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Universidade Presbiteriana Mackenzie Programa de Pós-Graduação em Letras Mestrado em Letras NAHINÃ DE ALMEIDA ROSA BARBOSA A INTERTEXTUALIDADE ENTRE CORALINE E O MUNDO SECRETO E O MITO DE ORFEU São Paulo 2012

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Universidade Presbiteriana MackenziePrograma de Pós-Graduação em Letras

Mestrado em Letras

NAHINÃ DE ALMEIDA ROSA BARBOSA

A INTERTEXTUALIDADE ENTRE CORALINE E O MUNDO SECRETO E O MITO DE ORFEU

São Paulo

2012

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NAHINÃ DE ALMEIDA ROSA BARBOSA

INTERTEXTUALIDADE ENTRE CORALINE E O MUNDO SECRETO E O MITO DE ORFEU

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Letras

Orientadora: Profª. Drª Lilian Lopondo

São Paulo

2012

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B238i Barbosa, Nahinã de Almeida Rosa.

A intertextualidade entre Coraline e o Mundo Secreto e o

mito de Orfeu / Nahinã de Almeida Rosa Barbosa - 2012.

110 f. : il. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade

Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2012.

Referências bibliográficas: f. 106-110.

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NAHINÃ DE ALMEIDA ROSA BARBOSA

INTERTEXTUALIDADE ENTRE CORALINE E O MUNDO SECRETO E O MITO DE ORFEU

Aprovada em: _____/______/_____

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________________Profª. Drª Lilian Lopondo – OrientadoraUniversidade Presbiteriana Mackenzie

_______________________________________________________________Profª Drª Elaine C. Prado dos Santos

Universidade Presbiteriana Mackenzie

_______________________________________________________________Profª Drª Maria Luíza Guarnier Atik - suplente

Universidade Presbiteriana Mackenzie

_______________________________________________________________Profª Drª Raquel de Sousa Ribeiro

Universidade de São Paulo

_______________________________________________________________Profª Drª Angela Sivalli Ignatti - suplente

Universidade Estadual de Campinas

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AGRADECIMENTOS

A Deus, por ter concedido a graça da minha vida, força para não

desistir no meio do caminho e persistência para prosseguir com meus

objetivos.

À minha mãe, por ser meu exemplo de coragem, por me

incentivar em todas as minhas decisões, estando ao meu lado em todos os

momentos e por conviver comigo todos os dias, independente de serem feitos

de momentos felizes, tristes ou por surtos de desespero e estresse.

À Profª Drª Lilian Lopondo, pela orientação e pela paciência de

corrigir os meus textos, sempre apontando sábias sugestões e me incentivando

a concluir esta empreitada.

À Profª Drª Elaine C. Prado dos Santos e à Profª Drª Raquel de

Sousa Ribeiro, por terem aceitado participar da comissão organizadora desta

Dissertação, e pelos valiosos apontamentos feitos no exame de qualificação.

Aos amigos – principalmente à Júlia C. A. Oliveira e à Andrea

Carina Pilipposian –, familiares e ao Renato Coelho, meus maiores

incentivadores, não só pela paciência em lidar comigo nos momentos mais

tensos desta empreitada, pelas revisões textuais e pelas discussões sobre o

tema, mas também por nunca me deixarem desistir.

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“Apenas o Adão mítico que chegou com a primeira

palavra num mundo virgem, ainda não desacreditado,

somente este Adão podia realmente evitar por completo

esta mútua orientação dialógica do discurso alheio para o

objeto. Para o discurso humano, concreto e histórico, isso

não é possível: só em certa medida e convencionalmente

é que pode dela se afastar.” (BAKHTIN, 1988, apud

FIORIN, 2006, p. 18)

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RESUMO

A presente dissertação tem como objetivo examinar a atualização

que o mito de Orfeu sofreu no filme “Coraline e o Mundo Secreto” - uma

adaptação do romance “Coraline” (2003), do britânico Neil Gaiman -, por meio

da análise comparativa e dialógica, de acordo com os conceitos bakhtinianos

de dialogismo, carnavalização e grotesco, entre o mito original e o seu

rebaixamento na obra fílmica.

A proposta de um estudo dialógico entre o mito de Orfeu e o filme

ocorre não somente pela dessacralização que o mito sofreu, mas também pela

presença, em comum, do tema da catábase, já que Coraline e Orfeu a

realizaram para resgatarem algo que lhes foi tomado, seja a amada ou o

reconhecimento de valores próprios e familiares. A partir desta análise,

baseada nos estudos de Mircea Eliade, Pierre Brunel e João Batista de Brito,

elencou-se o duplo como um acréscimo que o mito sofreu nessa atualização e

elucidou-se a razão pela qual houve a manifestação do duplo nesta obra.

Palavras-chave: Mito, Orfeu, Coraline, Intertextualidade, Duplo,

Grotesco, Carnavalização

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ABSTRACT

This thesis aims to examine the update that the myth of Orpheus

has suffered in the movie "Coraline" – an adaptation of the British Neil Gaiman’s

novel "Coraline" (2003) –, through a comparative and dialogic analysis, based

on Bakhtin’s concepts of dialogism, carnivalization and grotesque,

between the original myth and its degradation in the film work.

The proposal of a dialogic study between the myth of Orpheus and

the movie happens not only because of the dessacralization that the myth has

suffered, but also for the common theme of the katabasis, since Coraline and

Orpheu made it to rescue something that was taken from them, whether it was

the loved one or the recognition of the family and own values. After this

analysis, based on Mircea Eliade’s, Pierre Brunel’s and João Batista de Brito’s

studies, the double was shown as an increase that the myth has suffered on

this update and the reason why there was the manifestation of the double in this

work was elucidated.

Key-words: Myth, Orpheus, Coraline, Intertextuality, Double, Carnivalization,

Grotesque

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Mãe real p. 43

Figura 2 Outra mãe p. 43

Figura 3 Processo de transformação da outra mãe (1) p. 43

Figura 4 Processo de transformação da outra mãe (2) p. 43

Figura 5 Processo de transformação da outra mãe – estágio final p. 44

Figura 6 Ilustração da outra mãe (p. 28) p. 44

Figura 7 Ilustração da outra mãe (p. 68) p. 44

Figura 8 Apresentação do casarão e do Mr. Bobinsky p. 52

Figura 9 Apresentação da Ms. Spink p. 52

Figura 10 Apresentação do Gato p. 53

Figura 11 Apresentação de Coraline p. 53

Figura 12 Apresentação dos elementos que cercam o casarão: p. 54

antiga estufa, folhas secas, árvores mortas, portão grande

antigo e jardim abandonado

Figura 13 Treliça quebrada p. 55

Figura 14 Aspecto de casa abandonada p. 55

Figura 15 Árvore morta, folhas secas, grande portão antigo p. 56

Figura 16 Jardim abandonado p. 56

Figura 17 Cozinha mal cuidada, com caixas da mudança p. 57

Figura 18Escritório mal cuidado, com caixas da mudança, lixos pelo chão p. 58

Figura 19 Sala de visitas escura p. 58

Figura 20 Quarto de Coraline: escuro e sem graça p. 59

Figura 21 Jantar p. 59

Figura 22 Mãe mal humorada p. 60

Figura 23 Pai desleixado p. 60

Figura 24 Mr Bobinsky p. 60

Figura 25 Ms Spink e Ms Forcible p. 61

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Figura 26 Apartamento do Mr Bobinsky p. 61

Figura 27 Apartamento das vizinhas p. 62

Figura 28 O casarão, no outro mundo p. 63

Figura 29 Jardim do outro mundo p. 64

Figura 30 Cozinha do outro mundo p. 64

Figura 31 Escritório do outro mundo p. 65

Figura 32 Sala do outro mundo p. 65

Figura 33 Quarto de Coraline no outro mundo p. 66

Figura 34 Um jantar no outro mundo p. 66

Figura 35 A outra mãe p. 67

Figura 36 O outro pai p. 67

Figura 37 O outro Mr Bobinsky p. 68

Figura 38 A outra Ms Spink p. 68

Figura 39 A outra Ms Forcible p. 69

Figura 40 Apartamento das vizinhas no outro mundo p. 69

Figura 41 Apartamento do Mr Bobinsky no outro mundo p. 70

Figura 42 O outro mundo se destruindo p. 71

Figura 43 O mundo real tornando-se mais atraente à menina p. 71

Figura 44 O túnel, nas primeiras idas ao outro mundo p. 74

Figura 45 O túnel já se destruindo p. 74

Figura 46 Outra mãe tecendo a boneca p. 77

Figura 47 Outra mãe transformada em aranha p. 77

Figura 48 O outro mundo transformando-se em teia p. 78

Figura 49 A outra mãe p. 79

Figura 50 A outra mãe-aranha p. 80

Figura 51 A mão da outra mãe p. 81

Figura 52 “Little Me” p. 92

Figura 53 Bilhete deixado por Wybie: “Ei, Jones! Olha só o que eu p. 93

encontrei no baú da minha vó. Parece familiar?

Wybie" (tradução nossa)

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Figura 54 Coraline e sua boneca p. 93

Figura 55 O jardim do mundo real, agora colorido e com flores p. 98

Figura 56 O jardim do outro mundo perdendo suas cores p. 98

Figura 57 As outras personagens virando pó p. 99

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SUMÁRIO

Introdução p. 12

Capítulo 1 – O mito p. 17

1.1 A origem do mito p. 17

1.2 O que é mito? p. 20

1.3 O mito de Orfeu p. 23

1.3.1 O episódio de Aristeu p. 26

1.3.2 O mito de Perséfone e sua ligação com o

Hades, Cérbero e Caronte p. 28

1.3.3 O mito de Hades p. 29

Capítulo 2 - Coraline e o Mundo Secreto p. 31

2.1 Adaptação do livro Coraline p. 35

2.1.1 Reduções p. 36

2.2.2 Adições p. 39

2.2.3 Deslocamentos e Transformações p. 44

Capítulo 3 - Orfeu e Coraline p. 51

3.1 Adições p. 51

3.2 Transformações e deslocamentos p. 82

Capítulo 4 - A duplicação da vida de Coraline p. 85

4.1 O duplo p. 87

4.2 O duplo, de Otto Rank p. 88

4.3 O Estranho, de Sigmund Freud p. 90

4.4 O duplo em Coraline e o Mundo Secreto p. 92

Considerações Finais p. 100

Referências Bibliográficas p. 105

Referências Webgráficas p. 109

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INTRODUÇÃO

A presente dissertação teve como objetivo examinar, durante

seus quatro capítulos, a atualização que o mito de Orfeu sofreu no filme

Coraline e o Mundo Secreto1, por meio da análise comparativa e intertextual

entre o mito primitivo e o seu rebaixamento na obra fílmica. Baseando-se nesta

análise, também foi possível explicitar o duplo como um acréscimo que o mito

sofreu nessa atualização.

Ainda há estudiosos, como Denis de Rougemont e Claude Lévi-

Strauss2, que não acreditam em um possível diálogo entre a Literatura e o mito,

já que creem que a Literatura pode depreciar a sacralidade do mito, mas há

outros, como Virgínia Celeste de Carvalho, que atestam que este diálogo

ocorre desde os primórdios da Literatura, pois

se pensarmos na literatura ocidental de forma diacrônica, e chegarmos à grega, perceberemos o quanto ela estava ligada aos Mitos organizadores da cultura helênica. A literatura, nesse momento, era uma espécie de redoma que asseguraria a conservação de determinados valores e moral. Entretanto essa redoma logo deixou de ser um estanque repositório que apenas catalogava mitos: ela crescia e as novas inserções reorganizavam sua estrutura. O mito literário, então, tornou-se complexo e se desvencilhou do mito religioso-cultural. (2009) 3

O dialogismo entre Literatura e mito tornou-se possível não

quando houve a reflexão sobre a função e a importância de cada um,

separadamente, mas sim quando pensou-se que ambos interagiram entre si, já

que o mito dependeu da narrativa, que é um elemento literário, para existir.

Pierre Brunel expressou claramente esta sincronia entre Literatura e mito ao

sustentar que “(...) o mito é uma narrativa. (...) Caso a narrativa seja eliminada,

só restará uma imagem, quer pintada num vaso grego, quer inserida em um

1 Toda vez que o filme for citado, estaremos nos referindo às seguintes informações: CORALINE E O MUNDO SECRETO, Produzido por Claire Jennings e Mary Sandell, com direção e roteirização de Henry Selick. Estados Unidos: Focus Features/Universal Pictures, 2009. DVD (101 min.): DVD, NTSC, son., color.2 Autores citados por Brunel no Dicionário de Mitos Literários, 2005, p.xvii.3 “A Reescritura dos Mitos Literários”. Disponível em: http://www.casainabitada.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=35:a-reescritura-dos-mitos-literarios&catid=1:teoria-da-literatura&Itemid=4 Acesso: 23/04/2011 às 12:11h

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texto literário.” (2005, p. xvi), levando-nos a deixar de ver o mito como um

corpus singular, único, sagrado e intocável, para vê-lo como um mito literário,

agregado, então, à Literatura, pois (...) a literatura é o verdadeiro conservatório

dos mitos, [e] (...) o mito nos chega envolto em literatura e já é, queiramos ou

não, literário. Resulta daí que a análise literária encontra o mito em um

momento ou em outro (BRUNEL, 2005, p. XVII).

Além da narrativa, mito e Literatura também colaboram devido ao

“tema” em comum que podem apresentar, embora o tratando de formas

diferentes. O mito considera um “tema” como sagrado, expondo sua origem e

sua atemporalidade, uma vez que por ser um “tema” relativo ao Universo,

responde questões existentes em toda a Humanidade, independente da época.

Assim, “(...) o mito narra um acontecimento; mas, além disso, o mito dá

respostas às questões que a razão humana não pode compreender. (...) o

tratamento mítico de um tema pressupõe, portanto, sempre um conflito

existencial. (...)” (MONFARDINI, 2005, p. 54).4 A Literatura, por sua vez,

trabalharia este tema tratando apenas de sua ocorrência na vida humana e de

possíveis resoluções e questionamento acerca deste, agregando-o a um

microcosmo, representante da Humanidade. Ao tratarmos, então, de um mito

literário, inserimos a reatualização do mito no microcosmo, onde “(...) instaura-

se, (...) na tentativa de apreender, pela escrita, os questionamentos humanos e

criar um universo próprio que lhes responda” (CARVALHO, 2009).

Considerando que o mito é a explicação do inexplicável, por ser

criado para que o Homem compreendesse aquilo que não tinha uma

explicação concreta, sua presença na Literatura Fantástica é mais frequente, já

que este gênero literário “(...) apela para soluções transcendentais ou

sobrenaturais de problemas que a consciência humana não consegue resolver

(...)” (MONFARDINI, 2005, p. 55). Com estas afirmações, foi proposto, aqui, um

estudo da intertextualidade presente entre o mito de Orfeu e o filme5, não

somente pela dessacralização que o mito sofreu, mas também por

4 MONFARDINI, Adriana. O Mito e a Literatura. Disponível em: http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa/g_pdf/vol5/v5_4.pdf - Acesso em 23/04/2011 às 13:32h.5 O filme Coraline e o Mundo Secreto é uma adaptação do livro “Coraline” (2006), de Neil Gaiman, que apresenta, durante toda a sua narrativa, elementos fantásticos.

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apresentarem o tema da catábase 6 em comum. Ambas as personagens a

realizaram para resgatar algo que lhes foi tomado: Orfeu desceu ao Hades

movido pela perda sua Eurídice e pela esperança de poder resgatá-la; Coraline

foi ao outro mundo movida, primeiramente, pela sua curiosidade e,

posteriormente, regressou por ter tido seus pais reféns da outra mãe, o que a

fez readquirir os valores familiares que foram, por ela, esquecidos.

Por intertextualidade entendemos “(...) a presença de um texto em

outro texto (...)” (SAMOYAULT, 2008, p. 9), no qual um depende do outro para

que haja a sua existência. Está contida, principalmente, na Literatura, que

se escreve certamente numa relação com o mundo, mas também apresenta-se numa relação consigo mesma, com sua história, a história de suas produções, [como] uma árvore com galhos numerosos, com um rizoma mais do que com uma raiz única, onde as filiações se dispersam e cujas evoluções são tanto horizontais quanto verticais. (SAMOYAULT, 2008, p. 9)

Influenciada pelos estudos de Bakhtin acerca do Dialogismo, Julia

Kristeva introduziu primeiramente, na década de 60, o termo Intertextualidade,

e utilizou-se dele para afirmar que um texto nunca foi puro, pois sempre

apresentou vozes explícitas ou implícitas, representando as relações

estabelecidas entre os mais variados textos. Explicitou, também, que uma das

vozes mais importantes presentes no texto era a do próprio autor, que, ao

escrever, colocou ali sua intenção e sua opinião sobre determinado assunto. A

interação entre a voz do autor (enunciador) e a do leitor (enunciatário) gerou a

Intertextualidade.

Desta forma, vemos que o texto não é só composto por palavras,

frases e parágrafos, mas também pelo o que seu leitor acrescentou nele de seu

próprio conhecimento de mundo, contribuindo com experiências e fazendo com

que o texto tivesse uma leitura infinita, pois adicionou conceitos e ideias já

vistos. Toda essa retomada de informações, seja do leitor ou do próprio texto,

acabou por coloca-lo em movimento, já que não se trata somente do que está

preso em suas linhas, mas sim da interação, da movimentação de ideias e

parágrafos (através da leitura transversal e intratextual) contidas em suas

linhas e entrelinhas, assim como nos afirma Kristeva: “(...) todo texto se 6 Por catábase entende-se a descida ao Inferno estimulada pela busca de uma verdade, de uma realidade, ocasionando a morte simbólica de quem a conclui.

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constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação

de um outro texto” (1969, p. 145, apud SAMOYAULT, 2008, p. 16).

Antigamente, os primeiros textos eram vistos como um bloco

único de palavras, sem espaçamento entre elas, representando uma metáfora

na qual o texto permitia ao leitor ter somente uma interpretação de seu sentido,

como se a interpretação, assim como seu todo, fosse única. Posteriormente, o

texto foi desmembrado, com os espaços entre palavras, parágrafos e capítulos,

fazendo com que se tornasse passível de várias interpretações, como se cada

divisão fosse uma visão diferente da outra.

O conceito proposto Kristeva pode ser confirmado em nossa

própria leitura, pois quando lemos um texto, sempre relacionamos algo que já

aprendemos ou já lemos (nosso conhecimento de mundo e nossa vivência) às

ideias trazidas por ele, seja explanando, explicando ou exemplificando-as.

Assim, por meio do estudo intertextual e comparativo entre

Coraline e o Mundo Secreto e o mito de Orfeu, verificou-se que um mito pode

ser reatualizado, já que mesmo sendo sagrado e relacionado com a origem

e/ou importância de algo (no caso, o mito de Orfeu expressou a celebração da

imortalidade da música), pode ser transportado para a atualidade por meio de

sua reatualização em uma obra contemporânea, favorecendo, assim, o exame

dos mitos através da intertextualidade e do dialogismo.

A fim de que a análise da reatualização do mito de Orfeu fosse

possível, foi feito um levantamento do conceito de mito e das questões

referentes a ele, como tempo, espaço, sacralidade, atualizações, etc., segundo

Mircea Eliade em seu livro “Mito e Realidade” (1972), Joseph Campbell em “As

transformações do mito através do tempo” (1990) e Roland Barthes em

“Mitologias” (2001). Com esse levantamento, comparou-se a ida de Coraline ao

outro mundo com a descida de Orfeu ao Hades, baseando-nos no conceito de

rebaixamento, proposto por Mikhael Bakhtin, em seu livro “A cultura popular na

Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais”. Após a

análise comparativa, foi analisado o duplo – conceitos de Carla Cunha, Otto

Rank (”O Duplo”), e de Freud (“O Estranho”), como um acréscimo presente na

atualização do mito.

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Foi abordado, no primeiro capítulo, o conceito de mito, sua

importância e os elementos que o compõe, como tempo, espaço, sacralidade,

atualizações e personagens. Neste mesmo capítulo houve o levantamento da

fábula do mito de Orfeu e dos mitos e episódios que podem ser encontrados

dentro da narrativa principal, baseado nos estudos dos autores Elaine C. P. dos

Santos, em “O IV Canto das Geórgicas”, de outros autores organizados por

Pierre Brunel em “Dicionário de Mitos Literários” e Junito Brandão em

“Mitologia Grega” – Volumes 1, 2 e 3.

No segundo capítulo, foi feita uma síntese do filme “Coraline e o

Mundo Secreto” e um levantamento dos acréscimos, supressões,

animalizações, deslocamentos e inversões que a narrativa sofreu na sua

adaptação para o cinema.

