lispector traços do gênero diálogo socrático, com sua gênese na

maiêutica, isto é, no partejar da ideia, desdobrando-se à variante do diálogo no limiar.

Discutido por Mikhail Bakhtin no livro Problemas da poética de Dostoievski, o

diálogo socrático, assim como a sátira menipeia, surgem na Antiguidade Clássica,

vinculados ao conceito de gêneros sério-cômicos. Gêneros densamente conjugados pelo

folclore carnavalesco, isto é, debilitando ao riso “a seriedade [...], a racionalidade, a

univocidade e o dogmatismo” (BAKHTIN, 2015, p. 122). Portanto, os gêneros sério-

cômicos apresentam forte oposição aos limites precisos e estáveis dos gêneros sérios

tidos por excelência na Grécia Antiga: a epopeia, a tragédia, a retórica, a lírica.44

Esclarece Bakhtin que o diálogo socrático “era quase um gênero memorialístico:

eram [...] anotações das palestras reais proferidas por Sócrates, anotações das palestras

memorizadas, organizadas numa breve narração” (BAKHTIN, 2015, p. 124). De acordo

ainda com o pensador da linguagem, a par da atualização do gênero quanto ao avanço

44

É válido marcar que o processo de escrita tensionado por Clarice Lispector rearticula os matizes do

romance tradicional brasileiro para concepção de uma obra questionadora dos paradigmas literários.

Como já aludido: “Gênero não me pega mais” (LISPECTOR, 1998a, p.13).

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dos anos, o diálogo socrático distancia-se “das limitações históricas e memorialísticas e

conserva nele apenas o método propriamente socrático de revelação da verdade”

(BAKHTIN, 2015, p. 124-125).

Tendo como característica fundamental “[...] a concepção socrática da natureza

dialógica da verdade e do pensamento humano sobre ela” (BAKHTIN, 2015, p. 125),

isto é, o partejar da ideia – o “conhece-te a ti mesmo” – por meio de uma interação com

o outro, o método socrático viabiliza a concepção da autoconsciência por meio de um

processo fundido ao questionamento, à provocação. Atrela-se ao diálogo socrático o

posicionamento questionador da personagem diante de si mesma e da realidade que a

cerca.

São duas as esferas do diálogo socrático: a ironia e a maiêutica. A primeira

consiste na refutação dos preconceitos ou das opiniões subjetivas do protagonista, isto é,

significa perguntar fingindo ignorar (modo de interrogar pelo qual Sócrates levava o

interlocutor ao reconhecimento da sua própria ignorância); a segunda, como

supracitado, incide na arte de realizar o partejar da ideia ou do conceito verdadeiro, ou

seja, a descoberta de uma nova concepção.

Bakhtin considera que uma das características basilares do gênero “é a

concepção socrática da natureza dialógica da verdade e do pensamento humano sobre

ela.”, ou seja, o diálogo socrático se opõe às verdades dogmáticas, àquelas que

sentenciam uma afirmação como única, unilateral, inquestionável, assim, o traço

estético prevalente no gênero é a negação de um discurso opressor e autoritário.

Estruturando o diálogo socrático encontram-se a síncrise e a anácrise,

mecanismos discursivos que viabilizam o autoconhecimento da personagem por meio

da palavra e reflexão. Na tessitura de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres estes

mecanismos contribuem à constituição da autoconsciência de Loreley, matéria que será

examinada a seguir.

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2.4 AS VARIANTES DO DIÁLOGO SOCRÁTICO EM UMA APRENDIZAGEM

OU O LIVRO DOS PRAZERES

Na obra O drama da linguagem, compilação de textos escritos por Benedito

Nunes acerca da prosa de Clarice Lispector, o crítico

literário, dentre as análises atribuídas ao romance Uma aprendizagem ou o livro

dos prazeres, sinaliza que o que há realmente de novo no processo escritural de Clarice

em contraponto com os romances anteriores “é que a narrativa está polarizada pelo

diálogo e não pelo monólogo” (NUNES, 1995, p. 78).

Sucedendo a experiência do monólogo interior vivenciado pela protagonista do

livro A paixão segundo G.H.45

, O livro dos prazeres impõe à obra de Clarice Lispector

uma abertura conciliadora entre duas consciências – Loreley e Ulisses: “[...] duas

consciências que se reconhecem, a princípio de maneira reticente, para se comunicarem

em seguida através do silêncio e da palavra, da carne e do verbo” (NUNES, 1995, p.

79).

Ulisses aparece no texto clariciano como mediador do processo de

autoconhecimento que Loreley iniciará. A aliança firmada entre as personagens desta

narrativa tem por viso a união amorosa de ambos somente quando a aprendizagem de

Lóri se consolidar, isto é, quando a heroína alcançar um conhecimento corpóreo e

íntimo desencadeado na autoconsciência.

– Lóri, disse Ulisses: [...] uma das coisas que aprendi é que se deve

viver apesar de46

. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar.

Apesar de, se deve morrer. Inclusive é o próprio apesar de que nos

empurra pra frente. [...] Foi apesar de que parei na rua e fiquei

olhando você, esse teu corpo [...] que eu quero. Mas quero inteira,

com a alma também. [...] esperarei quanto tempo for preciso

(LISPECTOR, 1998d, p. 26, grifo nosso).

Ulisses, como representação do ser humano, experimenta em sua vivência o

aprender em todo tempo, “o estar em construção”, isto é, “no dialogismo incessante, o

ser humano encontra o espaço de sua liberdade e de seu inacabamento” (FIORIN, 2008,

45

Benedito Nunes esclarece que “enquanto A paixão foi uma desaprendizagem das coisas humanas, O

livro dos prazeres é, sem abstrair as verdades trágicas daquela experiência, uma recuperação corajosa do

sentido da existência individual” (NUNES, 1995, p. 81). 46

Cabe pontuar que a companhia teatral Luna Lunera (MG) para criar seu espetáculo Prazer, teve como

ponto de partida o excerto supracitado do romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Projeto

contemplado pela Fundação Nacional de Artes – FUNARTE – no Prêmio Funarte de Teatro Myriam

Muniz 2011.

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p. 28). O professor de Filosofia também é modulado por experimentações avaliativas47

,

mas compete a ele, aqui posto como mediador no âmbito socrático – por já estar em um

desenvolvimento além do que Lóri provará48

– ajudá-la quanto à passagem da ignorância

à revelação dialógica da ideia, ao autoconhecimento.

Não se trata de uma inteligência de quem adquiriu uma longa

experiência intelectual, e sim de um trato inteligente com a vida, isto

é, de uma postura de quem não tenta fugir dela, mas desvendar seus

enigmas. Essa postura já é possível a Ulisses porque ele já está aberto

à escuta do apelo que a realidade lhe faz, em seu mistério. Já está na

travessia (TAVARES, 2012, p. 61).

Posto luz ao desenvolvimento já alcançado por Ulisses na tessitura do texto

lispectoriano, uma vez que é ele quem acompanha, quem espera, quem medeia, faz-se

oportuno analisar o elo existente entre Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres às

variantes do diálogo socrático.

Parte-se aqui do posicionamento de que os instrumentos discursivos intrínsecos

ao diálogo socrático, a síncrise e a anácrise, bem como os outros gêneros a ele

relacionados – solilóquio e diálogo no limiar –, possibilitam, na tessitura do romance de

Clarice Lispector, a análise de como a professora primária toma consciência de estar no

e sentir o mundo – tendo como mote a experimentação dialógica – e como essa

consciência contribui para o alcance do seu autoconhecimento.

Ulisses, o professor de Filosofia, é o mestre maiêutico, o interlocutor que

viabilizará a constituição da autoconsciência de Lóri em um processo atrelado à vida

humana, isto é, o percurso de aprendizagem na comunhão do amor não rejeita a esfera

intelectual da heroína clariciana, ao contrário, homologa-a como primazia. Para Clarice,

a racionalidade não é uma condição oposta à afeição sentimental.

À concretização da autoconsciência de Loreley, o diálogo é o meio de transporte

fundamental de interação e reflexão. Ulisses, pelo diálogo, compreende as palavras que

são silenciadas e os silêncios que evocam falas, por conseguinte, conduz sua discípula à

aprendizagem não apenas transposta da dor ao prazer, mas em uma experimentação

provinda da entrada de Loreley “num realismo novo”.

– Meu mistério é simples: eu não sei como estar viva.

– É que você só sabe, ou só sabia, estar viva através da dor.

– É.

– E não sabe como estar viva através do prazer?

47

Em diálogo com Lóri, Ulisses enfatiza sua inconclusibilidade: “Pronto em todos os sentidos eu nunca

estarei, Lóri, eu não me engano” (LISPECTOR, 1998, p. 51). 48

“Ulisses [...] estava infinitamente mais adiantado na aprendizagem: ele reconhecia em si a alegria e a

vitória” (LISPECTOR, 1998d, p. 92).

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– Quase que já. Era isso o que eu queria te dizer (LISPECTOR, 1998d, p. 90-

91),

O início de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, já em seu primeiro e

extenso parágrafo, sinaliza a protagonista Loreley preocupada em organizar as lacunas

provenientes das faltas de sua empregada “que cada vez mais matava serviço”

(LISPECTOR, 1998d, p. 13). Loreley surge ao leitor em um posicionamento que

contempla o arrumar das compras que fizera, o atendimento de telefone convidando-a

para participar de um coquetel beneficente e, por sua vez, a “escolher que vestido usaria

para se tornar extremamente atraente para o encontro com Ulisses” (LISPECTOR,

1998d, p. 13).

Cabe salientar a pontuação empregada por Clarice no decorrer do primeiro

capítulo da narrativa. Iniciado por uma vírgula, o texto clariciano materializa quase que

na totalidade da extensão do seu primeiro tópico pontuações expressas exclusivamente

por vírgulas: uma ruptura explícita às avaliações da gramática normativa. Coligada às

vírgulas da narrativa, encontram-se os inícios de parágrafos do capítulo: iniciados em

letra minúscula.

Colisões normativas que, expressas na grafia do texto, apontam para a situação

existencial da protagonista, isto é, já no início da trama, “Lóri surge no caos, em

linguagem que acompanha um desordenado fluxo de consciência” (GOTLIB, 2009, p.

486). Clarice, ao romper com a norma, adequa na tessitura de Uma aprendizagem ou o

livro dos prazeres uma técnica retórica e estilística que alcança as oscilações intrínsecas

à Loreley que abre o romance.

Carlos Mendes de Souza, ao sinalizar a expressão poética vinculada à pontuação

existente no primeiro capítulo de Uma aprendizagem que colide com a normatividade

gramatical, comenta que:

O início do romance [...] mostra a vasta mancha tipográfica que dá

conta da chegada de Lóri à casa: as tarefas que executa quase sem

respirar vêm acompanhadas daquilo que vai pensando. A força do

monólogo (em discurso indireto livre) adequa-se ao compacto

grafismo que pretende ser uma transcrição do ritmo caótico dos

pensamentos que ocupam a mente da personagem (SOUSA, 2012, p.

234-235).

Desordem que lança ao leitor a compreensão de que Loreley vivencia um

emaranhado de ideias, imbricado, sobretudo, à rememoração do discurso de Ulisses,

que, logo na primeira página do texto, se materializa como o mentor da aprendizagem.

[...] pensou no que ele [Ulisses] estava se transformando para ela, no

que ele parecia querer que ela soubesse, supôs que ele queria ensinar-

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lhe a viver sem dor apenas, ele dissera uma vez que queria que ela, ao

lhe perguntarem seu nome, não respondesse “Lóri” mas que pudesse

responder “meu nome é eu”, pois teu nome, dissera ele, é um eu

(LISPECTOR, 1998d, p. 13).

Nesse entrelaçamento de informações, a narrativa direciona Ulisses à mediação

entre Lóri e sua autoconsciência. É ele que, no compasso poético de Clarice junto a O

livro dos prazeres, evidencia uma das questões recorrente à escritura de Lispector: a

indagação do nome. A esse respeito, cabe citar uma das falas da personagem Riobaldo

no romance Grande sertão: veredas: “Que é que é um nome? Nome não dá: nome

recebe” (ROSA, 2001, p. 172).

O nome de Lóri recobre significações simbólicas, como já evidenciado,

entretanto, para além das significações externas e/ou mitológicas, há o nome íntimo que

à heroína é evidenciado conquistar: “o seu nome secreto que ela por enquanto ainda

não podia usufruir” (LISPECTOR, 1998d, p. 14). A personagem de Clarice Lispector

partilha de uma relação conflituosa com o mundo, isto é, com a esfera social em que

está inserida: “Seu descompasso para com o mundo chegava a ser cômico de tão grande:

não conseguira acertar o passo com as coisas ao seu redor. Já tentara se pôr a par do

mundo e tornara-se engraçado: uma das pernas sempre curta demais” (LISPECTOR,

1998d, p. 20).

Cabe frisar que o descompasso vivido pela protagonista não é materializado

apenas na pontuação que abre e reverbera no primeiro capítulo dO livro dos prazeres,

ou no fragmento aqui exemplificado, alcança, pode-se dizer, com intencional

formulação, o estado de ânimo de Lóri, isto é, no processo de sua autoconsciência, há

um esvaziamento de sua racionalidade; o sublime une-se à banalidade cotidiana, “alto”

abre espaço ao “baixo”, pontuando, assim, um estranho avançar que retrocede.

Ao exemplificar as três características basilares dos gêneros sério-cômico,

Bakhtin esclarece que sua primeira peculiaridade “[...] é o novo tratamento que eles dão

à realidade. A atualidade viva, inclusive o dia a dia, é o objeto, ou, o que é mais

importante, o ponto de partida da interpretação, apreciação e formalização da realidade

(BAKHTIN, 2015, p. 122, 123, grifo do autor).

Acerca da segunda peculiaridade desses gêneros, o pensador da linguagem

esclarece que os gêneros sério-cômicos “baseiam-se conscientemente na experiência (se

bem que insuficientemente madura) e na fantasia livre” (BAKHTIN, 2015, p. 123,

grifos do autor).

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A terceira e última peculiaridade fundamental e comum de todos os gêneros

integrantes do sério-cômico baseia-se na pluralidade de estilos e variedade de vozes de

todos esses gêneros. Caracteriza-se “pela politonalidade da narração, pela fusão do

sublime e do vulgar, do sério e do cômico” (BAKHTIN, 2015, p. 123, grifo nosso).

Destarte, é possível encontrar na trajetória da protagonista dO livro dos prazeres,

minudências concernentes às definições bakhtinianas supracitadas, ou seja, o estranho

movimento de recuo enquanto se avança, materializado na narrativa clariciana:

1. O cotidiano de Loreley estendido durante as quatro estações do ano.

2. As experiências (experimentações) da protagonista, mesmo que, de certa

forma, insuficientemente maduras.

3. Na banalização do sublime, isto é, no esvaziamento de algo maior preenchido

na rotina, no senso-comum.

Como exemplo dessas três características elencadas por Bakhtin e aqui

direcionadas à compreensão da experimentação de Lóri ao processo de sua

autoconsciência, faz-se necessário transcrever o excerto do romance citado

anteriormente, complementando-o com uma frase até então omitida.

[Ulisses] dissera uma vez que queria que ela, ao lhe perguntarem seu

nome, não respondesse “Lóri” mas que pudesse responder “meu nome

é eu”, pois teu nome, dissera ele, é um eu, perguntou-se se o vestido

branco e preto serviria, (LISPECTOR, 1998d, p. 13, grifo nosso).

A retomada da personagem ao seu cotidiano impele-a a “pausar” sua trajetória

que desencadeará a uma consciência suficientemente madura, mediante a reflexão sobre

si por meio do discursivo elevado e dá vazão à trivialidade, ao clichê feminino

concernente à vaidade.

Esse movimento de rebaixamento do discurso, de recuo enquanto se avança,

entrelaçado por frases irônicas e cenas clichês na materialidade de Uma aprendizagem

evidenciam, para além das oscilações e dos esvaziamentos concernentes à aprendizagem

de Lóri, o drama da linguagem, expressão vinculada ao crítico Benedito Nunes, que

sintetiza a encenação que a própria linguagem literária clariciana faz das questões e

conflitos que trata.

Fato observado pelo crítico Arnaldo Franco Júnior que, ao revisitar as

contribuições de Nunes acerca da encenação perscrutada na obra de Lispector, lê na

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produção da autora, desde sua estreia com o saudado Perto do coração selvagem,

alcançando o texto derradeiro, A hora da estrela, a presença do recurso crítico kitsch

e/ou mau gosto.

