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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ DANIELA CARNEIRO CRIME DE TORTURA PRATICADO POR POLICIAL MILITAR NO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO PÚBLICA CURITIBA 2010

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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ

DANIELA CARNEIRO

CRIME DE TORTURA PRATICADO POR POLICIAL MILITAR NO EXERCÍCIO DA

FUNÇÃO PÚBLICA

CURITIBA

2010

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CRIME DE TORTURA PRATICADO POR POLICIAL MILITAR NO EXERCÍCIO DA

FUNÇÃO PÚBLICA

CURITIBA

2010

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DANIELA CARNEIRO

CRIME DE TORTURA PRATICADO POR POLICIAL MILITAR NO EXERCÍCIO DA

FUNÇÃO PÚBLICA

Trabalho de Conclusão de Cursoapresentado ao Curso de Direito daFaculdade de Ciências Jurídicas daUniversidade Tuiuti do Paraná, comorequisito parcial para obtenção de grau deBacharel em Direito.

Orientador: Profº Daniel Ribeiro de SurdiAvelar

CURITIBA

2010

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TERMO DE APROVAÇÃO

CRIME DE TORTURA PRATICADO POR POLICIAL MILITAR NO EXERCÍCIO DA

FUNÇÃO PÚBLICA

Esta monografia foi julgada e aprovada para obtenção do título de Bacharel em Direito noCurso de Direito da Universidade Tuiuti do Paraná.

Curitiba, de de 2010.

_____________________________________

Professor Dr. Eduardo de Oliveira Leite

Coordenador do Núcleo de Monografia

Universidade Tuiuti do Paraná

Orientador: Professor Daniel Ribeiro de Surdi Avelar

Universidade Tuiuti do Paraná – Faculdade de Ciências Jurídicas

Professor:

Universidade Tuiuti do Paraná – Faculdade de Ciências Jurídicas

Professor:

Universidade Tuiuti do Paraná – Faculdade de Ciências Jurídicas

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho primeiramente à Deus.

Às minhas lindas lá no céu.

À minha família, em especial às minhas mães de coração Sandra e Zélia, pelo

carinho puro e gratuito, e à Bia, claro, por tudo.

Ao meu amor.

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AGRADECIMENTOS

Aos meus amigos, daqui e dali, pela força permanente. Aos meus colegas de turma,

por todos os dias. Aos Professores, em especial ao Professor Daniel Ribeiro de

Surdi Avelar, pela atenção dedicada. À todos aqueles que, direta ou indiretamente,

colaboraram de alguma maneira. E, principalmente ao meu tio Euro, pelo exemplo,

apoio e cuidado de sempre.

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“Eu não sei o que é o mal radical, mas sei que ele tem a ver com este fenômeno: asuperfluidade dos homens enquanto homens”.

Hannah Arendt

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RESUMO

No presente estudo busca-se a necessidade de discussão a respeito daspeculiaridades do cotidiano militar e a competência para julgamento de crimes que,inobstante tenham um tratamento de delito comum, não podem ser julgados sem,ao menos, o conhecimento prévio da legislação militar, como é o caso do crime detortura, onde se discute, inclusive, que referido delito deve ser tratado como crimemilitar, diante dos conceitos definidores de competência que serão abordados.

Palavras-chave:

Crime de Tortura. Conceito de Crime Militar. Crime Militar e Legislação Esparsa.Competência para Julgamento. Crime de Tortura Praticado por Militar.

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ABSTRACT

In the present study analyses the need for discussion about the peculiarities ofeveryday life and military jurisdiction for judgement of crimes, however should betreated as an ordinary, can not be dismissed without at least prior knowledge ofmilitary law, as the case of the crime of torture, which they discuss, including theoffense that must be treated as a military crime, before defining the concepts ofcompetence that will be addressed.

Key words: Concept of Crime military. Military Crime and Law General. Competencyfor judgement. Crime of Torture. Crime of torture by military.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ………………………………………………………………………………….. 10

1 HISTÓRICO .................................................................................................................... 111.1 O CRISTIANISMO ...................................................................................................... 131.2 MAGNA CARTA LIBERTATUM ................................................................................. 131.3 LEI DE HABEAS CORPUS ........................................................................................ 141.4 BILL OF RIGHTS ........................................................................................................ 141.5 DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO ............................... 151.6 A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM ................................ 161.7 DIREITOS INDIVIDUAIS NA CONTEMPORANEIDADE – PACTO SAN JOSÉ DACOSTA RICA .................................................................................................................... 17

2 DIREITO PENAL MILITAR ............................................................................................ 202.1 PREVISÃO DO CRIME MILITAR NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL .......................... 222.2 CRIME MILITAR ..................................................................... .................................... 232.3 CLASSIFICAÇÃO DOS CRIMES MILITARES ......................................................... 252.4 CRIME MILITAR E LEGISLAÇÃO ESPARSA .......................................................... 262.5 APLICAÇÃO DA PENA NA LEI PENAL MILITAR .................................................... 27

3 DISPOSIÇÕES DO CÓDIGO PENAL MILITAR E DO CÓDIGO DE PROCESSOPENAL MILITAR ......................................................................................... ..................... 29

4 COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR ...................................................................... 31

5 CRIME DE TORTURA .................................................................................................. 34

5.1 CRIME DE TORTURA NO ORDENAMENTO JURÍDICO .......................................... 365.2 CRIME DE TORTURA PRATICADO POR MILITAR ................................................. 37

6 COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO DO CRIME DE TORTURA PRATICADOPOR MILITAR ................................................................................................................... 39

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 43

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................ 45

ANEXO I – FOTOS .................................................................................. ......................... 47

ANEXO II – ENTREVISTA “BICUDO” ............................................................................. 49

ANEXO III – EMENTA 153 STF (LEI 6.683/79 – LEI DE ANISTIA) ............................... 55

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INTRODUÇÃO

As questões afetas ao cotidiano militar, apesar de serem ainda pouco

estudadas e divulgadas nas universidades, são cada vez mais presentes no dia-a-

dia forense. Contudo, pela falta de formação acadêmica ou interesse específico, os

profissionais do Direito são surpreendidos por situações que demandam um leque

de conhecimento, não só do direito militar, mas interligando-o com o direito

constitucional, tratados de direitos humanos, direito penal comum, direito processual

penal e assim por diante.

Caso típico é do crime de tortura. De um lado há a descrição de condutas,

por uma lei especial, Lei 9.455/90, e de outro existe toda uma construção doutrinária

sobre crime militar e competência para julgamento, onde se leva em conta as

peculiaridades da vida castrense.

As especificidades da matéria militar, por vezes passam ao largo do julgador

da justiça comum, que vem julgando os crimes de tortura cometidos por militar ou

contra militar, indistintamente, sem que com isso se faça maiores digressões sobre

a competência estar ou não correta.

Com isso, têm-se a importância de estudar o delito de tortura quando

praticado por policial militar no exercício de sua função pública e a competência

para seu julgamento, ainda mais diante da realidade caótica das barbáries

cometidas nas carceragens do nosso País e também fora delas, as quais são

vivenciadas pela sociedade, mostradas pela mídia e analisadas no cotidiano

forense.

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1 HISTÓRICO

Com a Declaração dos Direitos Humanos, datada de 1948, após a Segunda

Guerra Mundial, foram consagrados os direitos do homem e, dentre outras

questões, o crime de tortura passou a ter um foco bem maior do que já tinha no

Brasil e no mundo, consoante se extrai do seguinte estudo:

Desde a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de1793, a preocupação com a dignidade humana tem sido objeto deconvenções internacionais. Nesse diapasão, a Declaração Universal dosDireitos Humanos da ONU, datada de 10.12.1948, estabelece em seuartigo V que ‘ninguém será submetido a tortura nem a tratamento oucastigo cruel, desumano ou degradante’. Na mesma linha, estabelece aConvenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José deCosta Rica), de 1969, em seu artigo 5º., n. 2, que ‘ninguém deve sersubmetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos oudegradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com orespeito devido à dignidade inerente ao ser humano. (CABETTE, 2008)

No ano de 1984 na Convenção da ONU (Organização das Nações Unidas),

em Nova York, 119 países ratificaram sua repulsa pelos torturadores e se

comprometeram a prevenir e punir os responsáveis, visando o objetivo de erradicar

o crime de tortura de uma vez por todas.

Em nosso País, a consagração desse novo tempo se deu em 1988, através

da Constituição Federal, a qual considerou o crime de tortura inafiançável, sem

direito a graça ou anistia, conforme se vislumbra na leitura do art. 5º, XLIII:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquernatureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes noPaís a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, èsegurança e à propriedade, nos termos seguintes:(...)XLIII. A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ouanistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogasafins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por elesrespondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los,se omitirem. (sem grifo no original)

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Com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente pela Lei 8.069, de

13 de julho de 1990, é que o legislador pátrio tipificou o crime de tortura o ato de

“submeter criança ou adolescente, sob sua autoridade, guarda ou vigilância a

tortura”1, todavia, não descreveu quais condutas configurariam tal delito. Logo em

seguida, a Lei 8.072/90 equiparou o delito de tortura aos crimes hediondos2.

Porém, somente pela Lei 9.455 de 07 de abril de 1997 é que houve a

definição do crime de tortura, onde passou a ser definido o tipo penal e descritas as

condutas, não mais restando dúvidas quanto a sua configuração e outros aspectos

jurídicos que eram confundidos a priori3.

Vejamos agora, alguns fatos históricos importantes à firmação dos Direitos

Humanos, fatos esses, em regra, ligados à reação da dor física, do sofrimento moral

e principalmente da tortura.

1 Art. 233 da lei 8.069/90 . Revogado pela lei 9.455, de 7.4.1997

2 Art. 2º da lei 8.072/90. Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes edrogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: I - anistia, graça e indulto; II – fiança.

4 Art. 1º Constitui crime de tortura:

I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físicoou mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;

b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;

c) em razão de discriminação racial ou religiosa;

II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou graveameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida decaráter preventivo.

Pena - reclusão, de dois a oito anos.

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1.1 O CRISTIANISMO

Segundo o Prof. Cícero Robson Coimbra Neves, a influência do cristianismo

foi de grande importância na formação de uma consciência em que o indivíduo é a

razão de ser, o motivo da existência do mundo racional. Apesar de aceita e

considerada como uma perfeita espécie de codificação para as normas de

convivência pacífica, o texto sagrado, a Bíblia, particularmente o Novo testamento é

uma obra feita sob inspiração divina, porém o homem necessita de normas

inferiores, mais claras e por ele escritas que regulem as relações entre os seres

humanos que convivam em grupo. Portanto, embora sejam verdades

inquestionáveis, os preceitos invocados pelo cristianismo deveriam ser ratificados

por normas cogentes que obrigassem o indivíduo a comportar-se de modo regrado.

Quanto mais conflitos mais regras, quanto mais violência mais normas a serem

seguidas e mesmo com toda a influência religiosa precisa-se cada vez mais e mais

de freios aos impulsos violentos da humanidade.