O terceiro capítulo trouxe a análise comparativa entre o mito de

Orfeu e o filme, dando ênfase na relação entre a catábase empreendida por

Orfeu e a sofrida por Coraline. Nessa relação foram elencadas, além dos

conceitos de rebaixamento, de dessacralização e de reatualização, as visões

de mundo apresentadas pelo mito e pelo filme.

O quarto capítulo abordou a questão do duplo como um

acréscimo, do mito para a obra fílmica, e o motivo principal pelo qual esta

manifestação ocorreu.

Por meio do levantamento dessas visões, houve o apontamento

das considerações finais relativas ao estudo intertextual entre o mito de Orfeu e

o filme, que confirmou a importância e a relevância

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CAPÍTULO 1 – O mito

1.1 A origem do mito

Assim como muitas ocorrências em nossas vidas, não podemos

especificar exatamente o surgimento do mito. De acordo com Campbell, o mito

originou-se por volta de 200000 a. C. com a expansão do cérebro do Homem

de Neandertal, pois assim que “o cérebro atingiu certo tamanho, [houve] uma

transformação da consciência e é nesse período que aparecem os primeiros

indícios indiscutíveis de um pensamento mitológico” (1990, p. 12). Esses

indícios são baseados em fósseis encontrados, que mostram que os homens

de Neandertal já exibiam comportamentos míticos, como o sepultamento com

oferendas animais, corpos enterrados em posições fetais, e “(...) a adoração de

crânios de ursos das cavernas” (CAMPBELL, 1990, p. 16), pois foram

encontrados crânios com oferendas à sua volta.

Desconsiderando que, atualmente, a palavra “mito” é empregada

para referir-se a uma pessoa ou fato ilustres, grandiosos, ainda há duas visões,

acerca do mito: uma o vê como uma “(...) fábula, lenda, invenção ou ficção (...)”

(BRANDÃO, 1992, p. 35) que narra façanhas de personagens históricos, e

outra o entende como um mito “vivo” por ser uma narrativa sagrada, verdadeira

e possuidora de uma carga muito significativa, seja para seus estudiosos ou

para

...as sociedades onde o mito é – ou foi, até recentemente –“vivo” no sentido de que fornece os modelos para a conduta humana, conferindo, por isso mesmo, significação e valor à existência. (ELIADE, 2004, p.8)

A ocorrência da primeira visão dá-se porque a semântica da

palavra “mito” é confundida com a de “fábula”, “estória”. A distinção entre mito e

qualquer outra narrativa é fácil de ser feita, já que o mito retrata uma verdade –

a criação de algo que realmente existe no mundo –, é sagrado e tem uma

carga mítica-religiosa devido a sua função nas sociedades que o consideram

“vivo”. Já as estórias não apresentam nenhum aspecto sagrado, divino; são

apenas narrações de um fato qualquer. Além da sacralidade, o mito influenciou

e modificou a vida humana por ser um modelo de conduta, e uma estória não

tem influência sobre os homens.

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Para nossos contemporâneos, essas duas visões são misturadas,

já que ao caracterizar uma pessoa como “mito”, seja por seus atos, história,

entre outros, dá-se a este ser os créditos de bravura, modelo, assim como o

“mito” que, em si, representa um exemplo a ser seguido. Para eles, toda a

carga religiosa, o ritual de representação e a sacralidade foram rebaixados por

não serem mais importantes, pois, além de passar a ser somente uma narrativa

que supria a curiosidade dos povos antigos, o mito teve seus personagens, os

entes sobrenaturais, transformados em meros seres humanos, cuja atuação

histórica tem alguma relevância. Desta forma, os homens modernos acreditam

que é por meio dos feitos dos “atuais seres míticos” que sua vida desenvolveu-

se para tornar-se como é hoje.

De acordo com a segunda perspectiva, o mito tem grande

importância nas sociedades arcaicas que o viam como “vivo” por explicar a

origem desconhecida de determinados fenômenos que não dependiam da ação

humana para acontecer7, como a criação e a destruição do mundo –

conhecidos como cosmogonia e escatologia –, a renovação, e a origem de

determinados sentimentos, fenômenos naturais, etc. Além de satisfazer a

curiosidade humana, o mito também é visto como um modelo de conduta a ser

seguido por essas civilizações, assim como os mulçumanos seguem o Alcorão

e os católicos, a Bíblia, por, juntamente com “(...) as crenças, os costumes, as

leis, as obras de arte, o conhecimento científico, os esportes, as festas (...)”

(BRANDÃO, 1992, p. 9), ser grande responsável pela formação da identidade

cultural e da “Consciência Coletiva”8 de uma sociedade. Além de definir

costumes a serem seguidos, o mito é capaz de constituir toda a riqueza cultural

de uma sociedade, que pode, “(...) a qualquer momento, voltar para

realimentar-se (...)” (BRANDÃO, 1992, p.10) e instruir-se sobre a história

traçada por esta civilização.

Os atos realizados pelos homens dessas civilizações, sejam eles

bons ou ruins, são justificados pelas tramas dos mitos, uma vez que os homens

os representavam fielmente a fim de recriá-los e, talvez, alcançarem os

7 “(...) o mito pretende explicar o mundo e o homem, isto é, a complexidade do real (...)” (2004, p. 36)8 Termo de C. G. Jung, utilizado pelo Dr. Carlos Byington in: BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega – volume I. Petrópolis: Vozes, 1987.

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mesmos feitos obtidos pelas “personagens” 9, e relacionados diretamente com

a cultura desses povos, que consideravam essas representações como um

meio sagrado de estarem em contato com seu passado. Segundo Brandão, os

mitos

(...) delineiam padrões para a caminhada existencial através da

dimensão imaginária. (...) Até mesmo os mitos hediondos e

cruéis são da maior utilidade, pois nos ensinam através da

tragédia os grandes perigos do processo existencial. (p.9) (...)

Por isso, os mitos, além de gerarem padrões de

comportamento humano (...), permanecem através da história

como marcos referenciais através dos quais a Consciência

pode voltar às suas raízes para se revigorar (1992, p. 10)

As antigas civilizações possuem sua tradição oral, já que os mitos

eram recitados, levando grandes estudiosos a os transcreverem por serem

importantes relatos da vida dessas sociedades, pois determinavam os

costumes dos homens antigos. Ao compararmos os mitos de cada civilização,

vemos que o mesmo tema mítico pode ser encontrado em diferentes religiões,

porém, para cada uma, sofreu algumas modificações, que ocorreram não só

pela transcrição do mito oral para escrito, mas também, por se tratar de um

modelo a ser seguido, foi “manipulado” para adequar-se à época e à sociedade

em que estava presente, fazendo com que os mitos fossem “(...) transformados

e enriquecidos no curso dos séculos, sob a influência de outras culturas (...)”

(ELIADE, 2004, p. 10). Embora, nas antigas civilizações, essas alterações

tenham ocorrido, nas sociedades arcaicas o mito ainda era preservado como

primitivo10, mantendo, assim, sua forma “original”, sem transformações. Vemos

essas modificações, principalmente, nos mitos cosmogônicos, onde cada

Mitologia vê a criação do mundo de uma forma diferente, como os chineses,

que acreditam que o mundo originou-se de um grande ovo, e os gregos, com o

9 A palavra “personagem” veio destacada pois veremos, posteriormente que as personagens dos mitos eram conhecidas como entes sobrenaturais, e tratadas como divindades nas sociedades em que o mito estava “vivo”.10 Entende-se, como mito primitivo, aquele que não sofreu nenhuma modificação em sua narrativa, e ainda carrega sua sacralidade. Segundo Brunel, “o mito primitivo engloba – ele é ao mesmo tempo um relato das origens e da religião – saber, prática, justificação, costumes etc” (2005, p. 731).

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Caos, que originou a Gaia (Terra), o Tártaro (submundo embaixo da Terra), o

Érebo (as trevas), a Nix (a noite)...

1.2 O que é o mito?

A tentativa da conceituação de “mito” é uma tarefa árdua, já que

cada área – Psicologia, Sociologia, Filosofia, entre muitas outras – formulará

um conceito mais próximo ao seu objeto de estudo. Na Literatura também há

essa dificuldade, pois cada pesquisador que estuda o “mito”, acaba por criar

uma nova conceituação ou por adaptar uma já existente. Segundo Barthes, em

seu livro “Mitologias”, qualquer objeto mundano, quando dotado de uma

existência aberta, é capaz de ser relacionado com a história de determinada

sociedade, obtendo, assim, uma significação, e podendo tornar-se um mito;

para ele, portanto, “o mito é uma fala, (...) um sistema de comunicação, é uma

mensagem” (2001, p. 131). Desse modo, e devido aos fins acadêmicos deste

estudo, as conceituações propostas por Mircea Eliade, em seu livro “Mito e

Realidade” (2004), e por Junito de Souza Brandão, em “Mitologia Grega –

volume I” (1987), são selecionadas como as mais adequadas, pois vem que

“(...) o mito é o relato de um acontecimento ocorrido no tempo primordial,

mediante a intervenção de entes sobrenaturais” (BRANDÃO, 1992, p. 35), e

que

o mito conta uma história sagrada; ele relada um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do ‘princípio’. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entres Sobrenaturais, uma realidade passou a existir. (ELIADE, 2004, p. 11)

Dois elementos fundamentais do mito são o tempo primordial e a

presença dos entes sobrenaturais, já que dão a ele toda a carga sagrada que

carregam. O tempo primordial é o tempo sagrado, das origens, no qual o mito

se desenrolou. Ao contrário de qualquer narrativa, o mito é atemporal por não

apresentar marcas de tempo, sendo, assim, capaz de romper as barreiras do

tempo e perdurar por toda a eternidade. Brandão explica que

(...) o tempo mítico, ritualizado, é circular, voltando sempre sobre si mesmo. É precisamente essa reversibilidade que liberta o homem do peso do tempo morto, dando-lhe a

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segurança de que ele é capaz de abolir o passado, de recomeçar sua vida e recriar seu mundo. O profano é o tempo da vida; o sagrado, o ‘tempo’ da eternidade. (1992, p. 40)

Os entes sobrenaturais, como dito anteriormente, são as

personagens dos mitos que, seja por meio de sua inteligência, astúcia,

sabedoria, ou por intermédio dos deuses, fizeram possível que o homem

vivesse no mundo como ele era; foram os atos dos entes sobrenaturais que

determinaram como o homem da sociedade arcaica deveria agir. Segundo

Eliade,

(...) o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do ‘princípio’. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos entes sobrenaturais, uma realidade passou a existir. (...) Os personagens dos mitos são os entes sobrenaturais. Eles são conhecidos sobretudo pelo que fizeram no tempo prestigioso dos ‘primórdios’. (1992, p.11)

Por carregarem um caráter sagrado, os mitos não podiam ser

entoados por qualquer pessoa e em qualquer situação; para tal, existiam os

rituais, celebrações onde pessoas instruídas e com conhecimento religioso

reproduziam os mitos para os iniciados, os únicos permitidos a ouvi-los, pois se

acreditava que

rememorando os mitos, reatualizando-os, renovando-os por meio de certos rituais, o homem torna-se apto a repetir o que os deuses e os heróis fizeram ‘nas origens’, porque conhecer os mitos é aprender o segredo da origem das coisas (...) (BRANDÃO, 1992, p. 39).

Os indivíduos que participavam dos ritos eram escolhidos de

acordo com o grau de instrução religiosa, idade, sexo, etc. Os mais jovens só

poderiam participar desses rituais quando atingissem determinada faixa etária

e quando fossem introduzidos a esta celebração por meio de um ritual de

iniciação. Nesses rituais, que aconteciam em momentos certos – já que alguns

mitos só poderiam ser recontados em determinadas estações do ano, períodos

do dia ou da noite –, os iniciados reviviam o mito como uma espécie de ritual,

onde cada um exercia o papel de algum ente sobrenatural; ao encenarem a

narrativa mítica, os participantes viam-se no tempo primordial, como uma

espécie de “teletransporte”, onde reviviam os fatos heróicos dos entes

sobrenaturais, como se tivessem estado presentes na primeira vez em que a

origem de determinado alimento, animal, fenômeno natural, etc., aconteceu. A

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“encenação” do mito ocorria não só para manter vivas as crenças de uma

sociedade – função esta, talvez, inconsciente –, mas também porque

acreditava-se que, por meio da narração do mito, seria possível alcançar os

mesmos feitos obtidos pelos entes sobrenaturais, uma vez que “(...) conhecer a

origem de um objeto, de um animal ou planta, equivale a adquirir sobre eles um

poder mágico, graças ao qual é possível dominá-los, multiplicá-los ou

reproduzi-los à vontade” (BRANDÃO, 1992, p. 19).

Ainda no que diz respeito ao conceito de mito, há duas

nomenclaturas muito usadas para dividi-los: literários e primitivos. Segundo

André Dabezieis11, a modernidade faz mau uso da palavra “mito”, associando-a

a qualquer fato que é julgado importante, ou até mesmo a uma estória cuja

moral seja considerável por seus leitores; e, até o século XVIII, tudo o que fugia

da realidade cristã pregada pela Bíblia era visto como um mito, retomando,

assim, a questão “pagão x cristão”.

Os mitos primitivos, conforme explicado anteriormente, são os

mitos em sua essência, possuidores de carga mítica-religiosa e regentes dos

costumes das sociedades arcaicas, “(...) eram de preferência estáticos,

impunham-se ao homem, e ao mesmo tempo o tranquilizavam em face de um

universo no seio do qual ele se encontrava como que imerso” (BRUNEL, 2005,

p. 733).

Os mitos literários, por sua vez, são formados pela incorporação

do mito primitivo na Literatura. O tema, presente nos mitos primitivos, assim

como seu enredo, são utilizados nas obras literárias, não como são

apresentados em sua essência, mas sim adaptados à contemporaneidade,

sofrendo, desta forma, um rebaixamento, já que perdem o teor sagrado que

continham. Para Dabezieis, não basta considerarmos a atualização do mito em

uma obra literária, mas também toda a intenção de fazê-la:

É preciso que se parta de uma espécie de escala dos níveis de interpretação de uma obra: primeiro, o que o autor quis fazer da sua versão do mito, ou seja, em que e por que ele inova; em seguida, o que a época e a mentalidade coletiva expressam através de suas intenções (ou de seu inconsciente); por fim, o que, do esquema permanente do mito, passa através da ‘atualização’ representada pelo novo texto. (In: BRUNEL, 2005,p. 735)

11 DABEZIEIS, André. Mitos primitivos a mitos literários. In: BRUNEL, Pierre (org). Dicionário de Mitos Literários. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.

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Assim, a origem do mito literário acaba sendo justificada pelo fato

de o mito, em si, ser uma narrativa, e nada mais adequado do que a Literatura

para retratá-lo e mantê-lo “vivo” mediante suas atualizações.

1.3 O mito de Orfeu12

Orfeu, que teve sua origem atribuída à Trácia, era filho do rei

Eagro13 com uma das nove musas, Calíope, cujo nome, em grego, significa

“(...) a que tem ‘uma bela voz’” (BRANDÃO, 1992, p.178), estando, portanto,

relacionada à música e a poesia, como o filho. Em algumas versões, como a

proposta por Genest, em seu livro “As mais belas lendas da Mitologia” (2005),

Orfeu tinha um irmão, chamado Lino, filho de Apolo com a musa da dança,

Terpsícore, considerado o inventor dos versos líricos e das canções, e o

responsável por dar a noção de ritmo e melodia ao irmão, Orfeu. Músico nato,

tocador da lira, Orfeu tinha o poder de encantar a todos e a tudo com sua

música e, devido a esse dom musical, diz-se que foi Orfeu quem aumentou

para nove o número das cordas da cítara, como uma homenagem às nove

musas, senão ele quem foi o próprio criador deste instrumento musical,

possibilitando que, em algumas versões do mito, Orfeu tocasse a cítara ao

invés da lira, como se pode ver no IV canto das Geórgicas, “(...) Orfeu,

aliviando seu doloroso amor com sua lira côncava (...)” (SANTOS, 2007, p.

106), e no Dicionário mítico-etimológico da Mitologia Grega, “sua maestria na

cítara e a suavidade de sua voz (...)” (BRANDÃO, 1992, p. 196). Participou da

expedição dos Argonautas e nela teve papel muito importante, pois, por meio

da música, foi capaz de encantar as árvores para que se sacrificassem e

12 Para este corpus, foi escolhida a versão do mito de Orfeu presente no “IV Canto das Geórgicas”, pois a voz vergiliana retrata poeticamente o mito, e traz as questões da catábase e anábase, tão importantes para a análise dos corpora.13 Há versões, como a Quarta Pítica, de Píndaro, e análises feitas por estudiosos, como Junito Brandão, onde Orfeu não é filho do rei Eagro, e sim do deus Apolo, mestre da lira. Ao ser visto como filho de um deus, Orfeu “(...) designa a figura mítica do Poeta e do mestre do encantamento” (SANTOS, 2007, p. 57). Devido à intertextualidade que será analisada entre este mito e o filme Coraline e o Mundo Secreto, escolheu-se a versão cuja descendência é dada ao rei Eagro, pois esta permite que Orfeu seja visto somente como um músico, capaz de retratar sua vida, suas alegrias e infortúnios por meio de sua musica, de seu dom, o que facilitará a relação deste com a personagem principal do filme – Coraline.

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tornassem-se material de construção do navio da expedição, os rochedos para

que permitissem a passagem do navio, e as Sereias, para que estas não

fossem capazes de encantar os marinheiros.

Assim que regressou da expedição, Orfeu casou-se com a ninfa

Eurídice, mas teve pouco tempo para aproveitar o matrimônio, pois a noiva fora

morta por uma picada de cobra, (...) no dia da cerimônia (...) (GENEST, 2005,

p. 1226), quando fugia, pelos campos, do apicultor Aristeu, que desejava tê-la

para si. Desolado com a notícia, Orfeu decidiu ir até os Infernos – Hades – para

resgatar a amada. Sua jornada pelo resgate iniciou-se com o encontro com

Caronte - o barqueiro – cuja função era conduzir as almas dos mortos ao

Hades. Segundo Brandão, somente entravam no barco de Caronte as almas

“(...) cujos corpos houvessem recebido sepultura (...), e mediante pagamento

de um óbulo14 (...)” (1992, p. 188), e que, “(...) em vida, ninguém penetrava em

sua barca, a não ser que levasse (...) um ramo de ouro colhido na árvore

sagrada de Core ou Perséfone” (BRANDÃO, 1992, p. 188), impossibilitando,

portanto, o embarque e a condução de Orfeu. Almejando o reencontro com sua

amada, Orfeu, munido de sua sabedoria e de sua música, encantou Caronte

com sua lira, fazendo com que este o conduzisse até os Infernos.

Ao chegar aos portões do Hades, Orfeu deparou-se com o cão

Cérbero, o monstro “(...) dotado de três cabeças, cauda de dragão, pescoço e

dorso eriçados de serpentes” (BRANDÃO, 1992, p. 243) que guardava a

entrada do Hades para que nenhuma alma viva o penetrasse e, se acaso o

fizesse, não permitia sua saída. Novamente, utilizando-se de seus dons

musicais, Orfeu conseguiu ultrapassar mais essa barreira, encantando o

monstro. Além de Caronte e Cérbero, durante a jornada, Orfeu encantou outras

personagens do mundo de Hades, como narrado no IV Canto das Geórgicas:

“(...) a roda de Ixião parou de girar, o rochedo de Sísifo deixou de rolar, Tântalo

esqueceu a fome e a sede, e as Danaides deixaram o eterno trabalho de

encher os tonéis sem fundo” (SANTOS, 2007, p. 58).

14 Óbulo é o pagamento que deveria ser dado a Caronte, para que este levasse a alma até o Hades. Este pagamento era feito por meio de uma moeda colocada na boca do sepultado, já que, em grego, moeda significa “(...) o símbolo da imagem da alma, porque esta traz impressa a marca de Deus, como a moeda o traz do soberano (...)” (BRANDÃO, 1986, p. 316).