Franco Júnior, no texto Questionando a identidade da literatura, produção em

que o pesquisador se debruça na obra A legião estrangeira, de Clarice Lispector, define

kitsch da seguinte forma:

Kitsch é uma palavra alemã incorporada, no século XX, ao discurso da

arte identificada como o programa modernista e à reflexão sobre a

questão da ate na Modernidade. O termo surgiu para a identificação de

obras que apresentavam – segundo uma concepção de arte como

atividade desinteressada (Kant) e de obra como o resultado

equilibrado de uma articulação orgânica de elementos contrastivos

(Aristóteles) – um desiquilíbrio entre os elementos e a função estéticos

e aqueles elementos e funções ligados a outros sistemas de valor

(comerciais, políticos, morais, religiosos, pedagógicos etc.)

(FRANCO JÚNIOR, 2003/2004, 132).

Ao estabelecer a presença deste recurso na obra de Clarice Lispector, o crítico

esclarece que:

Não só as personagens claricianas experimentam o paradoxo e a

afirmação simultânea de contrários que se afirmam e se anulam, se

harmonizam e se digladiam mortalmente. Também, o texto clariciano

aspira instalar-se no puro devir, participando e escapando

simultaneamente do centro e da periferia do sistema literário e, numa

constante, voltando-se contra as limitações de ambos. É com este

mesmo propósito que também o kitsch, tal como definido pela

tradição modernista, será mobilizado pela escritora (FRANCO

JÚNIOR, 2003/2004, p. 132, grifo do autor).

Assim esclarecido, Arnaldo Franco Júnior, para evidenciar a presença do

recurso crítico kitsch na escritura clariciana, divide a produção de Clarice em duas fases:

1. uma primeira fase que compreende desde os primeiros contos

datados de 1940/1941 e publicados postumamente na coletânea A Bela

e a Fera e vai até PSGH [A paixão segundo G.H.](1969); 2. Uma

segunda fase que compreende desde as crônicas publicadas no Jornal

do Brasil entre 1967 e 1973, estendendo-se até A hora da estrela, de

1977 (FRANCO JÚNIOR, 2000, p. 14).

Elencando a presença do kitsch e/ou mau gosto nas fases de produção da

escritora, Franco Júnior esclarece que

[...] na primeira fase de produção, os textos apenas tangenciam o

kitsch, seja através de referências ao mau gosto, à supremacia de

valores médios impostos como ideal de nossa cultura, aos

comportamentos e atitudes vulgares, sentimentalistas, excessivos,

teatrais, seja através de breves momentos em que a linguagem

dramatiza com maior ênfase o choque entre kitsch e o sublime. [...] É

na segunda fase de produção, iniciada com a incursão pela crônica

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jornalística e com o lançamento de Uma aprendizagem ou o livro dos

prazeres, que o kitsch passa a ser incorporado como elemento de

construção do texto literário, protagonizando um dos polos do “drama

da linguagem” na obra da escritora (FRANCO JÚNIOR, 2000, p. 21,

25).

Acerca do romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, o especialista

reconhece a incorporação de estilemas kitsch (FRANCO JÚNIOR, 2000, p. 25) na

referida obra, isto é, na inserção de preceitos concernentes à ordem social, sobretudo, se

estruturá-la à definição de “romance de mocinha”, e pontua que a utilização do kitsch

e/ou mau gosto na obra de Clarice Lispector “parece ter por objetivo acirrar, através de

um confronto de linguagem, a tensão sublime x banal, e Clarice passa a usar o

desmedido, o clichê para tocar no gosto mau que o mundo às vezes tem” (FRANCO

JÚNIOR, 2000, p. 25, grifo nosso).

Para melhor entender, a inserção do kitsch, criticamente materializado nO livro

dos prazeres, corrobora para personificar as características concernentes à protagonista

Lóri: oscilações em seu processo de autoconhecimento. Desta forma, pode-se

reconhecer no avanço da aprendizagem de Lori um recuo crítico, em compasso com as

características da professora primária, isto é, “seu descompasso para a vida”49

, que

assegura a inserção do kitsch em Uma aprendizagem como complementação de

linguagem.

O kitsch se insinua no confronto de atitudes e comportamentos que

opõem a sublimidade da heroína à mediocridade dos que a rodeiam.

O kitsch se evidencia também no aprumo suburbano das personagens,

no seu modo de se vestir, no seu comportamento supostamente

respeitoso (FRANCO JÚNIOR, 2000, p. 19, 21).

Cabe frisar que, se somado à estruturação do romance Uma aprendizagem ou o

livro dos prazeres – sua pontuação, silêncios, oscilações – o recurso kitsch e/ou mau

gosto “[...] abre uma nova perspectiva de leitura dos textos da escritora, sobretudo

aqueles que, num primeiro momento, foram considerados por alguns como fracassos”

(FRANCO JÚNIOR, 2000, p. 32, grifo nosso).

É válido marcar, segundo o especialista, que o recurso kitsch instalado no texto

de Clarice Lispector

49

“Seu descompasso para com o mundo chegava a ser cômico de tão grande: não conseguira acertar o

passo com as coisas ao seu redor. Já tentara se pôr a par do mundo e tornara-se engraçado: uma das

pernas sempre curta demais” (LISPECTOR, 1998d, p. 20).

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[...] não deve ser apenas lido em suas manifestações mais evidentes,

em geral, delimitadas e definidas a partir da tradição e dos valores que

animam e sustentam o sistema literário e cultural de nossa sociedade,

mas deve ser lido, também, como resultado de uma avaliação crítica

que nasce de um revés do olhar, que se firma como questionamento ao

que quer que se afirme aprioristicamente como belo, bom, ideal

(FRANCO JÚNIOR, 2003/2004, p. 132).

Se, no início do romance, o descompasso de Lóri para com sua aprendizagem

pode ser evidenciado na preocupação que a personagem possui com as roupas que deve

usar para se encontrar com Ulisses, com a maquiagem que lhe dará um grau de

segurança, com o uso do maiô apropriado a sublimar sua presença corporal (a vergonha

de se estar nas águas de uma piscina), as passagens finais do livro, a entrada de Lóri ao

mar, a união sexual dos amantes, evidenciam Lóri alcançando a simbologia do seu

nome em extensão: Loreley, a divindade das águas e a completude de se sentir plena

com seu corpo, respectivamente.

Desta forma, é válido pontuar que, embora os recuos na aprendizagem obedeçam

à cadência poética da escritura clariciana, tensionada no romance que aqui é tema

dissertativo, o processo de aprendizagem da protagonista é materializado no texto de

Clarice, a exemplo das cenas acima recortadas, abrindo espaço para uma consciência

madura, não mais insuficientemente.

Lúcia Helena Vianna enxerga na totalidade dO livro dos prazeres, isto é, aos

temas que a ele são recorrentes, o tom de suspense policial, o discurso filosófico, o

oratório cristão, o discurso do mito e o do folhetim, uma abordagem irônica na escrita

de Lispector, mas, segundo ênfase da ensaísta,

a ironia que marca a relação entre essas formas do dizer não é

contudo aquela que hostiliza o discurso alheio e que identifica de

modo explícito a paródia, como define Bakhtin. Trata-se de ironia

quase imperceptível e que subsiste pela marcação teatral que imprime

àquelas falas, das quais o narrador não parece poder escapar, porque,

por si mesmo, já é produto delas (VIANNA, 1999, p. 158-159).

A linguagem encenada que une o alto com o baixo, que rebaixa o sublime ao

corriqueiro, faz com que haja um recuo, enquanto há avanço, no partejar da ideia, na

passagem de Lóri a outro estatuto, sua autoconsciência. Há, portando, na travessia da

protagonista Loreley ao partejar de sua consciência, seja por meio da pontuação, das

falas da protagonista, a oscilação entre o vulgar e o sublime, uma quebra intencional e

competentemente articulada de Clarice para com a esfera racional de sua personagem.

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Entretanto, ao delegar em pensamento voz ao possível posicionamento de

Ulisses a respeito do descompasso por ela refletido, Lóri manifesta uma das frases

emblemáticas da narrativa clariciana: “A condição não se cura, mas o medo da condição

é curável” (LISPECTOR, 1998d, p. 20).

O processo de desenvolvimento de Loreley, portanto, vincula-se ao

enfrentamento do medo de sentir dor: “ser era uma dor?” (LISPECTOR, 1998d, p. 21).

Marcado por um compasso gramatical insólito, isto é, com estruturas de

parágrafos diferentes do capítulo anterior, o segundo capítulo dO livro dos prazeres

apresenta uma esfera de extensa sequidão e quentura. “Era quase noite e ainda estava

claro. [...] E às seis horas da tarde fazia-se meio-dia” (LISPECTOR, 1998d, p. 22-23),

fazia calor e,

[...] a mulher não conseguia transpirar. Estava seca e límpida. [...] Se a

mulher fechava os olhos para não ver o calor, pois era um calor

visível, só então vinha a alucinação [ruptura da racionalidade] lenta

simbolizando-o: via elefantes grossos se aproximarem, elefantes doces

e pesados, de casca seca, embora mergulhados no interior da carne por

uma ternura quente insuportável; eles eram difíceis de se carregarem a

si próprios, o que os tornava lentos e pesados (LISPECTOR, 1998d, p.

22).

O texto supracitado aproxima dois campos semânticos: o do calor e o da seca. O

primeiro faz menção à esfera da natureza e por consequência à falta de água – um fato

histórico da década de 1960 na cidade do Rio de Janeiro – “há dois dias faltava água em

diversas zonas da cidade” (LISPECTOR, 1998d, p. 23). Entretanto, o calor natural,

ocasionado por uma temperatura alta e escassez de água, perpassa o habitat exterior da

protagonista, incorporando-o a seu estado de espírito. A intensidade do calor é tanta que

a protagonista, alucinada, sente o peso dos elefantes, metáfora que simboliza paralisia.

O externo une-se ao interno: o ânimo de Loreley é abalado pela temperatura

elevada. Ao analisar a representação do calor e a sequidão tecida na narrativa de

Lispector, Goreti Rodrigues dos Santos observa que:

[Clarice se utiliza de...] um vocabulário repleto de referências à

escassez de umidade por falta de chuva, às temperaturas elevadas do

verão tropical, que, aos poucos, adquire uma ambiguidade, uma vez

que o calor e a falta de ar ou de “um ópio amenizante”, estão inscritos

no corpo da protagonista e afetam todos os seus sentidos. [...] É

justamente no auge do verão que a narrativa e o processo de iniciação

começam, já com a descrição de uma Lóri adulta, que se encontra

cindida entre o desejo de se tornar sujeito do próprio crescimento

interior e o desejo de voltar à mediocridade, às máscaras, a uma vida

sem grandes alegrias, mas também sem grandes tristezas e

responsabilidades (SANTOS, 2006, p. 95).

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Por conseguinte, os dois primeiros capítulos de Uma aprendizagem ou o livro

dos prazeres evidenciam uma Lóri exposta a situações de extrema sequidão, quentura e

infertilidade. “Não é só a dor que a toma. A incapacidade de sentir qualquer coisa, de

criar qualquer coisa, de viver qualquer coisa a tomam completamente. Ela é uma mulher

paralisada pelo medo de viver” (TAVARES, 2012, p. 41).

A dificuldade era uma coisa parada. É uma joia diamante. E se o Deus

se liquefaz enfim em chuva? Não. Nem quero. Por seco e calmo ódio,

quero isso mesmo, este silêncio feito de calor que a cigarra rude torna

sensível. Sensível? Não se sente nada. [...] E não chove, não chove.

Não existe menstruação. Os ovários são duas pérolas secas. Vou vos

dizer a verdade: por ódio seco, quero é isto mesmo, e que não chova

(LISPECTOR, 1998d, p. 23-24).

O diálogo interior da Loreley que abre o romance clariciano expõe na narrativa

uma personagem que reflete em seu interior as mazelas que a alta temperatura ocasiona:

uma paralisia seca, quente, sem vestígios de lágrima e suor. O externo, por sua vez,

alcança o corpo da protagonista tornando secas suas mãos, petrificando reações

corporais e por consequência suas emoções: sua menstruação é inexistente, isto é, o

preparo para um novo ciclo que possibilita a gestação de vida é petrificada, seus “[...]

ovários são duas pedras secas” (LISPECTOR, 1998d, p. 24).

A ausência de chuva, de água – que é um dos símbolos recorrentes na costura do

romance – aponta para uma possível ruptura com a aprendizagem da protagonista, uma

vez que sua iniciação ritualística se consolida por meio da fecundação propiciada pelas

águas, porém, no final do segundo capítulo, a narração esclarece que a seca externa não

é de toda a responsável pelo estado de espírito da protagonista, uma vez que “Lóri não

percebe que aquilo que a queimava não era o fim da tarde encalorada, e sim o seu calor

humano” (LISPECTOR, 1998d, p. 25).

A percepção da protagonista, em um processo constante de desenvolvimento de

sua autoconsciência, pressupõe, apenas, que “alguma coisa vai mudar, que choverá ou

cairá a noite” (LISPECTOR, 1998d, p. 25). Entretanto, Loreley, não suportando a

espera de uma passagem, “e, antes da chuva cair, o diamante dos [seus] olhos se

liquefaz em duas lágrimas” (LISPECTOR, 1998d, p. 25).

O desfecho do segundo capítulo postula a necessidade de a protagonista –

figuração do arquétipo do ser lendário inscrito em seu nome – estar ligada às águas. É

na secura do seu calor humano, primeiramente, que se faz necessário o fluir de águas.

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A visão aqui tem suma importância para a passagem das águas: por meio de um

novo posicionamento visual, de uma nova maneira de reconhecer sua condição humana,

a protagonista desenvolve vestígios de sua iniciação, o preparo às águas da piscina e do

mar, episódios centrais do romance, realizado por meio do olhar da heroína, que, no

final do tópico, se permite experienciar o poder renovador do choro, “o diamante dos

olhos se liquefaz em duas lágrimas. E enfim o céu se abranda” (LISPECTOR, 1998d, p.

25).

Há, portanto, uma aproximação tímida, insuficientemente madura, de Lóri às

águas. O enfoque dialógico de si mesmo, isto é, o solilóquio, não se complementa

satisfatoriamente nessa primeira abordagem, uma vez que, de acordo com Bakhtin.

[...] na descoberta do homem interior – de “si mesmo” – inacessível à

auto-observação passiva e acessível apenas ao enfoque dialógico de si

mesmo, que destrói a integridade ingênua dos conceitos sobre si

mesmo. [...] O enfoque dialógico de si mesmo rasga as roupagens

externas da imagem de si mesmo, que existem para outras pessoas,

determinam a avaliação externa do homem (aos olhos dos outros) e

turvam a nitidez da consciência-de-si (BAKHTIN, 2015, p. 137).

Para além de uma aproximação tímida ao solilóquio, no decorrer da narrativa dO

livro dos prazeres, Lóri consegue se desprender da extensa mancha vermelha que

permeia sua aprendizagem – ao calor, à sequidão, à infertilidade – dando vazão às águas

da chuva, tão necessárias à passagem de um estado a outro, por meio da pergunta que é

comum às personagens de Clarice Lispector: Quem sou eu?

Porque ela estava sentindo a grande dor. Nessa dor havia porém o

contrário de um entorpecimento: era um modo mais leve e silencioso

de existir. Quem sou eu? Perguntou-se em grande perigo. E o cheiro

do jasmineiro respondeu: eu sou o meu perfume (LISPECTOR, 1998,

p. 144, grifo nosso).

Após sua autoindagação articulada na narrativa por meio de três palavras ligadas

à interrogação, Lóri percebe que para se perfumar é preciso se conhecer, desta forma, a

pergunta pontuada acima abre espaço para a descoberta “do homem interior” acessível

ao “enfoque dialógico de si mesmo”. Por consequente, a protagonista “destrói a

integridade ingênua dos conceitos sobre si”, e a esfera de sequidão, pontuada no início

do romance, que fazia com que a personagem rompesse com a automatização de sua

consciência, abre, agora, no fluxo narrativo, vazão ao fluir das águas. “A chuva e Lóri

estavam tão juntas como a água da chuva estava ligada à chuva” (LISPECTOR, 1998,

145).