1.2 MAGNA CARTA LIBERTATUM

A primeira vitória do indivíduo versus o poder Estatal, deu-se em 1215, com

um escrito que, para alguns deu origem ao habeas corpus: chamado de a Magna

Carta. Naquele período da Idade Média, o poder absoluto do rei já estava

conhecendo a decadência e para se auto-afirmar, numa tentativa de retomar o

poder, o Estado absolutista, personificado no rei João da Inglaterra, conhecido por

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João Sem-Terra, se viu obrigado a fazer acordos com seus súditos. Assim, em troca

da confirmação da supremacia monárquica, algumas concessões eram feitas4.

1.3 LEI DE HABEAS CORPUS

Resultou da luta pela limitação do poder real dos Stuarts, últimos soberanos

católicos da Inglaterra, luta essa desencadeada pelo Parlamento Inglês,

majoritariamente protestante. Como já anotado, o habeas corpus já existia mesmo

antes da Magna Carta, porém com eficácia muito restrita, pela inexistência de meios

processuais. A Lei de Habeas Corpus, de 1679, buscou corrigir tal deficiência, tendo

fundamental importância histórica, por tornar-se a matriz de todas as que vieram a

ser criadas posteriormente, para a proteção de outras liberdades fundamentais.

(COMPARATO, 1999 p. 73)

1.4 BILL OF RIGHTS

Ao serem colocados no trono Inglês pelo Parlamento, em 1689, Guilherme de

Orange, agora Guilherme III, e Maria de Stuart, agora Maria II, tiveram como

contrapartida a assinatura de uma Declaração de Direitos (Bill of Rights), aprovada

pelo Parlamento e constituindo-se em uma lei fundamental da Inglaterra. Em suma,

pode-se apontar na declaração:

- Fim do poder de legislar do monarca, passando tal atribuição ao Parlamento;

4 NEVES, Cícero Robson Coimbra. Direitos Humanos. Material da 1ª aula da disciplina Direitos

Humanos, ministrada no Curso de Especialização Televirtual em Direito Militar –UNIDERP/REDE

LFG.

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- Garantia de um hígido processo eletivo, dando autonomia ao Parlamento em

relação ao rei;

- Institucionalização da separação de poderes;

- Constituição de um instrumento político de imposição de uma religião oficial;

- Proibição de cobrança de impostos sem anuência do parlamento;

- Proibição de prisão sem culpa formada;

- Fortalecimento da instituição do júri;

- Reafirmação do direito de petição;

- Proibição de penas inusitadas ou cruéis. (Ibid., p. 78)

1.5 DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO

Segundo Prof. Cícero, falar em liberdades públicas sem citar o pensamento

iluminista da França do século XVIII, que redundou na Revolução de 1789 e na

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, do mesmo ano, é algo

inconcebível.

Fundando-se em Rousseau, um dos expoentes do Iluminismo, o início daconcepção de liberdades públicas da França naquele século tomava corpo.Para Rousseau, resumidamente falando, o homem nasce livre (Escola doDireito Natural), em estado natural, e para viver em sociedade, celebra umpacto, um Contrato Social (nome de sua obra), que permite a convivênciasocial, em regra harmônica. Para gerir o grupo formado em razão docontrato, cria-se um ente fictício, o Estado, que detém algumas concessõesfeitas pelo indivíduo, de forma implícita, no momento da celebração. Surgeentão à legitimidade de ação do Estado, resultado da vontade de todos oscontratantes. Portanto, em um primeiro momento, a liberdade é plena, para,depois do acordo, ser limitada pelo Estado. Em um raciocínio lógico,podemos dizer que ao Estado é legítimo agir sobre aquela parcela deliberdade delegada pelo particular, permanecendo o restante intocável eindelegável, sendo o exercício desse poder (pelas leis) em nome daspessoas que o delegaram, ou seja, do próprio povo, do particular. Ocorre

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que Rousseau, buscando resolver a incongruência existente entre ocontrole estatal e a liberdade individual, postulava que a entrega deliberdade ao Estado era plena, o que, obviamente não foi recepcionadopelos autores da Declaração Francesa. A Declaração de 1789, destarte,não foi mera cópia do pensamento de Rousseau, já que retiveram algunspostulados ao mesmo tempo em que repeliram outros. Ficaram a finalidadeestatal de garantir a convivência social sem ofensa às liberdades naturais ea idéia de lei como vontade geral, à qual todos se submetem, mesmo quede forma contrária à sua vontade, em razão do pacto.Por outro lado, a idéia de entrega total foi repelida, já que pressupunha apossibilidade de não questionamento em razão de uma ofensa a um direitoinerente ao ser humano. A idéia de representatividade, de John Locke, emvez da democracia absoluta e utópica, teve melhor aceitação, além deoutras influências como à divisão do poder, de Montesquieu, o liberalismoeconômico, e a tolerância religiosa que impregna toda a Declaração.A importância da Declaração francesa é imensurável, já que tem comobase preceitos universais, que se empregavam em todo o mundo. Já asanglo-saxônicas, tiveram como base situações específicas, verificadasapenas na Grã-Bretanha. Não obstante, também têm importânciainquestionável. Como todos sabem, a espinha dorsal da Declaração dosDireitos do Homem e do Cidadão consiste na tríade liberdade, igualdade efraternidade. Com efeito, os dispositivos da Declaração são contundentesem afirmar essas três premissas, a exemplo do que ocorre com o artigoprimeiro, segundo o qual os homens nascem e permanecem livres e iguaisem direitos, somente podendo haver distinções sociais fundadas nautilidade comum. Importante frisar que o espírito da Revolução, transcritona Declaração, foi inspiração para a Constituição Francesa de 1791.

Observa-se que essas declarações proclamam as liberdades e os direitos

fundamentais do homem, almejando abarcar toda humanidade, servindo de base

para a Declaração Universal dos Direitos do Homem.

1.6 A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM

Após a Segunda Guerra Mundial, a preocupação com a intervenção abusiva

e desastrosa do Estado na vida dos particulares ganhou vulto, principalmente sob

um enfoque humanístico, em razão das atrocidades cometidas no Holocausto.

Composta de 30 artigos, a Declaração ratifica os ideais propostos pelas

Declarações Francesa e Americana, tornando a questão dos direitos individuais

uma característica moderna, adequada à maioria dos Estados contemporâneos, ela

se preocupa, basicamente, com quatro ordens de direitos:

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a) direitos pessoais do indivíduo: proclamados logo no início da declaração,

são o direito à vida, à liberdade e à segurança (artigo III);

b) direitos do indivíduo em face da coletividade: o direito à nacionalidade, ao

asilo a todo aquele perseguido, à livre circulação, à residência (tanto no território

nacional como no exterior) e à propriedade (artigos XIII, XIV e XV);

c) as liberdades públicas e os direitos públicos: liberdade de pensamento, de

consciência e religião, de opinião e de expressão, de reunião e de associação, e o

princípio na direção dos negócios públicos (artigos XVIII, XIX e XX); e

d) direitos econômicos e sociais: direito ao trabalho, à sindicalização, ao

repouso e à educação (artigos XXIII e XXVI).

Desse modo, a Declaração Universal dos Direitos do Homem se apresenta

como um Organização multilateral promovedora de negociações a respeito de

conflitos internacionais, com o fito de evitar guerras, promovendo a paz e a

democracia, dando ênfase nos direitos humanos.

1.7 DIREITOS INDIVIDUAIS NA CONTEMPORANEIDADE – PACTO SAN JOSÉ

DA COSTA RICA

O Brasil também é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos,

de 1969, mais conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, ratificado sem

qualquer reserva, e que foi aprovada pelo Decreto Legislativo nº. 27/92, e

incorporada pelo Decreto Presidencial nº. 678/92.

Especificamente no Art. 5º, 2, temos o texto específico sobre o direito à

integridade pessoal o que nos remete diretamente para a prática da tortura, em que

“ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos

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ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito

devido à dignidade inerente ao ser humano”.

Segundo ensinamentos do Prof.º Luiz Flávio Gomes,

O art. 5º, 2, prevê a Convenção Americana o chamado princípio cardeal doDireito penal e ele proíbe a tortura assim como o tratamento cruel,desumano ou degradante (CF, art. 5º, III) e, ao mesmo tempo, impõerespeito à integridade física do detento (CF, art. 5º, XLIX), a separação dospresos (inciso XLVIII) etc. O art. 5º, 2, da Convenção não repete o texto quevem contemplado no art. 7º do Pacto Internacional dos Direitos Civis ePolíticos (“Será proibido, sobretudo, submeter uma pessoa, sem seu livreconvencimento a experiências médicas ou científicas”), mas não há dúvidade que ele acha-se compreendido na Convenção Americana. Constituitratamento cruel e desumano submeter uma pessoa (tal como fez onazismo), sem seu consentimento, a uma experiência médica ou científica(ou seja: ao chamado “delito científico”).A regra 6.2 da Resolução 45/110 da Assembléia Geral das Nações Unidas(Regras de Tóquio) refere-se expressamente à humanidade com que deveser aplicada e executada a prisão cautelar. Despiciendo salientar que, naverdade, o princípio da humanidade é válido e informador de todo equalquer tipo de intervenção penal no âmbito dos direitos fundamentais dapessoa.A base internacional do princípio reside na Declaração Universal dosDireitos Humanos, art. 5º (“ninguém será submetido à tortura, nem atratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”), no PactoInternacional de Direitos Civis e Políticos, art. 10, 1 (“toda a pessoa privadada sua liberdade deverá ser tratada com respeito devido à dignidadeinerente ao ser humano”).No plano interno, são abundantes os dispositivos constitucionais queservem de apoio para a construção do referido princípio: art. 5º, III(proibição de penas degradantes), XLVI (proibição a penas desumanas),art. 1º, III (princípio da dignidade) etc.A respeito do princípio da humanidade da pena já tivemos oportunidade desublinhar o seguinte: ele constitui certamente uma das característicasfundamentais das penas e da Política criminal nos últimos três séculos.Estamos longe ainda de alcançar o sistema ideal, é dizer, um sistema penale penitenciário totalmente humanizado, mas é inegável o progresso obtido.No Iluminismo, com BECCARIA à frente e seus contemporâneos ousucessores imediatos (LARDIZÁBAL, BENTHAM etc. ) combateu-sevigorosamente a crueldade das penas do Direito penal do “Antigo Regime”(direito medieval), que se baseava na utilização massiva da pena de mortee das penas corporais, destacando-se a tortura, açoites, mutilações etc.A Codificação Filipina constitui exemplo marcante das arbitrariedadesmedievais, época em que se prodigalizou o uso e o abuso do corpohumano para o castigo e também para intimidar as demais pessoas(FOUCAULT). Depois do Iluminismo e da Revolução Francesa, começarama aparecer as legislações liberais e, desse modo, paulatinamente as penascorporais forma sendo substituídas pela pena privativa de liberdade, quepassou a constituir o eixo do sistema punitivo estatal.Em virtude das teorias utilitaristas e também de movimento de DefesaSocial acreditou-se, durante muitos anos, que a prisão poderia ressocializaro condenado. Até os anos 50, salienta JESCHECK, se pensou que aressocialização fosse possível, porém, a Criminologia e, particularmente, aPenologia puseram de manisfesto a impossibilidade de ressocialização na

