UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ Sérgio Fernando de...
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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ
Sérgio Fernando de Melo
O TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS À DE ESCRAVO NO
BRASIL
Curitiba
2010
Sérgio Fernando de Melo
O TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS À DE ESCRAVO NO
BRASIL
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade Tuiuti do Paraná, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito Orientador: Prof. Jefferson Grey Sant’Anna
Curitiba
2010
TERMO DE APROVAÇÃO
Sérgio Fernando de Melo
O TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS À DE ESCRAVO NO
BRASIL
Essa monografia foi julgada aprovada para a obtenção do título de Bacharel em Direito no Curso de Ciências Jurídicas da Universidade Tuiuti do Paraná.
Curitiba, 15 de março de 2010.
___________________________________
Curso de Ciências Jurídicas
Universidade Tuiuti do Paraná
Orientador: Prof. Jefferson Grey Sant’Anna
Universidade Tuiuti do Paraná
Prof. Renato Luiz de Avelar Bandini
Universidade Tuiuti do Paraná
Prof. André Luiz Bäuml Tesser
Universidade Tuiuti do Paraná
AGRADECIMENTOS
Agradeço a DEUS, por essa benção e graça em minha vida.
À minha mãe Olga Laurentina Pereira Melo (pela falta que me faz), mulher e
estrela da minha vida, cuja luz interna rompeu todas as barreiras e guiou-me pelos
caminhos do amor, sabedoria, conhecimento, força, coragem e perseverança. Vivo
para amá-la e honrá-la.
Ao meu pai Oliveiros de Oliveira Melo, que sempre me ensinou a ser
perseverante e disciplinado. Sou eternamente grato por me ensinar a viver com
dignidade, iluminar os meus caminhos obscuros com afeto e dedicação, por se doar
e renunciar os seus sonhos, para que, muitas vezes, fossem realizados os meus.
Com você, tenho uma dívida impagável.
Ao meu orientador Prof. Jefferson Grey Sant’Ana, pelo incentivo, gentileza,
amizade, entusiasmo, experiências compartilhadas e principalmente pela orientação
segura e tranquilizante no desenvolvimento desta pesquisa.
A todos os professores da Universidade Tuiuti do Paraná, os quais iniciaram
este despertar pelas sendas do saber jurídico e por compartilharem comigo sua
vasta cultura.
À minha esposa, companheira e incentivadora Christina Carloto Sampaio de
Melo, pela presença valorosa nos momentos difíceis, pela compreensão e pelo amor
incondicional.
Às queridas amigas Caroline Steudel e Luciana Almeida Ghidin, amigas
inseparáveis e leais. A amizade de vocês juntamente com a simpatia e contagiante
humor foram fundamentais para recarregar as energias, dividir as incertezas e
prosseguir nesse instigante desafio.
Por fim, a todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram para o
desenvolvimento deste trabalho.
“A história de todas as sociedades que
existiram até nossos dias tem sido a história das
lutas de classes. Homem livre e escravo, patrício e
plebeu, senhor e servo, mestre de corporação e
companheiro, numa palavra, opressores e oprimidos,
em constante oposição, têm vivido numa guerra
ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra
que terminou sempre, ou por uma transformação
revolucionária da sociedade inteira, ou pela
destruição das duas classes em luta.”
Karl Marx, Friedrich Engels.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
art. – Artigo
CF – Constituição da República Federativa do Brasil
CLT – Consolidação das Leis do Trabalho
Conaete – Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo
coord. – Coordenador
CP – Código Penal
CTPS – Carteira de Trabalho e Previdência Social
ed. – Edição
FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador
FGTS – Fundo de Garantia do Tempo de Serviço
inc. – Inciso
Introd. – Introdução
MPT – Ministério Público do Trabalho
MTE – Ministério do Trabalho e Emprego
NIT – Número de Inscrição do Trabalhador
OIT – Organização Internacional do Trabalho
op. cit. – Opus citatum
Org. – Organizador
p. – Página
PEC – Proposta de Emenda Constitucional
PL – Projeto de Lei
SINE – Sistema Nacional de Emprego
TAC – Termo de Ajustamento de Conduta
trad. – Tradutor
TRT – Tribunal Regional do Trabalho
UTP – Universidade Tuiuti do Paraná
RESUMO
A sociedade pós-moderna enfrenta uma chaga que a assola de forma cruel e rotineira. Trata-se de um reflexo da escravidão em pleno século XXI, ou seja, a redução de um ser humano à condição análoga à de escravo. Decorrente da exclusão social, da má distribuição de renda, da desigualde fundiária ou mesmo do capitalismo delinquente, o trabalho que reduz à condição análoga à de escravo está presente tanto no meio urbano quanto no meio rural. Trata-se de um tipo de trabalho ilícito seja em sede penal ou em sede trabalhista. O trabalho em condições análogas à de escravo não possui sua dimensão definitivamente acabada, pois seus contornos ainda necessitam ser objetivamente definidos. Trata-se de um gênero do qual são espécies o trabalho forçado e o trabalho degradante. O principal bem jurídico violado nessa reprovável conduta é a dignidade da pessoa humana, pois se considerada sua real significação, esta já abarcaria os direitos fundamentais, dentre eles, a liberdade. O ordenamento jurídico brasileiro possui um suficiente arcabouço para a repressão do trabalho em condições análogas à de escravo, tendo o Estado e a sociedade um papel fundamental nessa tarefa.
Palavras-chave: redução à condição análoga à de escravo; dignidade da pessoa humana; normas protetivas do trabalhador
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 9
2 OS ASPECTOS HISTÓRICOS DA COLONIZAÇÃO NO BRASIL .................... 11
2.1 A HISTÓRICA DESIGUALDADE FUNDIÁRIA .................................................. 11
2.2 A ESCRAVIDÃO NO BRASIL ........................................................................... 15
3 A REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA Á DE ESCRAVO ............................... 21
3.1 DO DELITO DE REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO ........ 21
4 DO TRABALHO DEGRADANTE ....................................................................... 30
5 O BEM JURÍDICO TUTELADO NO TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS À DE ESCRAVO ....................................................................................................... 35
6 AS CONVENÇÕES DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO PROTETIVAS DO TRABALHO FORÇADO ............................................................. 44
7 O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO E AS NORMAS REFERENTES AO TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS À DE ESCRAVO ......................... 48
8 A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO .............................. 55
9 A COMPETÊNCIA NOS CASOS EM QUE O TRABALHADOR É REDUZIDO À CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO................................................................ 61
9.1 A COMPETÊNCIA CRIMINAL .......................................................................... 62
9.2 A COMPETÊNCIA TRABALHISTA ................................................................... 64
10 O CONFISCO DE PROPRIEDADES RURAIS QUE UTILIZEM MÃO DE OBRA EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS À DE ESCRAVO ..................................................... 66
11 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 72
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 76
9
1 INTRODUÇÃO
Vergonhosamente estamos discutindo uma questão em que o ser humano
tem reduzido àquilo que lhe é mais caro: sua dignidade.
Com efeito, a prática do trabalho em que há condições análogas à de
escravo está lastreada na impunidade, corroborada pela dificuldade de fiscalização,
além da ganância de empregadores, que exploram trabalhadores, com o auxílio de
intermediadores, na interminável busca pelo lucro tão exacerbado pelo sistema
capitalista.
As raízes desta chaga remontam à própria escravidão, que foi suprimida
apenas teoricamente. A escravidão se apresenta com uma nova roupagem, fruto do
capitalismo delinquente, do mundo globalizado, do individualismo humano.
Trata-se de uma injusta expropriação do trabalho e da dignidade de obreiros
que no ensejo de sobreviver à exclusão, à miséria e ao desemprego estrutural1
impostos pelo capitalismo globalizado2, são ludibriados por falsas promessas de um
trabalho digno.
Nessa perspectiva, o desenvolvimento como uma forma de liberdade é
negado, exatamente por não suscitar a eliminação das principais fontes de privação
de liberdade: “pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destruição
social sistemática(...)” (SEN, 2000, p.18) desvelando um verdadeiro retrocesso
social.
1 Para Paul Singer, o desemprego estrutural é similar aos efeitos do desemprego tecnológico, pois não aumenta o número total de pessoas sem trabalho, mas contribui para deteriorar as relações de trabalho para o hipossuficiente. A respeito, ver SINGER, Paul Israel. Globalização e desemprego: diagnóstico e alternativas. São Paulo: Contexto, 1998, p. 23. 2 O aumento da pobreza, a exclusão e o retrocesso social, a expansão da fome, o desemprego estrutural e a exacerbação do individualismo são apenas alguns apontamentos em que se fazem sentir as consequências deste fenômeno. A respeito ver SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 14. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 18-19.
10
A possibilidade do cometimento desse tabalho ilícito não está adstrita
apenas ao meio rural, sendo possível também no meio urbano, em indústrias e
empresas que têm como prática o trabalho forçado ou degradante. Trata-se de um
trabalho ilícito, seja à luz das normas de direito de trabalho ou à luz do direito
criminal.
O presente Trabalho de Conclusão de Curso inicialmente expõe um
arcabouço teórico sobre os aspectos históricos da colonização no Brasil, lançando
reflexões sobre as origens da desigualdade fundiária e sobre as principais
características da escravidão à época. Esse substrato teórico visa a uma abordagem
não reducionista do objeto de estudo, contextualizando-o sob à realidade que o
circunda, haja vista que dados estatísticos dos órgãos oficiais3 corroboram que a
incidência de trabalho em condições análogas à de escravo é mais expressiva no
meio rural.
Em seguida, são lançadas proposições sobre o delito de redução à condição
análoga à de escravo, sobre o trabalho degradante e o sobre o bem jurídico tutelado
com a vedação desse tipo de trabalho ilícito. É nessa parte de nosso estudo que
lançaremos algumas considerações críticas sobre o tema ao fundamentarmos a
necessidade de uma definição objetiva da real dimensão do trabalho em condições
análogas à de escravo, além de sustentarmos que a dignidade da pessoa humana é
o fundamento que veda essa reprovável prática.
3 Sobretudo, não nos olvidamos da pertinente ressalva que circunda a confiabilidade dos dados disponíveis sobre a quantificação e localização do trabalho em condições análogas à de escravo. Não nos referimos à ocultação ou manipulação de dados, embora não alijemos essa possibilidade, mas, referimo-nos, principalmente, às variações encampadas conforme a premissa ou parâmetro metodológico utilizado. Reconhecemos a dificuldade de uma estatística precisa, cientes de que o máximo que podemos considerar é uma situação, talvez, aproximativa. Contudo, dada a impossibilidade, pelo menos momentânea, de uma investigação interdisciplinar e conjunta com pesquisadores habilitados, optamos por considerar em nossa investigação, que possui característica eminentemente individual, os dados divulgados por instituições oficiais, ainda que se mostrem precários em determinados aspectos.
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Prosseguindo na investigação sobre o tema, sob um viés positivista e sem
pretensão de exauriência, são analisadas as convenções da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), que tratam do trabalho forçado, além das principais
normas do ordenamento jurídico brasileiro aplicáveis ao objeto de investigação.
Trata-se de uma perspectiva do trabalho em condições análogas à de escravo à luz
do ordenamento jurídico vigente.
Finalmente, os últimos capítulos propõem um estudo mais detido sobre a
atuação do Ministério Público do Trabalho (MPT) na prevenção desse tipo de
trabalho, além da análise da competência criminal e trabalhista acerca do tema e da
Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que trata sobre a expropriação da
propriedade rural de empregadores flagrados utilizando de mão de obra em
condições análogas à de escravo.
Evidentemente, pelas possibilidades e limitações, o estudo não tem por
pretensão esgotar a instigante e vasta temática, mas sim, trazer a debate essa
indesejável modalidade de trabalho que, embora proibida pelo ordenamento jurídico
pátrio, é comumente perpetrada nas mais diversas situações verificadas no caso
concreto.
2 OS ASPECTOS HISTÓRICOS DA COLONIZAÇÃO NO BRASIL
2.1 A HISTÓRICA DESIGUALDADE FUNDIÁRIA
A desigualdade fundiária no Brasil possui uma imbricada correlação com o
trabalho em condições análogas à de escravo, pois em que pese este não ser
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exclusividade do meio rural, percebemos sua maior incidência no campo4. Perquirir
as origens dessa desigualdade, ainda que de maneira não exauriente, permitirá uma
melhor compreensão do trabalho em condições análogas à de escravo5.
À luz da história, podemos compreender com mais acuidade os problemas atuais. A concepção histórica mostra como foi o desenvolvimento de certa disciplina, além das projeções que podem ser alinhadas com base no que se fez no passado, inclusive no que diz respeito à compreensão dos problemas atuais. Não se pode, portanto, prescindir de seu exame. É impossível ter o exato conhecimento de um instituto jurídico sem se proceder a seu exame histórico, pois se verificam suas origens, sua evolução, os aspectos políticos ou econômicos que o influenciaram. Ao analisar o que pode acontecer no futuro, é preciso estudar e compreender o passado, estudando o que ocorreu no curso do tempo. (MARTINS, 2000, p. 33).
Revisitar o passado não trata apenas de recordar, herdar sem despretensão,
mas transformar os acontecimentos pretéritos na busca de explicações para a
realidade presente e possibilidades futuras. Nesse sentido, é impossível se colocar
em perspectiva o trabalho em condições análogas à de escravo sem esquadrinhar
seu caminho histórico.
A construção dos impérios espanhol e português se fez pela rapina das
riquezas da América e substituição das sociedades existentes, de tal forma que a
extinção de povos inteiros, seja “pela morte ou pela assimilação cultural não pode
ser considerada um acidente, mas uma consequência possível, aceita e até mesmo
desejável.” (MARÉS,1985, p. 42).
4 É o que se depreende do Cadastro de Empregadores previsto na Portaria n°. 540/2004 do Ministério do Trabalho e Emprego, que contém infratores flagrados explorando trabalhadores nà condição análoga à de escravos. Cadastro de empregadores – Portaria 540 de 15 de outubro de 2004. Atualização semestral em 31 de dezembro de 2009. Disponível em: <http://www.mte.gov.br/trab_escravo/lista_suja.pdf> Acessado em: 01 jan. 2010. 5 O exame do trabalho em condições análogas à de escravo pressupõe a não observância de um único viés, sob pena de empobrecimento da análise proposta. Ora, o direito não habita em um vácuo isento de qualquer interferência, mas convive, em verdade, em uma realidade fática e social de determinado momento histórico, entrelaçando-se a diversos atores ou enfoques. Ao encetarmos argumentos históricos não pretendemos incidir em ausência de método, mas sim nos valermos da interdisciplinaridade como possibilidade de investigação científica em nosso estudo.
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Os colonizadores trataram de estabelecer sua jurisdição territorial no Brasil,
ignorando e usurpando qualquer conceito indígena de territorialidade, tendo, os
colonizadores, saqueado, matado, invadido tudo em nome da expansão territorial da
colônia. 6 O Estado Colonial português imprimiu uma situação de inobservância dos
direitos dos povos indígenas e uma injusta e ultrapassada estrutura fundiária.
Com a aplicação das Sesmarias no Brasil, percebemos a evidente diferença
entre a realidades da colônia. A grande intenção da coroa portuguesa era colonizar
as terras em nome do rei em face da disputa com a Espanha e França sobre o
território.
Conforme ensina Marés, “[...] enquanto em Portugal as sesmarias tiveram o
sentido de proporcionar a produção de alimentos para a população, no Brasil foram
instrumento de conquista.” (MARÉS, 1985, p. 42).
Tal ilação é ratificada pelos estudos de Virgínia Raul ao traçar o panorama
das sesmarias medievais portuguesas7:
Integradas nesse movimento de colonização interna em que o homem ganha direito à terra pelo cultivo e em que a organização municipal alastra acolhendo o trabalhador à sombra protectora, [sic], dos forais, as sesmarias garantiram a fixação do povoado e o aproveitamento do solo. (1982, p. 47).