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Já diante de Plutão e Perséfone, deuses daquele reino, pediu

para que devolvessem sua amada Eurídice. Tocados pela música encantadora

de Orfeu e por seu sofrimento, esses deuses infernais permitiram que o músico

voltasse ao reino dos vivos com sua amada, estabelecendo, contudo, uma

condição: “(...) ele seguiria à frente e ela lhe acompanharia os passos, mas,

enquanto caminhassem pelas trevas infernais, (...) Orfeu não poderia olhar

para trás (...)” (BRANDÃO, 1992, p. 197) e, caso o fizesse, a perderia

novamente. Feliz com a oportunidade de ter sua Eurídice de volta, o músico

aceitou a condição imposta por Hades e Perséfone, iniciando, assim, sua

anábase. Durante a subida, quase alcançando o reino dos vivos, Orfeu, com

medo de que sua amada não o estivesse seguindo e que tivesse sido

enganado pelos deuses dos Infernos, não resistiu e olhou para trás, fazendo

com que Eurídice dissesse:

Quem arruinou a mim, infeliz, e a ti, Orfeu? Que tão grande loucura? Eis que os cruéis destinos me chamam novamente para trás e o sono fecha meus olhos indecisos. E agora, adeus: sou levada rodeada por uma imensa noite (...). Não sou mais tua!’ Ela disse e, subitamente, sumiu-lhe dos olhos, como uma fumaça misturada no tênue ar. (IV Canto das Geórgicas –SANTOS, 2007, p. 107)

Quando se viu sem a amada pela segunda vez, e atormentado

pela culpa de perda, Orfeu tentou retornar ao Hades, porém foi impedido por

Caronte, o barqueiro, já que não conseguiu ludibriá-lo e encantá-lo com a sua

música, como fizera outrora.

Nas reatualizações do mito, há várias versões que explicam o fim

de Orfeu: em algumas ele foi bem sucedido, já que depois de ter conseguido

resgatar sua amada com a permissão dos deuses infernais, não olhou para trás

e a teve para sempre ao seu lado; em outras, Orfeu a perdeu e teve um final

trágico. Dentre as versões funestas mais comuns, uma conta que, após

retornar do Hades, o músico “(...) instituiu mistérios inteiramente vedados às

mulheres. Os homens se reuniam com ele em uma casa fechada, deixando

suas armas à porta” (BRANDÃO, 1992, p. 197); as Mênades15, enciumadas por

15 Mênades: mulheres da Trácia, também conhecidas como Bacantes, que estavam tomadas pela “(...) loucura sagrada, possessão divina (...)” (BRANDÃO, 1987, p. 136) do deus Dioniso (ou Baco). Esse comportamento ocorria devido aos rituais realizados para este deus, que eram regados a vinho e orgias.

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não terem o amor de Orfeu, roubaram as armas dos homens e mataram a

todos. E outra versão16 – e talvez a mais conhecida delas – Orfeu, depois de

perder a amada novamente, “durante sete meses contínuos, chorou, só

consigo mesmo, ao pé de uma grande rocha, nas margens do deserto

Estrimão, e que contou estas desgraças sob as gélidas cavernas, amansando

os tigres e atraindo os carvalhos com sua canção (...)” (SANTOS, 2007, p.

107). As Mênades, tomadas pelo encanto de Baco e sentindo-se desprezadas,

esquartejaram Orfeu, despejando seus pedaços e sua cabeça no rio Hebro, e,

“ao rolar da cabeça pelo rio abaixo, seus lábios chamavam por Eurídice e o

nome da amada era repetido pelo eco nas duas margens do rio” (BRANDÃO,

1987, p. 143). Ainda nesta versão, “as musas, a quem Orfeu prestara tantos

serviços, compadeceram-se dele e lhe deram uma sepultura ao pé do Olimpo.

Recolheram sua cabeça e lira das águas e as conservaram na ilha de Lesbos”

(GENEST, 2005, p. 227).

A presença de cada personagem no mito de Orfeu não é por

acaso. Cada qual carrega sua história – seja por meio de seu próprio mito, da

etimologia do nome, etc. –, e juntos contribuem para a construção do mito

principal.

1.3.1 O episódio de Aristeu1718

Filho da ninfa Cirene com o deus Apolo, esse semideus é

conhecido como “o apicultor” ou como “o pastor”, e seu nome significa, em

grego, “muito bom”.

Depois de ter contribuído para a morte de Eurídice – já que era

dele que ela fugia quando foi picada –, Aristeu teve todas as suas abelhas

mortas “(...) por doença e por fome (...)” (SANTOS, 2007, p. 102). Desorientado

ante a catástrofe, Aristeu decidiu procurar a mãe, que morava num rio,

16 Novamente, devido à análise que será realizada entre o mito e o filme, escolheu-se esta versão para ser estudada.17 A análise deste episódio ocorre porque, na versão vergiliana, o episódio de Aristeu se encontra no mito de Orfeu.18 Neste trabalho, serão estudados somente os mitos de Orfeu e Hades. O episódio de Aristeu e o mito de Perséfone foram trazidos por estarem relacionados ao mito de Orfeu, mas serão estudados em outra pesquisa a ser apresentada em futuro congresso.

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questionando-a sobre os motivos de seus infortúnios. Uma das ninfas, que

morava com Cirene, ouvindo as lamentações de Aristeu, comunicou à mãe o

ocorrido. Esta ordenou que as águas do rio se abrissem, permitindo a

passagem do filho. Já no interior da morada das ninfas, Aristeu, encantado com

tudo o que via, observava atentamente cada cômodo, até chegar ao quarto

principal, onde foi recebido pela mãe com um banquete servido pelas outras

ninfas.

Após ouvir as lamúrias do filho, Cirene o aconselhou a procurar

“(...) um adivinho, o azul Proteu, que percorre o grande mar com seu carro

puxado por peixes com duas pernas equinas” (SANTOS, 2007, p. 104), e o

instruiu como proceder para obter sua resposta do adivinho: primeiro, deveria

esperar o momento em que o adivinho estivesse deitado e dormindo, depois,

deveria amarrá-lo, com muita força, pois ele não daria a resposta sem antes

transformar-se no mais terrível dos monstros; Aristeu deveria manter Proteu

preso até que retornasse à sua forma original e desse a resposta almejada. A

ninfa, então, escondeu o filho próximo à morada do adivinho, e com ele

permaneceu escondida por uma névoa, a fim de auxiliar Aristeu caso ele

precisasse.

Aristeu agiu como a mãe havia lhe aconselhado, até que Proteu,

vencido, contou ao apicultor que seu infortúnio fora causado pelas Ninfas que,

tristes pelo fim de Eurídice, causaram a morte de suas abelhas; depois desta

revelação, o velho desapareceu no mar. Cirene, que estava próxima e a tudo

ouvia, aconselhou o filho novamente, dizendo-lhe: “(...) apresenta oferendas

pedindo paz e venera as indulgentes Napéias, pois elas darão o perdão a teus

votos e abrandarão sua ira. (...) Oferecerás a Orfeu as papoulas do Letes (...);

venerarás com uma ovelha imolada Eurídice (...)” (SANTOS, 2007, p. 108).

Após nove dias, Aristeu retornou ao local das oferendas e viu, nos animais que

haviam servido de sacrifício,

(...) um súbito prodígio e maravilhoso para ser dito: em todo o ventre, pelas dissolvidas vísceras dos bois, as abelhas zumbem, e das costas quebradas fervilham, e, em seguida, formam-se imensas nuvens, e elas voam juntamente para o topo de uma árvore e pendem dos flexíveis ramos como cachos de uva. (SANTOS, 2007, p. 108)

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1.3.2 O mito de Perséfone e sua ligação com o Hades, Cérbero e Caronte

Filha de Zeus com Deméter, a deusa da vegetação, também é

conhecida por Core – “(...) a semente do trigo lançada no seio da Mãe-Terra

(...)” (BRANDÃO, 1986, p. 73) e, na óptica da mitologia romana, apresenta o

nome de Prosérpina e Cora. Sempre muito ligada à mãe, passaram a ser

conhecidas como “As Deusas”.

Por ser uma deusa de beleza estonteante, despertou interesse

em Hades, irmão de Zeus, que decidiu que a teria de qualquer forma. Com a

permissão de seu irmão, Hades planejou raptar Perséfone, e, em um dia em

que ela colhia flores19, implantou um “(...) narciso ou um lírio às bordas de um

abismo” (BRANDÃO, 1986, p. 290); quando a jovem aproximou-se para colhê-

lo, “(...) a Terra se abriu, Hades (...) apareceu e a conduziu para o mundo

ctônio” (BRANDÃO, 1986, p. 290).

Ao saber do ocorrido com a filha, Deméter pôs-se a procurá-la por

todo o mundo, por nove dias, até que obteve ajuda do deus Hélio20, “(...) o

SOL, que tudo vê e não perde a hora (...)” (BRANDÃO, 1986, p. 217), que

contou-lhe que sua filha havia sido raptada por Hades. Inconformada com os

deuses, decidiu abandonar o Monte Olimpo, escolhendo por permanecer no

meio dos mortais até que tivesse a filha de volta. Na Terra, escondeu sua

identidade e foi trabalhar como ama do filho do rei Céleo. No reino deste, pediu

que lhe fosse preparada uma bebida mágica e entorpecente para que fizesse

do bebê um jovem imortal. Uma noite, enquanto realizava os ritos, a rainha

entrou em seu aposento, viu o filho participando de um ritual de iniciação, e

gritou, fazendo com que a deusa Deméter se revelasse e pedisse, antes de

deixar o reino de Céleo, que um templo em sua homenagem fosse construído,

para que houvesse um lugar em que pudesse ensinar “(...) seus ritos aos seres

humanos” (BRANDÃO, 1986, p. 291).

19 Em algumas versões, como a proposta por Émile Genest et al, no livro “As mais belas lendas da Mitologia” (2005), Perséfone colhia, especificadamente, narcisos.20 Na versão trazida por Émile Genest, “Deméter encontrou uma fonte, Aretusa, que apesar de ser silenciosa não era cega. Aretusa vira passar um carro terrível, puxado por quatro cavalos de ébano, e conduzidos por Hades, levando uma virgem desmaiada” (2005, p. 151).

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Consumida pela saudade da filha, Deméter causou uma grande

seca, que assolou a Terra, chamando a atenção de Zeus, que enviou vários

mensageiros pedindo para que ela retornasse ao Monte Olimpo, obtendo

sempre a mesma resposta, “(...) não retornaria ao convívio dos Imortais e nem

tampouco permitiria que a vegetação crescesse, enquanto não lhe

entregassem a filha” (BRANDÃO, 1986, p. 291). Com medo de que mais

nenhum vegetal pudesse ser cultivado, Zeus pediu ao irmão que devolvesse

Perséfone, mas Hades, perverso e mal-intencionado, omitiu que sua prisioneira

não poderia comer nada no reino dos mortos, pois “quem aí comesse fosse o

que fosse não mais poderia regressar ao mundo dos vivos” (BRANDÃO, 1986,

p. 305). Como Perséfone jejuava desde que havia sido raptada, encontrou uma

semente de romã e acabou por comê-la, causando a permanência eterna de

Perséfone no mundo dos Infernos. Já que a deusa havia comido a semente de

romã sem saber o real significado deste ato, foi estipulado que ela poderia

retornar ao mundo dos vivos uma vez por ano, durante oito meses, e voltaria

ao Hades por quatro meses. Daí atribui-se a origem do ciclo das plantas: o

período em que a deusa se encontrava no mundo inferior está relacionado à

época em que as vegetações morrem, pois não estariam sendo guardadas pela

deusa; e o período em que se encontrava no mundo dos vivos, à época em que

as vegetações crescem, amadurecem, e são colhidas. Ainda que o rapto de

Perséfone tenha sido resolvido de uma forma benéfica para ambos os lados,

tornou-se claro o porquê de o deus Hades ter sido o escolhido para reinar o

mundo dos Infernos.

1.3.3 O mito de Hades

Embora haja várias versões de uma única etimologia para o nome

“Hades”, a mais comum o relaciona com “terrível”, do grego, ou, do latim, “(...)

cruel, terrível, violento (...)” (BRANDÃO, 1986, p.311). Por ter esta derivação, o

nome é dificilmente pronunciado, sendo, então, substituído por Plutão – que é

retratado dirigindo um “(...) carro puxado por quatro cavalos ariscos e mais

pretos que ébano” (GENEST, 2005, p. 150) - , o que “(...) permite, assim, que

se encobrisse o verdadeiro caráter de Hades, o cruel, o implacável, o inflexível,

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o odiado de todos, não podendo, com esse nome, receber as honras devidas

de um deus” (BRANDÃO, 1986, p.312).

Após a divisão do Universo em três, coube ao Hades o reino dos

Infernos21, local responsável por receber e abrigar a alma de todos os mortos

que fossem sepultados de acordo com os costumes gregos. Além de governar

esse reino, Hades era responsável por evitar a entrada e permanência lá de

qualquer ser vivo; para tal, contava com a ajuda de Caronte e Cérbero.

Caronte, como visto no mito de Orfeu, era o barqueiro encarregado de

transportar as almas dos mortos “(...) para além dos quatro temíveis rios

infernais, Aqueronte, Cocito, Estige e Piriflegetonte” (BRANDÃO, 1986, p. 318).

Cérbero, como visto no supracitado mito, era o cão de três cabeças

responsável por vigiar a entrada e saída do Hades, embora fosse mais rigoroso

com a saída de alguma alma do reino dos Infernos.

21 O reino dos Infernos apresenta o mesmo nome de seu deus governante: Hades

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CAPÍTULO 2 – Coraline e o Mundo Secreto

O filme Coraline e o Mundo Secreto (2009), dirigido por Henry

Selick, foi baseado no romance Coraline, escrito pelo autor britânico Neil

Gaiman em 2002. Temos como personagem principal do filme Coraline Jones,

uma menina que acabou de se mudar com os pais para um novo apartamento

localizado no Palácio Rosa, uma antiga grande casa que fora dividida em

apartamentos para poder abrigar mais de uma família ao mesmo tempo. Assim

que acabou de mudar-se, Coraline decidiu explorar o jardim da nova casa,

onde conheceu Wybie, neto da dona do Palácio Rosa. Além de ser um menino

com uma grande imaginação, Wybie foi o responsável por apresentar o Gato

para a menina e por lhe dar de presente uma boneca encontrada no baú de

sua avó, que curiosamente apresentava as mesmas características físicas de

Coraline e as mesmas roupas usadas por ela, levando-a a ser, portanto,

apelidada de “Coralininha” 22.

Entediada por não ter o que fazer, Coraline exigia a atenção dos

pais, que trabalhavam em seus computadores para terminar o catálogo de

Botânica que escreviam juntos. O pai decidiu, então, dar-lhe uma tarefa:

explorar a nova casa, contando quantas portas, janelas e elementos azuis

existiam ali. Em sua exploração, acompanhada por sua nova amiga, a boneca,

encontrou 12 janelas que vazavam, 12 bichos nojentos e um aquecedor

enferrujado. Ao entrar na sala de estar, viu um quadro que retratava um menino

usando roupas azuis e encarando seu sorvete caído no chão, quatro janelas e

nenhuma porta; porém, ao pegar sua boneca, que repousava em cima da

mesa, Coraline descobriu uma porta pequena escondida atrás do papel de

parede. Instigada pela curiosidade, a menina pediu para que a mãe abrisse a

porta; vencida pela insistência da filha, destrancou a porta, que se abriu para

uma parede de tijolos. A Sra. Jones lhe explicou que aquela porta havia sido

trancada após a divisão do casarão em apartamentos, causando em Coraline

uma grande decepção, já que esperava que a porta a levasse a algum lugar

inexplorado. 22 No original, em Inglês, a boneca chama-se “Little Me”, que em Português corresponde a “Euzinha” ou “Pequena Eu”.

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Quando Coraline adormeceu, sonhou com a portinha se abrindo,

com pequenos ratinhos saindo de dentro dela, e ouviu um barulho vindo

debaixo de sua cama. Ao acordar para descobrir o que era, viu o ratinho

pulando e correndo, o que a levou a segui-lo até a sala de estar, onde ele

entrou pela pequena porta. Coraline, então, a abriu e descobriu um comprido e

escuro túnel azul e, mais uma vez, curiosa, engatinhou até o fim do túnel para

descobrir até onde este a levaria.

Assim que atravessou o corredor, confusa, percebeu que estava

em casa, embora ali houvesse algumas diferenças em relação à sua casa real,

como, por exemplo, o quadro que antes tinha a gravura de um menino triste

encarando a bola de sorvete no chão, agora apresentava o mesmo menino,

feliz e tomando seu sorvete. Ao sentir o cheiro de comida, chegou à cozinha,

onde viu sua mãe cantando e cozinhando. Quando lhe perguntou por que

cozinhava tarde da noite, a mulher se virou e revelou ser sua outra mãe, já que

se assemelhava fisicamente à mãe real da menina, com a diferença de ter

grandes botões negros no lugar dos olhos. Além de outra mãe, Coraline tinha

outro pai e outros vizinhos, que faziam de tudo para agradá-la. Embora se

divertisse no outro mundo com os supostos pais e com as maravilhas criadas

pela outra mãe para encantá-la, Coraline percebeu o horror desse mundo

quando lhe pediram para costurar em si própria botões no lugar de seus olhos;

ao rejeitar o pedido, não conseguia mais voltar para sua vida real, ficando

presa no outro mundo e de castigo dentro do espelho. Ali encontrou as almas

de três outras crianças que cederam aos encantos do outro mundo e

abandonaram suas vidas para viver com a outra mãe. Nesse episódio, as

crianças contaram que era através dos olhos das bonecas, que estranhamente

se assemelhavam a elas, que a outra mãe espionou suas vidas e foi capaz de

recriá-las no outro mundo, melhorando os aspectos que não as agradavam,

como falta de atenção dos pais, companhia, diversão; contaram, também, que

a outra mãe roubou os corações, as vidas das crianças e depois as

abandonou para poder procurar por novas vítimas. Felizes por terem visto que

Coraline ainda não tinha botões, apelaram para que a menina, ao tentar

derrotar a outra mãe, encontrasse seus olhos que estavam espalhados pelo

outro mundo, pois só assim suas almas seriam libertadas.

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Coraline só conseguiu sair do castigo e voltar para seu mundo

com a ajuda do outro Wybie, que se rebelou contra a outra mãe por ela o ter

proibido de contar qualquer coisa referente ao outro mundo à menina. Ao

abrirem a portinha que levava ao mundo real, o túnel já não era mais o mesmo:

sujo, com teias de aranha, objetos perdidos, assustador. Coraline insistiu para

que o outro Wybie voltasse com ela para casa, mas este negou o pedido,

revelando sua real essência: ser feito de areia, como todos os outros

personagens eram feitos.

Já em casa, a menina não encontrou seus pais verdadeiros, e

decidiu, então, procurá-los pelo casarão e pela vizinhança. Ao chegar à casa

das vizinhas, elas lhe deram um presente que julgavam ser necessário para

encontrar os pais desaparecidos: uma pedra triangular com um círculo no meio,

que servia, segundo as atrizes, para a proteger de coisas ruins e para

encontrar coisas perdidas. Triste, sozinha e chorando, Coraline adormeceu na

cama dos pais até ser acordada pelo Gato, que a guiou até o espelho da sala,

que refletia os bonecos de seus pais, com botões no lugar dos olhos,

desvendando, assim, o paradeiro dos pais e seu sequestrador.

Enfurecida, pegou uma bolsa, onde colocou algumas ferramentas

– como alicate, tesoura –, a pedra triangular, uma vela e se dirigiu para o outro

mundo, acompanhada pelo Gato. No caminho, o animal a aconselhou a

desafiar a outra mãe, como uma forma de talvez conseguir libertar os pais

verdadeiros.

No outro mundo, Coraline desafiou a outra mãe, dizendo que

encontraria todos os olhos escondidos no outro mundo, com a condição de

que se ganhasse o desafio, levaria os pais de volta para casa e libertaria a

alma das crianças; mas caso perdesse, ficaria para sempre no outro mundo e

permitiria que botões fossem costurados no lugar de seus olhos. O desafio,

então, foi aceito, e a outra mãe confessou à menina que em cada maravilha

criada por ela havia um dos olhos das crianças. Intrigada com o que seriam

essas maravilhas, Coraline decidiu explorar o outro mundo, e enquanto

perseguia seus objetivos, se deparou com vários empecilhos que dificultaram

sua jornada, como as flores e os animais do jardim, os cachorros-morcego do

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teatro, os ratos do circo e os outros vizinhos, que agiam sob o comando da

outra mãe e a atacavam. Além de atrapalharem, esses empecilhos tentavam

roubar a pedra triangular que Coraline carregava, pois era com seu auxílio que

a menina via onde os olhos das crianças estavam escondidos23. Conforme

conseguia resgatar os olhos, o outro mundo ia se autodestruindo, perdendo

sua cor – tornando-se preto e branco –, e muitos de seus personagens se

transformavam em grãos de areia, revelando serem bonecos comandados pela

outra mãe.