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prisão. É dizer, não se prepara a pessoa para a liberdade privando-a daliberdade.Essa descrença na ressoacialização com a conseqüente perda dacredibilidade da pena privativa de liberdade, ao lado do princípio dehumanidade, constitui, talvez, a característica mais importante da Políticacriminal dos últimos anos, destacando-se: (a) o desaparecimento da penade morte ou, pelo menos, sua limitação (em praticamente quase todos ospaíses civilizados); (b) o tendencial deslocamento da pena privativa deliberdade de seu lugar central no sistema punitivo; (c) a substituição dapena privativa de liberdade por sistemas de tratamento; (d) a substituiçãoda pena privativa de liberdade por outras medidas alternativas, o queoriginou, conforme JESCHECK, “o movimento internacional de reforma doDireito penal”. (2009. p. 39)

Prossegue o referido autor aludindo que:

A tortura, por seu turno, não só afeta a dignidade humana, como retratauma flagrante negação de todos os princípios consagrados no DireitoInternacional dos Direitos Humanos. E, quando difundidageneralizadamente, passa a constituir um crime contra a humanidade(Informe Anual da Comissão Interamericana de Direitos, 1993, Res. 5/94, p.188, El Salvador). No Brasil temos a lei específica que tipifica a tortura (Lei9. 455/97), constituindo delito: “ I – constranger alguém com emprego deviolência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a)com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou deterceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;c) em razão de discriminação racial ou religiosa; II – submeter alguém, sobsua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou graveameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicarcastigo pessoal ou medida de caráter preventivo” etc.O isolamento de pessoas detidas por longo tempo, aliado a outrasrestrições como a impossibilidade de visita, constitui pena cruel edegradante (CIDH, Res. 28/88). O RDD (Regime Disciplinar Diferenciado),introduzido na nossa legislação por força da Lei 10.792/2003, em regra,constitui exemplo de execução de pena cruel e degradante.A grave e preocupante questão da disciplina do preso que se encontrarecolhido em algum estabelecimento penal de segurança máxima (fechado)ou média (semi-aberto) já se encontrava (e se encontra) devidamenteregulada na Lei de Execução Penal (LEP –Lei 7.210/84), especialmentenos artigos 53, IV, 54 e 58. Uma das mais severas sanções previstas nestalei consiste no “isolamento do preso na própria cela”. Cuida-se deconseqüência penal a ser imposta pelo diretor do presídio, em atomotivado, por prazo não superior a 30 (trinta) dias. Esse conjunto dedispositivos legais que acaba de ser enumerado já era (e é) mais do quesuficiente para manter a devida disciplina e a ordem dentro dosestabelecimentos penais.. (Ibid., p. 41)

A adoção do Pacto de São José da Costa Rica faz com que o país signatário

assuma compromisso internacional no que se refere aos direitos humanos. Assim, a

nação está obrigada a respeitar tais direitos com a máxima efetividade possível.

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2 DIREITO PENAL MILITAR

Ramo do direito que acaba por transitar na seara de crimes como o da tortura

com mais frenquência do que gostaríamos. A doutrina é unânime em afirmar que o

Direito Penal Militar se trata de um ramo de Direito Penal e Processual especial,

divergente, no entanto, somente quanto aos fundamentos5 (GIULIANI, 2007, p. 13)

Assim, segundo Ricardo Henrique Alves Giuliani, a Justiça militar

É uma Justiça Especial, só que dotada de características e regramentospróprios que muitas vezes são tratados de forma igual ou semelhante aosdo Direito Penal e Processual Comum, e em outras situações, tratadoespecificamente com disciplina própria. (2007, p. 14)

A lei penal militar, conforme esclarece Pietro Vico, citado por Jorge Alberto

Romeiro, “embora formando o direito próprio e particular dos militares, é sempre,

por outro lado, uma lei especial em confronto com a lei penal geral”. (1994, p. 5).

O Direito Penal Militar, segundo Vincenzo Manzini,

É o conjunto de todas as normas jurídicas que asseguram a realização dastarefas dentro das instituições militares ou fora delas, onde a defesa daPátria é o objetivo principal e sendo assim qualifica-se dentro da ordemjurídica do nosso Estado. (1932, p. 36)

E, para assegurar a almejada ordem jurídica militar, o Estado respeitando a

hierarquia e a disciplina da instituição, utiliza-se de sanções de naturezas diversas

para fazer valer o poder extroverso.

As sanções penais militares aparecem através de cominação de penas,

imposição de medidas de segurança e estabelecimento de condições, causas

5 Ronaldo João Roth analisa que a condição especial da justiça militar vem justificada na CF quandoesta definiu a competência daquela de julgar os crimes militares definidos em lei, resultando uma leide Organização Judiciária Militar, que existe no plano federal e de uma maneira autônoma em cadaunidade da federação, isto é, temos um Código Penal Militar e um Código de Processo Penal Militarcom aplicação na Justiça Militar Estadual e Federal. (GIULIANI, 2007, p. 13).

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excludentes e modificativas da punibilidade, normas essas jurídicas positivas, cujo

estudo ordenado e sistemático constitui a ciência do direito penal militar.

Essas normas jurídicas militares são, doutrinariamente, conhecidas como de

direito penal militar material ou substantivo ou, ainda, abreviadamente, só como de

direito penal militar (LELEWER, 1909. p. 3), e também, normas de direito penal

militar formal ou adjetivo ou de processo penal militar, que se referem a cada caso,

cada processo.

Segundo Jorge Alberto Romeiro:

A diferença entre esses dois tipos de normas pretendeu estabelecernosso direito positivo penal militar, contemplando-as, diversamente doque ocorre na maioria dos países civilizados. A maioria dos paísesengloba as normas de direito penal e de processo penal militar num únicodiploma legal (Código ou Lei de Justiça Militar): Itália (CJM de Paz e CJMde Guerra, ambos de 20-2-1941); Portugal (CJM de 9-4-1977); Israel (LJM5715 de 1955); Argentina (CJM de 9-7-1951); Chile (CJM de 19-12-1944);Venezuela (CJM de 17-7-1938) e Peru (CJM de 24-7-1980). Na França, oCJM (Dec. n. 82-984, de 19-11-1982), ainda contém normas processuais,apesar de a Lei n. 82-621, de 21-7-1982, haver suprimido os tribunauxpermanents des forces armées em tempo de paz, transferindo para ajustiça comum o processo e o julgamento dos crimes militares que eramda competência deles (Code de Procédure Pénale, arts. 697/702). Sãoelas as normas de instrução e julgamento dos crimes militares, em tempode paz, perante os tribunaux aux armées, estabelecidos fora do territórioda República e, em tempo de guerra, perante os tribunaux territoriaux desforces armées e tribunaux militaires aux armées, além das normasprocessuais referentes aos tribunaux prévôtaux. Na Espanha, o CJM de17-9-1945, misto com os demais citados, foi recentemente revogado peloCódigo Penal Militar de 9-12-1985, que só contempla o direito penalmaterial, tal como o nosso CPM, a Lei Penal Militar da ex-RepúblicaFederal da Alemanha de 30-3-1957, alterada em 2-1-1975(Wehrstrafgesetz) e o CPM Suíço de 13-6-1927, cujas Dispositions sur laprocédure foram ad-rogadas por Lei Federal de 23-3-1979, que trata comexclusividade da Procédure pénale militaire (PPM). (1994, p. 1)

Conclui-se, portanto, que o direito penal militar seja um direto penal

especial, em razão de que a maioria de suas normas são direcionadas de forma

exclusiva aos militares, os quais apresentam deveres para com o Estado, zelando

por sua defesa armada bem como à existência das instituições militares.

22

2 .1 PREVISÃO DO CRIME MILITAR NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

De acordo com o mesmo doutrinador citado no tópico acima, a verdadeira

matriz do direito penal militar em nosso país é a Constituição Federal, que lhe atribui

o caráter de direito penal especial. Pois, além de cometer expressamente à lei

federal a definição dos crimes militares, restringe, limitando seu processo e

julgamento à Justiça Militar, que institui e inclui entre os órgãos do Poder Judiciário,

estruturando sua mais alta Corte de Justiça sob a forma de escabinato6.

Em nossa Constituição Federal, encontramos os vestígios de existência do

crime militar por quatro vezes: no artigo 5º, inciso LXI, ao estabelecer uma forma

especial de prisão para os crimes propriamente militares7; no artigo 124, quando da

definição da competência da Justiça Militar da União8; no artigo 125, § 4º, quando

estabelece a competência da Justiça Militar Estadual9; e também no artigo 144, § 4º,

ao excluir das atribuições de polícia judiciária da Polícia Civil a apuração das

infrações penais dessa natureza10.

6 O escabinato ou escabinado é um tribunal colegiado misto, composto de juízes togados e juízesleigos.

7 Art. 5º, LXI. Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada deautoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamentemilitar, definidos em lei.

8 Art. 124. À Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei.

9 Art. 125, § 4º. Compete à Justiça Militar estadual processar a julgar os militares dos Estados, noscrimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada acompetência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perdado posto e da patente dos oficiais e da graduação dos praças.

10 Art. 144, § 4º. Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem,ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infraçõespenais, exceto as Militares.

23

2. 2 CRIME MILITAR

Mesmo com a previsão expressa de crime militar, posto acima, no artigo 5º,

inciso LXI da Constituição Federal, onde cita “ninguém será preso senão em

flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária

competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar,

definidos em lei”, não há uma definição legal própria de crime militar.

Por isso, pela falta de uma lei definidora, a doutrina já pacificou entendimento

no sentido de que crime militar é aquele que somente pode ter como sujeito ativo o

militar da ativa. Citando Jorge Cezar de Assis, Giuliani expressa que crime militar “é

toda violação acentuada ao dever militar e aos valores das instituições militares”.

(2007, p. 30)

Nesse sentido é o ensinamento de Célio Lobão, citado por Giuliani:

Crime militar é a infração penal prevista na lei penal militar que lesionabens ou interesses vinculados à destinação constitucional das instituiçõesmilitares, às suas atribuições legais, ao seu fundamento, à sua própriaexistência, e no aspecto particular da disciplina, da hierarquia, da proteçãoà autoridade militar e ao serviço militar. (Ibid., p. 30).

Porém, além dos crimes propriamente militares, temos os crimes conhecidos

por impropriamente militares, os quais podem ser praticados por militares, mas

também por civis, despertando forte polêmica nesse contexto principalmente no

tocante a competência para julgamento de um e de outro.

Os crimes impropriamente militares, segundo Jorge Alberto Romeiro, são os

“crimes comuns em sua natureza, cuja prática é possível a qualquer cidadão (civil

ou militar), mas que, quando praticado por militar em certas condições, a lei

considera militares”. (1994, p. 68)

24

Não há, como já afirmado, uma definição legal de crime militar, mas sim

circunstâncias arroladas nos artigos 9º e 10 do Código Penal Militar11, que

necessariamente devem ser consideradas na correta tipificação legal das infrações

penais castrenses.

Conforme Reynaldo Zychan de Moraes12, o legislador, portanto, não adotou

exclusivamente o critério ratione personae para estabelecer os delitos previstos no

Código Penal Militar, pois, como anteriormente foi frisado, civis podem, dentro de

determinadas circunstâncias, praticar crimes militares.