A colonização interna, no caso português, em que o homem ganha direito a
terra pelo cultivo e em que à organização municipal incumbia decidir quem ocuparia
a terra improdutiva, teve em seu período do desenvolvimento alterações conforme o
6 A respeito da sanguinária exploração dos povos indígenas na América ver LAS CASAS, Frei Bartolomé. Brevíssima relação da destruição das índias: o paraíso perdido. 4. ed. Porto Alegre: L&PM, 1985, p. 47. 7 O tema em tela consubstancia referência obrigatória para o conhecimento das origens agrárias de Portugal. Sua obra foi redigida em 1945, em tese de doutoramento em Ciências Históricas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
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momento histórico vivenciado, mas sempre, seja pelo juiz ou pelo sesmeiro
escolhido pelo conselho e/ou designado pelo rei, caberia decidir quem melhor
ocuparia e produziria na terra abandonada.
Nas palavras de Virgínia Raul:
O sesmeiro só devia dar essas terras de sesmaria àqueles que se obrigassem a rompê-las dentro de um até quatro anos e não mais, e isto segundo a qualidade da terra; se no dito tempo as não aproveitassem lhe pusesse pena de quinhentos ou mil reais para o conselho, a carta de sesmaria ficasse nula e a terra pudesse ser dada a outro qualquer que a pedisse. (1982, p.137).
Nesse contexto, a lei das sesmarias surge em Portugal, sem ignorar, por
óbvio, as práticas e preceitos que as antecedeu, mas com o escopo cristalino de
impedir a desagregação econômica do reino português, visando à resolução não
apenas do conflito entre o produtor direto e assalariado e o proprietário rural, como
também a promover a ocupação do território de forma produtiva, resolvendo o
problema dos latifúndios e da crescente atividade pastoril (pecuária) à época.
Um dos méritos das sesmarias portuguesas foi propiciar uma reforma
agrária para todos os que estivessem dispostos a cultivar a terra: poderosos,
pequena nobreza, a burguesia e o próprio homem desfavorecido.
No Brasil, entretanto, o sentido é diametralmente oposto, pois as sesmarias
visaram a garantir o domínio português sobre o território “conquistado”, havendo
pouca ou quase nenhuma importância o cultivo da terra e sua respectiva divisão
fundiária.
Marés, de forma lapidar, atribui às sesmarias e sua forma de aplicação no
Brasil a fonte de criação dos latifúndios e de desrespeito aos povos indígenas.
(MARÉS, 1985, p. 58).
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Então, se as terras brasileiras doadas em sesmarias tiveram o escopo
condenável de ocupação, tendo como corolários os grandes latifúndios e a injustiça
agrária, tal ilação nos permite afirmar que a lógica capitalista se instaurou de
imediato na “colonização brasileira”, pois nem escravos, nem trabalhadores da terra,
em um avançar histórico, tiveram facilidades de acesso à mesma, o que propiciou a
manutenção da lógica capitalista agrária8 e a manutenção dos donos de capital
(terras) em posição privilegiada por um longo período do tardio processo de
industrialização.
Esse debate ganha relevo exatamente por sua atualidade. A desigualdade
fundiária ainda está presente nos dias atuais. As grandes porções de terras nas
mãos de poucos que as utilizam com o escopo notadamente imersos no modo de
produção capitalista pode servir de lastro para o entendimento das várias
perspectivas possíveis de se refletir sobre o trabalho em condições análogas à de
escravo.
Nesse sentido, pugna-se o trabalho em condições análogas à de escravo é
favorecido, também, pela condenável estrutura fundiária brasileira, que se justifica,
dentre outros fatores, pela maneira com que Portugal conduziu a colonização no
Brasil.
2.2 A ESCRAVIDÃO NO BRASIL
A escravidão no Brasil decorreu do processo de colonização portuguesa.
Inicialmente os portugueses se valeram da escravização dos índios, a fim de
obterem madeiras e especiarias a serem negociadas na Europa.
8 Sobre as origens agrárias do capitalismo, ver WOOD, Ellen Meiksins. As origens agrárias do capitalismo. Trad. Lígia Osório Silva. Revista “Crítica Marxista”, São Paulo, n. 10, v. 1, p. 12-29. 2000.
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O modelo econômico colonial, a partir da segunda metade do século XVI,
era baseado na monocultura e no extrativismo, através do sistema de colônia de
exploração, sendo que os negros africanos eram utilizados como mão de obra
escrava nos engenhos e plantações de açúcar, além de serem comercializados
como mercadorias.
Carlos Fernando Mathias de Souza, a respeito do direito e da escravidão no
Brasil, aduz:
O Brasil, por mais de três séculos, conheceu a prática da escravidão, garantida pelo direito. Iniciada a colonização e, mais particularmente, com a instalação das Capitanias Hereditárias, a partir de 1534, a agricultura, naturalmente, passou a exigir braços para o trabalho. Assim, o colonizador português lançou mão do elemento servil, de início recorrendo ao elemento indígena e, logo a seguir, aos africanos. (2004, p. 8).
Os escravos eram trazidos da África para o Brasil nos porões de navios
negreiros. Esse tipo de transporte era realizado em péssimas condições, muitos
escravos não resistiam à viagem, morrendo antes de chegar ao Brasil. Nos navios
negreiros, escravos acometidos de doenças eram misturados a escravos sadios.
Essas doenças dizimavam os escravos, levando estes a óbito antes mesmo de
aportarem no Brasil. Nestes porões, o mau cheiro era insuportável, sendo difícil
acreditar que seres humanos, idosos, adultos e crianças, sobreviveram naquele tipo
de ambiente, com alimentação inadequada, doenças contagiosas e maus tratos.
Neste sentido, Eunice Aparecida de Jesus Prudente nos traz luzes:
O alvará de 29 de março de 1549 (D. João III) oficializou a importação de africanos para o Brasil; cada engenho podia importar até 120(cento e vinte) escravos. Esta importação foi orientada pelas necessidades da economia açucareira, cuja tendência era crescer cada vez mais. Assim, sob a contemplação sádica de traficantes e escravocratas, homens, mulheres e crianças eram retidos meses em porões malcheirosos e escuros dos navios, donde saíam debilitados pela fome e pelas doenças. (1989, p.32-33).
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Sobretudo, seja na produção do açúcar, pecuária ou nas minas de ouro, os
escravos eram tratados de forma degradante, trabalhando arduamente, sem
nenhuma higidez física ou mental.
Os escravos negros habitavam senzalas, que se caracterizavam por galpões
escuros, úmidos e com pouca higiene, que serviam de habitação e local de exíguo
descanso do parco tempo que os escravos negros possuíam para isso. “As casas
eram pequenas, baixas, não tinham janelas e, dentro delas, um fogo sempre aceso
surpreendia os observadores estrangeiros que deste estranho hábito deixaram
relato.” (FARIA, 2008).
Sobre a vida dos escravos, Eunice Aparecida de Jesus:
A vida dos cativos resumia-se em trabalhar do amanhecer ao anoitecer, quando eram recolhidos às senzalas. Eram homens, mulheres e crianças, lá apinhados. Para o proprietário interessava somente o lucro e uma procriação de negros que lhe trouxesse mais braços trabalhadores. Preocupava-se o senhor com a segurança do escravo, apenas para manter certo equilíbrio: mais nascimentos do que mortes. Portanto, não lhe importava certo número de óbitos entre os escravos, fosse pelo excesso de trabalho ou pelos castigos impostos, desde que para a mesma época estivesse previsto determinado número de nascimentos, pois a criança escrava começava a trabalhar por volta dos oito anos. (1989, p.34).
Os escravos eram acorrentados para evitar fugas, sendo punidos ampla e
irrestritamente. O açoite em praça pública (pelourinho) era a punição mais comum,
sendo inclusive, regulado pelo Código Penal vigente naquele período. Outros tipos
de sanções também eram aplicadas arbitrariamente e com requintes de crueldade,
como a palmatória, marcação com ferro quente, corte das orelhas, castração, quebra
dos dentes a martelo, amputação dos seios, besuntação ao mel e amarração em
formigueiros, dentre outras, não havendo limites para as atrocidades e as
arbitrariedades, sempre no intuito de manter a rentável engrenagem escravocrata.
(Ibid.,1889, p. 34).
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A fim de evitarem os maus tratos e uma situação deplorável de vida, sempre
em busca da liberdade e confirmando a não passividade à escravidão pelo negro,
era comum a fuga, seja individual ou coletiva, durante o tempo em que durou a
escravidão. Os escravos fugitivos eram perseguidos pelos feitores e pelos capitães-
do-mato. (PRUDENTE, 1989, p. 34). Na busca por uma vida digna, eram comuns
revoltas em que grupos de escravos fugiam, homiziando-se na floresta.
Sobre o mais famoso quilombo brasileiro, Kátia de Queirós Mattoso aduz:
Abrigados na rica floresta dos Palmares, impenetrável, abundante de recursos naturais, esses fugitivos estabeleceram uma “república” de 60 léguas de superfície [...]. Em 1643, a República dos Palmares conta com 6000 habitantes. Em 1670 este número sobe a 20.000. Subupira, o centro de instrução militar, é uma praça forte de 800 cabanas. O primeiro chefe eleito dessa “república” é o rei Ganga-Zumba, que fora assassinado em 1678, por haver consentido em negociar com os brancos e com eles assinar um tratado de paz. Seu sucessor, o legendário Zumbi, encarna a resistência negra. [...] Todos os escravos que buscam refúgio em Palmares são considerados livres. Em contrapartida, o negro apanhado pela força permanece escravo, tendo, contudo, a possibilidade de comprar sua alforria. Somente os chefes vestem-se bem. As armas de fogo são proibidas à população e o homicídio, o roubo e o adultério são severamente reprimidos. Como todos os quilombos Palmares tem falta de mulheres e não se hesita em organizar expedições para resgatá-las nos engenhos e povoados distantes. Vive da pesca e da apanha, mas também do milho, da mandioca, das batatas-doces, dos feijões e da cana cultivados no território da “república”. (1988, p. 176).
Poucos escravos alcançavam a liberdade após adquirirem a carta de alforria.
Juntando alguns "trocados" durante toda a vida, conseguiam se tornar livres. Porém,
as mínimas oportunidades e o preconceito da sociedade acabavam fechando as
portas para estas pessoas.
Com efeito, “a praxe jurídica brasileira, como a de todas as sociedades de
regime escravista, mandava que o filho de escrava nascesse escravo, mesmo se o
pai fosse um homem livre.” (MATTOSO, 1988, p.176).
Por certo, a Inglaterra exerceu uma forte pressão em Portugal no sentido
acabar com a escravidão. As medidas adotadas pela Inglaterra iam de encontro aos
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interesses dos escravistas ao ponto destes afirmarem que tais medidas lesavam a
soberania nacional. Em 1845, a Inglaterra promulgou a Lei Bill Aberdeen (Lei que
autorizava a marinha inglesa reter os navios negreiros que navegassem pelo
Atlântico em direção ao Brasil), “dando a marinha o direito de aprisionar os navios
negreiros que encontrassem, declarando ilegal o tráfico de escravos africanos e
determinando que seus infratores fossem julgados pelos tribunais da marinha
inglesa.” É neste período que muitos navios foram levados a pique, pois a Coroa
Inglesa intensificou o patrulhamento de suas esquadras a fim de extinguir o tráfico
negreiro. (A ESCRAVIDÃO..., 2009).
O Brasil, sensível às retaliações inglesas no ano de 1850, promulgou a Lei
Eusébio de Queirós, proibindo o tráfico de escravos. Contudo, apenas a Lei que
proibia o tráfico de escravos não se mostrou suficiente, pois na prática o tráfico de
escravos continuava a existir.
Em 1854, o Brasil encampa mais uma medida no sentido de acabar com o
tráfico negreiro, a Lei Nabuco de Araújo, criando uma fiscalização mais severa e
estabelecendo pesadas penas aos traficantes.
Tais medidas levaram o Brasil a reatar suas relações com a Inglaterra,
ocasionando uma modernização do país e aumento da dependência ao seu
imperialismo.
Sobretudo, “a eliminação do tráfico não modificou a estrutura da escravidão,
mudou apenas a forma de abastecimento, dando incentivo ao comércio interno.” (A
ESCRAVIDÃO..., 2009). O Tráfico de escravos restara acabado, mas escravidão
continuava como uma chaga.
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No período que antecedeu à abolição da escravidão no Brasil, parcos e
tímidos esforços foram envidados com destaque para a Lei dos Sexagenários e à Lei
do Ventre Livre.
Nesse diapasão, são válidas as considerações de Kátia Mattoso:
A Lei de 28 de setembro de 1871, n°. 2040, chamada lei do “ventre livre”, promulgada pela princesa Imperial Isabel, regente do Império na ausência de seu pai, D. Pedro II, concede liberdade às crianças nascidas no país, de mãe escrava. A partir desta data, e tendo em vista que a importação de escravos africanos estava proibida, não devia mais haver crianças escravas e a escravidão estava ameaçada de extinção Gradual, por falta de cativos. (1988, p.176).
Já a Lei dos Sexagenários, de 28 de setembro de 1885, emancipava todos
os adultos com mais de 60 anos, estipulando que o escravo liberto deveria indenizar
o seu senhor e caso assim não o fizesse então deveria trabalhar mais três anos.
Evidentemente, poucos escravos chegavam a essa faixa etária, e para que
pudessem se beneficiar de todas as provisões legais em seu favor, necessitariam do
apoio de homens livres.
O fim da escravidão no Brasil se deu tardiamente e devido a fatores
econômicos e sociais. “Na década de 1880, o Brasil era um dos últimos países do
mundo que mantinham a escravidão. Apesar de alguns avanços, ainda havia no país
cerca de 700 mil escravos.” (A ESCRAVIDÃO..., 2009). De fato, os grandes
latifundiários e donos dos escravos não eram favoráveis à causa abolicionista, visto
que o trabalho nas fazendas e a continuidade de sua lucratividade dependiam dessa
mão de obra.
Finalmente e de maneira extemporânea, no dia 13 de maio de 1888, a
princesa Isabel marcou de forma indelével uma das mais importantes páginas da
21
nossa história. A Lei Áurea trouxe premissas de liberdade e de igualdade entre os
homens, abolindo de forma definitiva a escravidão no Brasil.
É bem verdade que a atualmente a escravidão se apresenta sob outra
roupagem, fruto da exclusão e expropriação originária do capitalismo, em que à
condição de escravidão não é mais a origem afrodescendente, mas sim uma
escravidão da miséria, da fome e da ignorância.
3 A REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA Á DE ESCRAVO
3.1 DO DELITO DE REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO
Mais de um século depois da abolição da escravidão no Brasil, verificamos
que ela se apresenta sob outra roupagem. Trata-se de uma antiga questão, porém
dinâmica em seus delineamentos.
Ao falarmos da redução à condição análoga à de escravo, estamos tratando
de homens, mulheres e crianças que assim como à época da escravidão são
negados em sua liberdade, presos em seu ambiente de trabalho sob constante vigia,
muita das vezes sob a falsa justificativa de uma dívida inexistente, trabalhando de
maneira forçada e/ou degradante, com alimentação, alojamento e equipamentos
inadequados. O tratamento de seres humanos como “coisa” e não como sujeito de
direitos, clientes de uma dignidade que lhe assegura ser concebido como fim e não
como meio, caracteriza este tipo de trabalho9.
9 Amauri Mascaro Nascimento tratando da escravidão na sociedade pré-industrial assevera a predominância da escravidão que fez do trabalhador simplesmente uma “coisa”, sem possibilidade de equiparação a sujeito de direitos. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação do direito do trabalho. 34. ed. São Paulo: LTr, 2009, p. 43.
