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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA ALEXANDRE MATIAS SILVA DO DEVER SER AO SER: A LIBERDADE POLÍTICA EM ROUSSEAU Dissertação de Mestrado apresentada ao departamento de Filosofia da Universidade São Judas Tadeu, sob orientação do Prof. Dr. Paulo Jonas de Lima Piva. SÃO PAULO 2014

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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM

FILOSOFIA

ALEXANDRE MATIAS SILVA

DO DEVER SER AO SER: A LIBERDADE POLÍTICA EM ROUSSEAU

Dissertação de Mestrado apresentada ao departamento de Filosofia da Universidade São Judas Tadeu, sob orientação do Prof. Dr. Paulo Jonas de Lima Piva.

SÃO PAULO 2014

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente a Deus, pelo dom da vida e da fé.

À minha amada esposa Rosana, pelo apoio, amor, cumplicidade, fé e

compreensão. Não foram poucas as horas furtadas de seu convívio, contudo juntos

compartilhamos esta pesquisa, eu mergulhado nos livros, ela em apoio silencioso a

passar nossas roupas nas duras horas da noite. Amor amadurecido, forjado em aço,

lutas, choros e alegrias.

A meu pequeno e muito amado filho Leon. Obrigando-me a ser sempre

melhor que fui ontem.

Aos amados, pais Matias e Cida, irmãs Lilian e Sabrina, cunhados Marcio,

Edi, Rosinha, Canto, Rogério e Patrícia e sobrinhos Lara, Maria Clara, Theo, Lu e

Elder, pelo constante interesse, preocupação, perguntas e vibração sobre meu

mestrado.

Meu orientador Paulo Jonas de Lima Piva, verdadeiro filósofo e professor,

pela maneira democrática, livre, inteligente e estimulante que conduziu segura e

serenamente nossa pesquisa, ensinando-me a extrair o máximo de cada leitura.

Minha irmã Lilian e meu paciente e muito presente professor José Norberto.

Fundamentais em seu apoio técnico e precioso conhecimento. Vitais na conclusão

desta pesquisa. Soberanos em suas respectivas áreas do saber.

Ao corpo docente da Universidade São Judas Tadeu.

A banca que me avaliou. Figuras verdadeiramente honradas.

Ao velho Rousseau, influência perene.

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RESUMO

O objetivo central desta dissertação é analisar e desenvolver uma reflexão sobre o tema da liberdade política no pensamento do filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), tendo como base as elaborações teóricas e práticas sobre a questão nas suas obras políticas capitais, tanto no campo do dever ser, isto é, o trabalho conceitual, político e pedagógico de Emílio e no Contrato Social, ambos de 1762, e também os seus desdobramentos práticos ou, em outros termos, no campo do ser, nas obras Considerações sobre o governo da Polônia publicado em 1782 e seu Projeto de Constituição para a Córsega publicado em 1861, nos quais o genebrino dedica-se a mediar seus conceitos com a experiência concreta e histórica como um legislador.

Palavras chave: Rousseau; liberdade; educação; igualdade.

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ABSTRACT

The main objective of this dissertation is to analyze and develop a reflection about the theme political freedom in the Genevan philosopher Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) thought, based on the theoretic and practical elaborations about the question on his political capital titles, as on “ought” field, that it is, the conceptual, political and pedagogical work of Émile and On Social Contract, both from 1762, and their practical explanation as well or, in other words, the “is” field, in the titles Considerations on the Government of Poland published in 1782 and his Constitutional Project for Corsica published in 1861, in which the Genevan dedicated to mediate his concepts with solid and historical experience as a legislator.

Keywords: Rousseau; freedom; education; equality.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 7

CAPÍTULO I – EMÍLIO OU A PREPARAÇÃO DA LIBERDADE POLÍTICA ........ 27

1.1. Emílio, um aluno para a liberdade. ................................................................. 30

1.2. A idade da natureza ....................................................................................... 33

1.3. Educação negativa ......................................................................................... 36

1.4. Educação da natureza ................................................................................... 37

1.5. Rousseau, aprendiz de liberdade ................................................................... 39

1.6. Emílio e a escolha de seu ofício ..................................................................... 41

1.7. Emílio e o Contrato Social: o tema da liberdade ........................................... 43

1.8. Religião e liberdade no Emílio ........................................................................ 46

1.9. Sofia, amor e liberdade .................................................................................. 47

1.10. Emílio e Émile e Sophie ou os solitários e a liberdade ................................ 52

CAPÍTULO II – DO CONTRATO SOCIAL OU A LIBERDADE POLÍTICA EM PARADIGMA ........................................................................................................ 56

2.1. A liberdade no livro V do Emílio: a semente do Contrato Social .................... 56

2.1.2. A viagem de Emílio ..................................................................................... 57

2.2. O Contrato Social legitimo .............................................................................. 62

2.2.1. A liberdade como valor inalienável .............................................................. 64

2.2.2. Contrato Social e a liberdade natural .......................................................... 65

2.2.3. O soberano e a liberdade ............................................................................ 67

2.2.4. Forçado a ser livre ....................................................................................... 68

2.2.5. Contrato Social: a liberdade civil como garantia .......................................... 70

2.2.6. O legislativo e a liberdade ........................................................................... 72

2.2.7. Representação política: ilusão de liberdade ................................................ 75

2.2.8. Vontade Geral: a liberdade em ação ........................................................... 77

CAPÍTULO 3 – CÓRSEGA E POLÔNIA: A LIBERDADE POLÍTICA NA PRÁTICA, A LIBERDADE POSSÍVEL. .................................................................................. 80

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3.1. A Córsega ...................................................................................................... 80

3.2. O projeto de Constituição para a Córsega ..................................................... 81

3.3. A importância da agricultura ........................................................................... 85

3.4. Regime de governo ........................................................................................ 87

3.5. A liberdade ..................................................................................................... 89

3.6. A experiência polonesa .................................................................................. 91

3.7. Da educação ................................................................................................ 100

3.8. As leis da Polônia ......................................................................................... 105

3.9. A simplicidade como valor fundamental ....................................................... 107

3.10. A defesa militar ........................................................................................... 108

3.11. Os reis e a liberdade .................................................................................. 112

3.12. A conclusão do projeto para a Polônia ....................................................... 114

3.13. A dialética Rousseauniana ......................................................................... 115

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 119

BIBLIOGRAFIA .................................................................................................. 129

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INTRODUÇÃO

A liberdade como uma necessidade vital, encontramos já entre os animais,

sobretudo entre os mais selvagens deles. La Boétie, no século XVI, em seu Discurso

sobre a servidão voluntária, de 1548, descreve de maneira interessante este fato:

O que quer dizer o elefante que, depois de se defender até mais não poder, sentindo-se impotente e prestes a ser apanhado, espeta as presas nas árvores e as quebra, assim mostrando o grande desejo que tem de continuar livre como nasceu? Assim dá a entender que deseja negociar com os caçadores, dando-lhes os dentes para que o soltem, entregando-lhes o marfim em penhor da liberdade ( LA BOÉTIE, 2003, p.32).

Nascido em 1530, no Périgord, França, e falecido precocemente em 1563,

Étienne de La Boétie produziu uma defesa apaixonada da liberdade ao denunciar o

que ele denominou “servidão voluntaria”, a qual estariam submetidos todos os

homens.

De um ponto de vista tanto liberal quanto libertário ou republicano, se

quisermos, é possível associar a valorização da liberdade por parte de La Boétie, de

certa maneira, às reflexões de Jean-Jacques Rousseau, particularmente ao seu

célebre Contrato Social, de 1762, quando este filósofo expressa sua concepção de

poder soberano. Nesse sentido lemos ainda em La Boétie:

Agora gostaria apenas de compreender como é possível acontecer,que tantos homens, tantos burgos, tantas cidades, tantas nações, suportem às vezes um único tirano, que só tem o poder que lhe outorgam; que não tem poder para ofendê-los, senão que tenham o poder de suportá-lo; que não saberia fazer-lhes mal algum, senão que prefiram suportá-lo a contradizê-lo” (LA BOÉTIE, 2003, p.26).

No século XVI tendo em mente a questão da liberdade, La Boétie investiga no

seu Discurso sobre a servidão voluntária as razões que levariam cidades e nações

inteiras a se submeterem ao comando de um só individuo. Leiamos:

Mas, oh, bom Deus! O que pode ser isso? Como o denominaremos? Que desgraça é essa? Ou que vício? Ou, antes, que vício infeliz? Ver um número infinito de homens não obedecer, mas servir, não serem governados, mas tiranizados, não terem nem bens, nem pais, nem filhos, nem a própria vida a lhes pertencer! (LA BOÉTIE, 2003, p. 26).

É possível reconhecer a importância desta análise política mesmo que dois

séculos antes de Rousseau, talvez antecipando importantes questões que um dia

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também seriam tratadas pelo genebrino, como a concentração de poder dos

governos. Nesse sentido declara mais uma vez La Boétie:

Há três espécies de tiranos: uns conquistam o reino através da eleição do povo, outros pela força das armas, outros pela sucessão da raça” (La BOÉTIE, 2003 p.33).

Ao ler La Boétie em seu Discurso sobre a servidão voluntária é possível

pensar que, o homem por força do hábito, desaprendeu como é ser livre, e por

conseqüência, aceitou passivamente a servidão voluntária.

O objetivo principal desta dissertação é investigar e explicar a concepção de

liberdade política em Jean-Jacques Rousseau, filósofo genebrino, nascido em 28 de

junho de 1712 e falecido em 2 de julho de 1778. Rousseau é reconhecidamente um

autor de diversas obras e nestas tratou dos mais diversos temas ligados ao

conhecimento humano. Sua teoria política exerceu e ainda exerce profundas

reflexões em seus leitores, neste campo alguns temas merecem destaque, como a

liberdade, muito presente em sua obra política. Para isso, nossa investigação será

organizada em três capítulos, além de sua conclusão que encerra o trabalho.

Na obra política de Rousseau a noção de liberdade pode ser considerada

complexa. Desta forma, o genebrino emprega os termos liberdade civil e liberdade

política com sentidos próximos. Em nossa pesquisa, como demonstra seu título

usaremos a terminologia liberdade política, pois acreditamos que seu sentido mais

amplo torna mais adequado a compreensão da liberdade propriamente dita e por

nos objetivada. Em nossas considerações finais procuraremos melhor esclarecer a

questão.

No primeiro capítulo trataremos da liberdade presente em sua obra

denominada Emílio ou da educação, escrito por Rousseau em 1762. A abordagem

da liberdade nesse capítulo se fará pela perspectiva da autonomia que goza Emilio,

assim, não se restringindo unicamente à liberdade política. Trata-se da liberdade

presente no processo de desenvolvimento e aprendizagem. Por se tratar de uma

obra pedagógica e política do genebrino, será investigada a relação que a obra tem

com o contrato social pensado normativamente por Rousseau, além de sua relação

com a liberdade política.

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Será reservado ao segundo capítulo da dissertação o estudo e a reflexão

sobre a liberdade dentro do Contrato Social. Nesta obra, Rousseau faz uma análise

no “nível normativo” do “dever ser” de uma sociedade baseada na participação

popular e na liberdade. Investigaremos o papel que a liberdade exerce dentro deste

contrato e suas características.

O terceiro capítulo investigará a dimensão prática da concepção de liberdade

de Rousseau ao estudarmos as Considerações Sobre o Governo da Polônia e o

Projeto de Constituição da Córsega, publicados respectivamente em 1782 e 1861.

Aqui procuraremos demonstrar qual o papel da liberdade política em Rousseau no

plano prático, uma vez que em tais obras Rousseau posicionou-se, lembrando

Maquiavel, dentro da “verdade efetiva das coisas”.

As Considerações Finais procuram retomar a discussão presente na

introdução e encerra o presente texto.

A investigação da liberdade política percorrendo tanto o Emílio quanto o

Contrato Social em nosso entender se faz imprescindível, pois, já no livro V do

Emílio Rousseau começa a desenvolver a liberdade que seria mais bem trabalhada

em seu Contrato Social. O genebrino tratou da liberdade em diversos momentos de

sua vasta obra política, contudo seu Emílio e o Contrato Social formam um itinerário

praticamente obrigatório para a melhor compreensão da liberdade pensada e

defendida pelo genebrino, razão de nossa escolha para os primeiros dois capítulos

desta dissertação. A concepção de liberdade em Rousseau ao longo dos séculos

XIX e XX encontrou diversas interpretações, de liberais a marxistas, passando

também por anarquistas;Rousseau foi lido, debatido, comentado e, sobretudo,

criticado.

No seu Contrato Social, Jean-Jacques Rousseau nos apresenta um modelo

de pacto fundado na liberdade política e na igualdade entre os indivíduos. Pode-se

pensar que esta obra em sua integralidade se relaciona com a questão da liberdade,

pois como escreveu Rousseau (1996, p.70), “O homem nasceu livre e por toda a

parte se encontra sob grilhões”. Para Rousseau, uma sociedade será justa quando

os indivíduos forem livres politicamente, ou seja, participando de forma ativa na

elaboração das leis.

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Rousseau nutria profundo respeito pela liberdade, tinha nela um valor

praticamente sagrado, não admitindo sua alienação, pois sua renúncia importava

perder a condição humana, como afirmou.

A liberdade pensada por Rousseau tem levantado controvérsias entre

filósofos e comentadores, sendo até mesmo considerado um inspirador do

totalitarismo.

Cientes das dificuldades existentes no estudo da liberdade em Rousseau,

destacaremos nesta introdução quatro diferentes abordagens sobre o assunto, com

a intenção de demonstrar a diversidade e complexidade existentes na teoria política

de Rousseau. Primeiramente os liberais com a crítica proferida por Benjamin

Constant em seu texto A liberdade dos antigos comparada à dos modernos serão

seguidos por Isaiah Berlin, filósofo Letão e critico de Rousseau; Loius Althusser,

filósofo argelino, Galvano Della Volpe, pensador italiano e o brasileiro Carlos Nelson

Coutinho que formam a perspectiva marxista, na sequência do texto, para

encerrarmos a introdução, a visão anarquista de Patrizia Piozzi, professora da

Universidade Estadual de Campinas e George Woodcock, estudioso canadense do

movimento anarquista.

Liberalismo, Marxismo e Anarquismo constituem perspectivas distintas para

um exame de um mesmo objeto, a teoria política e a liberdade em Rousseau. O

filósofo de Genebra ao estudar a complexa questão da liberdade em pleno século

XVIII causou indignação na sociedade de sua época, o que lhe valeu desconfortos e

perseguições, influenciando inclusive os jacobinos durante a Revolução Francesa.

Faremos agora a análise do texto Da liberdade dos antigos comparada à dos

modernos de Benjamin Constant, escrito em 1819, do pensador liberal nascido em

1767 e falecido em 1830.

Benjamin Constant procurou fazer uma comparação entre a liberdade que

tinham os povos antigos, em especial em Esparta e Roma e a liberdade ideal nos

povos modernos. Argumenta que a liberdade Individual era a verdadeira liberdade

moderna, não sendo possível qualquer tipo de restrição a ela.

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Para Constant, o controle e a vigilância exercidos pelas antigas repúblicas

gregas e romanas em relação a seus cidadãos estariam longe de criar um cenário

republicano e democrático, ao contrário, teriam efeitos funestos convertendo-se em

verdadeiras tiranias, como se lê:

Em Esparta, Terpandro não pode acrescentar uma corda à sua lira sem ofender os Éforos. Mesmo nas relações domésticas a autoridade intervinha. O jovem lacedemônio não pode livremente visitar sua jovem esposa. Em Roma, os censores vigiam até no interior das famílias. As leis regulamentavam os costumes e, como tudo dependia dos costumes, não havia nada que as leis não regulamentassem (CONSTANT, 1985, p.1).

Ao observar a maneira rígida do modelo de liberdade nas repúblicas de

Esparta e Roma, Constant argumenta que os antigos eram soberanos em questões

públicas, mas escravos em assuntos privados. Para Constant o objetivo dos antigos

era a partilha do poder social como representação maior de sua liberdade, porém

com os modernos, a liberdade se limita à segurança dos privilégios privados. Pela

leitura de Constant é possível afirmar que a liberdade das Repúblicas de Roma e

Esparta foi totalmente voltada à participação política, criando, porém, uma

submissão do cidadão ao corpo político, além de anular por completo qualquer traço

de individualismo. Como podemos perceber, Constant é radical na defesa da

liberdade e da independência privada:

Conclui-se do que acabo de expor que não podemos mais desfrutar da liberdade dos antigos a qual se compunha da participação ativa e constante do poder coletivo. Nossa liberdade deve compor-se do exercício pacífico da independência privada (CONSTANT, 1985, p.3).

Interessante perceber que Esparta e Roma, cultuadas no texto por Constant,

são enaltecidas por Jean-Jacques Rousseau em sua obra, sobretudo no Discurso

sobre as ciências e as artes publicado em 1750, como lemos:

Tal foi, também. a própria Roma, nos tempos de pobreza e de ignorância; tal se mostrou até nossos dias esta nação rústica, tão enaltecida pela sua coragem, que a adversidade não pôde abater, e pela sua fidelidade, que o exemplo não pôde corromper (ROUSSEAU, 1983, p.338).

Prossegue Rousseau em sua defesa de Esparta:

Oh! Esparta, eterno opróbio de uma doutrina vã! Enquanto os vícios levados pelas belas-artes se introduziam conjugados em Atenas, enquanto um tirano lá reunia, com tanto cuidado, as obras do príncipe dos poetas, tu escorraçavas para fora de teus muros às artes e os artistas, as ciências e os sábios! (ROUSSEAU, 1983, p, 399).

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Em seu texto e de forma respeitosa Constant objeta Rousseau, porém

reconhece a inteligência e seu amor pela liberdade, todavia alerta para os

desastrosos pretextos tirânicos derivados do pensamento rousseauista.

Curiosamente, quanto a Montesquieu, Constant (1985, p.4) foi generoso,

observando ser possuidor de “espírito observador e cabeça menos ardente” . É

possível afirmar que o ponto de divergência entre estas perspectivas de liberdade

entre Rousseau e Constant reside na crença daquele que tudo deveria ceder frente

a vontade coletiva e que todas as restrições aos direitos individuais seriam

largamente compensadas pela participação no poder social, já Constant coloca-se

como defensor intransigente da liberdade individual. Constant também não poupa e

é até mais contunde nas críticas dirigidas a Gabriel Bonnot (1709-1785), conhecido

como abade de Mably, assim escreveu:

Aliás, não é a Rousseau, como veremos, que se deve principalmente atribuir erro que vou combater: ele pertence muito mais a um, de seus sucessores, menos eloqüente, mas não menos austero; e mil vezes mais exagerado. Este, o abade de Mably, pode ser considerado o representante do sistema que, conforme as máximas da liberdade antiga quer que os cidadãos sejam completamente dominados para a que a nação seja soberana, e que o indivíduo seja escravo para que o povo seja livre. (CONSTANT, 1985, p.4).

Para Constant, a constituição do Estado e suas instituições, mesmo que

garantissem a participação popular acabaria por impedir a liberdade individual, fato

inaceitável nos tempos modernos vividos por Constant:

Devemos desconfiar Senhores, dessa admiração por certas reminiscências antigas. Se vivemos nos tempos modernos, quero a liberdade que convêm aos tempos modernos; se vivemos sob monarquias, suplico humildemente a essas monarquias de não tornar emprestados às repúblicas antigas meios de oprimir-nos (CONSTANT, 1985, p.5).

Constant considera que, do ponto de vista do homem moderno, a liberdade

dos antigos soa como uma forma de despotismo, pois a liberdade política implicava

automaticamente na renúncia da liberdade individual. Possuindo a participação

política importância, desde que não gerasse prejuízos às atividades cotidianas como

o comércio tão enaltecido por Constant. Dentro desta perspectiva, a necessidade de

tempo para o exercício da liberdade individual justificaria a representação, pois a

liberdade política dos antigos demandava muito tempo destinado a coisa pública:

Daí vem Senhores, a necessidade do sistema representativo. O sistema representativo não é mais que uma organização com a ajuda da qual uma

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nação confia a alguns indivíduos o que ela não pode ou não quer fazer (CONSTANT, 1985, p. 6).

Por sua vez, e em sentido oposto, Rousseau argumentou que a

representação enfraquecia o poder soberano, transformando os cidadãos em

verdadeiros escravos:

A soberania não pode ser representada pela mesma razão que não pode ser alienada; ela consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade não se representa: ela é a mesma ou é outra, não são nem podem ser representantes, são apenas comissários; nada podem concluir definitivamente. Toda lei que o povo em pessoa não ratificou é nula, não é uma lei. O povo inglês pensa ser livre; está muito enganado, pois só o é durante a eleição dos membros do parlamento; tão logo estes são eleitos, ele é escravo, é nada. Nos curtos momentos de sua liberdade, o uso que faz dela mostra bem que merece perdê-la (ROUSSEAU, 1983, p.107).

Quanto à censura, tratada por ambos em suas obras, Constant a vê como

uma espécie de vigilância moral e ineficaz para a criação de bons costumes,

contrariamente à posição rousseauista defendida no livro quatro do Contrato Social.

É possível afirmar que o genebrino e Benjamin Constant nutriram uma

verdadeira preocupação com a liberdade no Estado, mas divergiam em método, pois

Rousseau em seu republicanismo não concebia o cidadão como um ser individual e

isolado, enquanto Constant preservava a liberdade individual como valor inalienável.

Ainda dentro da perspectiva liberal, abordaremos agora um pensador

contemporâneo, Isaiah Berlin que também analisou e julgou Rousseau. Em seu

Rousseau e outros cinco inimigos da liberdade, publicada em 2002, Berlin assim

como Constant entende que há uma verdadeira intenção de Rousseau em

apresentar um pacto social fundado na liberdade, contudo, diverge quanto ao

alcance pensado pelo genebrino e vislumbra resultados nefastos e até

contraditórios, assim escreveu Berlin (2002, p.51): “como conciliar o desejo de

liberdade dos homens com a necessidade de autoridade?”.

Para Berlin, há um dilema não solucionado na concepção de liberdade

Rousseauista, pois, como seria possível um indivíduo torna-se livre à medida que

está associado a outros, e consequentemente impedido de fazer tudo quanto

realmente desejar?

Para Berlin, não há nada de inovador no pensamento de Rousseau acerca da

liberdade, mero raciocínio dedutivo apresentado de forma convincente:

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O seu conceito de liberdade e o seu conceito de autoridade são muito diferentes dos pensadores anteriores e, embora empregue as mesmas palavras, atribui-lhes um conteúdo muito distinto. Isto, na realidade, poderá constituir um dos grandes segredos da sua eloqüência e da sua tremenda eficácia, ou seja, embora pareça dizer coisas não muito diferentes das dos seus antecessores, utilizando o mesmo tipo de frases e, aparentemente, os mesmos conceitos de forma tal que produzem um efeito eletrizante no leitor. (BERLIN, 2002, p.53).

Berlin chama a atenção para a obsessão de Rousseau pela liberdade ser

intensa a ponto de incapacitá-lo de fazer concessões ou ajustes em sua proposta,

em suas palavras:

Para Rousseau, a idéia em si mesma de fazer concessões à liberdade, de se dizer “ bem, não podemos ter liberdade total porque isso conduziria à anarquia e ao caos; não podemos ter autoridade absoluta, porque isso conduziria à subjugação total dos indivíduos, ao despotismo e a tirania; temos por conseguinte, de traçar a linha alures entre elas, de chegar a um raciocínio” – este tipo de raciocínio é totalmente inaceitável. (BERLIN, 2002, p.54).

Por esta perspectiva conclui-se que esta posição de Rousseau acabaria por

criar uma situação despótica, dado o seu caráter quase religioso, sagrado e até

mesmo fanático, tratando da liberdade de maneira rígida e autoritária.

Berlin demonstra certa perturbação com a ideia de associação defendida por

Rousseau, que acaba por tornar o cidadão livre como nunca fora antes, assim

lemos:

Isto seguramente confere um paradoxo, uma forma apropriadamente paradoxal. Como podemos simultaneamente unirmos a outras pessoas, fundando uma forma de associação que tem de exercer um certo grau de autoridade, de coerção, muito diferente de ser inteiramente livre ou solitário num estado de natureza – e, ainda assim, continuarem livres, ou seja, não obedecermos a essas mesmas pessoas? (BERLIN, 2002, p.59).

Para Berlin, Rousseau nutria um amor desmedido por paradoxos; não

bastasse isso, o genebrino possuía soluções simplistas e até ineficazes para a

solução do conflito entre liberdade e autonomia, apelando para questões como

“amor de si” e virtude.

Quanto à vontade geral presente no Contrato Social, Berlin entende possível

apenas para homens da mesma condição de natureza, ou seja, não escravizados

pelo medo, não intimidados, não desviados de sua verdadeira natureza, daí se

conclui a impossibilidade da mesma se concretizar.

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Para Berlin a concepção de “homem natural” pensada por Rousseau estava

equivocada e era fruto de suas vivências, pois o genebrino sofreu complexos de

inferioridade e pobreza na juventude, condenava os ricos, detestava a sofisticação

além de não gostar de círculos restritos e intelectuais, e segundo Berlin, o “homem

natural” de Rousseau era dotado de uma sabedoria instintiva e profunda, muito

diferente daqueles acostumados à sofisticação corrompida das cidades. Esta

espécie de anti-intelectualismo defendido por Rousseau acabou fazendo famosos

herdeiros como Charlyle, Nietzsche, Hitler e até Mussolini, como argumentou Berlin.

Sustenta Berlin (2002, p.74) que a substituição de uma liberdade natural pela

política fora do estado na natureza, mesmo que tornasse o homem livre, este estaria

rigidamente associado a outros, resultando na criação de uma monstruosa estrutura

estatal, por isso, assevera o pensador liberal, que esta concepção de liberdade

pensada por Rousseau teria inclusive influenciado figuras totalitárias, tais como os

Jacobinos, os nazistas, os fascistas e até os comunistas, “ foi um dos mais funestos

e formidáveis inimigos da liberdade em toda a história do pensamento moderno”..

É inevitável a associação do pensamento de Benjamin Constant àquele

defendido por Berlin, ambos pensadores liberais. Defendiam uma liberdade diversa

da praticada outrora por Esparta e Roma e enaltecidas por Rousseau. Se Constant

criticou em sua época os destinos tomados pela revolução Industrial, Berlin em seu

tempo fez as mesmas observações de governos como aqueles liderados por

Mussolini e Stalin, contudo ambos atribuíram a Rousseau a influência destas tristes

experiências.

Na perspectiva marxista, a figura de Louis Althusser, filósofo argelino, falecido

em 1990 merece atenção. Destaca Althusser em seu Política eHistória, de

Maquiavel a Marx, o paradoxo gerado por Rousseau com seu Contrato Social:

...a utopia de Rousseau, ou seja, o tema positivo silencioso, suas pressuposições filosóficas que animam sua crítica. Donde o paradoxo do filósofo que no século XVIII só concebeu a teoria mais materialista e mais dialética da história humana para terminar no idealismo moral do Contrato Social. Mas esses limites teóricos não passam de limites históricos dos meios sociais que Rousseau representa: serão os próprios limites da ação dos jacobinos e de Robespierre.(ALTHUSSER, 2007, p.106).

Ainda em relação ao Contrato Social, Althusser destaca a maneira como

Rousseau tratou o problema da alienação que o individuo faz no contrato, feito não

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conseguido por Hobbes que vincula o indivíduo ao príncipe ou a uma assembleia,

poder soberano na perspectiva hobbesiana, como destaca o professor marxista:

No entanto, Rousseau ganha alguma coisa com esse status ambíguo da comunidade. Ele ganha responder ao escandaloso problema representado pela alienação total dos indivíduos no contrato. Permite acertar as contas com as objeções e dificuldades de Hobbes, escapando às aporias da filosofia política clássica. (ALTHUSSER, 2007, p. 381).

Ainda tratando da questão da alienação no contrato rousseauniano,

prossegue Althusser:

Rousseau responde ao problema da alienação total. São os mesmos homens que figuram duas vezes no contrato. A alienação total é possível e não contraditória, pois permanece interna. Possível e necessária, porque o homem só se dá a si mesmo e, por esse fato, não é uma doação gratuita. Essa alienação é feita em proveito da comunidade, cujos membros são autores da própria alienação. Nos contratos clássicos, as duas Partes Contratantes são diferentes, e é um verdadeiro contrato de troca, troca, aliás, sempre parcial e não total. O individuo só cede uma parte de seus direitos. Em Rousseau, o paradoxo é que o individuo deve dar tudo pra receber algo em troca. Para receber esse algo em troca, é preciso que não haja troca, mas alienação total. (ALTHUSSER, 2007, p. 381).

Ressaltando a primazia da soberania popular no Contrato de Rousseau,

ponto nuclear da teoria do genebrino, diferenciando-a da teoria hobbesiana, afirma

Althusser:

_ Problema das relações entre o Príncipe e Povo e do conflito possível. É esse conflito entre as duas partes quais uma não é contratante, já que o Príncipe não se comprometeu a nada perante o Povo.. Tudo isso é diferente em Rousseau. É próprio do contrato excluir qualquer alienação na exterioridade, fora do contrato. O contrato é firmado com uma segunda Parte Contratante que é constituída por ele, que, em vez de ser exterior a PC1, é idêntica a ela. Portanto, os homens se alienam a si mesmos, por meio de uma alienação interior. O ato do contrato social. (ALTHUSSER, 2007, p. 382).

De maneira enfática e bem ao estilo marxista, Althusser reafirma o papel do

corpo social, advertindo que a democracia é fundamental para o sucesso da teoria

política pensada por Rousseau no seu Contrato:

Para Rousseau todo corpo político implica a legislação do povo pelo povo e para o povo, mas nem todo corpo político implica o governo do povo por e para o povo. Somente a democracia satisfaz esse requisito. (ALTHUSSER, 2007, p. 389).

Dessa forma, é possível pensar que o pensador argelino via na teoria política

de Rousseau elementos restauradores e historicamente caros aos marxistas:

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É preciso eliminar os efeitos da desigualdade econômica, e, no Contrato social, Rousseau restaura o sonho da independência econômica, capital no segundo Discurso, anulando todos os efeitos da divisão do trabalho, ou seja, todos os efeitos da história. (ALTHUSSER, 2007, p. 407).

Também na tradição marxista o filósofo italiano Galvano Della Volpe analisa

algumas questões relacionadas à obra de Rousseau tendo no Marxismo o

referencial, no seu Rousseau e Marx a Liberdade Igualitária, do qual destacaremos

alguns pontos, especialmente no capítulo III, denominado: Crítica Marxista em

Rousseau, tratando especificamente a questão da igualdade política.

Della Volpe procura demonstrar que Marx e parte da tradição marxista bem

como Rousseau pensaram seriamente o problema da desigualdade reinante entre

os homens. Segundo o filósofo italiano, Marx aponta na própria noção de direito a

manutenção da desigualdade entre os homens. Leiamos Marx citado por Lênin:

O direito igual equivale portanto a uma violação da igualdade e é uma injustiça. Com efeito, cada qual recebe, por parte igual de trabalho social fornecido, uma parte igual de produto social [...].Em paridade de trabalho e portanto em paridade de participação no fundo social de consumo - conclui Marx -, um recebe pois, efectivamente, mais que o outro, um é mais rico que o outro, etc. Para evitar todas estas dificuldades, o direito deveria ser não igual mas desigual. (DELLA VOLPE, p.109).

Nesse sentido prossegue Marx na crítica ao direito burguês que atribui

igualmente a homens desiguais:

E no entanto isto não é ainda o comunismo, e não elimina ainda o direito burguês, que a homens desiguais e para uma quantidade desigual (desigual de facto) de trabalho atribui uma quantidade igual de produtos [...] (DELLA VOLPE, p.111).

Como Marx, Rousseau também se dedicou a compreender a delicada

questão que envolve a desigualdade, sendo o resultado principal seu Discurso sobre

a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, publicado em 1755.

Assim, Della Volpe vê a relação de proximidade entre a obra de Rousseau e

Marxismo ao tratar da desigualdade, tendo esse reformulado a dificuldade

enfrentada por Rousseau ao tratar do tema no século XVIII:

Voltemos a Rousseau para ver a solução que ele dá da dificuldade de estabelecer um concurso proporcional da desigualdade ou diversidade dos homens com a diversidade entre si ( ou juntamente com as dificuldades civis instituídas e reguladas pela sociedade); dificuldade reformulada por Marx e Lenine, inevitável desigualdade dos homens, e resolvida com seu critério científico de uma sociedade comunista. (DELLA VOLPE, p.111).

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É possível pensar que a teoria política em Rousseau fundada na igualdade e

liberdade contribuiu para o desenvolvimento de tais questões na tradição marxista a

partir do século XIX. Della Volpe salienta que Marx e Lênin procuraram reformular

questões ou problemas anteriormente tratados por Rousseau em relação à

desigualdade, o que nos dá a medida da importância do genebrino na filosofia e na

política nos séculos posteriores.

Della Volpe, oportunamente, lembra que Marx, Engels, Lênin, e Rousseau

trataram em sua obra do tema da desigualdade, e reconhece a dívida que o

marxismo possui junto ao cidadão de Genebra, leiamos:

Desta seqüência de textos de Lenine-Marx, Engels e Rousseau podemos inferir que a extrema atenção posta pelo marxismo-leninismo no problema de reconhecimento econômico-proporcional, por parte da sociedade (comunista), das desigualdades ou diferenças dos indivíduos e suas capacidades e necessidades, exprime – num novo plano histórico – a continuidade e o desenvolvimento do pensamento igualitário antinivelador de Rousseau. Por outras palavras, parece difícil contestar que – através do abismo de métodos que separa o espiritualismo e o moralismo humanitário e de direito-natural de Rousseau, por um lado, e o materialismo histórico do critério da luta de classes, por outro – é o problema capital de Rousseau – ou seja, que “tudo consiste em não deteriorar o homem da natureza [o livre indivíduo] ao adaptá-lo à sociedade” (A nova Heloísa,V,8) -, é esse problema que a hipótese científica suprema da fase definitiva do comunismo reformulada para poder resolve-lo. (À parte a questão, que veremos, da consciência histórica que marxismo-leninismo teve sua dívida para com o igualitarismo de Rousseau) (DELLA VOLPE, p. 113).

Na forma de síntese o filósofo italiano considera o socialismo científico pronto

a enfrentar o problema da desigualdade, porém reconhece a importância de

Rousseau e sua obra preparando o caminho para a tradição marxista:

Pode concluir-se a propósito o seguinte: 1. Que o socialismo científico está em condições de resolver com o seu método materialismo aquele problema de uma igualdade universal e também mediadora de pessoas que foi descoberto pelo moralista humanitário Rousseau com a sua concepção igualitária-antiniveladora da pessoa humana: isto é, de um reconhecimento social dos méritos e possibilidades desiguais de todos os homens mediante os correspondentes serviços proporcionais prestados por cada um ao Estado. (DELLA VOLPE, p. 113).

Por fim, ressalta o pensador italiano a forte influência de Rousseau para o

socialismo científico:

2. que nesta solicitude última do socialismo científico pelo valor da pessoa humana se revela, indubitavelmente, a herança cristã que lhe foi transmitida por Rousseau principalmente (mas quam mutatus ab illo!) (DELLA VOLPE, p. 113).

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Encerrando a perspectiva marxista de autores que lidaram com a obra de

Jean-Jacques Rousseau, abordaremos o artigo do professor Carlos Nelson

Coutinho, intitulado Critica e utopia em Rousseau, publicado em 1996.

Coutinho entende o Contrato Social como uma proposta utópica e alternativa.

É importante destacar que o genebrino não teve a pretensão de produzir um manual

programático ao escrever o Contrato. Como bem observou Coutinho, o Contrato

Social, escrito em 1762, encontra-se no “nível normativo” do “dever ser”, assim, seu

Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, de

1755, ao fazer uma análise crítica das desigualdades entre os homens dentro do

contrato histórico estaria situado no nível do “ser”. Nas palavras de Coutinho:

[...] é porque discorda profundamente do “ser” da desigualdade e da

opressão, por ele identificado com societé civile de seu tempo, que

Rousseau propõe o dever ser de uma formação social na qual liberdade e

igualdade se articulam indissociavelmente: a crítica do presente se completa

assim com a proposição de uma utopia alternativa. (COUTINHO, 1996, p.6).

Para Coutinho o filósofo genebrino enxergava no contrato a possibilidade de

articulação entre o público e o privado, e por meio desta sociabilidade haveria uma

evolução na própria individualidade dos homens; assim, este contrato não se

limitava a garantir a mera sobrevivência humana individualista por meio do

despotismo. Para Rousseau o homem poderia ser responsável pela criação de

condições favoráveis para boa convivência social em sociedade.

Carlos Nelson Coutinho destaca o fator “antropológico” na visão contratual de

Rousseau, ou seja, haveria um estágio intermediário no processo de socialização

situado entre o estado natural e o estado civil, desta forma, a transição do estado da

natureza para o civil não se dá de forma automática ou brusca. É possível afirmar

que tal estágio intermediário nos remete ao estado de guerra de que fala Hobbes e

no caso de Rousseau antecede o estado civil.