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O enfoque dialógico de si mesmo50

, isto é, o solilóquio, estabelece na tessitura

do texto de Clarice Lispector uma densidade introspectiva que viabiliza a

autoconsciência de Loreley. No excerto supracitado, pontuado pela pergunta Quem sou

eu?, a protagonista chega à experimentação suficientemente madura das águas: não

restrita apenas às lágrimas, mas à incorporação do fluir da chuva no corpo da

personagem clariciana. Emanuel, Deus dentro do humano. As águas, um ritual dentro de

Lóri: uma simbologia que alcança o percurso ritualístico que as águas desempenham na

tessitura de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.

É por isso que após a indagação “logo seu coração bateu ainda mais depressa e

alto porque ela compreendeu que não adiaria mais” (LISPECTOR, 1998, p. 146, grifos

nossos). O descompasso de vida, a paralisia, a sequidão, as maquilagens, já não

permeiam em potencialidade as experimentações de Lóri, que, ao se direcionar ao

encontro de Ulisses,

Pegou na bolsa o endereço dele escrito no guardanapo, vestiu a capa

de chuva sobre a camisola curta, e no bolso da capa levou algum

dinheiro. E sem pintura nenhuma no rosto, com o resto dos cabelos

curtos, caindo sobre a testa e a nuca, saiu para tomar um táxi. Fora

tudo tão rápido e intenso que não se lembrara sequer de tirar a

camisola, nem de se pintar (LISPECTOR, 1998, p. 146).

Norteando a análise da constituição da personagem Loreley à aquisição de sua

autoconsciência, reconhecendo no texto de Clarice Lispector os mecanismos discursivos

discutidos por Bakhtin acerca dos gêneros sério-cômico, do diálogo socrático, a análise

doravante estende-se às definições de anácrise e síncrise, procedimentos do gênero

diálogo socrático.

A anácrise, de acordo com o pensador russo, é “a técnica de provocar a palavra

pela própria palavra” (BAKHTIN, 2015, p. 126), isto é, levar o interlocutor a externar

suas opiniões preconcebidas, objetivando à revisão destas concepções, desmascarando

sua falsidade à luz da nova realidade.

Ulisses, estabelecendo diálogo com Loreley, recuperando da protagonista

informações acerca de suas origens agrárias pertinentes ao interior do Rio de Janeiro,

bem como as cinco experiências amorosas que a professora experienciou, sem êxito de

satisfação íntima, faz uso da técnica provocativa, entendida como anácrise, para auxiliá-

50

“O enfoque dialógico de si mesmo determina o gênero do solilóquio. Trata-se de um diálogo consigo

mesmo” (BAKHTIN, 2015, p. 137).

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la na sua trajetória existencial: “ Lóri, ouça: pode-se aprender tudo inclusive a amar! E o

mais estranho, Lóri, pode-se aprender a ter alegria!” (LISPECTOR, 1998d, p. 51).

O desenvolvimento do diálogo iniciado por Ulisses resulta da concretização da

anácrise, isto é, Lóri, ao ouvir o posicionamento do professor acerca do que este

pensava sobre a aprendizagem do amor e da alegria, externa, por sua vez, seus

pensamentos. A palavra provocada por Ulisses alcança as palavras de Lóri, que em

reflexão expõe:

– Parece tão fácil à primeira vista seguir conselhos de alguém. Seus

conselhos, por exemplo. [...] Mas existe um grande, o maior obstáculo

para eu ir adiante: eu mesma. Tenho sido a maior dificuldade no meu

caminho. É com enorme esforço que consigo me sobrepor a mim

mesma. [...] Sou um monte instransponível no meu próprio caminho.

Mas às vezes por uma palavra tua ou por uma palavra lida, de repente

tudo se esclarece (LISPECTOR, 1998d, p. 53).

A técnica provocativa inserida no diálogo por Ulisses, a anácrise, faz com que

Lóri reflita acerca da paralisia que reveste sua vivência, marasmo concernente ao

próprio cerne da personagem, que com “enorme esforço” visiona a sobreposição da dor

ao prazer – da ignorância à compreensão –, fato possibilitado por intermédio do

esclarecimento que Ulisses, “por uma palavra tua”, ou a esfera literária, “por uma

palavra lida” proporciona à professora: a provocação da palavra pela própria palavra,

isto é, o desencadear do processo reflexivo em Lóri para que ela mesma encontre a sua

verdade.

No processo de autoconsciência da personagem, a síncrise, também expressa no

texto de Clarice Lispector, corrobora para uma interpretação discursiva ligada ao

diálogo socrático. Definida por Bakhtin como “[... a técnica de] confrontação de

diferentes pontos de vista sobre determinado objeto” (BAKHTIN, 2015, p. 126), a

síncrise, em outros termos, pode ser caracterizada pela interposição dos diferentes

pontos de vista dos interlocutores acerca da temática em pauta, posicionamento que

viabiliza uma “experimentação dialógica da ideia [que] é simultaneamente uma

experimentação do homem que a representa” (BAKHTIN, 2015, p. 127).

A ideia exposta representa a imagem do homem que a defende, bem como

também atua como instrumento para que o outro repense o seu modo de ser no mundo.

A síncrise e a anácrise convertem o pensamento em diálogo,

exteriorizam-no, transformam-no em réplica e o incorporam à

comunicação dialogada entre os homens. Esses dois procedimentos

decorrem da concepção da natureza dialógica da verdade, concepção

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essa que serve de base ao “diálogo socrático” (BAKHTIN, 2015, p.

126, grifo do autor).

Assim posto, compete elucidar o avanço da narrativa em que a aprendizagem de

Loreley se consolida por meio da síncrise, isto é, do confronto dos diferentes modos de

pensar que possibilita à personagem experimentar as várias ideias e fazer as suas

escolhas.

Após receber um telefonema de Ulisses convidando-a para encontrá-lo em um

clube, Lóri compra um maiô novo e vai, timidamente, ao encontro de Ulisses, que

estava sentado à borda da piscina. Percebendo o incômodo de sua namorada por estar

“praticamente nua” (LISPECTOR, 1998d, p. 67) ante sua presença, o professor de

Filosofia inicia um diálogo provocativo, isto é, vinculado à técnica discursiva da

anácrise: “– Veja aquela moça, ali por exemplo, a de maiô vermelho. Veja como anda

com um orgulho natural de quem tem um corpo. Você, além de esconder o que se

chama alma, tem vergonha de ter um corpo” (LISPECTOR, 1998d, p. 68).

Replicando à provocação da fala de Ulisses, em pensamento Lóri evidencia a

síncrise, isto é, técnica discursiva que reúne tanto a provocação quanto o confronto

direcionado à ideia levantada por Ulisses. À provocação imposta por Ulisses, segue-se o

excerto:

Ela não respondeu, mas atingida, tornou-se imperceptivelmente mais

rígida. Depois, como sentiu que ela não ia dizer mais nada, pôde aos

poucos relaxar os músculos. Pensou – tanto quanto lhe era possível

pensar estando de maiô na frente dele – pensou: como é que explicaria

a ele, mesmo que quisesse, e não queria, o longo caminho andado até

chegar àquele momento possível em que suas pernas se balançavam

dentro da piscina. E ele ainda achava pouco. Como explicar que, do

longe de onde de dentro de si ela vinha, já era uma vitória estar

semivivendo. Porque enfim, uma vez quebrado o susto da nudez

diante dele, ela estava respirando de leve, já semivivendo

(LISPECTOR, 1998d, p. 68).

Embora tímida, Lóri estava “semivivendo”. Definição que contempla o fato da

heroína clariciana estar junto ao seu companheiro de maiô, um “longo caminho andando

até chegar àquele momento possível”, isto é, a tessitura do texto em questão aponta para

um primeiro gesto de afirmação da professora ante o susto de estar seminua diante de

Ulisses, que se desdobra em uma afirmação pessoal, vestígios de um novo

posicionamento de se sentir e de estar no mundo.

A par do solilóquio, outra variante do diálogo socrático que contempla a análise

desta dissertação é o chamado diálogo no limiar. O gênero, de acordo com Bakhtin, tem

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por tendência a criação excepcional de uma dramaticidade na tessitura do texto que

“obriga o homem a descobrir as camadas profundas da [sua] personalidade e [do] seu

pensamento.” (BAKHTIN, 2015, p. 127).

Caracterizado pelo confronto entre duas consciências, entre duas maneiras de ver

e de refletir o mundo, o diálogo no limiar impele a personagem da narrativa a desvelar

os fatos numa dimensão de autoconhecimento. Por intermédio do limiar, a personagem

é impelida a decidir afirmativa ou negativamente por uma nova experimentação de vida,

a autoconsciência.

Analisando as referências de leitura em toda a poética de Clarice Lispector,

Ricardo Iannace, no livro A leitora Clarice Lispector51

, aproxima as personagens da

autora para com a ficção do escritor russo Dostoiévski. O pesquisador evidencia que,

semelhantemente ao compasso narrativo do escritor, a escrita de Clarice põe em questão

personagens “com fortes sentimentos de indecisão, [que] apreendem o mundo por meio

de díspares verdades” (IANNACE, 2001, p. 71).

Bakhtin esclarece que o limiar representa o “momento da mudança da vida, da

crise, da decisão que muda a existência (ou da indecisão, do medo de ultrapassar o

limiar)” – (1998, p. 354).52

A experimentação dialógica vivenciada por Lóri, isto é, a

linguagem que em si é fruto da alteridade proporcionada por Ulisses, o partejar das

ideias, reflui na tensão proveniente do estar no limiar, do estar entre. Fato materializado

no discurso de Lóri quando esta avalia a fala de Ulisses, depois avalia a si mesma diante

do parâmetro interposto por seu interlocutor e conclui que avançou no seu

autoconhecimento – está agora “semivivendo.”

Após sonhar que Ulisses estava com outra mulher, Lóri é acordada em

sobressalto pelo ciúme e pela cólera. O sonho desperta em Lóri uma vontade maior de

autoconhecimento e rompimento com a normalidade de sua existência. E esse

conhecimento íntimo acarreta em deixar de lado o pudor com que até então vivera. Para

tanto, Lóri passa a viver de forma centrífuga, isto é, visiona para si uma emancipação da

condição feminina que lhe fora imposta, dando passagem para que o seu desejo sexual a

conduza a novas experiências como mulher, fato materializado na narrativa clariciana

51

“Para uma escritora que se deteve com afinco na sondagem de comportamentos, registrando os

desiquilibrados passos de suas personagens, insistindo sempre em demarcar os pontos culminantes da

vida, a leitura de [... Dostoivéski] só lhe teria de fato a acrescentar” (IANNACE, 2001, p. 71). 52

Entrevistando Tom Jobim, Clarice se deixa entrevistar e postula: “É que sinto que nós chegamos ao

limiar de portas que estavam abertas – e por medo ou pelo não sei, não atravessamos plenamente essas

portas. Que no entanto têm nelas já gravado nosso nome. Cada pessoa tem uma porta com seu nome

gravado, Tom, e é só através dela que essa pessoa perdida pode entrar e se achar” (LISPECTOR, 1999b,

p. 121, 122).

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por meio da experiência erótica que a professora primária vivenciará junto às águas do

mar. A esse respeito, em que o sujeito resiste a um fio centralizador e cristalizado,

Fiorin aponta que:

O sujeito bakhtiniano não está completamente assujeitado aos discursos

sociais. Se assim fosse, negar-se-ia completamente a concepção de

heteroglossia e de dialogismo, centrais na obra do filósofo. A utopia

bakhtiniana é poder resistir a todo processo centrípeto e centralizador.

No dialogismo incessante, o ser humano encontra o espaço de sua

liberdade e de seu inacabamento (FIORIN, 2008, p. 28).

Com essa reflexão de que o ser se constitui, constante e inesgotavelmente,

vislumbrando um processo centrífugo, em que sua liberdade e construção são

asseguradas, é possível asseverar que na narrativa clariciana a personagem Lóri,

enquanto mulher – histórica e social –,é moldada em limitações, mas essas limitações

não são determinadas, há espaço para uma constante ressignificação de sua consciência.

Ao introduzir sua personagem no mar, a autora escolhe não mais a água insossa

da piscina, e sim as águas salgadas da praia de Ipanema.53

A água novamente é

apresentada como elo que conduz Lóri ao conhecimento maior: não mais semiviver,

mas viver. O que lhe ocorre é, de madrugada, entrar na água do mar, sem o olhar do

outro sobre si, sem a preocupação de manter-se sóbria ante seus desejos e instintos. Por

estar sozinha, a preocupação também se reveste em não escandalizar a tradição; o pudor

permanece moldado na personagem. Bakhtin, ao apresentar pressupostos acerca da

constituição do sujeito, aponta que

[...] avaliamos a nós mesmos do ponto de vista dos outros, através do

outro procuramos compreender e levar em conta os momentos

transgredientes à nossa própria consciência: desse modo, levamos em

conta o valor de nossa imagem externa do ponto de vista da possível

impressão que ela venha a causar no outro [...] (BAKHTIN, 2011, p. 13-

14).

Pode-se afirmar que Lóri vivencia um embate em que seus valores são acionados

e, de forma avaliativa, colocados em questão. Embora refute o olhar do outro sobre si,

vislumbra uma amenidade perante sua nova condição, a de encarar o mar e sua força.

Sozinha, em jejum e de noite, Lóri se dirige ao mar. “E tinha a responsabilidade de ser

53

O capítulo que narra a entrada de Lorí ao mar foi publicado, primeiramente, como crônica no Jornal do

Brasil, em 27 de julho de 1968, intitulado Ritual. O mesmo texto apresentado pela autora com o título de

As águas do mundo aparece como conto na compilação Felicidade Clandestina, de 1971, e, em 13 de

outubro de 1973 é publicado outra vez no Jornal do Brasil como crônica. Seu último registro foi como

conto, em 1974, na obra Onde estivestes de noite.

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ela mesma. Nesse mundo de escolhas, ela parecia ter escolhido” (LISPECTOR, 1998d,

p. 68).

Ao eleger as águas salgadas do mar para vivenciar o ato epifânico, Lóri

privilegia justamente um ambiente em que os olhares familiares não a coibirão, uma vez

que em Campos, cidade de onde vinha, não havia mar. Entra, então, no mar e encara

suas águas como numa relação erótica: “E era isso o que estava lhe faltando: o mar por

dentro como o líquido espesso de um homem” (LISPECTOR, 1998d, p. 80). Simulação

sexual que faz com que a personagem clariciana reveja seu posicionamento diante da

sua vivência com as águas salgadas do mar de Ipanema.

De acordo com Mikhail Bakhtin, “A vida conhece dois centros de valores,

diferentes por princípio, mas correlatos entre si: o eu e o outro, e em torno destes

centros se distribuem e se dispõem todos os momentos concretos do existir”

(BAKHTIN, 2010, p. 142).

O embate com o outro, na narrativa clariciana, pode ser considerado pelo duelo

íntimo da personagem, seu quadro de valor refratado que desencadeia com maior fluxo

diante do mar. “Ela e o mar. Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se

entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança com

que se entregariam duas compreensões” (LISPECTOR, 1998d, p. 78).

E é imersa nas águas do mar, e este com sua dimensão e gosto, que Lóri

vivencia o náufrago de seus valores pré-estabelecidos e se posiciona para o

conhecimento de si mesma. E essa nova descoberta restabelece seu posicionamento

diante de si e do outro, em deixar de lado um juízo de valor institucionalizado – como

ser histórico e social – para incorporar em sua vivência, nesse ato evêntico, um novo

acontecimento existencial baseado numa relação com o outro, em que o sujeito precisa

abandonar sua “bagagem modular”, engessada, e afirmar-se numa nova perspectiva de

sentidos.

O ser se constrói através do outro, isto é, traz consigo a construção do eu-moral

que é constantemente, numa ação axiológica, revisitada num processo de confirmação

ou refratamento. Lóri, ao encontrar-se com as águas do mar, enfrenta uma eventicidade

que lhe ocasiona um refratamento em relação a seus preceitos. E é preciso coragem para

romper com o quadro de valor até então imposto à personagem. “A coragem de Lóri é a

de, não se conhecendo, no entanto prosseguir, e agir sem se conhecer exige coragem”

(LISPECTOR, 1998d, p. 79).

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Passados os dois episódios narrativos de autoconhecimento vivenciado por Lóri

– a entrada da protagonista às aguas da piscina e do mar –, reencontrando Ulisses, a

professora primária decide vê-lo sem maquiagem, isto é, “Sem máscara. [Porque]

Sentia-se mais segura por ter entrado no mar sozinha e pretendia ver se teria coragem de

contar a Ulisses a vitória” (LISPECTOR, 1998d, p. 88).