22
Marilena Chauí contribui:
De fato, os trabalhadores como classe social, estão despojados dos meios de produção, ou seja, a propriedade dos meios de produção pertence, de forma particular, a uma classe social que é a proprietária do capital (donos das terras, das indústrias, do comércio, dos bancos, das escolas, dos hospitais, das frotas de automóveis, de ônibus ou de aviões, etc.) à qual os trabalhadores vendem sua força de trabalho. Vendendo sua força de trabalho no mercado de compra e venda de trabalho, os trabalhadores são mercadorias e, como toda mercadoria, recebem um preço, isto é, o salário. Entretanto, os trabalhadores não percebem que foram reduzidos à condição de coisas que produzem coisas; não percebem que formam desumanizados e coisificados. (2004, p. 173).
No trabalho em que o homem é reduzido à condição análoga à de escravo
percebemos uma verdadeira alienação, além da submissão destes trabalhadores à
miséria, à doença, à fome e à marginalização, uma verdadeira coisificação do
trabalhador nos marcos da lógica capitalista globalizada. “Desapareceram os seres
humanos, ou melhor dito, eles existiram sob forma de coisas.” (SOUZA, 1998, p. 45).
Ela está presente não apenas em ambientes rurais, mas também, no meio
urbano como no caso de empresas ou empregadores que submetem os
trabalhadores a jornadas de trabalho exaustivas, sob coação física ou moral, além
de privá-los de diversos direitos trabalhistas, como por exemplo, os referentes à
saúde, à segurança, à higiene e ao meio ambiente de trabalho. (SANTOS, 2003, p.
55).
A redução à condição análoga à de escravo não leva apenas, como em
tempos de outrora no Brasil, em consideração a cor da pele. Essa nova modalidade
de escravidão tem como gênese a exclusão ocasionada pelo modo de produção
capitalista. A pobreza é a principal condicionante que possibilita esta vergonhosa
forma de exploração do homem pelo homem, pois trabalhadores se submetem a
tratamentos degradantes e a sucessivas violações em sua dignidade por
23
acreditarem que estão à margem da sociedade, da cidadania e da proteção estatal.
Assim, a redução do homem à condição análoga à de escravo é possibilitada porque
os trabalhadores se sentem tão excluídos, vilipendiados em sua dignidade que
aceitam tais condições de trabalho, pois em muitos casos, são trabalhadores
analfabetos, sem documentos, sem acesso à educação, saúde e negados em sua
cidadania. (SOARES, 2003, p. 35-38).
O trabalhador reduzido à condição análoga à de escravo, portanto, é produto
da desigualdade, da má distribuição de renda, da injusta repartição de terras, da
ineficácia do Estado no combate a essa verdadeira chaga humana, enfim, são seres
humanos que sobrevivem em extrema vulnerabilidade econômica e social.
Sobretudo, impossível se faz desenvolver um trabalho científico sem o
emprego de um vocabulário técnico rigoroso. A confusão terminológica referente ao
trabalho em condições análogas à de escravo ainda atormenta a temática em tela.
Então, trabalho escravo, escravidão por dívida, escravidão branca, semi-escravidão,
escravidão moderna ou contemporânea, plágio de escravo, estaria juridicamente se
tratando do trabalho em condições análogas à de escravo?
Defende-se que o delito de redução à condição análoga à de escravo se
refere à situação semelhante, comparável, parecida, similar à de escravo. Portanto,
em nosso entender, seria descabido falar em trabalho escravo e seus adjetivos, haja
vista que o instituto da escravidão foi banido do ordenamento jurídico pátrio desde
1888 (Lei Áurea). E mais, a própria Lei n°. 10.803/2003, que modificou o art. 149 do
Código Penal (CP), elenca expressamente as hipóteses que caracterizam tal delito.
(NEVES, 2003, p. 8-10).
24
Estamos diante de um crime de plágio, “[...] ou seja, é à condição análoga à
de escravo que é o delito criminal e não a situação em si de escravo, que já não
existe mais, pois ninguém é juridicamente escravo.” (NEVES, 2003, p. 8-10).
Nessa senda, invocamos a redação original do delito de redução à condição
análoga à de escravo, consoante ao tipo penal do Código Penal de 1940:
Art. 149 – Reduzir alguém à condição análoga à de escravo: Pena – reclusão de 2 (dois) a 8 (oito) anos.
Fábio André Guaragni contribui:
O direito penal do trabalho é parte do direito penal econômico. Num primeiro momento, nos moldes com que se desenvolveu, sob a batuta liberal burguesa do século XIX, tutelava, sobretudo, os interesses do capitalista diante do trabalhador, criminalizando movimentos paradistas, sabotagem [...]. (2008, p. 359- 360).
O tipo penal em tela se apresentava totalmente incompleto, gerando dúvidas
no que seria realmente reduzir alguém à condição análoga à de escravo. Tratava-se
de norma penal em branco de interpretação controvertida. (FELICIANO, 2004, p. 21-
33).
Ciente de que o tipo penal objetivo em comento carecia de modificações, o
Poder Legislativo encampou diversos projetos de lei no sentido de modificar e alterar
a redação do art. 149 do Código Penal. Desde o início das discussões, por meio do
Projeto de Lei n°. 5.693 no ano de 2001 até a promulgação da Lei n°. 10.803/03
profundas reflexões referentes à constitucionalidade, à juridicidade, à técnica
legislativa e ao mérito dos Projetos de Lei foram travadas a fim de proporcionar ao
Código Penal um dispositivo legal atento à realidade e ao bem jurídico a ser
protegido.
25
O resultado de aproximadamente três anos de debate nos diversos Poderes
e setores da sociedade foi a promulgação em 11 de dezembro de 2003, da Lei n°.
10.803/2003, que altera o art. 149 do Decreto-Lei n°. 2.848, de 7 de dezembro de
1940 — Código Penal, para estabelecer penas para o crime nele tipificado e indicar
as hipóteses em que se configura condição análoga à de escravo.
O art. 149 do Código Penal brasileiro passou a ter a seguinte redação:
Art. 149 – Reduzir alguém à condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. § 1º - Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. § 2º - A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
Evidentemente, qualquer alteração seria menos frustrante do que a redação
original que era vazia, aberta, inconclusiva. Ratificando esse entendimento,
Guilherme Feliciano aduz ser certo que a Lei no. 10.803/03 “introduziu inovações
importantes para o tratamento jurídico-penal do trabalho escravo no Brasil. A rigor,
qualquer especialização do tipo penal seria bem-vinda, diante da lacônica redação
original do art. 149 do CP.” (FELICIANO, 2004, p. 21-33).
Por certo, o crime tipificado no art. 149 do Código Penal trouxe a título de
inovação incriminadora a conduta de submeter a trabalho forçado e/ou a trabalho em
condições degradantes.
26
Nesse sentido, o delito de redução à condição análoga à de escravo passa a
exigir, de quatro, uma das seguintes condutas (modos de execução): sujeição alheia
a trabalhos forçados; sujeição alheia à jornada exaustiva; sujeição alheia a
condições degradantes de trabalho; restrição, por qualquer meio, da locomoção
alheia em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. (FELICIANO,
2004, p. 21-33).
Sobretudo, a lei se apresenta insuficiente para coadunar com todas as
situações do caso concreto dada a sua característica de generalidade e abstração.
Nesse sentido, o preceito primário do artigo 149 do Código Penal exige para sua
melhor compreensão a integração e a interpretação. René Dotti afirma que “ao
interpretar, o estudioso ou profissional se limita ao processo de conhecimento da
norma, aferindo o seu conteúdo material” (DOTTI, 2004, p. 248). Contudo, “na
hipótese de integração o estudioso ou profissional deve ter em mente que a norma
precisa ser completada por outra norma penal ou extrapenal.” (Id. 2004, p. 248).
O tipo penal objetivo capitulado no art.149 do Código Penal, ao colacionar o
trabalho forçado e o trabalho degradante, consubstanciou-se em norma penal em
branco, ensejando, no caso em tela, recorrer às Convenções nº. 29 e nº. 105 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.
A respeito do tipo objetivo do crime em tela, Celso Delmanto ensina:
A conduta consiste em submeter alguém a sujeição absoluta reduzindo-o à condição análoga (semelhante, comparável) à de escravo. Para a tipificação, não se exige que haja uma verdadeira escravidão, nos moldes antigos. Contenta-se a lei com a completa submissão do ofendido ao agente. O crime pode ser praticado por vários modos, sendo mais comum o uso da fraude, retenção de salários, ameaça ou violência. (2002, p. 320).
Depreende-se do referido tipo penal que o crime de redução à condição
análoga à de escravo é gênero do qual o trabalho forçado e o trabalho degradante
27
são espécies. Então, poderíamos afirmar que o trabalho forçado e o trabalho
degradante são sinônimos do delito de redução à condição análoga à de escravo?
A resposta parece ser verdadeira, pois, em se tratando da esfera penal o art.
149 do Código Penal responde expressamente a tal questionamento: “reduzir
alguém à condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados
ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho [...].”
A recíproca, contudo, não é verdadeira, pois nem todo delito de reduzir
outrem à condição análoga à de escravo é trabalho forçado ou trabalho degradante,
pois restringir, por qualquer meio, a locomoção do trabalhador em razão de dívida
contraída com o empregador ou preposto, cercear o uso de qualquer meio de
transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho e
manter vigilância ostensiva no local de trabalho, ou ainda, apoderar-se de
documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de
trabalho também constituem o delito em tela. (BRITO FILHO, 2004, p. 10).
A redução à condição análoga à de escravo, além de constituir crime pode
ensejar a violação de diversos direitos trabalhistas com a respectiva possibilidade de
reparação pelo dano individual e coletivo. As condutas tipificadas no art. 149 do
Código Penal não exaurem as situações em que um trabalhador pode ser submetido
a condições análogas à de escravo. Aliás, essa é uma possível crítica acerca da
redação dada pela Lei no. 10.803/2003.
Nesse diapasão, são válidas as considerações de Guilherme Guimarães
Feliciano sobre o advento desta Lei.
[...] o legislador recompôs esse estado de direito, convolando em tipo penal fechado a fattispecie do art. 149 do Código Penal, para cerrar a noção em um conceito bem específico — e, em nossa opinião, fechando-o até demais.
(2004, p. 23).
28
O legislador, ao inovar, trazendo expressamente a descrição das condutas
delituosas, promoveu um fechamento e/ou engessamento das condutas que
caracterizam a redução à condição análoga à de escravo. Evidentemente, a redação
dada pela Lei em comento não abarcou todas as condutas que em tese
caracterizariam o crime de redução à condição análoga à de escravo.
De fato, com relação à vontade do legislador e guardadas as devidas
proporções ao processo legislativo brasileiro nos filiamos ao pensamento de Hans
Kelsen:
O estatuto, é bem verdade, é a ‘decisão’ de todo o parlamento, incluindo a maioria divergente. Obviamente, no entanto, isso não significa que o parlamento ‘queira’ o conteúdo do estatuto. Consideremos apenas a maioria que vota a favor da lei. Mesmo assim, a afirmação de que os membros dessa maioria‘querem’ o estatuto é claramente de natureza fictícia. Votar a favor de um projeto de lei não implica, em absoluto, querer efetivamente o conteúdo do estatuto. Num sentido psicológico, pode-se ‘querer’ só quando se tem uma idéia. É impossível ‘querer’ algo que se desconhece. Ora é um fato que, muitas vezes, senão sempre, um número considerável dos que votam a favor de um projeto tem, quando muito, um conhecimento bastante superficial de seu conteúdo. Tudo o que a Constituição requer é que votem a favor do projeto erguendo a mão ou dizendo ‘sim’. Isso eles podem fazer sem conhecer o conteúdo do projeto. (2000, p. 47-48).
Na prática, verifica-se situações que atingem a dignidade do trabalhador a
ponto de considerá-lo coisa, plágio de escravo. Situações como alojamentos em
condições subumanas, barracos de lona, com acomodações indevassáveis para
homens, mulheres e crianças, o que ocasiona uma convivência promíscua;
inexistência de instalações sanitárias adequadas, com precárias condições de saúde
e higiene; falta de água potável e alimentação parca; truck-system ou populares
“barracões” que têm representado o renascimento da servidão por dívidas;
inexistência de refeitório adequado para os trabalhadores e/ou de cozinha adequada
para o preparo de alimentos; ausência de equipamentos de proteção individual e/ou
29
coletiva; meio ambiente de trabalho nocivo (selva, chão batido, animais
peçonhentos, umidade etc.); coação física ou moral (vis relativa ou absoluta);
cerceamento da liberdade ambulatória (o direito de ir e vir) é limitado pelas
distâncias, pela precariedade de acesso; falta de assistência médica, etc. (Id., 2004,
p. 23).
Ainda, no meio urbano, é possível verificar locais de trabalho em instalações
inadequadas, sem ventilação, com número excessivo de pessoas, com
equipamentos de trabalho prejudiciais à saúde e à segurança dos trabalhadores,
com retenção dos documentos dos trabalhadores, além de coação física, moral e
econômica. Trata-se de condições degradantes de trabalho, principalmente
relacionadas ao meio ambiente de trabalho. Neste sentido, o trabalho em que há
redução à condição análoga à de escravo é possibilitado pela ânsia dos
hipossuficientes em não serem excluídos do mercado e trabalho. (MELO, 2004, p.
425-432).
A coerção que paira sobre os trabalhadores é principalmente a econômica,
pois na busca de um salário que lhes permita a sobrevivência própria e de sua
família, percebemos a inobservância de diversos direitos trabalhistas por parte de
determinados empregadores.
Não pretendemos esgotar com este estudo a exata dimensão do que é a
redução à condição análoga à de escravo, mas o que temos por escopo é inferir que
tal tipo penal precisa ser exaustivamente debatido, pois sua correta definição
significa a repressão10 a um delito que afronta a dignidade da pessoa humana e, por
conseguinte, os próprios direitos fundamentais e os direitos humanos.
10 Como exemplo de repressão ao trabalho em condições análogas à de escravo citamos, também a Proposta Emenda à Constituição (PEC) nº. 438/2001 que pugna pela expropriação das terras onde for flagrada mão de obra em condições análogas à de escravo.
30
A dificuldade reside em trazer a lume um conceito final do que seja o
trabalho em que um ser humano é reduzido à condição análoga à de escravo, pois a
subjetividade e as diversas possibilidades de exploração do trabalhador no meio
urbano ou rural, podem ensejar diversos contornos ao mesmo.
Colocada a questão nesses termos passemos à análise do trabalho
degradante.
4 DO TRABALHO DEGRADANTE
A Declaração Universal dos Direitos do Homem11, proclamada pela
Organização das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, estabelece em seu
artigo 5º., que “ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel,
desumano ou degradante.” Seguindo tal comandamento, a Carta Cidadã, em seu
art. 5°., inciso III, assevera que ninguém será submetido à tortura nem a tratamento
desumano ou degradante12. Nessa mesma toada, o art. 149 do Código Penal tipifica
como delito de redução à condição análoga à de escravo sujeitar o trabalhador a
condições degradantes de labor.
Sobretudo, definir o que é o trabalho degradante não é tarefa fácil, pois
inúmeras situações de trabalho podem caracterizar um trabalho degradante. O
conceito de tratamento degradante e de trabalho degradante não é algo fechado,
completo ou livre de subjetivismos. “Na verdade, como em muitos institutos que têm
conceitos ditos ‘abertos’, às vezes é mais fácil dizer o que não é trabalho em
condições degradantes do que o contrário.” (BRITO FILHO, 2009, p. 13).
11 A respeito, ver PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 9. Ed. São Paulo: Max Limonad, 2008, p. 136-147. 12 Sobre o tema, ver, COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2. ed., São Paulo: Saraiva, 2001, p. 225-234.
31
Assim, não há que se falar em trabalho degradante no caso de um trabalho
que implique desgaste físico, exercido em condições penosas, como o trabalho dos
cortadores de cana, caso estes trabalhadores tenham a adequada proteção para o
seu labor; com seus direitos trabalhistas observados, como os relativos à jornada de
trabalho, alimentação, etc.