É possível pensar que a viabilidade do contrato pensado por Rousseau passa

necessariamente por um homem renovado que o integrará, uma vez que o indivíduo

do Contrato Social deverá renunciar qualquer egoísmo individualista, e praticar a

virtude. A “voz interior” ou o “diálogo consigo mesmo” citados no texto de Coutinho

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são figuras típicas e necessárias em seu contrato, capacitando o homem a interagir

com a autoridade ou lei moral. Acredita-se que com isso, Rousseau reforce sua

crença na bondade natural do homem, já a virtude é tida como qualidade necessária

para a construção de uma República, como argumentou ao longo de seu Discurso

contra as ciências e as artes. Parece-nos importante destacar na leitura do ensaio

de Coutinho a necessidade da renovação da mentalidade humana para a formação

do cidadão do contrato. Em síntese, necessário se faz que o indivíduo renuncie aos

sentimentos individualistas e busque a virtude. Ainda em relação a essa

transformação necessária ao homem do contrato, assim escreve Coutinho:

Tanto no Contrato como no Emílio, Rousseau afirma sua crença na possibilidade de transformação do homem como resultado dessa sua plasticidade, transformação que ele coloca explicitamente como condição para o êxito da sociedade livre e igualitária proposta no contrato (COUTINHO, 1996, p.10).

Talvez alguns de seus críticos tenham dado pouca importância a este

componente pensado pelo genebrino, mas sua crença no homem e na sua

transformação assume papel vital na construção do contrato social, como escreveu

Rousseau, citado aqui por Coutinho (1996, p.10), “quem enfrenta a tarefa de dar

instituições a um povo deve, por assim dizer, sentir-se capaz de transformar a

natureza humana”.

Argumenta Coutinho que a liberdade em Rousseau manifesta-se mais como

processo do que necessariamente como conceito rígido e deve ser construído e

trabalhado arduamente por meio da práxis. Além desta liberdade política, a crítica à

desigualdade entre os homens é frequente em certas obras de Rousseau, tema que

seria retomado por Marx, cerca de um século depois como observou Coutinho e

demonstra a visão de vanguarda de Rousseau.

Pela análise da obra do genebrino, percebe-se que o fortalecimento do poder

executivo comum no modelo liberal era um risco à liberdade política; o contrato

rousseauniano é fundamentalmente garantidor da liberdade política, ainda que esta

seja de difícil compreensão para alguns comentadores. Coutinho aponta em seu

ensaio um ponto que normalmente gera a incompreensão e suscita controvérsias:

Nas palavras do próprio Jean-Jacques, o de encontrarem uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, obedece,

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porém apenas a si mesmo, permanecendo assim tão livre como antes (COUTINHO, 1996, p. 23).

Dentro de uma perspectiva marxista é relevante a constatação de Coutinho

da relação existente entre a perda da liberdade dos indivíduos e a desigualdade:

Na verdade, o que Rousseau critica não é tanto o fato de que os homens dependam uns dos outros para satisfazer seus carecimentos, mas sim o modo peculiar pelo qual se dá essa dependência, ou seja, nos quadros da propriedade privada e da divisão do trabalho. Isso, segundo ele, leva à perda da autonomia e, por conseguinte, da independência e da liberdade dos indivíduos (COUTINHO, 1996, p.15).

Coutinho discorda que Rousseau tenha inspirado totalitarismos futuros, mas

que o genebrino tenha como modelo de democracia a Grécia antiga, afastando por

completo qualquer associação entre Rousseau e governos despóticos. A liberdade

política em Rousseau nos remete diretamente ao conceito de vontade geral, jargão

rousseauniano complexo, relacionado com o interesse comum, indispensável no

estado civil. Para que a liberdade seja uma realidade certas condições devem estar

presentes, como a igualdade e a supressão do individualismo, possíveis apenas se

o indivíduo voltar-se totalmente ao interesse comum e assim viver a liberdade

política, pois a liberdade natural foi possível apenas no estado da natureza.

Pela leitura do ensaio de Coutinho é possível concluir que o contrato

rousseauniano esta no campo do dever ser, um verdadeiro paradigma. O termo

utópico usado pelo professor no título de seu artigo não nos parece remeter à

impossibilidade ou a um mero devaneio, podendo ser tal obra política um

contraponto à sociedade burguesa e individualista na qual o próprio Rousseau viveu:

Rousseau, na verdade, é um implacável crítico dessa sociedade a apoiar sua oposição não numa tentativa de retorno (ou conservação) da ordem feudal historicamente ultrapassada, mas na utopia de uma sociedade democrática e igualitária, que ele identifica, no Contrato, como uma república autogovernada fundada na vontade geral (COUTINHO, 1996, p.17).

As palavras finais da última citação de Coutinho fornecem a real dimensão

daquilo que representa o contrato social pensado por Rousseau, ou seja, uma

república fundada na vontade geral.

Invoquemos agora uma interpretação que mais do que invocar relações com

o anarquismo coloca Rousseau como um dos precursores das práticas coletivistas e

democráticas proposta por Patrizia Piozzi em seu Os Arquitetos da Ordem

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Anárquica, de Rousseau a Proudhon e Bakunin publicado em 2003. Para Piozzi

(2003) o contrato de Rousseau poderia ser verdadeiramente uma maneira de

reconquistar a verdadeira liberdade, na obra rousseauniana encontram-se as bases

para a extinção das formas estatais coercitivas e autoritárias numa transformação

radical da forma mentis moderna.

Argumenta a autora que Rousseau se opõe à “razão calculista”, posto que a

ela é responsável por conflitos e desequilíbrios, criticando Hobbes, por atribuir ao

homem natural paixões e cálculos na vida civil, que poderíamos entender como uma

espécie de individualismo inerente. Entende, também, que a proposta de Rousseau

supera o pacto liberal, vez que o individuo torna-se parte integrante do conjunto,

semelhante aos organismos vivos e seus componentes, passando de inteiros a

frações, desta forma vinculada a noção de coletiva e bem comum. Esta visão não

nos remete apenas a uma reformulação jurídica do homem inserido no contrato, mas

também educativa, destaca a autora. Há o papel marcante da questão pedagógica

na obra do genebrino, sendo possível afirmar que se trata de um elemento

indispensável na construção da liberdade e consequentemente influindo diretamente

na formulação do contrato social como possível instrumento.

Piozzi discorre sobre a separação entre as sociedades rudimentares e a

civilização culta na obra de Rousseau, sendo que a primeira possui a imaginação no

mundo real e o coração livre para escutar a voz da natureza, diferente da segunda,

que vive no mundo fantasmagórico criado pela arte, iludidos por privilégios de sua

condição social.

Segundo a professora, no Emílio há um elogio ao trabalho por ser um dever

do homem social; a importância econômica e moral do trabalho e a condenação da

acumulação do excedente antecipam análises anticapitalistas feitas pelos

reformadores do século XIX. Piozzi chama a atenção para a preferência que tinha

Rousseau pela simplicidade que poderia inclusive superar os males da sociedade,

possibilitando uma convivência igualitária e cooperativa. Assim, é possível afirmar,

que tanto a austeridade quanto o trabalho são importantes componentes do contrato

e até da teoria política rousseauniana.

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Pela leitura da obra do genebrino, é possível afirmar que o comportamento

egoísta está totalmente afastado, pois o cidadão do contrato social abdica de sua

liberdade natural em favor da vida coletiva integrando o poder soberano.

Para Patrizia Piozzi a ordem social justa se baseia no equilíbrio entre o

interesse e o dever, garantindo a segurança e prosperidade a todos, no estado civil

é necessário que haja a superação do cálculo egoísta em favor do interesse público.

Mesmo reconhecendo a pureza do homem simples, Rousseau destaca a

importância do governante sábio no poder executivo, sendo possível concluir que a

virtude seja uma exigência indispensável para o magistrado ocupante deste cargo.

A regulamentação da propriedade privada visa impedir que haja uma

diferenciação excessiva do poder econômico, preocupação de Rousseau, em

diminuir os desníveis entre possuidores e despossuídos, buscando um equilíbrio

material, pois é impossível pensar em liberdade no estado de desigualdade.

É possível perceber na obra política de Rousseau, componentes coletivistas e

anárquicos, tais como a preferência pela democracia direta, a dissolução do exército

para uso de milícias compostas por cidadãos e a produção orientada pelas

necessidades reais, suas críticas às formas burocráticas e repressivas de Estado,

além da proposta de gestão autônoma da sociedade, o que confere um caráter

totalmente inovador e libertário ao pensamento de Rousseau.

O processo de educação e esclarecimento presente em Rousseau vai além

da cultura livresca ou do intelectualismo, o que se pretende é o fortalecimento do

corpo político e formação dos cidadãos, sendo interessante destacar, que além da

educação, as festas, solenidades e celebrações no fortalecimento ao sentimento de

pátria assumem um importante papel no sentimento de fortalecimento da pátria.

Para a autora a educação proposta no Emilio revela coerência com a utopia

republicana de Rousseau, onde a soberania é formada pelos cidadãos e assume um

papel central no cenário político, capaz de conciliar igualdade e cooperação, o que

também pode indicar elementos socialistas e democráticos.

A lei produzida pelo soberano e o processo de educação visando a formação

do homem possuem extrema importância como bem destacado por Piozzi, pois se

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associando o homem deixa de ser uma ilha isolada para se tornar parte de um todo

indivisível.

Por fim, destaca a professora a relação presente entre o pensamento político

de Rousseau e importantes questões que seriam estudadas nos séculos XIX e XX,

como a propriedade privada, liberdade, Estado, escravidão, poder, Estado,

igualdade, democracia direta o que demonstra a importância histórica do genebrino

e seu papel de vanguarda ao antecipar teses socialistas e anarquistas em seus

textos. Ainda assim o texto em questão não nos parece aprofundar a questão da

liberdade política e sua relação com o tema por Piozzi exposto, porém é marcante

no texto a importância que assume a educação no contrato social, bem como o

vanguardismo de Rousseau pelos complexos temas abordados em pleno século

XVIII.

Encerrando a análise no campo do anarquismo, não poderíamos deixar de

abordar, ainda que brevemente, o trabalho de George Woodcock e sua História das

ideais e movimentos anarquistas.

Apesar de Bakunin, Kropotkin, Tolstoi Proudhon e Godwin, célebres

anarquistas terem sua atuação no século XIX, o movimento anarquista tem uma

origem difusa e mais antiga, não sendo um produto daquele século, como afirma

Woodcock:

Paralelamente a essa busca de Kropotkin por um anarquismo popular, anônimo e desarticulado, existe a pesquisa de outros historiadores do movimento, tentando descobrir elementos anarquistas nas idéias de filósofos e escritores do passado.Essas pesquisas resultaram na inclusão dos nomes de Lao-Tsé e Zeno, Étienne de La Noétie, Fénelon e Diderot. (Woodcock, 2005, p.39).

Dentre as muitas reivindicações presentes no ideário anarquista, é possível

pensar que a liberdade mereceu seu lugar ao longo da história, como afirma

Woodcock:

...e é nesse sentido que irei tratar o anarquismo, apesar de suas muitas variantes: como um sistema de filosofia social, visando promover mudanças básicas na estrutura da sociedade e, principalmente – pois esse é o elemento comum a todas as formas de anarquismo -, a substituição do estado autoritário por alguma forma de cooperação não- governamental entre indivíduos livres. (Woodcock, 2005, p.12).

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Como Rousseau, o movimento anarquista também buscou pensar a política

sem negligenciar a importância que tem a liberdade nesse contexto.

Proudhon, importante figura do anarquismo, ainda que não tenha sido

influenciado diretamente pela obra de Rousseau, demonstra certos momentos de

convergência com o Contrato Social, como é possível ler o trecho citado por

Woodcock:

“Para que eu possa permanecer livre, para que eu não esteja sujeito a nenhuma lei, exceto aquelas que eu mesmo tenha criado, e para que eu me governe, diz ele – é preciso reconstruir o edifício da sociedade, tendo como base a ideia do contrato” (Woodcock, 2005, p. 20).

É possível pensar que a obra de Rousseau se fizera mais conhecida no

século XIX, sendo uma leitura possível aos anarquistas. Mesmo discordando do

genebrino em certos pontos, Willian Godwin, importante filósofo e anarquista do

século XIX, fora seu leitor, como afirma Woodcock:

A linguagem e até a forma como foram apresentadas as idéias no Relatório... têm um „toque” francês, lembrando Helvetius, d‟Holbach e Rousseau, os escritores franceses que Godwin vinha lendo desde 1781...Ao Contrato social de Rousseau, opunha a ideia de uma sociedade vivendo de acordo com as leis da moral; e à visão de Rousseau, que considerava a educação um processo cujo objetivo seria impor um determinado molde à mente do aluno, opunha o intercâmbio de idéias, mestre e aluno a influenciar-se mutuamente, o que estimularia a mente da criança a desenvolver tendências naturais. (Woodcock, 2005, p.68).

Rousseau e o movimento anarquista, ainda que por meios distintos,

procuraram pensar e agir por sociedade sem explorados e exploradores, baseada

na liberdade.

Como é possível ver ao longo dos últimos trezentos anos tem sido comum a

profunda divergência quando se trata de analisar o pensamento e a obra de Jean-

Jacques Rousseau. Inspirador de totalitarismos, precursor do socialista, liberal,

inimigo da democracia, democrata, são alguns dos adjetivos normalmente dados ao

genebrino por críticos e admiradores. Contudo, um fato parece estar certo: não se

pode estudar com a honestidade merecida a filosofia política e em especial o tema

da liberdade sem dialogar com Rousseau e sua obra.

Oportuno salientar que não temos a pretensão de confrontar as posições dos

diversos comentadores trazidos na presente pesquisa, o quadro exposto na

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introdução serve apenas para darmos uma pequena dimensão da diversidade que

suscita a obra do genebrino. Nossa posição será melhor demonstrada em nossas

considerações finais.

E assim, dado esse quadro de intérpretes divergentes, avançaremos para o

primeiro capítulo onde investigaremos no seu tratado pedagógico e político

publicado em 1762 a ampla perspectiva de liberdade por Rousseau pensada.

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CAPÍTULO I – EMÍLIO OU A PREPARAÇÃO DA LIBERDADE

POLÍTICA

Emílio ou da educação pode ser lido como um livro das possibilidades.

Pedagógicas, morais, filosóficas e também políticas. Para Salinas Fortes (1996,

p.79), “o Emílio trata das possibilidades pedagógicas de livrar um indivíduo da

corrupção circundante”. Para Wokler (2012, p.130), Rousseau “traça um programa

pedagógico em Emílio cujo objetivo central é libertar as crianças da tirania das

expectativas dos adultos”. Mas além de tais análises, nos deteremos na liberdade

que se encontra na obra, pois entendemos que a liberdade é um tema recorrente

dentro do Emílio.

Michel Launay (1999), em sua introdução à edição brasileira do Emílio, afirma

que a primeira versão do livro ficou pronta em fins de 1759, deixando seu autor

temeroso quanto a entregá-lo a um impressor parisiense prevendo possíveis

desentendimentos com a igreja católica e com o governo francês. Mesmo assim,

Emilio, bem como o Contrato Social, foram publicados em 1762, e, confirmando a

previsão do próprio Rousseau, encontraram resistências e perseguições tanto na

Sorbonne quanto na própria França, sendo inclusive queimados em praça pública.

Tais obras valeram ao genebrino uma condenação à prisão, evitada com sua fuga

para a Suíça.

Emílio ou da educação estrutura-se em cinco livros repletos de ensinamentos,

sentenças, máximas e pensamentos que procuram demonstrar as complexas fases

do processo de instrução de uma criança, iniciando com o seu nascimento e

findando já em idade adulta, por volta dos vinte e cinco anos de idade. A obra é

ficcional e procura retratar com detalhes a metodologia empregada pelo preceptor

Jean-Jacques ao seu aluno Emílio, menino saudável e órfão, conforme nos descreve

e explica o próprio cidadão de Genebra, que lembremos também fora órfão de mãe:

Emílio é órfão. Não importa que tenha pai e mãe. Encarregado dos deveres deles, herdo todos os seus direitos. Deve honrar seus pais, mas só a mim deve obedecer. É a minha primeira, ou melhor, minha única condição (ROUSSEAU, 1999, p. 31).

A escolha de um jovem saudável não foi por acaso; a saúde física deve ser

a base de uma formação moral e cívica para Rousseau. Vejamos:

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É preciso que o corpo tenha vigor para obedecer à alma; um bom servidor deve ser robusto. Sei que a intemperança excita as paixões; a longo prazo, ela também esgota o corpo. As macerações, os jejuns não raro produzem o mesmo efeito por uma causa oposta. Quanto mais fraco é o corpo, mais ele comanda; quanto mais forte ele é, mais obedece. Todas as paixões sensuais habitam os corpos efeminados; quanto menos podem satisfazê-las, mais se excitam com elas (ROUSSEAU, 1999 p. 32).

Este processo educacional é longo, e podemos dividi-lo nas seguintes fases:

o livro I é dedicado exclusivamente aos bebês e classificado de “idade de natureza”;

o livro II corresponde a “ a idade da natureza”, que vai dos dois aos doze anos;

quanto ao livro III, este aborda a “idade da força”, que vai dos dozes aos quinze

anos de idade; o livro IV, “a idade de razão e das paixões”, volta-se para jovens de

quinze a vinte anos ; e, finalmente, o livro V, “ a idade de sabedoria e do

casamento”, que vai dos vinte aos vinte e cinco anos.

Rousseau, no inicio da obra, procura prevenir o leitor quanto ao método por

ele empregado, esclarecendo que Emílio, o aluno, terá uma educação que

respeitará o ritmo ditado pela natureza humana, ou seja, sem artificialismos e

imposições que contrariem esta sua natureza:

No que diz respeito ao que chamaremos a parte sistemática, que aqui não é senão a marcha da natureza,é ela que mais desconcertará o leitor; será também por aí, sem dúvida, que me atacarão, e talvez com alguma razão. Acreditarão estar lendo menos um tratado de educação. Que fazer? Não é sobre as idéias de outrem que escrevo, mas sobre as minhas. Não vejo as coisas como os outros homens; faz muito tempo que me chamaram a atenção para isto. Mas dependerá de mim dar-me outros olhos e exibir outras idéias? Não (ROUSSEAU, 1999, p. 4).

Sobre a “educação da natureza” de que nos fala Rousseau em seu Emílio,

Danilo Streck procura conceituá-la da seguinte forma:

Rousseau sabe que o termo natureza é muito vago e por isso procura explicá-lo, colocando-o ao lado de hábito para mostrar que a natureza é algo diferente. A educação é um hábito, mas existe uma natureza subjacente e anterior ao hábito e que se faz presente de formas previsíveis ou imprevisíveis. Pode-se torcer uma planta, mas ela tenderá a crescer na direção da luz. No caso da criança, Rousseau entende que a natureza lhe dá o principio ativo, responsável pela sua capacidade de fazer perguntas e aprender. Pode-se abafar esse princípio, mas no primeiro momento volta à tona (Streck, 2004, p.34).

Ainda a este respeito Dent, no seu Dicionário Rousseau, assim escreve no

verbete “natureza”:

Rousseau aplica a ideia de natureza e do que é natural a muitos aspectos da vida. Concebe o caráter do homem como naturalmente inato e criativo;

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retrata a relação primitiva e inquebrantável do homem com a natureza; baseia o saudável desenvolvimento educacional no respeito pela natureza; descreve a relação de Deus com o mundo criado e o envolvimento do homem nele na PROFISSÃO DE FÉ DO VIGÁRIO SABOIANO. No que se refere ao próprio mundo natural, Rousseau estava entre aqueles que instigaram a mudança na sensibilidade do desejo de “domesticar” a natureza, de fazê-la ostentar a marca do plano do homem, para a apreciação do rústico, do simples, do inato e aterrador na natureza, que é característico do romantismo (DENT, 1996, p.172).

É possível afirmar que Emílio vai além deste campo pedagógico sendo

interpretado como um verdadeiro texto da filosofia política, pois sua leitura se

relaciona diretamente com o Contrato Social na medida em que ambos tratam de

temas fundamentais do pensamento ético e político do genebrino, enfocando

questões como o homem, a sociedade, a liberdade, a igualdade e o poder. A este

respeito, vejamos uma reflexão de Matthew Simpson acerca da intenção do

genebrino quando da escritura de Emílio:

Devemos também recordar que o livro não é, na realidade, sobre como educar crianças. Tem um objetivo mais abstrato e filosófico de mostrar como a tese da bondade natural do homem pode ser reconciliada com a inegável imoralidade de muitos ou da maioria das pessoas, o que significa dizer que ele apresenta uma teoria da natureza humana e da sociedade. (SIMPSON, 2007, p.150).

Michel Soetard, professor e pesquisador francês, vê em seu Jean-Jacques

Rousseau, Coleção Educadores, uma profunda relação entre Emílio e o Contrato

Social, cabendo à educação o papel de recuperação da esfera política no corpo

social, lemos:

A realidade humana, daí em diante, será um processo essencialmente educativo que requer uma reconstrução da humanidade na base de interessas que cada um tem nela, começando pelo adolescente que tem a vantagem de poder viver este processo desde a sua origem. E é graças à educação que a política, ela mesma enredada em uma contradição sem saída, pode de novo recuperar seu sentido. Com este raciocínio, apenas tentamos recuperar a profunda relação entre Emílio e o Contrato social, tal como pensava Rousseau. Efetivamente, ele atribuía mais importância ao seu tratado de educação do que a seu opúsculo político, compêndio de uma obra mais ampla sobre as instituições políticas que ele jamais pôde concluir; se “os dois juntos formam um todo”, escreveu ele a um correspondente, fica claro que o Contrato social “deve se tornar uma espécie de apêndice” ao tratado de educação. É verdade que toda substância do Contrato social se encontra no Livro V do Emílio, mas sob a forma de “proposições e questões”, que devem ser examinadas e que não se transformam em princípios, “antes de serem suficientemente resolvidas”. É dessa forma, que se põe o dedo nas raízes da política no universo da educação (SOETARD, 2010, p.23).

À margem destas reflexões, efetivamente do que trata o Emílio? É uma obra

política? pedagógica? metafísica? mera literatura ficcional ou um trabalho que

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engloba todas essas esferas ou tudo isso num só livro? Milton Meira do Nascimento,

ao prefaciar Rousseau, a educação na infância, de Beatriz Cerizara, indica a

dimensão que o livro escrito pelo genebrino quer atingir ao enfatizar o panorama

vivido por Rousseau no século das Luzes:

Nesse quadro de degradação dos costumes, de ausência de liberdade, em que a desigualdade chegou ao seu ponto máximo, instaurando, de um lado, os senhores e, de outro, os escravos, que tipo de educação seria possível? A que reproduz a escravidão e a desigualdade? Esta é a que conhecemos: a escola que ensina a aceitar o jogo das aparências, da polidez, da afetação do saber. É contra essa instituição falida que Rousseau escreve seu: Emílio, um aluno fictício, preparado acima de tudo para conservar sua liberdade natural e para não se deixar levar pelo jogo as aparências e pela de cadência que se instalou em todos os níveis da vida do homem na sociedade. Resta saber se Emílio também não será arrastado pela correnteza dos vícios (CERIZARA, 1990, p.9).

Assim, o que pretendemos neste segundo capítulo é entender o papel que

tem a liberdade na formação pedagógica de Emílio e na sua formação como homem.

Neste processo Rousseau destaca a existência de três tipos de educação que

interferem no conhecimento do indivíduo. São elas: 1) a educação que provêm dos

homens; 2) outra que se adquire pelas coisas e; por fim, 3) a educação adquirida

diretamente pela natureza, devendo as duas primeiras se direcionarem para a

última. A educação da natureza aqui destacada seria responsável pelo

desenvolvimento interno de nossas faculdades, responsável pelo aprendizado, pela

necessidade de questionar e criar o interesse natural pelas coisas. Fiel às suas

convicções, ao longo de seu texto, percebe-se a sua opção por uma educação

formadora de um indivíduo preparado para a coisa pública, distante, portanto, do

individualismo.

1.1. Emílio, um aluno para a liberdade.

Ao longo de sua vida Rousseau recebeu varias influências, que ficariam

evidenciadas em seus escritos. É possível afirmar que o filósofo grego Sócrates fora

uma dessas. No seu Discurso sobre as Ciências e as Artes, há uma passagem que

confirma essa admiração, que possivelmente o acompanhou por toda sua obra e

vida, conforme Rousseau (1983, p.340), “Aí está, pois, o mais sábio dos homens no

julgamento dos deuses e o mais sábio dos atenienses na opinião de toda Grécia,

Sócrates, fazendo o elogio da ignorância!”.

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Assim, a abertura de Emílio ou da educação mostra um Rousseau que nos

remete a Sócrates, julgando-se quase incapaz de realizar seu intento:

Hesitei muito tempo antes de publicá-la e não raro ela me fez perceber, durante o trabalho, que não basta ter escrito algumas brochuras para saber compor um livro. Depois de vãos esforços para melhorá-la, creio que devo entregá-la como está, julgando que é importante chamar a atenção do público para este ponto e que, mesmo que minhas idéias fossem más, se fizesse com que outras boas idéias nascessem em outras pessoas, não teria perdido de todo meu tempo. (ROUSSEAU, 1999, p.3).

Por ser sido preceptor dos filhos do senhor de Mably em 1740 e ter conhecido

as reais dificuldades deste ofício, Rousseau assegura não possuir a capacidade

necessária para exercer tal atividade e garante ser conhecedor da grandeza dos

deveres que tem um preceptor. Rousseau prefere desenvolver sua narrativa

utilizando um aluno imaginário, de nome Emílio, sob a responsabilidade de um

preceptor até que ele atinja vinte e cinco anos de idade:

Sou muito consciente da grandeza dos deveres de um preceptor e sinto demais a minha incapacidade para aceitar semelhante emprego, de qualquer parte que seja oferecido, e o próprio interesse da amizade seria para mim apenas um motivo de recusa. Acredito que, depois de terem lido este livro, poucas pessoas serão tentadas a me fazer essa oferta, e peço a quem poderia sê-lo que não faça a inútil proposta. (ROUSSEAU, 1999, p.27).

Ao penetrarmos no texto, a percepção que se tem sobre o processo

educacional de Emílio é que ele está claramente baseado na liberdade e que esta se

torna o principal pilar de sustentação desta formação. Porém, em sentido oposto,

Starobinski afirma que na realidade o processo educativo de Emílio estava longe de

ser pautado pela liberdade tão defendida por Rousseau, estando Emílio preso a uma

poderosa teia de sutis coerções, como lemos:

A liberdade de Emílio é mantida inativa enquanto se governa a criança apenas pela sensação. Sem dúvida, o preceptor tem a intenção de favorecer – à sua hora – o despertar de uma responsabilidade plena. Mas durante toda a duração dessa educação, o aluno é inteiramente manobrado pelo preceptor. Se essa educação é uma educação para a liberdade, não é certamente uma educação pelo apelo a uma liberdade autêntica. Emílio se sente livre e não o é. Mil coerções invisíveis condicionam sua conduta: o mundo “natural” em que vive é na realidade obra do preceptor. Emílio é o cativo de uma armadilha refinada. Contudo, a maior parte dos leitores leu o Emílio como se Rousseau os convidasse a imitar a espontaneidade sensitiva da criança, e não a reflexão racional do preceptor que dirige a espontaneidade de seu aluno (STAROBINSKI, 2011, p.294).

Reconhecendo o estado de escravidão em que se encontra o homem do seu

tempo, Rousseau procura relacionar a educação com o valor da liberdade na

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formação de um indivíduo preparado para ser de fato livre. Observando a falta de

liberdade que persegue os indivíduos desde o nascimento Rousseau não poupa

críticas a um velho hábito de proteger as crianças e de enrolá-las em panos. Assim,

já nas primeiras páginas do Emílio, esta preocupação com os recém-nascidos,

tirando-lhes os movimentos pode demonstrar a preocupação de Rousseau com a

falta de liberdade destes pequeninos. Podemos pensar que a liberdade deve ser

uma conquista de todos e uma criança sem liberdade mesmo que de seus mais

básicos movimentos físicos pode, quando adulto, se acostumar com a servidão. Até

mesmo em pequenos casos cotidianos aparentemente sem importância podem

apontar para um referencial de liberdade na obra do genebrino, como se lê:

Mal a criança saiu do ventre da mãe e mal gozou da liberdade de movimentar e esticar seus membros e já lhe dão novos laços. Põem-lhe fraldas, deitam-na com a cabeça presa e com as pernas esticadas, com os braços pendentes ao lado; é envolta em panos e bandagens de toda espécie, que não lhe permitem mudar de posição. Feliz da criança se não a apertaram a ponto de impedi-la de respirar, e se tiveram a precaução de deitá-la de lado, para que as águas que deve devolver pela boca possam caiar por si mesmas! Pois ela não teria a liberdade de voltar a cabeça para o lado a fim de facilitar seu escoamento (ROUSSEAU, 1999. p.16).

Assim a liberdade, a naturalidade no trato com o bebê e até a simplicidade

são exigências necessárias como aponta Rousseau, criticando os costumes e

conhecimentos de sua época. Nesse sentido, a leitura de seus Discursos e, em

especial, o primeiro, pode descortinar o pensamento rousseauniano acerca das

ciências e seu uso. É possível pensar que esta rigidez e sobriedade de Rousseau se

devem à forte influência obtida pela leitura de Plutarco, passando a admirar os

romanos e os espartanos além dos filósofos estoicos dentre outros. Isto explica sua

defesa da simplicidade, seu apelo à vida rústica e sua crítica a uma erudição estéril

e às ciências que também aparecem ao longo de todo texto no Emílio. Aqui o

genebrino critica a medicina do seu tempo:

A única parte útil da medicina é a higiene, e mesmo assim a higiene é menos uma ciência do que uma virtude. A temperança e o trabalho são os dois verdadeiros médicos do homem: o trabalho aguça seu apetite e a temperança impede que abuse dele (ROUSSEAU, 1999, p.35).

Além da critica à medicina, Rousseau refuta a erudição no processo

pedagógico, pois, a seu ver, se fosse possível dividir a ciência humana em duas

partes, sendo uma destinada aos doutos e eruditos e outra aos demais homens,

esta seria superior comparada àquela que foi destinada aos primeiros.

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Rousseau se opõe a uma educação que se baseie exclusivamente nos

hábitos adquiridos maquinalmente. Para o genebrino, a própria natureza humana

pode se encarregar na instrução do Emílio, uma vez que é sábia, intrínseca e

naturalmente boa, contrapondo-se assim às instruções impostas pelos hábitos.

Rousseau (1999) alerta que o único hábito que devemos deixar a criança adquirir é

justamente não contrair nenhum. Rousseau procura indicar, ainda que

indiretamente, a força que a liberdade possui dentro de seu processo pedagógico ao

narrar situações domésticas, como aquela em que as crianças camponesas

expostas a certos insetos reagem sem qualquer receio, diferentemente das crianças

citadinas. Fica claro que em Rousseau o homem criado no campo leva ampla

vantagem em relação ao da cidade, a liberdade esta mais próxima da simplicidade e

da vida rústica. Por seus valores, a natureza e a vida silvestre assumem um

importante papel no pensamento do genebrino, como lemos na seguinte passagem:

No campo, tudo é diferente. A camponesa não fica todo o tempo junto ao filho; ele é obrigado a aprender a dizer bem claramente e bem alto o que necessidade que ela ouça. Nos campos, as crianças soltas, longe do pai, da mãe e das outras crianças, exercitam-se em se fazer ouvir à distância e a medir a força da voz pelo intervalo que as separa daqueles por quem querem ser ouvidas (ROUSSEAU, 1999, p.60).

1.2. A idade da natureza

A segunda fase da vida, que vai dos dois aos dozes anos de idade, é

retratada no livro II de Emílio. A construção de um indivíduo que viverá para a

liberdade requer tempo e muito preparo. As dificuldades que Emílio enfrentará na

vida serão muitas. Assim, no melhor estilo espartano, o preceptor não poupa seu

pupilo:

Longe de estar atento a evitar que Emílio se machuque, eu ficaria muito aborrecido se ele nunca se ferisse e crescesse sem conhecer dor. Sofrer é a primeira coisa que ele deverá aprender, e a que ele terá maior necessidade de saber (ROUSSEAU, 1999, p.66).

Rousseau nos remete ao referencial de educação Espartana, tendo nos

exercícios, no risco e na virtude algo útil à formação de seu jovem aluno. Emílio deve

brincar e viver em liberdade, mesmo que haja algum tipo de risco. Pequenos

incidentes sem importância devem fazer parte de sua formação, pois saber sofrer é

necessário. Os cuidados excessivos que são impostos às crianças, ainda que

motivados pela justa intenção de preservá-los, acabam por gerar indivíduos fracos e

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despreparados. Não deverá ser assim com Emílio, pois pequenos danos são

largamente compensados quando se vive em liberdade:

Que eu saiba nunca se viu uma criança em liberdade que se tenha matado, mutilado ou ferido seriamente, a menos que tenham colocado impensadamente em lugares altos, ou a tenham deixado sozinha perto do fogo, ou perto de instrumentos perigosos (ROUSSEAU, 1999, p.66).

A liberdade deve acompanhar a criança desde seus primeiros momentos,

sendo o cuidado excessivo dispensado pelos responsáveis considerado por

Rousseau nocivo na formação do adulto, sobretudo para a coragem pessoal, como

lemos:

O que dizer desses montes de aparelhos que juntamos ao redor da criança para armá-la contra a dor, até que, tornando-se adulta, ela fique à sua mercê, sem coragem e sem experiência, e acredite morrer à primeira picada e desmaie ao ver a primeira gota de sangue? (ROUSSEAU, 1999, p.66).

Para Rousseau, as atividades físicas como as brincadeiras servem para

estimular a coragem e a força da criança, não devendo ser esta poupada destas

práticas, ainda que cause lesões. É possível perceber neste processo de educação

que cada ação ou mesmo inação do preceptor visa colher um resultado futuro, nada

é feito sem que antes seja cuidadosamente planejado. Saber lidar com a dor que

resulta de brincadeiras infantis, porém gozando de liberdade, passa a ser mais uma

lição do preceptor:

Em vez de deixá-lo estragar-se no ar corrompido de um quarto, que seja levado diariamente até um prado. Ali, que corra, se divirta, caia cem vezes por dia, tanto melhor, aprenderá mais cedo a se levantar. O bem-estar da liberdade compensa muitos machucados. Meu aluno muitas vezes terá contusões; em compensação, estará alegre (ROUSSEAU, 1999, p. 67).

Aqui Rousseau nos dá uma boa noção de sua perspectiva de liberdade

política, ou seja, todo dissabor passageiro será válido, quando reina a liberdade.

Emílio seria educado para a liberdade. Assim, é possível perceber que a pretensão

de Rousseau vai além da exposição das etapas de educação formal do jovem

Emílio. Entendemos tratar de um processo dinâmico e político a relação existente

entre Emílio e seu governante. Na realidade há uma forte busca pelas virtudes

necessárias à formação do futuro cidadão Emílio, preparando-o para a vida voltada

ao coletivo com valores republicanos. Assim Rousseau escreve a respeito:

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Se não há objeto tão digno de riso quanto uma criança altiva, não há objeto mais digno de piedade do que uma criança medrosa. Já que com a idade da razão começa a servidão civil, por que antecipá-la com a servidão privada (ROUSSEAU, 1999, p.83).

Porém, o genebrino tem ciência de que cada fase instrutiva deve adequar-se

à idade e condição de Emílio, pois o rigor educacional não poderá se confundir com

a nefasta intenção de transformar uma criança em homem precoce:

A natureza quer que as crianças sejam crianças antes de serem homens. Se quisermos perverter essa ordem, produziremos frutos temporões, que não estarão maduros e nem terão sabor, e não tardarão em se corromper; teremos jovens doutores e velhas crianças. (ROUSSEAU, 1999, p. 86).

Deste modo, o primeiro de todos os bens que possui uma criança é a

liberdade e não a autoridade a que está submetido. A liberdade precede o controle a

que está submetida, pois o homem verdadeiramente livre é acima de tudo um ser

consciente, e só quer o que pode e faz o que verdadeiramente lhe agrada.

Rousseau atribui aos preconceitos e às instituições humanas a separação do

homem de suas inclinações humanas e a perda da liberdade. Para Rousseau, as

crianças no estado da natureza não gozavam de uma liberdade total, restrita apenas

aos adultos. Assim, para proteção do pequeno aluno, seu preceptor, também

defendia uma liberdade controlada nos primeiros anos de vida de Emílio.

Emílio não será incentivado a ter qualquer comportamento egoísta. A

liberdade que o jovem Emilio esta em contato o capacitará para viver em

coletividade de maneira adequada. Interessante perceber que em Emílio, Rousseau

já começa a desenvolver o conceito de vontade geral, conforme o Contrato Social,

como é possível constatar na seguinte passagem do tratado político-pedagógico:

Se há um meio de remediar esse mal na sociedade, esse meio é substituir o homem pela lei e armar as vontades gerais de uma real e superior à ação de qualquer vontade particular. Se as leis das nações pudessem ter, como as da natureza, uma inflexibilidade que nunca alguma força humana pudesse vencer, a dependência dos homens voltaria então a ser a das coisas; reunir-se-iam na república todas as vantagens do estado natural e do estado civil; juntar-se-ia à liberdade que mantém o homem sem vícios a moralidade que o educa para a virtude (ROUSSEAU, 1999, p.78).

Essa virtude que nos fala Rousseau será um componente indispensável em

sua teoria política. Assim o processo de educação de Emílio tem como traço

marcante a ausência de autoritarismo por parte do seu preceptor, isto é, é contrário

à educação praticada no século XVIII, fundada na pessoa do professor. Para

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Rousseau, a criança deve ser livre, a despeito dos limites necessários para garantir

a necessária liberdade. Assim, quando adulto, Emílio poderá amar a liberdade e dela

fazer bom uso. Crianças criadas como serviçais não podem ser homens livres.

