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Ao término da comemoração dos 250 anos de nascimento do maior clássico da literatura alemã, JohannWolfgang von Goethe (1749-1832), nada mais bem-vindo ao mercado livresco brasileiro do que a publicação de uma obra que discute com precisão e argúciaum dos conceitos basilares para a compreensão da

época goethiana (Goerhezeit) e a própria poética doautor: o Bildungsroman - "romance de formação".

O eixo norteador deste belo e denso trabalho deWilma Patrícia Maas pode ser sintetizado pelo subtítuloescolhido pela autora: O Bildungsroman  na história daliteratura. A pesquisa da professora estabelece, de forma minuciosa, a criação do termo e suas definições,discute a genealogia do Bildungsroman  e sua constitui

ção como signo literário, para concentrar a análise naobra Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, deGoethe, paradigma por excelência e cânone mínimodo "romance de formação". A própria constituição doBildungsroman como gênero literário acabado éproblematizado a partir da constatação da historicidadeque envolve a criação do termo e sua vinculação aoromance de Goethe em contraposição à sua trajetória

dinâmica ao longo da história literária, quando o termo se desvincula das circunstâncias de origem para seratribuído a outras obras da tradição literária.

Através de sua investigação, a princípio histórico-literária, mas de forte vocação teórico-crítica, a autoratrabalha com um tema inédito na bibliografia em língua portuguesa e oferece ao leitor brasileiro acesso aum universo cultural pouco visitado pela crítica, relacio

nando a complexa constituição do Bildungsroman  a fenômenos próprios da história social. Para compreensão do componente ideológico presente à constituiçãodo conceito, não se pode esquecer de que a Alemanhado fim do século XVIII não representava uma unidadepolítica e que a unidade espiritual da nação se materializava na poesia e na filosofia. O Bildungsroman  dese

 ja-se expressão de uma incipiente literatura nacional

que, atrelada à concepção de Bildung vigente à época,pretende-se a voz de uma classe social para quem oaperfeiçoamento e a educação do indivíduo plasmam

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O CÂNONE MÍNIMO:O BILDUNGSROMAN

NA HISTÓRIA DA LITERATURA

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O CÂNONE MÍNIMO:O BILDUNGSROMAN

NA HISTÓRIA DA LITERATURA

WILMA PATRÍCIA MARZARI DINARDO MAAS

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Maas, Wilrna Patrícia Marzari Dinardo

O cânone mínimo : o Bildungsroman na história da literatura / WilmaPatrícia Marzari Dinardo Maas. - São Paulo: Editora UNESP, 2000.

Bibliografia.ISBN 85-7139-309-5

1. Bildungsroman - história e crítica 2. Literatura alemã - história ecrítica I. Título.

00-2623 CDD-833.0906

Índice para catálogo sistemático:1. Bildungsroman : Século XVIII : Literatura alemã :

História e crítica 833.0906

Este livro é publicado peloProjeto Edição de Textos de Docentes e Pós-Graduados da UNESP -

Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da UNESP (PROPP)/ Fundação Editora da UNESP (FEU)

Editora afiliada:

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SUMÁRIO

Introdução 9

A historiografia como método 10

O Bildungsroman (romance de formação) 12

A trajetória do gênero 15

1 O esta bele cimento do con cei to 19

O que é o Bildungsroman 19

O conceito histórico de Bildung 25

A representação da educação (Erziehung) emOs anos de aprendizado de Wilhelm Meister  30

Formação individual e formação para o Estado 31

A formação universal (allgemeine Bildung) 33

2 A constituição do paradigma literário 41

A criação do termo 41

O projeto pedagógico 44As definições de Bildungsroman 46

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As definições "reprodutivas" do Bildungsroman 52

O gênero "flexível" 62

A genealogia 64As confissões e o Emílio de Rousseau 65

O romance picaresco 70

A literatura pietista 73

O romance de aventura e de viagens 77

3 A história da obra na constituiçãodo signo literário Bildungsroman 83

As primeiras críticas a Os anos de aprendizado

de Wilhelm Meister  84

A correspondência privada 84

Os conceitos estéticos de Schiller e o 'Meister' de Goethe 85

O 'rompimento' 101

O Meister como representante das virtudes burguesas -

Christian Gottfried Körenr 102

As primeiras críticas na imprensa 110

A crítica primeiro-romântica a Os anos de aprendizado de

Wilhelm Meister — Friedrich Schlegel e Novalis 113

A concepção poética de Friedrich Schlegel 114

A poesia romântica moderna comopressuposto teórico para a crítica do Meister  118