Consoante Wilson Ramos Filho:
Mas, novamente surgem questionamentos oscilando na linha tênue das ponderações: que parâmetros seguir, em exata medida, para se “tolerar” o descumprimento de direitos? Em que determinações ancorar limites, os quais, uma vez ultrapassados, denunciariam o empregador pela exploração do trabalho em situação “degradante” por ferir a “do dignidade humana” trabalhador? (2008, p. 14).
Degradante, adjetivo do verbo degradar, significa privar de dignidades,
estragar, deteriorar, rebaixar, ou seja, é algo que avilta13. Emerge para o mundo
jurídico como qualquer forma de tratamento que implique violação da dignidade do
trabalhador, privando-o de condições adequadas de meio ambiente de trabalho, de
saúde e segurança, além de promover a violação a diversos direitos trabalhistas,
dentre os quais enumeramos, exemplificativamente, as jornadas exaustivas, o
trabalho sem equipamentos de proteção individual, a respectiva inobservância dos
adicionais devidos, a remuneração abaixo do salário mínimo, ou seja, condições que
exacerbam a necessidade e a miséria do trabalhador. (ANDRADE, 2005, p. 80).
A prorrogação da jornada de trabalho de maneira desarrazoada, com
inobservância do prescrito na legislação trabalhista14, implica, também,
caracterização do trabalho em condições degradantes, haja vista os prejuízos que
13 Disponível em: http://www.dicionariodoaurelio.com/dicionario.php?P=Degradante. Acesso em: 07 jan 2010. 14 A respeito ver NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao direito do trabalho. 34. ed. São Paulo: LTr, 2009, p. 265-326.
32
tal prorrogação implica na saúde física e psíquica do trabalhador. Entrementes, a
jornada excessiva seria subespécie da espécie trabalho degradante que tem por
gênero o trabalho em que o homem é reduzido à condição análoga à de escravo15.
Se de fato nem todo trabalho em condições degradantes é trabalho em condições
análogas à de escravo, a recíproca não é verdadeira, pois todo trabalho em
condições análogas à de escravo é trabalho em condições degradantes.
São exemplos que caracterizam o trabalho degradante: a falta ou
inadequado fornecimento de alimentação e/ou água potável; os alojamentos sem as
mínimas condições de habitação e em desacordo com as Normas
Regulamentadoras do Ministério do Trabalho e Emprego; a falta de instalações
sanitárias; a falta de fornecimento de equipamentos de proteção individual; a falta de
fornecimento de materiais de primeiros socorros; a não utilização de transporte
seguro e adequado aos trabalhadores; o descumprimento da legislação trabalhista
no que concerne à remuneração, à saúde e à segurança do trabalhador. (MELO,
2003, p. 15).
Nesse diapasão, José Claudio Monteiro de Brito Filho:
Assim, se o trabalhador presta serviços exposto à falta de segurança e com riscos à sua saúde, temos o trabalho em condições degradantes. Se as condições de trabalho mais básicas são negadas ao trabalhador, como o direito de trabalhar em jornada razoável e que proteja sua saúde, garanta-lhe descanso e permita o convívio social, há trabalho em condições degradantes. Se, para prestar o trabalho, o trabalhador tem limitações na sua alimentação, na sua higiene, e na sua moradia, caracteriza-se o trabalho em condições degradantes. Se o trabalhador não recebe o devido respeito que merece como ser humano, sendo, por exemplo, assediado moral ou sexualmente, existe trabalho em condições degradantes. (2009, p. 14).
15 Ignoramos a interpretação literal do artigo 149, do Código Penal e optamos em nos alinhar à corrente que aduz que o trabalho escravo, divide-se em duas espécies: o trabalho forçado, e o trabalho em condições degradantes.
33
O trabalho em condições degradantes, portanto, não está adstrito penas ao
meio rural, sendo possível também no meio urbano. À guisa de exemplificação do
trabalho degradante urbano, citamos a exploração a que estão submetidos os
estrangeiros irregulares no Brasil, notadamente nos grandes centros urbanos. Trata-
se de um trabalho em precárias oficinas de costura, na construção civil ou em locais
clandestinos, marcado por condições degradantes de trabalho e de meio ambiente
de trabalho, executado com jornadas exaustivas, com alimentação parca em troca
um salário, muitas das vezes, inferior ao salário mínimo.
Sobre o trabalho em condições degradantes no meio urbano, Joyce
Carvalho:
Um exemplo do que acontece nas cidades foi a descoberta, em novembro do ano passado, de uma padaria no bairro Capão Raso, em Curitiba, que funcionava irregularmente. A Vigilância Sanitária foi fiscalizar as condições de higiene do estabelecimento e acabou encontrando nove empregados em situação de escravidão. Eles trabalharam durante um mês no local. As nove pessoas dormiam no chão, sem colchões, e dentro de um dos fornos da padaria. Os trabalhadores eram de Pernambuco e contaram para a polícia, na época, que receberam proposta de emprego em Recife. "Já estava sem trabalhar há seis meses lá e, quando recebi essa proposta, aceitei na hora", havia dito Djair Nego, 27 anos. O prometido era um salário de R$ 300 pela produção de pães, bolos e panetones. (2004).
O lucro não pode ser alcançado pelas empresas sem a observância dos
direitos referentes à saúde e à segurança do trabalhador, pois esta é um direito
social constitucionalmente assegurado:
Art. 6o São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. [grifo nosso].
34
E prossegue a Carta Magna em seu art. 7, inciso XXI, elencando como
direito social tanto do trabalhador urbano como do trabalhador rural:
XXII - redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança,
Tais comandamentos constitucionais ensejam condutas que beneficiem a
saúde, o bem-estar e a segurança do trabalhador. Contudo, a lógica capitalista tem
revelado a predominância dos anseios econômicos em detrimento dos direitos
sociais.
O direito do trabalho brasileiro possibilita regras de proteção mínima ao
trabalhador. Portanto, qualquer condição de inobservância ao mínimo que é
colocado pelas normas trabalhistas, per si, já estaria a possibilitar uma situação
degradante ao hipossuficiente. (MELO FILHO, 2003, p. 33).
A OIT, em seu Projeto de Combate ao Trabalho Escravo no Brasil16,
encampa distinção entre o trabalho escravo e o trabalho degradante:
[...] toda a forma de trabalho escravo é trabalho degradante, mas o recíproco nem sempre é verdadeiro. O que diferencia um conceito do outro é a liberdade. Quando falamos de trabalho escravo, falamos de um crime que cerceia a liberdade dos trabalhadores. Essa falta de liberdade se dá por meio de quatro fatores: apreensão de documentos, presença de guardas armados e “gatos” de comportamento ameaçador, por dívidas ilegalmente impostas ou pelas características geográficas do local, que impedem a fuga. (OIT, 2008).
Neste sentido, o trabalho em condições degradantes poderia ser
caracterizado como o trabalho exercido em condições precárias de trabalho, com
16 Disponível em: <http://www.oitbrasil.org.br/trabalho_forcado/brasil/projetos/documento. php> Acesso em: 16 dez. 2009.
35
alimentação inadequada, inobservância de regras de medicina e segurança do
trabalho, condições inóspitas de moradia, salário indigno e etc.
5 O BEM JURÍDICO TUTELADO NO TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS
À DE ESCRAVO
A noção de bem jurídico17 jamais poderá ser colocada como um conceito
definitivo, fechado ou acabado, haja vista seu conceito estar em consonância com a
evolução social. É o bem jurídico que, “através de proteção no preceito punitivo,
seleciona os bens e valores fundamentais da sociedade, consubstanciando um
sentido de bem vital da sociedade ou do indivíduo, que por seu significado perante a
coletividade é protegido juridicamente.” (PRADO, 1997, p. 17-24).
Portanto, bem jurídico pode ser definido por valores fundamentais que visam
à convivência social, sendo por isso juridicamente tutelado. Nesse sentido, o bem
jurídico pode ser definido como “[...] o interesse juridicamente protegido, surgindo os
interesses das relações da vida, cabendo ao Direito discriminar os interesses
legítimos dos que não o são.” (REALE JUNIOR, 2004, p. 24).
17 Não pretendemos aqui solucionar a controversa e a árdua tarefa de definir o conceito de bem jurídico e suas funções. Propomo-nos perquirir os conceitos fundamentais do tema, a fim de fazermos cotejo à redução à condição análoga à de escravo.
36
Miguel Reale Junior prossegue:
O Estado soberano caracteriza-se pela imposição de suas decisões em prol do interesse geral, e esse poder de decidir afirma-se e consolida-se no dizer e aplicar o direito, mesmo porque o Estado (moderno) existe na medida em que dita o Direito e se põe como pessoa jurídica. [...] Ao afirmar a positividade do próprio Direito, de modo originário, o Estado se põe como soberano, isto é, declara em última instância o Direito que regula a sociedade, ao mesmo tempo em que traz para si a função de dizer o direito no caso concreto, exercendo o monopólio da jurisdição. Dessa maneira, passa o Estado a exercer o poder de legislar e de aplicar o direito, superando-se definitivamente o estágio da autorização vindicta privada, bem como a composição entre a vítima ou seus familiares e o réu ou sua família mediante o pagamento da “pena” como meio de recomposição da paz social. (2004, p. 14).
Então, se é verdade que o direito resulta de opções políticas, não seria
descabido afirmar que na concepção de bem jurídico radicam os valores essenciais
ao indivíduo e a sociedade, variando conforme o momento político, histórico e social
que se vive.
Portanto, o bem jurídico protegido no trabalho em que o homem é reduzido à
condição análoga à de escravo seria a liberdade individual ou a dignidade da pessoa
humana?
No entender de Cezar Roberto Bitencourt:
[...] Na verdade, protege-se aqui a liberdade sob o aspecto ético-social, a própria dignidade do indivíduo, também igualmente elevada ao nível constitucional. Reduzir alguem a condição análoga à de escravo fere, acima de tudo, o princípio da dignidade da pessoa humana, despojando-o de todos os seus valores éticos-sociais, transformando-o em res, no sentido concebido pelos romanos. (2009, p. 398).
Não se trata de negar o princípio liberdade, mas sim, de investigar a
dimensão e alcance que o principio da dignidade da pessoa humana possui.
O princípio da dignidade da pessoa humana constitui, ao menos para
aqueles que tratam o assunto com alguma seriedade, um verdadeiro desafio, pois
37
sua real dimensão, sua eficácia e sua aplicabilidade não são conceitos acabados.
Trata-se de um princípio que, embora presente nos principais textos jurídicos
nacionais e internacionais, possuindo um elevado grau de abstração, fato que para
alguns implica, inclusive, sua utilização de forma banalizada. (SARLET, 2007, p.
147-150).
Na antiguidade, a palavra dignidade guardava correlação com a posição
social ocupada pelo indivíduo, sendo inicialmente desprovida de um sentido moral.
(SARLET, 2007, p. 30). A palavra dignidade encontra raiz no latim “dignitas, adotado
desde o final do século XI, significando cargo, honra ou honraria, título,” ou ainda,
umà condição social de uma determinada pessoa. (ROCHA, 2004, p. 34).
A evolução do princípio da dignidade da pessoa humana permite reconhecer
que o mesmo surgiu em um contexto externo ao direito. Sobretudo, existiram quatro
momentos fundamentais e decisivos na evolução do princípio, quais sejam: o
Cristianismo, o Iluminismo-Humanista, o pensamento Kantiano e os refluxos da
Segunda Guerra Mundial. (BARCELOS, 2008, p.122).
De maneira sintética, infere-se que o pensamento cristão propôs a
valorização do ser humano na sua acepção individual e também o reconhecimento
do valor do outro. Tal ideário pode ser compreendido no mandamento “Amarás o teu
próximo como a ti mesmo” fato que implicou uma ética de “solidariedade e piedade
para com a situação miserável do próximo.” (BARCELOS, 2008, p. 123).
Nas palavras de Dinaura Godinho Pimentel Gomes:
O valor dignidade – resultante desse traço distintivo do ser humano dotado de razão e consciência –, embora tenha suas raízes no pensamento clássico, vincula-se à tradição bimilenar do pensamento cristão, quando enfatiza que cada Homem se relaciona com um Deus que também é pessoal. (2009, p. 52). [grifo do autor]
38
Noutro quadrante, o ideário iluminista e sua respectiva valorização da razão
humana ensejou a separação da religiosidade do centro do pensamento humano,
sendo influente na evolução do princípio da dignidade da pessoa humana o
reconhecimento de direitos individuais aos homens e o exercício democrático do
poder. (BARCELOS, 2008, p. 124).
Contudo, é “Kant quem vai apresentar a formulação mais consistente – e
particularmente complexa – da natureza do homem e suas relações consigo próprio,
com o próximo, com suas criações e da natureza.” (BARCELOS, 2008, p. 124).
O discurso kantiano, em seu segundo imperativo categórico, sustenta que o
homem é um fim em si mesmo, encerrando a centralidade do ser humano em
relação ao Estado ou à própria coletividade.
Consoante Cármen Lúcia Rocha:
Kant distinguiu no mundo o que tem um preço e que tem uma dignidade. O preço é conferido àquilo que se pode aquilatar, avaliar até mesmo para sua substituição ou troca por outra de igual valor e cuidado; daí por que há uma relatividade deste elemento ou bem, uma vez que ele é um meio de que se há de valer para se obter uma finalidade definida. Sendo meio, pode ser rendido por outro de igual valor e forma, suprindo-se de idêntico modo a precisão a realizar o fim almejado. O que é uma dignidade não tem valoração é, pois, valor absoluto. Pela suà condição, sobrepõe-se à mensuração, não se dá a ser meio, porque não é substituível, dispondo de uma qualidade intrínseca que a faz sobrepor-se a qualquer medida ou critério de fixação de preço. O preço é possível ao que é meio porque lhe é exterior e relaciona-se com a forma do que é apreçado; a dignidade é impossível de ser avaliada, medida e apreçada porque é fim e contem-se no interior do elemento sobre o qual se expressa; relaciona-se como a essência do que é considerado, por isso não se oferece à medida convertida ou configurada como preço. (2004, p. 32)
Tal imperativo transcende a valoração individual do ser humano,
concebendo seu reconhecimento social e coletivo. Assim, o valor primordial da
pessoa humana, cujo significado vai além do processo histórico do contexto
kantiano, pugna por uma dignidade ética na qual o ser humano é o valor fim, fonte e
39
elemento central. O valor da pessoa humana passa a ser visto como valor fonte dos
valores sociais, dando fundamento à ordem ética, em geral, e à ordem jurídica.
Consequentemente, não se pode alcançar o sentido essencial do direito sem
observar a natureza essencial do homem, ou seja, atentar para o fato de que a
natureza do direito resulta da mesma natureza do homem. (REALE, 1984, p. 18-19).
A concepção kantiana possibilitou entender o ser humano como fim e não
como meio, repudiando toda e qualquer coisificação ou instrumentalização do
mesmo. (SARLET, 2007, p. 37-38).
Ratificando tal entendimento, Dinaura Godinho Pimentel Gomes:
No contexto da evolução histórico-filosófica da ciência jurídica, o pensamento de Kant apresenta-se como o mais expressivo, no que concerne à conceituação de dignidade da pessoa humana como fim e não como meio. Serve para robustecer a linha de pensamento voltada a qualquer tendência à coisificação ou instrumentalização do ser humano, jungida à experiência por ele enunciada como segunda fórmula do imperativo categórico. (2008, p.52). [grifo do autor]
Rompendo com a centralidade do ideário cristão e marcando o retrocesso do
homem como fim a Segunda Guerra Mundial, com suas respectivas atrocidades que
marcaram o genocídio responsável pela morte de milhares de seres humanos, foi ao
mesmo tempo causa e consequencia na evolução do princípio em comento.