Rousseau criticou severamente tal prática:

Por outro lado, quem não vê que a fraqueza da primeira infância aprisiona as crianças de tantas maneiras que seria bárbaro somar a tal sujeição a de nossos caprichos, retirando-lhes uma liberdade tão limitada, da qual podem abusar tão pouco e da qual é de pouca utilidade tanto para elas quanto para nós que as privemos? (ROUSSEAU, 1999, p.83).

Na realidade, a liberdade de que fala Rousseau deverá ser ensinada e

concedida desde a mais tenra idade, contudo, sempre de maneira ordenada. Vale

lembrar que para o genebrino a liberdade não deve ser confundida com a ausência

de deveres e obrigações os quais a criança deve se sujeitar:

Tentaram-se todos os instrumentos, menos um, exatamente o único que pode dar certo: a liberdade bem regrada. Não se deve educar uma criança quando não se sabe conduzi-la para onde se quer unicamente através das leis do possível e do impossível (ROUSSEAU, 1999, p.89).

1.3. Educação negativa

A “educação negativa” pensada por Rousseau é evidenciada em cada

pequeno gesto, orientação e estratégia do preceptor em relação ao pequeno aluno,

sempre com a intenção de educá-lo além de levá-lo a conhecer a liberdade. O que o

educador pretende é mostrar à criança a importância da liberdade, mesmo que

nesse processo haja eventuais estragos materiais. O mais importante é a intenção

da criança, e esta invariavelmente é boa. A bondade natural do homem ganha revelo

neste importante trecho do seu Emílio:

Não quero dizer que nunca fará estragos, que não se ferirá, que porventura não quebrará um móvel caro que se encontre ao seu alcance. Ela poderia fazer muito mal sem agir mal, pois a má ação depende da intenção de prejudicar, e ela jamais terá essa intenção. Se a tivesse uma única vez, tudo estaria perdido; ela seria má quase inevitável mente (ROUSSEAU, 1999, p.90).

Para explicar o conceito de “educação negativa” presente em Rousseau

Wokler escreveu:

Num programa de educação negativa, o conselho aos preceptores é que abandonem os livros e deem aulas em que as crianças possam aprender por experiência própria, às vezes em situações previamente engendradas de modo que transpareça uma possível percepção de que tais situações são decorrentes das coisas, e não dos homens, com isso preservando a

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liberdade deles, como a define Rousseau em Emílio (WOKLER, 2012, p.139).

Nessa perspectiva, é possível pensar que ao optar por uma educação livre,

não formal na condução intelectual da criança, é deixá-la para que a natureza lhe

sirva de guia. A fase etária a qual se aplica tal preceito vai do nascimento até os

doze anos de idade, segundo o genebrino. Nesse sentido, adverte Rousseau que se

trata do mais perigoso intervalo da vida. Assim, o mais importante na preservação do

futuro cidadão, nas palavras de Rousseau (1999, p.91), “Consiste, não em ensinar a

virtude ou a verdade, mas em proteger o coração contra o vício e o espírito contra o

erro”.

Esta pureza pretendida por Rousseau será importante para a formação

posterior desta criança. Emílio pode ser visto como arquétipo de um cidadão de

coração puro, longe dos vícios e erros, pronto para viver a liberdade e suas

responsabilidades dentro num plano político como descrito no Contrato Social.

A preparação para o exercício da liberdade não deixa de ser penoso.

Rousseau é sabedor de que a obra de um preceptor é lenta. Lendo Emílio temos a

impressão de que seu autor procura na realidade demonstrar, na forma de

pedagogia, a marcha evolutiva que o indivíduo deve percorrer para tornar-se

participante efetivo da res publica; longa, complexa e repleta, com avanços e

retrocessos, tendo em Emílio o protagonista. A liberdade é o que se busca neste

processo, tendo a clara preocupação com o desenvolvimento pessoal, moral e físico

de Emílio, o que não exclui pequenas privações diárias para fortalecer-lhe o caráter:

Vosso filho díscolo estraga tudo o que pega. Não vos aborreçais. Ponde fora de seu alcance o que ele puder estragar. Ele quebra os móveis que usa; não vos apresseis em lhe dar outros, deixai que sinta o prejuízo da privação. Ele quebra as janelas de seu quarto; deixai que o vento sopre sobre ele noite e dia se vos preocupardes com o resfriado, pois é melhor que ele esteja resfriado do que louco. Nunca vos queixeis dos incômodos que ele vos causa, mas fazei com que seja o primeiro a senti-los (ROUSSEAU, 1999. p. 101).

Como recorrente em Rousseau, o desenvolvimento da virtude é uma

preocupação constante na formação de Emílio o que lhe será útil na sua fase adulta.

1.4. Educação da natureza

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Para Rousseau, uma educação baseada no hábito, ou seja, na repetição

sistemática de atos, é nociva ao educando. Uma educação baseada na natureza,

além de preparar Emílio para a liberdade, também procura transmitir-lhe a

importância da virtude:

É preciso considerar mais o hábito da alma do que das mãos. Todas as outras virtudes que ensinamos as crianças parecem-se com essa. E é pregando-lhes essa sólidas virtudes que gastamos seus jovens anos de tristeza! Essa não é uma educação sábia! (ROUSSEAU, 1999, p.107).

Qualquer processo de educação que se baseasse na servidão seria criticado

pelo genebrino, daí seu apreço pela educação da natureza e sua crítica indireta

àquela praticada nos liceus do século XVIII. Esta educação natural é fundamental,

sobretudo na idade que vai até os doze anos, pois poderá preservar o coração

daquilo que no futuro poderia vir a corrompê-lo. A intenção de Rousseau em garantir

a todo preço a liberdade de seu Emílio, ensiná-lo a ser livre desde cedo e amar a

liberdade, tem como objeto ensinar a seu aluno que este amor deve impulsioná-lo a

sacrifícios quando esta liberdade estiver em risco.

Desta forma, para Rousseau (1999, p.109) seria fundamental afastar Emílio

do mal, em especial de sua prática, essa seria sua lição maior na infância, “A única

lição de moral que convém à infância, e a mais importante em todas as idades, é de

nunca fazer mal a alguém”.

Mais importante do que estabelecer um rígido código moral, Emílio não

deverá fazer o mal ao seu semelhante. Podemos imaginar que este princípio seja

importante em sua condição de adulto, pois o contato com a sociedade e seus

membros exige virtude no comportamento segundo a visão idealizada pelo

genebrino. Rousseau chega a afirmar que todas as verdadeiras virtudes devem ser

negativas, como podemos ler:

“As mais sublimes virtudes são negativas; são também as mais difíceis, pois

são sem ostentação e superiores até o prazer tão doce para o coração do

homem que é deixar alguém contente conosco” (ROUSSEAU, 1999, p.

109).

Assim, o coração de Emílio deverá ser preservado de todo o mal. Aquele que

foi educado na liberdade e para a liberdade deverá ser virtuoso.

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1.5. Rousseau, aprendiz de liberdade

No Emílio encontramos uma série de referências a pensadores caros ao

cidadão de genebra. Virtude, simplicidade e coragem despontam como referencial

no Emílio, algumas passagens são curiosas como a história de Catão, que sendo um

garoto taciturno, teimoso e tido como imbecil, transforma-se em homem na

antecâmara de Sila ante a um desafio que a vida lhe propôs. Também são

frequentes as citações aos grandes feitos às repúblicas de Roma e Esparta. Para o

jovem Emílio, estes personagens devem-lhe inspirar amor pela virtude e pela

liberdade, conforme podemos compreender. No Emílio, Rousseau procura se

apresentar como alguém independente, não participante dos círculos intelectuais da

época, portanto sem preconceitos e apto a avaliar o processo educativo com mais

clareza, sem as afetações próprias dos filósofos com quem conviveu. Aqui uma

pedagogia que se baseia numa vida rústica e natural deve prevalecer à erudição:

Leitores, lembrai-vos sempre de que aquele que vos fala não é nem douto, nem filósofo, mas um homem simples, amigo da verdade, sem partido, sem sistema; um solitário que, vivendo pouco com os homens, tem menos oportunidades de impregnar-se de seus preconceitos, e mais tempo para refletir sobre o que impressiona em seu comércio com eles (ROUSSEAU, 1999, p.117).

Esta postura dura do genebrino em relação aos filósofos fica evidenciada em

alguns de seus textos. Para Dent, a convivência com estes intelectuais desagradou

profundamente Rousseau:

E fica evidente nos seus demais escritos que, mesmo discordando freqüentemente de seus pontos de vista, nutre particular admiração por outros grandes escritores filósofos, como Platão, Montaigne e Hobbes. Entretanto, de um modo geral, evidenciou desprezo pela filosofia e os filósofos – se bem que, possivelmente, só porque achava que quem professava a disciplina ou ostentava esse nome tinha-a pervertido, deturpando o seu caráter próprio... Pode ser que o desdém do próprio Rousseau em relação aos filósofos tenha-se originado em seu constrangimento na presença dos philosophes , os intelectuais, parisienses que, com seu espírito ágil e contundente capacidade de argumentação, freqüentemente o faziam sentir-se obtuso e tolo. Mas alguns dos pontos que ele assinala a respeito de filosofia e filosóficos são poderosos e convincentes, e não são aplicáveis apenas à sua época (DENT. 1996.p, 134).

Justamente por essa independência intelectual que Rousseau parece ter

cultivado ao longo de sua jornada, alguns trechos do Emílio podem soar

contraditórios, em especial quando o genebrino refuta métodos tradicionais de

educação, baseados exclusivamente em livros, mapas, cálculos e hábitos. Nesta

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perspectiva, Rousseau não poupa sequer o uso da leitura na formação do pequeno

Emílio. A esse respeito, Soetard tem a seguinte explicação:

Não menor é o mal-entendido dos pedagogos, que têm confundido a proposição de um princípio de ação com uma diretiva que deve ser aplicada tal e qual. Quando Rousseau retarda, o mais possível, o acesso de Emílio à leitura, ele não quer dizer de modo algum que rechaça os livros, como tampouco que o Discours sur lês sciences et lês arts [Discurso sobre as ciências e as artes] visa à destruição da cultura. O que quer dizer Rousseau é que caso se apresente, prematuramente, à criança, textos já elaborados, juízos estabelecidos e abstrações sem sentido, encerram-se ela em um mundo pré-fabricado, no qual só se pensa por intermédio de outros ( SOETARD. 2010. p.20).

Desta forma, para a preservação de sua bondade natural Emílio terá seu

primeiro contato com a literatura somente quando completar doze anos. Vejamos:

A leitura é o flagelo da infância, e é quase a única ocupação que sabem dar. Assim que completar doze anos, Emílio saberá o que é um livro. Mas pelo menos, dirão, é preciso que ele saiba ler. Concordo, é preciso que ele saiba ler quando a leitura lhe for útil; até então, só servirá para aborrecê-lo (ROUSSEAU, 1999. p. 127).

A leitura de Emílio permite interpretar uma crítica indireta não só a educação

de época, mas também a própria formação moral do homem. É possível perceber na

educação dispensada a Emílio uma tentativa de identifica-lo, ainda que vagamente,

com a imagem do bom selvagem citado na obra política de Rousseau.

O genebrino condena a falta de independência e submissão tão comum no

homem de seu tempo. Para Rousseau (1999), o jovem Emílio seria o “aluno da

natureza”, dotado de interessantes características, meio estoico, meio selvagem, ou

ambos, como lemos no Emílio:

Quanto a meu aluno, ou antes, ao aluno da natureza, desde cedo treinado a bastar a si mesmo tanto quanto possível, ele não se habitua a recorrer continuamente aos outros, e muito menos a lhes exibir seu grande saber. Em compensação, julga, prevê, raciocina sobre tudo o que se relaciona imediatamente com ele mesmo. Não fala muito, mas age; não sabe uma palavra do que se faz na sociedade, mas sabe muito bem o que lhe convém (ROUSSEAU, 1999, p.131).

Rousseau procura demonstrar em seu tratado pedagógico-político a

importância capital que a liberdade exerce na formação de Emílio. Como já dito, o

genebrino não é adepto da educação formal, é possível acreditar que a razão esteja

na falta de liberdade que a mesma proporciona; mas apesar de árdua tarefa, é

importante saber lidar com a liberdade. Para que entenda a liberdade, Emílio terá um

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longo processo pedagógico. A qualquer momento, seu preceptor poderá se valer de

uma nova situação, usando até métodos não convencionais. Até mesmo situações

que poderiam constituir motivo para reprimenda acabam por ser tornar motivos de

elogios, pois como já afirmou o genebrino, a liberdade é o que busca incutir em seu

aluno, mesmo a custa de pequenos contratempos:

Jamais conseguireis criar homens sensatos se antes não criardes moleques; assim era a educação dos espartanos: em vez de coloca-los aos livros, começavam por ensina-los a roubar seu jantar. Será que por isso os espartanos eram grosseiros quando adultos? Quem conhece a força e a finura de suas réplicas? Sempre criados para vencer, esmagavam os inimigos em toda espécie de guerra, e os atenienses tagarelas temiam tanto suas palavras quanto seus golpes (ROUSSEAU, 1999. p.132).

É possível afirmar que o processo educativo de Emílio baseado em quatro

importantes pilares: “perder” o tempo, leitura remediada até os doze anos, e a

preservação do coração de todo mal e a liberdade, nos aponta um referencial

socrático, ao fazer da ignorância uma importante estratégia de aprendizagem para o

jovem aluno, como lemos.

Senhores, estais enganados; ensino a meu aluno uma arte muito longa, muito difícil, que vossos alunos certamente não têm: é a arte de ser ignorante, pois a ciência daquele que só acredita saber o que sabe reduz-se a pouquíssima coisa. (ROUSSEAU, 1999.p. 141).

Além destas questões, a criação de um homem virtuoso também implica em

certas exigências de ordem física. Assim, a formação de Emílio não desprezará uma

certa influência espartana impressa em Rousseau.

As pessoas criadas muito delicadamente só conseguem pegar no sono sobre plumas; as pessoas habituadas a dormir sobre tábuas conseguem dormir em qualquer lugar, não há cama dura para quem adormece ao deitar (ROUSSEAU, 1999. p.148).

Este ideal de virtude, coragem e amor pela liberdade, que é transmitido

cuidadosamente ao jovem Emílio por seu preceptor nos remete às posições que são

caras e foram defendidas pelo próprio Rousseau tanto em suas obras biográficas

como em seus projetos constitucionais, os quais abordaremos oportunamente em

nosso terceiro capítulo.

1.6. Emílio e a escolha de seu ofício

Emílio vai adquirindo uma formação interessante. Não faz qualquer distinção

entre diversão e trabalho, sendo este a realização de algo bom e também

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construtivo. É possível compreender a importância dada por Rousseau ao trabalho

como forma de ocupação, porém a liberdade e a virtude devem nortear tal prática.

Assim, ao escolher um ofício para Emílio seu preceptor foi criterioso, optando

pela marcenaria. Esta preferência se baseou na utilidade prática que a marcenaria

apresenta, além de ser limpa e criativa, também permitindo exercê-la com a

liberdade que não possui outros trabalhadores que necessitam de proprietários dos

meios de produção para exercê-la, como escreveu Rousseau:

Enfim, não gostaria dessas estúpidas profissões cujos trabalhadores, sem indústria e quase como autônomos, só aplicam as mãos num mesmo trabalho; os alfaiates, os costureiros de meias, os que talham pedras, de que serve empregar nessas profissões homens de senso? É uma máquina que leva outra Tudo bem considerado, o ofício que eu preferiria que fosse do gosto de meu aluno é o de marceneiro. É limpo, é útil, pode ser feito em casa; cansa suficientemente o corpo; exige do trabalhador habilidade e inteligência, e a elegância e o gosto não estão excluídos da forma das obras que a utilidade determina (ROUSSEAU, 1999. p. 258).

É possível afirmar que a utilidade para a vida prática e até a liberdade para

executar tal ofício deve servir de parâmetro na escolha de Emílio. Rousseau

condena as profissões que afeminam e amolecem o coração. O genebrino é

cáustico em comentar sobre certos ofícios, pois a seu ver, não contribuem para a

manutenção de importantes valores como a coragem e a virtude, como podemos ler,

certas profissões não escapam de sua pesada pena:

Nunca um jovem rapaz aspirou a ser alfaiate; é preciso ter arte para levar a esse ofício de mulheres o sexo para o qual ele não foi feito. A agulha e a espada não poderiam ser manejadas pelas mesmas mãos (ROUSSEAU, 1999. p. 256).

A influência dos antigos no pensamento de Rousseau também se manifestará

na escolha do ofício de Emílio, onde a robustez, a utilidade e a liberdade

caracterizam tal atividade.

Como se percebe no texto há um constante apelo a temas como a liberdade,

a virtude e a simplicidade, que transmitida em lições práticas também é destacada

pelo preceptor como indispensável na formação de Emílio. Leiamos o preceptor num

banquete com seu pupilo:

A comparação de um jantar simples e rústico, preparado pelo exercício, temperado pela fome, pela liberdade, pela alegria, com aquele banquete tão magnífico e tão ordenado bastará para fazer com que perceba que, todo o aparato do banquete não lhe tendo dado nenhum proveito real, e saindo do

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estômago igualmente satisfeito da mesa do camponês e daquela do financista, não havia nada mais em uma do que na outra que ele pudesse chamar de verdadeiramente seu (ROUSSEAU, 1999. p.243).

1.7. Emílio e o Contrato Social: o tema da liberdade

Ao ser preparado para a liberdade, Emílio deverá saber viver como homem

livre em sociedade. Emílio e Contrato Social foram escritos pelo genebrino e

publicados em 1762, sendo possível fazer uma associação entre estas obras e

interpretar Emílio como a representação do cidadão ideal de uma sociedade

democrática, descrita no Contrato Social. Escreveu Streck sobre a relação existente

entre os dois textos de Rousseau:

O contrato social está colocado à educação. As duas obras , Emílio e O contrato social, são escritas no mesmo ano (1762), e toda educação do Emílio é conduzida para que ele possa, no fim, viver numa sociedade regida pelo contrato (STRECK, 2008. p. 32).

Ao prefaciar o livro de Cerizara, Milton Meira do Nascimento também indica o

liame existente entre Emílio e o Contrato Social:

A questão que o próprio Rousseau se coloca é a possibilidade de reversão desse quadro. Ou seja, até que ponto um povo, há muito sob o jugo da servidão, conseguindo recuperar a liberdade, numa condição muito mais propícia à reprodução da dominação do que o desejo da liberdade? Tanto no plano individual quanto no social, em dois textos memoráveis, Emílio e Do Contrato Social, Rousseau nos convida a pensar sobre esta questão. No “Livro quinto” do Emílio, depois de completar o processo educacional, Rousseau dá entender que seu aluno mereceria viver em outro século. Isto é, sua proposta educacional é incompatível com a situação vigente de degradação dos costumes, de ausência de liberdade e de crescimento da desigualdade. Mas há uma fresta na janela. Quem sabe, num século futuro.No Contrato Social, quando tudo parece irremediavelmente perdido, há talvez, uma última chance (CERIZARA, 1990, p.10).

Desta forma, entendemos ser possível ver no Emílio um verdadeiro projeto

político que se encaixa no pacto social idealizado no Contrato Social.

Voltando a Emílio e suas ocupações, ao aprender um ofício, seu preceptor lhe

assegura mais que uma profissão, mas a possibilidade de exercer sua liberdade

pessoal, e assim não ser oneroso aos demais. Rousseau deplora aqueles que vivem

de rendas do Estado, chegando até mesmo a adjetivá-los como ladrões. A

perspectiva política rousseaniana está numa sociedade utópica, regida por princípios

de justiça, solidariedade e liberdade, também fundada no trabalho e no esforço

pessoal de cada individuo, como lemos abaixo:

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“Quem come na ociosidade o que não ganhou por si mesmo rouba-o, e um homem que vive de rendas, que o Estado paga para fazer, pouco difere, a meu ver, de um ladrão que vive à custa dos passantes” (ROUSSEAU, 1999. p.250).

Nesta última lição do preceptor ao jovem aluno, é possível pensar que temos

uma amostra da moral rousseauniana possivelmente oriunda de sua origem

calvinista e que também seria em parte aceita pelo marxismo clássico defensor da

cooperação e esforços mútuos.

Voltando à relação entre Emilio e o Contrato, é possível afirmar que uma

interpretação possível do tratado político-pedagógico nos remete para uma espécie

de resgate da bondade natural do homem, personificado na figura de Emílio, pois ao

educá-lo seu preceptor demonstra sua esperança no gênero humano, ou seja, ainda

poderá haver um projeto para uma sociedade justa, igualitária e livre formada por

Emílios. Assim, as duas obras podem apontar tal possibilidade ou uma utopia

“possível” como defendeu Carlos Nelson Coutinho. O jovem Emílio possuirá uma

formação compatível para viver nesta sociedade idealizada, porém, no íntimo, será

um homem natural e livre, como lemos:

Há muita diferença entre o homem natural que vive no estado de sociedade. Emílio não é um selvagem ao ser relegado aos desertos, é um selvagem feito para morar nas cidades. É preciso que saiba encontrar nelas o necessário, tirar partido dos habitantes e viver, senão como eles, pelo menos com eles (ROUSSEAU, 1999. p.265).

Assim Emílio possuirá o que há de melhor do homem natural, porém

preparado para viver no estado social. Trata-se da monumental tarefa de seu

preceptor, ainda que Rousseau acreditasse que o homem fosse inclinado

naturalmente para o bem.

Nessa perspectiva, invoquemos a breve reflexão de Arlei de Espíndola nos

Reflexos de Rousseau, ao tratar da questão da bondade natural da criança, afirmou

Arlei (2007, p.82): “Rousseau considera que a inclinação natural da criança é para a

benevolência, mas o curso da vida gera mudanças que a fazem má”.

O texto pedagógico de Rousseau mostra uma clara evolução do jovem aluno

e aproveita para destacar pontos importantes de sua incipiente e virtuosa

personalidade que nos remete a certos elementos do estoicismo, admirado e lido por

Rousseau. Nesta perspectiva, a liberdade pode gerar mais do que uma vida íntegra

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e valorosa, também pode ensinar a sair da vida em paz, após uma existência

laboriosa, pois o homem sábio que vive conforme a natureza também deve saber a

hora de partir. Escreveu Rousseau:

Emílio é laborioso, temperante, paciente, firme, cheio de coragem. Nem um exaltada, sua imaginação nunca aumenta os perigos; é sensível a poucos males e sabe sofrer com firmeza, já que aprendeu a lutar contra o destino. Com relação à morte, ainda não sabe bem o que seja, mas, acostumado a suportar sem resistência a lei da necessidade, quando for preciso morrer ele morrerá sem gemer e sem se debater; isso é tudo o que a natureza permite nesse momento odiado por todos. Viver livre e depender pouco das coisas humanas é o melhor meio de aprender a morrer (ROUSSEAU, 1999. p. 269).

Retrocedendo à questão da influência estóica em Rousseau e acreditamos

também figurar na educação de Emílio, defende o professor Arlei de Espíndola que

Rousseau fora leitor do filósofo estoico Sêneca e sua filosofia moral, contudo nada

obsta que o genebrino tenha tido contato com outros filósofos da Stoa. Em

particular, Arlei defende uma especial conexão entre o estoicismo senequiano e o

pensamento de Rousseau a partir de uma análise do Emílio ou da educação:

Com essa leitura do Émile, que se limitou ao recorte de tal alguns de seus princípios morais mais relevantes, pude passar a ideia do teor do primeiro remédio quer Rousseau apresenta para fugir dos males que atingem o homem na sociedade. Enquanto não chega ao problema das paixões, reflete muito claramente seu nexo com os livros de Sêneca e os demais estóicos (MARQUES et al. 2007. p.89).

É conhecida a simpatia que nutre Rousseau em relação à vida simples e

voltada para a natureza. A figura do homem rústico e simples sempre foi apreciada

pelo filósofo suíço. Não seria difícil que tal figura servisse de modelo para a

educação de Emílio. Rousseau nutre grande simpatia pelos selvagens, não só por

sua coragem, rusticidade e liberdade, mas por seu desprezo pelas luzes. O

preceptor de Emílio não escondia sua admiração:

De todos os homens do mundo, os selvagens são os menos curiosos e os menos entediados; tudo lhes é indiferente; não gozam das coisas, mas de si mesmos; passam a vida a não fazer nada, e não se entediam jamais (ROUSSEAU, 1999. p. 300).

Como se percebe ao longo da leitura do Emílio a liberdade é um tema

importante, pois a servidão seria o pior dos males a sobrecarregar sua vida. É uma

preocupação constante do preceptor que o jovem aluno possa entender quão

importante é a liberdade, como Rousseau (1999, p. 323) faz questão de destacar no

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texto, “Tendo crescido em meio à mais absoluta liberdade, o maior dos males que

pode conceber é a servidão”, bem ao estilo de La Boité.

1.8. Religião e liberdade no Emílio

A religião e a espiritualidade são temas frequentes nos textos de Rousseau. O

Contrato Social e o Emílio não deixam de abordar esta dimensão da vida humana,

mesmo que dentro de uma perspectiva aparentemente política. É importante

destacar que a “profissão de fé do vigário de Sabóia”, texto integrante do Emílio, lhe

valeu grandes perseguições políticas e religiosas tanto de franceses como de

suíços. Interessante notar que é nesta fase da narrativa que é apresentado a Emílio

a ideia do sagrado e de Deus.

Ainda sobre a profissão de fé, é possível afirmar que não se trata de um

capítulo estranho à narrativa de cunho pedagógico-político, pois para Rousseau a

religião também forma a base de uma boa educação. Dent no seu Dicionário procura

interpretar a intenção do cidadão de Genebra o incluí-lo no tratado texto pedagógico-

político:

O seu pretexto para incluir A profissão de fé neste ponto do livro é a necessidade de apresentar a Emílio idéias de religião e de expor o gênero de crença e obediência religiosa que seria apropriado à sua educação, de acordo com os requisitos adequados ao cultivo e preservação da natureza inata. Rousseau estivera considerando essas questões independentemente do resto do Emílio, e esta obra dificilmente teria sido afetada, exceto na dimensão religiosa específica que A profissão de fé lhe confere, se tivesse sido publicada em separado (como foi ulteriormente) ( DENT, 1996, p.186).

Toda crítica e perseguição que se abateram sobre Rousseau se devem à

maneira como fora abordada a religião na profissão de fé. Traçando uma rota oposta

àquele das religiões tradicionais de seu tempo, é possível entender que a liberdade

também deveria estar presente na relação com Deus, não havendo a necessidade

de intermediários ou estruturas hierarquizadas para se corresponder com o sagrado.

Uma simples observação aparentemente, porém perigosa se compreendida por

muitos. Era inevitável que o texto sofresse pressões do clero, contudo para o jovem

Emílio esse ensinamento fora transmitido da seguinte maneira:

Se Deus dissesse ao homem para destruir as paixões que lhe dá, Deus quereria e não quereria; estaria se contradizendo. Ele nunca deu essa ordem insensata, nada de semelhante está escrito no coração humano, e o que Deus quer que um homem faça não manda outro homem dizer, ele

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próprio o diz e o escreve no fundo de seu coração (ROUSSEAU, 1999, p. 273).

Rousseau reconhece a importância do sagrado na formação de Emílio, ainda

que tenha retardado a exposição destes temas ao aluno. Haveria o momento

oportuno onde a fé em Deus deveria ser cultivada, certamente em liberdade.

Também a religião teve sua importância no Contrato Social, tanto no aspecto

religioso quando político, vez que seria uma religião civil.

1.9. Sofia, amor e liberdade

Com seu amadurecimento, Emílio passa a ter novas lições e aventuras. É

desta forma que seu encontro com a jovem Sofia é narrado no último livro do

tratado. Além deste encontro, algumas ideias relativas ao Contrato Social figuram

neste livro V. Com boa carga de ternura Rousseau vai apresentando lentamente a

relação entre Emílio e Sofia, acompanhado de seu preceptor,além dos pais da

jovem. O texto procura traçar um perfil de Sofia com certas características

semelhantes a Emílio, sendo uma moça simples, recatada e dotada de certa

afetuosidade. Ao apresentar Sofia na trama, o genebrino aproveita para reunir

alguns preceitos morais na educação feminina, ainda que atualmente possam ser

interpretadas como autêntico machismo, fornecem interessante material de análise

sobre a representação do universo feminino aos olhos de Rousseau em pleno

século XVIII, como lemos abaixo:

A primeira e a mais importante qualidade de uma mulher é a doçura; feita para obedecer a um ser tão imperfeito quanto o homem, tantas vezes tão cheio de vícios e sempre tão cheio de defeitos, ela deve aprender cedo a suportar até a injustiça, assim como os erros de seu marido, sem se queixar, não é por ele, mas por si mesma que ela deve ser doce (ROUSSEAU,1999, p. 511).

Após contextualizar seu texto, é possível interpretá-lo como um verdadeiro

elogio ao comportamento austero, corajoso, paciente, semelhante às mulheres de

sua querida Esparta. As referências à Grécia antiga também são empregadas

quando o tema se volta para a educação feminina por formar indivíduos virtuosos.

Rousseau idealiza a mulher conhecedora de seu papel na constituição matrimonial e

na formação da sociedade, fortes e ao mesmo tempo frágeis por sua feminilidade, é

esta dualidade que confere a beleza da mulher rousseauniana e as distinguem dos

homens:

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Os encantos não se desgastam como a beleza, eles têm vida própria, renovam-se sem cessar e ao cabo de trinta anos de casamento uma mulher de bem que tenha seus encantos agrada a seu marido como no primeiro dia (ROUSSEAU, 1999, p. 574).

Como sabemos, Emílio tem uma educação alinhada à natureza humana, ou

como escreveu Rousseau a respeito do jovem, um selvagem a viver fora do estado

da natureza. Emílio necessita de uma mulher com semelhantes características. Esta

era a real preocupação do preceptor de Emílio, segundo o genebrino (1999, p. 500),

“Depois de ter procurado formar o homem natural, vejamos como deve formar-se

também a mulher que convém a esse homem”.

Ao tratar da jovem companheira de Emílio, Rousseau prossegue fazendo uma

interessante reflexão sobre as mulheres. Como na antiga Grécia, o genebrino

acredita na importância dos jogos e brincadeiras na formação destas. A liberdade

também deve nortear a criação das meninas, exatamente como foi feito com Emílio.

Mesmo pesando sobre Rousseau críticas contemporâneas por sua abordagem

feminina, é possível afirmar que a liberdade na criação das meninas que reclamou o

torna vanguardista para seu tempo. Para viver com um homem que foi criado em

liberdade para ser livre, Sofia também deveria estar preparada para ser livre:

Neste ponto, os conventos, onde as pensionistas têm uma alimentação grosseira, mas também muitas diversões, corridas, jogos ao ar livre e nos jardins, são preferíveis à casa paterna, onde a menina, alimentada delicadamente, sempre mimada ou repreendida, sempre sentada sob as vistas da mãe num recinto bem fechado, não ousa levantar-se, nem andar, nem falar, nem murmurar, e não tem nenhum momento de liberdade para brincar, pular, correr, gritar e entregar-se à petulância natural de sua idade; sempre ou relaxadamente perigoso ou severidade mal compreendida; nunca de acordo com a razão (ROUSSEAU, 1999, p. 504).

Liberdade, ainda que usada para brincar. Ser livre como fundamento de vida

e uma condição irrenunciável de qualquer indivíduo vivo. Possivelmente as

brincadeiras e os jogos não buscassem somente fortalecer os corpos das crianças,

talvez haja um sentido mais profundo na ideia do genebrino, porque não o

aprendizado político? Brincar em liberdade para viver em liberdade como adulto.

Semelhante à cultura indígena brasileira, onde os pequenos índios brincam de caçar

e quando adultos tornam-se exímios caçadores. Observando o lento trabalho do

preceptor, se conclui que a liberdade é um processo que se constrói de forma dura e

demorada, mirando um objetivo que vale a pena ser buscado.

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Rousseau critica certas artificialidades que ponham em risco aquilo que a

própria natureza encarregou de tornar belo. Enfeites e ornamentos que algumas

mulheres usam são prejudiciais, segundo o genebrino. Não contrariar a natureza

também pode ser uma forma de vivê-la em sua essência, e, portanto, ser livre. A

vaidade e o uso de enfeites são condenados por Rousseau, como fizera

anteriormente em seu primeiro Discurso, leiamos no Emílio:

Tudo que atrapalha e constrange a natureza é de mau gosto. Isso é verdade a respeito dos ornamentos do corpo quanto dos ornamentos do espírito. A vida, a saúde, a razão e o bem-estar devem vir em primeiro lugar; (ROUSSEAU, 1999, p. 506).

Novamente temos a herança grega e seu ideal de virtude, saúde e

simplicidade tão cara a Rousseau e cuidadosamente transmitida a Emílio.

Também as mulheres e a questão da bondade natural são tratadas no Emílio

de forma interessante, exposto pelo preceptor:

Dizem que as mulheres são falsas. Elas se tornam falsas. O dom que lhes é próprio é a habilidade, não a falsidade; nas verdadeiras inclinações de seu sexo, mesmo ao mentir, elas não são falsas (ROUSSEAU, 1999, p.537).

Emílio foi educado para virtude, para a liberdade e para a sociedade, seu

processo educacional, semelhantemente aos jovens gregos, deverá ter duração de

vinte e cinco anos de acordo com seu preceptor. A união com uma mulher virtuosa

também fora pensada, e uma vez concretizada poderia coroar o encerramento da

tarefa de seu preceptor, conforme escreveu Rousseau (1999, p.491) logo na

abertura do livro V: “Não é bom que o homem esteja só, e Emílio é homem;

prometemos-lhe uma companheira, é preciso dar-lha. Essa companheira é Sofia”.

Todo conhecimento adquirido por Emílio lhe será útil, pois além de estar sem

seu velho preceptor, também passará a ter novas responsabilidades de marido.

Amar uma mulher é a abertura de uma nova dimensão para Emílio, e viver tal

sentimento também é gozar de liberdade. Porém o caminho para a felicidade é longo

e acidentado, a liberdade sempre cobrará seu tributo. Antes do enlace definitivo, seu

preceptor continuará a ministrar conselhos úteis a seu ainda aluno:

Se quereis prevenir os abusos e fazer casamentos felizes, abafai os preconceitos, esquecei-vos das instituições humanas e consultai a natureza. Não unais pessoas que só se convenham numa dada condição e que já não se convirão se tal condição vier a mudar, mas sim pessoas que se convenham em qualquer situação em que se encontrem, em qualquer lugar

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onde morem e em qualquer posição social em que possam cair (ROUSSEAU,1999, p. 569).

Além da liberdade como importante valor na criação de Emílio, a virtude para

enfrentar as dificuldades do cotidiano sempre esteve presente nos ensinamentos de

seu preceptor. O casamento é um ambiente perfeito para tais contratempos, mesmo

que haja amor e cumplicidade, as dificuldades são inevitáveis, porém, o preceptor

enfatiza a importância da união de ambos:

Sim, afirmo que, ainda que todas as desgraças imagináveis devessem cair sobre os dois esposos bem unidos, eles gozariam de uma felicidade mais verdadeira chorando juntos do que a que conseguiriam com todas as riquezas da terra, envenenados pela desunião dos corações (ROUSSEAU, 1999, p. 569).

A mulher de Emílio deverá se parecer o máximo com seu marido. De alguma

maneira a criação rígida que teve o jovem rapaz também deverá encontrar eco em

sua futura esposa Sofia. Dentre as muitas características que Rousseau aprecia nas

mulheres, aparentemente a simplicidade é a que mais chama a atenção na leitura do

texto. É possível afirmar que Rousseau não se opõe que as mulheres adquiram

conhecimento, mas sua crítica está na erudição que desvia dos valores

fundamentais que o individuo necessita para ser virtuoso:

Mas eu preferiria ainda cem vezes uma moça simples e educada rudemente a uma moça erudita e intelectual que viesse estabelecer em minha casa um tribunal de literatura de que se faria presidenta. Uma mulher intelectual é o flagelo de seu marido, de seus filhos, de seus amigos, de seus empregados. (ROUSSEAU, 1999, p. 573).

Tal passagem se mostra coerente com a escolha pessoal do genebrino, que

casa-se com uma mulher simples e de pouca formação, permanecendo juntos até a

morte do filósofo.

O relacionamento de Emílio e Sofia se desenvolve na narrativa de Rousseau,

sendo possível perceber lições sobre a liberdade, mesmo que figurem de forma

indireta no texto. É importante destacar que Sofia também fora criada com boa dose

de liberdade, o que pode ser evidenciado com a rápida e segura autorização dada

por seus pais para iniciar o namoro com o jovem Emílio. Outra situação para análise

ocorre quando Emílio faz uma tentativa de beijar-lhe furtivamente, a negativa de

Sofia dá início a uma pequena briga de namorados; mais tarde e à guisa de

reconciliação na presença dos pais da moça e do preceptor, Emílio, desta vez com

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sucesso, beija sua namorada. Rousseau também nos fornece uma reflexão sobre a

liberdade e responsabilidade no diálogo que se dá entre mãe de Sofia e Emílio:

Consultai vosso amigo sobre vossos deveres; ele vos dirá que diferença há entre as brincadeiras que a presença de um pai e de uma mãe autoriza e as liberdades que se tomam longe deles, abusando de sua confiança e transformando em armadilhas os mesmos favores que, diante deles, são apenas inocentes (ROUSSEAU, 1999, p. 601).