Ao chegar ao bar, vendo-o:

[...] sentado junto ao copo de uísque – inesperadamente a visão dele,

bem longe ainda, provocou-lhe uma feliz e terrível grandeza humana,

grandeza dele e dela. Parecia assustada por estar avançando dentro de

si talvez depressa demais e com todos os riscos – em que direção?

(LISPECTOR, 1998d, p. 88).

O avanço de sua consciência provoca um assombro que ocasiona à protagonista

uma reflexão acerca do novo posicionamento diante de Ulisses. A personagem percebe,

em desafio à condição estagnada de conformidade para com a vida, que a visão de

Ulisses, recebendo-a no bar, sintetiza, na professora, sua vitória vivenciada junto às

águas da piscina e do mar, “duas sensações numa só vitória tímida” (LISPECTOR,

1998d, p. 89). Vitória, embora tímida, que abre espaço para o conhecimento da

protagonista dimensionado na possibilidade da abertura de uma nova porta, “uma porta

aberta a uma vida nova” (LISPECTOR, 1998d, p. 154). Novidade de vida vincada, por

sua vez, ao limiar, isto é, à constância de tensões que a vida, dia após dia, possibilita às

vivências do indivíduo na esfera real de sua existência.

No romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres o cotidiano é celebrado

como possibilidade autêntica para uma experimentação dialógica, para o embate de duas

ideias, para a reflexão acerca dos conflitos existentes “[...] entre mim e eu, entre mim e

os homens, [e consequentemente] entre mim e Deus.”54

(LISPECTOR, 1998f, p. 86),

uma vez que, como já assinalado, a esfera mística também possibilita à personagem

clariciana o vivenciar de sua autoconsciência.

Tendo como mote a possibilidade de uma nova vida atribuída aos protagonistas

de Uma aprendizagem, as páginas finais do romance, já a apresentar uma Loreley sem

resquícios aparentes de uma tentativa de conter a incerteza da vida, vincam na fala de

Ulisses o constante renovo que o cotidiano oferece para a autoconsciência:

54 “Eu, alquimista de mim mesmo. Sou um homem que se devora? Não, é que vivo em eterna mutação,

com novas adaptações a meu renovado viver e nunca chego ao fim de cada um dos modos de existir. Vivo

de esboços não acabados e vacilantes. Mas equilibro-me como posso, entre mim e eu, entre mim e os

homens, entre mim e o Deus” (LISPECTOR, 1998f, p. 86).

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Nós dois sabemos que estamos à soleira de uma porta aberta a uma

vida nova. É a porta. E sabemos que só a morte de um de nós há de

nos separar. Não, Lóri, não vai ser uma vida fácil. Mas é uma vida

nova. (Tudo me parece um sonho. Mas não é, disse ele, a realidade é

que é inacreditável) (LISPECTOR, 1998d, p. 154).

A soleira é o limiar da porta55

, a anteporta, o constante estar entre. É a

possibilidade de ampliação da consciência do indivíduo, marcada explicitamente na

tessitura do texto clariciano, de abertura para um encontro sereno do sobrenatural no

natural. A morte é a impossibilidade de manter o diálogo, de manter a perspectiva de

um constante construto, “só a morte de um de nós há de nos separar”, isto é, com a

morte já não há necessidade de experimentação dialógica.

À ampliação de sua consciência o indivíduo se vale, segundo Bakhtin, de “[...]

tudo o que nele é determinado pelas palavras “eu mesmo” ou “tu mesmo” é tudo em que

ele se descobre, se percebe, é tudo por que ele responde, tudo o que se situa entre o

nascimento e a morte” (BAKHTIN, 2015, p. 328-329). Enquanto há vida, o embate para

com o outro e com o outro, desencadeado em uma construção renovada de consciência é

possível.

Assim posto, o solilóquio, diálogo socrático, o diálogo no limiar, permeados

pelo recurso crítico kitsch e/ou mau gosto e da ironia, dizem respeito, na análise literária

do corpus desta dissertação, à maneira com que a protagonista toma consciência de estar

no mundo, de sentir o mundo – numa experimentação dialógica – e como essa

consciência contribui para o alcance do autoconhecimento.

55

“O limiar, a porta e a escada. Sua importância cronotópica. A possibilidade de, em um instante,

transformar o inferno no paraíso (isto é, passar de um para o outro)” (BAKHTIN, 2015, p. 336).

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CAPÍTULO 3: A POÉTICA DO CORPO INTEIRO EM UMA APRENDIZAGEM

OU O LIVRO DOS PRAZERES

A única forma adequada de expressão verbal da autêntica vida do

homem é o diálogo inconcluso. A vida é dialógica por natureza. Viver

significa participar do diálogo: interrogar, ouvir, responder,

concordar, etc. Nesse diálogo o homem participa inteiro e com toda a

vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o espírito, todo o

corpo, os atos.

Mikhail Bakhtin, Problemas da poética de Dostoiévski

Vale a pena esperar, contra toda a esperança,

o cumprimento da Promessa que Deus fez a nossos pais no deserto.

Até lá, o sol-com-chuva, o arco-íris, o esforço de amor,

o maná em pequeninas rodelas, tornam boa a vida.

A vida rui? A vida rola mas não cai. A vida é boa.

Adélia Prado, O coração disparado

Três anos antes de sua morte, isto é, em 1974, Clarice Lispector lança o livro de

contos intitulado A via crucis do corpo. O rompimento da autora para com as normas

sociais de bom pudor, consideradas à mulher que escreve, amplia-se com a publicação

desse título: o assunto dos contos beira ao pornográfico. Um livro que, se lido

superficialmente, destoa da obra lispectoriana, uma vez que a escritora discute, crua e

diretamente, o enfoque sexual em suas personagens56

. São treze contos curtos, que se

somados ao texto Explicação, que abre o livro, como numa encenação de prefácio57

,

remontam às catorze etapas da via sacra cristã. O sofrimento, que no sentido religioso

aponta para uma elevação espiritual, ressurreição, na compilação de contos claricianos é

associado às experiências terrenas. Experiências que evocam a sensualidade/erotismo do

corpo humano, bem como a compreensão de se ter um corpo desencadeado na

consciência de ser e estar no mundo. Nesse veio, portanto, o profano é celebrado como

condição humana58

, na tessitura escritural de Clarice Lispector.

56

“No entanto, ela [Clarice] é a mesma de sempre, a que nunca se recusou a fitar com os olhos abertos a

selvageria do desejo humano, da avidez humana, da sordidez humana”(CHIARA apud LISPECTOR,

1998g, primeira orelha). 57

No livro Clarice Lispector e a encenação da escritura: em A via crucis do corpo, Nilze Maria Reguera

detém-se a analisar com profundidade, como sugere o título de seu trabalho, a encenação materializada

por Clarice na compilação de contos publicados em 1974. 58

Adélia Prado, no poema intitulado Direitos humanos, evidencia tal condição: “Sei que Deus mora em

mim [...] mas essa letra é minha” (PRADO, 2007b, p. 69).

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O profano, sob a ótica poética de Clarice, não é enxergado como ofensa ou

distanciamento ao/do divino. A concepção clariciana de profano reside – diferentemente

do termo em sua etimologia, isto é, alheio ao que é considerado sagrado – em conferir

uma espécie de santidade terrena ao indivíduo59

, em outros termos, não sublimar a

condição humana em comparação ao que é divino. “Vós sois deuses” (LISPECTOR,

1998f.) é a expressão citada por Lóri que se encontra gravada primeiramente no Antigo

Testamento da Bíblia Sagrada e redimensionada no Novo Testamento por Jesus

Cristo60

. Grife-se que a esfera mística é comungada pelas personagens de Clarice

Lispector. Lóri se dirige ao Deus em oração tradicional e íntima no romance, porém, a

trajetória da heroína clariciana se consolida, sobretudo, na experimentação de sua

realidade, da sua corporeidade: sua autoconsciência.

O corpo é elemento recorrente e de vital importância à compreensão do texto

Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres de Clarice Lispector; é por meio dele que

Loreley, a protagonista deste que é o sexto romance da autora, como já observado pela

crítica Olga de Sá, “faz um exercício prévio para o amor, reativando sua capacidade de

sentir, nos mercados, reaprendendo a cheirar, a tatear as frutas, enfim uma reeducação

dos sentidos para atingir um sentimento além deles, de que Lóri parecia incapaz” (SÁ,

2004, p. 282).

Se as personagens de Clarice, no livro A via crucis do corpo, evidenciam “o

corpo nos seus desarranjos pulsionais, na tirania dos seus desejos, nas suas fraturas e

feridas, nos seus êxtases” (CHIARA apud LISPECTOR, 1998g, contracapa), para além

do gozo sexual, o que à Lóri é destinado na escrita de Clarice nO livro dos prazeres é

uma experimentação amorosa conquistada por meio de um desempenho mental e

corporal. “A racionalidade não é uma condição oposta ao sentimento. [...] No texto, o

saber se efetiva como suporte do prazer” (GROB-LIMA, 2009, p. 223).

Cumpre observar que o enfrentamento de Clarice Lispector – “a liberdade

maior” – no que tange à realização de um texto contemplado na sensualidade do amor e

do prazer carnal é vital no romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.

Nem antes nem depois ela alcança o mesmo grau de vibração erótica

entre dois seres humanos na presença um do outro, nem mesmo em

seu proposto livro “pornográfico” A via crucis do corpo. O erós da

59

“Escuta, existe uma coisa que se chama santidade humana, e que não é a dos santos. Tenho medo de

que nem o Deus compreenda que a santidade humana é mais perigosa que a santidade divina, que a

santidade dos leigos é mais dolorosa. Embora o próprio Cristo tenha sabido que se com Ele haviam feito o

que fizeram, conosco fariam muito mais, pois Ele dissera: ‘Se fizeram isso com o ramo verde, o que farão

com os secos’” (LISPECTOR, 1998c, p. 130). 60

Salmo 82: 6 e João 10: 34.

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escrita clariciana parece ter uma dificuldade em se imiscuir nos

humores da carne. E mesmo em O livro dos prazeres ele só o faz

timidamente, embora seja essa a sua mais veemente exposição

(PIRES, 2006, p. 204).

No livro de estreia de Clarice Lispector, Perto do coração selvagem, a palavra

corpo é grafada cerca de cento e trinta e sete vezes. A expressão corporal é lugar

comum na poética da autora. Ocorrência reiterada em Uma aprendizagem ou o livro dos

prazeres: a grafia corpo é sinalizada cinquenta e três vezes na tessitura desse texto, além

dos seus desdobramentos, como elencados a seguir:

Corpo-casa (p. 29),

Corpo-alma (p. 47),

Corpo a corpo (p. 76 - 2 vezes; p. 77, p. 96),

Corpos (p. 92).

Essa constatação direciona a dissertação a uma abordagem direta para com a

importância atribuída pela autora ao corpo de sua protagonista. Lóri terá que passar por

uma via crucis do seu corpo, mortificando e modificando padrões, estereótipos;

reativando os seus sentidos, até alcançar “[...] a dádiva indubitável de existir

materialmente” (LISPECTOR, 1998, p. 135). A trajetória da heroína de Clarice

Lispector no romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, portanto, se

consolida na vivência das quatro estações do ano. O foco a partir de então privilegiará o

tempo, isto é, o verão, o outono, o inverno e a primavera, em consonância com o

aprendizado corpóreo de Lóri.

3.1 PRIMAVERA/VERÃO

Antes da vírgula e do gerúndio que dão início ao romance Uma aprendizagem

ou o livro dos prazeres, salta aos olhos do leitor, como uma espécie de subtítulo do

livro, a seguinte grafia:

A Origem da Primavera

Ou

A Morte Necessária em Pleno Dia

Tal como a possível disjunção concernente ao título do romance, isto é, a

dicotomia existente na nomenclatura da obra Uma aprendizagem / O livro dos prazeres,

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a grafia em destaque prenuncia o processo pelo qual a protagonista vivenciará: um ciclo

completo com seu início na primavera, passando pelas outras estações, encerrando de

forma a regressar na primavera, estação primeira que surge renovada à protagonista.

Durante a trajetória de Lóri, materializada no romance por um período de um

ano, a via crucis se apresentará à personagem, e para ressurgir no alcance de uma nova

dimensão de sua consciência, a morte como simbologia para a ressureição se fará

necessária. “Mas se a origem da primavera é a morte necessária em pleno dia, Loreley a

anela, e tal qual Penélope trama sua mortalha” (MOCHIUTI, 2006, p. 76):

Ah como queria morrer. Nunca experimentara ainda morrer – que

abertura de caminho tinha ainda à frente. Morrer teria a mesma

pungência indivisível do bom. A quem daria sua morte? Que seria

como os primeiros calores frescos de uma nova estação (LISPECTOR,

1998d, p. 117, 118).

O processo de morte desencadeado na vida, já aludido nesta dissertação nas

análises interpretativas das três epígrafes que compõem os paratextos desse romance,

será distendido nas análises sequentes.

Sublinhe-se neste momento as contribuições de Olga de Sá às possibilidades

interpretativas acerca da disjunção dos títulos dos romances de Clarice Lispector:

Já se disse que a poética de Cortázar é a do “escorpião encalacrado”,

mordendo sua própria cauda. Clarice também trabalha desgastando a

linguagem, denunciando o ato de escrever, alertando constantemente a

consciência do leitor para o fato insofismável, mas esquecido, de que

ele é leitor e ela escreve, isto é, faz literatura, inventa universos de

palavras. Tanto o ato de escrever como o ato de ler são questionados,

na ficção de Clarice, em agoniado confronto com o ser o viver61

(SÁ,

1993b, p. 20).

Sob esse viés de questionamento, pode-se afirmar que Clarice busca um leitor

atuante para se ater aos seus escritos. A nota que abre o romance A paixão segundo

G.H. evidencia tal premissa: “Este livro é como um livro qualquer mas eu ficaria

contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada” (LISPECTOR, 1998c, p.

7). O leitor é convidado a pactuar com a escritora, a visitar seu universo de escrita,

consciente de que sua criação ficcional, bem como a leitura que a ele é compreendida de

sua obra, permeiam o constante confronto da linguagem, ao questionamento intrínseco

ao mundo ficcional criado por Clarice, isto é, o leitor atuante de Clarice Lispector

61

Esse confronto materializado na obra de Clarice Lispector pode ser percebido também nos títulos

constrativos com que a autora direcionou aos seus romances: “Quase todos os títulos de seus romances

exprimem, por meio de uma contradição interna, contrastante (cantra-canto), o sopro vital de seu próprio

hálito de escritora: A cidade / sitiada, A maçã / no escuro, A paixão / segundo G.H.,

O livro dos prazeres / Uma aprendizagem, A hora / da estrela” (SÁ, 1993b, p. 20).

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entende que “antes de ser coisa narrada, a narrativa é forma que narra” (CANDIDO,

1996, p. XVIII).

Posto luz aos desdobramentos interpretativos do título do romance, bem como a

possível consideração acerca do suposto subtítulo dO livro dos prazeres, o enfoque

interpretativo volta-se à interpretação do corpo da heroína Lóri como elemento que

contribui para a concretização da sua autoconsciência.

A primeira vez que aparece a palavra corpo no romance aponta para uma Lóri

preocupada com a realização do significado do seu nome. Já na primeira linha da

segunda página do romance, a grafia corpo se faz presente metaforicamente aludida à

“dificuldade de um petróleo rasgando a terra” (LISPECTOR, 1998d, p. 14).

Após a rememoração da fala de Ulisses: “ele dissera uma vez que queria que ela,

ao lhe perguntarem seu nome, não respondesse ‘Lóri’ mas que pudesse responder ‘meu

nome é eu’” (LISPECTOR, 1998d. p. 13), a personagem é focalizada ante a constatação

de que teria um encontro com Ulisses, sua preocupação é: de que forma se apresentaria

a ele?: “se o vestido branco e preto serviria”. O ritual de se adornar para o encontro abre

espaço para que a personagem tenha uma percepção inicial e, ainda superficial, de seu

corpo:

... então do ventre mesmo, como um estremecer longínquo da terra

que mal se soubesse ser sinal de terremoto, do útero, do coração

contraído veio o tremor gigantesco duma forte dor abalada, do corpo

todo o abalo – e em sutis caretas de rosto e de corpo afinal com a

dificuldade de um petróleo rasgando a terra – veio afinal o grande

choro seco, choro mudo sem som algum até para ela mesma, aquele

que ela não havia adivinhado, aquele que não quisera jamais e não

previra – sacudida como a árvore forte que é mais profundamente

abalada que a árvore frágil – afinal rebentados canos e veias,

(LISPECTOR, 1998d, p. 13, 14, grifos nossos).