A resenha de Friedrich Schlegel sobreOs anos de aprendizado de Wilhelm Meister  121

Meister como "Candide contra a poesia" 127

4 Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister 

como paradigma do Bildungsroman 133

O desejo pela formação universal: o teatro 136

As relações com a aristocracia (Natalie como formadora) 139

As concepções pedagógicas 142

Wilhelm Meister e Werner, o bom burguês 147O mestre-aprendiz 152

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O destino das personagens 159

As intervenções da Sociedade da Torre 164

O destino de Wilhelm Meister 172

Os anos de peregrinação - da formação universalà inserção na sociedade 182

5 A mo ra l e a fábula 191

O herói sem autonomia 191

A moral e a fábula 194

6 A trad ição consci ente 20 9

Dois casos exemplares: o Felix Krull de Thomas Mann

e O tambor de Günter Grass 215

O discurso da paródia 216

A formação do pícaro 230

Formação feminista e formação proletária:o Bildungsroman no Brasil 242

As resenhas nos jornais 254

Conclusão 261

Referências bibliográficas 265

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INTRODUÇÃO

Os estudos literários vivenciam hoje a ressaca do período pós-estruturalista, da redescoberta do leitor e do público comoatribuidores de significação e de sentido histórico à obra literária.O legado da Estética da Recepção, pontuado pela morte de HansRobert Jauss em abril de 1997, permitiu que se vislumbrasse umrecorte, uma fissura entre a mimese e o real histórico, legitimandouma relação que o imanentismo textual havia banido da abordagem à literatura.

Entretanto, ao mesmo tempo em que o retorno à historicidadeda literatura reordenou práticas e reorientou concepções sobre opróprio caráter do fenômeno literário, instalou, no atual panorama da pesquisa em literatura, um problema de fundo teórico edisciplinar.

No Brasil, a tradição da crítica literária, estabelecida já no século XIX, privilegiou antes aspectos sociais e sociológicos do que osexclusivamente estéticos. Antonio Candido é certamente o exemplo mais ilustre e ilustrativo de uma produção crítica que contribuisimultanemamente para a formação do caráter nacional.

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A pesquisa em literatura que vem sendo realizada hoje, emboa parte da América e Europa, não se confunde, entretanto, com

a crítica engajada, com a abordagem sociológica ou marxista. Éantes o legado burguês da historiografia que conduz a atividadedo estudioso e do crítico. A obra literária passa a ser consideradaa partir de suas relações dentro da própria tradição literária, dasrelações com o universo das obras e dos gêneros que a precederame daqueles que lhe são contemporâneos. "História da obra" e "história do gênero" são conceitos atuantes e iluminadores em umcontexto que pretende localizar a obra literária a partir de suas

relações com a história cultural.A definição da área de atuação do estudioso e do crítico deliteratura torna-se cada vez mais fluida, imbricando-se de viés àspráticas do historiador, do bibliófilo, do bibliotecário. Vivenciamosao mesmo tempo um ensaio e uma retomada daquele ideal alme jado pelo primeiro-romântico Friedrich Schlegel, a instância emque "filosofia e poesia", "arte e ciência deveriam tornar-se umasó", instituindo dessa maneira uma "pan-filosofia" e uma "pan-poesia", mesclando crítica e arte, arte e ofício.

O estudioso de literatura vê-se então circundado, em plenotriedro dos saberes, pela falta de especificidade de seu mister, pelagenerosa amplitude de seu objeto, pela dificuldade de classificaçãode sua prática. As conseqüências teóricas dessa indefinição refletem-se, a um tempo, em uma espécie de mal-estar nos círculosacadêmico-literários, acompanhado do esforço empreendido emreorganizar o espaço do conhecimento no qual se possam desenvolver as relações entre o fenômeno literário e o mundo empírico.

A medida dessa reorganização é a tarefa interdisciplinar.

A HISTORIOGRAFIA COMO MÉTODO

No século XIX, como resultado do chamado "positivismo histórico" que se afirmara já na virada do século, o estudo de literatura nas universidades alemãs orientava-se pela existência das

"grandes obras" e "grandes autores", por modelos canônicos queprojetavam sua sombra sobre toda a produção posterior. "His-

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tória da literatura" significava então uma coleção paradoxalmente atemporal e a-histórica, de grandes nomes e obras exemplares,

acompanhados da súmula biográfica do autor. A figura autoral ebiográfica predominante é então Goethe, ao mesmo tempo cânonee medida para a produção literária posterior.