Como se sabe, a liberdade tem seu preço e nem todos estão preparados para

vivê-la. Segundo crê a mãe de Sofia, aplicando uma ligeira admoestação em Emílio,

a liberdade para um homem honrado consiste em respeitar a liberdade concedida,

devendo o individuo agir como se estivesse à vista de todos, o que nos remete ao

imperativo categórico kantiano, assim se lê:

Dir-vos-á, senhor, que minha filha em nada errou para com o senhor, a não ser por não ver desde a primeira vez que nunca deveria tolerar; dir-vos-á que tudo o que se toma por favor torna-se um favor, e que é indigno de um homem honrado abusar da simplicidade de uma menina para usurpar em segredo as mesmas liberdades que ela pode tolerar diante de todos. Pois sabemos o que a decência pode tolerar em público, mas não sabemos até onde vai, na sombra do mistério, que se erige em único de suas fantasias (ROUSSEAU, 1999, p. 601).

Pelo diálogo citado se depreende que liberdade não significa

necessariamente fazer tudo o que se quer. Ser livre também implica em reconhecer

certos limites impostos. Emílio não tinha liberdade para fazer tudo o que quisesse

em relação a Sofia. Ser livre também implica em reconhecer limites. Não deixa de

ser um princípio aplicado na liberdade que se quer em sociedade.

Não se pode falar em liberdade sem pensar numa educação para tanto, que

trate a criança nesses ditames. Emílio foi criado para a liberdade:

Não é esse caso de Emílio, que, nada tendo feito na infância que não fosse voluntário e feito com prazer, ao continuar a agir da mesma forma quando só acrescenta o domínio do hábito às doçuras da liberdade (ROUSSEAU, 1999, p. 608).

Contudo a educação negativa a que recebeu Emílio, fundada na liberdade,

não pode gerar distorções. Como conta Rousseau a educação voltada para a

liberdade, longe de tornar Emílio individualista ou ocioso, o fez virtuoso e mesmo a

saudade de Sofia não o atormenta, como lemos:

Nos dias em que não a vê, não fica ocioso nem sedentário. Nesses dias, ainda é Emílio; não mudou de modo algum. No mais das vezes, percorre os campos das redondezas e estuda sua história natural; observa, examina as

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terras, suas produções, sua cultura; compara os trabalhos que vê com os que conhece; procura a razão das diferenças; quando considera outros métodos preferíveis aos da região, ensina-os aos agricultores; se propõe um melhor tipo de arado, manda fazer um conforme seus desenhos; se encontra uma pedreira de marga, ensina-lhes sua utilidade, desconhecida no lugar; não raro, ele mesmo põe mãos à obra; todos ficam admirados vendo-o manejar as ferramentas com mais facilidade do que eles próprios... (ROUSSEAU, 1999, p. 613).

A liberdade como pensou Rousseau é um processo que deve

permanentemente ser construído, não é algo que se tenha por acabado ou pronto.

Como oportunamente escreveu Coutinho, a liberdade deverá ser construída na

práxis, o que poderia ser aplicado a esta fase de Emílio:

Em outras palavras, a liberdade rousseauniana ainda que tenha uma gênese "natural" - atualiza-se através da práxis social, manifestando-se mais como um processo do que como um estado, É preciso levar em conta essa dimensão social e dinâmica do conceito de liberdade em Rousseau se se quer compreender plenamente o significado político da liberdade que ele irá colocar como pressuposto e resultado da sociedade gerada pelo contrato social legítimo (COUTINHO, 1996, p.12).

O aluno da liberdade, em sua formação, também deveria provar sua virtude.

Deixar temporariamente Sofia para empreender viagem foi a maneira encontrada

pelo preceptor. Mais do que levar Emílio a conhecer outros governos e povos,

podemos imaginar que o preceptor pretendia ensinar mais uma lição: a verdadeira

liberdade não comporta amarras, e o sentimento de amor e a pessoa de Sofia

podem ser amarras para Emílio. Não resta outra opção a Emílio senão seguir

viagem com seu preceptor:

Que é, então, o homem virtuoso? É aquele que é capaz de vencer suas afeições, pois então ele segue a razão, a consciência; faz seu dever, mantém-se na ordem e nada o pode afastar dela. Até agora só eras livre em aparência; tinhas somente a liberdade precária de um escravo a quem nada foi ordenado. Sê, agora, livre de fato; aprende a ter tornares teu próprio senhor; governa teu coração, Emílio, e serás virtuoso (ROUSSEAU, 1999. p.627).

Ao retornar Emílio finalmente desposa Sofia. O relato final deste

relacionamento descrito por Rousseau informa sobre a gravidez da moça. Emílio

solicita a seu preceptor e amigo que também desempenhe o mesmo papel por seu

filho, pedido para qual não houve uma resposta.

1.10. Emílio e Émile e Sophie ou os solitários e a liberdade

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Émile e Sophie ou os solitários foi escrito em 1762 e publicado postumamente

em 1780, tendo como objeto dar continuidade na biografia de Emílio que fora

publicada em 1762, em Emílio ou da educação. Mesmo não sendo considerado um

texto político, além de inacabado, Rousseau nos fornece interessantes elementos

relativos à sua perspectiva de liberdade. A narrativa é concebida na forma epistolar,

quando Emílio escreve a seu antigo preceptor, narrando suas desventuras desde

que se separaram o que envolve a traição de Sofia, a separação do casal e a

escravidão na qual caiu Emílio.

Emílio inicia sua carta afirmando que era livre e feliz, o que demonstra a

importância do tema da liberdade neste pequeno texto de Rousseau (2010, p.23),

“Eu era livre, era feliz, oh, mestre! Você fizera em mim um coração apropriado para

desfrutar da felicidade, e me dera Sophie” .

Infelizmente as cartas demonstram que Emílio não encontrou a felicidade que

em outrora experimentara no inicio de seu relacionamento com Sofia. Ambos se

desviaram das orientações dadas pelo preceptor, pois ao passo que Emílio se

encantou com as atrações da cidade, Sofia o traiu com o marido de sua amiga,

tendo como resultado desastroso uma gravidez indesejada.

Em tom triste, Emílio faz uma longa reflexão sobre seu aprendizado e seus

anos ao lado de seu mentor, reconhecendo a importância que a liberdade teve neste

processo, como lemos:

Minha felicidade foi precoce; começou quando nasci, iria acabar antes de eu morrer. Todos os dias de minha vida infância foram afortunados, vividos em liberdade, em alegria como em inocência; nunca aprendi a distinguir minhas instruções de meus prazeres (ROUSSEAU, 2010, p.25).

A mudança de comportamento é reconhecida com pesar, pois também

perdeu aquilo para o qual foi devidamente criado, a liberdade, como escreveu a seu

preceptor:

Todos meus laços tinham se afrouxado, todos os meus afetos tinham esfriado: no lugar da realidade, eu pusera um jargão de sentimento e moral. Era homem galante sem ternura, um estóico sem virtudes, um sábio ocupado com loucuras, do seu Emilé só me restavam o nome e alguns discursos. Minha franqueza, minha liberdade, meus prazeres, meus deveres, você, meu filho, a própria Sophie, tudo o que outrora animava, elevava meu espírito e fazia plenitude de minha existência, desvencilhando-me pouco a pouco de mim parecia desvencilhar a mim mesmo, e só deixava

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em minha alma abatida um sentimento importuno de vazio e aniquilamento (ROUSSEAU, 2010, p.31).

Em relação à traição sofrida, Emílio alterna momentos entre a mágoa e a

responsabilidade no fato. Contudo a franqueza de Sofia na confissão de certa

maneira atenuou sua conduta:

Depois de refletir mais detalhadamente sobre sua conduta e sua espantosa declaração, o que eu sentia, ao ver esta mulher tímida e modesta vencer a vergonha com a franqueza, rejeitar um afeto que seu coração renegara(...) Que força em não admirava naquela coragem de indizível grandeza, que nem ao preço da honra e da vida podia rebaixar-se à falsidade, e até no crime levava a intrépida audácia da virtude (ROUSSEAU, 2010,p.50).

Desiludido após saber do adultério Emílio abandonou seu lar e inicia uma

série de andanças onde desempenha funções que foram assimiladas quando estava

com seu preceptor. Conforme narra na segunda carta escrita ao antigo mentor,

acaba por se tornar escravo, neste ponto da narrativa Rousseau tece considerações

interessantes acerca da liberdade. Diante de sua inédita situação de serviçal Emílio

procura estoicamente compreender e aceitar rapidamente esta condição, como

lemos:

Estou mais livre que antes. Émile escravo! Continuava, eh! Em que sentido? O que perdi de minha liberdade primitiva?Acaso não nasci escravo da necessidade?Que novo jugo os homens podem me impor?O trabalho?Quando era livre, não trabalhava? A fome?Quantas vezes não suportei voluntariamente! A dor? Todas as forças humanas não me trarão mais dor do que a que um grão de areia pudesse me fazer sentir. A opressão? Será mais dura que a de minhas primeiras correntes, de que eu não queria me libertar? (ROUSSEAU, 2010, p.81).

É possível afirmar que no pequeno e inacabado texto de continuação,

Rousseau nos apresenta um Emílio envolto em diversos sofrimentos, porém

virtuoso, portando-se como um legítimo estoico.

Emíle e Sophie ou os solitários também remete à liberdade, pois a história se

dá num contexto onde Emílio, além de sofrer terrível decepção amorosa, também é

feito prisioneiro, ambiente totalmente diverso daquele que seus primeiros leitores

imaginariam. O que temos neste texto é a reflexão de um homem esmagado pelas

circunstâncias que o cercam, bem ao estilo das tramas kafkianas. Liberdade para

Emílio é viver de acordo com a necessidade ou com a natureza, mesmo que no jugo

da escravidão física:

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Por estas reflexões, cheguei à conclusão que minha mudança de condição era mais aparente que real; que se a liberdade consistisse em fazer o que se quer, homem algum seria livre, que todos são fracos, dependentes das coisas, da dura necessidade; que aquele que melhor sabe querer tudo o que esta ordena é o mais livre, já que nunca é forçado a fazer o que não quer. (ROUSSEAU, 2010, p.82).

Nascido para liberdade, ainda que saiba “carregar o julgo da necessidade”

Emílio se recente de sua condição de escravo e lidera um movimento de resistência

aos maus-tratos impostos pelo inspetor. Na presença do patrão que vem se certificar

do movimento paredista, Emílio sabe argumentar com inteligência e ganha a

simpatia do feitor, que o nomeia novo inspetor. É de se depreender pela sequência

do texto que Emílio em seu novo cargo soube usá-lo de forma justa e humana,

seguindo sua formação.

Infelizmente, o livro permanece inacabado. Contudo, a impressão que fica é a

da emancipação de seu protagonista maior, transformando o aparente fracasso em

oportunidade para a virtude, bem ao estilo do genebrino. Emílio gozou a liberdade

ainda que interiormente e quando esta lhe faltou por completo, lutou por melhores

condições para si e para os seus, reconquistando-a ainda que parcialmente. Desta

forma, a liberdade esteve presente no decorrer de toda narrativa, seja no Emílio,

onde o personagem nos é inicialmente apresentado, seja na continuidade

inacabada, mostrando sua fase adulta e tumultuada.

Após a investigação que este capítulo se propunha, passaremos a analisar no

próximo capítulo a liberdade no livro V do Emílio, que lança as bases iniciais do

pacto social e o próprio Contrato Social, ambos publicados em 1762.

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CAPÍTULO II – DO CONTRATO SOCIAL OU A LIBERDADE POLÍTICA

EM PARADIGMA

Inegavelmente o Contrato Social é um texto de extrema importância na obra

composta pelo genebrino. Seja por sua importância histórica, vide sua influência na

Revolução Francesa, seja pelo impacto que teve na história da filosofia política nos

últimos séculos. Como adverte Rousseau na abertura do livro, sua intenção era

produzir um tratado maior, porém é importante enfatizar que parte do conteúdo

tratado no Contrato também se encontra de forma mais resumida, em seu Emílio ou

da educação, publicado no mesmo ano, do qual ainda trataremos, antes de

investigarmos a liberdade no Contrato Social.

2.1. A liberdade no livro V do Emílio: a semente do Contrato Social

Neste capítulo continuaremos investigando a liberdade política em Rousseau.

É possível afirmar que a liberdade sempre foi uma real preocupação de Rousseau.

Como se sabe, Emílio ou da educação tem na educação seu objeto, porém como

visto, a importante questão da liberdade nunca foi negligenciada por seu autor ao

longo do livro.

Trabalharemos com o último capítulo do Emílio, pois lá encontramos os

fundamentos iniciais do contrato social rousseauniano. Para tanto investigaremos

duas questões presentes: a liberdade como objeto de aprendizagem do Emílio

amadurecido quando de sua viagem e separação de Sofia; e por fim, a gênese do

Contrato Social já presente no tratado pedagógico e político.

Importante destacar que semelhante ao Emílio, o Contrato Social foi

publicado em 1762. Sobre esta conexão entre as obras escreveu Dent:

Se o amor deles se consumar em casamento e família, então, como chefe de uma casa, Emílio converter-se-à em membro de um Estado. Rousseau pensa ser essencial que ele aprenda sobre a natureza e a base da ordem civil, pelo que inclui o que é, em substância, um breve sumário das principais ideias do CONTRATO SOCIAL (DENT. 1996. p.124).

Além de ser considerado um tratado pedagógico, Emílio ou da educação

também nos remete ao Contrato Social, pois o genebrino insere de maneira

resumida temas como governo, poder, participação, direito, democracia, contudo

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estas questões ganhariam melhor relevo em sua obra especificamente política e que

lhe resultaria, além de perseguições, muita popularidade, o Contrato Social.

Procuraremos analisar o processo educacional de Emílio com foco na

compreensão da liberdade. Para tanto enfatizaremos sua viagem, breve

distanciamento de Sofia e posterior retorno a sua cidade.

Emílio ainda não está pronto para compreender a liberdade em sua essência.

Por toda a trajetória de Emílio narrada na extensa obra homônima chega-se ao

entendimento de que o mesmo possui bom conhecimento acerca da liberdade, pois

foi educado para este fim e agora o processo educacional aproxima-se de seu fim,

como narrado no último livro do tratado. O jovem Emílio necessita conhecer o

significado da liberdade em sua integralidade e para tanto foi planejada

cuidadosamente por seu preceptor uma viagem educacional, mas que também pode

reservar a Emílio certas apreensões sentimentais.

2.1.2. A viagem de Emílio

Como descrevemos e analisamos no capítulo I da presente, por determinação

do preceptor e na sua companhia, Emílio faz uma viagem de cunho educativo com

duração de dois anos. Na prática, é como se Emílio passasse por um derradeiro

teste para se tornar de fato livre. Renunciar, ainda que de maneira temporária, aquilo

que se ama, pode ser um bom teste para ser de fato livre.

A liberdade que deve experimentar Emílio não pode conviver com qualquer

forma de subjugação ou paixões, ainda que seja o doce amor de sua Sofia. As

inclinações de Emílio devem se nutrir de valores imperecíveis, como narrou o

preceptor:

Assim, se quiseres viver feliz e sabiamente, dá teu coração apenas à beleza imperecível; que tua condição limite os teus desejos e teus deveres vençam tuas inclinações; estende a lei da necessidade às coisas morais, aprende a perder o que pode ser tirado; aprende a deixar tudo quando a virtude o ordena, a colocar-te acima dos acontecimentos, a afastar deles o teu coração antes que eles o dilacerem, a ser corajoso na adversidade, para nunca seres miserável, a ser constante em teu dever, para nunca seres criminoso (ROUSSEAU, 1999, p. 629).

Rousseau retrata com clareza o perfil do homem virtuoso, vivendo segundo a

natureza e, como bem escreveu, “acima dos acontecimentos”. Para Rousseau,

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“aprender a deixar tudo quando a virtude o ordena” será para Emílio a oportunidade

de realmente provar ser livre, pois ao empreender uma viagem e afastar-se

temporariamente de Sofia, certamente experimentaria a liberdade dos homens

virtuosos, cumpridores de seus deveres, a liberdade daqueles que a nada se

prendem.

Conceitos como soberania, vontade geral e liberdade são apresentados ainda

que de forma pouco profunda no último livro do Emílio, sendo mais bem

aprofundadas no Contrato Social. Assim lemos ainda no Emílio:

Tendo os particulares se submetido apenas ao soberano e não passando a autoridade soberana da vontade geral, veremos como cada homem, ao obedecer ao soberano, só obedece a si mesmo e como somos mais livres no pacto social do que no estado de natureza (ROUSSEAU, 1999, p. 652).

Portanto, para Rousseau, viver o contrato social com base na vontade geral

pode tornar o homem mais livre do que teria sido em pleno estado da natureza.

Provavelmente aqui Rousseau procura dimensionar a importância que teria a

vontade geral em sua teoria política, colocando-a como elemento capaz de criar uma

liberdade que exceda àquela outrora primitiva e selvagem.

Regressando de viagem e refletindo naquilo que viu e experimentou, Emílio

desabafa com certa melancolia sobre a liberdade:

Quanto mais examino a obra dos homens em suas instituições, mais vejo que, de tanto quererem ser independentes, eles se tornam escravos, e que gastam a própria liberdade em vãos esforços para garanti-la (ROUSSEAU, 1999, p. 667).

Aqui temos um Rousseau constatando a dificuldade para se alcançar a

liberdade numa sociedade movida pelo individualismo e aprisionada. A

impossibilidade que tem o indivíduo de interferir nos destinos políticos de sua

localidade também gera um estado de escravidão, ainda que tal fato não seja

percebido pelo homem.

O trabalho do preceptor se aproxima do seu fim e seu jovem aluno parece

compreender a verdadeira importância dos ensinamentos já transmitidos, como

podemos ler numa reflexão que trata da liberdade:

Acho que para nos tornarmos livres nada temos de fazer; basta não querer deixar de sê-lo. Foste tu, ó meu mestre, que me fizeste livre ensinando-me a ceder à necessidade.Venha ela quando quiser, deixar-me-ei levar sem

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constrangimento, e, como não quero combatê-la, a nada me apego para me segurar. (ROUSSEAU, 1999, p. 667).

Para ser livre é importante não fazer aquilo que obste a liberdade. Não se

trata de um imobilismo qualquer, mas de viver em conformidade com certas

necessidades, algo comum no pensamento estoico, que certamente influenciou o

genebrino.

É possível afirmar que a semente do Contrato Social está presente nas

últimas páginas do Emílio, mais precisamente no seu quinto livro. Como se sabe,

Emílio foi publicado em 1762, mesmo ano do Contrato Social, e não será exagero

afirmar que tais obras se complementam.

É visível a influência que exerceu Montesquieu no pensamento político de

Rousseau, pois segundo escreveu o genebrino aquele estaria apto a produzir uma

boa obra sobre o direito político, porém dedicou-se exclusivamente ao direito

positivo, contrariamente a Grotius e Hobbes que não trataram adequadamente do

tema, atraindo a crítica costumeira do genebrino.

Os fundamentos iniciais do direito político, que viria a se tornar no Contrato

Social são apresentados na forma de ensinamento ao jovem Emílio para sua boa

formação social, como lemos:

No entanto, quem quer julgar de modo sadio os governos tal como existem é obrigado a reunir os dois estudos; é preciso saber o que deve ser para o bem julgar o que é. A maior dificuldade para elucidar essas importantes matérias é interessar um particular a discuti-las e a responder a estas duas questões: O que me importa? E o que posso fazer? Colocamos o nosso Emílio em condições de responder a ambas (ROUSSEAU, 1999, p.647).

Questões como escravidão, alienação, liberdade se interligam na concepção

contratualista pensada pelo genebrino e compartilhada com o Emílio. Aqui Rousseau

procura didaticamente trazer o germe do contrato social como pacto, demonstrando

sua importância e fundamento:

E então, se um escravo não pode alienar-se sem restrições a um senhor, como pode um povo alienar-se sem restrições a um chefe? E, se o escravo permanece sendo juiz da observação do contrato por seu senhor, como o povo não permanecerá sendo o juiz da observação do contrato por seu chefe? (ROUSSEAU, 1999, p.650).

Diante de uma questão tão complexa como pensar num instrumento que

possibilitasse o homem ser livre mesmo fora do estado da natureza, trazendo

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liberdade e igualdade dentro de um cenário injusto e iníquo, Rousseau apresenta ao

leitor do Emílio a ideia do contrato como base da sociedade civil, mecanismo capaz

de garantir a liberdade política:

Já que antes de eleger para si mesmo um rei o povo é um povo, o que então o tornou tal senão o contrato social? O contrato social, portanto, é a base de toda sociedade civil e é base de toda sociedade civil e é na natureza desse ato que se deve procurar a da sociedade que ele forma(ROUSSEAU,1999, p.650).

O preceptor procura apresentar embora resumidamente o contrato ideal para

o jovem Emílio, dimensionando este importante instrumento social, inclusive tratando

da vontade geral, ponto alto em sua teoria política, como lemos:

Procuraremos saber qual é o teor desse contrato e se não podemos enunciá-lo aproximadamente por esta fórmula: Cada um de nós põe em comum seus bens, sua pessoa, sua vida e toda a sua potência, sob a suprema direção da vontade geral, e recebemos em bloco cada membro como parte indivisível do todo. (ROUSSEAU, 1999, p.650).

Nesta fase da narrativa do Emílio, onde o genebrino apresenta as primeiras

linhas de sua perspectiva contratualista, são trazidos conceitos indispensáveis para

a compreensão do funcionamento do mecanismo político e social os quais também

seriam tratados no Contrato Social. Estes termos permitem um primeiro contato com

a governança pensada por Rousseau, pois ainda que de forma resumida, procura

tratar das questões relacionadas ao corpo político, o soberano, o Estado e o poder,

temas caros ao pensamento político do autor:

Suposto isso, para definir os termos de que precisamos, observaremos que, no lugar da pessoa particular de cada contratante, esse ato de associação produz um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quantas vozes há na assembleia. Essa pessoa pública toma em geral o nome de corpo político, o qual é chamado por seus membros de Estado quando é passivo, de soberano quando é ativo e de poder quando comparado a seus semelhantes. Com relação aos próprios membros, eles recebem o nome de povo, coletivamente, e chamam-se em particular cidadãos, como membros da cidade ou partícipes da autoridade soberana, e súditos, como submetidos à mesma autoridade (ROUSSEAU, 1999.p.650-651).

Tanto o papel do soberano como a vontade geral, ideias fundamentais no

contrato, já são tratados com certa clareza desde o Emílio, o que nos dá a

verdadeira importância destes na obra política do genebrino. A esta ideia se liga de

forma radical a liberdade do indivíduo. O soberano como instância interna e vital

para o funcionamento do contrato poderia, inclusive, garantir uma liberdade maior

que aquela desfrutada no estado da natureza, segundo escreveu Rousseau:

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Tendo os particulares se submetido apenas ao soberano e não passando a autoridade soberana da vontade geral veremos como cada homem, ao obedecer ao soberano, só obedece a si mesmo e como somos mais livres no pacto social do que no estado da natureza (ROUSSEAU, 1999. p.652).

De maneira apropriada para um resumo do Contrato Social, Rousseau

também faz breve análise sobre as três possíveis formas de governo: democracia,

aristocracia e governo real. Detalhe curioso reside no fato que desta feita Rousseau

não coloca a Democracia como uma forma de governo restrita aos deuses, mas

limita-se a afirmar que na situação em que o soberano confia a guarda do governo a

todo o povo ou a maior parte do povo, teremos aí a democracia.

Rousseau aproveita varias oportunidades na narrativa para demonstrar suas

posições morais. Emílio faz uma reflexão relacionando a liberdade e as poses

materiais, o que na visão de Rousseau não constitui tarefa simples. Para Emílio,

jovem abastado, seria fundamental afrouxar qualquer laço que pudesse separá-lo da

virtude, pois como afirmou o próprio jovem: “Rico ou pobre serei livre. Não o serei

apenas em tal país, em tal região; sê-lo-ei por toda a terra”.

Posteriormente Emílio terá a oportunidade de comprovar tal disposição,

quando se torna escravo em terras distantes e ainda assim declara sentir-se

completamente livre.

Para que se viva a liberdade o indivíduo deve estar em conformidade com a

natureza, sujeito às dificuldades e sobressaltos neste percurso, segundo acreditava

o genebrino. Do final da narrativa emerge um Emílio forte e virtuoso, convicto de seu

papel na sociedade, como lemos na passagem abaixo:

Que me importa minha condição na terra? Que me importa onde estou? Em toda a parte onde há homens, estou junto a meus irmãos; em toda a parte onde há homens, estou em casa. Enquanto puder permanecer independente e rico, terei com que viver e viverei. Se minha riqueza me subjugar, abandoná-la-ei sem problemas, tenho braços para trabalhar e viverei. Se meus braços me faltarem, viverei se me sustentarem, morrerei se me abandonarem; também morrerei ainda que não me abandonem, pois a morte não é um problema da pobreza, e sim uma lei da natureza. Venha a morte quando vier, desafio-a, ela nunca me surpreenderá fazendo preparativos para viver; nunca me impedirá de ter vivido (ROUSSEAU, 1999. p. 668).

Ainda na parte final do texto do Emílio, o genebrino faz uma relação entre a lei

formal e a liberdade. Por lei formal podemos considerar aquela de maneira diversa

da vontade geral tratada no Contrato Social. Assim o cidadão de genebra aponta a

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fragilidade das leis para lidar com temas delicados e ao mesmo tempo fundamentais,

como a liberdade dos homens. Para Rousseau, estas leis serviriam para criar um

cenário impróprio para a liberdade, responsáveis pela manifestação do interesse

particular e paixões pessoais entre os homens. A verdadeira liberdade deveria ser

escrita no coração do homem por sua consciência e razão em leis eternas, como

lemos:

É em vão que aspiramos à liberdade sob a salvaguarda das Leis. Leis! Onde elas existem e onde são respeitadas? Em toda parte só viste reinar sob esse nome o interesse particular e as paixões dos homens. Mas as leis eternas da natureza e da ordem existem. Para o sábio, são como uma lei positiva; são escritas no fundo do seu coração pela consciência e pela razão; é a elas que deve sujeitar-se para ser livre, e só é escravo quem age mal, pois fá-lo sempre contra a vontade (ROUSSEAU, 1999, p.669).

A liberdade também é escrita no coração humano, pela consciência e pela

razão, como fora ensinado ao jovem Emílio. A lei positiva sem a liberdade nada mais

será que um repositório de letras mortas e que escravizam.

Rousseau afirma que a liberdade vai além dos governos e suas formas, mas

em lugar especial, bem longe dos homens vis, como lemos abaixo:

A liberdade não está em nenhuma forma de governo, ela está no coração do homem livre; ele a carrega consigo por toda parte. O homem vil arrasta a servidão por toda parte. Um seria escravo em Genebra, e o outro, livre em Paris (ROUSSEAU, 1999, p. 669).

É possível pensar que além de toda complexidade dos temas apresentados

no Emílio ou da educação, em especial seu último livro, em nosso entender, tem o

grande mérito de indicar as primeiras linhas do contrato social rousseauniano,

introduzindo seu leitor na densidade e importância que o tema possuiu.

2.2. O Contrato Social legitimo

Ao abrir o Contrato Social Rousseau enfatiza a importância de nascer em

Genebra, um Estado livre, pois ainda que não fosse príncipe ou legislador, sentia-se

a vontade para lidar com um tema tão complexo. Resultado final de uma obra que

pretendia ser mais extensa, o Contrato Social é composto de quatro livros, publicado

em 1762, e trata fundamentalmente da organização social e política ideal aos olhos

de Rousseau, ainda que seja reiteradamente interpretado no nível normativo do

dever-ser.

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Starobinski vê uma dimensão profunda no Contrato Social de Rousseau, algo

belo e comovente pensado por Rousseau:

Supondo-se que uma sociedade possa edificar-se na transparência, suponde-se que todos os espíritos cosintam em abrir-se uns para os outros e que abdiquem de toda vontade secreta e “particular” – essa é a hipótese do Contrato social -, então nada permite privilegiar o indivíduo à sociedade (STAROBINSKI, 2011, p.65).

Dessa forma o contrato rousseauniana pressupõe doação, onde os cálculos

egoístas estão completamente descartados.

Rousseau abre o primeiro capítulo com uma passagem que se tornou

marcante em sua produção política, pois reconhece o estado de escravidão do

homem ainda que aparentemente tenha nascido livre:

O homem nasce livre e por toda parte se encontra sob grilhões. Aquele que mais acredita ser o senhor dos outros não deixa de ser mais escravo do que eles. Como ocorreu esta mudança? Ignoro-o. O que pode torná-la legítima? Creio poder resolver essa questão (ROUSSEAU, 1996, p.70).

Importante destacar que o genebrino não propunha necessariamente uma

ruptura ou revolução. Podemos entender que revolucionárias são as ideias de

Rousseau, não sua proposta em si. Na realidade, suas ideias são vanguardistas, na

medida em que colocam os indivíduos coletivamente no centro de sua política.

Como já dito, a obra está no campo do dever-ser, mas Rousseau procura refletir

como legitimar um cenário sem liberdade, tornando o homem livre mesmo que fora

do estado da natureza.

Podemos interpretar que em certos momentos a obra de Rousseau parece se

relacionar, como vimos entre o Emílio e o Contrato Social. Para Robert Wokler há

uma estreita conexão entre o Contrato social e o segundo Discurso:

De fato, o Contrato social parece abordar às avessas o tema do Discurso sobre a origem da desigualdade, retratando um pacto de associação que une os cidadãos, em vez de separá-los, e salvaguardando os ideais igualitários de participação pública que consolidam sua liberdade, em vez de destruí-la (WOKLER, 2012,p.85).

Seja pelas polêmicas que ganhou, por suas rejeições e naturalmente por seus

defensores, o Contrato Social acabou por se tornar um clássico na filosofia política.

A sua interpretação não pode ser considerada uma tarefa das mais fáceis, como

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bem destacou Robert Derathé, em seu Rousseau e a ciência política de seu tempo,

como lemos:

Em virtude mesmo das múltiplas alusões que ele traz, e cujo sentido escapa ao leitor atual, o Contrato Social continua sendo um dos textos mais difíceis da literatura política (DERATHÉ, 2009, p.22).

Pelas diversas interpretações que mereceu ao longo dos anos demonstrada

brevemente em nossa introdução, concordamos com a afirmativa de Derathé sobre

a complexidade do texto político de Rousseau.

O Contrato Social tem seu fundamento na vontade popular de seus cidadãos.

A liberdade e a igualdade constituem, portanto, elementos nucleares deste pacto,

sendo que a força e a brutalidade não podem gerar normas de conduta ou o direito

estabelecido, como afirmou Rousseau (1996, p.73): “Convenhamos então que a

força não estabelece o direito, e que só se está obrigado a obedecer aos poderes

legítimos”.

2.2.1. A liberdade como valor inalienável

Pode-se afirmar que a ideia de liberdade aparece em toda extensão do

Contrato Social, pois Rousseau não enxerga seu modelo social operando de forma

autoritária. Sua concepção de liberdade também foi construída pela influência de

pensadores que foram importantes na sua formação. Rousseau cita em seus textos

com mais frequência Platão, Maquiavel, Plutarco e Montesquieu. Para o genebrino,

o homem de fato nasce livre, ainda que em essência, e mesmo que pretendesse

alienar-se, não conseguiria, pois as futuras gerações, como seus filhos já nasceriam

livres:

Mesmo que cada um pudesse alienar a si próprio, não poderia alienar seus filhos; esses nascem homens livres, sua liberdade lhes pertence e ninguém pode dispor dela a não ser eles mesmos (ROUSSEAU, 1996, p.74).

A liberdade é um bem inalienável, pois ao nascer o homem se faz livre. O

genebrino em sua reflexão sobre a liberdade faz oposição expressa à escravidão:

Renunciar à sua liberdade é renunciar à sua condição de homem, aos direitos da humanidade, e até mesmo aos próprios deveres. Não é possível qualquer compensação para alguém que renuncie tudo. Tal renúncia é incompatível com a natureza do homem, e destruir sua vontade de toda a natureza é o mesmo que destruir suas ações de toda moralidade. Enfim, trata-se de uma convenção vã e contraditória estipular, de um lado, uma

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autoridade absoluta,e, de outro, uma obediência sem limites.Não fica evidente que não se está absolutamente comprometido com aquele de quem se tem o direito de exigir tudo, e que essa única condição, sem equivalência, sem troca, acarreta a nulidade do ato? Pois que direito terá meu escravo contra mim, uma vez que tudo aquilo que ele tem me pertence, e que seu direito sendo o meu, esse meu direito contra mim mesmo é uma palavra sem sentido? (ROUSSEAU, 1996, p.75).

Para Rousseau, ao renunciar a liberdade deixamos de ser humanos. A

liberdade assume um papel de destaque no contrato por ele idealizado. Não

desprezando de sua percepção o homem selvagem e o estado da natureza,

Rousseau pensa a política mais adequada para o homem do estado civil em sua

teoria política.

Rousseau se coloca contrário à escravidão política e física, como se pode

compreender de seus textos políticos, além disso, seu contrato pode ser interpretado

como uma consagração da liberdade:

Assim, qualquer que seja a forma de se encarar as coisas, o direito de escravidão é nulo, não somente porque é ilegítimo, mas porque é absurdo e não tem qualquer significado. Palavras como escravidão e direito são contraditórias, excluem-se mutuamente (ROUSSEAU, 1996, p.77).

A servidão e a liberdade não podem conviver harmoniosamente no contrato

social pensado por Rousseau, pois se excluem. Rousseau vê na liberdade política

uma possibilidade de resgatar a liberdade natural perdida.

2.2.2. Contrato Social e a liberdade natural

Segundo Rousseau, o homem no estado de natureza, livre e sem regras

sociais, foi desenvolvendo novas práticas visando sua conservação. Em certo

momento, foi necessária a união de forças e novas regras sociais como narrado no

segundo Discurso. É a esta complexa questão que Rousseau volta a se dedicar no

primeiro livro do Contrato Social, em suas palavras:

Ora, como os homens não podem engendrar novas forças, mas apenas unir e dirigir as que já existem, não têm outra forma de se conservar, a não ser formar por agregação um somatório de forças que possa agir sobre a resistência, movido por um único interesse e agindo em conjunto (ROUSSEAU, 1996, p.78).

Sobre este tema, pode-se afirmar que os indivíduos no estado da natureza e

em face dos obstáculos encontrados acabaram por construir um pacto que os

conservasse. Nesse sentido leiamos Starobinski:

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Quanto ao Contrato social, atribui ao obstáculo uma função que não é menos importante: por terem-se chocado com os obstáculos, os homens descobrem a necessidade do pacto social: “Presumo os homens chegados a esse ponto em que os obstáculos que prejudicam a sua conservação no estado de natureza prevalecem por sua resistência sobre as forças que cada indivíduo pode empregar para manter-se nesse estado”. Novo exemplo de uma mutação decisiva que se efetua em virtude de um esforço contra o obstáculo. A adversidade das coisas determina a invenção de uma forma de existência e de uma organização social inteiramente novas. Pode-se dizer, sem receio de deformar o pensamento de Rousseau tal como se exprime no segundo Discurso e no Contrato, que a humanidade cria a si mesma no contato com o obstáculo (STAROBINSKI, 2011, p.298).

A necessidade do pacto aproximou os homens, formado em outrora um pacto

iníquo. O pacto justo, livre e igualitário, presente no Contrato Social faz o

contraponto a uma sociedade que vive sob os grilhões, ainda que não perceba.

É possível acreditar que o homem no estado da natureza gozava de uma

liberdade natural, pois não vivia em sociedade, com as limitações que esta impõe.

Com a formação da sociedade a liberdade foi diminuindo, devido a disputas e

interesses entre os homens. Este cenário por certo incomodou Rousseau que, em

pleno século XVIII marcado por disputas políticas, governos autoritários e ausência

de liberdade política em grande parte da Europa, desenvolveu uma argumentação a

favor de outro modelo de sociedade. Assim o genebrino apresenta no seu texto o

problema central a ser trabalhado no Contrato Social:

Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado de toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedeça a si mesmo, permanecendo tão livre quanto antes. Esse é o problema fundamental que o contrato social soluciona (ROUSSEAU, 1996, p.78).

Esse Contrato Social pode ser pensado como uma associação humana onde

a obediência a si mesmo garanta a liberdade política em substituição àquela

liberdade natural existente quando o homem esteve no estado da natureza. Este

contrato deveria resgatar o homem da escravidão originada com a perda da

liberdade existente no estado da natureza, momento em que se forma o pacto social

injusto e iníquo. Rousseau pensa numa liberdade política que possa substituir a

liberdade natural existente no estado da natureza. Porém o genebrino adverte sobre

a necessidade de uma coesão para o sucesso deste pacto social. Assim ele escreve

a respeito:

As cláusulas desse contrato são de tal forma determinadas pela natureza do ato, que a menor mudança as tornaria vãs e sem efeito, de modo que,

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mesmo sendo formalmente enunciadas, são as mesmas em toda parte tacitamente admitidas e reconhecidas (ROUSSEAU, 1996, p.79).

Seria possível não mais estar no estado da natureza e mesmo assim ser

livre? Sim, garante Rousseau. Vale ressaltar que no estado da natureza o individuo

sentiu a necessidade de se agregar a outros indivíduos para garantir a sobrevivência

mútua, dando início a uma longa história de dominação e falta de liberdade, pois

este pacto se mostrou iníquo e lucrativo para alguns em detrimento de muitos.