11 Art. 9º. Consideram-se crimes militares, em tempo de paz: I- os crimes de que trata este Código,quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja oagente, salvo disposição especial; II- os crimes previstos neste Código, embora também o sejamcom igual definição na lei penal comum, quando praticados: a) por militar em situação de atividadeou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado; b) por militar em situação deatividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, oureformado, ou assemelhado, ou civil; c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, emcomissão de natureza militar, em sua formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administraçãomilitar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil; d) por militar durante o período de manobrasou exercício, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil; e) por militar emsituação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordemadministrativa militar.; III- os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil,contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I,como os do inciso II, nos seguintes casos: a) contra o patrimônio sob a administração militar, oucontra a ordem administrativa militar; b) em lugar sujeito à administração militar contra militar emsituação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério Militar ou da JustiçaMilitar, no exercício e função inerente ao seu cargo; c) contra militar em formatura, ou durante operíodo de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamentoou manobras; d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função denatureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordempública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquele fim, ou emobediência a determinação legal superior. Parágrafo único. Os crimes de que trata este artigo,quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da justiça comum.

Art. 10. Consideram-se crimes militares, em tempos de guerra: I- os especialmente previstos nesteCódigo para o tempo de guerra; II- os crimes militares previstos para o tempo de paz; III- os crimesprevistos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum ouespecial, quando praticados, qualquer que seja o agente: a) em Território Nacional, ou estrangeiro,militarmente ocupado; b) em qualquer lugar, se comprometem ou podem comprometer a preparação,a eficiência ou as operações militares ou, de qualquer outra forma, atentam contra a segurançaexterna do País ou podem expô-la a perigo; IV- os crimes definidos na lei penal comum ou especial,embora não previstos neste Código, quando praticados em zona de efetivas operações militares ouem território estrangeiro, militarmente ocupado.12 Moraes, Reynaldo Zychan de, Os crimes militares e o inquérito militar: uma visão prática / SãoPaulo: Livraria Científica Ernesto Reichmann, 2003.p.35.

25

Igualmente, não foram adotados, com exclusividade, critérios ligados ao local

onde se desenrolou a conduta delitiva – ratione loci, sobre determinados assuntos –

ratione materiae, ou mesmo sobre determinadas circunstâncias temporais – ratione

temporis. Optou o legislador por estabelecer diversos critérios combinados. Tais

critérios encontram-se diluídos em diversos dispositivos da Parte Especial, mas

principalmente nos artigos 9º e 10 do Código Penal Militar.

Para Jorge César de Assis:

É toda violação acentuada ao dever militar e aos valores das instituiçõesmilitares. Distingue-se da transgressão disciplinar porque esta é a mesmaviolação, porém na sua manifestação elementar e simples. A relação entrecrime militar e transgressão disciplinar é a mesma que existe entre crime econtravenção. (2003, p. 35)

O crime militar é, em última análise, aquilo que a lei o defina como tal.

2. 3 CLASSIFICAÇÃO DOS CRIMES MILITARES

Segundo a melhor doutrina, para se analisar o crime militar, precisamos levar

em conta os seguintes critérios: ratione materiae, ratione personae, ratione loci,

ratione temporis e ratione legis.

Ratione materiae, ou em razão da matéria, exige que se verifique a dupla

qualidade militar, no ato e no sujeito.

Ratione personae, em razão da pessoa, são aqueles cujo sujeito ativo é

militar.

Ratione loci, ou em razão do lugar, leva em conta o lugar do crime, bastando,

portanto, que o delito ocorra em local sob a administração militar.

26

Ratione temporis, em razão do tempo, os praticados em determinada época,

como por exemplo, os ocorridos em tempo de guerra ou durante o período de

manobras ou exercícios.

E por fim, ratione legis, em razão da lei, que está presente tanto isolado como

conjuntamente com os outros critérios é aquele que diz é crime militar aquele que o

Código Penal Militar prevê como militar.

Por sua vez, Clóvis Beviláqua classificava os crimes militares em três grupos,

quais sejam: os essencialmente militares (próprios), os militares por compreensão

normal da função militar (impróprios) e os acidentalmente militares (praticados por

civis).

2. 4 CRIME MILITAR E LEGISLAÇÃO ESPARSA

Conforme leciona Ricardo Henrique Alves Giuliani, só serão considerados

crimes militares o que obrigatoriamente esteja definido na lei penal militar. Nas

palavras do autor:

Só serão crimes militares, isto é, o que a lei considera comocaracterizadora do crime militar e que obrigatoriamente esteja definido nalei penal militar. O que a lei considera como crime militar está no art. 9º e10º do Código Penal Militar. (2007, p. 70)

Segundo o autor, a título de exemplo, se algum policial militar está naquelas

situações que a lei considera como crime militar, ele só será julgado pela Justiça

Militar se houver definição na lei penal militar. (Ibid., p. 70)

Dessa forma, os militares não respondem por crime de abuso de autoridade

(Lei 4.898/68) na Justiça Militar, porque esse crime não é definido na lei penal

militar. Não se aplica a lei dos crimes hediondos (Lei 8072/90), nos crimes de

27

trânsito, entre outros exemplos tais como o crime de tortura, porque teria que estar

previsto no Código Penal Militar como crime militar. Porém, há controvérsias a esse

respeito como se verá na seqüência e no julgado abaixo transcrito:

HABEAS CORPUS. RECLASSIFICAÇÃO TIPOLÓGICA DE CRIMECOMUM PARA CRIME MILITAR. AFASTAMENTO DA INCIDÊNCIA DALEI Nº 8.072/90. IMPOSSIBILIDADE. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DARESERVA LEGAL. LEGITIMIDADE DA DIFERENÇA DE TRATAMENTO. Adiferença de tratamento legal entre os crimes comuns e os crimes militares,mesmo em se tratando de crimes militares impróprios, não revelainconstitucionalidade, pois o Código Penal Militar não institui privilégios. Aocontrário, em muitos pontos, o tratamento dispensado ao autor de um delitoé mais gravoso do que aquele do Código Penal comum (RE 115.770/RJ). Oque se pretende, neste habeas, é a aplicação do Código Penal Militarapenas na parte que interessa ao paciente. Entretanto, isto representaria acriação de uma norma híbrida, em parte composta pelo Código PenalMilitar e, em outra parte, pelo Código Penal comum. Isto, evidentemente,violaria o princípio da reserva legal e o próprio princípio da separação depoderes. Ordem parcialmente concedida, apenas para determinar que ojuízo das execuções penais analise se o paciente faz jus à progressão deregime prisional, tendo em vista a declaração de inconstitucionalidade doart. 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90 (HC 82.959/SP). HC 86459/RJ – RIO DEJANEIRO Relator: Min. JOAQUIM BARBOSA Julgamento: 05/12/2006.

Verifica-se que a definição de conduta criminosa no âmbito militar é exclusivo

da legislação militar, não aplicando definições de outros cadernos legislativos ao

crime militar.

2. 5 APLICAÇÃO DA PENA NA LEI PENAL MILITAR

No Direito Penal Militar, a fixação da pena, como também ocorre no Direito

Penal comum, adota o trifásico. Na 1ª fase fixa-se a pena-base, seguindo os

critérios do art. 69 do Código Penal Militar13; na 2ª fase, as circunstâncias

13 Art. 69. Para fixação da pena privativa de liberdade, o juiz aprecia a gravidade do crime praticado ea personalidade do réu, devendo ter em conta a intensidade do dolo ou grau da culpa, a maior oumenor extensão do dano ou perigo de dano, os meios empregados, o modo de execução, os motivosdeterminantes, as circunstancias de tempo e lugar, os antecedentes do réu e sua atitude deinsensibilidade, indiferença ou arrependimento após o crime. § 1º. Se são cominadas penas

28

atenuantes e agravantes (pena provisória) e, na 3ª fase, as minorantes (causa

especial de diminuição de pena) ou majorantes (causas especiais de aumento de

pena) a pena definitiva.

E sobre as penas, o art. 55 do Código Penal Militar traz entre as penas as

principais como: morte, reclusão; detenção; prisão; impedimento; suspensão do

exercício do posto, graduação, cargo ou função; e reforma.

O Código Penal Militar não contempla a pena de multa, logo, pelo princípio

da legalidade, não se admitindo desta forma a de pena de multa para os crimes

militares.

alternativas, o juiz deve determinar qual delas é aplicável. § 2º. Salvo o disposto no artigo 76, éfixada dentro dos limites legais a quantidade da pena aplicável.

29

3 DISPOSIÇÕES DO CÓDIGO PENAL MILITAR E DO CÓDIGO DE PROCESSO

PENAL MILITAR

O Legislador, na elaboração do Código Penal Militar e do Código de

Processo Penal Militar partiu da premissa de que os crimes militares, em regra, são

todos de ação penal pública incondicionada. Isso ocorre devido ao grande interesse

público na atuação profissional exemplar dos militares, bem como em decorrência

do rígido regime jurídico baseado na hierarquia e disciplina. Tal tratamento para os

crimes militares está fundado no disposto nos artigos 121 e 122 do Código Penal

Militar14, que são repetidas nos artigos 29 e 31 do Código de Processo Penal Militar.

Assim, por exemplo, o crime de injúria, previsto no artigo 215 do Código

Penal Militar e no artigo 140 do Código Penal, apesar de apresentarem nos textos

legais a mesma redação, é tratado de forma diversa, pois na lei penal comum tal

delito é, em regra, de ação penal privada e, na lei castrense, é de ação penal

pública incondicionada.

Encontramos somente uma ressalva no CPM para a citada regra geral nos

crimes definidos nos artigos 136 a 141 do Código Penal Militar, os quais são de

ação penal pública condicionada à requisição do Ministro da Defesa ou do Ministro

da Justiça, conforme o caso. Tais delitos compõem o Título I, do Livro I, da Parte

Especial – Dos Crimes contra a Segurança Externa do País, nos quais razões

14 Art. 121. A ação penal somente pode ser promovida por denúncia do Ministério Público da JustiçaMilitar.

Art. 122. Nos crimes previstos nos artigos 136 a 141, a ação penal, quando o agente for militar ouassemelhado, depende da requisição do Ministério Militar a que aquele estiver subordinado; no casodo artigo 141, quando o agente for civil e não houver co-autor militar, a requisição será do Ministérioda Justiça.

30

políticas e diplomáticas podem influenciar na decisão para que a requisição seja

expedida.

A requisição é formulada pelo Ministro da Defesa quando o agente for militar.

Tal conclusão é de rigor, face à necessidade de se aplicar a interpretação

progressiva, pois o artigo 122 do Código Penal Militar diz que tal ato será da

competência do Ministério Militar ao qual o sujeito ativo estiver subordinado. Os

Ministérios Militares, contudo, foram englobados pelo Ministério da Defesa, através

da Emenda Constitucional nº 23, de 02 de setembro de 1999.

A ação penal privada subsidiária da pública também é utilizada, porque tal

instituto jurídico foi alçado à categoria de garantia fundamental, previsto no artigo 5º,

inciso LIX, do texto constitucional, com a seguinte redação: “Será admitida ação

privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal”,

podendo assim ser utilizada já que não há qualquer ressalva nesse dispositivo legal.

Já o Art. 10115 do mesmo caderno processual, define as regras para

determinação de competência para julgamento e resta evidente em seu inciso I a

regra de prevalência da jurisdição especializada, qual seja Justiça Militar, no caso

de concurso.