É possível afirmar que esse estado de coisas não se tenha alterado muito, mesmo ante a avalanche formalista e estruturalistado século XX. Embora conceitos como "morte do autor" e "crítica imanentista" não sejam com certeza estranhos ao instrumentaldos estudos e da historiografia literária alemã, a perspectiva his-tórico-biográfica manteve-se produtiva, sem ter nunca desaparecido de todo. No fim da década de 1960, a Universidade deKonstanz procedia a uma reforma geral de currículos, a qual pleiteava, no campo dos estudos literários (em alemão, "ciência daliteratura" - Literaturwissenschaft), o acolhimento de uma perspectiva dinâmica para o estudo de obras, gêneros e períodos, emsintonia com as transformações sociais.

A chamada "Estética da Recepção", tendência teórico-estéticada qual Hans Robert Jauss foi um dos articuladores, nasceu nocalor das reformas universitárias. Jauss e seus colegas de Konstanzpassaram a demandar uma historiografia literária que, em sintoniacom a história, recuperasse as diversas leituras de uma mesma obraao longo de sua existência cronológica. Isso significa que a obra dearte deveria ser entendida não somente a partir de sua imanênciaou de sua constituição estética, mas também por meio de sua "atuação e de seus efeitos" (Wirkung) sobre o público de uma época.

 Interpretar  a obra literária significa, para a Escola de Konstanz,

recuperar as diversas interpretações construídas ao longo de suaexistência histórica, abandonando-se assim a busca de um sentidoúnico, de uma verdade determinante da obra de arte literária. Foigrande a repercussão dos estudos da Escola de Konstanz. Noambiente da crítica literária alemã, que sempre tivera grande afinidade com a história e com a biografia, a Estética da Recepçãofoi o elemento catalisador de um movimento em direção às origens dos fenômenos literários em si, de uma investigação dos

elementos empíricos constitutivos dos gêneros acolhidos pelahistoriografia literária tradicional.

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Muitos dos trabalhos teóricos e teses acadêmicas a partir dofim dos anos 70, na Alemanha, tiveram por objeto o século XVIII

literário e as formas e gêneros ali cristalizados. A autobiografia,a literatura de viagens, a literatura religiosa e o romance burguêspassam a ser estudados para além de sua constituição formal, soba perspectiva de sua relação com outras obras e gêneros entre si ecom a realidade histórica. É preciso acrescentar que esse tipo deabordagem ao fenômeno literário não ficou restrito ao âmbito daEscola de Konstanz, na Alemanha. A Estética da Recepção viu-seem sintonia com trabalhos como os de Robert Darnton, na Ingla

terra, com os historiadores da História Nova, na França, com oreader-response criticism, nos Estados Unidos.No Brasil, os textos e os fundamentos da Estética da Recepção

foram divulgados especialmente por Regina Zilbermann e Luís CostaLima, na década de 1980. Pode-se dizer que, entre nós, os fundamentos da Estética da Recepção foram absorvidos sobretudo viauma retomada dos estudos historiográficos, como se poderá verificar por meio do visível crescimento desses estudos também nomercado editorial.

Esta abordagem ao Bildungsroman pretende ser uma abordagem historiográfica. Embora muitos dos fundamentos da Estética da Recepção veiculados por Jauss sejam passíveis de discussão,como, por exemplo, a hipótese de reconstrução do horizonte deexpectativa da obra de arte, não se pode negar a produtividadedos pressupostos por ela estabelecidos, sobretudo no que se refere à dinâmica dos processos de produção e recepção da obra dearte pelo público.

O BILDUNGSROMAN (ROMANCE DE FORMAÇÃO)

As historiografias literárias originaram-se, sem exceção, doprojeto romântico de construção de uma identidade nacional. NaAlemanha dos últimos trinta anos do século XVIII, FriedrichSchlegel, em sua obra sobre a história da arte e da literatura an

tigas, faz da história pela primeira vez uma categoria determinantena reflexão sobre o Belo. Schlegel é também o responsável pelo

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estabelecimento de uma divisão da então incipiente literatura alemã em quatro gerações, que viria antecipar a divisão hoje considerada canônica: Iluminismo (Aufklärung), Pré-Romantismo(Sturm und Drang), Classicismo e Romantismo. A historiografialiterária alemã nasce, portanto, com o propósito de atribuir umaidentidade nacional à produção literária, submetendo a categoriaestética à categoria ideológica.