Ventre, útero, coração. A intimidade sexual e sentimental da personagem é

sinalizada já no início da narrativa direcionando ao seu corpo uma contenção dessas

duas esferas. O excerto acima revela ao leitor uma Lóri capaz de resguardar seus

desejos e sentimentos, submetendo-os à contenção da angústia, à contenção da dor.

Entretanto, o corpo da personagem pede expressão para se desprender ou minimizar o

abalo da clausura a que está submetido. Com dificuldade, tremendo e abalado, o corpo

de Lóri reclama o processo do choro que a protagonista, nesse primeiro momento, tenta

conter: “choro seco”.

Se há contenção da passagem da sequidão à torrente de águas, isto é, se a

narrativa permeia as estações do ano mediante também a compreensão de que Lóri é

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materializada, tem um corpo; como é descrito o corpo de Lóri no processo de sua

autoconsciência? “seu corpo era fino e forte, um dos motivos imaginários que fazia com

que Ulisses a quisesse” (LISPECTOR, 1998d, p. 16).

Preparando-se para o encontro com Ulisses, a narrativa põe em cena uma Lóri

extremamente preocupada com sua aparência física à visão de seu parceiro.

... escolheu um vestido de fazenda pesada, apesar do calor, quase sem

modelo, o modelo seria o seu próprio corpo mas enfeitar-se era um

ritual que a tornava grave: a fazenda já não era um mero tecido,

transformava-se em matéria de coisa e era esse estofo que com o seu

corpo ela dava corpo — como podia um simples pano ganhar tanto

movimento? seus cabelos de manhã lavados e secos ao sol do pequeno

terraço estavam da seda castanha mais antiga — bonita? não, mulher:

Lóri então pintou cuidadosamente os lábios e os olhos, o que ela fazia,

segundo uma colega, muito mal feito, passou perfume na testa e no

nascimento dos seios [...] perfumar-se era um ato secreto e quase

religioso — usaria brincos? hesitou, pois queria orelhas apenas

delicadas e simples, alguma coisa modestamente nua, hesitou mais:

riqueza ainda maior seria a de esconder com os cabelos as orelhas de

corça e torná-las secretas, mas não resistiu: descobriu-as, esticando

os cabelos para trás das orelhas incongruentes e pálidas: rainha

egípcia? não, toda ornada como as mulheres bíblicas, e havia também

algo em seus olhos pintados que dizia com melancolia: decifra-me,

meu amor, ou serei obrigada a devorar, e agora pronta, vestida, o

mais bonita quanto poderia chegar a sê-lo, vinha novamente a dúvida

de ir ou não ao encontro com Ulisses — pronta, de braços pendentes,

pensativa, iria ou não ao encontro? (LISPECTOR, 1998d, p. 16, 17,

grifos nossos).

Embora a personagem tenha escolhido um vestido de tecido pesado, ela está

segura de que o seu corpo o molda. Registre-se a atenção também ao exame que ela faz:

dos cabelos, dos lábios, dos olhos, das orelhas. Não só a preparação para o encontro

segue um ritual, mas também todo o seu corpo composto para esse objetivo se projeta

para o fim último – a sedução. A camada semântica dos vocábulos e das expressões em

destaque trabalha para criar a isotopia da esfinge que se mostra desafiadora,

provocativa, que anseia por amar (“devorar”) e ser amada (“devorada”). A imagem de

Lóri neste passo alcança a imagem da mulher amada (a esposa) do Cântico dos

Cânticos, de Salomão (por exemplo, o capítulo 7), aludida indiretamente no discurso da

personagem. Nesse livro bíblico, o discurso do corpo é marcado por sinestesias que

sublinham o desejo:

Quão formosos são os teus pés nas sandálias, ó filha de príncipe! Os

contornos das tuas coxas são como joias, obra das mãos do artista. O

teu umbigo como uma taça redonda, a que não falta bebida; o teu

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ventre como montão de trigo, cercado de lírios. Os teus seios são

como dois filhos gêmeos da gazela. O teu pescoço como a torre de

marfim; os teus olhos como as piscinas de Hesbom; junto à porta de

Bate-Rabim; o teu nariz é como torre de Líbano, que olha para

damasco. A tua cabeça sobre ti é como o monte Carmelo, e os cabelos

da tua cabeça como a púrpura; o rei está preso pelas tuas tranças.

Quão formosa, e quão aprazível és, ó amor em delícias (Cântico dos

cânticos, 7: 1 ao 6).

Após o ritual antigo, isto é, o processo de se autoproduzir para um encontro, uma

reflexão acerca de proteção é focalizada em Lóri: “Proteção seria presença? Se fosse

protegida por Ulisses ainda mais do que era, ambicionaria o máximo: ser tão protegida a

ponto de não recear ser livre: pois de suas fugidas de liberdade teria sempre para onde

voltar” (LISPECTOR, 1998d, p. 19).

Mas é após ter-se visto de corpo inteiro, embora de relance, que à personagem é

instaurada a reflexão de que para ser inteira, indelimitada, seu corpo necessita ligar-se

ao corpo de Ulisses.

Por ter de relance se visto de corpo inteiro ao espelho, pensou que a

proteção também seria não ser mais um corpo único: ser um único

corpo dava-lhe, como agora, a impressão de que fora cortada de si

própria. Ter um corpo único circundado pelo isolamento, tornava tão

delimitado esse corpo, sentiu ela, que então se amedrontava de ser

uma só, olhou-se avidamente de perto no espelho e se disse

deslumbrada: como sou misteriosa, sou tão delicada e forte, e a curva

dos lábios manteve a inocência.

Pareceu-lhe então, meditativa, que não havia homem ou mulher que

por acaso não se tivesse olhado ao espelho e não se surpreendesse

consigo próprio. Por uma fração de segundo a pessoa se via como um

objeto a ser olhado, o que poderiam chamar de narcisismo mas, já

influenciada por Ulisses, ela chamaria de: gosto de ser. Encontrar na

figura exterior os ecos da figura interna: ah, então é verdade que eu

não imaginei: eu existo (LISPECTOR, 1998d, p. 19, grifos nossos).

O espelho tensiona na narrativa alguns planos interpretativos condizentes à Lóri.

O primeiro se dá pela concepção de sua solidão enquanto pessoa, um único corpo, não

unificado com seu parceiro. A personagem se vê só; não totalmente protegida por

Ulisses. O limite, a solidão, a pequenez, a finitude humana.

O ato da autocontemplação acarreta, também, a percepção do mistério, da

esfinge. Fato que povoa o romance62

: “como sou misteriosa.” (LISPECTOR, 1998d, p.

19), “decifra-me, meu amor, ou serei obrigada a devorar” (LISPECTOR, 1998d, p. 17).

62

Em diálogo com Lóri, Ulisses afirma: “Teus olhos, disse ele, [...] são confusos mas tua boca tem a

paixão que existe em você e de que você tem medo. Teu rosto, Lóri, tem um mistério de esfinge: decifra-

me ou te devoro. Ela se surpreendeu de que também ele tivesse notado o que ela via de si mesma no

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Por último, ver-se de corpo inteiro ante o espelho desencadeia em Lóri um

sentimento para além do tradicional mito de Narciso, isto é, “o gosto de ser”, a

percepção de se ter um corpo e de existir nele e através dele, direcionando-o à busca do

autoconhecimento.

Corroborando essa premissa, Aurora Gedra Ruiz Alvarez, ao analisar as versões

do mito de Narciso, esclarece que: “O mito de Narciso encerra uma concepção solipsista

do homem que, da esfera do não ser, do vazio que o angustia e o aniquila, busca a

unidade perdida” (ALVAREZ, 2011, p. 94).

Em relação ao ato da contemplação, Mikhail Bakhtin pontua que: “vemos o

reflexo da nossa imagem externa, mas não a nós mesmos em nossa imagem externa; a

imagem externa não nos envolve ao todo, estamos diante e não dentro do espelho”

(BAKHTIN, 2011, p. 30).

Destarte, embora o espelho intermedeia Lóri à percepção do seu corpo, seu

aprendizado não se fixa apenas no vislumbre de seu atilamento externo. “O espelho”,

completa Bakhtin, “só pode fornecer o material para a auto-objetivação, e ademais um

material não genuíno”63

(BAKHTIN, 2011, p. 30).

A narrativa prossegue a direcionar a protagonista em diálogo com Ulisses, esse

por sua vez, evidencia estar adiantado ao processo de autoconsciência se comparado ao

de Lóri: “Eu já poderia ter você com o meu corpo e minha alma. Esperarei nem que

sejam anos que você também tenha corpo-alma para amar” (LISPECTOR, 1998d, p.

47). Lóri, entretanto, na sua incompletude de corpo e de alma, ao ouvir o

posicionamento de espera de Ulisses, sente-se à mercê de um suposto abandono do

parceiro:

Mas apesar de ele poder compreender, receava sua censura ou de que

ele desanimasse e a abandonasse, e nunca lhe dissera que o “mal”

muitas vezes voltava: o ar dentro dela tinha então cheiro de poeira

molhada. [...] E reunia toda a sua força para parar a dor. Que dor era?

A de existir? A de pertencer a alguma coisa desconhecida? A de ter

nascido? (LISPECTOR, 1998d, p. 49).

As oscilações constantes que à personagem são comuns, materializadas no

romance como dor, angústia, sequidão, evidenciam o medo que a protagonista sente de

espelho. – Meu mistério é simples: eu não sei como estar viva. – É que você só sabe, ou só sabia, estar

viva através da dor. – É” (LISPECTOR, 1998d, p. 90). 63

Assim, o espelho pode refletir uma imagem confortante, mesmo que o íntimo esteja em desacordo com

o exterior. Cabe uma estrofe do poema Bendito, de Adélia Prado, para melhor aludir: “Louvado sejas

Deus meu Senhor/ porque o meu coração está cortado a lâmina,/ mas sorrio no espelho ao que,/ à revelia

de tudo, se promete” (PRADO, 2007a, p. 64).

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se reconhecer na dor para sobressair-se do próprio sofrimento. “A vida inteira tomara

cuidado em não ser grande dentro de si para não ter dor.” (LISPECTOR, 1998d, p. 56),

mas compete à professora a percepção de si como pessoa para se autoconhecer corpórea

e mentalmente. “Mas antes precisava tocar em si própria, antes precisava tocar no

mundo” (LISPECTOR, 1998d, p. 56).

A narrativa, então, apresenta Lóri atendendo ao convite de Ulisses para

encontrá-lo no clube, junto às águas da piscina: “era só dizer na portaria que era

convidada dele” (LISPECTOR, 1998d, p. 67). O fato de “se verem quase nus”

(LISPECTOR, 1998d, p. 67) temoriza a personagem que se sente inibida ao se deixar

contemplar em trajes de banho publicamente: “Procurou disfarçar a dura relutância em

ficar praticamente nua, afinal tirou o roupão, ela nem sequer o olhava” (LISPECTOR,

1998d, p. 68).

Rompendo o silêncio ocasionado pela timidez da personagem, Ulisses põe em

questão a insegurança de Lóri em duas esferas de sua vida: sua alma e seu corpo: “Veja

aquela moça ali, por exemplo, a de maiô vermelho. Veja como anda com um orgulho

natural de quem tem um corpo. Você, além de esconder o que se chama alma, tem

vergonha de ter um corpo” (LISPECTOR, 1998d, p. 68, grifo nosso).

Lóri, ao refletir acerca do “longo caminho andado até chegar àquele momento

possível em que suas pernas se balançavam dentro da piscina” (LISPECTOR, 1998d, p.

68), vê-se, de leve, “semivivendo”, isto é, à experimentação “do gosto do ser”, de

seduzir e ser seduzida.

A um movimento seu, que era o de jogar os cabelos para trás, viu num

relance o rosto dele, percebeu que ele a olhava e que a desejava.

Sentiu então um pudor que já diferia do que ele chamara de pudor de

ter um corpo. Era um pudor de quem também deseja, assim como Lóri

desejara colar o peito e os membros no Deus. Ao perceber muito claro

o próprio desejo, tornou-se arisca e dura, e ficaram em silêncio o resto

da tarde. Ela foi se tranquilizando e perdeu o medo maior que tinha: o

de perdê-lo por se atardar tanto (LISPECTOR, 1998d, p. 68).

O constante refluxo, o recuo que é instaurado à concretude das realizações da

personagem, como já aludido, evidencia a preocupação que a personagem nutre para

não se expor à dor. Ela que “era uma adoradora de homens” (LISPECTOR, 1998d, p.

70), que já se deixou relacionar com cinco amantes que “não foram propriamente

amantes porque [ela] não os amava” (LISPECTOR, 1998d. p. 50), permite-se, “sob a

nova luz”, à percepção da beleza e virilidade de Ulisses:

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Quanto a Ulisses, nessas novas cores que enfim Lóri tinha a

capacidade de ver quanto a Ulisses estava agora a um tempo sólido e

transparente, o que o enriquecia de ressonâncias e esplendor. Podia-se

chamá-lo de homem belo.

Pela primeira vez então olhou-o sob o ponto de vista de beleza

estritamente masculina, e viu que havia nele uma calma virilidade.

Sob a nova luz, Ulisses estava irreal e no entanto verossímil

(LISPECTOR, 1998d, p. 69, 70).

Essa constatação, o fato de se permitir ao prazer da contemplação do corpo de

Ulisses, materializa nO livro dos prazeres, mais uma vez, o recuo, enquanto se avança,

da aprendizagem da personagem.

Que faço da felicidade? Que faço dessa paz estranha e aguda, que já

está começando a me doer como uma angústia, como um grande

silêncio de espaços? A quem dou minha felicidade, que já está

começando a me rasgar um pouco e me assusta. Não, não quero ser

feliz. Prefiro a mediocridade. Ah, milhares de pessoas não têm

coragem de pelo menos prolongar-se um pouco mais nessa coisa

desconhecida que é sentir-se feliz e preferem a mediocridade. Ela se

despediu de Ulisses quase correndo: ele era o perigo (LISPECTOR,

1998d, p. 73).

Retomando “em alerta” o processo de aprendizagem, o capítulo que se segue à

descrição acima evidencia Lóri na tentativa de se desprender das suas origens: ela “era

de Campos, terra sem mar, e nunca chegara a pegar o hábito de ir à praia que ficava tão

próxima de seu apartamento” (LISPECTOR, 1998d, p. 76).

A simbologia das águas, constante no romance, aponta à necessidade da

protagonista de desligar-se da esfera continental, do hábito da sequidão, do

aprisionamento social, direcionando sua aprendizagem ao prazer e imensidão das águas.

A solidão na aprendizagem se faz necessária e a heroína clariciana escolhe o mar

para experimentação de um novo posicionamento de vida, não sem antes enfrentar um

“corpo a corpo consigo mesma. [...] iria perder ou ganhar? Mas continuaria seu corpo a

corpo com a vida. Alguma coisa se desencandeara nela, enfim. E aí estava ele, o mar.”

(LISPECTOR, 1998d, p. 76, 77).

Diante do mar, “Lóri aceita seu destino de amanhecer, aceita a dor da condição

humana e a solidão que lhe é intrínseca. Entre a vida e a morte, ela escolhe viver e

prepara-se para o ritual de imersão na vida, no mar, ao raiar do dia” (PIRES, 2006, p.

239). Desta forma, o corpo de Lóri é apresentado ao leitor de forma limitada e por isso

mesmo quente, ao contrário da vastidão que o mar ocasiona.

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Seu corpo se consola de sua própria exiguidade em relação à vastidão

do mar porque é a exiguidade do corpo que o permite tornar-se quente

e delimitado, e o que a tornava pobre e livre gente, com sua parte de

liberdade de cão nas areias. Esse corpo entrará no ilimitado frio que

sem raiva ruge no silêncio da madrugada (LISPECTOR, 1998d, p. 78,

79, grifos nossos).