15Art. 101. Do Código de Processo Penal Militar: Na determinação da competência por conexão oucontinência, serão observadas as seguintes regras: Concurso e prevalência I - no concurso entre ajurisdição especializada e a cumulativa, preponderará aquela; (sem grifos no original)

31

4 COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR

A competência da Justiça Militar está dividida em Justiça Militar Estadual e

Justiça Militar Federal, isso ratificado em nossa Constituição Federal de 1988.

A competência da Justiça Militar Federal abrange o processo e julgamento

dos militares integrantes das Forças Armadas, Marinha de Guerra, Exército, Força

Aérea Brasileira, e também civis e assemelhados, porque, a legislação militar,

define as situações em que um civil poderá ser julgado por um Juiz ou Tribunal

Militar. Assim elucida Reinaldo Zychan de Moraes:

Não existe delimitação na Constituição Federal para a competência daJustiça Militar da União, no que se refere ao sujeito ativo dos crimesmilitares. Assim, civis e militares podem ser processados e julgados,excluindo-se somente os militares estaduais, que, praticando um crimemilitar, serão julgados pela Justiça Militar Estadual, salvo quandoincorporados às Forças Armadas (artigo 82, inciso I, alínea “d”, do Códigode Processo Penal Militar). (2003, p. 33)

A Justiça Militar Estadual, também por disposição constitucional, tem

competência apenas e tão somente para julgar e processar os policiais militares e

bombeiros militares nos crimes militares definidos nas leis militares. Reinaldo

Zychan de Moraes, em análise ao art. 125, § 4º da Constituição, diz que o referido

artigo, “ao estabelecer a competência da Justiça Militar Estadual, fixa que esta, na

esfera penal, está restrita ao processo e julgamento dos crimes militares praticados

por policiais militares e bombeiros militares”. (2003, p. 33). Enfatiza o autor que “sua

competência, portanto, não pode englobar outras infrações penais”. (Ibid., p. 33)

A organização das Justiças Militares Estaduais e Federal possui

características semelhantes, mas com algumas diferenças, por exemplo, a 1ª

32

instância da Justiça Militar denomina-se Conselho de Justiça, que tem como sede

uma auditoria militar. O Conselho de Justiça divide-se em Conselho de Justiça

Permanente e Conselho de Justiça Especial. O primeiro destina-se ao julgamento

dos praças e o segundo destina-se ao julgamento dos oficiais.

Os Conselhos de Justiça são constituídos por cinco julgadores, sendo quatro

pertencentes à carreira militar, oficiais, e um juiz civil, denominado auditor militar

que é empossado por meio de concurso de provas e títulos. A presidência do

Conselho de Justiça é exercida pelo juiz togado e os praças não podem integrá-lo.

A 2ª instância da Justiça Militar Federal é feita pelo Superior Tribunal Militar –

S.T.M, com sede em Brasília, que possui competências tanto originária como

derivada para processar e julgar todos os recursos provenientes das auditorias

militares distribuídas por todo Brasil.

O Superior Tribunal Militar é composto de 15 Ministros vitalícios com todas as

garantias, tais como, vitaliciedade, inamovibilidade, e irredutibilidade de

vencimentos. Os Ministros Militares estão representados por dez militares da ativa,

sendo três oficiais generais da Marinha, três oficiais generais da Aeronáutica, quatro

oficiais generais do Exército, e cinco juízes civis, sendo três da carreira da

advocacia, e dois escolhidos entre os juízes auditores e promotores militares em

atendimento ao disposto no artigo 123 e parágrafo único da Constituição Federal16.

16 Art. 123. O Superior Tribunal Militar compor-se-á de quinze Ministros vitalícios, nomeados peloPresidente da República, depois de aprovada a indicação pelo Senado Federal, sendo três dentreoficiais-generais da Marinha, quatro dentre oficiais-generais do Exército, três dentre oficiais-generaisda Aeronáutica, todos da ativa e do posto mais elevado da carreira, e cinco dentre civis.

Parágrafo único. Os Ministros civis serão escolhidos pelo Presidente da República dentre brasileirosmaiores de trinta e cinco anos, sendo: I- três dentre advogados de notório saber jurídico e condutailibada, com mais de dez anos de efetiva atividade profissional; II- dois, por escolha paritária, dentrejuízes auditores e membros do Ministério Público da Justiça Militar.

33

A 2ª instância da Justiça Militar Estadual nos Estados de São Paulo, Rio

Grande do Sul e Minas Gerais, é exercida pelo Tribunal de Justiça Militar que possui

competência originária e derivada para processar e julgar os recursos provenientes

das auditorias militares estaduais. Nos demais Estados-membros da Federação,

como no Paraná, a 2ª instância da Justiça Militar é exercida por Câmara

Especializada do Tribunal de Justiça em atendimento ao Regime Interno e Lei de

Organização Judiciária.

34

5 CRIME DE TORTURA

Para nos aprofundarmos ainda mais sobre o assunto se faz necessário o

acompanhamento da Lei 9.455/1997, pois a mesma trata do crime de tortura, objeto

do presente estudo.17

Art. 1º. Constitui crime de tortura:I- constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça,causando-lhe sofrimento físico ou mental:a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou deterceira pessoa;b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;c) em razão de discriminação racial ou religiosa.II- submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com empregode violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, comoforma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.Pena – reclusão, de dois a oito anos.§ 1º. Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita amedida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio deprática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal.§ 2º. Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o deverde evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatroanos.§ 3º. Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena éde reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito adezesseis anos.§ 4º. Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:I- se o crime é cometido por agente público;II- se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência,adolescente ou maior de 60 (sessenta) anos.III- se o crime é cometido mediante seqüestro.§ 5º. A condenação acarretará a perda do cargo, função ou empregopúblico e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da penaaplicada. § 6º. O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.§ 7º. O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º,iniciará o cumprimento da pena em regime fechado.Art. 2º. O disposto nesta Lei aplica-se ainda quando o crime não tenha sidocometido em território nacional, sendo a vítima brasileira ou encontrando-seo agente em local sob jurisdição brasileira.Art. 3º. Esta lei entrará em vigor na data de sua publicaçãoArt. 4º. Revoga-se o artigo 233 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 –Estatuto da Criança e do Adolescente

17 Segue anexo 8 fotos tiradas no museu da tortura de Toledo – Espanha e Londres - Inglaterra(ANEXO I)

35

Na realidade, a Lei 9.455/97 veio para preencher um espaço vago deixado

pelo legislador brasileiro no que diz respeito ao crime de tortura, posto que antes, o

Estatuto da Criança e do Adolescente em seu art. 233 (revogado pela Lei 9.455)

apenas mencionava tal crime, mas não descrevia conduta, o que impedia de tratá-lo

como infração autônoma.

Importante verificar que a prática da tortura é prática ainda comum, como

lembra o Professor Hélio Pereira Bicudo, ao conceder entrevista sobre a recente

decisão do STF de manter impunes os torturadores da ditadura, alegando que no

momento em que se dava a entrevista, com certeza em algum lugar do Brasil

estaria sendo praticada a tortura18.

Na chamada lei de tortura, encontramos no art. 1º, §§ 2º e 3º, as seis

condutas típicas (tortura-prova, tortura como crime-meio, tortura racial ou

discriminatória, tortura-pena ou castigo, tortura do encarcerado e omissão frente à

tortura); o § 3.º cuidou do crime qualificado; e o § 4.º previu causas de aumento de

pena. Já nos parágrafos seguintes (5.º, 6.º e 7.º) regulam-se os aspectos

administrativos, como a perda do cargo; e processuais como a proibição de fiança,

graça e anistia; assim como a previsão de progressividade de regime.

Com isso, sem mais discussões ou lacunas duvidosas, o crime de tortura foi

definido por exigir um resultado que se revela na imposição à vítima de um

sofrimento físico ou mental. É um delito material, que enseja prova, pois deixa

vestígios no corpo da vítima, seja fisicamente ou em sua psique. Destarte, existe

18 Entrevista com o Professor Hélio Pereira Bicudo (anexo II), ementa da decisão (anexo III).

36

uma condição fundamental para a consumação da tortura, qual seja, a constatação

do sofrimento físico ou moral a que foi submetida a vítima.19

5. 1 CRIME DE TORTURA NO ORDENAMENTO JURÍDICO

Após a promulgação da Constituição de 1988, o Brasil em 1991 (no Decreto

nº 40, datado de 15.02.1991) adotou definitivamente o aprovado na Convenção da

ONU de 1984, sobre Tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou

degradantes. Na seqüência proclamou-se a Convenção Interamericana para

Prevenir e Punir a Tortura (OEA), que entrou em vigor no Brasil em 1989 (Decreto

98.386, de 09.11.1989). Na seqüência, como visto, houve a Lei 9.455/1997 que veio

para jogar uma pá de cal nas dúvidas a cerca da definição do crime de tortura;

Além da nossa Constituição Federal e na própria “lei de tortura”, encontramos

também em nosso Código Penal algumas menções à tortura, a saber: como

19 Michel Foucault relata, na obra clássica “Vigiar e punir” a condenação sofrida por Damiens, o qualfora condenado, a 2 de março de 1757, a pedir perdão publicamente diante da porta principal daIgreja de Paris (aonde devia ser) levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregandouma tocha de cera acesa de duas libras; (em seguida), na dita carroça, na Praça de Greve, e sobreum patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, suamão direita segurando a faca com quem cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, eàs partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cerae enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatrocavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas aovento. (2009, p. 9)

37

agravante (CP, art. 61)20, como circunstância qualificadora do homicídio (CP, art.

121, § 2º)21. E também a equiparação à crime hediondo conforme a Lei 8.072/90.

5 .2 CRIME DE TORTURA PRATICADO POR MILITAR

Só serão crimes militares os tipificados no Código Penal Militar.

No Código Penal Militar não há qualquer menção, seja com a mesma

tipificação, seja com tipificação diversa, do crime de tortura. Em conseqüência, e de

acordo com a legislação atual, presentes na prática do ilícito alguma das condutas

descritas no tipo penal que descreve o delito de tortura, ainda que cometido por

militar em serviço, em área sob administração militar, durante o desempenho de

atividades tipicamente militares, contra civil ou contra outro militar, não se tem

considerado como competente para julgamento a justiça militar, mas a comum.

De outra senda, não se pode olvidar que quando da prática da tortura resultar

lesão corporal ou morte, dois crimes tipificados no Código Penal Militar, de acordo

com o princípio da especificidade, a lei que define o crime de tortura (lei especial)

afasta a incidência do Código Penal Militar (lei geral), uma vez que a morte decorreu

da prática de tortura, e essas hipóteses estão previstas na Lei nº 9.455/97 (§3º do

artigo 1º).

20 Art. 61. São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam ocrime: (...) II- ter o agente cometido o crime: (...) d) com emprego de veneno, fogo, explosivo, torturaou outro meio insidioso ou cruel, ou de que podia resultar perigo comum.

21 Art. 121. Matar alguém: Pena – reclusão, de seis a vinte anos. § 2º. Se o homicídio é cometido: (...)III- com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou deque possa resultar perigo comum.