Cármen Lúcia Antunes Rocha contribui:
[...] de conceito filosófico que é, em sua fonte e em sua concepção moral, o princípio jurídico da dignidade da pessoa humana tornou-se uma forma nova de o Direito considerar o homem e o que dele, com ele e por ele se pode fazer numa sociedade política. Por força da juridicização daquele conceito o próprio Direito foi repensado, reelaborado, e diversamente aplicadas foram as suas normas, especialmente pelos Tribunais Constitucionais. Sem Auchwitz talvez a dignidade da pessoa humana não fosse, ainda, princípio matriz do direito contemporâneo. Mas, tendo o homem produzido o holocausto não havia como ele deixar de produzir os anticorpos jurídicos contra a praga da degradação da pessoa por outras que podem destruí-la ao chegar ao poder. Como não se pode eliminar o poder da sociedade política, havia de se erigir em fim do Direito e no Direito o homem com seu direito fundamental à vida digna, limitando-se, desta forma, o exercício do poder que tanto cria quanto destrói. (2004, p. 33)
40
Em resposta a tais atrocidades, o período pós-guerra foi marcado pela
introdução da dignidade da pessoa humana como valor máximo nas constituições de
diversos países no sentido de dar fundamento ao Estado, como foi o caso
Constituição brasileira de 1988. (BARCELOS, 2008, p. 127-127).
No caso alemão, o período que precedeu a destruição do III Reich, além da
centralidade da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado erigiu
também o qualificativo social nas constituições. Não é na Constituição de Weimar,
mas sim nas Constituições dos Estados-membros (Länders) que surge a
denominação expressa de Estado Social. A lei fundamental de Bonn antepõe o
qualificativo social ao Estado. Portanto, as Constituições dos Länders se adiantaram
à Constituição de Bonn no uso da expressão social. (VERDÚ, 2007, p. 75-79).
Essa explicação tem guarida no fato de que estas constituições nasceram
após os desastres do III Reich em clara oposição a ele. Deste modo, o legislador
encontra no sentido ético de justiça social, de caráter social do Estado um sentido do
qual não pode se afastar. O Estado Social de Direito teve claro intento de positivar
as várias aspirações sociais, elevadas à categoria de princípios constitucionais
protegidos pelas garantias de Estado de Direito, sendo salvaguardados pelos
tribunais constitucionais. (VERDÚ, 2007, p. 76-79)
A dignidade da pessoa humana se apresenta como essência da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, dando-lhe completude e estabelecendo seu
verdadeiro sentido. A aludida declaração, que surge em resposta aos trágicos
acontecimentos da Segunda Grande Guerra, em seu art. 1°. aduz:
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.
41
Nessa toada, a Carta Cidadã traz o princípio da dignidade da pessoa
humana como fundamento da República Federativa do Brasil, assumindo, portanto,
o princípio em tela um valor supremo.
Ainda em seu art. 170, a Constituição Federal de 1988 dispõe:
[...] a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social.
O texto constitucional contemplou em vários de seus artigos18 o princípio da
dignidade da pessoa humana, balizando, assim, a centralidade do referido princípio,
ao elegê-lo como fundamento da República e norte à ordem econômica, servindo de
princípio orientador da hermenêutica constitucional e princípio concretizador dos
direitos fundamentais.
Celso Ribeiro Bastos aduz que, embora a dignidade tenha um conteúdo de
ordem moral, “a preocupação do legislador constituinte foi mais de ordem material,
ou seja, a de proporcionar às pessoas condições para uma vida digna,
principalmente no que tange ao fator econômico.” (BASTOS, 2002, p. 248-249).
Ter, então, a dignidade da pessoa humana como fundamento, significa
elevar a pessoa humana como um fim último e principal a ser atingido e não como
instrumento de consecução de fins escusos e egoísticos como é o caso do
econômico pela redução de trabalhadores humanos à condição análoga à de
escravo.
18 Vide os artigos 226, §7; 227; 230 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
42
Com relação a uma existência digna como direito fundamental, José Afonso
da Silva:
Expressão designada para se referir a princípios que resumem a concepção do mundo e informa a ideologia política de cada ordenamento jurídico, também sendo reservado o conceito para designar no nível do direito positivo aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No qualificativo fundamental acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive, fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devam ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados. (2002, p. 178).
Depreende-se das ideias do referido autor que o mínimo irredutível de
direitos assegurados aos seres humanos abarca os direitos e deveres fundamentais.
Nesse sentido, os direitos fundamentais podem ser identificados como propiciadores
da dignidade da pessoa humana, haja vista pugnarem pela proteção e
desenvolvimento de todos os serem humanos. O princípio da dignidade da pessoa
humana, por conseguinte, serve de alicerce aos direitos fundamentais.
O princípio em tela revela o atributo intrínseco e indissociável de todo ser
humano, “por este ser titular de direitos e deveres fundamentais, que, sendo
respeitados e assegurados pelo Estado, proporcionam condições mínimas para uma
vida digna em harmonia com os demais seres humanos.” (SARLET, 2001, p. 60).
Ora, negar os direitos fundamentais ao ser humano, significa, negar-lhe sua
própria dignidade. Contudo, embora a dignidade da pessoa humana seja à base dos
direitos fundamentais, a mesma não se esgota nem se resume a estes direitos. (Id.,
2001, p. 87).
43
Corroborando tal entendimento, Flávia Piovesan aduz:
[...] sob o prisma da concepção contemporânea de direitos humanos e da indivisibilidade de direitos humanos e da indivisibilidade e interdependência destes direitos, conclui-se que o trabalho escravo constitui flagrante violação aos direitos humanos, sendo, ao mesmo tempo, causa e resultado de grave padrão de violação de direitos. Vale dizer, o trabalho escravo se manifesta quando direitos fundamentais são violados, como o direito a condições justas de uma trabalho que seja livremente escolhido e aceito, o direito à educação e o direito à vida digna. (PIOVESAN, 2006, p. 164).
De maneira sintética, podemos definir os direitos fundamentais através das
seguintes categorias: individuais, políticos e sociais, econômicos e culturais, além
dos direitos difusos. Os direitos individuais são o conjunto de direitos que asseguram
liberdades frente à autoridade política ou do Estado, tais como a liberdade religiosa,
liberdade profissional, liberdade de opinião, de expressão, de reunião, dentre outras.
Tais direitos surgem “como reação aos excessos do regime absolutista com a
pretensão de impor controles limites à abusiva atuação do Estado.” (PIMENTEL
GOMES, 2008, p. 41).
Já os direitos políticos asseguram a participação dos indivíduos na
deliberação pública, ou seja, o direito ao sufrágio universal, direito de votar e ser
votado, direito de escolher os representantes políticos democraticamente. Os direitos
econômicos, sociais e culturais surgiram em um contexto no qual os ideários
liberalistas não eram mais suficientes para assegurar a existência de uma vida
digna. Em outras palavras: a garantia dos direitos individuais clássicos se revelou
insuficiente, pois o Estado já não se apresentava como único opressor, pois a lógica
liberal inserida no modo de produção capitalista foi capaz de negar aos seres
humanos direitos fundamentais por meio da exclusão social. (BARCELOS, 2008, p.
130-133)
44
Se a dignidade da pessoa humana pode também ser observada na
consecução dos direitos fundamentais, então são inúmeras as conexões possíveis
no escopo de observância do princípio que dá fundamento ao Estado no
constitucionalismo ocidental contemporâneo. Evidentemente, a liberdade se
apresenta como uma conexão possível, ou seja, um direito fundamental assegurado
a todos e sua observância significa também a concretização do princípio, pois a
observância do princípio da dignidade da pessoa humana implica na observância da
liberdade. Dito de outra maneira: o direito fundamental de liberdade está contido no
conceito de dignidade da pessoa humana.
6 AS CONVENÇÕES DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO
PROTETIVAS DO TRABALHO FORÇADO
A importância da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no
desencadear da temática do trabalho em condições análogas à de escravo é
evidente.
As Convenções da Organização Internacional do Trabalho são tratados
multilaterais abertos, de caráter normativo, que podem ser ratificadas sem limitação
de prazo por qualquer dos Estados-Membros.
45
Nesse contexto, Flávia Piovesan aduz:
Em geral, o processo de formação dos tratados tem início com os atos de negociação, conclusão e assinatura do tratado, que são de competência exclusiva do órgão do Poder Executivo. A assinatura do tratado, por si só, traduz o aceite precário e provisório, não irradiando efeitos jurídicos vinculantes. Trata-se de mera aquiescência do Estado com relação à forma e ao conteúdo final do tratado. A assinatura do tratado, via de regra, indica tão somente que o tratado é autêntico e definitivo. Após a assinatura do tratado pelo Poder Executivo, o segundo passo é a sua apreciação e aprovação pelo Poder Legislativo. Em seqüência, aprovado o tratado pelo legislativo, há o ato de ratificação do mesmo pelo Poder Executivo. A ratificação significa a subseqüente confirmação formal por um Estado de que está obrigado a um tratado. Significa, pois, o aceite definitivo, pelo qual o Estado obriga-se pelo tratado no plano internacional a ratificação é o ato jurídico que irradia necessariamente efeitos no plano internacional. (2002, p.71).
Nessa perspectiva, o Brasil vinculou-se a compromissos internacionais, no
sentido de erradicar o trabalho escravo, com destaque para as Convenções da OIT
n°. 29 (Decreto nº. 41.721/1957) e n°. 105 (Decreto n°. 58.822/1966), a Convenção
sobre Escravatura de 1926 (Decreto nº. 58.563/1966) e a Convenção Americana
sobre Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica – Decreto nº. 678/1992);
todas plenamente compatíveis com a Carta Magna vigente e contendo dispositivos
que preveem a adoção imediata de medidas de qualquer natureza (legislativas ou
não) necessárias para a erradicação do trabalho escravo.
Para Flávia Piovesan:
[...] a hierarquia constitucional dos tratados de proteção dos direitos humanos decorre da previsão constitucional do artigo 5º., parágrafo 2º., à luz de uma interpretação sistemática e teleológica da Carta, particularmente da prioridade que atribui aos direitos fundamentais ao princípio da dignidade da pessoa humana. Esta opção do constituinte de 1988 se justifica em face do caráter especial dos tratados de direitos humanos e, no entender de parte da doutrina, da superioridade desses tratados no plano internacional. Acrescente-se que, além da concepção que confere aos tratados de direitos humanos hierarquia constitucional e da concepção, que, ao revés, confere aos tratados status paritário à lei federal (posição majoritária do STF), destacam-se outras duas correntes doutrinárias. Uma delas sustenta que os tratados de direitos humanos têm hierarquia supra-constitucional, enquanto que a outra corrente defende a hierarquia infra-constitucional, mas supra-legal dos tratados de direitos humanos. (2002, p.91).
46
Em que pesem os diversos preceitos de direito internacional, restringimos
nosso recorte à análise das Convenções n°. 29 e n°. 105 da OIT.
O artigo 2°. da Convenção n°. 29 define o trabalho forçado:
Artigo 2º - Para fins desta Convenção, a expressão "trabalho forçado ou obrigatório" compreenderá todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente.
Contudo o artigo 2°., item 2 da presente convenção expressamente define o
que não se considera trabalho forçado. Portanto, a expressão "trabalho forçado ou
obrigatório" não compreenderá: qualquer trabalho ou serviço exigido em virtude de
leis do serviço militar obrigatório com referência a trabalhos de natureza puramente
militar; qualquer trabalho ou serviço que faça parte das obrigações cívicas comuns
de cidadãos de um país soberano; e, qualquer trabalho ou serviço exigido de uma
pessoa em decorrência de condenação judiciária, contanto que o mesmo trabalho ou
serviço seja executado sob fiscalização e controle de uma autoridade pública e que
a pessoa não seja contratada por particulares, por empresas ou associações, ou
posta a sua disposição.
Define, ainda, que não é trabalho forçado qualquer trabalho ou serviço
exigido em situações de emergência, ou seja, em caso de guerra ou de calamidade
ou de ameaça de calamidade, como incêndio, inundação, fome, tremor de terra,
doenças epidêmicas ou epizoóticas, invasões de animais, insetos ou de pragas
vegetais, e em qualquer circunstância, em geral, que ponha em risco a vida ou o
bem-estar de toda ou parte da população; pequenos serviços comunitários que, por
serem executados por membros da comunidade, no seu interesse direto, podem ser,
por isso, consideradas obrigações cívicas comuns de seus membros, desde que
47
esses membros ou seus representantes diretos tenham o direito de ser consultados
com referência à necessidade desses serviços.
No que concerne a abolição do trabalho forçado, a Convenção n°. 105
proíbe o uso de toda forma de trabalho forçado ou obrigatório como meio de coerção
ou de educação política; como castigo por expressão de opiniões políticas ou
ideológicas; a mobilização de mão de obra; como medida disciplinar no trabalho,
punição por participação em greves, ou como medida de discriminação.
O art. 1°. da referida convenção dispõe:
Artigo 1º - Todo País-membro da Organização Internacional do Trabalho que ratificar esta Convenção compromete-se a abolir toda forma de trabalho forçado ou obrigatório e dele não fazer uso: a) como medida de coerção ou de educação política ou como punição por ter ou expressar opiniões políticas ou pontos de vista ideologicamente opostos ao sistema político, social e econômico vigente; b) como método de mobilização e de utilização da mão de obra para fins de desenvolvimento econômico; c) como meio de disciplinar a mão de obra; d) como punição por participação em greves; e) como medida de discriminação racial, social, nacional ou religiosa.
O Brasil, ao ratificar essas convenções, comprometeu-se a abolir todas as
formas de trabalho forçado ou obrigatório.
Sobretudo, as Convenções n°. 29 e n°. 105 forma pactuadas em momentos
diferentes. A Convenção n°. 29 foi firmada num momento em que o trabalho forçado
era uma prática amplamente aplicada nas grandes potências coloniais.
Já a Convenção n°. 105 foi caracterizada por uma imposição do trabalho
forçado por razões ideológicas, políticas e de outras índoles, presentes na Segunda
Grande Guerra. (BASTOS, 2006, p. 368).
Evidentemente, o trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça
de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente atinge
frontalmente o princípio da dignidade da pessoa humana. Já o trabalho degradante
48
não traz como conditio sine qua non a liberdade do trabalhador, ou seja, o direito de
ir e vir, mas se traduz em trabalhos que expõem os hipossuficientes a condições
insalubres, a jornadas exaustivas, estando ausentes os requisitos mínimos de
segurança ou ainda higiene.
7 O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO E AS NORMAS REFERENTES
AO TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS À DE ESCRAVO
Como já afirmado anteriormente, a principal norma brasileira referente ao
trabalho escravo é a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. É a
Norma Ápice que estabelece a vedação do tratamento degradante, baliza
juridicamente a observância do princípio da dignidade da pessoa humana, dos
direitos sociais, notadamente os referentes ao trabalho, e dos direitos fundamentais.
O trabalho em que há redução à condição análoga à de escravo não
constitui exceção à obrigatoriedade de observância a todas as normas protetivas do
trabalhador. Assim, seja no meio urbano ou no meio rural, o trabalhador reduzido a
tal condição é considerado empregado, quando no caso concreto estejam presentes
todos os requisitos que ensejam uma relação de emprego: o empregado é pessoa
física, há subordinação, dependência jurídica, existe não eventualidade na prestação
do serviço, há pessoalidade na prestação do labor, o trabalhador recebe
remuneração em contraprestação ao seu trabalho (onerosidade) e não se
responsabiliza pelo risco do empreendimento (presença da alteridade).19 (MARTINS,
2005, p. 127-128).
19 A respeito da relação de emprego ver art. 2 e art. 3 da Consolidação das Leis do Trabalho. MARTINS, Sergio Pinto. Curso de direito do trabalho. 4. ed. São Paulo: Dialética. 2005, p. 53-54.
49
Por óbvio, o trabalhador que é resgatado da condição análoga à de escravo
faz jus a todos os direitos trabalhistas previstos na Carta Magna, na Consolidação
das Leis do Trabalho e em legislações esparsas.