Refletindo sobre a situação, o recurso pensado por Rousseau no Contrato Social foi

um pacto voltado para o interesse público, com certa inspiração nas antigas

repúblicas gregas e romanas por ele tão admiradas. Assim, alienar sua liberdade

pessoal em favor da coletividade não é simples, mas como garantiu o genebrino, o

que se pretende é permanecer tão livre quanto antes, como fora no estado da

natureza. Vejamos:

Todas essas cláusulas se reduzem claramente a uma, a saber, a total alienação de cada associado com todos os seus direitos, a toda a comunidade: primeiramente, dando-se cada um por inteiro, a condição é igual para todos, e sendo a condição igual para todos, ninguém terá interesse em torná-la onerosa aos outros (ROUSSEAU, 1996, p.79).

A alienação total de cada associado é a condição indispensável para o

funcionamento do pacto social, que indica uma moral republicana.

Esse republicanismo que emerge em Rousseau pode ter influências diversas.

Dentre essas, é possível pensar que a própria Constituição de Genebra tenha sido

marcante para produção do Contrato Social, porém não é essa a opinião de

Derathé:

Se o contrato social teve na política e nas polêmicas genebrinas um papel de primeiro plano, ele não contudo um livro de inspiração genebrina. Rousseau o compôs sem conhecer seriamente as disposições da constituição de Genebra, e quando as circunstâncias o levaram a estudá-la de perto, ele pôde constatar até que ponto ele se distanciava de seus princípios, já que finalmente ele pediu sua revisão (DERATHÉ, 2009, p.49).

Em que pese tal controvérsia, nos parece correto afirmar que a leitura dos

antigos, sobretudo relacionada à história das repúblicas grega e romana marcaram

a obra do genebrino.

2.2.3. O soberano e a liberdade

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O soberano exerce papel de extremo relevo no pacto pensado por Rousseau.

Podemos pensar que a existência do contrato social se dá exclusivamente pela

figura do soberano e suas atribuições políticas. Nas palavras de Rousseau o

indivíduo do contrato possui um duplo engajamento ora desempenhando um papel

ora outro distinto, como lemos:

Por meio dessa reflexão fica claro que o ato de associação compreende um engajamento recíproco do público com os particulares, e que cada individuo- por assim dizer, contratante consigo mesmo – encontra-se engajado sob uma dupla relação, a saber, como membro do Soberano, em relação aos particulares e como membro do Estado, em relação ao Soberano (ROUSSEAU,1996, p.80-81).

A soberania de que nos fala Rousseau está diretamente ligada a vontade

geral, sendo aquela o exercício desta, garantindo a liberdade:

Afirmo então que, nada mais sendo a soberania que o exercício da vontade geral, não pode alienar-se, e que o soberano, que é apenas um ser coletivo, só pode ser representado por ele mesmo: o poder pode muito bem ser transmitido, mas não a vontade (ROUSSEAU, 1996, p. 87).

Milton Meira do Nascimento, em recente artigo publicado na revista CULT por

ocasião da comemoração dos trezentos anos de nascimento de Rousseau, vê o

soberano como instância máxima de poder na comunidade política no contrato

social, como lemos:

Dentre as questões políticas mais importantes do Contrato Social e que provocaram tanta polêmica, desde a publicação da e de sua recepção extraordinária durante a Revolução Francesa, podemos destacar a ousadia de Rousseau em afirmar, contrariamente à tradição, que o soberano, isto é, aquele que detém o poder máximo na comunidade política, não é mais o rei, mas o povo. Além disso, a afirmação de que o governo não manda, mas obedece, seria algo muito difícil de ser aceita, principalmente por parte daqueles que se encarregavam da administração pública. (NASCIMENTO, 2012, p. 27).

Em pleno século XVIII, uma obra política que desloca o poder soberano para

os cidadãos, reduzindo o papel do príncipe, não poderia deixar de causar todas as

polêmicas e perseguições que a história tratou de mostrar. No mínimo, Rousseau

fora ousado em seu tratado.

2.2.4. Forçado a ser livre

Rousseau desenvolve um interessante argumento sobre o complexo papel do

soberano e da liberdade na ordem social. Importante destacar que quase trezentos

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anos passados da publicação do Contrato, a questão do poder soberano ainda

suscita dúvidas e dificuldades na compreensão de sua dimensão no pensamento

político de Rousseau. Resumidamente é possível pensar no soberano como a

instância necessária para o pleno funcionamento do pacto social idealizado e

segundo as palavras do genebrino (1996, p.80), “é a pessoa pública na forma ativa”.

Desta forma, há uma íntima relação da liberdade no pacto e o poder soberano, pois

ao pertencer ao soberano o individuo realmente é livre, mesmo que Rousseau não

deixe muitas opções aos desobedientes, senão a força da obrigação. Aqui o

genebrino lança mão do paradoxo para demonstrar a força do poder soberano e sua

relação com a liberdade, como lemos:

Para que então o pacto social não seja um acordo vão, está compreendido nele, mesmo de forma tácita, esse engajamento que sozinho pode dar força aos outros, de forma que quem recusar obedecer à vontade geral será obrigado a isso por todo o corpo: o que não significa outra coisa a não ser que será forçado a ser livre [...] (ROUSSEAU, 1996, p. 82).

Maria Constança Peres Pissarra em nota ao Contrato Social procura

esclarecer a polêmica passagem de Rousseau da seguinte forma:

A força é legítima e necessária como garantidora do direito; por isso, aquele que recusar a obediência à vontade geral, ou seja, recusar a liberdade estabelecida por convenção,coloca-se contra o soberano e deve ser forçado a ser livre – obedecer às leis- pelo Estado (ROUSSEAU, 1996, p.197).

Simpson, ainda que em livro introdutório, fornece elementos explicativos

sobre questão em Rousseau:

Apesar de os leitores nunca se cansarem de interpretar este comentário de maneiras sinistras, o ponto de Rousseau era simples. Qualquer cidadão que transgride as leis da comunidade também transgride o pacto social e, consequentemente, pela natureza do caso, viola a lei que havia legislado para si mesmo. Puni-lo seria simplesmente força-lo a obedecer as regras que livremente estabeleceu para si mesmo (SIMPSON, 2007, p.126).

O mesmo comentador vê a íntima relação entre a liberdade e a

autolegislação, ou seja, a lei que o indivíduo estabeleceu a si mesmo no contrato de

Rousseau. Pode-se até argumentar que este seria um ponto fundamental em sua

teoria política, como podemos ler:

Essa linha de pensamento tem consequências importantes para a teoria da liberdade moral de Rousseau. Uma é que ser livre, no sentido de ser autônomo, não tem nada a ver com o sentir livre. Uma vez que o pacto é estabelecido, a autolegislação aplica-se mais na forma da ação do que aos sentidos do agente. O critério para a liberdade é saber se uma ação está ou não em conformidade com a lei que a pessoa estabeleceu para si mesma.

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Se esse é o caso, então, o ato é autônomo de acordo com a definição de Rousseau. Portanto, por exemplo, se o bem como exige que um indivíduo abra mão de algumas das suas propriedades para o uso da comunidade, a liberdade, que é implícita nesta perda, não tem nada a ver com o fato de a pessoa em questão querer ou não querer. A autonomia é definida pela conformidade à lei que a pessoa estabeleceu como forma de autolegislação (SIMPSON, 2007, p.126).

Nas palavras do próprio Rousseau, a liberdade moral adquirida no estado civil

pode torná-lo senhor de si. Assim lemos o genebrino:

Como relação a isso que foi dito, é possível acrescentar a liberdade moral à aquisição do estado civil, a única que torna de fato o homem senhor de si mesmo, uma vez que apenas o impulso do puro apetite significa escravidão, e a obediência à lei que se prescreveu significa liberdade (ROUSSEAU, 1996.p.83).

Oportunamente voltaremos a tratar dessa questão em nossas considerações

finais.

2.2.5. Contrato Social: a liberdade civil como garantia

É possível pensar no Contrato Social como basicamente um garantidor da

liberdade civil. Como escreveu Rousseau, no estado da natureza e em gozo de sua

liberdade natural o indivíduo possuía direito ilimitado a tudo que estivesse em seu

alcance. Rousseau faz um balanço das perdas e ganhos que se tem no contrato

social, como lemos:

Vamos reduzir todo esse balanço a termos fáceis de comparação. O que o homem perde através do contrato social é sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo que o tenta e que pode alcançar; o que ganha, é a liberdade civil e a propriedade de tudo o possui. Para que não haja engano nessas compensações é necessário distinguir a liberdade natural, que só tem como limites as forças do indivíduo, da liberdade civil, que é limitada pela vontade geral, e a posse, que nada mais é que a força ou direito do primeiro ocupante, da propriedade que só pode estar fundada num título positivo (ROUSSEAU, 1996, p.83).

Rousseau afirma que uma vez no pacto social idealizado, a liberdade e os

bens passam a ser tutelados pelo poder soberano e são objetos de convenções

sociais estabelecidas. Desta forma, apesar da força que tem o poder Soberano, há

limites impostos a este, não devendo ultrapassar tais convenções para não pode

tornar-se um fardo social, como lemos:

Assim, fica claro que o poder Soberano, por mais que seja totalmente absoluto sagrado e inviolável, não ultrapassa nem pode ultrapassar os limites das convenções gerais, e que todo homem pode dispor plenamente dos seus bens e da sua liberdade naquilo que foi estipulado por essas

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convenções; de modo que o Soberano nunca tem direito de sobrecarregar mais um súdito que o outro, uma vez que seu poder não é mais competente, quando o assunto se torna particular (ROUSSEAU, 1996, p.94).

No contrato rousseauniano os indivíduos fariam uma espécie de troca

vantajosa comparativamente à vida que levavam no estado da natureza, pois em

sociedade além de possuírem a liberdade política, teriam segurança e direitos

garantidos pela vontade geral, como se lê abaixo:

Uma vez admitidas essas diferenças, soa de maneira falsa que haja no contrato social, por parte dos particulares, uma verdadeira renúncia, já que por causa desse contrato sua situação se torna realmente preferível à que exista antes, e que, ao invés de uma alienação, só fizeram uma troca vantajosa de maneira de ser incerta e precária por outra melhor e mais segura, da independência natural, pela liberdade, do poder de nutrir a outrem, pela sua própria segurança, e de sua força que os outros poderiam dominar, por um direito que a união social torna invencível (ROUSSEAU, 1996, p.94).

Desta forma, essa troca vantajosa tende a gerar segurança e liberdade, pois,

o pacto social seria responsável pela manutenção da liberdade política, em

substituição à liberdade natural possível somente no estado da natureza.

Uma das características marcantes dessa liberdade política possível no

contrato social é a possibilidade do cidadão atuar como legislador. Na teoria política

de Rousseau, tal situação não é excepcional, mas regra, viabilizada pelo poder

soberano que é concentrado nos cidadãos. Atualmente, nas democracias

representativas, o processo legislativo, em regra, passa ao largo do cidadão. Mais

uma vez, Rousseau tem o mérito de propor a inversão desta situação fazendo do

cidadão o destaque na vida política de seu tratado. Em Rousseau, a lei vem da

vontade geral, que por sua vez é a expressão direta dos cidadãos; e ao cumpri-la o

indivíduo é livre, pois não está a obedecer outro indivíduo, exceto a si próprio,

segundo Rousseau:

Baseando-se nessa ideia, percebe-se que não mais é preciso perguntar a quem compete fazer as leis, uma vez que são atos da vontade geral; nem se o Príncipe está acima das leis, uma vez que é membro do Estado; nem se a lei pode ser injusta, uma vez que ninguém é injusto consigo mesmo, nem como se é livre e submetido às leis, uma vez que elas não passam de registros de nossas vontades. (ROUSSEAU, 1996, p.98).

É possível pensar que nos deparamos com o núcleo do pacto rousseauniana,

na medida em que ao indivíduo que o integra são reservadas duas grandes

atribuições que lhe exigirão profundo engajamento: atuar como cidadão e, portanto,

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membro do soberano, e, simultaneamente. como súdito, cumprindo as diretrizes da

vontade geral.

Como já comentado, sabemos que Rousseau também buscou inspiração no

passado para tentar compreender as questões de seu tempo. No Contrato

encontramos sua exaltação à Esparta e à ilha de Córsega que defendeu em armas

sua liberdade, exemplo de virtude para o cidadão de Genebra. Nesse sentido,

Rousseau adverte o leitor que um povo ao perder sua liberdade dificilmente voltaria

a ser o mesmo povo, ainda que a recupere por meio de recursos legais e

diplomáticos, pois, o ímpeto e o amor pela liberdade restarão comprometidos:

Nem mesmo poderiam ocorrer duas vezes com o mesmo povo, pois este só pode tornar-se livre, quando é bárbaro, não podendo mais fazê-lo, quando o recurso civil é usado. Então, os distúrbios podem destruí-lo, sem que as revoluções possam restabelecê-lo, e assim que seus grilhões se quebram, cai desfeito e não existe mais: necessita, de agora em diante, de um senhor e não de um libertador. Povos livres lembrai-vos desta máxima: Pode-se adquirir a liberdade, mas jamais recuperá-la (ROUSSEAU, 1996, p.104).

É possível afirmar que para Rousseau, o cultivo da virtude e o amor à

liberdade seriam características indispensáveis para povos prósperos. Os grilhões

que historicamente prendiam as nações encontraram na figura do genebrino um

crítico mordaz, sendo especialmente no contrato social o resultado dessa

insatisfação.

2.2.6. O legislativo e a liberdade

No jogo político criado pelo contrato social, seu autor procura delimitar as

atribuições cabíveis tanto ao legislativo quanto ao poder executivo. Usando recursos

de linguagem para melhor explicar o papel destes poderes, Rousseau compara o

poder legislativo à vontade enquanto o executivo seria a força, o que o difere de

Montesquieu no seu Contrato Social, pois o genebrino privilegia o poder legislativo,

observa Maria Constança Peres Pissara (1996, p.203) “[...] Enquanto Montesquieu

atribui igual importância a ambos os poderes, Rousseau privilegia o legislativo”.

A preferência de Rousseau por um poder legislativo exercido inteiramente

pelos cidadãos sem intermediários também demonstra seu apreço pela liberdade e

pela igualdade. É possível pensar que Rousseau tenha produzido uma proposta

destoante em pleno século XVIII colocando o indivíduo no centro da política

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retirando a concentração de poder do príncipe. Assim, é inegável o destaque que

possui o poder legislativo na perspectiva contratualista de Rousseau, contudo, o

governo ou poder executivo, também possuirá sua limitada importância, sendo

responsável pela manutenção da liberdade civil conquistada no contrato social.

Assim lemos:

O que é então Governo? Um corpo intermediário estabelecido entre os súditos e o Soberano, para sua mútua correspondência, encarregado da execução das leis e da manutenção da liberdade, tanto civil quando política (ROUSSEAU, 1996, p.115).

Ainda sobre o papel do executivo que para Rousseau seria o corpo

intermediário entre o povo e o soberano prossegue o genebrino:

Sem nos embaraçarmos nessa multiplicação de termos, é suficiente considerar o Governo como um novo corpo dentro do Estado, diverso do povo e do Soberano, e intermediário entre um e outro (ROUSSEAU, 1996, p.118).

No decorrer de seu texto Rousseau não foge das classificações e definições

buscando demonstrar toda a força e dimensão de sua utopia social. É assim que faz

uma análise sobre as formas de governo. Argumenta o genebrino sobre a

possibilidade de dividi-lo em três formas: a democracia, onde o governo é confiado à

maior parte do povo, a Aristocracia, regime onde o governo está nas mãos de um

pequeno número de cidadãos e finalmente a Monarquia onde há um único

magistrado.

Rousseau, em tom melancólico, reconhece a impossibilidade de uma

democracia na verdadeira acepção do termo, sendo praticamente impossível aos

homens experimentarem a beleza desta experiência política, pois em suas próprias

palavras:

Tomando-se o termo no rigor da acepção, nunca existiu a verdadeira Democracia e jamais existirá. É contra a ordem natural que o maior número governe e que o menor seja governado. Não se pode imaginar que o povo permaneça constantemente reunido para deliberar sobre os negócios públicos, e se compreende, claramente, que não se poderia estabelecer comissões para isso sem que se mude a forma de administração (ROUSSEAU, 1996, p.124).

Apesar de nobre, desejada e inspiradora, a democracia não se constitui como

algo simples e facilmente aplicável na concepção de Rousseau (1996, p.125) que

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escreveu sobre ela: “Se existisse um povo de Deuses, ele se governaria

Democraticamente. Um Governo tão perfeito não convém aos homens”.

Tal assertiva não pode ser interpretada como uma defesa ao totalitarismo,

pois a liberdade pensada e desejada por Rousseau em sua teoria política não fica

prejudicada pela impossibilidade de alcançar a democracia, segundo a perspectiva

de Rousseau. O pacto de Rousseau visava uma estrutura política mais realista, com

o poder legislativo concentrado nos cidadãos, em conjunto com o poder executivo

além da figura do legislador.

Sobre esta questão, Milton Meira, no mesmo artigo publicado na revista

CULT, edição 172, afirma que Rousseau considerava a democracia uma verdadeira

temeridade. Assim conclui o professor da USP:

É nesse sentido que Rousseau descarta a democracia como regime mais adequado, porque, segundo ele, seria uma temeridade se todos os membros da comunidade política fizesse parte do governo. (NASCIMENTO, 2012, p.27).

Um ponto curioso encontrado no Contrato Social se dá na relação entre

liberdade, povos e clima. O genebrino se vale de um princípio estabelecido por

Montesquieu para este argumento. Segundo Pissara (1996) em sua na nota 121,

comenta que além de Montesquieu, Aristóteles também já via semelhante relação

entre o clima, o povo e o tipo de governo, afirmando que em climas frios a liberdade

é uma característica normal destes povos, enquanto os povos asiáticos e seus

climas mais quentes tendem à submissão. Desta forma no Contrato Social podemos

nos deparar com semelhante argumento:

Não sendo a liberdade um fruto de todos os Climas, não está ao alcance de todos os povos. Mais se medita sobre esse princípio estabelecido por Montesquieu, mais se percebe sua verdade, e quanto mais é contestado, mais se tem oportunidade de comprová-lo através de novas provas. (ROUSSEAU, 1996, p.133).

Considerando a relativa importância que tem o governo no contrato de

Rousseau, pois, é no poder soberano que está a força do sistema social,

sabiamente o genebrino previu conflitos iminentes entre estes dois poderes

estabelecidos, resultando possivelmente em danos para o bom funcionamento do

contrato e para a manutenção da liberdade política que dele deriva. Sobre isso

escreveu Rousseau:

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75

De sorte que no instante em que o Governo usurpa a soberania, o pacto social rompe-se e todos os simples Cidadãos, que por direito voltaram à sua liberdade natural, são forçados, mas não obrigados a obedecer. (ROUSSEAU, 1996, p.141).

Segundo Rousseau esta usurpação do poder promovida pelo governo ao

romper o contrato social faz com que os indivíduos voltem à sua liberdade natural,

ou seja, há a quebra do pacto, voltando o homem à condição que tinha no estado da

natureza quanto à sua liberdade. Para Rousseau, a autoridade soberana é

indivisível, pois sua divisão implica em sua própria destruição. Pensando a política

de forma macro, Rousseau defende a independência das nações, pois não seria

aceitável uma nação submetida a outra, vez que a essência do corpo político está

entre a obediência e a liberdade. Para Rousseau, os termos “súdito” e “soberano”

são construções idênticas, remetendo a ideia de cidadão dentro do duplo

engajamento o qual nos referimos anteriormente e descrito por Rousseau no

Contrato:

Quanto aos associados, tomam coletivamente o nome de povo e particularmente chamam-se Cidadãos, quando participantes da autoridade soberana, e súditos, quando submetidos às leis do Estado (ROUSSEAU, 1996, p.80).

Como a história antiga já ensinara, Rousseau adverte para o perigo que ronda

o corpo Soberano, pois não faltarão situações em que o governo tentará enfraquecê-

lo, e certamente o conseguirá se encontrar um povo que não ame a liberdade. Assim

lemos:

Esses intervalos de suspensão durante os quais o Príncipe reconhecia ou deveria reconhecer um superior atual sempre pareceram perigosos, e essas assembleias do povo, que são a proteção do corpo político e o freio do Governo, foram sempre o horror dos chefes; por isso nunca pouparam apreensões, objeções, dificuldades e promessas para dissuadir os Cidadãos de realizá-las. Quando esses avaros, lascivos, pusilânimes, mais amantes do descanso do que da liberdade, não se opõem por muito tempo aos esforços redobrados do governo. É assim que a força de resistência aumenta sem cessar, por fim a autoridade Soberana desfalece, e amaior parte das cidades desmoronam e perecem antes do tempo. (ROUSSEAU, 1996, p.147).

Pela importância que assumia o poder soberano no tratado de Rousseau, não

nos causa espanto que houvesse tal preocupação em sua conservação, em virtude

dos possíveis conflitos com o poder executivo na figura do príncipe.

2.2.7. Representação política: ilusão de liberdade

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Executar serviços com os próprios braços e não usando apenas o dinheiro

pode ser considerado sinal de virtude, simplicidade e até de liberdade, bem ao estilo

descrito no Emílio. Aplicando esse princípio de forma mais ampla, é possível afirmar

que em Rousseau, não é possível a transferência de certas responsabilidades

políticas, como podemos ler:

Cede-se uma parte de seu lucro, para aumenta-lo como lhe aprouver. Dai dinheiro e logo tereis grilhões. A palavra finança é uma palavra de escravos, não sendo conhecida na Cidade. Em um Estado verdadeiramente livre, os Cidadãos fazem tudo com os braços e nada com o dinheiro: ao invés de pagarem para se isentarem de seus deveres, pagarão para poderem cumpri-los por si mesmos (ROUSSEAU, 1996, p.147).

Rousseau se opõe à representação política, o que anularia o papel do poder

soberano, peça-chave no contrato social. A representação também pode ser

interpretada como algo contrário à liberdade política nascida no pacto justo.

Lembrando do exemplo dos ingleses, Rousseau os via como um povo livre por curto

espaço de tempo, porém escravos por conta da representação da qual se

orgulhavam, como lemos abaixo:

Logo, os deputados do povo não são nem podem ser seus representantes, são apenas seus comissários, não podem concluir nada definitivamente. Toda lei que não foi ratificada pelo Povo em pessoa, é nula; não é de forma alguma uma lei. O povo Inglês julga ser livre; engana-se redondamente, pois só durante a eleição dos membros do Parlamento ele é livre; tão logo eles são eleitos, é um escravo, não é nada. Ouso que fez de sua liberdade nos curtos momentos que a teve bem justifica que a perca (ROUSSEAU, 1996, p.148).

Amante da liberdade, defensor da vontade geral, Rousseau expõe de forma

clara sua discordância em relação à representação parlamentar, pois feriria a

liberdade possível num regime de fato republicano ideal. Práticas tais como: nomear,

pagar e até delegar poderes eram resultados da frouxidão que acometia as nações.

Nesse sentido, afirmou Rousseau (1996, p.147), “É a confusão do comércio e das

artes, é o ávido interesse do ganho, é a moleza e o amor pelas comodidades que

trocam os serviços pessoais pelo dinheiro”.

O Contrato Social, tratado de princípios de direito político, além de fornecer o

modelo ou paradigma político, também produz uma contundente crítica feita à

política de seu tempo, marcado pelo absolutismo e falta de liberdade. A este respeito

escreveu Carlos Nelson Coutinho ao afirmar que o contrato social estava no nível

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normativo do “dever ser” em face ao “ser” percebido e vivido pelo genebrino. Na

mesma interpretação Starobinski vê a dimensão normativa presente no Contrato:

(...) Rousseau não situa sua hipótese jurídica em uma fase determinada da história concreta da humanidade: não determina o gênero de ação que poderá tornar possível sua realização. O pacto social não se cumpre na linha de evolução descrita pelo segundo Discurso, mas em uma outra dimensão, puramente normativa e situada fora do tempo histórico (STAROBINSKI, 2011, p.48).

Essa caracteriza atemporal do Contrato Social fornecendo bases norteadoras

ou inspiradoras ou no dizer de Starobinski, “normativas”, o diferencia de obras de

cunho mais prático ou situadas no campo do “ser”, portanto rígidas e específicas

para certo tempo.

2.2.8. Vontade Geral: a liberdade em ação

A vontade geral é um ponto de extrema importância na obra política de

Rousseau, pois torna o indivíduo, coletivamente, em protagonista central do contrato

e seu funcionamento. É possível relacionar a vontade geral ao interesse comum

mais nobre e necessário dentro da comunidade política pensada por Rousseau.

Contudo se trata de uma ideia complexa, sofisticada e até de certa maneira obscura

na teoria política do genebrino. A vontade geral se liga diretamente ao bem comum

que se espera no contrato social. Em suas palavras:

Quando muitos homens reunidos se consideram como um único corpo, têm uma única vontade, que diz respeito à conservação de todos e ao bem-estar. Então, todas as relações do Estado são rigorosas e simples, sua máximas são claras e transparentes, não há interesses confusos ou contraditórios; o bem comum evidencia-se por toda partes e só precisa de bom sendo para ser percebido (ROUSSEAU, 1996, p. 156).

A autoridade suprema não pode ser alienada, a vontade geral é dos cidadãos

e somente por eles deve ser exercida; aqui reside a liberdade política em Rousseau.

Obedecer a um senhor á escravizar-se; obedecer ao soberano é obedecer a si

mesmo, sendo livre, portanto:

Primeiramente, a autoridade suprema não pode nem modificar-se nem alienar-se; limitá-la seria destruí-la. É absurdo e contraditório que o Soberano se atribua um superior; obrigar-se a obedecer a um senhor é entregar-se em plena liberdade (ROUSSEAU, 1996, p.151).

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Comentando sobre a generalidade da lei no Contrato, Louis Althusser

relaciona a vontade geral à generalidade da lei e ao povo reunido, como podemos

ler:

A generalidade da lei é a generalidade da sua forma: “quando todo o povo estatui sobre todo o povo...”. Todo o povo = a totalidade do povo reunido, estatuindo sobre si mesmo enquanto “coletivo”, abstração feita das vontades particulares. A vontade deste colectivo é a vontade geral. Podemos, portanto escrever: generalidade da lei= vontade geral (ALTHUSSER, 1976.p.73).

Sem o exercício do poder concentrado nos indivíduos, não se pode falar em

vontade geral e consequentemente em liberdade política. Novamente nos valeremos

da explicação de Dent que em termos simples define a vontade geral assim:

Para Rousseau, o corpo soberano compreende todos os membros adultos do Estado. Assim, a vontade geral, como vontade do corpo soberano, é, de certo modo, a vontade do todos os membros desse Estado (DENT, 1996, p.216).

Como qualquer ambiente onde há homens, o conflito pode acontecer e o

contrato social também poderá encontrar resistências de alguns indivíduos.

Rousseau procurou pensar em todas as possibilidades, como lemos:

Se há opositores fora do pacto social, sua oposição não invalida o contrato, apenas impede que sejam inseridos nele: são estrangeiros entre os Cidadãos. No momento da instituição do Estado, o consentimento está no fato de aí residir; habitar o território é submeter-se à soberania. Fora desse contrato primitivo, a voz do maior número submete sempre os outros, trata-se de uma continuação do próprio contrato. Mas, pode-se perguntar, como um homem pode ser livre e forçado a se conformar com vontades que não são as suas. Como os opositores podem ser livres e submetidos a leis às quais não deram consentimento? (ROUSSEAU, 1996, p.159).

Ao último questionamento responde Rousseau:

Minha resposta é que a questão está mal colocada. O Cidadão dá seu consentimento a todas as leis, mesmo àquelas que foram aprovadas sem sua anuência e até mesmo àquelas que o punem, quando ousa violar alguma delas. A vontade constante de todos os membros do Estado é a vontade geral; é por meio dela que são cidadãos e livres (ROUSSEAU, 1996, p.160).

É importante salientar, na íntima relação feita por Rousseau entre a vontade

geral e a liberdade, pois fora do estado da natureza, os indivíduos somente serão

livres, integrando o poder soberano. A liberdade política pensada por Rousseau

implica em não estar sob os grilhões de um príncipe ou uma assembleia de homens.

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Para Milton Meira Nascimento a vontade geral é a própria vontade da

comunidade política, tendo o mérito de permitir que o cidadão não obedeça a

nenhum particular, o que na prática corresponde a ser livre nesta comunidade:

Mas o ponto forte deste último capítulo do Contrato é a condenação a todas as religiões que praticam a intolerância e a afirmação do caráter sagrado das leis que devem obrigar a todos os cidadãos a se comportarem tendo como referência última a vontade geral. Isto é, a vontade da comunidade política, como condição para a afirmação da liberdade política, já que, ao obedecer à vontade geral, nenhum cidadão obedeceria a vontades particulares, escapando, dessa forma, à possibilidade de submissão à vontade particular de alguém. (NASCIMENTO, 2012, p.26-27).

Assim, a liberdade no contrato efetiva-se no cumprimento da lei que provém

exclusivamente da vontade geral.

Em síntese, é possível afirmar que o Contrato Social constitui uma das

grandes obras do pensamento político e da filosofia política, como faz provar a gama

de comentadores clássicos e a vasta pesquisa realizada sobre o tema.

Ainda assim, não foram pequenas as críticas, e a concepção de liberdade

defendida por Rousseau encontrou resistências. Como visto em nossa introdução,

parte do pensamento liberal nutriu discordâncias em relação à teoria política de

Rousseau. Para Simpson, a questão envolvendo a democracia e a liberdade

constitui a controvérsia entre Benjamin Constant e Rousseau:

A maneira mais fácil de entender a diferença entre Constant e Rousseau é que o anterior estava mais desejoso do que o último a sacrificar a democracia em função da liberdade individual. Rousseau, porém, não foi ao outro extremo; ele não sacrificou simplesmente os direitos individuais à democracia. Na verdade, assim como sua teoria da liberdade civil, ele tentou reconciliar uma defesa robusta dos direitos individuais como uma possível teoria da soberania; e seu discurso da democracia tentou também reconciliar essa mesma teoria de direitos com a necessidade para o coletivo autogovernado (SIMPSON, 2007, p.141).

O Contrato Social, segundo pensamos situa-se no campo do dever ser,

porém é possível acreditar que Rousseau desejou um dia vê-lo inspirando povos. A

relação entre a obra de Rousseau e a revolução francesa em certa medida cumpriu

esse papel. Assim, a densa obra do genebrino, além de fornecer importantes

elementos para análise e reflexão, também forneceu bases para situações concretas

e reais. Trata-se do Rousseau no campo do “ser”, o legislador. Neste próximo

capítulo estudaremos duas propostas políticas feitas por ele na efetividade das

coisas: os projetos constitucionais para a Córsega e para a Polônia.

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CAPÍTULO 3 – CÓRSEGA E POLÔNIA: A LIBERDADE POLÍTICA NA

PRÁTICA, A LIBERDADE POSSÍVEL.

Passaremos agora a investigar a perspectiva prática ou a experiência política

propriamente dita presente no pensamento político de Rousseau.

Reconhecidamente um destacado pensador político do século XVIII, em especial por

seus Discursos e o Contrato Social, tendo este último influenciado os revolucionários

jacobinos em 1789, tais obras podem ser lidas como textos normativos ou da

filosofia moral do genebrino. Aqui nos deparamos com o filósofo mergulhado nas

circunstâncias, com os olhos fitos na prática e nos fatos, chamado a ser um

reformador ou legislador ou talvez ambos. Trata-se de um aspecto fundamental para

se considerar nas reflexões de Rousseau, um filósofo acostumado à análise e à

normatividade em seus textos; passar a desempenhar o papel daquele que propõe

as mudanças e reformas necessárias como um típico legislador. Dois povos

mereceram a atenção do genebrino: os corsos e os poloneses. A Córsega acossada

pelos genoveses e a pedido de Pasquale Paoli recebeu de Rousseau um breve

ensaio na forma de projeto de Constituição; quanto aos Poloneses, representados

pelo conde Wielhorski, membro da Confederação de Bar, organização de resistência

polonesa, descontente com a forte influência e dominação russa em território

polonês, solicitaram ao genebrino um projeto de reforma, para tanto forneceram

diversas informações sobre a Polônia e seu povo, o que possibilitou a elaboração do

trabalho, ainda que Rousseau não tenha se deslocado até aquele país.

Mais atentamente, o que percebemos são duas nações em busca de

liberdade. O homem das ideias e das letras não se furtou diante desta nova e

concreta situação. É neste percurso que continuaremos a investigar a liberdade nos

textos práticos de Rousseau. Assim, iniciaremos nossas reflexões com o Projeto de

Constituição para a Córsega, escrito entre 1764 e 1765, e, posteriormente, suas

Considerações sobre o governo da Polônia, de 1772.

3.1. A Córsega

A Córsega é uma pequena ilha situada ao sul da França e a oeste da Itália. A

ilha esteve sob o domínio de Gênova e Pisa obrigando os corsos a travar duros

combates por sua liberdade. Deixemos que o próprio genebrino nos fale mais desta

bela ilha sedenta por liberdade. Segundo escreve o genebrino no Projeto:

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Montanhas, bosques, rios, pastagens- não se acreditaria estar lendo a descrição da Suíça? Também outrora se encontraria na Suíça o mesmo caráter que Diodoro atribui aos corsos: equidade, humanidade e boa-fé. (ROUSSEAU, 1962, p. 202).

A ilha enfrentava dificuldades em virtude de constantes conflitos com nações

vizinhas, o que Rousseau fez questão de destacar no texto:

Os fatos já comprovaram que a ilha da Córsega, mesmo estado de abandono e esgotamento em que se encontra, basta à subsistência de seus habitantes, pois, durante os trinta e seis anos de guerra nos quais lidaram mais com as armas do que com as charruas, para seu consumo não entrou um único carregamento de gêneros e víveres de qualquer espécie (ROUSSEAU, 1962, p. 208).

Contudo, apesar da dificuldade, a Córsega possuía boas perspectivas de

sustentabilidade por sua rica diversidade, como afirmou Rousseau:

Possui mesmo tudo de que precisa, além dos víveres de qualquer espécie. Possui mesmo tudo de que precisa, além dos víveres, para chegar a manter-se numa situação florescente, sem nada tomar emprestado do exterior. Possui lã para os tecidos, cânhamo e linho para as telas e cordames, couro para os sapatos, madeira de construção para a marinha, ferro para as forjas, cobre para os utensílios e para a moeda de trôco. Possui sal para o consumo e o terá em maior quantidade se restabelecer as salinas de Alleria, que os genoveses com tanto trabalho e despesas conseguiram levar à destruição e que, apesar disso, ainda davam sal. (ROUSSEAU, 1962, p. 209).

3.2. O projeto de Constituição para a Córsega

Ainda que o projeto desenvolvido por Rousseau para a ilha de Córsega não

tenha se transformado efetivamente numa Constituição, ele teve o mérito de

demonstrar o esforço do genebrino em transitar da teoria à pratica.

Rousseau já nutria pelos corsos um velho apreço, como o demonstrou em

seu Contrato Social, como podemos constatar numa citação elogiosa relacionada à

luta pela liberdade desse povo:

Ainda há na Europa um país apto a ser bem legislado: é a Ilha de Córsega. O valor e a constância com a qual esse bravo povo soube recuperar e defender sua liberdade, bem merece que algum homem sábio o ensine a conservá-la. Tenho algum pressentimento de que um dia essa pequena ilha surpreenderá e Europa. (ROUSSEAU, 1996,p.110).

Importante destacar que por volta de 1734-35, ainda que sem sucesso, os

corsos rebelam-se contra a exploração exercida pelos genoveses, voltando a

empreender novos combates sob o comando de Pasquale Paoli. É neste cenário

que em 1764 Matteo Buttafoco, representante de Paoli, solicita a Rousseau a

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elaboração de um projeto de Constituição para a Córsega, escrito entre 1764 e 1765

e publicado postumamente somente em 1861.

Pasquale Paoli, tido como herói nacional na Córsega, era também muito

admirado por Rousseau, conforme se pode perceber em carta deste endereçada a

Buttafuoco, representante de Paoli, como se pode ler:

Permiti-me, porém, uma curiosidade que me inspiram a estima e a admiração. Gostaria de saber tudo o que diz respeito ao Sr. Paoli: que idade tem? É casado? Tem filhos? Onde aprendeu a arte militar? Como a felicidade de sua nação o colocou à frente de suas tropas? Que funções exerce na administração política e civil? esse grande homem se conformaria em ser um mero cidadão de sua própria pátria depois de ter sido seu salvador? (ROUSSEAU, 1962, p.246).

Lourival Gomes Machado, em sua introdução à edição brasileira do Projeto de

Constituição para a Córsega, esclarece que o elogio feito por Rousseau, em seu

Contrato Social, à pequena ilha, conquistou definitivamente o coração dos corsos,

que acabaram por lhe incumbir tão importante tarefa:

Não é de surpreender, pois, que no Contrato Social (livro II, capítulo X), haja um período afirmando que um único país em toda a Europa, ainda poderia receber legislação compatível com a verdadeira liberdade humana – a Córsega, a ilhazinha que, dizia Rousseau, poderia assombrar a Continente orgulhoso (MACHADO, apud ROUSSEAU, 1962, p.183).

Além do desafio a que foi submetido Rousseau, passando das letras à

prática, segundo Lourival Machado, os corsos tinham um expectativa imensa em

relação ao trabalho oferecido:

Numa carta, datada de Mézières, 31 de agosto de 1764, Buttafuoco, em termos verdadeiramente desvanecedores, incita Rousseau a assumir, na Córsega, a função quase divina que o Contrato destinava ao Legislador, ao mesmo tempo que demonstrava conhecer, como verdadeiro homem de cultura, a letra e o espírito dessa obra. (MACHADO, apud ROUSSEAU, 1962, p. 183).