As circunstâncias de origem do Bildungsroman são contemporâneas desse esforço pela atribuição de um caráter nacional àliteratura de expressão alemã. Trata-se de uma forma literária decunho eminentemente realista, com raízes fortemente vincadas nas

circunstâncias históricas, culturais e literárias dos últimos trintaanos do século XVIII europeu. Compreendido pela crítica comoum fenômeno "tipicamente alemão", capaz de expressar o "espírito alemão" em seu mais alto grau, o Bildungsroman firmou-secomo um conceito produtivo em quase todas as literaturas nacionais de origem européia, tendo sido assimilado também nasliteraturas mais jovens, como as americanas.

Sob o aspecto morfológico, é relativamente fácil a compre

ensão do termo Bildungsroman. Por um processo de justaposição,unem-se dois radicais - ( Bildung- formação - e Roman - romance) que correspondem a dois conceitos fundadores do patrimôniodas instituições burguesas.

Cada um dos dois termos, entretanto, encontra-se atrelado aum complexo entrelaçamento de significados, apreensíveis apenas por meio de uma investigação de caráter diacrônico. Bildunge Roman são dois termos que entraram para o vocabulário acadê

mico na segunda metade do século XVIII. A formação do jovemde família burguesa, seu desejo de aperfeiçoamento como indivíduo, mas também como classe, coincidem historicamente com a"cidadania" do gênero romance. Na Alemanha, é apenas no fimdo seculo XVIII, quando nomes como Goethe passaram a se dedicar ao gênero, que o romance deixa de ser considerado literaturatrivial e de má qualidade.

Criado pelo professor de Filologia Clássica Karl Morgenstern

em 1810, o termo Bildungsroman emerge para o discurso acadêmico por meio da obra do filósofo idealista Wilhelm Dilthey Das

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 Leben Scbleiermachers [A vida de Schleiermacher], de 1870 (poisa repercussão dos trabalhos de Morgenstern foi reduzida, não ul

trapassando o âmbito da Universidade de Dorpat,

1

no Báltico):Eu gostaria de chamar Bildungsromane aos romances que com

põem a escola do Wilhelm Meister ... A obra de Goethe mostra oaperfeiçoamento humano em diferentes graus, formas, fases da vida.(Dilthey, apud Martini, 1961, p.44)

Essa breve definição, ao mesmo tempo em que estabelece acirculação do termo Bildungsroman para o discurso acadêmico maisamplo, articula a relação imediata entre o termo e o romance deGoethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister  (1795-1796).Dilthey relaciona ainda o romance de Goethe ao ideal de aperfeiçoamento humano. Tal articulação, construída sobre as bases idealistas do espírito de época e do entrelaçamento entre vida e obra,tornou-se peça chave para a tradição crítica do Bildungsroman,influenciando as abordagens e definições que se seguiram.

A linha que conjuga o Bildungsroman a um espírito de época é,sem dúvida, a principal dicção que irá orientar sua tradição crítica.

Ao longo deste livro, o Bildungsroman será abordado como umainstituição atrelada a megaconceitos em circulação na história cultural do século XVIII, como a educação e formação das diferentesclasses sociais, ao lado do estabelecimento do romance como gênero literário "digno". Trata-se, portanto, de uma instituição social-literária, composta, por um lado, pelo conceito histórico da Bildungburguesa, fundamental para o funcionamento da sociedade absolutista tardia na Alemanha do final do século XVIII, e, por outro, pela

grande instituição literária do mundo moderno, o romance.Renato Janine Ribeiro (1994) considerou Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister em si mesmo uma obra constitutiva domundo burguês. Certamente, encontram-se no romance de Goethemotivos temáticos e estruturais peculiares a uma trajetória de desenvolvimento da personalidade, em sintonia com uma época emque a transformação do homem pela cultura passou a ser tônica

1 Atual Tartu, na República báltica da Estônia.

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dominante. A educação e a formação do jovem burguês passarama ser, nos inícios da época moderna, a ferramenta para a transição de uma cultura do mérito herdado para a cultura do mérito

pessoal adquirido. Bildung (formação), Erziehung (educação) e Ausbildung (for

mação especializada) são instâncias que permeiam a trajetória doprotagonista Wilhelm Meister. Ciente de que uma formação universal e dirigida ao indivíduo é prerrogativa exclusiva da aristocracia, Meister busca ocupações que possam intermediar o abismo entre o utilitarismo e servilismo burguês e a autonomia eindependência da aristocracia. A dedicação ao teatro parece-lhe,