Mesmo já tendo encontrado os olhos, ainda faltava descobrir o

paradeiro dos pais; então, a menina retornou à outra casa acompanhada pelo

Gato, e viu a real aparência da outra mãe: magra, com o rosto cheio de veias,

quatro pernas e com o corpo semelhante ao de uma aranha. Contando com

sua astúcia e com a ajuda dos fantasmas das crianças, Coraline enganou a

outra mãe, dizendo que sabia que seus pais estavam escondidos no túnel que

ligava os dois mundos. Enquanto a outra mãe procurava a chave para abrir o

túnel, o Gato mostrou a menina que seus pais estavam escondidos no globo de

neve que estava em cima da lareira. Enquanto isso, a outra mãe se dirigia à

portinha para abri-la, impedindo a passagem e vangloriando-se por Coraline ter

perdido o desafio, já que seus pais não estavam no túnel. Ao ver a agulha e os

botões na mão da outra mãe, a menina arremessou o Gato nos olhos dela. O

animal a arranhou e retirou seus botões, fazendo com que ela deixasse de

enxergar e abrisse passagem para o túnel. Quando percebeu que Coraline

fugia com os olhos das crianças e com o globo de neve, a outra mãe

transformou a sala onde estavam em uma teia de aranha e, graças a sua

audição sensível, tentava perseguir a menina, em vão, pois ela conseguira

fugir. No túnel, Coraline tentou fechar a porta, mas a outra mãe a impediu.

Vendo-se acuada e sem forças, a menina pediu ajuda aos espíritos das

crianças, que fecharam e trancaram a porta, prendendo a mão da outra mãe

para dentro do túnel e permitindo que Coraline e o Gato voltassem para o

mundo real.

23 Ao olhar através do círculo da pedra triangular, o “outro mundo” tornou-se preto e branco, ficando coloridos somente os olhos das crianças.

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Já em casa, Coraline encontrou seus pais verdadeiros cobertos

de neve, como se tivessem estado dentro de um globo de neve, e tentou contar

sua aventura a eles, que não lhe deram muita atenção por estarem pensando

nos preparativos de uma festa no jardim, como comemoração por terem

conseguido terminar o catálogo de plantas. Na hora de dormir, Coraline

colocou os olhos das crianças embaixo de seu travesseiro, e, em seu sonho, os

espíritos das crianças a agradeceram e a alertaram que ainda corria perigo,

uma vez que a outra mãe voltaria para roubar a chave da portinha. No meio da

noite, elaborou um plano, no qual fingiria um piquenique, próximo ao poço, com

suas bonecas, afim de atrair a outra mãe e tentar acabar com suas

malvadezas. Com medo, dirigiu-se ao poço do jardim do casarão, e fora

seguida pela mão da outra mãe, que conseguiu sair do túnel para resgatar a

chave que estava pendurada no pescoço da menina. Quando Coraline estava

prestes a atirar a chave no poço, a mão agarrou a chave e acabou por arrastar

a menina para longe do poço, até que Wybie, em sua bicicleta, salvou Coraline.

A mão, por sua vez, assustou o menino e fez com que ele caísse no poço, se

segurando somente com uma mão, na borda. Coraline tentou, em vão, prender

a mão da outra mãe com seu cobertor, e Wybie, que conseguira sair do poço,

atirou uma pedra e a destruiu. A menina embrulhou a mão com o cobertor,

amarrando-o com o cordão e a chave, atirou-a no poço e tampou-o.

O fim da aventura de Coraline aconteceu quando a menina, na

festa de seus pais, decidiu narrar sua história para a avó de Wybie, dona do

casarão, que teve sua irmã desaparecida na época em que eram crianças e

moravam na casa.

2.1 A adaptação do livro Coraline

Como citado anteriormente, o filme Coraline e o Mundo Secreto é

uma adaptação do livro Coraline. Esse diálogo entre duas formas de linguagem

distintas – escrita, por meio do livro, e visual, pelo filme – é muito comum,

principalmente neste último século, onde o entretenimento, através do cinema,

tornou-se de fácil acesso a todos.

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Quando um livro é adaptado, torna-se comum ouvir comentários

dizendo que a obra literária é melhor que o filme. Essa questão já vem sendo

estudada há tempos, pois muito se discute acerca das adaptações que os

livros sofrem para tornarem-se obras fílmicas, já que elementos presentes na

narrativa são alterados, e até mesmo supridos, na nova versão, perdendo,

assim, muito do “original”, e levando estudiosos de obras literárias e amantes

da Literatura a questionarem-se quanto à viabilidade das adaptações. Essas

modificações, que são os acréscimos, as reduções, as transformações e

deslocamentos, ocorrem porque “(...) cada linguagem tem a sua especificidade

semiótica (...)” (BRITO, 2006, p. 10) diferente; por exemplo, se um romance de

500 páginas fosse adaptado exatamente como é narrado pelo autor, o filme

teria muitas horas de duração e um custo exorbitante, não sendo, assim, viável

para quem o produz e cativante o suficiente para que o espectador o assista

por muito tempo.

2.1.1 Reduções

A redução é o “(...) procedimento mais freqüente no processo

adaptativo (...) porque a linguagem verbal é mais extensa, prolixa, analítica,

que a icônica” (BRITO, 2006, p. 12). Assim aconteceu de Coraline para

Coraline e o Mundo Secreto. A redução mais comum é a relacionada com a

descrição do espaço da casa, já que no livro houve a descrição do Palácio

Rosa (a casa) e a explicação que ele não era toda da família de Coraline, mas

sim que ele fora dividido para abrigar várias famílias ao mesmo tempo,

inclusive com a menção de haver outro apartamento24 vazio, por ainda não ter

sido alugado para outra família. Houve, também, a aparição dos outros

moradores, que trocavam, a todo instante, o nome da menina – de Coraline

para Caroline –: as vizinhas, Ms. Spink e Ms. Forcible, com seus cachorros, e o

vizinho de baixo, Mr. Bobinsky, um louco que ensinava ratos a cantar. O jardim

24 Quando a mãe de Coraline destrancou a porta do “outro mundo” e revelou a parede de tijolos, explicou à filha que, “quando dividiram a cada em apartamentos, eles simplesmente a bloquearam com tijolos. Do lado de lá, fica o apartamento vago da outra parte da casa, o que ainda está à venda” (GAIMAN, 2003, p.16). No filme, a mãe só disse que a fecharam quando dividiram a casa.

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foi enfocado, mostrando uma quadra de tênis com cerca furada, um roseiral

antigo com rosas murchas, uma pedreira e um “anel de fadas” (um círculo

constituído por pedras e cogumelos marrons que cheiravam ruim se fossem

pisados). Essa descrição, quando passada para a obra fílmica, não ocorreu,

pois se iniciou com a mudança da menina e sua família para o Palácio Rosa; o

jardim não foi enfatizado, mostrando somente seu aspecto de velho e sem vida

(sem o roseiral, a quadra ou a pedreira), e as figuras dos vizinhos apareceram,

mas não foram apresentados e nem houve ênfase na troca dos nomes. A

supressão do quarto dos pais também ocorreu no filme, pois, no livro, foi no

momento em que estava no quarto dos pais que Coraline ouviu o barulho do é

ratinho e decidiu segui-lo até a porta.

Outro fato importante suprimido foi a aracnofobia de Coraline, que

justificou o medo enorme que a menina sentia quando via a outra mãe

transformar-se em uma aranha. Logo após a ida ao quarto de seus pais,

Coraline ouviu um barulho estranho e se questionou se o que ouviu não

passava de um sonho, até algo – menos que uma sombra – correr corredor

abaixo. Quando viu esta “sombra”, a menina esperou que não fosse uma

aranha, devido ao medo que sente desses animais e, ao aproximar-se da sala,

o barulho se transformou na sombra de uma mulher gigante e magra, saindo

debaixo do sofá, deslizando pelo carpete e se dirigindo ao canto mais distante

da sala. Com medo, Coraline acendeu a luz, mas não viu nada naquele canto,

exceto a porta, que se encontrava aberta. Mais assustada e curiosa, pois tinha

certeza que sua mãe havia trancado aquela porta, decidiu abri-la, mas

deparou-se com uma parede de tijolos. Decepcionada, fechou a porta, apagou

a luz e voltou a dormir. Em seu sonho viu, vindas de todos os lugares, sombras

escuras, com olhos vermelhos e dentes amarelos afiados, que cantavam uma

música assustadora para a menina. Em Coraline e o Mundo Secreto, a menina

deitou-se logo após o jantar, apagou a luz, colocou ursinho na cama, deu boa

noite à boneca e tentou dormir. Ao cochilar, sonhou que havia, na frente da

parede de tijolos, quatro ratinhos presos entre si, como se fossem feitos de

papel. Ao ouvir um barulho, acordou, olhou em baixo da cama e viu o ratinho,

que olhou para ela, passou por debaixo da porta do quarto e foi seguido pela

menina. O ratinho a fez descer as escadas até a sala de estar. Esperando pela

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menina, se escondeu no sofá e, ao perceber que Coraline havia chegado à

sala, entrou na porta.

Por ser um filme voltado para crianças, o elemento grotesco25

presente no romance foi amenizado. Assim, a descrição26 feita pelo narrador,

da outra mãe, quando esta mostrou seus olhos de botões, despertou uma

sensação de desconforto, pavor, choque e asco, revelando, então, a presença

do grotesco na obra e causando, na imaginação do leitor, a formação de uma

figura assustadora e estranha por apresentar características que não são

comuns aos serem humanos. Na obra fílmica, toda a ambientação em que esta

outra mãe se localizava, suas vestimentas e sua aparência amenizaram essas

sensações; ela era mais bonita, mais engraçada, e transformou os defeitos da

mãe real em qualidades, como, por exemplo, o fato da mãe real não saber

cozinhar e não ter tempo para brincar com a filha, enquanto a outra mãe era

capaz de fazer tudo isso. No livro, vemos que a outra mãe já era grotesca

desde a primeira vez em que Coraline a viu, porém, no filme, essa

transformação, de bela, atenciosa, para feia e amedrontadora, foi gradual, a fim

de não assustar completamente o espectador.

Quando Coraline resolveu resgatar as almas, muito do horror e

grotesco que foram enfatizados no romance se perderam na adaptação, devido

à adequação que o filme sofreu para poder ser exibido para todas as faixas

etárias. Um exemplo claro desta perda ocorreu quando a personagem principal

foi instigada pela outra mãe a procurar uma das almas no apartamento vago

que havia no casarão. A descrição deste apartamento situou o leitor em um

ambiente sombrio, preparando-o para uma possível cena de horror:

Dentro, não havia móveis, apenas os lugares que os móveis haviam ocupado um dia. Não havia decoração sobre as paredes (...); Era tão grande o silêncio, que Coraline julgava poder ouvir as partículas de poeira flutuando no ar. Coraline percebeu que tinha muito medo que algo pulasse em cima dela e começou a assobiar. Pensou que assobiando seria mais difícil de as coisas pularem em cima dela. (GAIMAN, 2003, p. 105)

25 Toda a parte teórica e a análise acerca do grotesco serão tratadas no capítulo três.26 “(...) exceto por sua pele ser branca como papel. Exceto por ela ser mais alta e mais magra. Exceto por seus dedos serem muito compridos e eles nunca pararem de se mexer, e por suas unhas vermelho-escuro serem curvadas e afiadas” 26 (GAIMAN, 2006, p. 27 – tradução nossa).

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Ainda nesta cena, Coraline adentrou em um alçapão escuro, e lá

descobriu a figura destruída do outro pai, que estava de castigo ali por ter

conversado com a menina sem a autorização da outra mãe. Devido ao

carisma que possivelmente sentia pela menina, o outro pai a ajudou, dizendo

que não havia nada ali para Coraline resgatar, mas ainda movido pelo medo da

outra mãe, fez o que essa o ordenou: tentou prendê-la no outro mundo.

Tomada por coragem e sabedoria, conseguiu escapar desta figura horripilante

e se dirigiu ao apartamento do Mr. Bobinsky para resgatar a alma que faltava.

No livro, assim que acordou do sonho com as crianças, Coraline

guardou o que restava das bolas de gude em uma caixinha azul que ganhara

de sua avó, e desceu para tomar chá com as vizinhas, onde as atrizes leram

novamente as folhas de chá da xícara da menina, e viram uma forma que se

assemelhava com a de uma mão. Assustada, Coraline olhou para trás do sofá

e viu Hamish, o cão, machucado, como se tivesse participado do episódio do

teatro do outro mundo, em que os cães tentaram impedir a menina de

resgatar uma das almas. Quando saiu da casa das atrizes, Coraline encontrou

com o Sr. Bobinsky, que contou que os ratos estavam atemorizados, pois

andaram ouvindo um barulho estranho, que acreditava ser de uma doninha,

quando, na verdade, tratava-se da mão da outra mãe. Assim que chegou em

casa, a menina tomou um banho e foi deitar-se, ouviu algo arranhar a janela do

quarto e decidiu ver o que era: “uma mão branca de unhas vermelho-carmesim

saltou da borda da janela para dentro de um cano de esgoto, desaparecendo

imediatamente de vista” (GAIMAN, 2006, p. 147).

2.1.2 Adições

Opondo-se à redução, a adição ocorre quando há o acréscimo de

algum elemento, que não existe no livro, no filme. Segundo Brito,

(...) a adição tem papel decisivo no processo adaptativo, contribuindo para dar ao filme a sua essência de obra específica. Assim é que, em muitos casos, um elemento inexistente no livro é adicionado ao filme para compensar efeitos verbais perdidos em outras instâncias. (2006, p.15)

Em Coraline e o Mundo Secreto, o maior acréscimo aconteceu

com a personagem Wybie Lovat, que foi inventado pelo diretor e roteirista

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Henry Selick. De acordo com a opinião do próprio autor, Neil Gaiman, a criação

de Wybie foi justificável, “(...) para que não houvesse uma menina andando por

aí, falando sozinha ocasionalmente” 27. Relacionado a Wybie, a obra fílmica cita

o Gato como seu animal de estimação. Foi o menino, também, que introduziu

outro acréscimo: a boneca que Coraline carregou durante o filme todo. No livro,

não houve nenhuma menção da menina ter uma boneca semelhante a ela,

muito menos que tinha olhos de botões; e no filme, Wybie a deu para Coraline,

dizendo que a encontrou em um baú de coisas antigas da sua avó. A aparição

da boneca aconteceu no início do filme, onde mãos estranhas, feitas com a

união de várias agulhas de metal, assemelhando-se a aranhas com pernas

compridas, costuraram uma boneca com olhos de botões e, quando estava

pronta, pode-se perceber que se assemelhava com a personagem principal por

ter cabelo azul e usar capa amarela. Esta cena introduziu a figura da outra

mãe e da boneca ao espectador. Ainda no início, o filme trouxe a família Jones

mudando-se para o Palácio Rosa, enquanto o livro introduziu a história com a

descrição do apartamento, e com uma citação de que a família acabara de

mudar-se.

Houve um acréscimo trazido pelo Gato, pois esse animal estava

presente todas as vezes que Coraline adentrou no outro mundo, enquanto

que, no romance, o felino se mostrou somente durante a exploração dos

arredores do casarão e em sua primeira ida ao outro mundo.

Antes de descobrir a porta e atravessá-la, a menina adquiriu uma

urticária nas mãos por ter brincado com hera venenosa em seu jardim, e

quando a outra mãe a viu, na primeira vez em que a menina foi ao outro

mundo, passou lama nas mãos pra curar a coceira. Assim que acordou, já no

mundo real, Coraline não tinha mais a urticária, sendo, assim, uma prova da

possível existência do outro mundo.

Embora não haja uma descrição completa do casarão, assim

como trazida pelo livro, a obra fílmica apresentou um panorama dos cômodos e

da vizinhança quando o Sr. Jones pediu que a filha explorasse a nova casa, a

fim de que ela não os distraísse mais, já que os pais trabalhavam

incessantemente em um catálogo de Botânica. Na descrição fílmica, a menina

27 Este comentário foi retirado de uma entrevista feita sobre o filme, e pode ser encontrado nos bônus do DVD – tradução nossa.

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brincou com o dobrado do tapete e contou as janelas – 12 janelas que

vazavam; entrou no banheiro do quarto dos pais, viu 12 bichos nojentos, matou

alguns deles, se sujou e, quando foi lavar a mão no chuveiro, acabou se

molhando toda; desceu a escada e pulou na dobra do tapete, que sumiu e

abriu a porta de uma saleta embaixo da escada, onde estava o aquecedor

enferrujado. Nesta saleta, Coraline pressionou o interruptor, apagando a luz e

derrubando a energia, causando desespero no pai, que perdeu todo o seu

trabalho que estava no computador. Saindo da saleta, adentrou na sala de

estar, onde colocou todos os globos de neve da mãe na prateleira da lareira, e

viu um quadro com um menino triste. Ao colocar a boneca em cima da mesa e,

contar as portas, percebeu que neste cômodo não havia nenhuma porta e,

desapontada, virou-se para pegar a boneca de volta. Quando percebeu que

esta não estava no lugar em que havia sido deixada, decidiu procurar por ela, e

acabou por encontra-la atrás de uma caixa que escondia uma porta pequena,

coberta com papel de parede, apresentando, para Coraline e o espectador, a

portinha para o outro mundo.

Outros acréscimos que foram de extrema importância para o filme

estão relacionados ao outro mundo e seus moradores. Devido a toda magia

que envolvia o outro mundo, os elementos presentes na obra fílmica eram

mais ricos em detalhes a fim de instigar a imaginação do espectador. Vemos

isso na primeira vez em que Coraline foi para o outro mundo: assim que

encontrou a outra mãe, foi até o escritório chamar o outro pai para jantar e o

viu sentado em um piano, onde cantou uma música composta para a filha. No

jantar, as bebidas eram milk-shakes que desciam do lustre, e a comida, além

de ser a preferida da menina, foi servida de uma forma lúdica, com trens e uma

linda decoração para atrair os olhares de Coraline. Ainda no outro mundo, a

primeira maravilha criada para a visitante foi o circo de ratos cantores do outro

Mr. Bobinsky, que atuaram em um espetáculo especialmente feito para ela.

Também houve, como acréscimo, na segunda vez em que foi para o outro

mundo, outra maravilha, além das duas citadas no livro: o jardim: quando o

avistou, para chamar o outro pai para jantar, o jardim se assemelhou ao jardim

real, mas conforme se aproximava, o jardim ganhou vida, as flores

desabrocharam, iluminadas, tinham o formato do rosto de Coraline e recebiam

os cuidados do outro pai, que estava montado em um grilo mecânico gigante.

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No livro, assim que resgatou as almas das crianças e retornou

para a outra casa, Coraline enganou a outra mãe, dizendo que os pais

estavam presos no corredor e, para fugir, atirou o Gato sobre ela. Sendo bem

sucedida, voltou para o mundo real com o felino, liberou as almas, e

reencontrou seus pais verdadeiros. No filme, antes de fugir para o corredor,

atirou o Gato na outra mãe e este retirou seus olhos de botões, não

permitindo, assim, que ela visse Coraline fugindo. Tomada de raiva,

transformou a si própria em uma aranha e a sala em uma grande teia, fazendo

da menina a sua presa. Aproveitando-se do fato de que a outra mãe não

estava enxergando, começou a escalar a teia para fugir, mas prendeu a bolsa

na teia grudenta, fazendo-a vibrar. Ao perceber a vibração, a outra mãe-

aranha perseguiu Coraline, que conseguiu ser mais rápida e fugir para a porta.

Após a sua fuga e o jantar com os pais, Coraline encontrava-se

em seu quarto, brincando com bichos de pelúcia com o pai, e pedindo para que

ele encomendasse flores para a festa no jardim que daria para seus amigos e

vizinhos. Depois dos acertos feitos sobre a festa, a mãe, depois de dar-lhe um

beijo de boa noite, também lhe deu um par de luvas verdes, que a menina tanto

quis quando foram às lojas comprar uniforme escolar. Quando as vestiu, o

Gato pulou na janela e miou, até que Coraline a abrisse para ele. Neste

momento, a menina pediu desculpas a ele por tê-lo jogado em cima da outra

mãe e ambos dormiram na cama de Coraline. Na narrativa, a família jantou em

casa uma pizza feita pelo pai e ela foi se deitar sozinha.

No livro, quando se deitou e sonhou com as crianças, essas não

revelaram para a menina que o que a outra mãe queria era a chave do outro

mundo, mas Coraline descobriu este fato sozinha, depois de perseguir a mão

da outra mãe pelo casarão. No filme, as crianças revelaram à Coraline o

objetivo da outra mãe, fazendo com que a menina acordasse preparada para

impedir a outra mãe de alcançar esse objetivo.