38

Todavia, é inegável que a especificidade da matéria e o cotidiano militar

levam a crer que a justiça militar seria a mais adequada para o processamento e

julgamento dos crimes de tortura imputados aos militares.

39

6 COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO DO CRIME DE TORTURA PRATICADO

POR MILITAR

Regra geral, os crimes de tortura praticados por militares, contra civis ou

contra outros militares, inserem-se na competência da Justiça Federal, quando

praticados a bordo de navios ou aeronaves, civis ou militares, ou da Justiça

Estadual, em todos os demais casos.

Já os inquéritos policiais a serem realizados para a apuração desse crime

serão de competência da Polícia Federal - quando o crime for de competência da

Justiça Federal - ou da polícia civil estadual - nos outros casos, mesmo que o crime

tenha sido cometido dentro da caserna ou durante um exercício militar.

Muitos não consideram como crime militar o crime de tortura, pois, levam em

consideração apenas o critério de definição Ratione legis, deixando de lado o

critério Ratione personae e os demais existentes, os quais, em conjunto, resultam

na definição de crime militar.

A exemplo dessa interpretação segue o julgado abaixo:

COMPETÊNCIA. TORTURA CONTRA CRIANÇA OU ADOLESCENTE (LEI8.069/90 - ECA, ART. 233). AÇÃO PENAL PERMANENTE A JUSTIÇACOMUM. AGENTES PROCESSADOS PELA MESMA LESÃO CORPORALNA JUSTIÇA MILITAR (CPM, ART. 209). INADMISSIBILIDADE.COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM. TRANCAMENTO DA AÇÃOPENAL NA JUSTIÇA MILITAR. O crime de tortura contra criança ouadolescente, cuja prática absorve o delito de lesão corporal leve, submete-se à competência da Justiça Comum do Estado-membro, eis que esseilícito penal, por não guardar correspondência típica com qualquer doscomportamentos previstos pelo CPM, refoge à esfera de atribuições daJustiça Militar Estadual (STF). (TJSC, Confl. Jur. 96004084-6, SC, Rel:Des. Nilton Macedo Machado, D.J. 26/11/96, Fonte: Banco de Dados daJuruá).

Todavia, existem decisões em sentido oposto, como por exemplo, no

julgamento do Habeas Corpus 40.824 – RO (2004/0185256-1), cuja relatoria coube

40

ao Eminente Ministro JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, assim decidiu a Corte

Superior de Justiça em que a situação versava sobre hipótese de crime de tortura:

Sobre a discussão, este relator já tinha firmado entendimento segundo o qual

haveria necessidade de se preservar o critério ratione personae no caso da

especialidade da Justiça Castrense. Aliás, foi o precedente:

‘PROCESSUAL PENA. HABEAS CORPUS. AUDITORIA MILITAR. LEIESTADUAL. COMPETÊNCIA PARA JULGAR CRIME COMUM. CRITÉRIORATIIONE PERSONAE. VINCULAÇÃO DO JUIZ NATURAL.CONCESSÃO DA ORDEM. O qualificativo mais importante para adestinação de um Juízo próprio em matéria militar reside no critério rationepersonae, porquanto o status de militar reclama conjugação de uma sériede direitos e deveres aos quais a norma constitucional conferiu importânciamáxima a ponto de enquadrá-lo em foro distinto, donde o seu condutordeve encaminhar-se por procedimentos próprios, e o que é maisimportante, pautado por hermenêutica diferenciada, tendo em vista aespecialidade do cotidiano da caserna.

Por essa razão, ao se conferir competência penal comum à atividade daJustiça Castrense, comprometida estaria a vinculação do Juiz natural, jáque os instrumentos deste sistema considerado diverso e experimentadode forma única no resultado final, correriam o risco de serem encampadospor praxes absolutamente inadequadas’ (HC 23592/RO, Rel. Min. JoséArnaldo da Fonseca. DJ de 10/11/2003)

Contudo, deliberado pela Suprema Corte a viabilidade da competênciacomum, no âmbito da Justiça Militar, assenti a esta indicação, porque maissensível ao pensamento majoritário, a exemplo do que restou firmado noHC 24607/RO, cuja ementa é a seguinte:

‘CRIMINAL’. HC. FURTO QUALIFICADO. COMPETÊNCIA. AUDITORIAMILITAR. LEI DE ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DERONDÔNIA. ART. 94, INCISO, IX. CONSTITUCIONALIDADE. ADIN N.1.258/RO. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ORDEMDENEGADA.

I - Hipótese em que o paciente foi processado pela prática do crime defurto qualificado perante o Juízo da 1ª Vara da Auditoria Militar da Comarcade Porto Velho, tendo sido fixada a competência do referido juízo parajulgamento do paciente.

II - Controvérsia a respeito da constitucionalidade do art. 94, inciso, IX, daLei Complementar n. 94/93 do Estado de Rondônia, a qual dispõe arespeito da competência da Auditoria Militar para processar crimesgenéricos, face ao art. 125, § 4º, da Constituição Federal.

III - O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Ação Direta deInconstitucionalidade n. 1.218/RO, declarou a constitucionalidade do art. 94da Lei Complementar n. 94/93.

IV. Nos termos da orientação da Suprema Corte e dos precedentes destaTurma, não se verifica ilegalidade na fixação competência da AuditoriaMilitar, no Estado de Rondônia, para o julgamento dos crimes genéricos.

41

V- Ordem denegada’ (Rel. Min. Gilson DIPP, DJ de 02/08/2004)

Neste precedente, o Em. Relator dispôs em seu voto:

‘inicialmente, cumpre ressaltar que a discussão acerca dainconstitucionalidade do referido dispositivo legal resta superado, pois oSupremo tribunal federal, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidaden. 1.218/RO, declarou a constitucionalidade dos artigos 94, inciso IX, e106, da Lei complementar n. 94/03, declarando, ainda, que a referida Leinão estaria legislando “sobre matéria de competência da União (CF, art.22, I) ou dispondo além do que permite a Constituição Federal em seuartigo 125, § 4º, ‘ (Min. Rel. MAURÍCIO CORREA, DJ de 08.11;2002).

A controvérsia surgiu com o advento da Lei complementar 245/01, que deunova redação ao art. 94, inciso IX, da LC 94/93. Referido dispositivodeterminava a competência da Vara da Auditoria Militar, além dascompetências que lhe são próprias, também para o cumprimento de cartasprecatórias criminais.

Com a modificação legislativa, referido dispositivo passou a dispor daseguinte forma, litteris:

Art. 94. Na Comarca de Porto Velho a prestação jurisdicional serárealizada através dos seguintes juízes:

(...)

IX – 1 (uma) Vara de Auditoria Militar, com competência também para ocumprimento das cartas precatórias criminais e processamento de feitoscriminais genéricos’

Assim, a 5ª Turma desta Corte Superior de Justiça – com base naorientação adotada pelo Pretório Excelso -, ao julgar os habeas corpus ns.25.718/RO, 24.738/RO e 24.719/RO, já firmou entendimento no sentidode que amplia a competência do Juízo da Vara da Auditoria Militarpara o processamento “e o julgamento” de feitos criminais genéricos,sob o argumento de que “se este órgão jurisdicional processou o feito,colhendo provas, decidindo incidentes processuais, recebendo asalegações finais, não há razão para que se remeta os autos a outro juízo,para que este tão somente julgue a ação penal.’ (HC 24.718/RO, rel. Min.FELIX FISCHER, DJ de 01.12.2003)” (sem grifos no original)

Ante o exposto, denego a ordem”.

Como visto, a questão da competência, não é estabelecida apenas pelo

critério ratione personae, mas por ser a Justiça Militar uma Justiça Especial, esta, a

princípio é mais aprimorada e qualificada para analisar as condutas praticadas pelos

militares.

E, principalmente, quando nos deparamos com a legislação militar em seu

artigo 9 º onde diz que “consideram-se crimes militares, em tempo de paz, no inciso

42

I: os crimes de que trata este Código, quando definidos de modo diverso na lei penal

comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição

especial”. Tem-se por entendido que, se não há previsão na lei penal ou seja

Código Penal e também não há previsão na lei especial, Lei 9.455/1997, logo, é sim

de competência da Justiça Militar já que em sede processual, isso se confirma no

âmbito da conexão e continência. No Art. 101 do Código de Processo Penal Militar

está claramente definido o critério que se defende. Quando diz que havendo

concurso entre jurisdição especializada a mesma preponderá, resta evidente a

confirmação da tese ora apresentada. (sem grifo no original)

Até porque, alguns princípios básicos norteiam a atividade operacional dos

militares e, em especial da polícia militar, enquanto agentes do poder público a

serviço da comunidade, onde cada ocorrência tem suas peculiaridades que geram

respostas distintas para conter a agressão. A medida é que será determinada pelo

uso do bom senso, e nos estritos limites, da legalidade, necessidade e

oportunidade. É a chamada discricionariedade a qual está subordinada "aos freios

da opinião popular e da moral social, mas autônomo e defeso, como tal, à

interferência do Poder Judiciário", segundo Rui Barbosa.

43

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Toda instituição para justificar a sua própria existência no ordenamento

jurídico-administrativo, possui uma filosofia comportamental e profissional

consubstanciada na ética, ou pelo menos, uma orientação doutrinária e norteadora

das condutas, individuais e coletivas, dos integrantes da instituição considerada,

dando-lhes, assim, um azimute para a sua caminhada, com parâmetros definidos de

comportamento, mas sem tolher-lhes, entretanto, a liberdade de ação, necessária e

indispensável para o atingimento dos propósitos a que se destina.

Nesse mesmo diapasão, é regra jurídica instada pelo Direito Constitucional e

Administrativo que, enquanto ao cidadão particular é livre a liberdade de ação,

podendo fazer tudo aquilo que a lei não lhe proíbe ou deixar de fazer o que a lei não

lhe obrigue, ao agente do poder público, no exercício de suas atividades de ofício,

só é dado fazer aquilo que a lei lhe autoriza, enquanto lhe define a competência

funcional, a sua capacidade administrativa pública de agir.

Entretanto aqui, e diferentemente das demais atividades do serviço público

cujas compreensões são bem menores do que o universo da ordem pública, a

competência funcional desses Agentes do Poder Público, notadamente os policiais

militares, encarregados de promovê-la, limita-se quase que constantemente, apenas

pelas regras da discricionariedade, do que pela lei propriamente dita, que não pode

como se já viu, explicitar-lhe detalhadamente, o que fazer em cada situação onde se

encontrar, às voltas e no limear de dois extremos comportamentais conflitantes e

paradoxais: o abuso (ou o excesso) de autoridade e a prevaricação.

44

Assim, essa Filosofia Doutrinária de Comportamentos, que pretende orientar

a atividade policial, deve ser analisada sob a ótica da vida castrense e não sob o

olhar contemplador daquele que observa de fora a vida militar e que eventualmente

pega um processo pertinente a matéria e julga sem o discernimento necessário da

complexidade que norteia o cotidiano militar e, principalmente, do ordenamento

jurídico que a regula.

Assim é que os excessos e crimes cometidos pelos militares, em especial a

Polícia Militar, que tem função Constitucional de ostensividade e prevenção ao

crime, devem ser analisados pela Justiça Militar, pois, somente quem conhece a

rotina militar é capaz de compreender a complexidade de um ato praticado e

classificá-lo como sendo dentro dos limites da lei e dos ensinamentos levados a

efeito na vida em caserna, a exemplo do que se vê todos os dias na mídia e no meio

forense, quanto a prática de tortura.