em um primeiro momento, o sucedâneo ideal para que se torneuma "pessoa pública", capaz de agir e empreender, ao passo queao burguês só restaria a consciência de seus limites. O protagonista Wilhelm Meister é, portanto, um aspirante à ascensãosocial, a um título de nobreza que lhe chega a ser oferecido, já aofinal do livro, pela união com a aristocrata Natalie. Entretanto,a trajetória de Wilhelm Meister continua ainda ao longo do terceiro livro da "série" (pois Goethe escreveu uma trilogia). Em Os

anos de peregrinação de Wilhelm Meister, livro que veio a público em 1829 (segunda edição), cerca de trinta anos depois deOs anos de aprendizado, o protagonista irá finalmente abraçaruma profissão burguesa e prática: torna-se cirurgião, especializando assim uma formação que desejava, no princípio, universal. A Bildung transforma-se na Ausbildung. Entre Os anosde aprendizado de Wilhelm Meister  (1795-1796) e Os anos de peregrinação (1829), Goethe compreendeu a transformação do

projeto burguês idealista em uma inteligência política, e, sobretudo, econômica, produto da técnica e da Revolução Industrialque se avizinhava.

A TRAJETÓRIA DO GÊNERO

A dinâmica do Bildungsroman como gênero literário assenta-

se, portanto, em um movimento que se estende a partir das condições de produção e de origem bastante demarcadas, em direção

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à sua expansão. Acompanha-se aqui a história do Bildungsromancompreendido como uma instituição social-literária, isto é, como

projeção coletiva dos ideais da burguesia alemã, em sua origem,focalizando o processo de apropriação sofrido pelo gênero ao longo de seus quase duzentos anos de existência.

Acompanhar a trajetória do gênero Bildunsgroman ao longoda história literária significa acompanhar a evolução, involução eestabilização da própria historiografia; como também os processosde assimilação e deglutição dos paradigmas universalmente aceitos como "cânone ocidental" pelas literaturas mais jovens dasAméricas.

É assim, por exemplo, que a crítica literária no Brasil se dispõe a reconhecer a existência de um Bildungsroman brasileiro,transfigurado e antropologizado por um viés antieurocêntrico queviu no idealismo burguês e masculino do romance de Goethe umexemplo de chauvinismo literário; é assim também que, dentroda produção literária em língua alemã, o romance de GüntherGrass, O tambor  (1959), pode ser considerado um exemplo "radical e vertiginoso" do romance de formação tradicional da épo

ca goethiana.Este livro pretende ter empreendido uma investigação que

se baliza pelo reconhecimento da historicidade do Bildungsroman.Ao lado do mapeamento da crítica dirigida ao gênero e à obraconsiderada seu paradigma, procurou-se delimitar as inflexõeshistóricas e literárias que possibilitaram sua gênese e desenvolvimento. Assim, as condições em que se deu a criação do termo

 Bildungsroman, o projeto pedagógico que se delineia durante a

 Aufklärung,2

a vertente de uma literatura educativa, bem como oconceito temporal da Bildung no âmbito da sociedade e culturaalemãs da segunda metade do século XVIII atuam como núcleosformadores do discurso, como projeções constituintes do Bildungsroman como instituição literária e cultural.

2 "Ilustração" ou "Iluminismo". Ao longo deste trabalho, pretende-se manter o

original alemão, dado que o termo já se encontra incorporado ao vocabuláriodas ciências humanas.

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Concorrem para o estabelecimento dessa "historiografiaconstrutivista" a análise dos discursos teóricos, as resenhas publicadas ou não, ensaios, artigos, assim como correspondência,anotações particulares, menções em diários pessoais. Paralelamente, considera-se também "discurso" sobre o Bildungsromanas relações intraliterárias, identificadas por meio da alusão/citação direta, da paráfrase e da paródia, processo que se poderiachamar, enfim, de uma relação de tradição consciente ante oparadigma do Bildungsroman.

O acompanhamento da trajetória do gênero Bildungsromanmostra-se então como uma verdadeira "história dos problemas",

pela qual se conjugam e se reorganizam informações e interpretações legadas pela tradição crítica e literária. A história do Bildungsroman encontra-se inapelavelmente marcada, a um tempo,pela figura autoral de Goethe, cuja sombra se projeta ao longo dahistória da produção literária em língua alemã por mais de duzentos anos. Por outro lado, o Bildungsroman desvenda-se comoinstituição social, como um mecanismo de legitimação de umaburguesia incipiente, que quis ver refletidos seus ideais em um

veículo literário (o romance) que apenas começara a se firmar. Éassim que, na Alemanha, o Bildungsroman mostrou-se a contrapartida estética de acontecimentos que, na França, se davam noplano político.