Outro tema que pode ser considerado como um acréscimo, foi a

transformação da outra mãe ao longo da história. Quando Coraline descobriu o

outro mundo, a outra mãe se assemelhava à mãe real da menina (figuras 1 e

2) para que ela acreditasse piamente que pertencia aquele mundo mágico, e

que tudo seria semelhante à sua vida real, mas muito mais divertido e

interessante. Conforme Coraline percebia que não pertencia ao outro mundo

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e que ali não queria permanecer, a outra mãe foi se transformando, até revelar

sua real aparência: a de uma aranha (figuras 3, 4 e 5). No livro, as

modificações não são tão importantes, e são caracterizadas por algumas

passagens descritivas e algumas ilustrações (figuras 6 e 7).

Figura 1: mãe real Figura 2: outra mãe

Figura 3: processo de transformação da outra mãe (1)

Figura 4: processo de transformação da outra mãe (2)

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2.1.3 Deslocamentos e Transformações

O deslocamento constitui-se em uma cena, que na narrativa

desenrola-se em um lugar, e na obra fílmica em outro, ou em ordem diferentes.

De acordo com Brito,

Figura 5: processo de transformação da outra mãe –estágio final

Figura 6: ilustração da outra mãe (p. 28)

Figura 7: ilustração da outra mãe (p. 68)

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(...) não é nada incomum que uma cena, digamos, intermediária no tempo da história do romance, seja antecipada para o começo do filme, ou simplesmente, postergada para perto de seu final. Às vezes os elementos deslocados são apenas trechos dos diálogos, ou meramente palavras, ou se for o caso, uma única imagem, mas de todo jeito a re-montagem influi grandemente na composição do filme na sua significação final. (2006, p. 15)

O primeiro deslocamento ocorreu em relação ao aquecedor de

água central. No livro, quando Coraline interrompeu seu pai no escritório, ele

disse à menina para que, em sua exploração pela casa, ela encontrasse o

aquecedor de água central, que “(...) ficava dentro de um armário na cozinha”

(GAIMAN, 2003, p. 15) 28; já no filme, o aquecedor estava em um pequeno

cômodo embaixo da escada, com um interruptor que, caso fosse pressionado,

derrubava a energia de todo o casarão.

Em Coraline, quando ela saiu para conhecer os vizinhos e seus

apartamentos, o primeiro que visitou foi o das vizinhas atrizes e depois o do Mr.

Bobinsky; na obra fílmica foi o contrário: primeiro visitou o vizinho e seus ratos,

depois se dirigiu ao andar de baixo para visitar as atrizes e seus cachorros.

Na primeira ida de Coraline ao outro mundo, o livro mostra que o

conhecimento da outra família, da outra casa e a refeição ocorreram durante

o dia29 e, no filme, a primeira ida aconteceu depois que a menina se deitou

para dormir. Além deste deslocamento, na primeira maravilha, onde os ratos do

Mr. Bobinsky, no livro, se apresentaram para Coraline em seu quarto, também

ocorreu um deslocamento, pois, no filme, esses animais se apresentaram em

um circo montado na casa do próprio vizinho. Nesta primeira ida, Coraline

conseguiu retornar ao mundo real, antes de seus pais serem raptados pela

outra mãe e ir para o outro mundo pela segunda vez, mas, na obra fílmica,

Coraline, depois da terceira vez que foi ao outro mundo, ficou “presa” de uma

vez, sem conseguir escapar, até que Wybie a ajudou a retornar à sua vida real.

Assim como citado por Brito, a ordem de algumas cenas também

foi invertida: na narrativa, Coraline só foi para o outro mundo quando a mãe e

o pai não estavam em casa, e depois das cenas nos apartamentos dos

28 Tradução feita por Regina de Barros Carvalho In: GAIMAN, Neil. Coraline. Rio de Janeiro: Rocco, 2003..29 “(...) Vá dizer ao seu outro pai que o almoço está pronto.” (GAIMAN, 2003, p. 33)

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vizinhos e da ida à cidade; no filme, a menina foi para o outro mundo logo na

primeira vez em que os ratinhos apareceram para ela, uma segunda vez depois

de conhecer as casas dos vizinhos, e uma terceira vez, aí sim, após sua ida à

cidade, quando estava sozinha em casa.

Ainda quanto à mudança de ordem das cenas, vemos, no

romance, que as vizinhas deram à Coraline uma pedra com um furo no meio,

para protegê-la do mal que a perseguia, na primeira vez em que a visita ao

apartamento ocorreu, e em Coraline e o Mundo Secreto esta proteção foi feita

de doces velhos, depois da terceira vez em que a menina foi para o outro

mundo, quando ocorreu seu castigo dentro do espelho. Em Coraline, ela

conseguiu voltar para seu mundo real depois de se recusar a pregar os botões

no lugar dos olhos; quando retornou, não encontrou os pais e, preocupada,

ligou para a polícia e os procurou nos apartamentos dos vizinhos, até que o

Gato mostrou a ela que eles foram raptados pela outra mãe e estavam presos

no espelho. A partir desta informação, Coraline se encheu de coragem e

bravura, baseada em uma passagem de sua infância, onde seu pai também

tivera que ser bravo e corajoso para salvar a filha de um enxame de vespas, e

foi para o outro mundo, onde passou a noite e, somente depois de um longo

dia, e de ter desobedecido a outra mãe, foi trancada dentro de um espelho,

como forma de castigo, e de lá foi retirada pela outra mãe, episódio que levou

Coraline a propor o desafio de encontrar os pais reais e a salvar as almas das

crianças. No filme, a ordem dessas cenas é invertida, já que Coraline ficou

trancada no espelho logo depois de ter se recusado a pregar os botões, e só

conseguiu fugir com o auxílio do outro Wybie. Quando conseguiu retornar ao

seu mundo real, viu que os pais não se encontravam em lugar algum e, ao

procurá-los no apartamento das vizinhas, ganhou a pedra de proteção, e

guiada pelo Gato, viu seus pais presos no espelho, o que a motivou a retornar

ao outro mundo e a desafiar a outra mãe.

No livro, assim que Coraline acordou do sonho que teve com as

crianças, ouviu um barulho na porta de seu quarto; achou que era um rato, até

a porta sacudir fortemente a ponto de fazer a menina querer perseguir qualquer

coisa que tivesse feito aquele barulho. Ao procurar pela casa, viu uma sombra

com longas pernas brancas sair detrás do sofá e dirigir-se para a porta da

frente. Ao ver esta sobra, percebeu que, “com cinco pés, de unhas vermelho-

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carmesim, da cor dos ossos. Era a mão direita da outra mãe. Queria a chave

negra” (GAIMAN, 2006, p. 142). Depois desta visão, dirigiu-se para o seu

quarto e deitou, quando ouviu um estalo, as bolas de gude haviam se quebrado

e, “o que quer que estivera dentro das esferas de vidro havia ido embora”

(GAIMAN, 2006, p. 143). No filme, ao acordar do sonho, olhou embaixo do

travesseiro e viu as bolinhas de gude quebradas. Disposta a dar um fim na

chave negra, levantou-se e dirigiu-se para o jardim do casarão. Enquanto

caminhava, houve um enfoque na portinha do outro mundo, que foi aberta

pela mão da outra mãe, constituída por agulhas de ferro de variados tamanhos 30.

A transformação caracteriza a mudança de alguns elementos,

para “(...) dar aos recursos verbais da literatura uma forma não-verbal, icônica,

cinematográfica (...)” (BRITO, 2006, p. 16), já que “(...) procura compensar as

perdas inevitáveis [de uma adaptação] com recursos substitutivos” (BRITO,

2006, p. 16).

A mais notável transformação está relacionada à porta que levava

ao outro mundo: no livro, a porta era “(...) grande e de madeira escura

esculpida, no canto mais afastado da sala de visitas (...)” (GAIMAN, 2003, p.

16), estando, assim à vista de qualquer pessoa que adentrasse neste cômodo;

no filme, além de haver uma grande caixa de papelão na frente –

possivelmente contendo objetos que ainda não haviam sido desempacotados

da mudança –, a porta era bem pequena31, e estava coberta por papel de

parede.

Em Coraline, o outro pai, em sua primeira aparição, estava

digitando em seu computador, assim como o pai real fazia; em Coraline e o

Mundo Secreto, o outro pai estava sentado diante de um piano, onde tocou

uma música para a menina, guiado por “luvas-robôs”.

Já no final do filme, assim que conseguiu escapar do outro

mundo, Coraline abriu sua bolsa e não encontrou o globo de neve onde seus

pais estavam presos; triste, caminhou até embaixo da lareira, onde, sem

querer, colocou a mão em um líquido transparente, que descobriu ser do globo

30 Nesta passagem, também vê-se uma transformação, já que no filme a mão da outra mãe é feita de agulhas, e no livro, é feita de ossos humanos.31 Nota-se seu tamanho reduzido devido ao fato de Coraline, uma criança, só ser capaz de atravessá-la engatinhando.

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de neve quebrado, e assim que se questionou sobre o possível paradeiro dos

pais, escutou-os abrindo a porta e adentrando a sala de visitas, cobertos por

neve, o que levou a todos, espectador e Coraline, a imaginarem que aquela

neve seria vinda do local onde a outra mãe os havia aprisionado. Depois de

uma calorosa recepção por parte da menina, os pais a convidaram para jantar

fora, como uma forma de comemoração do término e publicação do novo

catálogo de jardinagem feito por eles. Na narrativa, quando retornou do outro

mundo, a menina adormeceu em uma poltrona da sala e foi, posteriormente,

acordada pela mãe real, que, além de questionar a filha a cerca de seu joelho

machucado, disse que iria esquentar o jantar feito pelo pai – pizza. O globo de

neve, elemento em destaque nesta transformação, permaneceu intacto dentro

do bolso de Coraline, não permitindo que a metáfora dos pais terem sido

aprisionados ali, e depois libertados, fosse feita.

No final da narrativa, Coraline decidiu fazer um piquenique com

suas bonecas, com uma toalha de papel descartável, pequenas xícaras de

plástico e uma jarra d’água. Saiu andando pelas ruas próximas ao casarão,

passou por um terreno baldio, adentrou em uma sebe e parou próxima à velha

quadra de tênis do jardim do casarão, onde havia um poço coberto por tábuas.

A menina retirou tábua por tábua, até descobrir este poço, e estendeu a toalha

por cima dele, tentando escondê-lo. Ali deixou o piquenique pronto e dirigiu-se

à casa das vizinhas, onde perguntou pelo cão Hamish e mostrou sua chave a

uma das atrizes, deixando claro que aquele objeto fazia parte de seu

piquenique, como se quisesse que a mão da outra mãe, que poderia estar por

perto, ouvisse onde a chave estaria. Resolveu, então, voltar à sua brincadeira,

cantando uma música para fingir que não estava nervosa e, em seu caminho

até a toalha, teve a sensação de avistar a mão de ossos várias vezes. Em sua

brincadeira, colocou a chave negra no meio da toalha, mas ainda segurava o

barbante que a prendia. Enquanto brincava com as bonecas, a mão correu e

pegou a chave negra e, com o peso que fizera, fez com que a toalha, a chave e

a própria mão caíssem dentro do poço. Feliz, Coraline cobriu o poço com as

tábuas e retornou para casa, acompanhada pelo Gato. Ao se aproximar de sua

residência, viu o Sr. Bobinsky, que contou a ela que os ratos estavam felizes e

calmos, já que tudo estava bem, e que ela era a salvadora de todos os

moradores daquele casarão. Com o sentimento de dever cumprido, foi até a

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casa das atrizes e devolveu-lhes a pedra mágica, uma vez que não precisaria

mais dela, e estava pronta para começar seu ano letivo na nova escola. No

filme, depois de ter tido o sonho com as crianças, dirigiu-se ao poço, sendo

seguida pela mão da outra mãe. Ali, retirou a tábua que cobria o poço e,

quando estava prestes a jogar a chave, a mão a agarrou, arrastando a menina

pelo jardim, até Wybie aparecer com sua bicicleta e soltar a menina. Nesta luta

entre Wybie e a mão, o menino foi jogado para dentro do poço, mas ele não

caiu por segurar-se na borda. Quando a mão estava fazendo o menino soltar-

se, Coraline pulou em cima dela com um cobertor e Wybie, que já havia

conseguido sair do poço, a quebrou com uma grande pedra. Aliviados, fizeram

uma espécie de embrulho com a pedra, os pedaços da mão e o cobertor,

amarraram-no com a chave, o atiraram no poço e o fecharam. Ao ver que toda

a história que Coraline contava era verdade, Wybie pediu desculpas e mostrou

uma foto da irmã desaparecida de sua avó. Ao ver a foto, Coraline a

reconheceu como sendo uma das almas, e então, convidou o amigo para uma

festa no jardim, com a condição que ele traria a avó, para que a menina

pudesse contar toda a história do outro mundo e das almas das crianças para

ela. O filme se encerra com a festa no jardim, onde todas as personagens

estão presentes, inclusive a avó de Wybie.

Algumas personagens também sofrem transformações em suas

vestimentas. No romance, Coraline é descrita usando “(...) seu casaco azul de

capuz, seu cachecol vermelho e suas galochas amarelas” (GAIMAN, 2003, p.

21), e, durante sua última ida ao outro mundo, ganhou da outra mãe um

jeans escuro, um suéter cinza e botas laranjas, mas, durante toda a primeira

metade da obra fílmica, apareceu usando calça jeans azul, um casaco amarelo

com capuz, assemelhando-se a uma capa de chuva, e galochas amarelas; na

segunda metade, usou calça jeans azul escuro, e um suéter azul com estrelas

brancas; nos momentos em que se dirigia ao outro mundo no período noturno,

vestia seu pijama, de blusa e calça laranjas. Ms. Spink, quando descrita por

Neil Gaiman, encontrava-se “(...) embrulhada em suéteres e casacos,

parecendo assim menos e mais redonda do que nunca. (...) Estava usando

óculos de lentes grossas que faziam seus olhos parecer imensos” (GAIMAN,

2003, p. 21) e, quando adaptada para o cinema, vestia um roupão azul, colar

de pérolas, olhos maquiados com sombra azul e um andador. O aspecto do

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portal para o outro mundo também foi modificado, já que em Coraline ele não

passava de um simples corredor, e em Coraline e o Mundo Secreto ele era um

túnel azul, com tons lilases, com um aspecto macio e misterioso.

As almas das crianças também sofreram transformações, uma

vez que, na obra fílmica, Coraline sonhou com as crianças que, além de

agradecerem-na, contaram que ela se encontrava em um grande perigo. Nesta

cena, as crianças estavam vestidas com o típico estereótipo da figura de um

anjo: vestidos dourados, asas e auréola, e sobrevoavam a cama de Coraline.

Na narrativa, as crianças resgatadas estavam com ela em um lindo piquenique

nas colinas, e estavam vestidas com roupas de época: “(...) era um menino

com calções de veludo vermelho e uma camisa branca de babados” (GAIMAN,

2003, p. 136); “(...) a menina alta (...) usava um vestido marrom meio sem

forma e trazia um gorro marrom na cabeça amarrado sob o queixo” (GAIMAN,

2003, p. 137); “Era uma criança muito pálida, vestida com o que pareciam ser

teias de aranha e com um círculo de prata reluzente sobre os seus cabelos

loiros. Coraline poderia jurar que a menina tinha duas asas (...) saindo de suas

costas” (GAIMAN, 2003, p. 137).

O outro mundo também sofreu transformações, pois na versão

de Neil Gaiman, a partir do momento em que Coraline foi resgatando as almas

perdidas das crianças, o mundo foi se deteriorando, diminuindo, formando uma

chuva forte de areia; e na sua versão fílmica, tornou-se sem cor, sem graça,

num tom de cinza, e descascando-se, como se toda a pintura do outro mundo

estivesse saindo.

Assim, todas as modificações que o livro sofreu em sua

adaptação ocorreram não somente para que sua versão fílmica não ficasse tão

extensa, mas também para enfatizar as descrições escritas feitas pelo autor e

para tornar a narrativa ainda mais encantadora para o espectador.

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CAPÍTULO 3 – Orfeu e Coraline

Ao atentarmos para os corpora deste trabalho, podemos verificar

que muitos dos elementos do mito de Orfeu aparecem em Coraline e o Mundo

Secreto. Assim, da mesma forma que a obra fílmica é uma adaptação do livro

Coraline, uma analogia pode ser criada ao dizermos que a intertextualidade

presente entre os corpora é uma adaptação do mito para o filme. Esses

elementos míticos podem aparecer explicitamente – quando traços do mito

podem ser claramente identificados em Coraline e o Mundo Secreto, como uma

citação direta –, ou subjacentemente – quando o mito só é percebido depois de

uma atenta análise do filme. Para identificar essa “adaptação”, também serão

utilizados os mecanismos de adição, transformação e deslocamento32, como

também as semelhanças presentes entre ambos.

Após análise comparativa entre os corpora, muitas similaridades

foram encontradas, como a equivalência entre a personagem de Coraline e

Orfeu, já que ambos realizaram uma catábase a fim de resgatar algo que lhes

foi tomado – no caso de Orfeu, Eurídice, e de Coraline, seus pais e as almas

das crianças. O reino de Hades pode ser comparado com o outro mundo, pois

ambos guardaram o que as personagens buscavam; seus deuses, Hades e

Perséfone, assemelharam-se com a outra mãe e o outro pai, e Caronte, por

ter sido o responsável por levar as almas até o Hades, foi reatualizado como o

Gato, que auxiliou a menina a entrar e transitar nos dois mundos.

3.1 Adições

Considerando o início de cada obra, verificou-se que o primeiro

elemento adicionado foi o espaço. No IV Canto das Geórgicas, de Vergílio, a

triste história do músico e poeta foi narrada por Proteu, que a iniciou com a

morte de Eurídice:

32 Após a análise comparativa entre os corpora, pode-se afirmar que não houve redução de nenhum elemento do mito para a adaptação fílmica, ou seja, considerando a intertextualidade entre ambos, não existiu nenhum aspecto que o filme tenha suprimido, reduzido, ou ignorado.

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As iras de um deus te perseguem, tu pagas por grandes faltas: Orfeu, infeliz, de modo nenhum por sua culpa instiga estes castigos para ti, a menos que os destinos não se oponham; ele está gravemente furioso pela perda de sua esposa. Na verdade, para fugir de ti, correndo ao longo do rio, a jovem, que ia morrer, não viu diante dos pés, entre as ervas altas, uma mortífera serpente que habitava as margens. (SANTOS, 2007, p. 105)

Em Coraline e o Mundo Secreto teve-se, após a cena inicial das

mãos da outra mãe costurando a boneca, uma apresentação do Palácio Rosa

e de sua localização, do Mr Bobinsky e da Ms Spink – seus vizinhos –, do Gato

e de Coraline, como podemos ver na sequência de figuras a seguir:

Figura 8: Apresentação do casarão e do Mr. Bobinsky

Figura 9: Apresentação da Ms. Spink

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Além da apresentação, foi possível perceber o jogo de cores

presente na ambientação – cores sombrias, frias, principalmente o preto e o

Figura 10: Apresentação do Gato

Figura 11: Apresentação de Coraline

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cinza – e os elementos nela presentes, como o jardim, com árvores e folhas

secas e sem vida, uma estufa abandonada, um grande portão antigo, uma

ponte tomada por galhos secos de hera, um casarão grande, antigo, com

aspecto de abandonado por ter toda a sacada e escadas com trechos onde a

tinta estava descascando e suas treliças quebradas, entre outros (figuras 12-

16).

A cor preta é conhecida como a cor fúnebre. Sempre relacionado

à morte e ao luto, “(...) o preto é considerado como a ausência de toda cor, de

toda luz (...)” (CHEVALIER, 2009, p. 742). Representante da noite e da morte,

o preto caracteriza o mal e o medo que está relacionado com figuras sombrias

e noturnas. O cinza, por ser a união do branco e do preto, também tem esse

simbolismo: é “(...) aquilo que resta após a extinção do fogo e, portanto,

antropocentricamente, o cadáver, o resíduo do corpo depois que nele se

extinguiu o fogo da vida” (CHEVALIER, 2009, p. 247). Assim, no mundo real de

Coraline, o preto e o cinza carregaram esse simbolismo fúnebre por

caracterizarem a morte, a ausência de um lar lúdico, colorido, próprio de

qualquer criança.