Rousseau já era um escritor bem conhecido na Europa à época em que

escreveu este ensaio político; seus Discursos, além do Contrato Social e do Emílio,

garantiram tal reconhecimento. Desta forma não foi uma total surpresa que fosse

convidado para exercer o papel de legislador reformador de duas nações que

procuravam reerguer-se de seus escombros. Para Wokler, a sensibilidade aos

costumes locais demonstrada por Rousseau em seu Contrato Social foi decisivo

para tais convites, como lemos:

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A visível sensibilidade de Rousseau aos costumes locais e tradições nacionais no Contrato social, ao par de sua firme adesão aos critérios do certo, granjeou-lhe admiradores em toda a Europa, e talvez principalmente nos países que lutavam contra o domínio estrangeiro ou procuravam preservar uma liberdade autóctone durante as guerras civis que eram presas fáceis de poderes externos. Em 1764, quando o patriota Mathieu Buttafoco convidou Rousseau para ser o legislador de um Estado livre que ele já declarara ser extremamente adequado à legislação, e em 1770, quando o conde Michel Wielhorski foi visitá-lo para conversar sobre os esforços da Confederação Polonesa de Advogados para libertar a Polônia da tirania russa, em ambas as vezes Rousseau reagiu com entusiasmo. (WOKLER, 2010, p.108).

Rousseau inicia seu projeto de Constituição da Córsega afirmando que os

corsos são “naturalmente inclinados” a receber um bom governo, o que na prática

facilitaria o recebimento de uma Constituição; é possível acreditar que tal afirmativa

se fundamente no histórico de lutas pela liberdade que o povo corso empreendeu,

sua virtude além de sua diminuta dimensão territorial. Assim escreveu o genebrino:

Pede-se um plano de governo adequado para a Córsega: é pedir mais do que se pensa. Há povos que, em quaisquer condições não podem ser bem governados, pois não se submetem às leis, e um governo sem leis não pode ser um bom governo. Não afirmo que seja esta a condição do povo corso; ao contrário, tenho a impressão de que nenhum povo é tão bem inclinado pela natureza a receber uma boa administração. (ROUSSEAU, 2003, p.179).

Ao percorrer o texto, o que se percebe inicialmente é uma real preocupação

de Rousseau para não transformar em “mil cadeias e ferros” certas medidas ou

ações que ainda que usados com boa-fé poderiam ter efeitos funestos na vida dos

poloneses. Para administrar não bastam apenas boas intenções.

Rousseau vê com otimismo o futuro dos Corsos, mesmo diante de

dificuldades resultantes dos constantes conflitos com os genoveses, contudo, o povo

corso necessita eliminar certos preconceitos, pois, felizmente não contraíram os

vícios de outras nações, salienta Rousseau em seu texto:

Vigorosos e saudáveis, os corsos podem dar-se um governo que mantenha o seu vigor e a sua saúde. No entanto, mesmo agora a criação desse governo terá que vencer alguns obstáculos. Os corsos ainda não adotaram os vícios de outras nações, mas já assumiram os seus preconceitos; são estes que precisarão ser combatidos e eliminados para que seja possível criar boas instituições. (ROUSSEAU, 2003, p.180).

Em face da grave situação que passava a Córsega, castigada por quarenta

anos de guerra gerando pobreza e diversas outras dificuldades, Rousseau acredita

que o objetivo primeiro desta nação seria o alcance de sua estabilidade, pois seria

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impossível sem a existência de seus próprios recursos, o que causaria uma

interminável dependência de outras nações. Fica patente que mesmo em face da

sua delicada situação política e social, a Córsega granjeou o respeito e a admiração

de Rousseau devido a seu ímpeto nas lutas pela independência e liberdade contra

os genoveses, ainda que seja a Córsega pequena em dimensões, como escreveu o

genebrino:

Dignos corsos, quem melhor do que vocês pode saber tudo o que são capazes de fazer sozinhos? Sem amigos, sem apoio, sem dinheiro, sem exército, escravizados por senhores poderosos, sozinhos conseguiram libertar-se dos seus grilhões (ROUSSEAU, 2003, p.181).

A resistência do povo corso e sua luta pela liberdade foram pautadas por

princípios que se distanciam do dinheiro ou interesses pessoais. Rousseau faz uma

atenta análise desta questão e reconhece o empenho que os corsos tiveram em

preservar sua liberdade:

Viram unidos em aliança contra a Córsega, uma por uma, as potências mais respeitadas da Europa, a inundar a sua ilha com exércitos estrangeiros.Tudo conseguiram superar. A sua resistência conseguiu o que o dinheiro nunca teria conseguido; se tivessem querido preservar a sua riqueza, teriam perdido a liberdade. (ROUSSEAU, 2003, p.181).

Rousseau foi um homem de leituras, tendo contato com a literatura ainda

criança pelas leituras feitas por seu pai. Dos muitos pensadores lidos por Rousseau,

um que certamente o impressionou devido às próprias citações feitas pelo genebrino

em seus textos, foi o filósofo italiano Maquiavel (1469 – 1527). Por seu claro

republicanismo, Maquiavel mereceu o elogio de Rousseau, que definitivamente foi

leitor do pensador florentino. É possível afirmar que a própria leitura do projeto de

Constituição da Córsega carrega em si reminiscências do pensamento político de

Maquiavel e suas lições dadas aos Médicis em meio ao caos político da época.

Como já afirmamos, o genebrino reconhece em Maquiavel um grande pensador,

como escreveu em seu Contrato Social:

Foi isso que Samuel expôs com ênfase aos Hebreus; foi isso que Maquiavel demonstrou com evidência. Fingindo dar lições aos Reis, deu grandes lições aos povos. O Príncipe de Maquiavel é o livro dos republicanos (ROUSSEAU, 1996, 128).

Dentro desta perspectiva Salinas Fortes, em Rousseau da Teoria à Prática,

ao problematizar a figura de Rousseau como homem prático, em especial no projeto

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constitucional para a Polônia, lançando a dúvida quanto o caráter conservador do

genebrino, inverte a própria afirmativa de Rousseau:

Sua técnica de conservação do corpo político, uma vez abandonadas as alturas da abstração teórica, revelar-se-ia, ao contato com a realidade concreta, uma técnica neutra a serviço dos poderosos e o rousseauismo, na prática, nada mais seria do que um maquiavelismo envergonhado. Parafraseando o próprio Rousseau e invertendo sua fórmula sobre Maquiavel, pareceria lícito dizer que o que ele faz, na realidade, fingindo dar lições ao povo, é ensinar os poderosos do momento. (FORTES, 1976, p.34).

3.3. A importância da agricultura

Ao percorrer certos textos de Rousseau nos deparamos com sua conhecida

defesa da simplicidade, cultivo da virtude e busca por uma autossuficiência como

vimos em especial nas lições recebidas por Emílio. Assim, o conhecimento da terra e

também da agricultura já se constituindo uma importante prática para o homem

rousseauniano.

Para melhor entendermos a importância dada a agricultura no século XVIII,

vez que o próprio Rousseau dá a ela grande destaque, necessário se faz consultar o

verbete “agricultura” na enciclopédia organizada por Diderot e D‟Alembert, fruto

deste mesmo século. Diderot que se encarrega do verbete, faz uma ampla

exposição da importância histórica, política e de subsistência que teve a agricultura

desde os egípcios, passando por gregos e romanos. Para que tenhamos uma ideia

do papel dado a agricultura no século de Rousseau, leiamos o início do verbete :

A agricultura, como a própria palavra indica, é a arte de cultivar a terra. É a primeira, mais útil, mais extensa e talvez a mais essencial das artes. Os egípcios atribuíram a Osíris o mérito de sua invenção; os gregos, a Ceres e Triptolemo, seu filho; os italianos a Saturno ou a Jano, seu rei, que foi colocado entre os desuses em reconhecimento por este benefício. (DIDEROT, 2006, p.25).

Voltando à obra de Rousseau, também podemos recorrer à dupla lição dada

pelo preceptor a Emílio, no episódio descrito no livro II do seu Emílio ou da

educação, envolvendo o jovem aluno e o jardineiro Robert, primeiro ocupante da

terra onde Emílio pretendia cultivar. Aqui é possível pensar que Rousseau nos

fornece a importância que tem o conhecimento das técnicas de agricultura na

formação do jovem Emílio, bem como o reconhecimento do direito do primeiro

proprietário, escreveu Rousseau:

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Trata-se, pois, de voltar à origem da propriedade, pois é de lá que a primeira ideia deve nascer. Vivendo no campo, a criança terá tido alguma noção dos trabalhos campestres; para isso, só é preciso lazer e olhos, e ela terá essas coisas. Em todas as idades, e sobretudo na sua, a criança quer criar, imitar, produzir, dar mostras de potência e de atividade. Não terá visto duas vezes levarem um jardim, semearem, germinarem e crescerem os legumes, e quererá também cultivar um jardim. (ROUSSEAU, 1999, p.98).

Importante lembrar que Rousseau reconhece a importância do cultivo de

terras também em seu Discurso sobre a desigualdade:

Na medida em que se multiplicou o número de trabalhadores, menos mãos houve para atender à subsistência comum, sem que com isso houvesse menos bocas para consumi-la, e, como uns precisam de comestíveis em troca do ferro, outros por fim encontram o segredo de empregar o ferro na multiplicação dos comestíveis. Nasceram assim, de um lado, a lavoura e a agricultura e, de outro, a arte de preparar os metais e de multiplicar-lhes o emprego. (ROUSSEAU, 1983, p. 266).

Ainda no segundo Discurso, leiamos:

Quanto à agricultura, conheceu-se o princípio muito antes de ser prática estabelecida e absolutamente não é possível que os homens, ocupados continuamente em obter sua subsistência das árvores e das plantas, não formassem rapidamente a idéia das vias empregadas pela natureza para a geração dos vegetais [...](ROUSSEAU, 1983, p.265).

Voltando para os corsos e sua situação econômica, é possível pensar que

embora tenham a duras penas conseguido sua independência, acabaram se

perdendo em brigas e divisões internas, o que na prática serviu para torná-los mais

fracos e dependentes.

A Córsega necessitaria da paz interna e liberdade, e pensando nisso

Rousseau formula alguns princípios que seriam os fundamentos da nova

Constituição:

(...) recorrer em toda a medida do possível ao seu país e ao seu povo; cultivar e reagrupar as suas forças; depender exclusivamente delas; não dar mais atenção às potências estrangeiras, agindo como se não existissem (ROUSSEAU, 2003,p.182).

Importante destacar que o projeto constitucional para a Córsega destaca o

papel e a força que tem a agricultura pela subsistência que permite, gerando a

esperada independência externa e também pela vigorosa formação que esta garante

ao homem do campo, como escreveu o genebrino:

Lavrar o solo torna os homens pacientes e robustos, qualidades necessárias para fazer bons soldados. Os recrutas recolhidos nas cidades são frouxos e indisciplinados; não podem suportar as fadigas da guerra; desfalecem sob a

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tensão das longas marchas; são consumidos pela doença; disputam entre si e fogem do inimigo. As milícias treinadas são os melhores soldados, e mais confiáveis. A verdadeira formação de um soldado é trabalhar no campo (ROUSSEAU, 2003, p.184).

Reconhecendo a pobreza reinante na Córsega, Rousseau entende ser

necessária uma forma de governo propícia à agricultura, semelhante a um Estado

republicano e democrático, pois assim a distribuição dos produtos agrícolas será

feita de forma igual à população, a exemplo do que ocorria em sua Suíça.

É possível pensar que a agricultura corsa tenha merecido destaque neste

projeto constitucional, pois além de ser uma atividade apreciada por Rousseau,

como já demonstrado em outras obras, também poderia possibilitar uma

possibilidade de emancipação econômica à pequena ilha, e por fim sua liberdade em

relação a outras nações.

3.4. Regime de governo

Para Rousseau, as dimensões de uma nação influem diretamente no seu

regime político. Assim, um país de grandes dimensões poderia apresentar sérias

dificuldades para possuir um regime onde as pessoas possuíssem uma participação

política efetiva. Poderíamos pensar que a existência de um corpo soberano ativo

seria mais adequado em territórios de pequena dimensão. A herança democrática

greco-romana seria apenas uma referência perdida no tempo? Para o genebrino,

mesmo sendo a Córsega uma ilha relativamente pequena, as dificuldades na

implantação de um regime sem representação eram flagrantes, razão pela qual se

faria necessário certa delegação de poder, formando na prática um regime

aristocrático ou misto. Aqui temos um Rousseau distante daquele defensor do poder

soberano sem representantes, como lido em seu Contrato Social, porém ao mesmo

tempo nos deparamos com o mesmo Rousseau que estabeleceu princípios de

diretito político, defendeu o paradigma e o dever ser no seu Contrato, é este

Rousseau que sabiamente se rende às circunstâncias reais e suas demandas da

nação corsa e redige o Projeto de Constituição para a Córsega com olhos fitos no

Contrato. Essa aristocracia não era vitalícia, devendo sofrer alterações periódicas,

como escreveu Rousseau:

A Córsega precisa de um governo misto, onde o povo possa reunir-se por partes, e no qual os depositários do poder sejam mudados com intervalos frequentes ( ROUSSEAU, 2003, p.186).

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Títulos de nobreza pertencentes à elite na Córsega devem ser desprezados

nesta importante etapa na luta pela independência. Para Rousseau a liberdade e a

igualdade superariam qualquer título real que pudesse ser concedido, como lemos:

Além da virtude a democracia não conhece outra nobreza a não ser a liberdade; a aristocracia também não conhece outra nobreza senão a autoridade. Tudo o que é estranho à constituição deve ser cuidadosamente banido do organismo político. Deixemos pois aos outros Estados os títulos de marquês e de conde, que envilecem os simples cidadãos. A lei fundamental da nossa constituição deve ser a igualdade (ROUSSEAU, 2003, p.188).

A exemplo do que já foi tratado em outros momentos de sua obra, em

especial no Primeiro Discurso, neste projeto de Constituição Rousseau volta a

criticar o homem citadino, atribuindo a este a responsabilidade pela tirania que

assola a Córsega, pois sua covardia os fez valorizarem pequenos privilégios. A

virtude de um povo continua a ser um ponto vital na reflexão de Rousseau:

Povoadas de mercenários, as cidades venderam a nação para conservar alguns pequenos privilégios que com a sua malícia os genoveses sabem valorizar; punidas como justiça pela sua covardia, eles são os ninhos da tirania, enquanto o povo corso já goza, gloriosamente, da liberdade que conquistou como o seu sangue (ROUSSEAU, 2003, p.190).

Ao ler a última citação de Rousseau, não é possível esquecer La Boétie em

sua crítica àqueles que afundados na servidão e tirania permanecem em profunda

inércia, como citara Rousseau há pouco:

Mas, oh, bom Deus! O que pode ser isso? Como o denominaremos? Que desgraça é essa? Ou que vício? Ou, antes, que vício infeliz? Ver um número infinito de homens não obedecer, mas servir, não serem governados, mas tiranizados; não terem nem bens, nem pais, nem filhos, nem a própria vida a lhes pertencer! Sofrer as pilhagens, a libertinagem, as crueldades, não de um exército, não de um campo de bárbaros contra o qual tinham de derramar o sangue e a vida futura, mas de um só! Não de um Hércules, nem de um Sansão, mas de um único homúnculo e muitas vezes, o mais covarde e efeminado da nação, não acostumado à pólvora das batalhas, mas, a muito custo, às areias dos torneios; não ao que possa comandar os homens à força, mas ao impedido de servir vilmente à menor femeazinha! (LA BOÉTIE, 2003, p.26).

É possível perceber que até aqui o texto de Rousseau altera descrições do

cenário político, social e histórico de Córsega e propostas estruturais objetivando de

certa maneira a reconstrução da ilha. Para Rousseau a igualdade é um fator decisivo

para o futuro da Córsega. Para que este processo possa alcançar sucesso não será

admitido qualquer tratamento que venha a criar privilégios a certos grupos sociais,

devendo ser inclusive reconhecido o valor do homem do campo, pois no ensaio de

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Rousseau, a agricultura passa a ser uma atividade fundamental e estratégica na

economia corsa. Neste sentido, deve reinar na ilha o espírito “terra di commune”,

algo que nos remete à isonomia de direitos ou à ideia do coletivo como prática

política.

3.5. A liberdade

Após concluir suas primeiras reflexões sobre a Córsega, e antes de tratar com

mais detalhes questões de governo, Rousseau faz um relato sobre a sua Suíça,

entendendo ser o modelo ideal para os corsos. O genebrino traça um perfil virtuoso

dos suíços, como adeptos da simplicidade e amantes da liberdade, características

fundamentais para a construção de uma nação, em suas palavras:

(...) quando se vê a firmeza inabalável, a constância, a determinação com que esses homens terríveis emprestam aos combates, decididos a morrer ou vencer e sem alimentar sequer a ideia de distinguir a sua vida da liberdade, não se terá dificuldade em imaginar os prodígios que fizeram para defender o seu país e a sua independência, nem nos surpreenderemos de ver as três maiores potências e os soldados mais belicosos da Europa fracassar reiteradamente nos seus ataques contra nação heroica cuja simplicidade tornava quase invencível, tanto aos ardis como ao combate. Este é o modelo que os corsos devem seguir para retornar à sua situação original. (ROUSSEAU, 2003, p.194).

Porém, o encantamento de Rousseau pelos seus compatriotas não é

absoluto, pois, apesar do belo retrato do homem suíço feito há pouco, o genebrino

alerta que o dinheiro, o gosto pelo luxo e as artes acabaram por corrompê-los. A

liberdade dos suíços foi seriamente comprometida pelo estilo de vida por eles

adotado, distante da visão virtuosa de outrora, assim lemos:

A vida ociosa introduziu no Estado a corrupção, aumentando o número dos indivíduos mantidos pelas potências estrangeiras; extinguindo-se em todos os corações o amor da pátria, substituído pelo amor ao dinheiro (...). No passado a Suíça se impunha à França; hoje, enriquecida, ela treme como o mero franzir de sobrancelhas de um ministro francês (ROUSSEAU, 2003, p.196).

Ao analisar certas passagens como a última, é fácil compreender as intensas

perseguições sofridas pelo genebrino; seu estilo e verve inconfundíveis granjearam

diversos inimigos.

A liberdade da Córsega em relação a nações estrangeiras, bem como sua

independência econômica, ganharam grande destaque no texto em análise de

Rousseau. A agricultura que já nos referimos merece atenção e certa proteção para

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que sua finalidade não seja deturpada e se torne um item comercializado e gerador

de lucros pessoais. Curiosamente, a circulação de dinheiro também deve ser

restringida, pois, na prática, este é o símbolo da desigualdade e a Córsega possui

fartamente tudo que é necessário para sua sobrevivência, certamente devido às

suas favoráveis condições ambientais, clima e sua localização privilegiada.

Como bom leitor dos antigos e por eles influenciado, Rousseau vê com bons

olhos a divisão da nação corsa em três classes, que apesar de manter a

desigualdade pessoal, suprimiria a desigualdade de raça e habitação resultante do

sistema feudal então reinante. Desta forma a primeira classe seria composta por

cidadãos, a segunda por patriotas e a terceira por aspirantes, sendo possível a

evolução do individuo, migrando de uma classe inferior para uma superior desde que

atendidos certos requisitos.

Tratando das finanças do Estado, Rousseau repete uma ideia frequente em

alguns de seus textos, a questão moral e da virtude, no caso da Córsega, itens

necessários a sua reconstrução:

Evitemos aumentar o tesouro monetário às custas do tesouro moral: na verdade, é este último que nos assegura a posse dos homens e de toda potência, enquanto com o primeiro só se consegue a aparência dos serviços, e não se pode comprar a vontade genuína de presta-los (ROUSSEAU, 2003, p.214) .

O projeto de Constituição para a Córsega não chegou a ser concluído por

Rousseau, e o que temos não passa de um fragmento desta obra, assim algumas

questões vitais ficaram ausentes ou foram tratadas sem a dimensão esperada para

um filósofo político como Rousseau. Acreditamos que no presente projeto

constitucional, onde o genebrino se lança como legislador, a liberdade individual

como elemento indispensável não mereceu a mesma atenção dispensada ao texto

normativo do Contrato Social, onde instâncias como o soberano e a vontade geral

foram bem explorados. Em seu projeto Rousseau não recomenda um regime

totalmente democrático, ideal para pequenas cidades, e como explicou as

dimensões da ilha eram desproporcionais para tal intento. Nada impede de

pensarmos que a situação de extrema fragilidade e dependência externa da ilha

também não fossem propícias a um regime democrático, preferindo Rousseau outra

alternativa mais adequada à Córsega, a aristocracia.

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A percepção que temos ao ler o projeto de Constituição para a Córsega é

uma real preocupação de seu autor em estabelecer um plano emergencial para

garantir a independência financeira em relação às nações vizinhas, em especial os

genoveses. Não temos neste texto um tratado político complexo a exemplo do

Contrato Social, mas uma tentativa de sanear no menor prazo possível as

dificuldades enfrentadas pela ilha, principalmente com base na agricultura.

Neste contexto de turbulência política e financeira vivida pela Córsega, não

causa espanto que o genebrino tenha reservado pouco espaço para tratar da

liberdade política individual, como fizera no Contrato Social, preocupando-se mais

com a liberdade da Córsega como nação, buscando sua independência

internacional a exemplo dos suíços, como salientou Rousseau. A esse respeito

escreveu Salinas Fortes em seu Rousseau da Teoria à Prática:

Se nos voltarmos para as obras práticas na esperança de encontrar elementos capazes de preencher a lacuna, não apenas nossa expectativa se frustra rapidamente, como, além disso, um novo Rousseau parece surgir diante de nós. O Projeto de Constituição para Córsega não parece apto a nos ajudar, na medida em que tal; como na perspectiva do Contrato, tratar-se-ia aí apenas de organizar politicamente uma nação que, aos olhos de Rousseau, dentre todas as que lhe são contemporâneas, é a única a preencher as condições que tornam um povo próprio para a Legislação (FORTES, 1976, 30).

Classificar Rousseau como conservador ou pouco ousado após a leitura do

projeto para Córsega, ao compararmos com o Rousseau do Contrato Social, nos

parece inadequado, pois há uma grande diferença entre um texto normativo e a

figura real do legislador, em especial se tratando de uma nação castigada por toda

sorte de dificuldades e carências como a Córsega, porém possuindo como maior

patrimônio seu ímpeto para a liberdade, o que para Rousseau certamente já é um

belo início.

3.6. A experiência polonesa

Rousseau terá mais uma oportunidade de produzir um texto político, e

novamente colaborar com outra nação por meio da força de sua pena. Como

ocorreu com os corsos, temos novamente Rousseau chamado ao papel de

reformador. Neste momento de nossa investigação e reflexão enfatizaremos o

problema da liberdade política, agora na experiência que o genebrino compartilhou

com os confederados poloneses. Suas impressões, conselhos e análises a respeito

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estão reunidas nas Considerações sobre o governo da polônia e sua reforma

projetada, ao que se sabe concluída em 1771. Pouco se sabe sobre as condições

em que se encontrava o genebrino ao redigir seu último texto político; é o que diz

Lourival Gomes Machado em sua introdução ao segundo volume de Obras de Jean-

Jacques Rousseau:

Restam até hoje imprecisas asa circunstâncias exatas em que foram redigidas as Considerações sobre o Governo da Polônia, o que facilmente se explica pela orientação de vida nessa ocasião adotada por seu autor. Rousseau ao voltar para Paris, em julho de 1770, já experimentara a inteira cadeia de grandes e pequenas misérias, reais e imaginarias, que atormentaram suas estadas na Suíça e na Inglaterra e que acompanharam certos incidentes de monta, como, por exemplo, a condenação de seus livros.(MACHADO, apud ROUSSEAU, 1962, p.257).

Essa perspectiva prática ou do campo do “ser” justifica-se nessa fase de

nossa pesquisa, pois dessa vez poderemos acompanhar Rousseau diante de

problemas e circunstâncias reais, e de certa forma graves, que atingiam a Polônia na

esfera política. Rousseau foi chamado por alguns poloneses a propor uma reforma

com todas as suas implicações. Qual tratamento que o genebrino dará à liberdade,

liberdade esta que defendera em outras obras?

Como salienta Ricardo Monteagudo no seu Entre o direito e a história, a

concepção do legislador em Rousseau, o genebrino é chamado a exercer um papel

de destaque na história polonesa:

O legislador nada mais é do que o intérprete esclarecido do julgamento que o povo faz da vontade geral [...]. O legislador surge com a necessidade desse esclarecimento. Por isso Rousseau precisaria dispor de todas as informações sobre a Polônia de maneira absoluta (na sua totalidade) e desinteressada (de forma divina) para assumir historicamente a função teórica do legislador. (MONTEAGUDO, 2006, p.168).

É importante salientar que nas Considerações de Rousseau não encontramos

o “igualitarismo republicano do Contrato”, para usar a expressão de Salinas Fortes.

Apenas para argumentar e sem querer antecipar nossa conclusão do capítulo, em

nosso entender, o que temos nas Considerações é a proposta de um pensador que

não perdeu a capacidade de observar as circunstâncias que o cercavam à época,

alguém que mergulhou na dura realidade dos poloneses e pensou numa reforma

possível para a situação, tendo no Contrato Social uma espécie de paradigma citado

inúmeras vezes no texto aos poloneses. Rousseau analisou cuidadosamente a

situação vivida por aquele povo e apresentou, segundo seu juízo, um projeto

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adequado ao conturbado momento político dos poloneses, onde a ideia de ruptura

drástica fora rejeitada pelo genebrino que declarou no texto ser necessário não

abalar nunca “muito bruscamente a máquina” ao se referir a administração polonesa,

ou como bem observou Salinas Fortes:

Desde a primeira leitura das Considerações, a alergia pela mudança ressalta nitidamente. Conselhos de prudência repetem-se ao longo do texto como um leitmotiv. Desde o primeiro capítulo, os poloneses são advertidos a não tocar na Constituição a não ser com uma circunspeção extrema. (FORTES, 1976, p.30).

Torna-se importante nesta fase da pesquisa investigar a relação existente

entre as Considerações e o Contrato Social. Ler as Considerações e concluir que

Rousseau afastou-se dos princípios do Contrato pode nos parecer algo precipitado,

neste sentido vale a leitura de Salinas Fortes, em sua apresentação à edição

brasileira das Considerações, comentou:

À primeira vista, o texto surpreende pela moderação das propostas. Quando se esperava, à luz do igualitarismo republicano do Contrato, o mesmo radicalismo, Rousseau propõe apenas algumas tímidas transformações para uma constituição monárquica que excluí da participação na soberania os burgueses e camponeses, ou seja, a maioria da população. Por outro lado, o princípio da representação por meio de deputados, que Rousseau criticara de forma tão intransigente no Contrato, também aqui parece submetido a uma espécie de reabilitação. Não se trata de reabrir a questão da coerência de Rousseau. Basta lembrar as constantes remissões explícitas ao Contrato contidas no texto para perceber a preocupação do autor e compreender que nos achamos aqui diante de uma aplicação no sentido mais rigoroso do termo. (ROUSSEAU, 1982, p.12).

Neste percurso, além do Contrato Social, obra que entendemos manter

relação com as Considerações, trabalharemos com o Discurso sobre a origem e os

fundamentos da desigualdade entre os homens aproximando-a das Considerações.

Nesse sentido Salinas procura relacionar o segundo Discurso com a sociedade

polonesa do século XVIII:

A hipótese com a qual trabalha o Legislador ideal do Contrato é a de um verdadeiro corpo político, de uma verdadeira República constituída de acordo com os princípios do direito. A sociedade polonesa, ao contrário, acha-se na linha do Discurso sobre a Desigualdade, no plano da má história, da passagem viciosa para o estado civil comandada pelo pacto mistificador feito sob o patrocínio dos ricos e em seu benefício. (FORTES, 1976, p. 33).

A Polônia dos tempos de Rousseau vivia uma forte influência russa, pois nas

palavras de Lourival Gomes Machado:

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Consequentemente, caberá apenas realçarmos o que, da nota de Petitain, se depreende acerca do momento especialíssimo em que a Rousseau se pediu um esboço de constituição. A esse tempo, a Polônia não se encontrava livre: Estanislau Poniatowski, o amante de Catarina II que os russos haviam inculcado no trono polonês, não passava de um lastimável títere da corte de São Petersburgo (MACHADO, apud ROUSEAU, 1962, p.258).

É nesse cenário, onde há pouca liberdade e a política necessita de urgentes

reformas, segundo acreditava alguns poloneses, que um certo Wielhorski, conde

polonês e representante da “confederação” de Bar, encarrega Rousseau de preparar

um projeto de reforma das instituições polonesas. Posteriormente, declararia o

genebrino que esta tarefa lhe consumira seis meses. Segundo Lourival Gomes

Machado, é possível acreditar que Rousseau nutria grande respeito e admiração

pelo conde Wielhorski, além do povo polonês, o que permitiu voltar a escrever um

texto político, pois não tinha mais esta pretensão:

No mais, temos a certeza de que o convite de Wielhorski pareceu merecer de Rousseau uma exceção notabilíssima, pois não trepidou em tomar novamente a pena depois de jurar nunca mais servir-se dela. (MACHADO, apud ROUSSEAU, 1962, p.258).

Como retrata a história polonesa, pouco tempo depois do término do texto de

Rousseau, a Polônia foi dividida e os confederados fracassaram em sua tentativa de

reforma, permanecendo o projeto reformador do genebrino sem a sua efetiva

aplicação real.

Fica bem evidente a simpatia que desde as primeiras linhas de suas

Considerações tem Rousseau pela causa dos confederados de Bar e seu intento de

libertar a Polônia do jugo russo, bem como o próprio povo polonês que por diversas

vezes é exaltado no texto do genebrino. Não nos espanta que Rousseau tenha se

lançado nesta empreitada libertária a exemplo da experiência com os corsos, pois a

liberdade e sua defesa sempre foi sua freqüente preocupação, mesmo nunca tendo

sido um revolucionário ou coisa semelhante. Depois de ter sido procurado pelo

conde Wielhorski, solicita a este todas as informações necessárias para produzir

suas Considerações, e assim ofertar aos poloneses um projeto de reforma política

com certa riqueza de detalhes. digna de um polonês nativo. Rousseau mostra

desembaraço ao analisar questões internas e pontuais na política polonesa,

demonstrando seriedade e estudo a partir das informações que lhe foram

apresentadas pelo representante dos confederados.

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A luta dos poloneses pela sua liberdade, frente ao inimigo externo, encantou o

genebrino e por certo pesou na sua decisão de apoiar os confederados. Havia uma

clara admiração do genebrino pelo empenho que os poloneses tinham em libertar-se

dos inimigos externos e garantirem sua soberania, assim escreveu Rousseau (1982,

p.24), “Ela está sob grilhões e discute meios de se conservar livre!”.

Com todos os problemas existentes, Rousseau ainda via a Polônia como uma

nação livre ou ao menos com vocação para a liberdade, mesmo que perturbada por

inimigos externos e mergulhada em anarquia interna. Para Salinas, a corrupção

ainda não havia devorado a Polônia, o que permite manter o terreno fértil para a

liberdade.

Em nenhum momento, neste primeiro capítulo, é posta em dúvida a liberdade da nação: apesar de estar sob grilhões, ela discute os meios de se “conservar livre”. Se assim é, a atitude do Legislador é compreensível: diante de uma nação livre, ainda não corrompida, o que se tem a fazer é tratar de conservar a liberdade existente. (FORTES, 1976, p.36).

Monteagudo, tratando do mesmo assunto, procura explicar as razões pelas

quais Rousseau considerava a Polônia uma nação livre, ainda que aparentemente

não tenhamos tal impressão:

Rousseau chama aqui o corpo legislativo polonês de legislador porque não foi subjulgado pelo poder executivo: “O enfraquecimento da legislação na Polônia se fez de uma maneira peculiar e talvez única: é que ela perdeu sua força sem ter sido subjulgada pelo Poder Executivo. Neste momento ainda o Poder Legislativo conserva toda sua autoridade; está na inação, mas sem nada ver acima dela”. Esse é o motivo pelo qual, de um lado, a anarquia polonesa ainda não destruiu o Estado, e, de outro, trata-se de um Estado moderno que não precisa perder a esperança de se tornar verdadeiramente livre (MONTEAGUDO, 2006, p.172).

É perceptível pela leitura das Considerações que o genebrino de fato via a

Polônia por um olhar diferenciado, tentando passar ao largo dos graves problemas

existentes. Lourival Gomes Machado procura fornecer uma importante chave para

leitura do projeto aos poloneses:

Não se pode, pois, ler as Considerações à luz do desencantamento que a posterior história da Polônia lançou sobre essas esperanças. Nem, sequer, em direto confronto com a realidade então reinante na Polônia e conhecida de Rousseau. Ele pensava numa nação que, se não era propriamente nova, desejava renovar-se inteiramente, num povo que, se propriamente não nascia, ansiava por renascer. Fiado nessa certeza, cuja exatidão objetiva seria inócuo hoje aferir, elaborou o texto que entregaria a Wielhorski para apresentar, tarde demais, à confederação geral dos poloneses rebelados. (MACHADO, apud ROUSSEAU, 1962, p.259).

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Pensando em propostas adequadas à realidade dos poloneses, Rousseau

não pode deixar de fora de seus cálculos todas as dificuldades envolvidas nesta

tarefa. Uma nação que sofre com o peso do despotismo de seu rei e a ameaça do

dominador externo, ainda que tenha um povo admirável e amante da liberdade,

poderá o tempo acalmar este desejo e fazer com que se prefira a paz dos grilhões à

luta pela liberdade. Manter a liberdade sempre constituirá uma das mais árduas

tarefas de um povo, e não será diferente no caso dos poloneses:

Vós amais a liberdade, sois dignos dela; vós a defendestes contra um agressor poderoso e ardiloso, que fingindo vos apresentar os laços da amizade, vos impôs os grilhões da servidão. Agora, cansados das perturbações de vossa pátria, suspirais pela tranquilidade. Creio ser muito fácil obtê-la; mas conservá-la com a liberdade, eis o que me parece difícil. E no seio desta anarquia, vos garantiram do jugo. Elas dormiam em um repouso letárgico; a tempestade despertou-as. Após terem quebrado as algemas que lhes destinavam, sentem o peso da fadiga. Gostariam de aliar a paz do despotismo às doçuras da liberdade. Tenho medo de que queiram coisas contraditórias. O repouso e a liberdade parecem-me incompatíveis; é preciso optar. (ROUSSEAU, 1982, p.24).

A advertência de Rousseau nos remete à famosa frase atribuída a Flavius

Vegetius, escritor romano do século IV d.C e propagada ao longo dos séculos.: “ si

vis pacem para bellum”, ou seja, se queres a paz, prepara-te para a guerra, e

demonstra a preocupação sobre a ilusão que o despotismo poderia gerar no seio

dos poloneses já esgotados por duras lutas internas e externas pela paz e liberdade.

Render-se ao despotismo é um dos caminhos para encontrar a paz, mas

seguramente o pior, se pode concluir da leitura das Considerações. O despotismo

pode apresentar sua face enganosa, confundindo os poloneses com a ideia de paz.

O genebrino já advertirá seus leitores em célebre passagem do Primeiro Discurso:

Enquanto o Governo e as leis atendem à segurança e ao bem-estar dos homens reunidos, as ciências, as letras e as artes, menos despóticas e talvez mais poderosas, estendem guirlandas de flores sobre as cadeias de ferro de que estão eles carregados, afogam-lhes o sentimento dessa liberdade original. (ROUSSEAU, 1983, p.334).

Prevendo certa dificuldade na proposição de uma reforma, Rousseau fornece

nas Considerações uma série de recomendações que julgava necessárias ao povo

polonês e sua realidade político-social, porém três exigências são destacadas no

texto visando à construção desta Polônia: a necessidade que o polonês busque a

virtude, amar sua pátria e também a liberdade. Em seus textos políticos, em especial

o Contrato Social, fica clara a importância dada por Rousseau a ação legislativa no

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corpo político. A partir daí, foram construídas as noções de “vontade geral”,

“soberano” e “legislador”. Estes princípios não foram esquecidos por Rousseau em

sua experiência polonesa, assim a lei deveria atingir o coração humano, para que

produzisse sua boa eficácia, como advertiu Rousseau:

Nunca haverá boa e sólida constituição além daquela em que a Lei reinará sobre os corações dos cidadãos. Enquanto a força legislativa não for até lá, as leis serão sempre eludidas. Mas como chegar aos corações? É nisso que os nossos instituidores, que só veem a força e os castigos, nunca pensam e é ao que talvez as recompensas materiais não conseguiram melhor conduzir; mesmo a justiça mais íntegra não leva até aí porque a justiça é, assim como a saúde, um bem de que gozamos sem sentir, que não inspira entusiasmo e de que só sentimos o preço depois de tê-la perdido. (ROUSSEAU, 1982, p.25).

Como poderão a Constituição e as leis atingirem o coração humano? Para

Rousseau tudo pode começar na infância, o meio adequado para que a lei chegue

ao coração do homem na idade adulta e deve ser feito por meio dos jogos infantis,

assegurou Rousseau. Aqui temos uma clara remissão ao seu Emílio, destacando a

importância da aprendizagem precoce nos assuntos relacionados à política.

Rousseau reconhece a grandeza de homens como Moisés, Licurgo e Numa.

Importantes legisladores que a seu modo e época conseguiram alcançar o coração

dos homens, que certamente serviriam de exemplo aos poloneses.