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I O ESTABELECIMENTO DO CONCEITO

O QUE É BILDUNGSROMAN"Bildungsroman": "novel of self-cultivation", "roman des en-

 fances", romance de formação. As traduções, em sua maior parteaproximativas, procuram resguardar o sentido de uma forma narrativa considerada pela historiografia literária como um fenômeno "tipicamente alemão". No Brasil, tem a preferência o termooriginal, incorporado ao léxico literário brasileiro conformeMassaud Moisés, em seu Dicionário de termos literários, de 1978.

A primeira manifestação do termo Bildungsroman data possivelmente de 1810, ano em que o professor de filologia clássicaKarl Morgenstern emprega o termo pela primeira vez em umaconferência na Universidade de Dorpat.

A definição inaugural do Bildungsroman por Morgensternentende sob o termo aquela forma de romance que "representa aformação do protagonista em seu início e trajetória até alcançarum determinado grau de perfectibilidade". Uma tal representação

deverá promover também "a formação do leitor, de uma maneiramais ampla do que qualquer outro tipo de romance".

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Encontram-se aí o núcleo e o germe de uma concepção idealizada da Bildung burguesa, que deverá imperar por quase duzentos

anos. Por intermédio do filósofo Wilhelm Dilthey, que aperfeiçoa eamplia a definição de Morgenstern, essa representação idealista da

 Bildung permitirá a caracterização de um "espírito nacional alemão",de uma singularidade intelectual e nacional que se deseja ver refletida na produção literária.

Morgenstern, o criador do termo Bildungsroman, associa-oao romance de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1795-1796), criando assim o que a historiografia literária reco

nheceria como o paradigma do gênero.A história de vida do jovem Wilhelm Meister, sua trajetória desdeo lar burguês em direção à busca por uma formação universal epelo aperfeiçoamento de suas qualidades inatas, sua relação com asvárias esferas da sociedade da época até sua inserção na aristocracia, por meio de um casamento interclasses (mésalliance), foramvistos com Morgenstern como o percurso exemplar, como a trajetória arquetípica a ser cumprida pelos filhos da incipiente burguesia alemã em busca de legitimação e reconhecimento político.

A grande questão que permeia as quase seiscentas páginas doromance de Goethe é justamente a medida das possibilidades deaperfeiçoamento e formação que restam ao burguês, em comparação com o nobre. Provavelmente o mais conhecido documento literário da história do Bildungsroman, a carta de Wilhelm Meister aWerner ilustra bem o desejo burguês pela formação universal, peloconhecimento que ultrapassa os limites estreitos da educação parao trabalho e para a perpetuação do capital herdado:

Deixa que eu te diga em uma só palavra: aperfeiçoar-me, 1 apartir do que realmente sou, tem sido meu desejo e minha intenção

1 No original, ausbilden, verbo que tem o sentido mais prático de um desenvolvimento de habilidades determinadas. É curioso que o verbo utilizado aí tenha sido ausbilden, em lugar de bilden, uma vez que este expressa umconteúdo mais amplo, dirigido mais ao "saber viver" do que propriamente

ao desenvolvimento de qualidades específicas. A interpretação de Os anosde aprendizado de Wilhelm Meister  como Bildungsroman constrói-se todasobre o sentido universal de bilden, de uma formação para a vida que ultra-

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desde a mais primeira juventude ... Fosse eu um nobre, estaria então nossa disputa encerrada; já que sou apenas um burguês, resta-me seguir meu próprio caminho, e eu espero que me possas compreender. Ignoro o que se passa em outras tetras, mas, na Alemanha,só ao nobre é possível uma formação universal, e, permita-me dizer, individual ... O nobre deve criar e empreender, ao passo que oburguês deve servir e trabalhar segundo as regras.

... Se, na vida cotidiana, o nobre não conhece limites ... podeele então apresentar-se perante seus pares com a consciênciatranqüila. Ele pode seguir adiante, ao passo que ao burguês nada seajusta melhor do que a pura e tranqüila consciência do limite quelhe está traçado. (Goethe, 1962, p.291)2

Esclarece-se assim o recorte sobre o qual o romance de Goethe

opera: a rígida divisão em classes nos Estados alemães, e o papel

reservado à incipiente burguesia alemã em um contexto de abso

lutismo tardio.