Figura 12: Apresentação dos elementos que cercam o casarão: antiga estufa, folhas secas, árvores mortas, portão grande antigo e jardim abandonado

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Figura 13: Treliça quebrada

Figura 14: Aspecto de casa abandonada

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Figura 15: Árvore morta, folhas secas, grande portão antigo

Figura 16: Jardim abandonado

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O jogo de cores não aconteceu somente no cenário externo, mas

também no interno, com cômodos escuros, mal cuidados, contendo caixas com

a mudança da família ainda empacotada, e com os moradores do mundo real:

os pais estavam sempre mal-humorados e desleixados (barba por fazer,

olheiras), levando o espectador a crer que não se importavam com nada além

do catálogo de Botânica que escreviam (figuras 17-23). Além do apartamento

de Coraline e sua família, os apartamentos dos vizinhos e eles próprios,

também apresentaram este jogo de cores escuras (figuras 24-27).

Figura 17: Cozinha mal cuidada, com caixas da mudança

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Figura 18: Escritório mal cuidado, com caixas da mudança, lixos pelo chão

Figura 19: Sala de visitas escura

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Figura 21: Jantar

Figura 20: Quarto de Coraline: escuro e sem graça

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Figura 22: Mãe mal humorada

Figura 23: Pai desleixado

Figura 24: Mr Bobinsky

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Figura 25: Ms Spink e Ms Forcible

Figura 26: Apartamento do Mr Bobinsky

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A escolha das cores e da presença desses determinados

elementos nos cenários – externo e interno – não ocorreu por acaso, mas

mostraram ao espectador a visão que Coraline tinha de seu mundo: sem cor,

sem vida, sem graça. Para contrastar este mundo real com o outro mundo, e

convencer a menina a nele permanecer e a costurar em si própria os botões no

lugar dos olhos, foram utilizadas cores vivas, brilhantes, chamativas,

encantadoras, explicitando que o outro mundo era muito mais atraente e

interessante que o mundo em que Coraline costumava a viver, assim como

vemos nas figuras 28 a 41, onde há a presença intensa do amarelo, azul,

vermelho e rosa.

O amarelo – a cor do ouro – é claro e brilhante, principalmente em

contraste com o azul. Em algumas crenças, como a mexicana por exemplo, o

amarelo representa “(...) a cor da pele nova da terra (...)” (CHEVALIER, 2009,

p. 40), assim, o amarelo brilhante e o dourado representam a nova roupagem

Figura 27: Apartamento das vizinhas

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do outro mundo e os poderes que a outra mãe tem de criar um mundo lúdico,

interessante, e de convencer e aprisionar uma criança dentro dele.

A presença do azul no outro mundo é justificada por ser uma cor

capaz de prender a atenção de quem a observa; “é o caminho do infinito, onde

o real se transforma em imaginário” (CHEVALIER, 2009, p. 107). No popular,

está sempre relacionada a sentimentos bons, como o de felicidade, o de

alegria, servindo, então como um grande aliado da outra mãe para

inconscientemente convencer suas vítimas.

O vermelho está presente nas situações que exigem atenção,

como o semáforo, as sirenes, as placas, atrelando-se, assim com o poder. Cor

cativante, vibrante, “(...) que visita os sonhos das crianças, cujo fascínio pela

cor vermelha é universalmente conhecido” (CHEVALIER, 2009, p. 946). O rosa

também apresenta essas mesmas características por ser a união do branco

com o vermelho. Além de ser a cor preferida das meninas, nos remete à

fragilidade, delicadeza.

Figura 28: O casarão, no outro mundo

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Figura 29: Jardim do outro mundo

Figura 30: Cozinha do outro mundo

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Figura 31: Escritório do outro mundo

Figura 32: Sala do outro mundo

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Figura 34: Um jantar no outro mundo

Figura 33: Quarto de Coraline no outro mundo

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Figura 35: a outra mãe

Figura 36: o outro pai

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Figura 38: A outra Ms Spink – Temos, aqui, uma referência clara à obra “Vênus”, de Botticelli

Figura 37: o outro Mr Bobinsky

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Figura 39: A outra Ms Forcible – Há, também, uma referência às Sereias, personagens da Odisséia, de Homero.

Figura 40: Apartamento das vizinhas no outro mundo

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Dessa forma, os cenários externos e internos, tanto do mundo

real quanto do outro mundo, funcionaram como personagens da narrativa

fílmica, pois contribuíram não somente para a criação da ambientação, mas

também se modificaram e participaram da estória: inicialmente, o outro

mundo, seguindo ordens da outra mãe, se mostrou um lugar agradável,

colorido, engraçado, atraente aos olhos de uma criança, e se construiu desta

forma para que a outra mãe conseguisse convencer Coraline a trocar o mundo

real pelo outro mundo, mas, conforme a menina descobria que o mundo da

outra mãe não era um bom lugar para viver – a partir do momento em que

conversou com as almas das crianças e com o Gato –, ele se autodestruiu e

perdeu suas cores, enquanto o mundo real tornou-se, aos olhos de Coraline,

um pouco mais agradável, devido ao fato de a menina ter entendido, e se

conformado, que ali era o melhor lugar para si.

Figura 41: Apartamento do Mr Bobinsky no outro mundo

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Figura 42: O outro mundo se destruindo

Figura 43: O mundo real tornando-se mais atraente à menina

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Juntamente com as cores, as características de cada personagem

também auxiliaram no enredo da narrativa, como mais um elemento que

ilustrou a aventura fantástica da menina e auxiliou na explicitação das

diferenças entre o mundo real e o outro mundo. A outra mãe, além de ter os

olhos de botões, como todas as outras personagens, era uma exímia

cozinheira e estava sempre disposta a brincar com Coraline, ao contrário da

mãe real; o outro pai sabia tocar piano e cultivava um lindo jardim; o Mr

Bobinsky era o animador e adestrador do interessantíssimo circo dos ratos; e

a Ms Spink e Ms Forcible eram atrizes de um teatro mágico e encantador,

cujos espectadores e funcionários eram seus cachorros. Estas características

próprias das personagens também funcionaram como uma adição ao mito de

Orfeu, já que neste somente as personagens de Orfeu e Eurídice foram

descritas: ele como músico e poeta, “(...) o músico por excelência que, com a

lira ou a cítara, apazigua (...), e enfeitiça as plantas, os animais, os homens e

os deuses” (CHEVALIER, 2009, p. 662), e ela como uma ninfa, uma figura

feminina caracterizada por sua beleza e relacionada à fertilidade e ao

nascimento.

Além do jogo de cores, que teve como função contrastar o mundo

real com o outro mundo, houve, como acréscimo, a quantidade de

personagens presentes na obra fílmica. No mito de Orfeu, temos somente o

músico, Eurídice, Aristeu, Hades, Perséfone e as Mênades, e em Coraline e o

Mundo Secreto, Coraline, o Gato, os pais da menina, os vizinhos – Mr

Bobinsky. Ms Forcible e Spink –, Wybie e sua avó, as três almas das crianças e

todas as outras personagens.

Orfeu desceu ao Hades apenas uma vez, quando já havia perdido

sua amada e tinha de resgatá-la, permanecendo nesse reino somente o tempo

necessário para convencer os deuses infernais a lhe devolver Eurídice. Embora

tenha tentado regressar logo após ter perdido sua amada pela segunda vez,

Caronte e Cérbero não se encantaram mais com sua música e não permitiram

sua entrada no Hades. Em Coraline e o Mundo Secreto, assim que os

intermediários mostram à menina a portinha, ela passou a caminhar entre os

dois mundos, indo, inclusive, duas vezes antes de ter seus pais reais

escondidos pela outra mãe, e pernoitando neste outro mundo; porém, depois

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que percebeu que os pais reais haviam desaparecido, a menina se enfureceu

com a outra mãe e foi colocada de castigo no espelho.

Além de ser escuro e sombrio, o espelho relaciona-se com “(...) a

revelação da verdade (...)” (CHEVALIER, 2009, p. 394) e, segundo algumas

crenças, o espelho “(...) revela a natureza real das influências maléficas, ele as

afasta, ele protege contra tais influências (...)” (CHEVALIER, 2009, p. 395);

assim, foi nesse local que Coraline encontrou as almas das crianças, que não

somente revelaram as intenções da dona do outro mundo, mas também

incumbiram a menina da responsabilidade de encontrar, além de seus pais

reais, suas almas perdidas. Ao analisarmos, comparativamente, as almas das

crianças com Eurídice, vemos que um elemento que era concreto no mito –

Eurídice –, passou a ser elevado a abstrato, no filme – as almas das crianças –

, fazendo, assim, o processo de “elevação do inferior” 33.

Como “portal” entre os mundos, havia o túnel localizado dentro da

portinha, na sala de visitas, no apartamento de Coraline. Trata-se do limiar, do

ponto de intersecção entre os dois universos. Este túnel, assim como o outro

mundo, pode ser considerado, primeiramente, como uma passagem mágica,

encantadora, mas ao longo da aventura da menina, conforme ela descobria as

reais intenções da outra mãe e se rebelava contra todo este mundo mágico, foi

se destruindo gradativamente, revelando ser, no final, um grande vão escuro e

assustador (figuras 44, 45). Este túnel foi importante não só por revelar à

menina o outro mundo, mas também por representar um rito de iniciação:

para Chevalier, o túnel é uma “via de comunicação, coberta e escura, (...) que

conduz, através da escuridão, de uma zona de luz à outra (...)” (2009, p. 915),

o que, em Coraline e o Mundo Secreto corresponde ao autoconhecimento e à

auto-aceitação, uma vez que Coraline só foi para o outro mundo por estar

descontente com a sua vida e, depois de ter atravessado e percebido as coisas

ruins que existem do outro lado, conseguiu aceitar sua própria realidade.

Embora Orfeu não tivesse um “portal” concreto, tinha os “(...) rios infernais,

Aqueronte, Cocito, Estige e Piriflegetonte (...)” (BRANDÃO, 1986, p. 318), e a

barca de Caronte, que permaneceram os mesmos, independente do sucesso

ou fracasso de Orfeu.

33 A expressão ”elevação do inferior” foi utilizada por Katerina Clark e Michael Holquist, em Michael Bakhtin (2008) afim de caracterizar o processo de inversão do rebaixamento.

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Figura 44: O túnel, nas primeiras idas ao outro mundo

Figura 45: O túnel já se destruindo

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No mito, Orfeu foi impulsionado a adentrar o Hades pelo amor que

sentia por sua falecida amada, e, na obra fílmica, a boneca “Little Me” e os

ratinhos foram os intermediários entre Coraline e o outro mundo, já que foram

eles que instigaram a curiosidade da menina a atravessar o túnel e descobrir o

que havia atrás da pequena porta da sala de visitas. Nesta adição, houve o

rebaixamento do sentimento de Orfeu, um intermediário abstrato, para os

ratinhos e a boneca, intermediários concretos. Embora cada intermediário

tenha tido a sua importância, o mito, que tratou do amor e da dor que o ser

humano pode sentir, e manteve sua sacralidade ao celebrar a imortalidade da

música, só poderia ter um intermediário abstrato que se igualasse a essa

sublimidade mítica; a obra fílmica, por retratar a aventura fantástica de uma

menina e ser uma estória criada por um autor, não tem nenhum caráter

sagrado, portanto, teria que apresentar um intermediário concreto, que fosse

mais próximo da realidade fictícia da narrativa.

De acordo com Bakhin, o rebaixamento “(...) é a transferência ao

plano material e corporal, o da terra e do corpo na sua indissolúvel unidade, de

tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato” (1987, p. 17), isto é, quando

qualquer elemento, seja ele sagrado ou não, é rebaixado ao plano corporal,

humano. Em Coraline e o Mundo Secreto, foi a partir do momento em que a

menina se encontrou insatisfeita com sua vida, que o rebaixamento do mundo

real ocorreu, pois foi por meio dele que o outro mundo tornou-se mais

presente e importante na vida da menina, um mundo que apresentou

habitantes e elementos que não condiziam com os reais, pois eram nada mais

que o rebaixamento da família e do lar da menina. O “alto” e o “baixo” do

rebaixamento são referenciais, pois variam de acordo com o que é estudado, já

que podem tratar de céu e terra, cabeça e órgãos genitais, ou, como no caso

dessa pesquisa, de mito – “alto” – e filme – “baixo”.

Quando analisamos a ocorrência do rebaixamento, percebemos

que não há somente uma comparação entre “alto” e “baixo”, mas também uma

duplicidade, pois o “baixo” depende de seu “alto” para existir. Bakhtin descreve

essa duplicidade ao dizer que ao rebaixarmos, estamos nos aproximando da

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terra e da parte inferior do corpo, que são responsáveis pela geração de algo

novo, pois “(...) é ambivalente, ao mesmo tempo negação e afirmação.

Precipita-se não apenas para o baixo, para o nada, a destruição absoluta, mas

também para o baixo produtivo, no qual se realizam a concepção e o

nascimento (...)” (BAKHTIN, 1987, p. 19). Em Coraline e o Mundo Secreto, ao

mesmo tempo em que houve o rebaixamento do mundo real, houve a criação

do outro mundo; ao mesmo tempo em que houve o rebaixamento das

personagens reais, houve a criação de outras novas que, por seu turno, foram

rebaixadas durante o decorrer do filme. O “céu” torna-se “inferno” e vice-versa.

Outro acréscimo na reatualização do mito no filme, foi a figura da

outra mãe que, ao longo da narrativa, transformou-se em uma aranha. Essa

transformação é chamada de metamorfose e, segundo Chevalier, “(...) é um

símbolo de identificação, em uma personagem em via de individualização que

ainda não assumiu a totalidade de seu eu nem atualizou todas as suas

potencialidades” (2009, p. 609). Assim, a outra mãe metamorfoseou-se em

aranha por compartilhar as características desse animal, que está associado à

imagem de uma tecelã, de uma construtora de sua própria morada. A figura da

aranha expressa os mais variados símbolos, mas todos atrelados à ideia de

criadora “(...) de uma realidade de aparências ilusórias, enganadoras, [não

sabendo se é] (...) a artesã do tecido do mundo ou a do véu das ilusões (...)”

(CHEVALIER, 2009, p. 71). Essa metamorfose ficou mais clara em Coraline e o

Mundo Secreto, no qual a outra mãe não só costurou a boneca “Little Me” na

cena inicial, mas também foi a responsável pela criação do outro mundo,

sendo capaz de adaptá-lo de acordo com a realidade da criança que desejava

“prender em sua teia”.

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Figura 46: Outra mãe tecendo a boneca

Figura 47: Outra mãe transformada em aranha

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Somada à metamorfose da aranha, tem-se a mão da outra mãe,

que foi capaz de caminhar pelo mundo real. Assim que Coraline resgatou seus

pais e as almas das crianças, ela trancou a portinha e pendurou a chave em

um cordão, amarrado em seu pescoço, para que não houvesse uma forma de

qualquer pessoa caminhar do mundo real para o outro mundo, e vice-versa. O

que a menina não esperava é que a outra mãe fosse enviar, a fim de resgatar

a chave, sua própria mão direita (figura 49).

A metamorfose da outra mãe e a mão direita que tem vida própria

afirmaram a presença do realismo grotesco (BAKHTIN, 1987, p. 17) na obra

fílmica, que é caracterizado pela inserção marcante e constante de imagens

que retratam o corpo e a carne (carnal), necessidades fisiológicas, comida,

bebida, digestão, mulheres grávidas, pessoas gordas, entre outras figuras não

comuns ao cotidiano. Essas imagens sempre estão presentes em um contexto

Figura 48: O outro mundo transformando-se em teia

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alegre e festivo, comum na carnavalização34. A principal característica do

realismo grotesco é a aproximação de determinados elementos ao mundo

terreno, carnal, humano, enfatizando, assim, a importância do rebaixamento

neste gênero. No filme, já no momento em que apareceu, a outra mãe se

mostrou diferente da mãe real pelo fato de ter botões no lugar dos olhos,

apresentando, tanto para a menina, quanto para o espectador, uma figura

destoante daquela em que todos estavam familiarizados. Além de não

corresponder à figura comum da mãe real, a outra mãe estava inserida em um

mundo colorido, interessante, lúdico, reafirmando o contexto festivo da

carnavalização (figuras 36, 47, 49 e 50).

34 O conceito de carnavalização e suas características serão estudados nas considerações finais.

Figura 49: A outra mãe

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As figuras grotescas podem apresentar características de

animais, vegetais e até de elementos comuns ao cotidiano do homem

misturados com os traços humanos. No caso do filme, a outra mãe foi a maior

representante do grotesco na obra, tanto por suas ações amedrontadoras,

como por suas características físicas. Segundo Bakhtin (1987), o grotesco “(...)

oferece a possibilidade de um mundo totalmente diferente, de uma ordem

mundial distinta, de uma outra estrutura de vida” (p. 42); assim, na obra fílmica,

Coraline teve uma outra mãe, uma outra casa, um outro mundo, totalmente

diferentes dos que lhe foram dados em sua vida real.

Embora na Literatura o grotesco tenha sido fortemente difundido

no século XIX com as obras de autores como Edgar Alan Poe e Ernst T. A.

Hoffman, seu conceito vem sendo estudado há muitos anos, mesmo que,

inicialmente, fosse somente atrelado às artes. Bakhtin, um dos teóricos que

dedicou parte de seus estudos ao grotesco, comenta seu emprego, uma vez

Figura 50: A outra mãe-aranha

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que, na Literatura, este não pode ser visto como um artefato artístico e

decorativo, mas sim como uma figura que destoa do que já foi estabelecido

como “normal”, banal e costumeiro, ou seja, tudo o que era familiar torna-se

desconhecido e estranho35. Em Coraline e o Mundo Secreto, a figura da mãe

real era familiar à menina, e a da outra mãe era estranha por apresentar

elementos que fugiam daquilo que era considerado “normal” para Coraline,

como apresentar botões no lugar dos olhos, ser dotada de capacidade

culinária, ser gentil, entre outras características não presentes na mãe real.

Bakhtin explicita essa referência de “familiar” e “não familiar” presente no

grotesco:

(...) as imagens grotescas conservam uma natureza original, diferenciam-se claramente das imagens da vida cotidiana, preestabelecidas e perfeitas. São imagens ambivalentes e contraditórias que parecem disformes, monstruosas e horrendas, se consideradas do ponto de vista da estética “clássica”, isto é, da estética da vida cotidiana preestabelecida e completa. (1987, p. 22)

35 “(...) o mundo existente torna-se de repente um mundo exterior” (CHEVALIER, 2009, p.42)

Figura 51: A mão da outra mãe

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Juntamente com a mão aparece a imagem do poço, que foi

escolhido por Coraline e Wybie para prender a mão. A seguinte explicação de

Chevalier leva à compreensão desta passagem do filme, pois o poço

se reveste de um caráter sagrado em todas as tradições: ele realiza uma espécie de síntese de três ordens cósmicas: céu, terra, infernos; de três elementos: a água, a terra e o ar; ele é uma via vital de comunicação. É também, ele próprio, um microcosmo, ou síntese cósmica. Ele faz a comunicação com a morada dos mortos (...) (2009, p. 726)

O poço, portanto, teve extrema importância para a narrativa pois,

além de ter sido o caminho utilizado por Coraline para transitar entre os dois

mundos, simbolicamente, representou um meio de comunicação entre o mundo

dos vivos e o dos mortos, portanto, ao jogar a mão no poço, houve o

surgimento da metáfora de que toda a maldade da outra mãe e seus artifícios

utilizados para conquistar as crianças, tiveram um fim, não podendo mais

existir no mundo real de Coraline. Ainda relacionando-o com o mundo dos

vivos e dos mortos, podemos dizer que, assim que a menina resgatou os pais e

as almas, retornou para seu mundo real e fechou o poço para sempre, houve a

ressuscitação da personagem principal, pois ela deixou de se ver como um

empecilho na vida dos pais reais e passou a adquirir um novo conceito de

família ideal, aceitando, assim, sua própria família como a mais adequada, e a

si própria como elemento fundamental e constituinte dessa família.

3.2 Transformações e Deslocamentos

A primeira transformação na reatualização do mito para o filme foi

a mudança na condição imposta para que cada personagem conseguisse

alcançar seu objetivo. Orfeu, com sua música e sofrimento, encantou os

deuses infernais, que lhe cederam a possibilidade de regressar ao mundo dos

vivos com sua amada, desde que, como condição, ele não olhasse para trás, a

fim de verificar se Eurídice o acompanhava. Após perder sua mulher

novamente, Orfeu tentou voltar para o Hades, mas foi impedido, já que para ali

permanecer, a pessoa deveria estar morta. Somente depois de desafiar a

outra mãe, esta revelou à menina que, como condição para resgatar seus pais,

deveria encontrar as três almas perdidas e descobrir onde seus pais estavam

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escondidos e, caso não obtivesse sucesso, teria de costurar em si própria os

botões no lugar de seus olhos.