De uma maneira sintética, pode-se elencar, de forma não exaustiva, os
direitos constantes do artigo 7°. da Constituição Federal de 1988.
Consoante ao caso concreto, levando-se em consideração a intenção das
partes, o contrato individual de trabalho celebrado pode ser tanto por prazo
indeterminado como por prazo determinado.
Como podemos constatar no artigo 443 da CLT:
Art. 443 - O contrato individual de trabalho poderá ser acordado tácita ou expressamente, verbalmente ou por escrito e por prazo determinado ou indeterminado. § 1º - Considera-se como de prazo determinado o contrato de trabalho cuja vigência dependa de termo prefixado ou da execução de serviços especificados ou ainda da realização de certo acontecimento suscetível de previsão aproximada. § 2º - O contrato por prazo determinado só será válido em se tratando: de serviço cuja natureza ou transitoriedade justifique a predeterminação do prazo; de atividades empresariais de caráter transitório; de contrato de experiência.
Tal artigo se aplica aos trabalhadores urbanos, sendo possível uma
contratação por prazo determinado e posteriormente uma fraude a essa modalidade
de contrato quando o trabalhador é reduzido à condição análoga à de escravo.
Nessa modalidade de contrato, considerando que as partes conhecem
previamente a data de término do contrato de trabalho, não há direito ao pagamento
de aviso prévio, salvo se no contrato de trabalho por prazo determinado houver
cláusula que permita a rescisão imotivada antes do término do contrato, passando
50
este a ser regido pelas regras do contrato de trabalho por prazo indeterminado, fato
que autorizaria a observância do aviso prévio.20 (MANUS, 2005, p. 295).
Consoante Mauricio Godinho Delgado:
Apenas nos contratos a termo que tenham em seu interior cláusula assecuratória do direito recíproco de antecipação do termino contraual, é que pode ganhar relevancia o aviso prévio. De fato se acionada esta cláusuala especial e expresa, a terminação contratual passará a reger-se pelas regras próprias aos contratos por tempo indeterminado, com dação de aviso prévio e suas consequências jurídicas (art. 481, CLT). (2009, p. 1081). [grifo do autor]
Com efeito, reconhecida a possibilidade de trabalho em condições análogas
à de escravo, tanto no meio urbano quanto no meio rural, passa-se à aplicação de
regras específicas a cada modalidade de trabalho.
O contrato por prazo determinado mais comum no meio rural é o contrato de
safra21, como o exemplo o do corte da cana de açúcar, que tem sua duração
dependente de variações estacionais da atividade agrária. Contudo, não é ilícita a
possibilidade do contrato por prazo determinado no ambiente rural. Ressalte-se que
o descumprimento das obrigações de ordem administrativa pelo empregador, como
o caso de não assinatura da carteira de trabalho ou o não depósito do FGTS, não
teria o condão de descaracterizar a relação contratual entabulada. (DELGADO,
2009, p. 515-517).
Ao trabalhador rural se aplica a Lei n°. 5.889/73, mitigando-se o princípio da
lei mais benéfica em face da lei supracitada. Os direitos elencados no art. 7°. da
Carta Magna são aplicáveis aos trabalhadores urbanos e rurais. Não obstante o
20 Nessa modalidade de contrato de trabalho o trabalhador resgatado do trabalho em condições análogas à de escravo faz jus ao 13° salário, repouso semanal remunerado, férias e seu respectivo adicional, além do depósito do FGTS (não faz jus à multa de 40% do saldo dos depósitos do FGTS). 21 Lei no. 5.889/73 ver art. 14, parágrafo único.
51
referido artigo constitucional ter igualado a maioria dos direitos entre ambos, existem
diferenças entre o trabalho no meio urbano e no meio rural.
Uma das diferenças guarda correlação com a porcentagem do adicional
noturno no trabalho rural que é de vinte e cinco por cento22, ao passo que no
trabalho urbano o percentual é de vinte por cento.23
No que tange aos descontos referentes à remuneração do trabalhador a Lei
n°. 5.889/73, em seu art. 9°, dispõe:
Art. 9º Salvo as hipóteses de autorização legal ou decisão judiciária, só poderão ser descontadas do empregado rural as seguintes parcelas; calculadas sobre o salário-mínimo: a) até o limite de 20% (vinte por cento) pela ocupação da morada; b) até 25% (vinte e cinco por cento) pelo fornecimento de alimentação sadia e farta, atendidos os preços vigentes na região; c) adiantamentos em dinheiro. § 1º As deduções acima especificados deverão ser previamente autorizadas, sem o que serão nulas de pleno direito. § 2º Sempre que mais de um empregado residir na mesma morada, o desconto, previsto na letra "a" deste artigo, será dividido proporcionalmente ao número de empregados, vedada em qualquer hipótese, a moradia coletiva de famílias. § 3º Rescindido ou findo o contrato de trabalho, o empregado, será obrigado a desocupara casa dentro de trinta dias. § 4º O Regulamento desta Lei especificará os tipos de morada para fins de educação. § 5º A cessão pelo empregador, de moradia e de sua infra-estrutura básica, assim como, bens destinados a produção para sua subsistência e de sua família, não integram o salário do trabalhador rural, desde que caracterizados como tais, em contrato escrito celebrado entre as partes, com testemunhas e notificação obrigatória ao respectivo sindicato de trabalhadores rurais.
Nos casos em que há redução do trabalhador às condições análogas à de
escravo no meio rural, percebe-se a violação direta aos direitos elencados no artigo
supracitado. É comum a existência dos chamados truck sistem, no qual se verifica a
coação do empregador para que o empregado adquira mercadorias, a preços
22 Nesse sentido dispõe o art. 7°, parágrafo único da Lei no. 5.889/73. 23 A CLT em seu art. 458, §3°, assevera que a habitação e a alimentação fornecidas como salário-utilidade deverão atender aos fins a que se destinam e não poderão exceder, respectivamente, a 25% e 20% do salário-contratual.
52
exorbitantes, do estabelecimento daquele, propiciando a servidão por dívida, pois o
empregado permanece refém de uma dívida ilegalmente lhe atribuída, haja vista que
os descontos com alimentação e moradia acabam por consumir todo o seu salário,
além de deixá-lo devedor.
Assim, é vedado, nos casos em que o empregador mantiver armazém para
venda de mercadorias, exercer qualquer coação ou induzimento no sentido de que
os empregados adquiram seus produtos. Não se nega a possibilidade de compra de
produtos do empregador, mas o que o dispositivo legal sinaliza é a compra sem
mácula na livre vontade e a preços justos. (MARTINS, 2005, p. 312).
Já no que concerne à moradia, para que seja possível o desconto de 20%
no trabalho rural para a moradia oferecida ao trabalhador e a seus familiares, a
mesma deve possuir: capacidade dimensionada para uma família; paredes
construídas em alvenaria ou madeira; pisos de material resistente e lavável;
condições sanitárias adequadas; ventilação e iluminação suficientes; cobertura
capaz de proporcionar proteção contra intempéries; poço ou caixa de água protegido
contra contaminação; fossas sépticas, quando não houver rede de esgoto, afastadas
da casa e do poço de água, em lugar livre de enchentes e a jusante do poço. Tais
moradias familiares deverão ser construídas em local arejado e afastadas, no
mínimo, cinquenta metros de construções destinadas a outros fins, sendo vedada,
em qualquer hipótese, a moradia coletiva de famílias. Ressalte-se que a cessão pelo
empregador, de moradia e de sua infra-estrutura básica, assim como dos bens
destinados à produção para sua subsistência e de sua família, não integram o
salário do trabalhador rural, desde que caracterizados como tais, em contrato escrito
53
celebrado entre as partes, com testemunhas e notificação obrigatória ao respectivo
sindicato de trabalhadores rurais. 24 (MARTINS, 2005, p. 312).
Nesse sentido tem se manifestado a jurisprudência:
SALÁRIO IN NATURA – TRABALHADOR RURAL – HABITAÇÃO – NECESSIDADE DE CONTRATO ESCRITO – A Lei nº. 9.300/96, que introduziu o § 5º ao art. 9º da Lei nº 5.889/73, passou a exigir a formalização de um contrato escrito para fins de descaracterização da natureza salarial da moradia e alimentação fornecidas pelo empregador ao empregado. Assim, inexistindo pactuação escrita, neste sentido, devido ao trabalhador a utilidade pleiteada. (TRT 23ª R. – RO 00435.2002.999.23.00-5 – Cuiabá – Rel. Juiz Tarcísio Valente – DJMT 14.02.2003, p. 49)
Depreende-se do exposto acima que a forma escrita, a assinatura de
testemunhas e a respectiva comunicação ao sindicato rural passam a ser condição
de validade para que a referida utilidade não integre o salário do trabalhador.
Digno de registro é o caso do trabalho rural de pequeno prazo ou de prazo
reduzido nos termos da Lei n°. 11.718/2008. Tal contrato de trabalho é possível no
âmbito das atividades rurais quando o contratante for pessoa física que desenvolva
apenas atividades de natureza temporária, pelo período de até dois meses ao ano.
Nesta modalidade de trabalho, há necessidade de registro do trabalhador em
Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) e em Livro ou Ficha de Registro
de Empregados; ou mediante contrato escrito em que constem a expressa
autorização de normas coletivas, identificação do produtor e do imóvel rural onde
será realizado o trabalho com a identificação da matrícula e identificação do
trabalhador com seu respectivo Número de Inscrição do Trabalhador (NIT); e o
recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e contribuições da
24 Sobre o tem a vide o item 31.23.11, da Norma Regulamentadora 31 - Segurança e Saúde do no Trabalho na Agricultura, Pecuária, Silvicultura, Exploração Florestal e Aquicultura - do MTE.
54
Previdência Social. O pagamento nessa modalidade de trabalho deve ser calculado
dia a dia.
Outro dispositivo que pode ser aplicado ao trabalhador resgatado do
trabalho em condições análogas à de escravo é o seguro desemprego especial, nos
termos da Lei n°. 10.608/2002 que dá nova redação à Lei n°. 7.998/90 que regula o
Programa do Seguro-Desemprego, o Abono Salarial, institui o Fundo de Amparo ao
Trabalhador (FAT), e dá outras providências.
A Lei n°. 10.608/2002 modifica o artigo 2°. da Lei n°. 7.998/90 estabelecendo
a assistência financeira temporária ao trabalhador desempregado em virtude de
dispensa sem justa causa, inclusive a indireta, e ao trabalhador comprovadamente
resgatado de regime de trabalho forçado ou dà condição análoga à de escravo.
Nesse sentido dispõe o art. 2°. – C, da Lei n°. 7.998/90:
Art. 2°. – C - O trabalhador que vier a ser identificado como submetido a regime de trabalho forçado ou reduzido à condição análoga à de escravo, em decorrência de ação de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego, será dessa situação resgatado e terá direito à percepção de três parcelas de seguro-desemprego no valor de um salário mínimo cada, conforme o disposto no § 2o deste artigo.
O dispositivo em tela, atento ao fato de que apenas resgatar o trabalhador
dá condição análoga à de escravo e lhe dar acesso ao seguro desemprego não era
suficiente, promoveu a conexão com a necessidade de qualificação e sua
recolocação no mercado de trabalho por meio do Sistema Nacional de Empregos
(SINE).25
Ressalte-se que fica vedado ao mesmo trabalhador o recebimento do
benefício, em circunstâncias similares, nos doze meses seguintes à percepção da
última parcela.
25 Nesse sentido dispõe a Lei n°. 7.998/90, em seu art. 2°. – C, § 1°.
55
8 A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO
O Ministério Público do Trabalho (MPT), nos termos do art. 127, da Carta
Cidadã, é uma instituição permanente, essencial à prestação jurisdicional do Estado,
a quem incumbe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses
sociais e individuais indisponíveis.26
O Ministério Público abrange o Ministério Público da União e o Ministério
Público dos Estados. O primeiro é composto pelo Ministério Público Federal,
Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Militar e Ministério Público do
Distrito Federal e Territórios.27
Com a Carta Maior de 1988, o Ministério Público deixou de ser órgão do
Poder Executivo, sendo que, como se verifica, o Ministério Público do Trabalho
pertence ao Ministério Público da União, possuindo autonomia funcional e
administrativa. Por conseguinte, as funções de defender os interesses específicos da
União não são mais do Ministério Público do Trabalho, mas sim da Advocacia Geral
da União. (MARTINS, 2007, p. 139).
Consoante ao art. 129 da Carta Maior de 1988, pode-se elencar como
funções institucionais do Ministério Público, abrangendo também o Ministério Público
do Trabalho, as seguintes atribuições:
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei; II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia; III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos; IV - promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de
26 A respeito ver o art. 1°, da Lei Complementar n°. 75/93. 27 Consoante o art. 128 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e a Lei Complementar n°. 75/93 em seu art. 24.
56
intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos nesta Constituição; V - defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas; VI - expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva; VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior; VIII - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais; IX - exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.
Contudo, é a Lei Orgânica do Ministério Público da União, Lei Complementar
n°. 75/93, em seu art. 83, que trata expressamente da competência do Ministério
Público do Trabalho:
Art. 83. Compete ao Ministério Público do Trabalho o exercício das seguintes atribuições junto aos órgãos da Justiça do Trabalho: I - promover as ações que lhe sejam atribuídas pela Constituição Federal e pelas leis trabalhistas; II - manifestar-se em qualquer fase do processo trabalhista, acolhendo solicitação do juiz ou por sua iniciativa, quando entender existente interesse público que justifique a intervenção; III - promover a ação civil pública no âmbito da Justiça do Trabalho, para defesa de interesses coletivos, quando desrespeitados os direitos sociais constitucionalmente garantidos; IV - propor as ações cabíveis para declaração de nulidade de cláusula de contrato, acordo coletivo ou convenção coletiva que viole as liberdades individuais ou coletivas ou os direitos individuais indisponíveis dos trabalhadores; V - propor as ações necessárias à defesa dos direitos e interesses dos menores, incapazes e índios, decorrentes das relações de trabalho; VI - recorrer das decisões da Justiça do Trabalho, quando entender necessário, tanto nos processos em que for parte, como naqueles em que oficiar como fiscal da lei, bem como pedir revisão dos Enunciados da Súmula de Jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho; VII - funcionar nas sessões dos Tribunais Trabalhistas, manifestando-se verbalmente sobre a matéria em debate, sempre que entender necessário, sendo-lhe assegurado o direito de vista dos processos em julgamento, podendo solicitar as requisições e diligências que julgar convenientes; VIII - instaurar instância em caso de greve, quando a defesa da ordem jurídica ou o interesse público assim o exigir; IX - promover ou participar da instrução e conciliação em dissídios decorrentes da paralisação de serviços de qualquer natureza, oficiando obrigatoriamente nos processos, manifestando sua concordância ou discordância, em eventuais acordos firmados antes da homologação, resguardado o direito de recorrer em caso de violação à lei e à Constituição Federal;
57
X - promover mandado de injunção, quando a competência for da Justiça do Trabalho; XI - atuar como árbitro, se assim for solicitado pelas partes, nos dissídios de competência da Justiça do Trabalho; XII - requerer as diligências que julgar convenientes para o correto andamento dos processos e para a melhor solução das lides trabalhistas; XIII - intervir obrigatoriamente em todos os feitos nos segundo e terceiro graus de jurisdição da Justiça do Trabalho, quando a parte for pessoa jurídica de Direito Público, Estado estrangeiro ou organismo internacional.