A voz narrativa esclarece que o corpo da personagem é destinado ao encontro do

ilimitado frio do silêncio da madrugada. “Lóri está sozinha” (p. 79) e é com essa

condição que se permite confluir à iniciação propiciada ao batismo das águas. É no seu

corpo inteiro que a água se fará sentir, fertilizando-a à passagem de um estado a outro.

Agora que o corpo todo está molhado e dos cabelos escorre água,

agora o frio se transforma em frigido. Avançando, ela abre as águas do

mundo pelo meio. [...] com a concha das mãos cheias de água, bebe-a

em goles grandes, bons para a saúde de um corpo.

E era isso o que estava lhe faltando: o mar por dentro como o líquido

espesso de um homem. [...] E agora pisa na areia. Sabe que está

brilhando de água, e sal e sol. Mesmo que o esqueça, nunca poderá

perder tudo isso (LISPECTOR, 1998d, p. 79, 80, 81, grifo nosso).

O mar possibilita à heroína de Clarice Lispector a concretude de um ritual de

renovação, “no qual Lóri morre simbolicamente unindo-se ao masculino não humano e

renasce [...] para se unir ao masculino humano, o que antes lhe era impossível. O

encontro de Lóri com o mar é, portanto, um hièros gamos, um casamento sagrado”

(PIRES, 2006, p. 244).

Ritual que, para além de uma projeção à união amorosa entre os protagonistas,

desperta em Lóri seus sentidos aparentemente congelados pelo medo que nutria antes da

sua entrega ao mar. Entrega que a reintegra à concepção de se ter um corpo.

O mar desperta em Lóri uma atenção para com os seus sentidos. O olfato e o

paladar são fortemente utilizados pela protagonista junto às águas do mar: “O cheiro é

de uma maresia tonteante que a desperta do seu mais adormecido sono secular. [...] Com

a concha das mãos cheia de água, bebe-a em goles grandes, bons para a saúde de um

corpo” (LISPECTOR, 1998d, p. 79, 80).

Fertilizada, atenta aos sentidos do seu corpo, a heroína de Clarice Lispector vai

reaprendendo a se colocar no mundo, a reconhecer seu corpo como passaporte para o

autoconhecimento, não sem dor.

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3.2 OUTONO

Após o ritual comungado junto às águas do mar de Ipanema, segue-se o episódio

do coquetel: “[...] que já prenunciava o outono” (LISPECTOR, 1998d, p. 85).

O evento social apresenta-lhe como uma nova oportunidade de aproximação

para com a completude integradora do “gosto de ser”, da percepção de se ter um corpo,

de existir nele. Lóri vai sozinha ao evento, entretanto, reencontra dois de seus ex-

amantes lá. Por já não se sentir ligada a eles, Lóri percebe que “preferiria morrer de

amor do que sentir-se indiferente” (LISPECTOR, 1998d, p. 85). Contestação que

direciona a protagonista a um avanço em seu ciclo de aprendizagem, ela, que era “uma

adoradora de homens”, a sereia que seduz, sente a necessidade de uma ligação não

apenas físico-sexual, mas um enlace corpóreo e mentalmente integrador.64

É por isso que a personagem, não aguentando a superficialidade de se estar

excessivamente maquilada no coquetel, já a caminho de sua casa, no táxi ainda, começa

a refletir acerca do uso excessivo de cosméticos em seu rosto, do esconder-se por trás da

pintura, de representar uma aparência não condizente com sua alma, com o processo de

aprendizagem no qual está inserida.

Escolher a própria máscara era o primeiro gesto voluntário humano. E

solitário. Mas quando enfim se afivelava a máscara daquilo que

escolhera para representar-se e representar o mundo, o corpo ganhava

uma nova firmeza, a cabeça podia às vezes se manter altiva como a de

quem superou um obstáculo: a pessoa era (LISPECTOR, 1998d, p. 87,

grifo nosso).

Despojada de maquilagens, “[...] sem pintura. Sem máscara” (LISPECTOR,

1998d, p.88), a personagem se encaminha a um novo encontro com Ulisses, mas desta

vez, “sentia-se mais segura por ter entrado no mar sozinha” (LISPECTOR, 1998d, p.

88). No diálogo enquadrado pelas personagens nesse encontro, entre as perguntas feitas

por Ulisses à professora, destaca-se:

“- Você ainda não se habituou a viver? Perguntou Ulisses com intensa

curiosidade.

- Não” (LISPECTOR, 1998d, p. 91).

Assim, a negação da protagonista ao hábito da vida evidencia a constante

transformação que é peculiar à condição humana, o ser inacabado, em constante

64

No avanço da narrativa, Lóri evidencia: “[...] antes o sofrimento legítimo que o prazer forçado”

(LISPECTOR, 1998d, p. 107).

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transformação. Segundo Bakhtin, “a única forma adequada de expressão verbal da

autêntica vida do homem é o diálogo inconcluso” (BAKHTIN, 2015, p. 329, grifos do

autor).

Fato metaforicamente confirmado, na figura de um diamante a ser lapidado, na

reflexão que Lóri tenciona na narrativa: “[...] é como se eu abrisse minha mão fechada e

dentro descobrisse uma pedra: um diamante irregular em estado bruto” (LISPECTOR,

1998d, p. 91).

Lóri, então, comenta acerca da vida “marcada” que vivenciara em Campos, no

interior do estado do Rio de Janeiro: órfã de mãe, vivia com seu pai e quatro irmãos.

“Tentaram me marcar” (LISPECTOR, 1998d, p. 95), mas se aproveitou de uma crise

financeira da família, que fez com que perdessem “grande parte da fortuna e quase que a

maioria dos criados” (LISPECTOR, 1998d, p. 95), para se fixar na capital carioca. O

fato de se ver longe da repressão familiar, da “marca” dos seus ancestrais, faz com que a

personagem diga que teve “[...] a impressão de ter voltado às minhas verdadeiras

proporções. E à liberdade, é claro” (LISPECTOR, 1998d, p. 95).

Ulisses, por sua vez, percebe em Lóri o não uso de maquiagem:

Gosto do teu rosto suado sem pintura embora também goste do modo

exagerado como você se pinta. Mas é que pintada você prova não sei

de que forma que não é virgem. Não, não se engane, não pense que eu

desejaria que você fosse virgem, aliás de certo modo você é

(LISPECTOR, 1998d, p. 96).

A percepção de Ulisses, como interlocutor de Lóri em seu processo de

aprendizagem, evidencia o respeito que este nutre pelas características moldadas à

personagem, nesse caso, o uso excessivo de maquiagens; entretanto, por meio do

diálogo, o professor joga luz à essência da protagonista, algo que no relacionamento das

personagens é cultuado em primazia, isto é, a essência é valorizada mais do que a

aparência.

A virgindade marcada na fala de Ulisses pode ser interpretada pelo motivo de

Lóri ter se unido aos seus amantes anteriores apenas pelo prazer sexual, pela entrega

momentânea e passageira ao prazer; dessa forma, a personagem permanece virgem, seu

corpo continua intacto ao prazer mútuo de uma relação consolidada pela essência, pela

aprendizagem do amor que à protagonista é projetada no final do romance.

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3.3 INVERNO

A narrativa prossegue, assim como as estações pelas quais Lóri se constitui

dentro do romance de Clarice Lispector. Chega “um longo e tenebroso inverno”

(LISPECTOR, 1998d, p. 102).

Ulisses convida Lóri para almoçarem juntos. Esse novo encontro tem como local

um restaurante na Floresta da Tijuca e como sonoridade a chuva que cai

incessantemente: “[...] chovia como que no mundo inteiro” (LISPECTOR, 1998d, p.

106). Faz frio. “Ele levou-a para um salão onde havia uma lareira acesa, enquanto ia

encomendar o almoço na sala do restaurante. Em breve voltava, ele mesmo com dois

copos de vinho vermelho na mão” (LISPECTOR, 1998d, p. 104).

A atenção interpretativa aqui se direciona a uma das simbologias que o vinho

representa. Interessa, dentre as diversas interpretações acerca dessa bebida, a leitura

condizente com o apreço pela vida, o prazer de viver, à fertilidade. O primeiro milagre

realizado por Jesus Cristo foi o de transformar água em vinho, isto é, transformar a

tristeza – ocasionada pela falta da bebida em um casamento – em redobrada alegria.

Alegria é um dos sentimentos que à Lóri é projetado vivenciar. Ulisses afirma: “[...]

quem é capaz de sofrer intensamente, também pode ser capaz de intensa alegria”

(LISPECTOR, 1998d, p. 98, 99).

Outra leitura acerca da simbologia do vinho, também de origem cristã, se detém

à bebida como referência ao sangue de Cristo. Símbolo que alcança “uma nova aliança”

proposta pela doutrina cristã, isto é, com a morte de Jesus Cristo na cruz, as barreiras

existentes entre homem e Deus são dissipadas, uma aproximação direta com o divino é

homologada.

Seguindo à apreciação do vinho, chamados para almoçar, a refeição servida

naquele dia no restaurante “era galinha ao molho pardo. Os dois comeram e beberam

em silêncio, sem pressa. Estava bom” (LISPECTOR, 1998d, p. 105).

Na culinária brasileira, a receita tradicional de “galinha ao molho pardo”

contém, entre os seus ingredientes, uma dosagem significativa do sangue do animal

abatido: “[...] bem pardo por causa do sangue espesso que eles lá sabem preparar”

(LISPECTOR, 1998d, p. 99). O paladar de Lóri, seguido de Ulisses, experimenta o

vinho e, seguidamente, o sangue de animal; líquidos amplamente simbólicos que

apontam para uma nova possibilidade de vida, se interligada à esfera mística condizente

à renovação, a uma nova aliança.

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Nasce-se com sangue e com sangue corta-se para sempre a

possibilidade de união perfeita: o cordão umbilical. E muitos são os

que morrem com sangue derramado por dentro ou por fora. É preciso

acreditar no sangue como parte importante da vida. A truculência é

amor também (LISPECTOR, 1998d, p. 99).

A paixão de Cristo, retratada nos evangelhos, é vivificada pelo derramamento de

sangue que ocasiona ressureição e, por conseguinte, união: o alto se une ao baixo. A

paixão direciona as personagens claricianas, ocasiona um posicionamento de que o

sangue, seja o de dentro ou o de fora, é condição humana, isto é, a morte faz parte da

vida. Ou melhor, morrer é necessário para uma melhor experimentação da vida. “[Lóri]

morreria numa ida para uma tonta felicidade de primavera” (LISPECTOR, 1998d, p.

119).

Passado o encontro no restaurante da Floresta da Tijuca, a narrativa mostra ao

leitor uma Lóri com amplo desejo de se entregar corporalmente a Ulisses: “o desejo de

ser possuída por ele vinha forte demais” (LISPECTOR, 1998d, p. 109). Entretanto, o

corpo da personagem ainda não se apresenta integralmente preparado para a união

amorosa. “Por enquanto ela não tinha nada a lhe dar, senão o próprio corpo. Não, nem o

próprio corpo talvez: pois com os amantes que tivera ela como que apenas emprestava o

seu corpo a si própria para o prazer, era só isso, e mais nada” (LISPECTOR, 1998d, p.

110).

Rememorando os encontros e diálogos que manteve com Ulisses, Lóri reflete

acerca do Deus que a ouvia, porém, a indagação da voz narrativa se revela com as

seguintes letras: “O Deus ouvia, mas ela se ouviria?” (LISPECTOR, 1998d, p. 114). A

audição íntima, o rezar para si mesma65

, como o aconselhado por Ulisses, se faz

necessário também à concretude de Lóri ter um corpo inteiro. Lóri reconhece esse

posicionamento no final de sua prece: “[...] faze com que eu tenha caridade e paciência

comigo mesma, amém” (LISPECTOR, 1998d, p. 115).

A última frase articulada na oração que Lóri direciona ao divino reafirma a

necessidade que a heroína precisa para sua integração corporal: ouvir a si mesma.

Após a oração, Lóri, “antes de se deitar foi ao terraço: uma lua cheia estava

sinistra no céu. Então ela se banhou toda nos raios lunares e se sentiu profundamente

65

“A oração de Lóri em Uma aprendizagem terá mais suco do que tem a oração de Martim [A maçã no

escuro], porque as palavras serão dela e não serão palavras de passe” (SÁ, 1993b, p. 104).

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límpida e tranquila” (LISPECTOR, 1998d, p. 116). Lóri é lunar66

, “associa-se portanto

ao devir, à fecundidade, pois a Lua é um astro que cresce, decresce, desaparece.

Nascimento e morte”67

(SÁ, 1993b, p. 207).

3.4 PRIMAVERA

Que assim seja. O “amém” materializado na oração antes do banho lunar

direciona Lóri à nova estação que se desponta na narrativa: a primavera. “Já se passara o

ano. Os primeiros calores da primavera, tão antigos como um primeiro sopro. E que a

fazia não poder deixar de sorrir” (LISPECTOR, 1998d, p. 117).

Lóri surge ao leitor “iniciada [e], pressentia a mudança de estação”

(LISPECTOR, 1998d, p. 118). Com a nova estação, Lóri decide mudar a extensão do

seu corpo, isto é, cortar seus cabelos.

A primeira calidez fresca da primavera... mas aquilo era amor! A

felicidade a deixava com um sorriso de filha. Cortara os cabelos e

andava toda bem penteada. Só que a espera quase que não cabia mais

nela. Era tão bom que Lóri corria o risco de se ultrapassar, de vir a

perder a sua primeira morte primaveril, e, no suor de tanta espera

tépida, como que morrer antes. Por curiosidade, morrer antes: pois já

queria saber como era a nova estação (LISPECTOR, 1998d, p. 119,

grifo nosso).

A personagem que por vezes não conclui suas experimentações, que se indaga

constantemente, que recua enquanto avança, é posta em eufórica curiosidade para um

avanço que ainda precisa amadurecer em seu percurso: a sua morte primaveril é

necessária para a completude de sua trajetória.

Concernente à morte simbólica que Lóri experimenta durante as estações, é

válido marcar que a entrada da heroína à primavera, isto é, ao desfecho narrativo de sua

aprendizagem, ocasiona uma mudança esteticamente perceptível no seu corpo: a

personagem corta os seus cabelos. Mudança que pontua uma simbólica aproximação da

66

“Mas da lua ela não tinha receio porque era mais lunar que solar e via de olhos bem abertos nas

madrugadas tão escuras a lua sinistra no céu. Então ela se banhava toda nos raios lunares, assim como

havia os que tomavam banhos de sol. E ficava profundamente límpida” (LISPECTOR, 1998d, p. 34). 67 Da mesma forma que o homem, a lua possui uma “história patética porque sua decrepitude termina na

morte. Nunca definitiva, porém. Ela renasce de sua própria substância, em virtude de seu destino. A Lua é

o astro dos ritmos da vida. Controla todos os planos cósmicos regidos pela lei do devir cíclico: águas,

chuva, vegetação, fertilidade. As fases da Lua revelaram ao homem o tempo concreto, o tempo “vivo”.

Tempo que se refere sempre a uma realidade biocósmica, a chuva ou as marés, as sementeiras ou o ciclo

menstrual” (ELIADE, 1970, p. 195- 196).

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personagem para com o processo de sua autoconsciência, de se fazer integrada

conscientemente à estação que a levará à experimentação de sua autoexpressão.

O corte dos cabelos é um dos símbolos mais antigos de transformação

e entrada em uma nova condição espiritual, o acesso a um outro

patamar de vida. Na Antiguidade, ele fazia parte indispensável da

iniciação do herói, e na vida moderna, por extensão, foi mantido como

rito de passagem para o ingresso, por exemplo, na universidade, sob a

forma do trote, nas forças armadas, para os homens, e nas ordens

religiosas, para as mulheres (PIRES, 2006, p. 260).

Lóri luta para se integrar à nova estação e no meio desse embate surge ao leitor

uma marcação temporal no romance de Clarice Lispector, ocorrência inusitada à obra da

escritora. Não é só Lóri que lutava para se fazer autoconsciente na nova estação que a si

é apontada: “Todos lutavam pela liberdade – assim via pelos jornais, e alegrava-se de

que enfim não suportasse mais as injustiças. No jornal de domingo viu reproduzida a

letra de uma canção da Tchecoslováquia” (LISPECTOR, 1998d, p. 120).

Lóri copia a letra da canção e entrega a Ulisses68

. Canção “obviamente inspirada

na Primavera de Praga, que acontecia nos jornais que Lóri/Clarice lia naquele momento,

falando de amor no tom poético e simples que insufla as revoluções” (PIRES, 2006, p.