É assim que a idéia de um Bildungsroman, de uma forma lite

rária que correspondesse aos anseios tanto do indivíduo quanto de

sua classe como um todo, precede a fortuna crítica do gênero,

historici zando-o e atr eland o-o às circunstâncias bastante específicasda constituição do mundo burguês. No caso do Bildungsroman ale

mão, a própria criação do termo encontra-se vinculada a uma ex

periência biográfica e histórica, a trajetória intelectual do próprio

Karl Morgenstern, que vinculou sua busca de aperfeiçoamento ao

paradigma literário que ali se iniciava. Sua correspondência pessoal

e seus projetos pedagógicos na Universidade de Dorpat denotam

sua quase obsessão pela possibilidade de uma formação universal e

autônoma, até então privilégio da aristocracia.Bernard Witte reconhece em Os anos de aprendizado de Wil

helm Meister  uma obra de arte "simbólica", produzida sob evi-

passa o sentido mais limitado do aperfeiçoamento e da instrução em determinadas fases da vida prática. A utilização voluntária de ausbilden podeestar apontando para a futura renúncia do protagonista a uma formaçãouniversal, realizada em Wilhelm Meisters Wanderjahre [Os anos de peregri

nação de Wilhelm Meister].2 Tradução da autora, a partir da Hamburger Ausgabe, com empréstimos aNicolino S. Neto, tradutor da edição brasileira de 1994.

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dente oposição ao regime de terror que se seguiu imediatamenteà Revolução Francesa. No romance de Goethe, as mésalliances

anunciadas ao fim do livro configurariam a égalité entre os cidadãos, e as relações de parentesco, a fraternité. Goethe efetivamenterealizou uma estetização da sociedade, por meio das intrincadasrelações entre as personagens, que, ao final do romance, se explicam e se harmonizam, não apenas por relações de matrimônioe parentesco, mas também de afinidades espirituais, eletivas.

É assim que, por um lado, o surgimento do Bildungsromanalemão encontra-se atrelado a um a priori histórico de contornos

bastante definidos, que o incorpora à constelação cultural da Aufklärung alemã, nos últimos trinta anos do século XVIII.Da mesma forma, o surgimento do termo coincide com o

momento do reconhecimento do romance como forma literária"digna". Originário do latim vulgar romanic, por meio do francês romanz, o termo roman designava uma narrativa longa, emidioma diferente do latim clássico, na qual se representava o protagonista em suas relações e divergências com o mundo exterior.Até o século XVIII, na Alemanha, o Roman designava uma narra

tiva trivial, menor, na qual geralmente se representava uma história de amor. A grande forma narrativa era ainda a epopéia, comsua grandiosidade temática e metro clássico. Na Inglaterra e naFrança o gênero narrativo já estabelecera sua tradição desde oséculo XVII; na Espanha, o modelar Don Quixote é publicadopela primeira vez em 1601. Entretanto, na literatura de línguaalemã, o reconhecimento do romance como gênero digno ocorrerá apenas nos últimos trinta anos do século XVIII. Os sofrimentos

do jovem Werther, o grande sucesso de público de Goethe, é de1774 e marca o momento de maturidade e de aceitação do gênero pelo incipiente público de língua alemã.

A palavra Bildungsroman conjuga, portanto, dois termos dealta historicidade no contexto alemão e mesmo europeu. Por umlado, a incipiente classe média alemã movimenta-se em direção àsua emancipação política, processo que se reflete na busca peloauto-aperfeiçoamento e pela educação universal. A par disso, cristaliza-se o reconhecimento público de um gênero literário voltado para a representação do próprio ideário burguês, gênero esse

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que o século XIX irá conhecer como a grande forma do romancerealista.

Desde suas origens, o romance realista mostra-se como uma

forma capaz de retratar o "homem comum", mediano. Não serepresentam mais seres de capacidade, força e coragem extraordinárias, mas sim o jovem que se inaugura perante a vida, quebusca uma profissão, o auto-aperfeiçoamento e seu lugar no mundo. Em vez de Ulisses, o burguês.

Nas literaturas nacionais ocidentais, o advento do romancecoincide com a "descoberta da vida privada", das questões individuais e familiares. Uma classe média incipiente elege então essa forma

narrativa como uma literatura reflexiva, que constrói, ao mesmotempo em que reflete, as instituições basilares da vida burguesa.Profissão, casamento, formação, e mesmo economia, fazem partede um repertório que o romance passará a veicular, em estreitaconformidade com as "pequenas questões" da sociedade em meioà qual se originou. Pode-se falar, portanto, de uma estreita relaçãoentre as condições de produção e de recepção do romance. Produzido, consumido e editado pela burguesia, o romance realista rei