Além da analogia de que os botões foram costurados para que a

criança não conseguisse enxergar a realidade que estava à sua frente – a de

que o outro mundo não era um lugar mágico e encantador, como a outra mãe

o arquitetou, mas sim um lugar frio e sombrio, já que sua alma ali ficaria presa

para sempre –, o ato de costurá-los configura o rebaixamento de Coraline, um

ser humano, ao nível da boneca “Little Me”, já que haveria uma igualdade entre

os estados e a outra mãe seria capaz de manipular a menina assim como faz

com a boneca.

Orfeu não somente já sabia onde Eurídice se encontrava – no

Hades –, mas também contou com nenhuma ajuda externa, já que teve

somente a si mesmo e sua lira para resgatar sua amada. Coraline só

conseguiu resgatar as almas e os pais porque teve o auxílio dos objetos

mágicos que estavam em sua bolsa – a pedra triangular, o alicate e a tesoura,

e a companhia do Gato que, agindo como o fio de Ariadne36, sempre mostrou-

lhe o caminho de entrada e saída do outro mundo, e ajudou-a a encontrar o

esconderijo dos pais e a resgatar as bolinhas onde estavam escondidas as

almas das crianças.

Houve, também, a transformação dos acontecimentos ocorridos

no final de cada obra. Orfeu, depois de perder sua amada, foi perseguido pela

culpa de ter que viver sem Eurídice, e “(...) durante sete meses contínuos, ele

chorou, só consigo mesmo (...)” (SANTOS, 2007, p. 107), até despertar a ira

das Mênades que o mataram e “(...) espalharam, pelos vastos campos, o jovem

feito em pedaços” (SANTOS, 2007, p.107). Coraline, assim que resgatou seus

pais e libertou as almas das crianças, foi perseguida pela mão da outra mãe,

que desejava ter de volta a chave da porta do outro mundo. Juntamente com

a transformação do fracasso de Orfeu para o sucesso de Coraline, já que,

contando com sua inteligência e com a ajuda de seu amigo Wybie, a menina

conseguiu enganar a mão, derrotá-la e prendê-la dentro do poço com a chave,

para que nenhuma outra criança pudesse ser enganada pela outra mãe, teve-

se o rebaixamento desse fim trágico, porém sublime – uma vez que houve

36 Em Coraline e o Mundo Secreto também houve a reatualiação de um outro mito, além do de Orfeu: o de Teseu e Ariadne.

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relatos onde a cabeça do músico ainda pronunciava o nome de Eurídice – de

Orfeu para o fim alegre e glorioso de Coraline.

Como deslocamento, só há o impedimento de Orfeu retornar a

Hades e Coraline ao outro mundo. Orfeu, assim que empreendeu sua

catábase, teve que ludibriar Cérbero, com sua música, para poder adentrar no

Hades. Coraline, em seu processo de anábase, depois de descobrir as reais

intenções da outra mãe e enquanto resgatava as almas das crianças,

encontrou muitas dificuldades para retornar ao seu mundo, já que as

maravilhas criadas pela outra mãe – o jardim, o circo, o teatro – e as outras

personagens foram manipuladas para impedirem a saída da menina do outro

mundo.

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Capítulo 4 – A duplicação da vida de Coraline

Como vimos no primeiro capítulo, o mito e seus estudos cercam a

humanidade desde nossos primórdios, conforme Neto afirma: “Sua origem se

dá, provavelmente, com o próprio nascimento da civilização” (2011, p. 13).

Independente de quando e onde ocorreu sua origem, o mito tem uma

importância muito grande na história do Homem, pois antes de as religiões

ditarem seus preceitos, era nos mitos que o Homem encontrava uma conduta

de vida a ser seguida, tanto social quanto religiosamente. Em sua trama, que

ocorre no tempo primordial37, o mito primitivo mostra a origem sagrada de

alguns fenômenos naturais e elementos terrestres, que não dependem da ação

humana para acontecerem. Como personagens, apresenta os entes

sobrenaturais, que narram, participam do mito e auxiliam o Homem a recriá-lo.

Nessas recriações, que eram feitas somente por pessoas iniciadas nesses

ritos, os participantes recontam determinado mito, encenando-o, como se de

fato estivessem fazendo-o pela primeira vez, pois acreditavam que,

reproduzindo-o, estariam recriando-os.

Ainda no mesmo capítulo, houve referência ao mito primitivo de

Orfeu, músico que, apaixonado, casou-se com a belíssima ninfa Eurídice, mas

teve seu matrimônio destruído por ter sua esposa morta enquanto fugia do

apicultor Aristeu. Inconsolável, Orfeu decidiu ir até o Hades resgatar Eurídice.

Para entrar vivo no reino dos mortos, o músico teve que encantar o barqueiro

Caronte e o cão Cérbero, guardião das portas do reino subterrâneo. Uma vez

ali, contou a Hades e Perséfone sua dor, e os deuses infernais, tocados por

seu sofrimento, lhe deram Eurídice de volta com a condição de que não

olhasse para trás para ver se a amada o acompanhava. Quase chegando ao

reino dos vivos, Orfeu duvidou da palavra dos deuses e olhou para trás,

perdendo sua amada para sempre, como Cocteau nos ilustra por meio de seu

narrador fílmico:

37 Os conceitos de tempo primordial e entes sobrenaturais já foram discutidos no primeiro capítulo deste trabalho.

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Conhecemos a lenda de Orfeu na Mitologia Grega, Orfeu era o cantor da Trácia. Ele encantava até mesmo os animais. Seu canto o distraía de sua esposa, Eurídice. E a Morte a levou. Ele desceu aos infernos e com seu encantamento conseguiu a promessa de trazer Eurídice de volta à vida com a condição de não olhar para ela. Ele a olhou e foi destroçado pelas Bacantes (...) (1950 apud SANTOS, 2011, p. 101-102)

No capítulo 2, houve uma análise da adaptação do livro Coraline

(2002) para o filme Coraline e o Mundo Secreto (2009). Nesta análise,

elencamos os elementos que foram adicionados, suprimidos, transformados e

deslocados, para que a adaptação pudesse acontecer e se adequar ao seu

espectador – crianças – e à sua classificação – livre.

No capítulo três examinamos a presença do mito de Orfeu na

obra fílmica, que teve algumas de suas partes modificadas, e até utilizadas da

mesma forma como nos foram apresentadas no mito primitivo. Assim, foi feito

um levantamento de todos os elementos presentes nos corpora, comparando,

primeiramente, a adaptação do livro Coraline para o filme Coraline e o Mundo

Secreto e, posteriormente, as características comuns e as diferenças –

transformações, deslocamentos, adições e reduções – entre o mito de Orfeu e

o filme.

Neste levantamento, ficou evidente a importância do outro

mundo e das outras personagens, não somente para a intertextualidade

presente entre as obras – já que o outro mundo equivaleu-se ao mundo

infernal, a outra mãe com o deus Hades, e o outro pai com a deusa Perséfone

–, mas também para a fábula. Conforme o leitor ou o espectador acompanhava

a estória de Coraline, se questionava sobre qual seria o motivo de a menina ter

criado (ou descoberto38) o outro mundo, e por que as outras personagens

seriam tão semelhantes às personagens reais.

38 Em nenhum momento, seja no livro ou na obra fílmica, o autor Neil Gaiman ou o diretor Henry Selick explicitaram se a aventura de Coraline era de fato real ou somente uma invenção, um sonho da menina.

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4.1 O duplo

Em virtude da semelhança entre as personagens da obra

fílmica39, deparamo-nos com o tema do duplo, o qual é recorrente nas mais

diversas áreas do conhecimento desde a Antiguidade, embora só tenha sido

“(...) consagrado pelo movimento do romantismo, [e conhecido como]

Doppelgänger, [termo] cunhado por Jean-Paul-Richter em 1796 (...)” (BRAVO,

2000, p. 261). Segundo Carla Cunha, o duplo é “(...) originário a partir de um

indivíduo, (...) e posteriormente se vem a consubstanciar numa entidade

autônoma que sobrevive ao sujeito no qual fundamentou a sua gênese,

partilhando com ele certa identificação” 40, ou seja, o duplo é o “outro”, que teve

origem em um “eu”, que pode sobreviver independentemente de seu “eu”;

criador e criatura se identificam pois são semelhantes fisicamente e/ou

psicologicamente. Vemos essa autonomia em Coraline e o Mundo Secreto,

onde a outra mãe e o outro mundo se assemelhavam à família e ao mundo

real de Coraline, e viviam sem serem dependentes uns dos outros. Vimos,

assim, que a localização dos cômodos e dos apartamentos, em ambos os

mundos, eram iguais; da mesma forma que as personagens eram fisicamente

semelhantes – exceto pelos botões.

O duplo é caracterizado por uma “(...) divisão (gênese) ou

multiplicação (manifestação) do ‘eu’” (LOPONDO, ALVAREZ, 2011), isto é, a

duplicação do ser ocorre quando este se divide e surge o seu duplo – gênese –

, ou quando descobre que já existe o “outro” – multiplicação –, como no caso

dos sósias, gêmeos, etc. A duplicação pode ser endógena ou exógena. Por

endógena entende-se por uma duplicação com origem no próprio “eu”, ou seja,

o “eu” se duplica e se vê refletido, como em um espelho, em uma fotografia, na

sombra; neste caso, a relação entre o “eu” e o “outro” nem sempre é

harmoniosa, pois embora o duplo tenha surgido a partir de um criador, e se

assemelhe fisicamente a ele, pode não partilhar as mesmas características

psicológicas. Se a duplicação for exógena, ela ocorreu de fora para dentro,

quando um ser se vê refletido em outro, como uma espécie de identificação

39 As semelhanças que a seguir serão levantadas, também estão descritas no livro Coraline. Como este não faz parte de nossos corpora, não será aqui, estudado. 40 CUNHA, Carla. Duplo. Disponível em: www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/D/duplo.htm? –Acesso em 25 de Janeiro de 2012, às 10:32h.

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com o outro. Temos, assim, uma relação subjetiva, pois cabe somente ao “eu”

se ver refletido no “outro”; se essa identificação acontecer, o duplo será

caracterizado como positivo, caso não, como negativo, conforme explica Cunha

(2012):

Cada “eu” é DUPLO do outro, com o qual se identifica. As mesmas representações, as mesmas características essenciais são então reconhecidas em cada um destes sujeitos. Ambos são o espelho de si-mesmos, pois cada “eu” se revê no outro “eu”, como se este outro “eu” fosse um espelho que lhe devolve a sua imagem. Mais uma vez, a perspectiva é subjetiva, pois cabe a cada um destes sujeitos assumir que a imagem que lhe é devolvida pelo outro “eu” é semelhante, analogamente desenhada e configurada como a sua. Só o julgamento tridimensional do “eu” poderá efetuar o reconhecimento do outro “eu” enquanto seu DUPLO, assistindo-se de novo, a um processo de identificação (duplo positivo) ou de oposição (duplo negativo).

Ainda em seu estudo, Carla Cunha explana que o duplo só tem

valor e importância quando relacionado com o “eu”. Assim, o duplo só será

duplo enquanto ainda existir seu criador, para que assim possa ser comparado:

[o duplo] é neutro e transparente e terá apenas o valor que o modelo lhe empresta. Quando em presença do seu modelo, (...) adquire importância e pode então ser visto como um suplemento, que acrescentado ao modelo, pode substituí-lo mas nunca ser seu igual, pois é em boa verdade, sempre inferior (...). (2012)

4.2 O duplo, de Otto Rank 41

Escrito em 1914, teve sua primeira publicação em 1925, com o

título Der Doppergänger . Como umas das mais importantes obras teóricas

acerca deste tema, já que foi a primeira a defini-lo, o autor explicita, no decorrer

de seus seis capítulos, toda a natureza do duplo, desde sua origem, as obras

que contêm essa relação diástica, até a razão pela qual alguns autores o

escolheram como tema principal de suas obras.

O capítulo I, denominado “O problema da personalidade”, traz ao

leitor a origem da temática da dupla personalidade, que teve seu uso mais

frequente, na Literatura, durante a Era Romântica alemã. Rank afirma que o 41 RANK, Otto. O Duplo. Rio de Janeiro: Coeditora Brasilica, 1939

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motivo pelo qual o emprego do duplo nas obras literárias obteve tanto sucesso

se deve ao fato de os autores modernistas não o estudarem somente pela

óptica da Psicologia, mas usarem o que se passa no interior da mente de suas

personagens como enredo principal, como uma “(...) técnica [que] se

assemelha em vários sentidos ao sonho, no qual certos processos mentais se

concretizam em formas familiares aos nossos sentidos, em lugar de

permanecerem abstratos” (p.8)

Exemplificando sua teoria com outras formas de linguagem, como

“(...) o processo técnico cinematográfico [que] concede a este tema uma

qualidade real inacreditável, e não o priva absolutamente de seu caráter

místico” (p. 8), o autor, resumidamente, conta o enredo de sua obra

inspiradora, O Estudante de Praga, de Hans Heinz Ewers. No filme, Balduino,

um estudante fútil de Praga, conheceu Scapinelli, um velho que lhe propôs um

contrato, onde teria grandes riquezas caso lhe entregasse, como pagamento,

seu reflexo no espelho. Tomado pela ganância, Balduino assinou o contrato e,

a partir de então, começou a ter sua vida perseguida por seu reflexo, seu

duplo. Além de perder o amor de sua amada, não unicamente porque ela se

assustou ao saber que Balduino não tinha reflexo mas também porque seu

duplo a perseguia, a personagem principal acabou suicidando-se, com o intuito

por um fim à sua dupla personalidade. Na cena final, o túmulo de Balduino foi

enfocado, com o velho Scapinelli e seu duplo sentado sobre ele.

Assim como no primeiro capítulo, Otto Rank se vale de outros

autores importantes, como Goethe, Stevenson, Hoffmann, Dostoiévsky,

Maupassant, entre outros, para relacionar, ao longo dos outros cinco capítulos,

o reflexo no espelho, a dupla personalidade dos autores, os gêmeos e sósias, a

sombra e sua crença mítica relacionada à morte, ao duplo. Explica, também,

que são poucos os casos onde a relação entre o duplo e sua personalidade é

amistosa, já que são reincidentes situações nas quais o criador tenta, por meio

da morte, exterminar seu duplo. Assim, acaba, brilhantemente, definindo esta

temática:

(...) o Duplo é a própria personalidade (sombra, reflexo), assegurando sobrevivência futura; mais tarde representa uma Personalidade anterior, conservando, juntamente com o passado, a juventude do indivíduo; finalmente, o Duplo se torna uma Personalidade oposta, que aparecendo sob a forma do

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mal, representa a parte mortal, destacada da personalidade existente e que a repudia. (p.110)

4.3 O Estranho, de Sigmund Freud 42

O artigo foi escrito em 1919, com o título Das Unheimlich e tem

extrema importância para o estudo do duplo, da mesma forma que O duplo, de

Otto Rank. O psicanalista tem ciência do valor da pesquisa, pois inicia seu

artigo comentando a escassez de informações acerca deste tema pela

perspectiva da estética, uma teoria que estuda “(...) as qualidades do sentir” (p.

275). Na primeira parte de seu estudo, a fim de explicar o estranho desde a sua

origem, o autor discorre sobre as traduções do vocábulo “umheimlich” nos mais

diversos idiomas, afirmando que relaciona-se “(...) com o que é assustador, que

provoca medo e horror” (p. 275), e define que “(...) o estranho é aquela

categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito

familiar” (p. 277). Com essa definição, Freud diz que se utiliza do termo

“umheimlich” pois deriva de seus antônimos “heimlich” – doméstico – e

“heimisch” – nativo, concluindo, assim, que “(...) aquilo que é ‘estranho’ é

assustador precisamente porque não é conhecido e familiar” (p. 277, grifo

nosso).

Na segunda parte, Freud, baseado nos estudos de Jentsch,

levanta a questão do estranho em situações que apresentam personagens que

foram animadas, ou seja, que passaram a ter vida, e personagens que deveria

ser animadas, mas são apresentados sem vida. Embora essa animação ou não

de determinados seres seja capaz de despertar estranheza, seu foco é

desviado a partir do momento em que carrega uma carga emocional e a

transfere para seu leitor ou espectador, fazendo com que este “esqueça” o

estranho e considere somente a emoção – seja ela boa ou ruim – que está

sendo transmitida por meio da personagem e, para ilustrar este artifício, que

ocorre principalmente nas obras fantásticas, cita a obra Homem de Areia, de

Hoffmann. Essa situação, onde o estranho é ignorado devido à sua carga

emocional, também ocorre em Coraline e o Mundo Secreto, onde a outra mãe 42 FREUD, Sigmund. O Estranho. In: Freud. Obras Completas. Edição Standard Brasileira Vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1986.

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é a principal figura que causa estranhamento ao espectador, mas todas as

suas características estranhas e grotescas são deixadas de lado a partir do

momento em que toda a maldade que a cerca é evidenciada na obra.

Além desse desconforto de asco, nojo, o estranho está

relacionado à repetição de situações ou números, e à superstição, como mau

agouro, mau olhado, (...) à onipotência dos pensamentos, a atitude do homem

para com a morte (...), pois transformam algo assustador em algo estranho” (p.

303).

Relacionando o estranho com o duplo, foco deste capítulo, Freud

afirma que a questão do estranho está intrinsicamente ligada à do duplo, que

pode ocorrer quando

(...) o sujeito identifica-se com outra pessoa, de tal forma que fica em dúvida sobre quem é o seu eu (self). E finalmente, há o retorno constante da mesma coisa – repetição dos mesmos aspectos, ou características, ou vicissitudes, dos mesmos crimes, ou até dos mesmos nomes, através das diversas gerações que se sucedem. (p. 293)

Citando o estudo de Otto Rank, o psicanalista explica que a

questão do duplo, seja por meio do mito da alma imortal, da sombra ligada à

morte, etc, sempre esteve ligada à criança e ao homem primitivo em um

“narcisismo primário” (p.294), onde a duplicação acontece para que a criatura

possa ficar cada vez mais em contato consigo mesma. Porém, assim que a

fase do narcisismo primário se esgota, a duplicação “(...) transforma-se em um

estranho anunciador da morte” (p. 294), uma vez que a presença deste “outro

eu” passa a atormentar a vida de quem o criou, podendo até leva-lo ao suicídio

– como vimos na citação do filme O Estudante de Praga, na obra de Otto Rank.

Freud atesta que o duplo nada mais é uma projeção do si próprio,

de dentro para fora e, como há a identificação entre criador e criatura,

estabelece-se uma relação amistosa entre ambos – relação homogênea. A

partir do momento em que o criador deixa de ver sua criatura como uma

extensão de si, em que deixa de identificar-se nela, esta relação passa a ser

conflituosa – heterogênea, transformando, assim, o duplo em um estranho, em

um “(...) objeto de terror (...)” (p. 295).

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4.4 O duplo em Coraline e o Mundo Secreto

Durante toda a obra fílmica, houve muitas cenas onde a presença

do duplo se manifestou; e a primeira delas ocorreu logo no início, quando a

outra mãe elaborou e costurou a boneca “Little Me” (figura 52). O espectador

só se tornou capaz de identificar a semelhança entre a boneca e a personagem

principal quando Wybie deu a boneca à menina, já que até mesmo Coraline

ficou intrigada com a similaridade que o brinquedo apresentava de si própria

(figuras 53 e 54).

Figura 52: “Little Me”

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Figura 53: Bilhete deixado por Wybie: “Ei, Jones! Olha só o que eu encontrei no baú da minha vó. Parece familiar? Wybie” (tradução nossa)

Figura 54: Coraline e sua boneca

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Essa primeira manifestação do duplo foi homogênea, com uma

aceitação amistosa, uma vez que a menina passou a brincar com a boneca e

até a carregá-la a todos os lugares. Além de representar os olhos da outra

mãe na vida de Coraline, o elemento “boneca” não podia ter sido melhor

escolhido por estar relacionado ao duplo, pois Freud, em sua supracitada obra,

afirma que o estranho é despertado quando algo que não tem vida é muito

semelhante a um ser vivo, assim como acontece com as crianças, que criam

uma forte identificação com bonecas, tratando-as como seres vivos por se

assemelharem a bebês ou a outras crianças, estabelecendo, assim, um

processo de identificação. No momento em que ganhou o brinquedo de seu

vizinho, Coraline estranhou a semelhança, mas assim que conheceu o outro

mundo, entendeu que aquela boneca representava seu futuro naquele lugar:

caso costurasse em si própria os botões, se tornaria um joguete nas mãos da

outra mãe, tendo que fazer tudo o que ela pedisse.