Ao longo da obra percebemos a importância que Rousseau atribui a uma

completa mudança de sentimento por parte dos poloneses, caso realmente desejem

de fato reformar o país. As referências aos “corações” são constantes, e é nele que

devem ser escritos virtude, coragem, e amor à pátria e liberdade. Nas

Considerações o apelo ao sentimento vai ficando demonstrado em especial pelos

usos dos termos corações, coragem e virtude funcionando como verdadeiro

elemento psicológico aos poloneses cansados das dificuldades políticas. A este

respeito escreveu em suas Considerações:

Não vejo no estado presente de coisas a não ser o único meio de lhe dar essa consistência que lhe falta: é de infundir, por assim dizer, em toda a nação a alma dos confederados; é de estabelecer de tal forma a República nos corações dos poloneses, que neles subsista apesar de todos os esforços de seus opressores. É este, ao que parece, o único asilo em que a força não pode nem atingi-la nem destruí-la. Acabamos de ter disso uma prova para sempre memorável. (ROUSSEAU, 1982, p.30).

Ainda em relação ao sentimento em Rousseau, esta questão também foi

trabalhada por ele em outras de suas obras políticas, pois além de enfatizar a

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necessidade de um coração puro e virtuoso, também serviu para desnudar a forte

influência greco-romana do genebrino, como analisar no encerramento do seu

premiado Primeiro Discurso:

Oh! Virtude, ciência sublime das almas simples, serão necessários, então, tanta pena e tanto aparato para conhecer-te?Teus princípios não estão gravados em todos os corações? E não bastará, para aprender tuas leis, voltar-se sobre si mesmo e ouvir a voz da consciência no silêncio das paixões? (ROUSSEAU, 1983, p.352).

Rousseau trabalha o tema da liberdade desde as primeiras linhas de suas

Considerações, inicialmente por uma perspectiva mais ampla e espacial, mais

precisamente a defesa externa polonesa, para posteriormente apresentá-la como

algo necessário a cada indivíduo. Como vimos, o genebrino entendia que os

poloneses conservavam o germe da liberdade, mesmo sendo acossados por

inúmeros problemas, os longos anos de disputa pelo poder e lutas internas não

tiraram dos poloneses este amor pela liberdade, ressaltado por Rousseau em suas

Considerações:

A Polônia estava sob as algemas do russo, mas os poloneses permaneceram livres. Grande exemplo que mostra como podeis enfrentar o poderio e a ambição de vossos vizinhos, Não seríeis capazes de impedir que vos engulam, façam, ao menos, que não possam vos digerir. Seja como for que fizemos, antes que tenhamos dado à Polônia tudo o que lhe falta para ficar em estado de resistir a seus inimigos, ela por eles será cem vezes esmagada. (ROUSSEAU, 1982, p.30).

As instituições políticas polonesas, em especial as Dietas, mesmo que

necessitando de reformas, ainda garantiam a primazia do poder legislativo sobre o

executivo, razão pela qual Rousseau cria na liberdade daquele povo.

Rousseau (1982), em forma de elogio, afirma que a virtude e o amor à pátria

comum nos poloneses poderiam ser responsáveis na garantia da própria soberania

do país. Como ensina a sabedoria popular, para grandes problemas, grandes

remédios, porém no caso dos poloneses este remédio não deveria ser tão grande

assim, seria necessário apenas assumir-se como um verdadeiro polonês, buscar sua

identidade e voltar-se para pátria, como escreveu Rousseau (1982, p.30): “Se

fizerdes de maneira a que um polonês jamais possa se tornar um russo, respondo

que a Rússia não subjugará a Polônia.”

Importante destacar que este projeto de reforma proposto por Rousseau faz

constantes reminiscências a algumas de suas obras, em especial, o Contrato Social,

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citado nominalmente algumas vezes, além de encontrarmos referências ao Emílio, a

exemplo da passagem onde Rousseau sugere aos poloneses a prática de exercícios

corporais aos jovens, por sua importante finalidade:

Finalmente, o gosto pelos exercícios corporais desvia de uma ociosidade perigosa, dos prazeres efeminados e do luxo do espírito. É sobretudo por causa da alma que é preciso exercitar o corpo e eis o que os nossos sabiozinhos estão longe de ver.” (ROUSSEAU, 1982, p.34).

Salinas Fortes salientou esta proximidade entre o Contrato Social e as

Considerações da seguinte maneira:

O objetivo estratégico de Legislador parece o mesmo que o Contrato define: trata-se de fazer da sociedade polonesa um verdadeiro corpo político, uma autêntica República, na qual a autoridade soberana seja exercida pela vontade geral. (FORTES, 1976, p. 35).

Ainda em relação à educação, o capítulo IV das Considerações é dedicado a

este tema e como já ocorrera no Emílio, o genebrino volta a dar à educação grande

importância na reconstrução da nação polonesa. Ainda que o capítulo seja de

pequena extensão, não deixa de desempenhar um papel fundamental na reforma da

sociedade polonesa, como afirmou Rousseau (1892, p.36), “É a educação que deve

dar às almas a forma nacional e dirigir de tal forma suas opiniões e seus gostos, que

elas sejam patriotas por inclinação, por paixão, por necessidade.” Em outro

momento do texto Rousseau usa sua conhecida verve e emoção para tratar um

pouco mais da relação entre educação e liberdade:

Todo verdadeiro republicano sugou com o leite de sua mãe o amor de sua pátria, isto é, das leis e da liberdade. Esse amor faz toda sua existência; ele não vê nada além da pátria e só vive para ela; assim que está só, é nulo; a partir do momento em que não tem mais pátria, não existe mais; e se não está morto, é pior do que isso. (ROUSSEAU, 1982, p.36).

Para melhor compreendermos o entusiasmo republicano e sua exaltação pela

virtude recorremos a uma passagem de seu elogio À República de Genebra escrito

décadas antes:

Teria desejado nascer num país no qual o soberano e o povo não pudessem alimentar senão um único e mesmo interesse, a fim de que todos os movimentos da máquina tendessem somente para a felicidade comum. Não podendo tal coisa suceder,a menos que o povo e o soberano não sejam senão uma mesma pessoa, conclui-se que eu desejaria ter nascido sob um governo democrático, sabiamente equilibrado. Teria desejado viver e morrer livre, isto é, de tal modo submetido às leis que nem eu, nem ninguém, pudesse sacudir o honroso jugo, esse jugo salutar e suave que as

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cabeças mais orgulhosas tanto mais docilmente suportam, quanto mais afeitas são a não suportar qualquer outro. (ROUSSEAU, 1983, p.218).

3.7. Da educação

Rousseau tem uma especial preocupação com a importância que a educação

possui na formação do homem. Leitor dos antigos, como Platão e Aristóteles e

admirador dos espartanos, Rousseau sabe que a educação é um importante fator na

consolidação de sua sociedade e não seria diferente ao aconselhar os poloneses.

Nâo é raro classificar Rousseau como educador, em especial pelo seu Emílio ou da

educação, exemplo de Streck e Soetard, autores citados na presente pesquisa.

O genebrino abre seu capítulo IV que trata da educação com as seguintes

palavras, já citadas anteriormente:

Eis o ponto importante. È a educação que deve dar às almas a conformação nacional e de tal modo orientar suas opiniões e gostos, que se tornem patriotas por inclinação, paixão e necessidade. Uma criança, ao abrir os olhos, deve ver a pátria e até a morte não deverá senão vê-la. (ROUSSEAU, 1962, p. 277).

Nas Considerações Rousseau defende uma educação comum a todos e não

sendo possível oferecê-la totalmente gratuita, deverá haver um preço que seja

acessível principalmente aos mais pobres, nas próprias palavras de Rousseau:

Não aprecio de modo algum a distinção entre colégios e academias, que leva a nobreza rica e a nobreza pobre a serem educadas de modo diferente e separadamente. Sendo todos iguais pela constituição do Estado, devem ser educados juntos e do mesmo modo e, se não se pode estabelecer uma educação pública inteiramente gratuita, é preciso pelo menos atribuir-lhe um preço que os pobres possam pagar. (ROUSSEAU, 1962, p.278).

Liberdade e igualdade estão presentes na obra do genebrino. A educação dos

poloneses deve prepará-los para a liberdade e o amor à pátria e também deve ser

conduzida de forma igualitária.

Os jogos e brincadeiras que integram o processo educacional deveriam reunir

todas as crianças, privilegiando a coletividade e o espírito público, inclusive com

situações que simulassem algumas práticas de governança pública, o que segundo

nos informa Rousseau, era chamado de “Estado exterior” em Berna. É possível a

importância que tem a educação no processo de reforma polonesa. Para Rousseau,

como ficara demonstrado no seu Emílio, a educação está relacionada na formação

do indivíduo virtuoso e na Polônia se bem providenciada pela administração também

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poderia ser decisiva para a geração de cidadãos modelares, a exemplo dos

espartanos de outrora.

A ideia de educação pensada por Rousseau está mais evidenciada em seu

Emílio, contudo o genebrino nos deixou outras importantes reflexões sobre esta

questão em suas Considerações. A educação assume importante papel na reforma

polonesa e seus princípios também podem ser encontrados no seu Primeiro

Discurso:

Se a cultura das ciências é prejudicial Às qualidades guerreiras, ainda o é mais às qualidades morais. Já desde os primeiros anos, uma educação insensata orna nosso espírito e corrompe nosso julgamento. Vejo em todos os lugares estabelecimentos imensos onde a alto preço se educa a juventude para aprender todas as coisas, exceto seus deveres. (ROUSSEAU, 1983, p.347).

Nestas Considerações, Rousseau retoma sua antiga crítica aos Estados de

grande extensão e suas consequentes dificuldades de administração em razão

desta característica espacial, como lemos no próprio Rousseau:

Quase todos os pequenos Estados, Repúblicas e Monarquias indiferentemente, prosperam pelo simples fato de que são pequenos; porque todos os cidadãos se conhecem mutuamente e vêm uns aos outros, porque os chefes podem ver por si mesmos o mal que se faz, o bem que têm a fazer; e porque suas ordens se executam sob seus olhos. ( ROUSSEAU, 1982, p.40).

É possível pensar que o genebrino possuía uma convicção que não se abalou

ao longo dos anos em relação à necessidade de Estados com pequena extensão

territorial para sua melhor administração, lembrando que no seu Contrato Social o

genebrino vincula que para cada extensão territorial caberia um regime de governo

adequado. Em seu elogio à República de Genebra, escrevera a esse respeito:

Se tivera de escolher o lugar de meu nascimento, teria escolhido uma sociedade de tamanho limitado pela extensão das faculdades humanas, isto é, pela possibilidade de ser bem governada e na qual, bastando cada um a seus encargos, ninguém fosse obrigado a incumbir outros das funções de que fora encarregado[...](ROUSSEAU, 1982, p.217).

Mantendo certa unidade em relação a essa questão Rousseau se pronunciou

no Livro II do seu Contrato Social:

Da mesma forma que a natureza deu limites bem determinados à estatura de um homem, e se, ultrapassados, produz Gigantes ou Anões, da mesma forma há limites em relação à melhor constituição de um Estado quanto à sua extensão, para que não seja nem muito grande, para poder ser bem

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governado, nem, muito pequeno, para se manter por si mesmo. (ROUSSEAU, 1996, p. 105).

O espaço de vinte e dois anos que separa o Primeiro Discurso das

Considerações não parece alterar o modo com que Rousseau pensava a educação

e sua importância na construção de um novo homem e no caso da Polônia uma

nova nação.

Como já fizera no Contrato Social, as grandes dimensões polonesas

chamaram a atenção do genebrino devido a dificuldade de condução desta nação,

seria algo praticamente impossível para a inteligência, nas palavras de Rousseau

(1982, p.41), “Só Deus é capaz de governar o mundo e seria necessário faculdades

mais do que humanas para governar grandes nações”. Diante disso, a primeira

reforma que os poloneses deveriam fazer envolve a questão do tamanho do território

polonês, sendo sugerido por Rousseau a formação de governos federativos,

vinculados ao corpo da República. Em virtude da extensa dimensão polonesa,

comparativamente a sua Suíça, é possível pensar que Rousseau foi ousado e

vanguardista em sugerir um modelo federativo, certamente algo visto como absurdo

para os detentores do poder do século XVIII, mas amplamente utilizado nos

próximos séculos.

Como vimos, Rousseau entende que a Polônia possuía uma extensão

territorial desfavorável para uma boa administração. A este respeito Lourival Gomes

Machado oportunamente escreveu:

Mesmo que ignorasse, escreveria o capítulo por fidelidade à sua antiga e firme fé na felicidade política dos pequenos povos. Eis porque, na pior das hipóteses, parece-lhe muito útil que pequena Polônia, grande Polônia e Lituânia se constituíssem como corpos políticos autônomos e interligados numa confederação suficientemente flexível. (MACHADO, apud ROUSSEAU, 1962, p.261).

Ainda em seu Contrato Social, Rousseau procurou demonstrar que um

Estado de grandes proporções pode ser governado por um monarca, desde que

esse tenha certas qualidades:

Para que um Estado monárquico possa ser bem governado, é necessário que sua grandeza ou sua extensão sejam medidas pelas faculdades daquele que governa. É mais fácil conquistar do que reinar. Com um instrumento adequado, é possível mover o mundo com um dedo, mas para sustentá-lo são necessários os ombros de Hércules. Mesmo que um Estado seja grande, quase sempre o Príncipe é muito pequeno. Quando, ao contrário, acontece de o Estado ser muito pequeno para seu chefe- o que é

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raro- aquele é mal governado, porque o chefe, sempre seguindo a grandeza de sua visão, esquece os interesses dos povos, e não os faz menos infelizes pelo abuso dos talentos que tem em excesso, do que um chefe limitado pela ausência dos que lhe faltam (ROUSSEAU, 1996, p. 129).

É possível pensar que a vastidão territorial de um país pode facilmente

degenerar sua vida política, fato que inevitavelmente abalaria a liberdade de seus

cidadãos, nos parece a conclusão que chegou o genebrino ao se deparar com a

extensão da Polônia e preferir um modelo confederativo.

A partir das informações concedidas pelo conde Wielhorski, representante

dos confederados de Bar, o texto de Rousseau procura permear o máximo que pode

as principais esferas políticas e sociais da Polônia, visando produzir um projeto de

reforma mais adequado e amplo possível. Assim, ao analisar o papel que cabe ao

rei, Rousseau abre o texto com uma grave advertência:

É um grande mal que o chefe de uma nação seja o inimigo nato da liberdade de que deveria ser o defensor. Esse mal, a meu ver, não é de tal maneira inerente a esse posto a ponto de não podermos dele isolá-lo ou, ao menos, diminuí-lo consideravelmente. Não há tentação sem esperança. (ROUSSEAU, 1982, p.59).

Desde o Contrato Social, Rousseau não se posicionara contra o regime

monarquista mantendo essa posição nas Considerações. Além dos regimes sua

preocupação se situava na afronta à liberdade aos cidadãos. A esse respeito

escreveu no seu Contrato Social:

Para que um Estado monárquico possa ser bem governado, é necessário que sua grandeza ou sua extensão sejam medidas pelas faculdades daquele que governa. É mais fácil conquistar do que reinar. (ROUSSEAU, 1996, p. 129).

Em suas Considerações, Rousseau rejeitou a hereditariedade sucessória da

coroa polonesa pela simples razão de atentar contra a liberdade tão necessária a

essa conturbada nação. Nas palavras de Rousseau (1982, p.61): “Estejam seguros

de que, a partir do momento em que essa lei for promulgada a Polônia pode dizer

adeus para sempre à sua liberdade.”

Podemos perceber ao longo do texto a preocupação com a necessidade de

se reconstruir a Polônia baseada na liberdade que deveria reinar entre os indivíduos.

Rousseau procurou certificar-se que a figura do monarca não turbasse a liberdade,

pois como já dito não se trata de atribuir os males à figura do rei, mas a potenciais

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problemas que um reinado hereditário poderia trazer aos poloneses, como, por

exemplo, o enfraquecimento do poder legislativo e consequentemente a perda da

liberdade do povo polonês. Assim, o filho não deveria suceder jamais o pai-rei na

proposta rousseauniana, em nome da liberdade da Polônia:

Ao invés dessa fatal lei que tornaria a coroa hereditária, proporei uma bem contrária que, caso fosse admitida, manteria a liberdade da Polônia: seria ordenar, por uma lei fundamental, que nunca a coroa passaria do pai ao filho e que todo filho de um rei da Polônia seria para sempre excluído do trono.(ROUSSEAU, 1982, p.62).

Pensava Rousseau que esta proibição à coroa hereditária garantiria, além da

liberdade, a prosperidade do Estado, uma vez que a ambição pelo poder contínuo

ficaria esmagada, sobrando apenas lugar para a virtude.

Para melhor investigação e compreensão do pensamento de Rousseau,

necessário se faz uma análise em conjunto de suas obras, assim, não podemos

esquecer que o genebrino desde suas primeiras obras já tinha uma noção muito

clara do modelo virtuoso de governante, como lemos lá no Primeiro Discurso:

Oh, Fabrício! Que teria pensado vossa grande alma, se, voltando à vida, para vossa infelicidade, vísseis a face pomposa dessa Roma salva por vosso braço e que vosso nome respeitável ilustrou mais do que todas as suas conquistas? “Deuses”,teríeis dito, “em que se transformaram esses tetos de choupanas e esses lares rústicos nos quais outrora habitavam a moderação e a virtude? (ROUSSEAU, 1983, p.341).

Rousseau sabia da importância da liberdade, como já se posicionara em suas

obras, também sabia e já alertava aos poloneses do risco que a liberdade está

sempre a correr ao longo da história das sociedades. Aqui Rousseau faz um elogio

às confederações polonesas, responsáveis por garantir a liberdade polonesa:

Por toda a parte em que a liberdade reina, ela é incessantemente atacada e muito frequentemente com perigo. Todo Estado livre em que as grandes crises não foram previstas, está, a cada tempestade, em perigo de perecer. Só os poloneses é que de suas crises mesmas souberam tirar um novo meio de manter a constituição. Sem as confederações, há muito tempo que a República da Polônia não mais existiria; e tenho muito medo que não dure muito depois delas, caso se adote o partido de aboli-las. (ROUSSEAU, 1982, p. 68).

Ainda que Rousseau nunca tenha proposto ou praticado a agitação política, o

rompimento político ou a revolução, em relação aos poloneses e seu momento

político grave, o genebrino não tardou em se alinhar aos rebelados poloneses.

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Métodos distintos, mas ideias semelhantes. Derathé nos traz interessante reflexão a

respeito desta característica do genebrino, ao comentar sobre o Contrato Social:

Rousseau sempre se defendeu de ter escrito um libelo e não quer ser confundido com um agitador político. Ele não aspira, de modo algum, a exercer o papel de um homem de Estado, como será o caso de Turgot, por exemplo. Suas ambições são de outra ordem e situam-se em outro plano. “Perseguido pela lembrança dos legisladores antigos, Sólon, Licurgo e Moisés, ele acreditou-se capaz, “por uma inspiração celeste”, de revelar aos homens o que é uma lei “no Estado” e fundar, assim, o direito político” (DERATHÉ, 2009, p.103).

Como se sabe Rousseau não se colocou na condição daquele que em armas

buscou o poder, contudo ao colaborar com a Córsega e a Polônia, vai além do

direito político para se tornar um “homem de Estado”, para usar a expressão de

Derathé, passando a ser um reformador político unicamente pela força de suas

ideias e de sua pena, as armas que dispunha. Vale aqui a reflexão de Bento Prado

Junior em seu prefácio intitulado “Rousseau: filosofia política e revolução, presente

na edição brasileira do Contrato Social publicado pela editora Vozes:

Mas Groethuysen não se limita a opor, assim, a consciência do autor às consequências de sua obra. Mesmo se Rousseau não é revolucionário, não deixa de antecipar a Revolução, embora ela não corresponda a um voto íntimo de seu coração. (ROUSSEAU, 1996, p. 13).

3.8. As leis da Polônia

Rousseau viu a necessidade de diminuir o número de leis na Polônia, e

advertiu seus leitores sobre a importância de que estas sejam completamente

acessíveis a todo polonês, sendo inclusive ensinada nos colégios. Desta forma, a

legislação polonesa não seria objeto do conhecimento de uma pequena elite

esclarecida, tais como advogados e juízes, mas até mesmo as crianças e servos

poderiam conhecer e apreciar suas leis.

Para Rousseau, a lei polonesa deveria ser curta, porém, seu conteúdo

deveria ser adequado ao povo, robusta e alcançar a compreensão de todo e

qualquer polonês. Seria importante que uma lei não viesse cair em desuso ou

perdesse o respeito dos poloneses, neste caso, seria melhor revogá-la, defendeu

Rousseau. Ao transportar esta recomendação de Rousseau para os dias atuais, um

debate que se intensifica no campo da filosofia, sociologia e do direito procura

investigar o fenômeno da produção excessiva de leis como resposta às mais

diversas demandas que os países enfrentam, criando uma complexa e incontrolável

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teia de normas e regras legais, o que poderá gerar como resultado uma verdadeira

descrença do papel do poder legislativo e das próprias leis. Em suas Considerações

escreve Rousseau a respeito:

De resto, não se deve jamais admitir que alguma lei caia em desuso. Fosse ela indiferente ou má, é necessário abrogá-la formalmente ou mantê-la em vigor [...] Em França olha-se como uma máxima de Estado o fechar os olhos em relação a muitas coisas; é a que o despotismo sempre obriga: mas, em um Governo livre, é o meio de enervar a legislação e abalar a constituição. Poucas leis, mas bem digeridas e sobretudo bem conservadas. (ROUSSEAU, 1982, p.72).

A lei deva ser praticamente reverenciada pelos cidadãos, seu uso deve estar

ligado à manutenção da paz, da virtude e da liberdade, a força da lei deve ser

preservada:

Todos os abusos que não são proibidos são ainda sem consequência: mas, que fala de uma lei em um Estado livre, fala de uma coisa diante da qual todo cidadão trene, e o rei em primeiro lugar. Em uma palavra, admiti tudo, menos gastar a força das leis; pois, quando essa força é gasta, o Estado está perdido sem recurso. (ROUSSEAU, 1982, p.73).

Como já afirmamos anteriormente, é possível perceber a relação existente

entre o Contrato Social e as Considerações, seja pelas citações do Contrato

encontradas nas Considerações sobre o governo da Polônia ou porque temos a

nítida impressão que o genebrino procura seus próprios princípios de direito político

presente no Contrato Social como norteador para propor uma reforma para os

poloneses. Assim, não é recomendável tratar o Contrato Social como uma obra

meramente especulativa, nesse sentido comentou Derathé:

Vê-lo como uma exposição de um programa de reformas ou um caderno de reivindicações seria, portanto, falsear seu espírito da obra. [...] Perseguido pela lembrança dos legisladores antigos, Sólon,Licurgo e Moisés, ele acreditou-se capaz, “por uma inspiração celeste”, de revelar aos homens o que é uma lei “ no Estado” e de fundar, assim , o direito político. (DERATHÉ, 2009, p.103).

Ainda tratando da legislação polonesa, fica claro que Rousseau tinha a

preocupação de garantir o fortalecimento do poder legislativo local, como observara

em seu Contrato. É possível pensar que toda força do sistema legislativo polonês

pensado pelo genebrino mantém os nobres objetivos por ele um dia apontados em

seu clássico texto de 1762:

Se indagarmos exatamente em que consiste o maior dos bens, qual deve ser o objetivo de todo o sistema legislativo, concluiremos que se reduz a

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dois objetivos principais: a liberdade e a igualdade. (ROUSSEAU, 1996, p. 110).

3.9. A simplicidade como valor fundamental

O capítulo XI das Considerações é dedicado ao sistema econômico.

Notemos que Rousseau não trata especificamente neste capítulo de um complexo

sistema, discorrendo sobre juros, câmbio, sistema bancário dentre outros temas

inerentes, contrariamente o genebrino procura fornecer apenas certas bases ou

princípios para que um novo sistema econômico floresça mais equilibrado e justo.

Certas posições defendidas por Rousseau nesta fase do texto nos remetem ao

Primeiro Discurso, em especial ao tratar da necessidade da busca da simplicidade

como um dos pilares na construção de uma nação livre, igualitária e virtuosa:

Mas se por acaso preferirdes formar uma nação livre, pacífica e sábia, que não tem medo nem necessidade de ninguém, que se baste a si mesma e que é feliz; então é preciso adotar um método completamente diferente, manter, restabelecer entre vós costumes simples, gostos sadios, um espírito marcial sem ambição; formar almas corajosas e desinteressadas; aplicar vossos povos à agricultura e às artes necessárias à vida, tornar o dinheiro desprezível e, se possível, inútil, buscar, encontrar para operar grandes coisas, móveis mais poderosos e mais seguros. (ROUSSEAU, 1982, p.74, 75).

Esta forte valorização da simplicidade que desde os primeiros textos de

Rousseau, e que também aparece em suas Considerações, provavelmente é uma

reminiscência da reforma de Licurgo, legislador espartano, e figura sempre admirada

pelo genebrino, como podemos ler pela pena de Plutarco:

Decidido a tacar mais ainda o luxo e suprimir a cobiça da riqueza, introduziu a terceira e mais bela de suas instituições, a criação da sissíta, para que jantassem uns em companhia dos outros, comendo pães e pratos determinados e comuns, e não tomassem as refeições reclinados em casa, entre o fausto das mesas e dos leitos, engordando à sombra pela mão de servos e cozinheiros, como animais gulosos, a corromper juntamente o caráter e o corpo, entregue a todos os apetites e satisfações, que requerem sonos prolongados, banhos quentes, muito repouso e, por assim dizer, cuidados diários de enfermagem. (PLUTARCO, s/d,p.21).

A virtude, a coragem e o espírito coletivo que reinaram em Esparta, nunca

deixaram de funcionar como um modelo a ser seguido, inclusive para a Polônia,

como lemos Rousseau (1962, p.310): “Licurgo, para expulsar a cupidez de Esparta,

não enfraqueceu a moeda, mas estabeleceu uma de ferro.”

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Ainda nesta fase do texto, Rousseau volta a defender a necessidade de se

reduzir a extensão territorial da Polônia, bem como sua preferência por um modelo

federativo, associando este raciocínio à ideia de liberdade, como podemos ler:

Se a Polônia fosse, segundo o meu desejo, uma confederação de trinta e três pequenos Estados, ela reuniria a força das grandes Monarquias e a liberdade das pequenas Repúblicas; mas seria preciso para isso renunciar à ostentação e tenho medo que esse ponto seja o mais difícil. (ROUSSEAU, 1982, p. 80).

3.10. A defesa militar

Cercada de países beligerantes, Rousseau reconhece a fragilidade do

sistema militar polonês e afasta a possibilidade de tornar os poloneses em

conquistadores, algo incompatível para quem quer ser livre nas palavras do

genebrino:

Seria uma ainda maior fazer conquistas e vos dar uma força ofensiva; ela é incompatível com a forma de vosso Governo. Quem quer ser livre não deve ser conquistador (ROUSSEAU, 1982, p.83).

A figura do conquistado e do conquistador, comum entre as nações no

século de Rousseau, não era adequada àquela Polônia em frangalhos, que deveria

aprofundar sua vocação para a liberdade. Conquistado e conquistador poderiam ser

a mesma coisa quando reina o contrato iníquo, como observado por Rousseau

(1996, p.70) no início do seu Contrato Social: “Aquele que mais acredita ser o senhor

dos outros não deixa de ser mais escravo do que eles.”

Neste difícil momento para a nação polonesa, talvez a solução seja

encontrada na virtude, como em outrora fizeram os espartanos ao tempo de Licurgo,

assim Rousseau procura recorrer a estratégias elevadas como resposta direta,

confiando no povo polonês e seu amor pela liberdade:

Mas tereis logo, ou, melhor dizendo, já tendes, a força conservadora, que, mesmo subjugados, vos garantirá da destruição e conservará vosso governo e vossa liberdade no seu único verdadeiro santuário, que é o coração dos poloneses. (ROUSSEAU, 1982, p.83).

Diante dos custos e da complexidade de se manterem as força armadas do

rei, Rousseau propõe a criação de milícias populares permanentes. Desta forma,

todo cidadão seria um soldado pronto a servir o Estado. Tal iniciativa proposta pelo

genebrino, além de interessante para as finanças públicas seria indispensável para

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garantir a liberdade que a Polônia buscava diante de outras nações invasoras, como

defendeu Rousseau (1982, p.84), “Todo cidadão deve ser soldado por dever,

nenhum deve sê-lo por mister. Tal foi o sistema militar dos romanos; tal é hoje o dos

suíços; tal deve ser o de todo Estado livre e sobretudo da Polônia”.

O projeto de Rousseau se pauta por certo pacifismo em relação aos países

vizinhos. O que se percebe é a preocupação de Rousseau na reestruturação

polonesa, garantindo em primeiro lugar a autonomia e a liberdade da nação.

Contudo, a defesa do território e da liberdade será de fundamental importância para

os poloneses, transformando-os em virtuosos defensores da pátria se necessário:

No plano que imagino, e que acabarei logo de traçar, toda a Polônia tornar-se-à guerreira, tanto para a defesa de sua liberdade contra as empreitadas do príncipe quanto contra as de seus vizinhos; e eu ousaria dizer que este projeto uma vez bem executado, poder-se-ia suprimir o cargo de Grande General e reuni-lo à coroa, sem que disso resultasse o menor perigo para a liberdade, a menos que a nação não se deixasse engodar por projetos de conquista e nesse caso não responderei mais por nada. (ROUSSEAU, 1982, p.87).

A liberdade do povo polonês tem fundamental destaque no projeto do

genebrino. A elaboração de mecanismos e estratégias militares devem estar

alinhadas com a busca e conquista pela liberdade da Polônia para o seu povo, como

lemos:

É um mau conselho para povos livres o de ter praças fortes; elas não convém ao gênio polonês e por toda parte, mais cedo ou mais tarde, tornam-se ninhos de tiranos. Os lugares que acreditardes fortificar contra os russos, vós os fortificareis infalivelmente para eles; e eles se tornarão para vós entraves de que não vos libertareis. (ROUSSEAU. 1982, p.88).

Como sabemos, ao escrever este texto Rousseau tinha diante de si uma

Polônia em situação política extremamente delicada, convivendo com a ingerência

russa dentro do território polonês, bem como a ausência de uma administração que

zelasse por liberdade e igualdade de seu povo. Mesmo que pareça uma solução

simples, elementos como o amor à pátria, a liberdade e a virtude poderiam tornar a

Polônia uma nação próspera e vigorosa, segunda acreditava Rousseau desde seu

Primeiro Discurso. Em suas Considerações escreveu a esse respeito, como fizera

outras vezes:

Uma coisa basta para tornar impossível subjugá-la: o amor à pátria e à liberdade animada pelas virtudes que dele são inseparáveis. Acabais de dar nesse sentido um exemplo para sempre memorável. Enquanto esse amor

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queimará nos corações, não vos garantirá talvez de um jugo passageiro; mas mais cedo ou mais tarde fará sua explosão, sacudirá o jugo e vos tornará livres. Trabalhai, pois sem descanso, sem cessar, para elevar o patriotismo ao mais alto grau em todos os corações poloneses. (ROUSSEAU, 1982, p.89).

Homem identificado com a liberdade é possível pensar que Rousseau

concordou com a elaboração deste projeto de reforma aos poloneses por realmente

acreditar na intenção popular de modificar e transformar politicamente a Polônia

acossada pelos russos. Tarefa semelhante também foi confiada à Mably,

personagem tão criticado quanto fora Rousseau no texto que compara a liberdade

dos antigos e a liberdade dos modernos, da autoria de Benjamin Constant. De

qualquer maneira o projeto destinado aos poloneses escrito por Rousseau tornou-se

mais conhecido no campo da filosofia política, o que foi comentado por Lourival

Gomes Machado, do qual nos valemos:

Como, para infelicidade da Polônia, nem os planos de Rousseau, nem as propostas utilitárias de Mably puderam encontrar aplicação ou produzir efeito, as Considerações haveriam de ganhar, no julgamento da posteridade, uma importância que jamais alcançaria o minucioso receituário que lhe é contemporâneo.[...] o livro de Rousseau alça-se imediatamente às ideias gerais, se não chega mesmo a refutar a utilidade das reformas meramente técnicas, senão como surgiram no trabalho de Mably que provavelmente desconhecia, ao menos como podemos supor se apresentassem nas notas ou memória de Wielhorski. Antes das minúcias burocráticas, rituais e protocolares, impõem-se examinar os princípios de uma constituição e mesmo os problemas práticos de maior parte- dos quais, embora brevemente, cuidará – dependem, para fixar-se, duma exata noção dos objetivos fundamentais a que devem corresponder. Eis como Rousseau, tratando da Polônia, tratará também de transpor para o plano da aplicação real quanto, teoricamente, estabelecera no Contrato Social, ao qual faz, no novo texto, constantes referencias (MACHADO, apud ROUSSEAU, 1962, p.259).

A simpatia de Rousseau por este bravo povo fica evidenciado em certas

passagens de suas Considerações:

Acreditei falar a um povo que, sem estar isento de vícios, tinha ainda vigor e virtudes; e, supondo-se isto, meu projeto é bom. Mas, se já a Polônia chegou neste ponto em que tudo seja venal e corrompido até à raiz, é em vão que busca reformar suas leis e conservar sua liberdade; é preciso que a ela renuncie e que dobre sua cabeça sob o jugo. (ROUSSEAU, 1982, p.92).

A reforma proposta buscava uma marcha gradual onde haveria uma evolução

e ascensão das camadas mais populares, como os servos, além dos burgueses.

Nada deveria ser feito de forma brusca e sem planejamento. Como já sustentamos,

a liberdade pautou muitos dos textos políticos de Rousseau, e desta feita não

deveria ser diferente ao ser chamado a participar da efetividade das coisas, não

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mais no campo da normatividade, ainda que tais propostas possam parecer tímidas.

Esta ascensão, além de garantir uma verdadeira coesão política, também visa

manter a liberdade daqueles que pouco dispõem desta, como bem escreveu

Rousseau:

O segundo meio, sem o qual o primeiro não é nada, é abrir uma porta aos servos para adquirir a liberdade e aos burgueses para adquirir a nobreza. (ROUSSEAU, 1982, p.94).

Mas diferentemente daquilo que se imagina, a libertação destes servos não

deve constituir um problema a seus senhores, mas motivo de verdadeira honra:

Pois seria absolutamente necessário fazer de sorte que ao invés de ser onerosa ao senhor a libertação do servo se lhe tornasse honrosa e vantajosa; é claro que para evitar o abuso, estas liberações não se fariam pelos senhores, mas nas dietinas, por julgamento e apenas o número fixado pela Lei. (ROUSSEAU, 1982, p.96).

Como vimos, a liberdade vai ganhando espaço dentro do texto escrito por

Rousseau aos poloneses. Não só a liberdade em relação aos russos, mas também a

liberdade política que cada cidadão deve gozar e amar. Rousseau enxerga nela a

verdadeira possibilidade de se construir uma nova mentalidade e uma nação

virtuosa e preparada para arrostar todas as dificuldades. A libertação dos servos e

suas famílias também formaria um efetivo útil a própria segurança da nação

polonesa, segundo defendeu o genebrino:

Quando se tiver liberado sucessivamente um certo número de famílias em um cantão, poder-se-iam liberar vilarejos inteiros, formar neles pouco a pouco comunas, atribuir-lhes alguns fundos, algumas terras comunais como na Suíça, estabelecer oficiais comunais; e, quando tivermos conduzido por graus as coisas até poder, sem revolução sensível, acabar a operação em grande, restituir-lhes enfim o direito, que lhes deu a natureza, de participar da administração de seu país enviando deputados às dietinas.(ROUSSEAU, 1982, p.96).

A passagem citada revela pontos importantes da teoria política de Rousseau.

Tendo como fio condutor a liberdade que deverá ser devolvida aos servos e suas

respectivas famílias, o genebrino antecipa questões que viriam a ser tratadas por

anarquistas e comunistas, quando propôs a formação de comunas, além de garantir

que estes indivíduos possam participar ativamente da vida política polonesa,

enviando deputados às dietinas, importante instância política polonesa da época:

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Feito tudo isso, armar-se-ia todos os camponeses, tornados homens livres e cidadãos, arregimentá-los-ia, exercitá-los-ia e acabando-se por ter uma milícia verdadeiramente excelente, mais do que suficiente para a defesa do Estado. (ROUSSEAU, 1982, p.96).

É válida a reflexão feita por Derathé sobre o papel dos deputados frente aos

princípios do Contrato Social, onde o soberano está concentrado nas mãos dos

cidadãos:

Assim, segundo os princípios do Contrato Social, o povo pode designar os deputados, com a condição, todavia, de que estes não tenham “nenhum direito legislativo”, que eles se limitem a preparar, propor e redigir as leis, o povo permanecendo sempre livre para ratifica-las ou rejeitá-las por seus sufrágios. Mas , quando os próprios deputados exercem a potência legislativa, quando votam as leis, eles se tornam, durante toda a duração de seu mandato, os únicos senhores do Estado. (DERATHÉ, 2009, p. 394).

É possível pensar que em relação aos poloneses, onde Rousseau não

recomendou o uso da vontade geral, como apresentado no Contrato, o papel do

legislativo guarde certa proximidade com os princípios do Contrato, como escreveu

Derathé.