Incumbe, ainda, ao Ministério Público do Trabalho, no âmbito de suas
atribuições, instaurar o inquérito civil público e outros procedimentos administrativos,
sempre que cabíveis, para assegurar a observância dos direitos sociais dos
trabalhadores; requisitar à autoridade administrativa federal competente, dos órgãos
de proteção ao trabalho, a instauração de procedimentos administrativos, podendo
acompanhá-los e produzir provas, ser cientificado pessoalmente das decisões
proferidas pela Justiça do Trabalho, nas causas em que o órgão tenha intervindo ou
emitido parecer escrito.28
Em sua atuação, o Parquet trabalhista se vale de instrumentos jurídicos
como o habeas corpus, o mandado de segurança, o inquérito civil, a ação civil
pública e a ação civil coletiva. (MELO, 2003, p.15-20).
Além de atuar como fiscal da lei o Ministério Público do Trabalho (MPT)
pode atuar como órgão agente, instaurando inquéritos civis e propondo ações civis
públicas, bem como outras ações, no âmbito da Justiça do Trabalho, visando à
defesa da ordem jurídica, dos direitos e interesses sociais dos trabalhadores.
(MELO, 2003, p. 15). Portanto, o Parquet trabalhista como órgão agente, pode se
valer da instauração de procedimento administrativo, de inquérito civil ou de outras
medidas administrativas, seja de ofício ou por meio de denúncia. Constatada a
irregularidade, são possíveis três linhas de ação: a interposição de ação judicial, a
28 Conforme dispõe o art. 84 da Complementar n°. 75/93.
58
assinatura de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) ou, ainda, a expedição de
recomendações.
Recebida a denúncia no MPT e após analisada a representação, o
Procurador do Trabalho a quem couber a distribuição, poderá instaurar
Procedimento Preparatório de Inquérito Civil, a fim de verificar a veracidade das
informações contidas na representação e, após, instaurar o Inquérito Civil.
Concluído o Inquérito Civil, o Procurador do Trabalho poderá propor aos
investigados que firmem um TAC.29 Caso não seja frutífero o TAC, será proposta a
ação judicial competente, na Justiça do Trabalho, visando ao cumprimento da lei e à
respectiva reparação dos danos causados pela violação de direitos.
Se não houver fundamento para a propositura da ação civil, os autos do
Inquérito Civil serão submetidos ao Conselho Superior do Ministério Público do
Trabalho, para que seja homologada ou rejeitada a promoção de arquivamento,
podendo as associações legitimadas apresentar razões escritas ou documentos, que
serão juntados aos autos do inquérito ou anexados às peças de informação, nos
termos do art. 9º, § 2º, da Lei n º. 7.347/85.
Em sua atuação, o MPT pode se valer de qualquer tipo de ação prevista no
ordenamento jurídico brasileiro. Contudo, as ações mais utilizadas no combate ao
trabalho em que há redução á condição análoga à de escravo são a ação civil
pública e a ação civil coletiva.30
Por meio da ação civil, é possível impetrar a condenação do explorador em
dinheiro ou o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer.31 A reparação
29 Nesse sentido dispõe a Lei n°. 7.347/ 85, em seu art. 5º, § 6º e também o art. 876, da CLT. 30 As medidas judiciais são citadas superficialmente por não constituírem o objeto principal deste estudo, mas, serem objeto de passagem obrigatória na atuação do MPT no combater ao trabalho em condições análogas à de escravo. 31 A respeito ver o art. 3º da Lei n º. 7.347/1985.
59
pecuniária se destina à recomposição do bem jurídico coletivo lesado. A obrigação
de fazer ou não fazer tem por escopo medidas e providências de observância à
legislação trabalhista, como a determinação de registro do contrato de trabalho na
CTPS, a cessação de descontos salariais indevidos, a retirada de seguranças que
estiverem intimidando os trabalhadores ou constrangendo sua liberdade de ir e vir, a
observância do salário mínimo, da jornada de trabalho legal, etc.
Sobre a ação civil pública e o trabalho em condições análogas à de escravo,
Carlos Henrique Bezerra Leite contribui:
A ação civil pública em defesa dos individuais homogêneos dos trabalhadores que se encontram em tais condições é o principal instrumento judicial para reverter essa chaga social, na medida em que: a) permite a aglutinação de diversos litígios numa única demanda, prestigiando-se a economia e celeridade processuais e evitando-se decisões conflitantes tão caras ao Judiciário e à sociedade; b) ameniza algumas barreiras psicológicas e técnicas que impedem ou dificultam o acesso judicial da parte fraca, como os trabalhadores, os consumidores, os contribuintes, os idosos, as crianças, os idosos, os excluídos, os vulneráveis; c) desestimula condutas sociais indesejáveis dos exploradores de trabalho escravo, mediante aplicação de multas elevada, o que acaba prevenindo a repetição de futuras lesões aos trabalhadores; d) estimula a criação de uma nova mentalidade que prestigia a solidariedade e o acesso universal a uma ordem justa, cumprindo os objetivos fundamentais da República no tocante à promoção do bem comum e à correção das desigualdades sociais. (2005).
Nesse toada, a legitimação do Ministério Público do Trabalho no que
concerne à defesa dos interesses ou direitos individuais homogêneos indisponíveis
dos trabalhadores em condições de escravidão é ilimitada, pois no ordenamento
jurídico brasileiro a indisponibilidade “é o traço característico da quase totalidade dos
direitos trabalhistas, conclui-se que é exatamente aí que reside uma das mais
importantes missões institucionais do Parquet Laboral para tornar realidade o projeto
constitucional.” (Id., 2005).
60
Já a ação civil coletiva, por seu turno, se destina a responsabilizar o
empregador por danos individualmente sofridos pelos trabalhadores, sejam morais
ou patrimoniais, com fulcro na Lei nº. 8.078/90, em seu art. 91.
Sobre o tema a jurisprudência tem se manifestado:
AÇÃO CIVIL COLETIVA. NATUREZA. DEFESA DE DIREITOS E INTERESSES INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO PARA AJUIZÁ-LA. NECESSIDADE DE UMA INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA E TELEOLÓGICA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS E INFRACONSTITUCIONAIS QUE REGULAM A MATÉRIA. Nos últimos quinze anos, o Brasil conheceu importantes inovações legislativas a respeito dos chamados direitos e interesses difusos e coletivos e dos mecanismos de tutela coletiva desses direitos, destacando-se a Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, que disciplina a conhecida ação civil pública, e a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, que instituiu o Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Este, entre outras novidades, introduziu um importante mecanismo de defesa coletiva para direitos individuais homogêneos: a ação civil coletiva (arts. 91 a 100). São características dessa última categoria de direitos ou interesses a possibilidade de perfeita identificação do sujeito, assim como da relação dele com o objeto do seu direito, sendo que a ligação com os demais sujeitos decorre da circunstância de serem todos titulares individuais de direitos com ‘origem comum’ e são divisíveis, pois podem ser lesados e satisfeitos de forma diferenciada e individualizada, satisfazendo ou lesando um ou alguns titulares sem afetar os demais. Portanto, por serem individuais e divisíveis, fazem parte do patrimônio individual do seu titular e, por isso, são passíveis de transmissão por ato inter vivos ou mortis causa e, regra geral, suscetíveis de renúncia e transação. Quanto a sua defesa em juízo, geralmente, são defendidos pelo próprio sujeito detentor do direito material, sendo que a defesa por terceiros será sob a forma de representação ou, quando houver previsão legal, sob a forma de substituição processual. Assim sendo, no que concerne à legitimidade do Parquet laboral para a propositura da ação civil coletiva, mostra-se mais coerente com o direito hodierno o entendimento de que o artigo 83, inciso III, da Lei Complementar nº 75/93, ao dispor, entre outras atribuições, que é incumbência do Ministério Público do Trabalho ‘propor ação civil pública no âmbito da Justiça do Trabalho, para defesa de interesses coletivos, quando desrespeitados os direitos sociais constitucionalmente garantidos, utilizou a expressão ‘interesses coletivos’ na sua acepção lato, abrangendo, outrossim, tanto os interesses coletivos stricto sensu, quanto os difusos e os individuais homogêneos, uma vez não se poder restringir a legitimidade que foi amplamente concedida pelo art. 129, inciso III, do Texto Ápice, sem qualquer discriminação entre os diversos ramos do Parquet. (TRT 12ª R., RO 5786/97, Ac. un. 1ª T. 03121/98, rel. Juiz Dilnei Ângelo Biléssimo, DJSC 23.4.98, 03.03.98).
No que concerne especificamente ao combate ao trabalho em condições
análogas à de escravo, o MPT possui uma coordenadoria nacional de combate a
61
esse tipo de trabalho ilícito chamada de Coordenadoria Nacional de Erradicação do
Trabalho Escravo (Conaete). Tal coordenadoria, além de atuar no combate ao
trabalho em condições análogas à de escravo, também atua em qualquer hipótese
de trabalho degradante. (MELO, 2003, p. 22-23).
Com efeito, a atuação do MPT no combate ao trabalho em que há redução à
condição análoga à de escravo não ocorre de maneira isolada, sendo que o Parquet
trabalhista atua em parceria com o Estado e a com sociedade com destaque ao
Ministério do Trabalho e Emprego, à Comissão Pastoral da Terra, ao Ministério
Público Federal, à Polícia Federal, à Organização Internacional do Trabalho, dentre
outros. (Id., 2003, p. 22-23).
9 A COMPETÊNCIA NOS CASOS EM QUE O TRABALHADOR É REDUZIDO À
CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO
A responsabilidade daqueles que submetem o ser humano à condição
análoga à de escravo não é exclusivamente penal, podendo ser trabalhista. Sendo
assim, esta responsabilização se subsume a uma importante ferramenta de
repressão ao ciclo vicioso do trabalho em condições análogas à de escravo, haja
vista que a impunidade serve de incentivo para que essa prática condenável seja
reiterada.
62
Nesse sentido, Jairo Lins de Albuquerque Sento-Sé:
Um outro aspecto que concorre de forma decisiva para a perpetuação desta realidade é a falta de punição àqueles responsáveis pela adoção do trabalho escravo contemporâneo. Ora, o que prevalece é uma grande sensação de impunidade. As denúncias sobre ocorrência deste terrível fato costumam ocupar as páginas da imprensa, mas pouco se conhece sobre a adoção ou aplicação de medidas duras para coibir esta lamentável prática. Normalmente, o detentor de grande propriedade na zona rural é também um homem de forte influência política, ou seja, tem vínculos estreitos com o poder político local. Daí, usualmente, contar com a indiferença das autoridades policiais da região, que não manifestam qualquer reação ao exercício desta abusividade. Pior ainda, costumam contar com seu beneplácito para trazer de volta o trabalhador fugitivo, a fim de que ele possa “honrar” os compromissos provenientes da dívida não adimplida. (SENTO-SÉ, 2000, p. 60)
Em que pese a impunidade, notadamente em sede penal, os instrumentos
jurídicos estão disponíveis para coibir esse tipo de ilícito trabalhista e penal.
Ora, se a jurisdição é o poder que o juiz tem de dizer o direito nos casos a
ele submetidos, haja vista estar investido desse poder pelo Estado, podemos afirmar
que a competência é uma parcela da jurisdição, dada ao juiz, consistindo na
delimitação do poder jurisdicional. (MARTINS, 2007, p. 93)
Assentadas essas premissas, passemos à competência para o julgamento
do trabalho em que há redução à condição análoga à de escravo.
9.1 A COMPETÊNCIA CRIMINAL
A discussão controvertida que assola a doutrina refere-se à questão da
competência para julgamento do crime de redução à condição análoga à de escravo.
Será competente a justiça estadual ou a justiça federal para julgar o delito previsto
no art. 149 do Diploma Penal pátrio?
63
O crime de submeter alguém à condição análoga à de escravo viola
claramente os interesses da União, previstos no texto constitucional, a dignidade da
pessoa humana (art. 1º, III) e a liberdade no trabalho (art. 1°, IV e art. 5°, XIII).
(MELO, 1991, p. 29)
Sendo assim, por se tratar de crime contra a organização do trabalho, é
competente a Justiça Federal para o julgamento deste delito.
Nesse sentido o Supremo Tribunal Federal tem se posicionado:
A existência de trabalhadores a laborar sob escolta, alguns acorrentados, em situação de total violação da liberdade e da autodeterminação de cada um, configura crime contra a organização do trabalho. Quaisquer condutas que possam ser tidas como violadoras não somente do sistema de órgãos e instituições com atribuições para proteger os direitos e deveres dos trabalhadores, mas também dos próprios trabalhadores, atingindo-os em esferas que lhes são mais caras, em que a Constituição lhes confere proteção máxima, são enquadráveis na categoria dos crimes contra a organização do trabalho, se praticadas no contexto das relações de trabalho. Nesses casos, a prática do crime previsto no art. 149 do Código Penal (Redução à condição análoga à de escravo se caracteriza como crime contra a organização do trabalho, de modo a atrair a competência da Justiça federal (art. 109, VI da Constituição) para processá-lo e julgá-lo. (RE 398.041, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 30-11-06, Plenário, DJE de 19-12-08).
No ano de 2006 o Supremo Tribunal Federal decidiu RE 398.041, no sentido
de que a Justiça Federal é quem deve julgar um caso de crime de redução de
trabalhador à condição análoga à de escravo (artigo 149, Código Penal), ao analisar
denúncia envolvendo um fazendeiro paraense. O relator, à época, Ministro Joaquim
Barbosa, votou pela competência da Justiça Federal, acolhendo o recurso do
Ministério Público. Para o referido Ministro, no contexto das relações de trabalho, a
prática do crime previsto no artigo 149 do CP se caracteriza como crime contra a
organização do trabalho, determinando a competência da Justiça Federal para
processar e julgar o delito, de acordo com o artigo 109 da Constituição Federal. Os
ministros Eros Grau, Carlos Ayres Britto e Sepúlveda Pertence acompanharam o
64
voto do relator. O ministro Gilmar Mendes entendeu que restou violado o bem
jurídico “organização do trabalho”, justificando a competência federal para analisar a
matéria. 32
9.2 A COMPETÊNCIA TRABALHISTA
A justiça do trabalho é competente para julgar as controvérsias entre
trabalhadores e empregadores. Trata-se de competência em razão da matéria (ex
ratione materiae), ou seja, quais são as causas que podem ser suscitadas nas
relações de trabalho. (MARTINS, 2007, p. 105)
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 114, inciso I, dispõe:
Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: I - as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
Então, “se trabalho é o esforço decorrente da atividade humana visando à
produção de uma utilidade. É o fim da atividade econômica, tendo por objetivo gerar
riquezas.” (Id., 2007, p. 105). Pode-se afirmar que relação de trabalho é a relação
jurídica entre duas pessoas tendo por escopo a prestação do serviço, sendo gênero
que envolve a relação de emprego como espécie. (Id., 2007, p. 105)
Destarte, nos casos em que há trabalho em que o homem é reduzido à
condição análoga à de escravo, as violações aos direitos trabalhistas serão de
competência da Justiça do Trabalho, por decorrerem de uma relação de trabalho.
32 Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/conteudo-tematico/trabalho-escravo/decisoes-judiciais/RE_398041.pdf> Acesso em: 30 jan. 2010.
65
E mais, a Carta Magna dispõe em seu art. 114, inciso VI:
Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: [...] VI as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho.
Depreende-se do referido dispositivo constitucional que, apesar do dano ser
civil, a Justiça do Trabalho é competente para julgar o pedido de dano moral, desde
que decorrente da relação de trabalho.
Para Sergio Pinto Martins:
É preciso fazer distinção do dano moral ocorrido, para os fins inclusive de se verificar a competência da justiça do trabalho. Se a afirmação é feita a pessoa civil, a competência seria da Justiça Comum. Se a afirmação é decorrente do contrato e, por exemplo, foi proveniente da dispensa do trabalhador, estamos diante da competência da Justiça do Trabalho. Deve-se verificar a quem foi imputada certa conduta negativa, se o foi a pessoa civil ou o cidadão, como desonesto, ímprobo ou se ela foi endereçada ao empregado, chamando-o de desonesto. Se o empregado foi acusado de certa situação enquanto trabalhador que prestava serviços na empresa, a competência será da justiça do trabalho para apreciar a indenização decorrente de danos morais. (2007, p. 118)
Assim sendo, é assente que o trabalho em que há redução à condição
análoga à de escravo causa lesão, tanto ao trabalhador que é violado em sua
dignidade e privado de direitos mínimos (dano individual) como toda a sociedade é
lesada, haja vista os interesses difusos presente nesse tipo de conduta (dano
coletivo), sendo competente a Justiça do Trabalho para julgar as ações por
indenização que abarque esse tipo de dano, desde que tal dano decorra da relação
de trabalho.