45

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSIS, Jorge César de. Comentários ao Código Penal Militar - Parte Geral.

2.ed.Curitiba: Juruá,1999.

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. A definição do crime de tortura no ordenamento

jurídico penal brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1789, 25 maio 2008.

Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11304>. Acesso em: 06

mar. 2010.

COMPARATO, Fábio Konder. A Firmação Histórica dos Direitos Humanos. São

Paulo:Saraiva, 1999. p. 73-4.

GIULIANE, Ricardo Henrique Alves. Direito penal militar. Porto Alegre: Verbo

Jurídico, 2007. p. 29.

GOMES, Luiz Flávio. Comentários à Convenção Americana sobre Direitos

Humanos, São Paulo: Editora revista dos Tribunais, 2009

GOMES, Luis Flávio Gomes. Tortura: Lei 9.455/97, artigo in

www.estudoscriminais.com.br, 06.03.02. Acessado em 02/02/10 às 11:30.

LELEWER, Georg Grundriss des Militärstrafrechts, Leipzig, 1909, §1º, p.3.

MANZINI, Vincenzo Diritto penale militare, Padova, 1932, ano X, p. 1; e Ildefonso M.

Martínez Muñoz, Derecho militar y derecho disciplinario militar, Buenos Aires, 1977,

n. 20 e 87, p. 36 e 194.

MORAES, Reynaldo Zychan de. Os crimes militares e o inquérito militar: uma visão

prática. São Paulo: Livraria Científica Ernesto Reichmann, 2003.p.35.

46

NEVES, Cícero Robson Coimbra. Direitos Humanos. Material da 1ª aula da

disciplina Direitos Humanos, ministrada no Curso de Especialização Televirtual em

Direito Militar –UNIDERP/REDE LFG.

ROMEIRO, Jorge Alberto. Curso de direito penal militar: parte geral. São Paulo:

Saraiva,1994, capítulo I, p. 1.

ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues. Revista Jus Vigilantibus, Domingo, 31 de agosto de

2003. http://jusvi.com/artigos/558, acessado em 30/01 às 17:48.

SOARES, Emmanuel José Peres Netto Guterres. Jus Navigandi. Artigo in:

http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5890, acessado em 29/01 às 12:14).

SOUZA, João Ricardo Carvalho de. Artigo in:

www.dhnet.org.br/denunciar/tortura/textos/jricardo.htm. Acessado em 30/01 às

15:13.

47

ANEXO I

Foto 1: Mesa de evisceração Foto 2: Guilhotina

Foto 3: Cadeira inquisitória Foto 4: Máscara da infâmia

48

Foto 5: Cinto de castidade Foto 6: Museu Madame Tussauds

Foto 7: Museu Madame Tussauds Foto 8: Virgem de Nuremberg

49

ANEXO II

Entrevista concedida pelo Prof. Hélio Pereira Bicudo: Nascido em Mogi das

Cruzes, 5 de julho de 1922, é jurista e político brasileiro militante dos Direitos

Humanos. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São

Paulo, turma de 1947. Como Procurador de Justiça no Estado de São Paulo,

destacou-se, juntamente com o então Promotor de Justiça Dirceu de Mello, no

combate ao Esquadrão da Morte. Durante o governo Carvalho Pinto, em São Paulo,

foi o primeiro presidente das Centrais Elétricas de Urubupungá - Celusa, construtora

das usinas de Jupiá e de Ilha Solteira. Foi ministro interino da Fazenda no governo

João Goulart, substituindo Carvalho Pinto de 27 de setembro a 4 de outubro de

1963. Foi secretário dos Negócios Jurídicos do município de São Paulo na gestão

de Luíza Erundina de 1989 a 1990 e deputado federal. Em 1986 foi candidato ao

senado pelo PT, ficando em terceiro lugar, atrás dos eleitos Mário Covas e

Fernando Henrique Cardoso, ambos do PMDB. Em fevereiro de 2000, foi

empossado como presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos,

com sede em Washington. É o terceiro brasileiro a ocupar a presidência da

entidade. Foi vice-prefeito de São Paulo de 2001 a 2004, durante a gestão de Marta

Suplicy. Criou e preside a Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos

Humanos (FidDH), entidade que atua junto à Comissão Interamericana de Direitos

Humanos denunciando e acompanhado casos de desrespeito aos Direitos Humanos

no Brasil.

“Luta contra tortura prossegue na OEA”

A Lei de Anistia precisa ser revisada?

É, muito mais, uma questão de mudança da interpretação. O texto da Lei de Anistia,

não permite que os torturadores fiquem impunes, muito pelo contrário. Não acho

que haja necessidade de modificar o texto. Basta aplicá-lo como ele é, segundo

uma interpretação jurídica e não ideológica.

50

Alguns dos que votaram pela impunidade no STF– incluindo o relator, ministro

Eros Grau, que foi torturado na ditadura – referiram-se à ação dos

torturadores como “crimes conexos”. A Lei de Anistia impediria puni-los.

Como o senhor interpreta isso?

É lamentável que um juiz da Suprema Corte não saiba o que são realmente delitos

conexos. Quando a lei usa um termo técnico, como é no caso – “crime conexo” é

um termo técnico em direito penal –, é preciso saber qual sua definição. Os “crimes

conexos” são aqueles cujas finalidades são as mesmas do ato principal praticado.

Por exemplo, um ladrão entra na sua casa, rouba, e, para evitar que existam provas,

incendeia a casa. São dois crimes conexos: o roubo e o incêndio da casa. Há uma

identidade de fins: a finalidade era roubar e não ser punido.

Mas se o ladrão entra na casa, rouba, é preso e depois morto pela polícia, não há

nenhuma ligação entre um fato e outro, do ponto de vista das suas finalidades.

Num, o ladrão queria roubar. No outro, o policial mata o ladrão. Então, você não

pode dizer que há conexidade nestes dois casos, pois as finalidades de um e de

outro crime são diferentes. É como nesse caso da Anistia. Os opositores do regime

cometeram crimes que a lei diz que, depois de algum tempo, não podem ser

punidos. Mas se trata de crimes praticados contra o Estado repressor.

Ideologicamente, eles não têm nada a ver com os crimes praticados pelos agentes

do Estado.

Pode-se dizer, então, que a diferença básica é a finalidade?

Exatamente. A finalidade dos crimes praticados pelas pessoas que eram contrárias

ao regime era política. Os crimes praticados pelos agentes do Estado não têm

finalidade política. São crimes contra a humanidade e, por esse motivo,

51

imprescritíveis. Quando a Lei de Anistia fala em “crimes conexos”, você não pode

interpretar a conexidade senão de um lado e de outro. Quer dizer, você pode ter

pessoas que cometeram crimes contra o Estado conexos entre si, mas você não

pode ligar estes crimes aos cometidos pelos agentes do Estado para beneficiar a si

próprios. Ou seja, os agentes do Estado agem por outra finalidade. No caso, para

manter a ditadura.

Alguns juristas e políticos alegam que uma revisão da Lei de Anistia poderia

abalar a estabilidade democrática do país, baseada num “pacto de

conciliação”. Quebrá-lo seria “revanchismo”. Na sua opinião, esse “ pacto”

encontra algum respaldo jurídico e social?

Não houve pacto algum. É um absurdo falar em “conciliação” quando os militares

detinham o poder Executivo e o comando do Legislativo. Havia dois partidos, Arena

e MDB – o primeiro, o povo chamava de “o partido do sim”, o segundo de “o partido

do sim senhor”. Quer dizer, num contexto como esse, você não pode encontrar

consenso da sociedade civil com relação à lei que foi promulgada.

O artigo 5º da Constituição reza, em seu inciso XXXVI, que “a lei não

prejudicará o direito adquirido”. Já vi juristas usarem este argumento como

forma de defender a inconstitucionalidade de uma revisão da Lei de Anistia.

Argumentam que a lei não pode retroagir em prejuízo do acusado. Isso é

aplicável ao caso?

Não é aplicável, porque existem tratados internacionais, dos quais o Brasil é

signatário, que dizem que os crimes contra a humanidade são imprescritíveis. Veja

bem: não são crimes que se esgotam naquele momento. O homicídio se esgota,

52

mas outros crimes não, como, por exemplo, o sequestro. Você tem pessoas que

desapareceram e até hoje não se sabe seu paradeiro. Podem ter sido mortas, mas

você precisa provar que elas foram mortas para desaparecer o crime de sequestro.

É um crime continuado: persiste no tempo. Foi praticado ontem, continua existindo

hoje e continuará amanhã. Não existe prescritibilidade desses crimes.

Alguns juristas alegam que, por a Lei de Anistia ser questão exclusivamente

brasileira, ocorrida em território nacional, a competência da Suprema Corte é

absoluta e a das cortes internacionais, nenhuma. Qual sua posição?

Em 1998, o Brasil reconheceu a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos

Humanos. Ela não tem o poder de revogar a decisão do STF. Mas, desde o

momento em que o Brasil reconheceu a jurisdição, tem que se submeter à Corte.

Porque reconheceu de boa fé, não foi obrigado a isso. Esse reconhecimento vale

para todos os crimes que forem a julgamento pela Corte Interamericana e forem

imputados ao Brasil. Acho que a Corte Interamericana, de acordo com a sua

jurisprudência e conforme já julgou com relação a outros Estados, mostrará que não

existe auto-anistia.

Porque o que se busca hoje no Brasil é o reconhecimento da auto-anistia. Um

governo que cometeu crimes pode anistiar a si próprio? Isso não existe! Anistia

existe para proteger pessoas que num dado momento, por motivos políticos,

cometeram crimes. Para pacificar a sociedade, você considera este crimes

inexistentes. Mas não os crimes praticados pelo Estado. Isso já se constituiu numa

jurisprudência pacífica da Corte Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos.

Não tenho dúvida nenhuma de que a corte vai condenar o Estado brasileiro. Não

pela manutenção de uma lei — mas pela interpretação errada dada a ela pela

53

justiça brasileira, que vem acudindo os torturadores e aqueles que, a serviço do

Estado, eliminaram pessoas durante o período da ditadura militar.

Caso a Corte Interamericana condene o Brasil, quais são os caminhos legaispara que a interpretação atual dada à lei de Anistia seja revertida?

Quem pode mudar uma decisão do STF? Só o próprio STF. No caso de uma

condenação pela Corte Interamericana, penso que o Ministério Público Federal terá

que atuar, fazendo com que esse processo surta efeito no Brasil. A corte não aplica

sanções. Caso o Brasil não cumpra uma decisão, ela relata esse fato à Assembléia

Geral dos Estados Americanos. Esta, sim, pode punir os países-membros com

sanções. Ou pode não punir, porque a OEA é um órgão eminentemente político. De

qualquer maneira, acho que a situação do Brasil no que diz respeito aos direitos

humanos na área internacional vai ficar muito ruim. Como é que fica o STF? É está

agindo contra os direitos humanos e isso poderá ter consequências futuras.

Há algum caso precedente em que o STF reviu uma decisão adotada por sipróprio?