3.11. Os reis e a liberdade

Favorável à manutenção da monarquia na Polônia, Rousseau se opõe à

hereditariedade da coroa e na escolha de um monarca que não seja polonês. A

liberdade que este rei deve garantir a seus súditos também ganha a previsão no

texto de Rousseau (1982, p.99),“Todas essas dificuldades se reduzem à de dar ao

Estado um chefe cuja escolha não cause perturbações e que não atente contra a

liberdade” . Lembremos que Salinas Fortes (1986, p.69) em seu opúsculo sobre o

Iluminismo e os reis filósofos, ao tratar da filosofia de Rousseau, então

incompreendida em seu século, escreveu: “Liberdade e Soberania, mais do que

„Liberdade e Igualdade‟, são, então, as duas grandes noções centrais dessa filosofia

incompreendida.”

Rousseau propõe em seu projeto um interessante método de avaliação post

mortem para os reis que seguramente poderá influenciar suas ações ainda em vida.

Trata-se de um pronunciamento feito por um tribunal composto por cidadãos, com a

atribuição de declarar por sentença como “bom e justo príncipe”, tendo seu nome

escrito na honrosa lista dos Reis da Polônia. Em sentido contrário, o mau governo

assim declarado pelo já citado tribunal, terá sua justa paga, sendo considerado

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culpado, e seu rei enterrado sem honrarias reais, recaindo o peso desta decisão nos

filhos do rei, pois seriam privados do título de príncipe. É interessante perceber o

zelo que possuía o genebrino em relação à liberdade do povo polonês, vez que o

monarca ainda que falecido, ao ser submetido ao exame dos súditos, poderia ter sua

memória desonrada, dentre outras ações, o desrespeito à liberdade pública, como

proporia nas Considerações Rousseau (1982, p.104): “Caso, ao contrário, fosse

considerado culpado de injustiça, de violência, de malversação e sobretudo de ter

atentado contra a liberdade pública, sua memória seria condenada e estigmatizada”.

A título de esclarecimento, é sempre importante lembrar que Rousseau

destoa dentre seus pares, por não ser entusiasta dos “déspotas esclarecidos”, como

bem escreveu Salinas Fortes, no seu já citado O iluminismo e os reis filósofos:

O que é inegável é o extraordinário prestígio de Frederico junto aos filósofos e homens de letras da época. Exprimindo certamente um ponto de vista geral, dele disse, d‟Alembert, uma vez: “Os filósofos e os homens de letras de todas as nações vos consideram há muito tempo, majestade, como o seu chefe e o seu modelo”. Também Emmanuel Kant, em um texto de 1789, dos mais importantes para a compreensão da época, declara que o século XVIII poderia ser chamado de Século das Luzes ou século anterior como século de Luiz XIV [...] Ele é amigo pessoal e correspondente de Voltaire. É amigo mais ainda de d‟Alembert e também de Diderot. (FORTES, 1986, p.76).

Como já destacamos, mesmo não se posicionando contrariamente à

monarquia como forma de governo, Rousseau não se deixou deslumbrar pelos reis

filósofos, e no caso da Polônia, orientou a manutenção deste regime, contudo teve a

cautela de fornecer elementos para extrair deste formato o melhor resultado. É

possível pensar que a rejeição do genebrino estava num regime monárquico

absolutista, como comentou Derathé:

Rousseau utiliza contra o regime representativo o próprio argumento do qual se servira para combater a monarquia absoluta. O que não deve nos espantar, já que para ele “a soberania não pode ser representada pela mesma razão que não pode ser alienada.” (DERATHÉ, 2009, p. 394).

Para Rousseau o fundamental seria manter a liberdade que segundo seu

entender os Poloneses estavam destinados. É possível pensar que as obras

políticas mais lidas e comentadas do genebrino têm a liberdade como fio condutor,

não constituindo o projeto para Polônia exceção a nosso ver, apesar de visões

distintas sobre o alcance ou intenções destas obras, tema que tratamos em nossa

introdução. Ernest Cassirer comentou a questão da liberdade em Rousseau e suas

controvérsias:

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Neste ponto, contudo, necessita-se de uma interpretação para pisar um terreno difícil e escorregadio. Pois de todos os conceitos de Rousseau, o seu conceito de liberdade é o que passou pelas interpretações mais diversas e mais contraditórias. Nesta disputa de quase dois séculos travada em torno dele, este conceito perdeu quase completamente a sua determinação. “Foi puxado ora para cá ora para lá, pelas facções do ódio e da benevolência; tornou-se um mero slogan político que cintila hoje em todas as cores e foi colocadoa serviço dos mais diferentes objetivos da luta política” (CASSIRER, 1997, p.55).

Em relação à Polônia entendemos não ter sido diferente, ou seja, apesar das

aparentes controvérsias envolvendo a defesa dos representantes legislativos e a

ausência da vontade geral em seu projeto polonês, temas tratados por Salinas

Fortes, entendemos acima de tudo, que Rousseau tencionava garantir a liberdade

da nação Polonesa em relação ao inimigo externo, bem como, a liberdade política

do cidadão polonês.

O conceito de liberdade em Rousseau pode ser compreendido pois esta

colocado com certa clareza em suas obras, é a opinião de Cassirer, o qual leremos

novamente:

Ele [Rousseau] definiu com clareza e segurança o sentido específico e o verdadeiro significado fundamental de sua ideia de liberdade. Para ele, liberdade não significa arbítrio, mas a superação e a exclusão de todo arbítrio. (CASSIRER, 1997, p. 55).

3.12. A conclusão do projeto para a Polônia

Rousseau termina suas Considerações lembrando aos poloneses do estado

de anarquia e fraqueza que se encontra a Polônia, e fazendo referência ao seu

Contrato Social, recomenda um intervalo de tranquilidade para então agir e

rejuvenescer sua constituição. Certamente o genebrino sabe as drásticas

consequências de ações bruscas e impensadas quando se trata de ações políticas.

A liberdade como valor deve pautar esta reforma e mais um conselho é

dirigido ao bravo povo polonês que tem na Rússia uma constante ameaça a esta

liberdade:

Não sereis nunca livres enquanto restar um só soldado russo; e sereis sempre ameaçados de deixar de sê-lo enquanto a Rússia se meter em vossos assuntos. (ROUSSEAU, 1982, p.106).

Rousseau (1982, p.110) conclui seu projeto, novamente solicitando calma na

sua condução: “Não abaleis nunca muito bruscamente a máquina”. Importante se

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faz, pensa Rousseau, em aproveitar os cidadãos poloneses dispostos a fazer a

reforma proposta:

Não podendo criar de uma hora para outra novos cidadãos, é preciso começar por tirar partido daqueles que existem; e oferecer uma rota nova À sua ambição é o meio de dispô-los a segui-la.(ROUSSEAU, 1982, p.110).

Temos aqui o último texto político de Jean-Jacques Rousseau, que termina de

forma singela, mas que dá a exata medida da postura do genebrino:

Talvez tudo isso não é mais do que um amontoado de quimeras, mas eis minhas ideias. Não é minha culpa se parecem tão pouco às dos outros homens; e não dependeu de mim organizar minha cabeça de uma outra maneira. (ROUSSEAU, 1982, p. 110).

3.13. A dialética Rousseauniana

Em seu último texto político, As Considerações, o genebrino se situa

definitivamente no campo do ser e atua como uma espécie de reformador convidado

por um grupo de confederados poloneses. Contudo o genebrino se notabiliza como

um pensador político, homem de letras e reflexão, no campo do dever ser. Qual

Rousseau se sobressaiu nesta última empreitada política? Entendemos ser o

Rousseau da síntese, aquele que com o coração voltado para a sua teoria, ao

adentrar na prática, produziu uma síntese entre o que pensou e o que propôs, tanto

aos corsos quanto aos poloneses. Seria completamente impossível transformar o

Contrato Social ou mesmo adaptá-lo como um código legal a estes povos. Os

leitores de Rousseau estão habituados a esse personagem de mil faces e de difícil

classificação, como bem lembrou Salinas Fortes:

Seria Rousseau iluminista, iluminado, iluminador? Não se sabe. O que se sabe de efetivo é que sua obra é mesmo muito complicada, com mil meandros e aparentes contradições insuperáveis. Ele parece desdizer em uma página o que disse na outra. (FORTES, 1986, p.72).

Acerca da indagação que abre nosso subtítulo, é importante refletir na árdua

tarefa da qual se incumbiu o genebrino ao fornecer aos Poloneses um projeto de

reforma que sugeria formas de atingir os corações poloneses e não somente uma

simples alteração nas leis vigentes. Uma leitura desatenta das Considerações pode

passar uma impressão inicial de um Rousseau contraditório em suas propostas aos

poloneses, principalmente comparando-o com o Contrato Social, contudo,

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acreditamos que o cidadão de Genebra tinha clara consciência de seu papel e o que

fazia.

Para Derathé, o genebrino foi obrigado a adotar uma postura mais

conciliadora e realista na elaboração do projeto aos poloneses, vez que o Contrato

Social espelha princípios norteadores:

Assim, o rigorismo que Rousseau adotava em 1762 no Contrato social deu lugar, em 1772, a uma atitude mais conciliatória e, sobretudo, mais realista. (DERATHÉ, 2009, p. 409).

A relação do Contrato Social com as Considerações pode ser de proximidade;

é o que defende Salinas Fortes na sua conclusão de Rousseau, da Teoria à Prática:

Retornemos às Considerações sobre o Governo da Polônia. Vemos como, longe de contrariar a perspectiva teórica, o texto se constitui como aplicação sistemática dos princípios doutrinários do Contrato. (FORTES, 1976, p. 126).

Rousseau procurou sugerir aos poloneses as soluções mais adequadas frente

aos problemas encontrados, tendo no seu Contrato um referencial teórico, e não

uma cartilha prática, como já observara Derathé em outro momento. Assim, o

legislador deve conhecer a realidade que lhe cerca, incluindo os homens e as

instituições, para que análise e o caminho indicado sejam compatíveis. Nesse

sentido, recorreremos novamente a Salinas:

É em respeito ao primeiro princípio do método do Legislador, de acordo com o qual as leis devem ser apropriadas à situação particular, que Rousseau traça os limites do se trabalho. (FORTES, 1976, p. 126).

Ainda sobre a relação do Contrato Social e as Considerações, Derathé com

acuidade escreveu sobre o tema:

Quando redige suas Considerações sobre o Governo da Polônia (1772), Rousseau tem consciência de propor reformas destinadas a “um grande Estado” no qual não se trata de aplicar literalmente os princípios do Contrato social. (DERATHÉ, 2009, p.404).

Nas Considerações, Rousseau não vê a solução dos problemas e impasses

poloneses com a proposta de uma reforma legal e política, como fizera Mably. Para

o genebrino seria fundamental que as mudanças não fossem bruscas e que o

coração dos homens pudessem ser alcançados. Não deveria haver muitas leis, e as

poucas existentes deveriam estar acima dos homens. Seriam estes os pontos-chave

de seu projeto ao nosso ver. Uma reforma que procurou se apoiar na crença de que

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a virtude do homem polonês seria decisiva para seu êxito, como fora para os

espartanos e o projeto de Licurgo. Salinas Fortes de forma breve resume a solução

para o problema polonês, segundo acreditava o genebrino:

Em seguida, ele se coloca de um ponto de vista sistemático para contestar que uma solução para os problemas poloneses possa vir como consequência apenas de uma reforma da sua legislação. Indica, então, qual é o problema essencial e, finalmente, mostra os poloneses qual o caminho que devem seguir para resolvê-lo. Estabelece, assim, duas coisas: 1) a reforma das leis não deve ser radical porque elas não são tão más como se pretende; 2) não é apenas reformando em parte estas leis que se poderá resolver os problemas poloneses, uma vez que a sua causa não está na deficiência das leis, mas no seu abuso: os abusos é que devem ser atacados e o meio para fazê-lo não é substituir as leis, mas colocar a lei acima dos homens. (FORTES, 1976, p.128).

A leitura do derradeiro texto político do cidadão de Genebra vai revelando um

filósofo, que a exemplo de seu apreciado Licurgo, preocupou-se em atingir mais o

coração dos homens a apresentar um conjunto de leis positivas. Rousseau, de certa

maneira, perfaz o caminho político de Maquiavel, dois séculos antes, mas

substituindo a virtú do príncipe, pela virtude do homem polonês, elementos vitais em

suas propostas. O pensador de Florença é especialmente admirado pelo genebrino,

que não lhe poupa elogios no Contrato Social, citando-o diversas vezes. Ficou

conhecida a afirmativa de Rousseau (1996, p.128): “foi isso que Maquiavel

demonstrou com evidência. Fingindo dar lições aos Reis, deu grandes lições aos

povos. O Príncipe de Maquiavel é o livro dos republicanos”.

Esta fase Rousseau se entrega a um projeto dentro da efetividade das coisas,

nos remete a experiência de dois autores comprovadamente lidos pelo genebrino,

Platão e sua experiência frustrada em Siracusa e o já citado Maquiavel, que além

de atuar como chanceler da república florentina, forneceu, como ressaltou o próprio

Rousseau, lições valiosas não só a príncipes como ao povo. É possível interpretar

que esta rica e breve experiência vivida por Rousseau o aproxima destes autores,

que transitaram do dever ser ao ser.

Assim a lei deve ir até o coração do homem, que não deverá estar acima

daquela. Como conseguir esse extraordinário feito? O próprio Rousseau nos

responde por meio da pena de Salinas Fortes:

Trata-se de recorrer a instituições aparentemente ociosas, capazes de formar os costumes do povo, dando-lhe a capacidade de amar as leis e a pátria. Estas instituições ociosas, como ele mostrará a seguir, são, de um

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lado, os jogos e espetáculos públicos e, de outro, a educação pública. (FORTES, 1976, p. 132).

Da sua curta experiência como legislador ou reformador na Polônia, o legado

construído por Rousseau, em nosso entender, é a figura do filósofo que mesmo

sendo homem de paradoxos, não abdicou da coerência, seu texto aos poloneses

mantém unidade com os princípios apresentados por ele décadas antes, em

especial o primeiro e o segundo Discurso, Emílio e finalmente o Contrato Social,

paradigma maior do projeto polonês. Rousseau procurou se ajustar ao tempo e às

circunstâncias que o cercava naquele momento e corajosamente aceitou o convite

proposto pelo conde Wielhorski . O que se vê é uma real preocupação em eliminar

qualquer arbítrio e consequentemente garantir a liberdade no solo polonês.

Rousseau não alcançou o mesmo êxito de Licurgo, Sólon e Moisés, pois seu projeto

jamais fora aproveitado pelo polonês, contudo no campo da filosofia política as

Considerações texto tornou-se fundamental para a compreensão que a liberdade

tem na filosofia de Rousseau. Assim qualquer aparente contradição entre os textos

do dever ser e do ser do genebrino merece ser dissipada, pois temos uma

verdadeira dialética entre o Rousseau teórico, das obras políticas e o Rousseau

interagindo com as realidades da Polônia e da Córsega; a síntese é a produção dos

dois projetos de reforma tratados neste capítulo. Não vemos qualquer traço de

contradição no Rousseau reformador, pois seus textos dialogam com situações

reais, graves e seu direito político (Contrato Social) norteia, inspira e é o paradigma

de seus textos reformadores. A esse respeito escreveu Derathé ao comentar as

Considerações sobre o governo da Polônia:

Essa obra é o testemunho do realismo político de Rousseau e nos mostra em que sentido seus discípulos atuais devem interpretar sua doutrina para adaptá-la às condições da vida política nos grandes Estados modernos. (DERATHÉ, 2009, p.409).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há exatos cinquenta anos instaurava-se no Brasil um regime político que ficou

marcado por se contrapor violentamente à liberdade. Pelas ações que protagonizou

durante vinte e um anos, o regime militar se caracterizou pela perseguição e

violência impostas a inúmeros cidadãos, cerceando liberdades, cassando mandatos,

suspendendo direitos políticos e promovendo a tortura. Nesse contexto, diversos

brasileiros resistiram a esse regime autoritário, o que resultou na redemocratização

brasileira em 1985. Dentre esses inúmeros brasileiros, destaca-se um célebre

estudioso da obra do genebrino, Luiz Roberto Salinas Fortes, que não recuou às

lutas de seu tempo e como o genebrino, também conheceu a força da perseguição e

da prisão, o que lhe permitiu, naturalmente, exaltar a importância da liberdade.

Leiamos Salinas:

O que me reserva este domingo, segundo dia de reclusão? Que horas serão? Já bate forte a luz do dia quando alguém anuncia, através do postigo, que se abre de súbito, a dádiva do senhor, alimento para as feras, pão duro e um copo de plástico cheio de café com leite, cujo gosto é até hoje páreo para as maiores iguarias e se classifica entre os primeiros na tábua dos valores palatais. Estendo a mão, pego o copo, o pão duro. Um gole, um pedaço de pão, quente o pão, duro o gole, duro-quente a refeição matinal, a luz brilhando, despejando-se generosa, como é bom viver em liberdade. Mas o alimento se evapora e as cadeias se enrolam no pensamento. Como me safar desta? Qual foi, afinal, o crime cometido? Terei, também, direito à anistia? (FORTES, 1988, p. 52).

Se Salinas Fortes pagou com sua liberdade o preço de se contrapor a um

governo despótico, seu mentor não chegou a conhecer a prisão, mas sua

preocupação com o despotismo e a liberdade retratadas em seus textos lhe valeu

seguidas perseguições das autoridades de seu tempo.

Porém, ainda que Rousseau tenha se mostrado um cidadão profundamente

incomodado com tais questões, foi considerado como grande inspirador de

totalitarismos e até inimigo da liberdade.

Para um pensador do porte de Rousseau, chega ser perfeitamente

compreensível a existência de interpretações distintas de suas obras, em razão de

uma série de circunstâncias. Uma em especial que destacaríamos é a visão política

ou ideológica do leitor ou comentador que pode influir diretamente na interpretação

daquilo que se lê.

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Em nossa introdução apresentamos um pequeno quadro das diferentes

visões ideológicas em Rousseau, passando por diferentes comentadores com

interpretações voltadas ao campo do marxismo, anarquismo e finalmente o

liberalismo, possibilitando apresentar diferentes perspectivas sobre o genebrino.

No campo do pensamento marxista, apresentamos, ainda que brevemente,

três autores que se puseram a pensar Rousseau: Althusser, Della Volpe e o

brasileiro Carlos Nelson Coutinho.

Destacou Althusser a importância da questão relacionada à alienação do

indivíduo na teoria política de Rousseau, reconhecendo essa superior a de Hobbes,

ao tratar do problema do contrato, pois em Rousseau a figura do príncipe não possui

o destaque que lhe deu o filósofo inglês.

Por sua vez, Della Volpe faz uma relação de proximidade entre o marxismo-

leninismo e a teoria política de Rousseau, ao tratar do tema da igualdade. Para o

filósofo italiano, Rousseau possuiu o mérito de identificar e tratar inicialmente do

problema, abrindo o caminho para que o socialismo científico pudesse eliminar a

desigualdade reinante, fruto de um direito burguês que perpetuava tal desigualdade

entre os homens.

Encerrando a perspectiva marxista, o professor Carlos Nelson Coutinho que

ressaltou a crença que nutria Rousseau numa transformação do indivíduo

demonstrada no seu Contrato Social e também no Emílio, possibilitando a criação de

uma sociedade solidária. Também é importante destacar que Coutinho via no

Contrato a materialização de uma república autogovernada fundada na vontade

geral, democrática e igualitária.

No campo do anarquismo, nos valemos da análise de George Woodcock.

Destacamos que tanto Rousseau quanto as mais diversas correntes existentes de

anarquistas tiveram o interesse comum pela liberdade, ainda que por meios

distintos. Ao destacar na obra o pensamento de Proudhon, importante teórico

anarquista, é possível perceber em certos momentos uma proximidade com o

pensamento político de Rousseau, ainda que não possamos afirmar que o genebrino

tenha sido uma influência direta para o anarquista francês. Para Robert Wokler, a

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crítica feita por Rousseau à propriedade privada e o contrato iníquo, pode ter

influenciado Proudhon:

A noção de que “ a propriedade é um roubo”, defendida por Proudhon e outros socialistas no século XIX, deve muito a esse argumento.(WOKLER, 2012, P.64).

Contudo, outro importante pensador anarquista, Willian Godwin, foi leitor de

Rousseau, segundo relado Woodcock.

Ainda no anarquismo, apresentamos a professora Patrizia Piozzi, que

também buscou na obra de Rousseau relações com o anarquismo. Destaca a

importância do Contrato Social como instrumento para reconquistar a verdadeira

liberdade e extinguir práticas estatais coercitivas e autoritárias. Destaca a presença

de questões fundamentais, tais como a regulamentação da propriedade privada, a

diminuição da desigualdade entre possuidores e despossuídos, democracia direta,

escravidão, liberdade, além da importância da educação na formação do cidadão.

Para Benjamin Constant, representante do liberalismo antigo, a liberdade

individual não fora respeitada dentro dos modelos republicanos de Esparta e Roma

antiga, sendo considerados ultrapassados, pois estavam voltados unicamente à

participação política e à coisa pública, o que inviabilizaria pela falta de tempo,

interesses privados. Para Constant a liberdade dos antigos não seria conveniente ao

homem de seu tempo. Ainda dentro da perspectiva liberal, apresentamos talvez seu

maior expoente, Isaiah Berlin, pensador contemporâneo e crítico de Rousseau, o

qual retomaremos oportunamente.

Ainda que tenha recebido títulos pouco honrosos tais como inimigo da

liberdade e inspirador de totalitarismos, temos em Rousseau um autêntico defensor

da liberdade, não só por sua obra política, pois nos deparamos com um filósofo

profundamente preocupado com a liberdade, dos Discursos aos Devaneios o tema é

sempre tratado e problematizado. Também a própria vida de Rousseau nos revela

um homem que procurou na medida de suas forças não se deixar escravizar por

instituições, amizades, governos, títulos e cargos, e até seus rompimentos e

contradições também refletem em certa medida seu espírito libertário, tendo um dia

escrito:

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Renunciar à sua liberdade é renunciar à sua condição de homem, aos direitos da humanidade, e até mesmo aos próprios deveres. Não é possível qualquer compensação para alguém que renuncie a tudo. Tal renúncia é incompatível com a natureza do homem, e destituir sua vontade de toda a liberdade é o mesmo que destituir suas ações de toda moralidade. (ROUSSEAU, 1995, p. 74).

Retomemos assim a leitura crítica de Isaiah Berlin, pois além de atual, o

respeitado pensador liberal, viu em sua análise de Rousseau traços reais e

inspiradores do totalitarismo. A leitura de seu Rousseau e outros cinco inimigos da

liberdade nos releva um Rousseau paradoxal, amante da liberdade, mas na prática

se constituindo no seu potente inimigo, mesmo que de forma inconsciente:

Nesse sentido, não é minimamente paradoxal afirmar que Rousseau, que reivindica ter sido o amante mais ardente e apaixonado da liberdade humana que alguma vez viveu, que procurou libertar todas as grilhetas, os constrangimentos da educação, da sofisticação, da cultura, da convenção, da ciência, da arte, de tudo o que seja, porque todas essas coisas de algum modo o violavam, todas essas coisas de alguma forma limitavam a sua liberdade natural como homem – Rousseau, apesar de tudo isso,foi um dos mais funestos e formidáveis inimigos da liberdade em toda a história do pensamento moderno. (BERLIN, 2005, p.74).

Sustenta Berlin que a concepção de liberdade defendida por Rousseau tinha

como herdeiros funestas figuras como Hitler e Mussolini. O pacto social de

Rousseau se transformaria num instrumento opressor, na medida em que

desprezaria o indivíduo, frágil e incapaz de fazer escolhas corretas. Nessa

perspectiva, esse corpo social deveria pensar escolher e agir por esse indivíduo,

portanto escravizando-o. Nesse sentido escreveu o pensador liberal:

Quando impeço um homem de prosseguir fins perversos, mesmo quando o ponho na prisão para impedi-lo de prejudicar outros homens bons, mesmo que o execute como um criminoso dissoluto, faço-o apenas por razões utilitárias, para oferecer felicidade a outros; nem mesmo por razões punitivas, para o castigar pelo mal que pratica. Faço-o porque é aquilo que o próprio eu interior, melhor, mais real, teria feito se lhe fosse permitido exprimir-se. Instituo-me como a autoridade, não apenas sobre as minhas acções, mas sobre as suas. É esse o significado da célebre frase de Rousseau acerca do direito da sociedade de forçar os homens a serem livres. (BERLIN, 2005, p. 71).

Sustenta Berlin em seu texto, que ao longo dos tempos a filosofia política tem

se ocupado da complexa questão que envolve autoridade e liberdade e os limites de

cada qual. Lembra o filósofo liberal, que esta clássica questão também está presente

no Contrato Social e segundo crê, tal problema não fora resolvido por Rousseau. Na

visão de Berlin, a descrição feita no Contrato poderia gerar uma estrutura

completamente autoritária, pois dentre as diversas atribuições reservadas ao corpo

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social rousseauniana haveria o questionável e paradoxal papel de se obrigar o

individuo a ser livre. Leiamos Berlin:

Forçar um homem a ser livre é forçá-lo a comportar-se de uma forma racional. É livre o homem que obtém aquilo que deseja; aquilo que verdadeiramente deseja é um fim racional. Se não deseja um fim racional, não deseja verdadeiramente; se não deseja um fim racional, aquilo que deseja não é a verdadeira, mas a falsa liberdade. Forço-o a fazer coisas que o farão feliz. Ele ficar-me-á grato se alguma vez descobrir o seu próprio eu verdadeiro: é esse o âmago da sua famosa doutrina e não há um ditador no Ocidente que depois de Rousseau não tenha utilizado esse monstruoso paradoxo para justificar o seu comportamento. Os Jacobinos, Robespierre, Hitler, Mussolini, os Comunistas, utilizaram todos esse método argumentativo, de afirmar que os homens não sabem o que verdadeiramente querem – e, assim, ao querê-los por eles, ao desejá-lo em seu nome, damos-lhes o que num sentido oculto, sem que eles próprios saibam, desejam “ realmente”. ( BERLIN, 2005, p. 72).

Desta forma, é nesse famoso paradoxo de Rousseau que Isaiah Berlin

encontrou subsídios para classificar o genebrino como inimigo da liberdade e

manipulador de homens, como fizeram Hitler e outros. Acreditamos que Berlin tenha

levado demasiadamente a sério a famosa frase de Rousseau, “forçado a ser livre”,

depreendendo um sentido diverso daquele que seu autor tencionou. Escreveu o

genebrino a famosa passagem:

Para que então o pacto social não seja um acordo vão, está compreendido nele, mesmo de forma tácita, esse engajamento que sozinho pode dar força aos outros, de forma que quem recusar obedecer à vontade geral será obrigado a isso por todo o corpo: o que não significa outra coisa a não ser que será forçado a ser livre, uma vez que essa é a condição que cada Cidadão dá à Pátria e que o garante de toda a dependência pessoal. Condição essa que faz o artifício e o jogo da máquina política, e a única que torna legítimos os compromissos civis que sem ela seriam absurdos, tirânicos e sujeitos aos maiores abusos. (ROUSSEAU, 1996, p. 82).

É possível afirmar que Rousseau jamais teve qualquer pretensão de inspirar

regimes totalitários, pois toda sua obra política e em especial o Contrato Social têm a

marca da liberdade, sendo tal obra um verdadeiro conjunto de princípios universais,

atemporais e republicanos não devem ser interpretados como um manual

programático, equívoco que talvez Berlin tenha cometido. Além disso, é possível

pensar que os diversos paradoxos presentes na obra política de Rousseau seriam

recursos úteis para criticar os filósofos e a filosofia de seu tempo, e demonstrar a

versatilidade e inquietação de um autor criativo e provocador.

A questão do “ser forçado a ser livre” também pode indicar um Rousseau

pronto a defender a primazia da vontade geral e popular como única e verdadeira

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instância de poder legislativo. A obra política do genebrino inspira a força

comunitária sempre pronta a partilhar e autolegislar, voltada ao bem comum nos

moldes republicanos. Assim o poder soberano deve ser concentrado nas mãos dos

cidadãos e não pode sofrer qualquer ameaça, seja do príncipe ou de qualquer

súdito, sob pena de fazer perecer todo o Estado.

Na perspectiva de Rousseau “forçado a ser livre”, implica unicamente a ser

forçado a cumprir normas as quais livremente concordou com sua existência

previamente, na medida em que forma o pacto social e participa da vontade geral,

como cidadão. Não há nada de despótico ou misterioso na afirmativa de Rousseau,

trata-se de uma questão fundamental para a manutenção do Estado e da vontade

geral, o cumprimento das leis que de maneira coletiva, republicana e democrática foi

gerada.

Atualmente, ser forçado a ser livre corresponde a observar e cumprir normas,

ainda que eu discorde, mas que livremente as concebi, participando diretamente por

canais diretos tais como plebiscito ou indiretamente por meus representantes.

Na republica de Rousseau, liberdade e igualdade são importantes pilares de

sustentação e é na própria autoridade desse corpo social que encontramos a

garantia dessa liberdade socializada que substitui a liberdade natural, como

argumentou Lourival Gomes Machado:

Eis como tudo se origina de uma convenção e, por seu intermédio, dando-se cada um, total e igualmente, a todos, preserva-se a sua igualdade a sua liberdade, sendo que esta última apenas se transforma, porquanto em lugar da liberdade natural irrestrita, instala-se agora uma liberdade convencional, uma existência livre porém socializada. (MACHADO, apud ROUSSEAU, 1962, p.11).

Assim, a existência livre e sociabilizada dentro do pacto de Rousseau implica

na assunção de responsabilidades, pois o individuo vive coletivamente, e como

alterna a condição de cidadão e súdito, quando necessário, o corpo social do qual é

membro deverá forçá-lo a ser livre, ou seja, forçá-lo a obedecer às normas, por ele

livremente legislado, como observou Antonio Ruzza:

Para Rousseau, defensor da soberania popular, o poder executivo está em posição subalterna, como sua emanação, nunca alienação, para permitir a ligação entre Estado ou República passiva, composta pelos cidadãos que devem seguir as leis da sua cidade, e o mesmo Soberano ou República ativa, detentor do poder legislativo. (RUZZA, 2010, p. 144).

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Desta forma, não se pode pensar em liberdade política em Rousseau, sem

falar em estar associado o que nos remete diretamente à vontade geral, versão

rousseauniana da àgora e tinha como finalidade tornar o homem tão livre quanto

fora no estado da natureza:

Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado de toda a força comum, e pela qual um, unindo-se a todos, só obedeça a si mesmo, permanecendo tão livre quanto antes. Esse é o problema central que o contrato social soluciona. (ROUSSEAU, 1995, p.78).

Essa liberdade política possível num estado civil onde a vontade geral é a

marca, que viria a intrigar liberais como Berlin, é possível quando se associa o

Contrato de Rousseau a uma perspectiva notadamente republicana. Nesse sentido,

Antonio Ruzza em seu Rousseau e a moralidade republicana no contrato social vê

na vontade geral a verdadeira concretização de um ideal republicano:

A noção de Vontade Geral representa a contribuição mais original do pensamento rousseaniano e fornece a base da moralidade republicana no Contrato Social. (RUZZA, 2010, p.77).

Em Rousseau a liberdade política está atrelada ao funcionamento e

manutenção do corpo político e, portanto, não pode ser confundida com uma

independência individual, só possível no estado da natureza. Novamente Berlin e

Rousseau distanciam-se quando a questão é a liberdade, pois, em Rousseau, a

liberdade pressupõe responsabilidades, pois é sociabilizada dentro de princípios

republicanos, contudo Berlin vê na liberdade rousseaniana a possibilidade de tudo

fazer. Leiamos Berlin:

Como pode um ser humano ser absolutamente livre (pois se não for livre, não é humano) e, no entanto, não lhe ser permitido fazer absolutamente tudo o que desejar? Mas, se é impedido, como podo ser livre? Pois o que é a liberdade, senão fazer o que se deseja e não ser impedido de o fazer? (BERLIN, 2005, p.57).

Rousseau procura esclarecer a importante diferença existente entre liberdade

e independência em sua oitava carta, de suas Cartas escritas da montanha:

É inútil querer confundir a independência e a liberdade. Essas duas coisas são tão diferentes que até mesmo se excluem mutuamente. Quando cada um faz o que bem quer, faz-se freqüentemente o que desagrada aos outros e isso não se chama Estado livre. A liberdade consiste menos em fazer sua vontade do que em não ser submetido à vontade de outro; ela consiste ainda em não submeter a vontade de outro à nossa. (ROUSSEAU, 2006, p. 371).

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Ainda que tenha dedicado parte considerável de sua obra a tratar da

liberdade, o genebrino de forma sintética a define magistralmente num texto de sua

maturidade, a sexta caminhada, em Os devaneios do caminhante solitário:

Nunca acreditei que a liberdade do homem consistisse em fazer o que quisesse, mas sim em nunca fazer o que não quisesse, e esta é a liberdade que sempre reclamei, muitas vezes preservei e pela qual mais escandalizei meus contemporâneos. (ROUSSEAU, 2008, p.85).

Poderíamos ainda argumentar contra Berlin ao apresentar um texto da

maturidade, onde novamente nos deparamos com um Rousseau preocupado com a

liberdade e no despotismo que subjuga e obriga, é desse fenômeno que está a falar

Rousseau, quando afirma que a liberdade consiste em não fazer aquilo que não se

quer. É o Rousseau que se opõe à escravidão, como lemos em Émile e Sophie ou

os solitários:

Por estas reflexões, cheguei à conclusão que minha mudança de condição era mais aparente que real; que se a liberdade consistisse em fazer o que se quer, homem algum seria livre; que todos são fracos, dependentes das coisas, da dura necessidade; que aquele que melhor sabe querer tudo o que esta ordena é o mais livre, já que nunca é forçado a fazer o que não quer.( ROUSSEAU, 2010, p. 82).

Em Rousseau os conceitos de liberdade nem sempre são claros. Assim no

Contrato social encontramos os termos liberdade política, civil e também natural. No

livro I da obra citada o genebrino assegura que no pacto civil o homem perde sua

liberdade natural e o direito ilimitado a tudo o que pode alcançar por uma liberdade

civil e a propriedade do que possui. Na mesma obra, Rousseau reserva ao governo

a penosa tarefa de garantir tanto a liberdade civil como a liberdade política, o que

sinaliza para possíveis diferenças entre elas, ainda que não estejam claras no

Contrato. Assim preferimos usar o termo liberdade política , pois , ao nosso ver

retrata de maneira mais ampla a ideia de liberdade possível apenas no estado civil,

porem com um forte apelo moral criador de uma nova consciência no homem que

integra esse pacto. Essa liberdade política transcende as regras do jogo social e

político, pois permite que o homem se reconheça como figura central na polis,

adentrando também o campo da moral e da ética. Assim nos e dado pensar que a

liberdade civil na perspectiva de Rousseau se liga a idéia do homem e suas

responsabilidades civis, tendo como limite a vontade geral, ao passo, que a

liberdade política nos remete a um conceito mais amplo, geral e moral, razão pela

qual preferimos essa terminologia em nossa pesquisa.

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Para um homem do século XVIII, admirador dos antigos e tendo nascido

numa pequena República que lhe deu o orgulho de se sentir livre, tratar do tema da

liberdade acabou sendo uma consequência natural, e Rousseau o fez de forma

radical e também pedagógica.

No campo do dever ser, com Emílio e Do Contrato Social, é possível

conhecer um Rousseau que vai da pedagogia até os princípios de direito político,

tendo na liberdade seu fio condutor. Por essa força contida no texto, aproxima-se de

rebeldes e revolucionários, e, assim como Platão em Siracusa, o genebrino transita

da filosofia para a efetividade das coisas, fazendo-se legislador em duas ocasiões,

com os poloneses e os corsos. Ainda que esses projetos no campo do ser não

tenham sido aproveitados pelas respectivas nações, novamente a exemplo de

Platão, para o leitor do genebrino fica o legado da coerência de um homem que em

todas as trincheiras que esteve, do dever ser ao ser, associou a liberdade à

condição humana, afirmando ser indissociáveis. Quando nos referimos ao ser em

Rousseau, estamos fazendo menção da verdade efetiva das coisas, histórias e a

própria experiência humana com as instituições e com os agentes políticos de seu

tempo.

Liberalismo, marxismo ou anarquismo buscam a liberdade, contudo quem

historicamente manteve maior proximidade com a concepção de liberdade em

Rousseau? A perspectiva de liberdade na obra política do genebrino, em especial no

Contrato Social, está profundamente relacionada a temas tais como: o poder

soberano que é concentrado nos cidadãos, o republicanismo, a simplicidade, o valor

do trabalho e a igualdade dentre outros. Assim, é possível pensar que a tradição

marxista ou o chamado pensamento político de esquerda possui fortes relações com

a liberdade política pensada por Rousseau. A leitura de Althusser, Della Volpe e

Carlos Nelson Coutinho, necessários em nossa introdução, não nos motivou a

pensar diferente.

Hoje no Brasil, tempo do ser, onde a sociedade organizada tem questionado o

modelo de democracia representativa como nas manifestações de Junho de 2013,

quando os canais de participação direta dos cidadãos são quase inexistentes, a

teoria política de Rousseau em parte concentrada em seu Contrato Social ainda

pode ser inspiradora, pois o objetivo que motivou seu autor, o de resgatar a

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liberdade que em outrora o homem gozava no estado da natureza, agora uma

liberdade política, e fazendo uma inversão que ainda esperamos ansiosamente por

ocorrer; tirando a histórica soberania do príncipe e entregando-a ao cidadão, sem

nunca renunciar à liberdade, como sua pena um dia imortalizou:

Renunciar à sua liberdade é renunciar à sua condição de homem, aos direitos da humanidade, e até mesmo aos próprios deveres. (ROUSSEAU, 1995, p.74).

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