255).

Observa-se que o final da década de 1960 não é marcado apenas por avanços

rumo à liberdade social. Há oscilações nesse percurso e o texto de Clarice convida à

reflexão. Ao evento histórico nomeado como Primavera de Praga, que fez com que a

Tchecoslováquia fosse submetida ao regime comunista mantido pela União Soviética de

1960 a 1990, compõe em suas características o cerceamento da opinião individual, a

arbitrariedade, a supressão da democrática expressão.

A década de 1960 no Brasil marca o início da ditadura militar na nação,

estendida até 1985. É possível que a autora dO livro dos prazeres tenha se utilizado de

uma nação geograficamente distante do Brasil como a Tchecoslováquia, para abordar o

68

A tradutora do romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres para a língua tcheca, Pavla

Lidmilová, ao ser entrevista por Sarka Grawova, revela um fato curioso acerca da canção tcheca incluída

por Clarice no seu texto: “Quanto a Clarice Lispector, há uma história curiosa relacionada com os

tchecos. Uma das nossas cantoras de música popular, até hoje ativa e famosa, Helena Vondráčková, ia

apresentar no fim dos anos 60 em um festival do Rio do Janeiro uma canção que se chamava “Voz

Longínqua” e me encomendaram uma tradução da letra para o português. Clarice Lispector leu o texto

num jornal brasileiro e reproduziu-o no seu romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Em

1970, quando a escritora mandou-me o livro, onde a protagonista Lóri diz assim: “Todos lutavam pela

liberdade – assim via pelos jornais, e alegrava-se de que enfim não suportasse mais as injustiças. No

jornal de domingo viu reproduzida a letra de uma canção da Tchecoslováquia. Copiou-a com a letra mais

linda de professora que tinha, e deu-a a Ulisses. Chamava-se “Voz longínqua” e era assim…. Eis um

exemplo de intertextualidade inesperado!” (LIDMILOVÁ, 2006, p. 182).

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assunto da repressão, comum às duas nações, sem, portanto, expor seu romance à

censura ou ter sobre si penas mais graves. Sob essa conjectura a nota que abre Uma

aprendizagem alcança uma nova interpretação ao “livro que se pediu uma liberdade

maior”.

Voltando à integração da personagem de Clarice Lispector ao seu processo de

aprendizagem, a escolha de Lóri, no fluxo da narrativa, se apresenta com a seguinte

expressão: “[...] a ela cabia sofrer o dia ou ter prazer nele” (LISPECTOR, 1998d, p.

122). Com essa consciência, isto é, de se colocar no mundo visando ações responsáveis

que a levará ao amadurecimento, Lóri continua na “sua busca do mundo” (Lispector,

1998d, p. 125), desta vez, direcionado aos seus sentidos os prazeres encontrados, e

tantas vezes sublimados pela personagem na feira de “frutas e legumes e peixes e

flores” (LISPECTOR, 1998d, p. 125).

Beterrabas. Batatas. Ovos brancos. Peixes. Peras. O contato de Lóri junto aos

produtos vendidos na feira-livre faz com que a personagem entre “num realismo novo”:

Nesse realismo cada coisa da feira tinha uma importância em si

mesma, interligada a um conjunto – mas qual era o conjunto? [...] Às

vezes comparava-se às frutas, e desprezando sua aparência externa, ela

se comia internamente, cheia de sumo vivo que era. Ela estava

procurando sair da dor, como se procurasse sair de uma realidade

outra que durara sua vida até então (LISPECTOR, 1998d, p. 126,

127).

O contato com os produtos da feira possibilita a Lóri a experimentação de um

novo realismo impregnado de vida, de existência real; seus sentidos, tato, olfato,

paladar, levam-na à experimentação de sua própria interioridade, o sumo viçoso de sua

vida. Compete notar que experimentação não é concretização do processo.

O romance, então, direciona Lóri ao resumo do que até então vivenciou no

decorrer de suas estações:

Sentou-se diante do papel vazio e escreveu: comer — olhar as frutas

da feira — ver cara de gente — ter amor — ter ódio — ter o que não

se sabe e sentir um sofrimento intolerável — esperar o amado com

impaciência — mar — entrar no mar — comprar um maiô novo —

fazer café — olhar os objetos — ouvir música — mãos dadas —

irritação — ter razão — não ter razão e sucumbir ao outro que

reivindica — ser perdoada da vaidade de viver — ser mulher —

dignificar-se — rir do absurdo de minha condição — não ter escolha

— ter escolha — adormecer — mas de amor de corpo não falarei

(LISPECTOR, 1998d, p. 132).

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A trajetória de Lóri, com seus avanços e recuos, é sintetizada pela escrita da

personagem. Por meio da escrita a professora, em negação, contrai a expressão do

“amor do corpo”. “Depois desta lista ela continuava a não saber quem ela era, mas

sabia o número indefinido de coisas que podia fazer” (LISPECTOR, 1998d, p. 132). O

resumo de sua trajetória, por conseguinte, faz com que a personagem se aproprie de sua

condição de ser inacabado, em constante construção, para prosseguir em sua

aprendizagem: “Nunca atingiríamos em nós o ser humano” (LISPECTOR, 1998d, p.

132).

No dia seguinte à escrita, Lóri vivencia o que o texto nomeia como um “estado

de graça”. Ao chegar à casa enxergou uma maçã solta sobre a mesa, em total alusão à

maçã do paraíso edênico, a diferença é que, “ao contrário de Eva, ao morder a maçã

entrava no paraíso” (LISPECTOR, 1998d, p. 134).

O profano clariciano, isto é, o ato de Lóri se sentir viva em sua condição

humana, é celebrado mais uma vez no texto como passaporte para uma experimentação

humana direcionada ao corpo, sem nenhuma esfera transcendental ou mística69

. Ao

morder a maçã, a heroína lispectoriana experimenta uma sensação vital em seu corpo,

“uma bem-aventurança física que a nada se comparava. O corpo se transformava num

dom. E ela sentia que era um dom porque estava experimentando, de uma fonte direta, a

dádiva indubitável de existir materialmente” (LISPECTOR, 1998d, p. 135).

Desta forma, a personagem experimenta o que Luiz Costa Lima definiu no texto

de Clarice, se cotejada à esfera sagrada, uma escrita “mística ao revés”, isto é, uma

escrita mística profana, antagônica ao convencional. Segundo o pesquisador, essa

reversão consolida no texto de Clarice Lispector “o religioso à dimensão humana da

práxis, do agir terreno” (LIMA, 1966, p. 126); nas palavras de Olga de Sá: “A graça da

epifania é uma espécie de graça profana; não é a graça dos santos” (SÁ, 1993a, p. 201).

A reversão ao sagrado70

, a compreensão da personagem em seu estado de

“santidade terrena”, abre espaço para que a humanidade de Lóri seja percebida,

materializada, sentida. Por conseguinte, o estado de graça experimentado pela heroína

clariciana difere dos êxtases místicos dos santos:

69

Para José Geraldo Nogueira Moutinho o romance que é corpus dessa dissertação “É um livro de

aprendizagem porque de fato contém os passos de uma pedagogia amorosa, a sucessão dos movimentos

de uma dança prenhe de erotismo, e concomitantemente postulada por um lato sentido ético: nele o

espiritual é realidade carnal” (MOUTINHO, 1977, p. 86, grifo nosso). 70

“Não que Clarice Lispector se reduza ao imanentismo, limitando a realidade à experiência. Contudo

jamais sujeitou o corpóreo ou a matéria às dimensões da ideia. Sua escritura é compacta, enquanto remete

ao leitor uma experiência que fundamenta as reflexões sobre a realidade, a existência humana, para se

perguntar: Quem sou eu?’” (SÁ, 2004, p, 283).

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Nem de longe Lóri podia imaginar o que devia ser o estado de graça

dos santos. Aquele estado ela jamais conhecera e nem sequer

conseguia adivinhá-lo. O que lhe acontecia era apenas um estado de

graça de uma pessoa comum que de súbito se torna real, porque é

comum e humana e reconhecível e tem olhos e ouvidos para ver e

ouvir (LISPECTOR, 1998d, p. 135).

O estado de graça vivenciado por Lóri, para além de direcionar a personagem à

compreensão do seu corpo, dos seus sentidos, possibilita-lhe, também, a consciência de

que a condição humana é feita “de luta e sofrimento e perplexidade e alegrias”

(LISPECTOR, 1998d, p. 137).

Lóri sai do estado de graça integrada a vivenciar um novo patamar de vida e

passa “a ter uma espécie de confiança no sofrimento e em seus caminhos tantas vezes

intoleráveis” (LISPECTOR, 1998d, p. 137).

No novo encontro com Ulisses, essa confiança é celebrada de forma que seu

parceiro reconhece o porto de chegada da longa aprendizagem da protagonista: “Você

está pronta, Lóri. Agora eu quero o que você é, e você quer o que eu sou”

(LISPECTOR, 1998d, p. 139). Ao final do encontro, Ulisses deixa à escolha de Lóri o

dia que se daria a ligação física dos amantes. Passam-se alguns dias, novas experiências

lhe são imputadas, até que Lóri decide não se prolongar na espera: “não adiaria mais”

(LISPECTOR, 1998d, p. 146).

Parte-se então à unificação das personagens ocasionada na entrega mútua dos

seus corpos, integração que ocorre no último capítulo do romance.

Lóri reconhece em si o momento propício para se unir a Ulisses e o faz sem

maquiagens, sem fazer usos de máscaras ou encenações. Se o exagero de cosméticos lhe

era uma característica que impelia seu rosto à sublimação de sua essência, a não se

mostrar inteiramente nos cinco relacionamentos anteriores a Ulisses, o não uso de

maquiagens ao desfecho da narrativa sugere uma Loreley corporalmente presente.

Clarice orquestra nos momentos finais de sua narrativa uma cena em que a

humanidade de suas personagens é posta em destaque. Cabe o detalhamento, embora

conciso, da cena que permite uma aproximação para a corporeidade dos heróis

claricianos.

A cena, readaptada, refere-se à deslumbrante obra de Michelangelo – a Pietá –

sua mais acabada e conhecida escultura. Ao leitor apressado essa referência não é

percebida, mas permeia a poética da escritura de Clarice Lispector nO livro dos

prazeres, firmando o desfecho da aprendizagem de Lóri tensionado no corpo, na

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humanidade das personagens. Isso porque Michelangelo retrata o Cristo morto no colo

de sua mãe Maria.

Sublinhe-se que o conjunto escultórico representa a morte do corpo de Cristo

que está prestes a ressurgir para outra vida; para Maria e, por extensão, para os cristãos

representa o renascer da vida espiritual.

Segue a introjeção da arte de Michelangelo materializada por Clarice em seu

romance:

[Ulisses] se ajoelhou diante dela. [...] E para Lóri era bom porque a

cabeça do homem ficava perto dos joelhos e perto de suas mãos, no

seu regaço que era a sua parte mais quente. E ela pode fazer o seu

melhor gesto: nas mãos que estavam a um tempo frementes e firmes,

pegar aquela cabeça cansada que era fruto dela e dele. Aquela cabeça

de homem pertencia àquela mulher (LISPECTOR, 1998d, p. 147).

Como já distendido, Lóri alcança a percepção de sua materialidade; fato que

possibilita à professora a visão de um Ulisses, não mais como professor de Filosofia,

mas como seu companheiro intrínseco. Para tanto, a morte dos estereótipos se faz

necessária. O recuo cede vez ao avanço: a união amorosa se consolida. O professor de

Filosofia amplamente mitificado pela ótica da heroína é aqui enxergado, isto é, nas

orações finais do romance, na sua condição humana, corpórea: “[Ulisses] beijou sua

mão, humanizando-se” (LISPECTOR, 1998d, p. 149).

Consumado o prazer sexual, Lóri “se sentiu perdendo todo o peso do corpo”

(LISPECTOR, 1998d, p. 150). Ambos personagens reconhecem sua materialidade.

Ulisses, em sua percepção, reconhece: “A verdade, Lóri, é que no fundo andei toda a

minha vida em busca da embriaguez da santidade. Nunca havia pensado que o que eu

iria atingir era a santidade do corpo” (LISPECTOR, 1998d, p. 151).

Na trajetória da aprendizagem ao prazer, a avaliação feita por Ulisses impele

Loreley à compreensão do novo patamar de vida conquistado, seu novo nome, sua

integração com o amante: “Você tinha me dito que, quando me perguntassem meu nome

eu não dissesse Lóri, mas “Eu”. Pois só agora eu me chamo “Eu”. E digo: eu está

apaixonada pelo teu eu. Então nós é. Ulisses, nós é original” (LISPECTOR, 1998d, p.

151).

O enlace das personagens é vivenciado em uma plenitude que até mesmo as

palavras perdem sua função normativa. A refração à gramática prescritiva trafega nos

momentos decisivos do romance a unificar a aprendizagem e o prazer das personagens:

“o “eu” apaixonado de Lóri passa a formar com o “eu” apaixonado de Ulisses um “nós”,

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que é um “um” total. Essa nova alma assim surgida, não mais ele nem ela, mas um

ele/ela, um andrógino” (PIRES, 2006, p. 272).

Como observado por Lúcia Pires, a trajetória de Loreley, dentre as demais

personagens de Clarice Lispector, se cotejada ao mito de Psiqué – consiste numa

trajetória completa, de unificação. Segundo a estudiosa, a entrega amorosa das

personagens fundida no “nós é” acarreta a interpretação de uma completude da

androginia71

: “Ora, a androginia, a fusão de macho e fêmea formando um ser único e

esférico, completo em si, seria a perfeição da condição humana, elevada assim ao nível

da divindade” (PIRES, 2006, p. 270, 271).

Fato possível de válida interpretação ao que concerne a frase posta à narrativa

após a unificação das protagonistas: “A morte perdera a glória” (LISPECTOR, 1998d,

p. 152). Quando a morte perde a glória, em contexto divino, a ressureição surge como

possibilidade de uma nova vida, um novo céu, uma nova terra.

É válido marcar o encontro pouco aparente, mas existente, do texto clariciano

com a história bíblica direcionada à conquista da terra prometida pelos hebreus.

Orienta-se a atenção, primeiramente, ao que Berta Waldman marca acerca da

presença judaica na escrita de Clarice Lispector.

Na obra de Clarice Lispector avulta a presença constante de referência

ou citação bíblica. A primeira tentação é atribuir essa forte presença a

uma educação judaica da romancista. Mas, além da presença judaica,

verifica-se também a cristã, além de crenças populares, o que sugere o

seu empenho de integração no quadro particular das experiências

religiosas brasileiras, marcada pelo sincretismo. Todavia, é certo que a

Bíblia lhe serviu de base (WALDMAN, 2003, p. 37).

Abre-se nesta pesquisa a compreensão de três tópicos imprecisos pontuados pelo

biógrafo norte-americano de Clarice Lispector, Benjamin Moser. Faz-se necessário, em

amplitude, o esclarecimento desses equívocos.

1. A expressão judaica em Clarice.

2. O estupro que o pesquisador delega à mãe da autora.

3. A apropriação indevida do biógrafo às pesquisas de Célia Regina Ranzolin e

Aparecida Maria Nunes.

71

“É preciso compreender a androginia como uma grande metáfora da perfeição espiritual antes de tudo,

algo a ser buscado pelo ser humano no mais íntimo e profundo recanto de seu coração, uma meta de vida,

que, paradoxalmente, só poderá ser atingida com a própria transcendência da vida humana. Para a heroína

clariciana, ter chegado aos braços de Ulisses significa ter conseguido desenvolver-se ao máximo como

Penélope, para só assim poder também abarcar em seu espírito Ulisses, e ser um e outro, sem prejuízo de

ninguém” (PIRES, 2006, p. 273).

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Para o biógrafo, Clarice é judia não apenas por ter nascido na Ucrânia, mas por

intima aproximação para com a religião, quer nos seus textos, quer nas suas vivências:

“Em Clarice, uma biografia, examinei as raízes da autora no misticismo judaico e o

impulso essencialmente espiritual que anima sua obra” (MOSER, 2016, p. 21). Rotular

Clarice como escritora judia não condiz, integralmente, nem com as vivências da autora,

nem com sua vontade de pertencimento: “Sou brasileira pronto e ponto” (LISPECTOR

apud COUTINHO, 1980, p. 165 – 170).