66
10 O CONFISCO DE PROPRIEDADES RURAIS QUE UTILIZEM MÃO DE OBRA
EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS À DE ESCRAVO
A impunidade é uma das condicionantes que contribuem para a perpetuação
do trabalho em que há redução à condição análoga à de escravo. Em que pese o
esforço do Estado e da sociedade em combater esta verdadeira chaga, devido à
extensão territorial do país e também à estrutura insuficiente de pessoal e material
para a fiscalização e o combate a esse tipo de ilícito trabalhista e penal, a certeza da
impunidade tem o condão de animar os empregadores a se valerem da reprovável
conduta de reduzir um trabalhador a tal condição. (PEREIRA JÚNIOR, 2003, p. 25-
31).
Nessa linha de raciocínio, o confisco de propriedades rurais que se utilizam
deste tipo de trabalho se subsume a uma medida eficaz para eliminar a impunidade.
Contudo, paira sobre o tema a possibilidade de injustiça, pois o conceito de trabalho
em condições análogas à de escravo não pode ser confundido com qualquer ilícito
trabalhista.
Aqui reside o ponto central do debate no qual está envolta a expropriação de
propriedades flagradas utilizando de mão de obra em condições análogas à de
escravo, qual seja, a subjetividade ou a real dimensão do que seja esse tipo de
trabalho. Evidentemente, se tudo o é, nada também o poderá ser! O risco de
banalização do conceito pode ensejar violação à segurança jurídica.
67
Sobretudo, a Carta Ápice, em seu art. 186, aduz que toda propriedade rural
deve cumprir função social:
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Evidente que a função social da propriedade rural é inobservada nos casos
em que haja trabalho em condições análogas à de escravo, pois neste caso, é
cristalina a violação das disposições que regulam as relações de trabalho e não há o
favorecimento do bem-estar dos trabalhadores, que são expropriados em sua
dignidade.
A função social da propriedade se subsume à cláusula pétrea colacionada
na Carta Magna em seu art. 5, inc. XXIII, além de previsão expressa como princípio
norteador da ordem econômica, nos termos do art. 170 da Constituição Cidadã.
Como decorrência das novas tutelas centradas nos sujeitos de direitos,
imprescindível que a propriedade fosse despida de seu intuito capitalista individual
de acumulação, a fim de contemplar o princípio da igualdade material, permitindo a
todos o igual direito à propriedade da terra. Assim a propriedade tem como atributo
intrínseco a função social, sendo seu uso condicionado ao bem-estar social coletivo
consubstanciado na Constituição Federal. (TOLEDO, 2008, p. 103)
68
Sobre o tema, Ana Paula Liberato ensina:
A função social da propriedade é um instituto que vem modificando o regime de propriedade no decorrer da história moderna, especificamente em seu conteúdo, retirando dele excessivamente a marca individualista, de domínio absoluto, e colocando-a em submissão aos interesses da comunidade, assumindo um caráter mais social. (2007, p. 81)
Sobretudo, verificamos o conceito de propriedade rompendo com a
continuidade individualista herdada do direito romano, como uso e abuso das
coisas.33
A respeito da função social da propriedade, Ana Paula Liberato prossegue
ensinando que:
Para a formulação desse conceito concorreram três teorias, a individualista, a coletivista e a solidária. A partir de tais teorias e com a evolução da propriedade privada, tem-se assim, a teoria da função social da propriedade: antes de pensá-la a partir dos interesses individuais, ela deve ser pensada pelo interesse da coletividade, da sociedade. Essa condicionante antes de tudo é a limitação do direito de propriedade. (2007, p. 81)
Em síntese, a teoria individualista tem guarida no direito romano de usar,
gozar a coisa de maneira individualista e sem prestação de contas, servindo de base
para o progresso da burguesia. (LIBERATO, 2007, p. 81-83)
Já a teoria coletivista teve influência decisiva de Marx, trazendo como
características a limitação e a mitigação do direito de propriedade pela vontade
33 Manuel Hespanha ensina que embora muitos conceitos ou princípios jurídicos sejam muito mais modernos do que geralmente se supõe, é verdade que há outros que parecem existir, com seu valor facial. Conceitos como pessoal, liberdade, democracia, família, obrigação, contrato, propriedade, roubo, homicídio, são conhecidos como construções jurídicas desde o início da história do direito europeu. Contudo, se avançarmos um pouco na sua interpretação, logo veremos que por baixo da superfície da sua continuidade terminológica, existem rupturas decisivas no seu significado semântico. O significado da mesma palavra, na suas diferentes ocorrências históricas está intimamente ligado aos diferentes contextos, sociais ou textuais, de cada ocorrência. Ou seja, o sentido é eminentemente relacional ou local. Portanto, detrás da continuidade aparente na superfície das palavras está escondida uma descontinuidade radical na profundidade do sentido. A respeito ver HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005, p. 26-28.
69
estatal e não raro suprimindo-a, com o escopo de coletivização das riquezas e a
distribuição de justiça social. (LIBERATO, 2007, p. 81-83)
Para a teoria do Socialismo de Duguit, a negação da propriedade como um
direito subjetivo, abandonando a concepção individualista, configurando, isto sim,
uma função social (propriedade-função). A propriedade revelar-se-ia, assim, para o
possuidor de riquezas como o dever de empregar o bem, mantendo e aumentando a
interdependência social, de maneira que a utilização da coisa pudesse trazer
benefícios a terceiros. (LIBERATO, 2007, p. 81-83)
Assim sendo, não pode a propriedade ser utilizada como instrumento de
opressão ou submissão de qualquer pessoa. A redução do trabalhador à condição
análoga à de escravo afronta o princípio da função social da propriedade.
Nessa senda, a Lei n°. 8.629/93, que dispõe, em seu art. 9°., § 4º e § 5º,
sobre a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária,
previstos no Capítulo III, Título VII, da Constituição Federal, elenca que a
observância das disposições que regulam as relações de trabalho implica tanto o
respeito às leis trabalhistas e aos contratos coletivos de trabalho, como às
disposições que disciplinam os contratos de arrendamento e parceria rurais. O
referido dispositivo legal aduz, ainda, que a exploração que favorece o bem-estar
dos proprietários e trabalhadores rurais é a que objetiva o atendimento das
necessidades básicas dos que trabalham a terra, observa as normas de segurança
do trabalho e não provoca conflitos e tensões sociais no imóvel.
O referido dispositivo legal, em seu art. 2°., autoriza que a propriedade rural
que não cumpra sua função social seja passível de desapropriação, respeitados os
dispositivos constitucionais. Ocorre que a Carta Maior, em seu art. 5°, inc. XXIV,
70
prevê justa e prévia indenização em dinheiro, nos casos de desapropriação por
interesse público.
Ressalte-se que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,
em seu art. 185, excepciona os casos de desapropriação, aduzindo ser insuscetível
de desapropriação para fins de reforma agrária, a pequena e média propriedade
rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra
propriedade produtiva.34
Consequentemente, nos casos em que a propriedade se utilize da mão de
obra em condições análogas à de escravo, sua desapropriação enseja justa e prévia
indenização em dinheiro, fato que não tem o condão de inibir essa condenável
prática, pois na maioria dos casos essa possibilidade não se afigura punição, mas
muitas vezes até um benefício.
Consciente dessa condição, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC)
438/2001, prevê o confisco de terras onde exista trabalho em que o ser humano seja
reduzido à condição análoga à de escravo, propondo nova redação ao art. 243 da
Constituição Federal de 1988. A proposta tramitou pelo Senado Federal, em 2003, e
foi aprovada em primeiro turno na Câmara dos Deputados em 2004. Desde então,
está parada, aguardando votação, diante da resistência da bancada ruralista no
Congresso Nacional e diante da pressão dos grandes latifundiários.
A aprovação da referida PEC pode contribuir para uma efetiva punição
daqueles que se valem da exploração do ser humano e violam a dignidade alheia,
deixando sempre à margem, na zona da não visibilidade, uma massa excedente
34 O art. 4º da Lei n°. 8.629/93 conceitua o imóvel rural como o prédio rústico de área contínua, qualquer que seja a sua localização, que se destine ou possa se destinar à exploração agrícola, pecuária, extrativa vegetal, florestal ou agro-industrial; a pequena propriedade como o imóvel rural de área compreendida entre 1 (um) e 4 (quatro) módulos fiscais e a Média Propriedade como o imóvel rural de área superior a 4 (quatro) e até 15 (quinze) módulos fiscais.
71
sempre vulnerável, rompendo com o paradigma do favorecimento de poucos em
detrimento do prejuízo de muitos.
72
11 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O crime tipificado no artigo 149 do no Código Penal vigente possui diferentes
nomenclaturas, seja para a doutrina, para a jurisprudência, ou ainda, para os
operadores ou não do direito. A confusão terminológica referente ao conceito de
trabalho em condições análogas à de escravo mostrou-se evidente: trabalho
escravo, trabalho forçado, trabalho degradante, escravidão por dívida, escravidão
branca, semi-escravidão, escravidão moderna ou contemporânea, etc.
De acordo com o exposto no presente trabalho, tais sinônimos, em que pese
fazerem referência a mesma coisa, a denominação técnica mais apropriada seria o
trabalho em condições análogas à de escravo.
O tipo penal do artigo 149 do Código Penal de 1940 se mostrava incompleto,
gerando dúvidas no que seria realmente reduzir alguém à condição análoga à de
escravo. Tratava-se de norma penal em branco de difícil intelecção e interpretação
controvertida. Somente seis décadas depois e pressionado por órgãos internacionais
como a Organização Internacional do Trabalho e por órgãos nacionais como o
Ministério Público do Trabalho, Ministério do Trabalho e Emprego (através das ações
realizadas pelos Auditores Fiscais do Trabalho), além da forte pressão social
exercida por entidades representativas dos trabalhadores, por intelectuais e
militantes do direito do trabalho, o legislador resolveu encampar a modificação art.
149 Código Penal, através da Lei n°. 10.803/2003, procurando adequar o tipo penal
em tela à realidade que caracteriza o trabalho a condições análogas à de escravo.
O bem jurídico tutelado no trabalho em que o homem é reduzido à condição
análoga à de escravo é a dignidade da pessoa humana, pois esta já estaria a
abarcar o princípio da liberdade, pois se subsume ao alicerce dos direitos
fundamentais.
73
O conceito de trabalho em condições análogas à de escravo ainda não é um
conceito fechado, acabado, livre de subjetividades, carecendo de sérias reflexões
sobre a sua real dimensão. Contudo, apresentar o problema sem apontar as linhas
de ação para solução, trata-se de mera abstração sem finalidade, crítica sem
propósito e exercício de pouca inteligência.
Desse modo, com este esboço, propôs-se que esse tipo de trabalho ilícito
seja repensado, exaustivamente debatido pelos atores do direito (juízes,
procuradores, advogados) e pela sociedade, consoante a realidade e o momento
histórico que se vive e por meio daquilo que a sociedade define como valor
fundamental.
O paradigma urge ser revisitado, criticado e repensado, pois o trabalho em
que há redução à condição análoga de escravo perpetua a coisificação do ser
humano, a afronta de sua dignidade e o desrespeito aos direitos humanos.
Com efeito, o argumento de que o princípio da dignidade da pessoa humana
e os conceitos colacionados pelas referidas Convenções da OIT possuem uma
carga de subjetivismo, generalidade e abstração, em que pesem consistentes, não
podem dar guarida à inobservância do próprio princípio da dignidade da pessoa
humana, à violação de direitos humanos e à coisificação do trabalhador.
Vislumbra-se, em todos, a mesma repulsa a essas formas humilhantes de
tratar o ser humano, sujeitando-o a trabalho em condições que deveriam ser
negadas a toda a humanidade.
Ocorre que o modo de produção capitalista é permeado por uma lógica que
inevitavelmente promove a subordinação do mais fraco ao mais forte. Trata-se de
uma lógica que propugna o lucro como um fim em si mesmo, pouco importando a
degradação dos trabalhadores ou a violação de sua dignidade. O mercado é
74
implacável: ou as empresas lucram, ou sobrevivem, ou estão condenadas à
bancarrota.
O princípio da dignidade da pessoa humana traz profundas implicações no
trabalho em que o homem é reduzido à condição análoga à de escravo. O
trabalhador reduzido a tal condição, com efeito, não é um ser humano abstrato, com
o qual o capitalismo sempre conviveu maravilhosamente; é o conjunto dos grupos
sociais esmagados pela miséria, pela doença, pela fome e pela marginalização.
Ora, se a realidade da economia globalizada é marcada pela exacerbação
do individualismo e a coisificação do trabalhador colocado em condições análogas à
de escravo, então, podemos afirmar que o princípio da dignidade da pessoa humana
enseja um instrumento de emancipação, um mínimo ético irredutível35 dentro dos
limites do capital. Significa dizer que a observância do princípio da dignidade da
pessoa humana e a respectiva negação do trabalho em condições análogas à de
escravo, ensejam, sobretudo, a consecução dos próprios direitos fundamentais.
Assim, quando presente o trabalho em que há redução do homem à
condição análoga à de escravo, é cristalina a violação do princípio da dignidade da
pessoa humana, pois defendemos que tal princípio se subsume a um direito dotado
de eficácia e aplicabilidade, servindo de impeditivo ao trabalho forçado e ao trabalho
degradante nos casos em que o homem é reduzido a essa condição, pois a
dignidade da pessoa humana o principal bem jurídico a ser tutelado nessa forma
odiosa de trabalho.
A ética do lucro sob qualquer custo não pode dar ensejo à perpetuação de
sucessivas violações à dignidade do trabalhador hipossufuciente, tendo o Estado e a
sociedade um papel fundamental no combate a esse tipo de ilícito. O Estado deve
35 Referimo-nos aqui à dignidade da pessoa humana.
75
articular a repressão a esta verdadeira chaga humana em coordenação com os
entes federados (União, Estado, Distrito Federal e Municípios). Já a sociedade deve
escolher produtos e serviços de maneira responsável, valendo-se das listas
divulgadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego, que contêm as empresas e
empregadores que incidem nessa reprovável conduta.
A principal causa que possibilita o ser humano a se sujeitar a condições
análogas à de escravo é a exclusão social, a miséria, a fome, o desconhecimento a
direitos mínimos, além da falta de educação e capacitação que lhe assegure uma
posição no mercado de trabalho.
Então, de nada valerá resgatar o trabalhador em tais condições dando
acesso a parcelas do seguro desemprego, se o trabalhador resgatado dessa
condição não puder ingressar no mercado de trabalho em condições dignas. Há que
se vincular o referido benefício a uma profissionalização efetiva desses
trabalhadores.
Nesse mesmo quadrante, a impunidade dos empregadores que incidem
nesse tipo de prática, também constitui um dos sustentáculos do trabalho em
condições análogas à de escravo. Assim, o Estado deve aparelhar melhor em
pessoal e material as diversas instituições e órgão engajados no combate dessa
verdadeira afronta aos direitos fundamentais. A aprovação da PEC no. 438/2001,
pode servir de fundamento constitucional capaz de promover a punição necessária
para tal tipo de trabalho, diminuindo a incidência dessa prática.
Se a observância do princípio da dignidade da pessoa humana, ainda que
em sua modulação mínima, para alguns significa desconsiderar suas reais
possibilidades, para os trabalhadores resgatados nessas condições pode significar
todo o caminho de volta.
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