Nunca aconteceu. O STF nunca reverteu uma decisão; mas também nuca teve,

contra si, ação numa corte internacional. Possivelmente, o precedente terá de ser

criado agora.

A eventual manutenção do entendimento do STF poderia contribuir paratornar a tortura prática corriqueira no Brasil?Acho que sim. No momento em que estamos conversando, com certeza a tortura

está sendo praticada em algum lugar do Brasil. Temos lei específica contra a

tortura, adotada na década de 1990 mas até hoje na gaveta. A punição dos

torturadores da ditadura seria muito positiva para enfrentar esta prática.

Mas ela é importante também por motivos políticos. Uma sociedade que se diz

contra a tortura, mas não pune quem a pratica, está se expondo a riscos. Se, num

momento político qualquer, houver restrições à democracia – ou distorções, como

as que estão presentes em alguns países da América Latina – haverá mais

possibilidades de a tortura contra adversários políticos também voltar, porque criou-

54

se a cultura de impunidade.

Observadas as diferenças contextuais, o senhor, conhecido como o homemque revelou e denunciou o “Esquadrão da Morte”, acha que as políciasmilitares estão preparadas para exercer o policiamento ostensivo?

Não estão. Elas são absolutamente repressivas. Isso vem da própria constituição

das corporações, que não é são civis. Estão presas, em seu planejamento, às

determinações do exército. Agem na rua como se estivessem numa guerra. O

indivíduo é um marginal e o marginal tem que ser morto. É a lei da eliminação. É o

que está acontecendo em São Paulo, por exemplo, com o aumento de homicídios

pela PM de cerca de 40%, com relação ao ano passado.

Há cerca de uma ou duas semanas, neste Estado, um civil foi morto por policiais

militares dentro de um quartel. Simplesmente levaram o rapaz lá para dentro e

mataram. Um outro foi morto a pancadas na frente de sua casa e diante da mãe. Foi

em dias diferentes. Eram dois motoboys, que não estavam armados; dois

trabalhadores que foram mortos. Agora vamos ver se as pessoas serão

processadas e punidas de acordo com a lei. Tenho minhas dúvidas…

Como enfrentar esta truculência policial?Enquanto não se transformar a polícia num organismo civil, com carreira única e

com profissionalismo policial, termos o que está acontecendo hoje em São Paulo e

no Brasil. Essa truculência é herança da ditadura.

Quer dizer, ainda há no Brasil figuras que se assemelham ao delegado Fleury?Há sim. Basta observar que há, nos grupos de extermínio, muitos policiais militares

Página Outras Palavras

Autor: Ana Helena Tavares

Publicado em: 29/05/2010

55

ANEXO III

ADPF: 153/STF EMENTA: LEI N. 6.683/79, A CHAMADA “LEI DE ANISTIA”. ARTIGO 5º,

CAPUT, III E XXXIII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL; PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO E

PRINCÍPIO REPUBLICANO: NÃO VIOLAÇÃO. CIRCUNSTÂNCIAS HISTÓRICAS.

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E TIRANIA DOS VALORES. INTERPRETAÇÃO DO

DIREITO E DISTINÇÃO ENTRE TEXTO NORMATIVO E NORMA JURÍDICA. CRIMES

CONEXOS DEFINIDOS PELA LEI N. 6.683/79. CARÁTER BILATERAL DA ANISTIA,

AMPLA E GERAL. JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA

SUCESSÃO DAS FREQUENTES ANISTIAS CONCEDIDAS, NO BRASIL, DESDE A

REPÚBLICA. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO E LEIS-MEDIDA. CONVENÇÃO DAS

NAÇÕES UNIDAS CONTRA A TORTURA E OUTROS TRATAMENTOS OU PENAS

CRUÉIS, DESUMANOS OU DEGRADANTES E LEI N. 9.455, DE 7 DE ABRIL DE 1997,

QUE DEFINE O CRIME DE TORTURA. ARTIGO 5º, XLIII DA CONSTITUIÇÃO DO

BRASIL. INTERPRETAÇÃO E REVISÃO DA LEI DA ANISTIA. EMENDA

CONSTITUCIONAL N. 26, DE 27 DE NOVEMBRO DE 1985, PODER CONSTITUINTE E

“AUTO-ANISTIA”. INTEGRAÇÃO DA ANISTIA DA LEI DE 1979 NA NOVA ORDEM

CONSTITUCIONAL. ACESSO A DOCUMENTOS HISTÓRICOS COMO FORMA DE

EXERCÍCIO DO DIREITO FUNDAMENTAL À VERDADE.

1. Texto normativo e norma jurídica, dimensão textual e dimensão normativa do

fenômeno jurídico. O intérprete produz a norma a partir dos textos e da realidade. A

interpretação do direito tem caráter constitutivo e consiste na produção, pelo intérprete, a

partir de textos normativos e da realidade, de normas jurídicas a serem aplicadas à solução

de determinado caso, solução operada mediante a definição de uma norma de decisão. A

interpretação/aplicação do direito opera a sua inserção na realidade; realiza a mediação

entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular; em outros termos, ainda:

opera a sua inserção no mundo da vida.

56

2. O argumento descolado da dignidade da pessoa humana para afirmar a

invalidade da conexão criminal que aproveitaria aos agentes políticos que praticaram crimes

comuns contra opositores políticos, presos ou não, durante o regime militar, não prospera.

3. Conceito e definição de “crime político” pela Lei n. 6.683/79. São crimes

conexos aos crimes políticos “os crimes de qualquer natureza relacionados com os crimes

políticos ou praticados por motivação política”; podem ser de “qualquer natureza”, mas [i]

hão de terem estado relacionados com os crimes políticos ou [ii] hão de terem sido

praticados por motivação política; são crimes outros que não políticos; são crimes comuns,

porém [i] relacionados com os crimes políticos ou [ii] praticados por motivação política. A

expressão crimes conexos a crimes políticos conota sentido a ser sindicado no momento

histórico da sanção da lei. A chamada Lei de anistia diz com uma conexão sui generis,

própria ao momento histórico da transição para a democracia. Ignora, no contexto da Lei n.

6.683/79, o sentido ou os sentidos correntes, na doutrina, da chamada conexão criminal;

refere o que “se procurou”, segundo a inicial, vale dizer, estender a anistia criminal de

natureza política aos agentes do Estado encarregados da repressão.

4. A lei estendeu a conexão aos crimes praticados pelos agentes do Estado

contra os que lutavam contra o Estado de exceção; daí o caráter bilateral da anistia, ampla

e geral, que somente não foi irrestrita porque não abrangia os já condenados --- e com

sentença transitada em julgado, qual o Supremo assentou --- pela prática de crimes de

terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.

5. O significado válido dos textos é variável no tempo e no espaço, histórica e

culturalmente. A interpretação do direito não é mera dedução dele, mas sim processo de

contínua adaptação de seus textos normativos à realidade e seus conflitos. Mas essa

afirmação aplica-se exclusivamente à interpretação das leis dotadas de generalidade e

abstração, leis que constituem preceito primário, no sentido de que se impõem por força

própria, autônoma. Não àquelas, designadas leis-medida (Massnahmegesetze), que

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disciplinam diretamente determinados interesses, mostrando-se imediatas e concretas, e

consubstanciam, em si mesmas, um ato administrativo especial. No caso das leis-medida

interpreta-se, em conjunto com o seu texto, a realidade no e do momento histórico no qual

ela foi editada, não a realidade atual. É a realidade histórico-social da migração da ditadura

para a democracia política, da transição conciliada de 1979, que há de ser ponderada para

que possamos discernir o significado da expressão crimes conexos na Lei n. 6.683. É da

anistia de então que estamos a cogitar, não da anistia tal e qual uns e outros hoje a

concebem, senão qual foi na época conquistada. Exatamente aquela na qual, como afirma

inicial, “se procurou” [sic] estender a anistia criminal de natureza política aos agentes do

Estado encarregados da repressão. A chamada Lei da anistia veicula uma decisão política

assumida naquele momento --- o momento da transição conciliada de 1979. A Lei n. 6.683

é uma lei-medida, não uma regra para o futuro, dotada de abstração e generalidade. Há de

ser interpretada a partir da realidade no momento em que foi conquistada.

6. A Lei n. 6.683/79 precede a Convenção das Nações Unidas contra a

Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes ---

adotada pela Assembléia Geral em 10 de dezembro de 1984, vigorando desde 26

de junho de 1987 --- e a Lei n. 9.455, de 7 de abril de 1997, que define o crime de

tortura; e o preceito veiculado pelo artigo 5º, XLIII da Constituição --- que declara

insuscetíveis de graça e anistia a prática da tortura, entre outros crimes --- não

alcança, por impossibilidade lógica, anistias anteriormente a sua vigência

consumadas. A Constituição não afeta leis-medida que a tenham precedido.

7. No Estado democrático de direito o Poder Judiciário não está autorizado a

alterar, a dar outra redação, diversa da nele contemplada, a texto normativo. Pode, a partir

dele, produzir distintas normas. Mas nem mesmo o Supremo Tribunal Federal está

autorizado a reescrever leis de anistia.

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8. Revisão de lei de anistia, se mudanças do tempo e da sociedade a

impuserem, haverá --- ou não --- de ser feita pelo Poder Legislativo, não pelo Poder

Judiciário.

9. A anistia da lei de 1979 foi reafirmada, no texto da EC 26/85, pelo Poder

Constituinte da Constituição de 1988. Daí não ter sentido questionar-se se a anistia, tal

como definida pela lei, foi ou não recebida pela Constituição de 1988; a nova Constituição a

[re]instaurou em seu ato originário. A Emenda Constitucional n. 26/85 inaugura uma nova

ordem constitucional, consubstanciando a ruptura da ordem constitucional que decaiu

plenamente no advento da Constituição de 5 de outubro de 1988; consubstancia, nesse

sentido, a revolução branca que a esta confere legitimidade. A reafirmação da anistia da lei

de 1979 está integrada na nova ordem, compõe-se na origem da nova norma fundamental.

De todo modo, se não tivermos o preceito da lei de 1979 como ab-rogado pela nova ordem

constitucional, estará a coexistir com o § 1º do artigo 4º da EC 26/85, existirá a par dele

[dicção do § 2º do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil]. O debate a esse respeito

seria, todavia, despiciendo. A uma por que foi mera lei-medida, dotada de efeitos concretos,

já exauridos; é lei apenas em sentido formal, não o sendo, contudo, em sentido material. A

duas por que o texto de hierarquia constitucional prevalece sobre o infraconstitucional

quando ambos coexistam. Afirmada a integração da anistia de 1979 na nova ordem

constitucional, sua adequação à Constituição de 1988 resulta inquestionável. A nova ordem

compreende não apenas o texto da Constituição nova, mas também a norma-origem. No

bojo dessa totalidade --- totalidade que o novo sistema normativo é --- tem-se que “[é]

concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos” praticados no

período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Não se pode

divisar antinomia de qualquer grandeza entre o preceito veiculado pelo § 1º do artigo 4º da

EC 26/85 e a Constituição de 1988.

10. Impõe-se o desembaraço dos mecanismos que ainda dificultam o

conhecimento do quanto ocorreu no Brasil durante as décadas sombrias da ditadura.