Benjamin Abdala Junior, analisando a biografia escrita pelo norte-americano,

bem como os plágios e não créditos às pesquisas de Nádia Battella Gotlib e Teresa

Montero, esclarece que ao privilegiar a ascendência judaica de Clarice Lispector,

“[Moser] recai numa linha de reflexão que desloca seu centro de interesse e, na ânsia de

reconstituir um passado de dimensão épica, resvala em riscos de argumentação, que

acabam prejudicando o seu fio de exposição” (ABDALA JUNIOR, 2010, p. 288).

Esses riscos de argumentação, sobretudo, são a recriação de cenas da vida da

família Lispector concernentes ao estupro delegado à mãe de Clarice sem comprovação

pelo biógrafo. Moser ficcionaliza o passado da família Lispector no seu

Clarice,72

.“Com certeza absoluta, o autor identifica o crime (estupro), o criminoso

(bolcheviques russos) e o diagnóstico de doença “proveniente” desse crime (sífilis)”

(ABDALA JUNIOR, 2010, p. 288). Cabe a redundância: sem comprovar essas

afirmativas.73

A ficcionalização biográfica pontuada por Moser de forma reticente para depois

firmar-se como ocorrência verídica em seu livro, reaparece sem sombra de dúvidas na

compilação Todos os contos74

, de Clarice Lispector. Assevera o biógrafo: “Sua mãe foi

72

Lê-se: Clarice vírgula. 73 Sublinhe-se o posicionamento de Nélida Piñon, amiga pessoal de Clarice Lispector, acerca dos

equívocos instaurados na biografia de Benjamin Moser: “Após sua morte [morte de Clarice Lispector],

recusei-me durante anos a prestar testemunho sobre ela, embora constate os equívocos biográficos

cometidos sobre esta genial escritora. Particularmente relativos à mãe que, segundo versão [...] do

biógrafo Benjamin Moser, teria sido violada, deste ato brutal advindo a terrível doença que a levou à

morte quando Clarice tinha 9 anos de idade, já instalados no Recife. Um fato que me inquieta, desejosa de

saber através de quem obteve ele tal dramática confidência. Acaso de Elisa Lispector, escritora de talento,

falecida no ano de 1989, a quem conheci? Uma mulher severa, circunspeta e que terá sofrido por não lhe

haverem reconhecido o talento que se julgava concentrado na irmã caçula. Incapaz ela, a meu juízo, de

transbordamento, de ceder intimidade a quem fosse. E menos ainda deixar alguma posta que revelasse a

final o segredo dolorido da família. Ou se originou de Tânia, que morreu em 2007, com a idade de 92

anos? De todos os modos, estranho que alguém da família afinal tenha exposto ao público uma possível

verdade resguardada durante décadas (PIÑON, 2012, p. 71, 72). 74 Outra problemática encontrada nas pesquisas de Benjamin Moser refere-se à organização do biógrafo

quanto do lançamento, em edição única, de Todos os contos de Clarice Lispector. Diz o autor na

introdução do volume: “Muita coisa nesse livro é sem precedentes. Foi a primeira vez em qualquer

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violentada” (MOSER, 2016, p. 18, grifo nosso). Uma suposição interpretativa torna-se

ocorrência “comprovada sem provas” pelo biógrafo norte-americano.

Acrescente-se ainda o posicionamento de Nádia Battella Gotlib contrapelo às

afirmativas de Benjamin Moser. Ao organizar o livro memorialístico e póstumo de Elisa

Lispector75

, Retratos antigos, Gotlib esclarece que

[...] nesse texto aparece a explicitação da doença da mãe:

“hemiplegia”, ou seja, paralisia parcial do corpo proveniente de

trauma. [...] violência causada por bolcheviques durante um pogrom76

.

A hemiplegia – paralisia de metade do corpo que afeta justamente a

parte contrária à parte do cérebro afetada pelo trauma ou golpe –

manifesta-se já na viagem de exílio e seria paulatinamente agravada, a

ponto de já, em Recife, a mãe não mais poder caminhar, tendo de

passar o dia, permanentemente, numa cadeira de rodas (GOTLIB,

2012, p. 63, grifos nossos).

Posto luz às problemáticas encontradas nas pesquisas e divulgações de Benjamin

Moser concernentes à biografia e à literatura de Clarice Lispector, volta-se a atenção à

passagem do texto Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, na qual a “terra santa” é

sinalizada no paladar de Lóri, para o desfecho da análise respectiva ao corpo da

personagem. Cabe o desdobramento dessa cena.

idioma, incluindo o português, que todos os contos de Clarice foram reunidos em um único volume.

Inclui um capítulo de ‘Cartas a Hermengardo’ que descobri em um arquivo.”(MOSER, 2015, grifo

nosso). O conto referido por Moser foi mencionado em estudo sobre crônicas por Célia Regina Ranzolin

(1985), foi registrado e analisado por Aparecida Maria Nunes em estudo defendido na Universidade de

São Paulo (1991) e incluído na íntegra pela pesquisadora no volume Clarice na cabeceira: jornalismo

(2012). Esclarece Maria Nunes: “Há ainda, nesse volume [Clarice na cabeceira: jornalismo], crônicas e

outros textos também inéditos, como a série completa de ‘Cartas a Hermengardo’ que o periódico Dom

Casmurro publicou em 1941, textos esses que repousavam no meu arquivo desde quando iniciei o resgate

dessa produção, e que agora retornam para o leitor de Clarice” (NUNES, 2012, p. 18). 75

Ao recordar de sua mãe, Elisa escreveu que: “A hemiplegia de que a mãe fora acometida numa fatídica

noite de pogrom progredindo devagar, mas insidiosamente” (LISPECTOR, 2012, p. 111). Cabe, também,

a citação da escritora no romance em que ficcionaliza a saga da família Lispector em direção ao Brasil,

No exílio. A personagem Marim (a mãe) para proteger seus filhos e vizinhos que se refugiaram em sua

casa à fuga de pogroms, sai à rua na tentativa de conter os ataques milicianos: “Quando deu acordo de si,

estava na rua, de cabelos ao vento, a neve quase a atingir-lhe a cintura. Ao avistar dois milicianos vindo

em sua direção, caiu-lhes aos pés, pedindo auxílio. Depois as imagens embaralharam-se fantasticamente à

luz baça do luar. Como num sonho, por entre espessa neblina, viu homens correndo e travando renhido

tiroteio, e corpos tombando e sendo amortalhados pela neve. Em seguida, por um tempo que lhe pareceu

interminável, o mundo ficoi deserto. Então, encaminhou-se para casa a passos vagarosos e elásticos, só

perceptíveis pelo crepitar cantante da neve” (LISPECTOR, 2005, p. 32, 35). Como pontuado no excerto,

não há nessa narrativa indícios de violência sexual direcionados à mãe das escritoras. 76

Registre-se a definição partejada pela biógrafa: “violência causada por bolcheviques”, isto é, o progrom

interpretado como ato de violência e não como ato de violentar. Ainda segundo a autora de Clarice, uma

vida que se conta, uma segunda menção da doença da mãe das escritoras é mencionada por Elisa

Lispector no livro O tigre de bengala, publicado em 1985. O texto “refere-se aos tremores do corpo

causados pelo mal de Parkinson. Seria esse o segundo de apenas dois diagnósticos, que se conhecem da

doença da mãe, além, naturalmente, do atestado de óbito, que atesta morte por “congestão edematose (sic)

no curso de tuberculose” (GOTLIB, 2012, p. 67).

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Lóri, vigiando o sono de Ulisses, direciona o pensamento ao divino: “‘Deus’,

pensou ela, ‘então era isto que parecias me prometer’”(LISPECTOR, 1998d, p. 153).

Para se chegar à Terra Santa no contexto bíblico, dentre os percursos trilhados

pelo povo eleito, a morte de um cordeiro a celebrar a primeira Páscoa era

imprescindível. Páscoa aqui tem o sentido de passagem. É a morte da escravidão – do

jugo que cerceou a autoexpressão dos israelistas – abrindo-se à liberdade focalizada

numa nova terra.

A unificação das personagens claricianas alude ao episódio bíblico. Lóri se

apropria do gosto do “fruto do mundo”, experimenta o sabor de uma nova terra, uma

terra santa: “A fruta estava inteira, sim, embora dentro da boca sentisse como coisa viva

a comida da terra. Era terra santa porque era a única em que um ser humano podia ao

amar dizer: eu sou tua e tu és meu, e nós é um” (LISPECTOR, 1998d, p. 153, grifo

nosso).

O vislumbre de uma terra santa faz com que a narrativa adelgace a norma

prescritiva estabelecendo nova significação à oração. Nesse veio de reformulação, a

heroína de Clarice Lispector experimenta no provar do fruto a assimilação da bem-

aventurança: “ao contrário de Eva, ao morder a maçã entrava no paraíso” (LISPECTOR,

1998d, p. 134).

Como evidenciado neste estudo, o processo de renovação apontado pelas

estações do ano alcança a mente e o corpo das personagens, possibilitando-lhes a

unificação corporal no final do romance, no desfecho da trajetória da heroína clariciana.

Renovação é o ato constante em toda a narrativa, entretanto, seu ápice se solidifica no

último capítulo dO livro dos prazeres, na primavera77

. Tal premissa é compreendida por

Lóri com a seguinte expressão: “sei que meu caminho chegou ao fim: quer dizer que

cheguei à porta de um começo” (LISPECTOR, 1998d, p. 158).

Os dois-pontos grafados à continuidade de uma folha em branco contribuem

para esse novo posicionamento da personagem, uma vez que a terra prometida é uma

tarefa a cumprir-se, o texto de Clarice, bem como o percurso de suas personagens, são

tarefas a serem realizadas.

“O que te escrevo continua. [...] O melhor ainda não foi escrito. O melhor está

nas entrelinhas” (LISPECTOR, 1998a, p. 95).

77

“Toda iniciação mítica implica algum tipo de morte e só termina com o correspondente renascimento,

do qual a primavera é uma imagem universal” (PIRES, 2006, p. 224).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Aprender é sempre adquirir uma força para outras vitórias,

na sucessão interminável da vida.

Cecília Meireles, Crônicas de educação

Meu caminho não sou eu, é o outro, é os outros. Quando eu puder sentir plenamente o

outro estarei salva e pensarei: eis o meu porto de chegada.

Clarice Lispector, A descoberta do mundo

Pesquisar a obra de Clarice Lispector, quando ícones importantes da crítica

literária já se empenharam em nortear interpretações acerca dos seus escritos ao longo

dos mais de sessenta e três anos da publicação de seu primeiro romance, é um desafio,

válido de renovação, para qualquer pesquisador. Ocorrência que é possível precisamente

porque o texto de Clarice, como a atribuição direcionada pelo crédulo aos textos

sagrados, se renova a cada estação em que é lido, a cada vivência sondada na vida de

seus leitores “de alma já formada”.

Considerando essa experiência de renovação, buscou-se nesse estudo valorizar o

romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres concernente à produção instigante,

fluída e pensante de sua autora. Para tantos críticos, o livro lançando por Clarice em

1969 é uma obra que se distancia de seus textos consagrados, Laços de família e A

paixão segundo G.H., por exemplo; entretanto, o que se nota na história de Loreley e

Ulisses, além de uma aproximação conciliadora para com os desfechos de suas heroínas

anteriores e, para além de uma história clichê de amor romântico, é a unificação

intelectual, espiritual e corporal de suas personagens que são cultuadas nessa narrativa:

“Nós é um” (LISPECTOR, 1998d, p. 153).

A trajetória de Lóri no decorrer desse livro que é “o meio do caminho”,

expressão alcunhada por Romilda Mochiuti ao interpretar a pontuação de abertura e

fechamento da narrativa, perfilou-se nesse estudo sob a ótica interpretativa das três

epígrafes, paratextos que se articulam na tessitura de todo o romance, direcionando-o à

renovação possibilitada pela morte dos estereótipos, conceitos sociais e pessoais de sua

protagonista.

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Averiguou-se também a reformulação do romance de formação alemão adaptado

à realidade literária brasileira. O texto de Clarice Lispector foi analisado sob a vertente

de estudiosos que delegam autonomia a essa reformulação crítica, tais como Mikhail

Bakhtin, Wilma Maas e Cristina Ferreira Pinto.

A contribuição de Bakhtin às interpretações aqui estabelecidas amplia-se às

análises dos recursos discursivos na construção da heroína de Clarice Lispector: diálogo

socrático (mediante as técnicas síncrese e anácrise), bem como outros gêneros a ele

cognatos, solilóquio e diálogo no limiar.

As pesquisas de Arnaldo Franco Júnior acerca do recurso crítico Kitsch na obra

de Clarice Lispector possibilitaram as análises do processo de avanço, enquanto se

recua, de Lóri, concernente à encenação da escritura, interpretação, dentre outras aqui

discutidas, que vai de encontro aos críticos que leram Uma aprendizagem ou o livro dos

prazeres como um texto fracassado.

Por último, interpretou-se nesta dissertação a formação da consciência de Lóri

atrelada ao seu corpo. Ocorrência intimamente ligada às quatro estações do ano.

Notou-se neste estudo que para uma escritora que se manteve distante da escrita

passiva a procedimentos metódicos, sobretudo a um texto que reproduzia um estilo

convencional de narrar, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, dentro desse

percurso transgressor, direciona ao leitor a possibilidade de uma leitura plural de sentido

concernente ao micro e macro texto de Lispector: como marcou Benedito Nunes, “um

romance de romances” (1995, p. 81, grifo do autor).

Sob essa premissa, interpretou-se nesta dissertação que Lóri é a heroína que se

integra tanto às produções anteriores, como às produções posteriores de Clarice

Lispector: romances, crônicas, contos, textos inclassificáveis – a exemplo Água viva –,

textos jornalísticos etc. Em Lóri há uma estrutura conciliadora com toda produção de

Clarice Lispector, na medida em que a protagonista de Uma aprendizagem ou o livro

dos prazeres potencializa características presentes em heroínas claricianas que a

precedem (Joana, Virginia, Lucrécia, G.H.) e a sucedem (Macabéa e Ângela Pralini).

Na tessitura dO livro dos prazeres, sondando seu intelecto, construído durante as quatro

estações, a personagem amplia a possibilidade de sua existência, isto é, desfaz-se do

percurso da errância, da hesitação e do medo, para, em diálogo, solidão e comunhão,

refletir acerca de ser e estar no mundo, integrando-se à manifestação de uma nova

experimentação de vida.

Esse percurso, atrelado à interpretação de Lúcia Pires que vê no romance de

1969 a conclusão da aprendizagem de Joana e G.H., direcionou a compreensão de que

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Lóri termina o que as protagonistas de Perto do coração selvagem e A paixão segundo

G.H., respectivamente, iniciaram. Lóri é a personagem clariciana que vivencia a

integração com seu par, a autonomia intelectual, o sexo como forma de prazer e não

apenas como procriação.

Sublinhe-se a articulação proposta por Clarice Lispector na costura desse que é o

seu sexto romance: junção de crônicas à narrativa de 1969. Para além de uma ligação

entre suas heroínas anteriores, é possível reconhecer estruturas reformuladas de crônicas

tecidas nO livro dos prazeres, fato que amplia as possibilidades interpretativas

concernentes à completude de Lorely. A personagem, além de se relacionar aos

romances anteriores de sua autora, compõe passagens significativas do processo

jornalístico de Clarice.

Considerando os dois últimos livros de Clarice Lispector, os dois-pontos ao

término de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres possibilitam a compreensão de

unificação aos textos A hora da estrela (1977) e Um sopro de vida (1978).

Lóri une-se a Ulisses. Rodrigo S.M. funde-se em escrita com Macabéa. O Autor

de Um sopro de vida articula-se intimamente com Ângela Pralini: personagens e

narradores unificados por uma escrita andrógena78

. Contestações que contribuem para

visualizar “a planta escritural de Clarice” em Lóri, isto é, a escrita clariciana põe luz à

possibilidade de integração e de totalidade.

Assim posto, nesta contribuição ao estudo de Uma aprendizagem ou o livro dos

prazeres conclui-se que nesta narrativa se evidencia a construção física, social, mental e

espiritual, condicionada numa interação e integração com o outro. Ocorrências que

pressupõem o constante construto. Antes da vírgula, durante a narrativa, depois dos

dois-pontos.

78

A conclusão do livro A trajetória da heroína na obra de Clarice Lispector, de Lúcia Pires, estende essa

interpretação.

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