Ao solicitar à menina que costurasse, no lugar de seus olhos, os

botões, a obra fílmica nos remete a duas questões: a “cegueira física” e a

“cegueira psicológica” de Coraline.

É através dos olhos que vemos e percebemos o mundo e tudo o

que o compõe. Os olhos, o olhar, identificam uma pessoa, e retratam

sentimentos e pensamentos que não foram exteriorizados por palavras. São

tão importantes que encontram destaque na Literatura, como os “olhos de

ressaca”, de Capitu43 e a cegueira branca, que tomou todo o mundo em Ensaio

sobre a cegueira, de José Saramago. Ficar cego, portanto, não significa

somente deixar de ver, mas também fechar-se para si, como se ninguém mais

pudesse ver a si mesmo, como uma forma de interiorização. Freud atesta que

“(...) o medo de ferir ou perder os olhos é um dos mais terríveis temores das

crianças. Muitos adultos conservam uma preensão nesse aspecto, e nenhum

outro dano físico é mais temido por esses adultos do que um ferimento nos

olhos” (1986, p. 289). Além de Coraline ser criança e já apresentar esse temor,

ao costurar os botões e perder os olhos, estaria, também, perdendo sua vida e

a convivência com seus pais reais, e, finalmente, sucumbindo às maldades e

43 ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Ática, 1981.

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vontades da outra mãe, ignorando a si própria e fechando-se dentro do outro

mundo.

Outra manifestação do duplo é o outro mundo e as outras

personagens. Como vimos no capítulo três, houve duas seleções de cores

contrastantes, uma para representar para o mundo real e outra para o outro

mundo. Essas cores serviram não somente para mostrar ao espectador a

diferença entre um mundo e outro, mas também para expressar o sentimento

de Coraline em relação a esses dois ambientes: como a menina estava

cansada de seu mundo, ele foi apresentado com cores frias, escuras, tristes; já

o outro mundo, considerado um espaço melhor, mais interessante,

engraçado, continha cores chamativas, fortes e vibrantes, exteriorizando,

assim, as emoções da menina.

Esse duplo heterogêneo também se manifestou nas personagens.

As do mundo real estavam sempre mal humoradas, ocupadas com suas

tarefas rotineiras, vestiam roupas comuns e nunca tinham tempo para dar

atenção a Coraline. As do outro mundo, em contrapartida, viviam sorridentes,

fazendo coisas instigantes e interessantes aos olhos de uma criança (como

aprender a tocar piano com luvas de robô, atuar em um teatro cuja plateia era

constituída por cães, comandar um circo de ratos saltadores).

O grande questionamento proveniente da manifestação do duplo

é a razão pelo qual ele surgiu na obra fílmica. Sabemos que os pais de

Coraline sempre estavam muito ocupados em seus trabalhos, não dedicando

tempo suficiente e necessário à filha. Dessa forma, carente de atenção, carinho

e afeto, Coraline passou a ver a si própria como uma órfã. Berg, em sua tese,

afirma que a orfandade ocorre com “(...) crianças privadas do convívio contínuo

de, no mínimo, uma das figuras do conjunto parental (...)” (2007, p. 21). A falta

de convívio com os pais levou a menina a criar, ou a encontrar, o outro

mundo, e a nele transitar, como uma forma de preencher o vazio que sentia

devido à falta dos pais. Berg também cita Corso e Corso, que afirmam que “(...)

o medo é uma das sementes privilegiadas da fantasia e da invenção” (2006,

p.21); desse modo, o medo que Coraline sentia de ficar sozinha lhe deu

suporte suficiente para que conhecesse o outro mundo e até tendesse a nele

permanecer; foi o medo de solidão que fez com que a menina visse nessa

outra realidade um ambiente melhor.

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Freud comenta que, em alguns casos de neurose, os pacientes

também criam outra realidade (realidade psíquica), relacionada à fantasia, para

saciarem suas necessidades internas, e muitas vezes fazem dessa outra

realidade a sua própria, da mesma forma como ocorreu com Coraline, que

creditou, no início, uma grande importância ao outro mundo:

(...) os sintomas neuróticos não estão diretamente relacionados com fatos reais, mas com fantasias impregnadas do desejo, e que, no tocante à neurose, a realidade psíquica era de maior importância que a realidade material. (1986, p. 48)

De acordo com Cunha, “a natureza do duplo (...) [ocorre] entre o

reconhecimento e a negação do real” (2012), portanto, o outro mundo é criado

pela outra mãe, com todas as suas características marcantes – cores

chamativas, aventuras, companhia, amor parental –, para que a menina o

encontrasse e não sentisse mais a falta de seus pais.

A partir do momento em que a menina permaneceu no outro

mundo, a outra mãe lhe impôs a condição de costurar os botões e até

trancou-a no espelho, onde pode conhecer a história horripilante das três

crianças. Assim, podemos também dizer que o outro mundo passou a ser

“desencontrado” para que Coraline pudesse restabelecer sua própria

identidade e aceitar sua família. Após conhecer a verdade por trás da magia do

mundo criado pela outra mãe, Coraline considerou que, perante a condição

que lhe fora imposta e ao futuro que a aguardava, seus pais não eram figuras

ruins, como ela havia os rotulado, e que eles só não estavam lhe dedicando

tempo suficiente devido ao trabalho, que em breve seria terminado; essa

aceitação foi tão grande que impulsionou a menina a resgatar seus pais do

domínio da outra mãe.

Essa aceitação inferiu diretamente no desfecho da narrativa.

Segundo as análises feitas por Bakhtin acerca das obras de Dostoiéviski

(2010), a personagem não é só composta por seus traços externos e

caracterização, mas também pela sua autoconsciência, seu ponto de vista

sobre si mesma: “(...) não importa o que a sua personagem é no mundo mas,

acima de tudo, o que o mundo é para a personagem e o que ela é para si

mesma” (BAKHTIN, 2010, p. 52). Antes desta proposta de Dostoiéviski, a

personagem era vista pela ótica do autor, com a imagem e pensamentos que

ele exprimia sobre ela; nesta visão, o que era levado em conta era como o

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mundo enxergava esta figura. Com Dostoiéviski, a forma como a personagem

vê seu mundo, como este influi sobre ela e como ela enxerga a si mesma. Por

conseguinte, o que passou a ter relevância

(...) não é o ser determinado da personagem, não é a sua imagem rígida, mas o resultado definitivo de sua consciência e autoconsciência, em suma, a última palavra da personagem sobre si mesma e sobre seu mundo (BAKHTIN, 2010, p. 53)

Desta forma, o mundo em que a personagem vive e os elementos

pertencentes a ele também interferem na construção de sua autoconsciência,

assim como acontece em Coraline e o Mundo Secreto, no qual Coraline foi

motivada a vencer a outra mãe não só pelo amor que sentia por seus pais,

mas também pelos elementos externos, como as cores do mundo real e do

outro mundo, as personagens do outro mundo e suas maravilhas, o Gato,

entre outros, que a auxiliaram a reconhecer que sua família, independente dos

problemas que pudesse apresentar, era ideal para si.

Com esse reconhecimento, o mundo real tornou-se mais colorido

(figura 55), e o outro mundo se destruiu (figura 56, 57), perdendo suas cores

alegres, revelando personagens más, acabando em pó, e pondo um fim ao

duplo. À luz de Cunha, a manifestação do duplo tem seu fim com “(...) a morte,

que vem aniquilar o Outro, o seu DUPLO (...) obrigando o ‘eu’ a anular

metafisicamente o seu DUPLO (...) [levando-o à] sua não-existência” (2012).

Com isso, não somente o duplo do mundo real e da família de Coraline teve um

fim, mas também houve um amadurecimento da personagem, que deixou de

ser sonhadora, utópica, para ser realista e aceitar seus pais.

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Figura 55: O jardim do mundo real, agora colorido e com flores

Figura 56: O jardim do outro mundo perdendo suas cores

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Figura 57: As outras personagens virando pó

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando a palavra “mito” é pronunciada, nem sempre seu real

significado vem à mente de quem a ouve, já que muitas vezes acaba sendo

assimilado de uma forma deturpada. Nas sociedades primitivas, “mito”

significava sacralidade, importância, imponência. Atualmente, refere-se a um

tema antigo, a uma aventura de algum indivíduo que passou a ser chamado de

“herói”, ou até mesmo a um tema estigmado e não verdadeiro. Independente

das várias significações a ele atribuídas, o conceito de “mito” ainda não

apresenta “(...) a possibilidade de definição rigorosa ou absoluta (...)”

(FERRAZ, 2008, p. 4).

Segundo Jabouille, citado na dissertação de Roberta Ferraz,

O conceito de mito é tão vasto que nele se pode incluir praticamente toda a expressão cultural humana – é o tudo – ou tão restrito que se limita a um ‘corpus’ específico e limitado, a um momento pontual e singular. É o ‘nada’ que é ‘tudo’. Se, para o homem comum, ele pode apresentar-se como um conteúdo deturpado, a verdade é que, ao longo dos séculos, o mito tem servido de ponto de partida , de meio, de objectivo ou de respostas para atitudes da Humanidade. Mesmo sem uma concepção nítida ou valorizada, ninguém nega a existência do mito, a sua presença em contextos diversos das várias sociedades. (1986, p. 15 apud FERRAZ, 2008, p. 4)

Como vimos ao longo dos quatro capítulos dessa dissertação, o

mito de Orfeu, em sua reatualização no filme Coraline e o Mundo Secreto, não

foi adaptado exatamente como na narrativa de Vergílio. Essa adaptação do

mito para o filme ocorreu com uma série de modificações que foram

trabalhadas no capítulo 3, como as adições, as reduções, as transformações e

os deslocamentos. Juntamente com essas modificações, temos a presença do

grotesco e da carnavalização, que foram capazes de dar ao mito uma nova

feição que subtraiu todo o caráter sagrado e mítico que acompanhava Orfeu,

gerando uma adaptação permeada pelo riso.

A carnavalização é um conceito proposto por Bakhtin (1987), que

a estudou analisando os carnavais populares da Idade Média, por meio das

obras de Rabelais. Os carnavais dessa época aconteciam por ser uma

passagem religiosa, que celebrava a quaresma com missas e procissões. Fora

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a religiosidade e a seriedade que lhe cabia, sobravam ao carnaval os festejos

cômicos, que caracterizaram o período do carnaval como “o mundo às

avessas”, uma vez que nessas festas a ordem social era invertida: os menos

afortunados assumiam o papel dos mais ricos, e, assim, algumas figuras

populares eram escolhidas para representarem reis, cardeais, duques, entre

outros, havendo uma fuga da vida oficial, controlada, hierárquica. O carnaval

era, portanto, o rito do mito da vida, no qual, por meio da encenação de uma

vida livre da opressão do poder dos governantes e da religião, recriava-se a

essência de uma vida ideal, sem rédeas, como uma forma de tentar estender a

liberdade que adquiriam nesse período a todos os outros do ano.

A troca de papéis acontecia de uma forma paródica acompanhada

pelo riso, pois “tudo era visto numa relatividade alegre” (FIORIN, 2006, p. 90).

Com as obras de Rabelais, o riso passou a ter papel fundamental na

carnavalização pois, além de estar presente em todas as manifestações

carnavalescas, levava todos a viver este período festivo de uma forma livre,

alegre. No carnaval, as pessoas apresentavam-se da forma como viam a si

mesmos ou como gostariam que sua vida fosse fora dessa época, ignorando,

mesmo que por alguns dias, a vida regrada e de aparências que possuíam na

sociedade:

As leis, proibições e restrições, que determinavam o sistema e a ordem da vida comum (....), revogam-se durante o carnaval: revogam-se antes de tudo o sistema hierárquico e todas as formas conexas de medo, reverência, devoção, etiqueta, etc., ou seja, tudo o que é determinado pela desigualdade social hierárquica e por qualquer outra espécie de desigualdade (...) entre os homens. Elimina-se toda a distância entre os homens e entra em vigor uma categoria carnavalesca específica: o livre contato familiar entre os homens. (BAKHTIN, 2010, p. 140)

Antes da criação do Estado e da hierarquia de poder, o riso era

“(...) igualmente sagrado e igualmente, poderíamos dizer, ‘oficial’” (BAKHTIN,

1897, p. 5), sendo importante assim como o respeito perante as figuras que

ocupam uma camada elevada na pirâmide hierárquica e visto como um ritual,

que fazia parte das celebrações oficiais. Com a criação do Estado, o riso

deixou de ter uma importância oficial e passou a não ser bem visto perante

essas sociedades. O carnaval, portanto, tornou-se o festejo principal para a

celebração do riso, pois é nesse festejo que o riso volta a ter,

momentaneamente, seu caráter oficial.

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Bakhtin propõe, em seu livro Problemas da Poética de

Dostoiéviski (2010), que a carnavalização tem algumas características

próprias44, entre elas, a presença de um caráter ideológico nas narrativas.

Unindo-se o gênero fantástico com a ideologia do “herói”, têm-se aventuras

empreitadas a fim de buscar uma verdade: “(...) o fantástico assume um caráter

de aventura, às vezes simbólico ou até místico-religioso (...), mas está

subordinado à função puramente ideológica de provocar e experimentar a

verdade” (p. 130). Juntamente com o gênero fantástico, temos uma forte

presença do “naturalismo do submundo” (BAKHTIN, 2010, p. 131), e do

rebaixamento, que são caracterizados “(...) com a expressão máxima do mal

universal (...)” (BAKHTIN, 2010, p. 131) e com a inversão de alto e baixo. Em

Coraline e o Mundo Secreto, vimos que o outro mundo é o rebaixamento do

mundo real da personagem e também por meio da outra mãe, que se revelou

ser uma figura extremamente má e sem caráter, foram proporcionadas à

menina aventuras fantásticas e sombrias para que ela pudesse reconhecer o

valor de sua família, pois sem empreitar essa catábase fantástica, não teria se

identificado com sua família.

A ocorrência de sonhos inusitados e fantasiosos também está

presente na carnavalização. Esses sonhos apresentam uma possibilidade de

vida diferente da real, e podem ser “(...) proféticos, motivadores ou precautórios

(...)” (BAKHTIN, 2010, p. 133). Na obra fílmica, Coraline tem sonhos constantes

com o outro mundo e as personagens nele presentes. Primeiramente, sonhou

com os ratinhos, que a guiaram até o túnel, e depois, sonhou com as almas

das crianças, que a alertaram acerca do retorno da outra mãe, que a

perseguiria até ter em seu poder a chave da porta que levava até o outro

mundo.

Outra característica marcante é a presença de gêneros diferentes

em uma só obra. Analisando os corpora, vimos que houve a intertextualidade

entre o mito e a obra fílmica, “(...) com um grau variado de paródia (...)”

(BAKHTIN, 2010, p. 135). Desta forma, a agregação de um mito na Literatura

gera a intertextualidade entre esses diferentes gêneros, e pode ocorrer nas

44 Devido aos corpora dessa dissertação, foram, aqui, somente estudadas as características que se correlacionavam à proposta desse estudo.

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mais diversas formas 45, entre elas, a paródia. Quando recorremos a

dicionários não teóricos, temos uma conceituação unilateral de “paródia”, já

que é somente relacionada a uma imitação cômica, a uma zombaria: “(...) obra

literária, teatral musica, etc. que imita outra obra, ou os procedimentos de uma

corrente artística (...) com o objetivo jocoso ou satírico (...)” (HOUAISS, 2001, p.

2137).

Por ter o lado satírico mais predominante expresso,

principalmente na música, a prática da paródia nem sempre é bem vista, não

só por seu caráter crítico – pois quem é parodiado teve sua obra analisada por

quem o parodiou –, mas também por uma simbólica a apropriação da obra do

outro, como se o parodiador não tivesse criatividade suficiente para criar a sua

própria. Assim, o autor que evita a paródia, no mais errôneo de seus

significados, tem uma atitude individualista e egoísta por cogitar a possibilidade

de que sua obra será sempre e unicamente sua – quando, na verdade,

transforma-se do domínio de todos a partir do momento em que se torna

pública.

Excluindo esta visão deturpada, temos que “(...) a paródia é, pois,

na sua irônica ‘transcontextualização’ e inversão, repetição com diferença.

[Nela] está implícita uma distanciação crítica entre texto em fundo a ser

parodiado e a nova obra que incorpora (...)” (HUTCHEON, 1985, p. 48), ou

seja, quando um texto é parodiado, incorporado em outro, vemos seus traços

presentes no produto final da paródia, assim como acontece com os corpora

deste trabalho, no qual é possível perceber alguns traços do mito de Orfeu na

obra fílmica, por meio de uma “(...) derivação na qual o texto anterior [Orfeu] é,

de uma maneira ou de outra, reconhecível” (SAMOYAULT, 2008, p. 53)

O conceito teórico de paródia, que a vê como uma “(...) repetição

com distância crítica, que marca a diferença em vez da semelhança”

(HUTCHEON, 1985, p. 17), propõe que para haver sua manifestação textual,

não se faz necessária a presença da sátira, mas de um paralelismo entre os

textos. Desta forma, estabelece-se uma relação entre o texto que foi colocado

como base, fundo, com o texto que o parodia. Juntamente com o paralelismo

há a inversão irônica, que se trata da inversão de alguns elementos presentes

45 São elas: citação, colagem, pastiche, integração, plágio e paródia.

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no texto parodiado no momento em que se estabelece a paródia; essa inversão

pode ser explicitado com os corpora: no texto de fundo – mito – temos uma

narrativa sagrada e com uma personagem principal masculina, na paródia –

filme –, uma obra fílmica com personagem principal feminina. Ainda

exemplificando, o paralelismo também pode ser correlacionado entre as

personagens e suas catábases – como visto no capítulo 3 –, e foi constituído

não só pela relação entre mito e filme, mas também pelo rebaixamento sofrido

pela narrativa mítica em sua reatualização para Coraline e o Mundo Secreto.

A inversão irônica também é característica de outros gêneros,

como a pastiche e a imitação, mas o que difere a paródia desses gêneros é a

transcontextualização paródica, que caracteriza a mudança de contexto de

uma obra para outra, uma adaptação de um gênero para outro, de uma forma

de linguagem para outra.

Assim, por meio do riso carnavalesco e da paródia, o diálogo

entre mito e Literatura ocorre de uma forma harmoniosa, não só pela

transformação do mito primitivo a um mito literário, mas também pelas

contribuições que o mito pode trazer a uma obra literária. Essa transformação

que o mito sofre faz com que sua fábula se conserve e perdure por toda a

história da Humanidade.

Entre muitos pesquisadores que estudam esse diálogo, temos

Raul Fiker (1983) que, em sua tese, afirmou que há duas modalidades nas

quais o mito se agrega à Literatura: a ornamental e a temática. Por modalidade

ornamental46 entende-se a presença de deuses ou elementos míticos no texto

literário, como meros “figurantes” ou, até mesmo, figuras com a função de

ilustrar algumas passagens desse texto, já que não estão estritamente

relacionadas com a narrativa, como “(...) vestígios desgarrados que aderem

aleatoriamente a contextos aleatórios (...)” (p. 50), ocorrendo, assim uma

“desmitologização” 47; e por modalidade temática, a incorporação – total ou

subjacente – do enredo do mito, suas personagens ou elementos míticos como

foco da obra literária, “(...) através de todo um processo de romanceamento de

46 A esta modalidade não será dada ênfase pois não se aplica à intertextualidade presente entre os corpora deste estudo.47 Termo usado por Fiker para caracterizar a dessacralização de um mito.

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um mito (...)” (FIKER, 1983, p. 53), assim como acontece nos corpora, onde o

enredo mítico de Orfeu aparece como fundo da narrativa de Coraline.

Por meio deste diálogo, temos a reatualização dos textos antigos,

que são muito frequentemente parodiados em obras ou por autores modernos,

tornando-os conhecidos pela contemporaneidade. A paródia, assim como a

Intertextualidade, depende do conhecimento que o leitor tem para ser

identificada; portanto, cabe ao autor conhecer o conhecimento de mundo de

seu leitor para que as correlações entre os textos possam ser feitas e

estabelecidas. Em Coraline e o Mundo Secreto, por exemplo, somente quem já

conhecia o mito de Orfeu foi capaz de identifica-lo como “pano de fundo” da

obra fílmica. Assim, a correlação entre o mito de Orfeu e Coraline e o Mundo

Secreto é válida não somente por meio da Intertextualidade, mas também pela

paródia transcontextual, que adaptou a narrativa mítica, que tem como função

representar os primórdios do ser humano, em uma obra fílmica, com função

didática e edificante, já que ensina seu espectador a aceitar sua vida e sua

família.

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