nará soberbo como a forma narrativa que sobreviverá até mesmo àestética experimental das vanguardas do século XX.Para a historiografia literária, o Bildungsroman passou a cons

tituir um signo, formado, de um lado, pela profunda historicidadede suas condições de origem, e, por outro, pela magnitude e alcance da figura literária e histórica de Goethe, o "príncipe dospoetas". Ao longo de quase duzentos anos, cristalizou-se um conceito de Bildungsroman que, a despeito da alta carga ideológica

de suas origens, foi realizado pela historiografia literária comouma instituição, um cânone atemporal e, paradoxalmente, a-his-tórico. Dezenas de verbetes em enciclopédias literárias entendemo Bildungsroman como um gênero cuja obra modelar é Os anosde aprendizado de Wilhelm Meister, associando-o assim aoClassicismo de Weimar, período no qual Goethe, ao lado deSchiller, reina soberbo como a figura emblemática. Todas as obrasposteriormente consideradas como Bildungsromane, na Alemanhae fora dela, são mensuradas, sob a perspectiva de sua temática ecomposição estética, ante o paradigma constituído pelo romance

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de Goethe. Assim, há obras que são Bildungsromane em maior oumenor medida, dependendo de sua maior ou menor semelhança

com Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister.Essa conjunção entre conceito e obra resultou em um problema para a crítica e a teoria literária. A grande circulação dotermo Bildungsroman pelas literaturas nacionais européias, e, maisrecentemente, também pelas americanas, levou a uma superexposição do conceito. O recurso ao Bildungsroman passou a seruma estratégia teórica e interpretativa capaz de abarcar toda produção romanesca na qual se representasse uma história de desenvolvimento pessoal.

O problema se constrói na medida em que a classificaçãode obras únicas sob o gênero Bildungsroman deve ainda considerar o cânone mínimo constituído por Os anos de aprendizadode Wilhelm Meister, mesmo que não mais compartilhem das condições originais de seu surgimento. A pergunta que se impõe é:quais são as conseqüências, para os estudos literários, da utilização demasiada de um termo tão impregnado de circunstancialidadee historicidade? É possível efetivamente reconhecer a existência

de um gênero literário chamado romance de formação, para alémdas circunstâncias peculiaríssimas de sua origem, entre as quaisse encontram mesmo cenas fundamentais da constituição do nacionalismo moderno e da emancipação burguesa?

Acompanhar a história do Bildungsroman significa, assim,acompanhar outras histórias concorrentes, como a da gênese deuma consciência literária nacional, ao lado dos inícios do própriogênero "romance" na Alemanha.

Por outro lado, é preciso conceder que os estudos literáriosrepousam hoje sobre pressupostos que contrariam a concepçãode literatura como produção tipicamente nacional. O desenvolvimento dos estudos comparativos, a insistência cada vez maiorem atribuir aos estudos de literatura um estatuto de estudos decultura, na direção oposta àquela seguida pelos formalistas do início do século, demanda uma abordagem do fenômeno literáriocapaz de "dar conta" de aparentes contradições.

Esse é o campo de pesquisa no qual se insere este livro. Oscapítulos da primeira parte pretendem oferecer ao leitor de lín-

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gua portuguesa uma visão dos processos de constituição dessa instituição social-literária que é o Bildungsroman.

Na segunda parte do livro, procura-se interceptar o mecanismo pelo qual um "gênero" tão marcado ideologicamente podeser assimilado por uma tradição literária estrangeira, mais joveme marginal em relação ao eixo eurocêntrico.

Essa relação poderá ocorrer apenas por meio de um mecanismo de disjunção e transgressão ante o cânone, mesmo diantedo cânone mínimo instituído pelo romance de Goethe Os anosde aprendizado de Wilhelm Meister.

O exemplo da apropriação do Bildungsroman pela crítica literária brasileira, comentado neste trabalho por meio das obrasde Eduardo de Assis Duarte e Cristina Ferreira Pinto, ilustra amedida desse processo de deglutição de uma instituição literáriaoriginada em uma literatura nacional européia pela jovem tradição literária sul-americana.

Por fim, discute-se aqui o estatuto do próprio romance deGoethe como modelo ideal do Bildungsroman, questão apontada

 já por críticos contemporâneos da obra como os primeiros-

românticos Friedrich Schlegel e Novalis.Este estudo aponta, em sua totalidade, para a hipótese da

existência de um Bildungsroman antes discursivo do que propriamente literário, isto é, a eleição de um gênero ideal, capaz deexpressar os desejos e necessidades de uma classe, ao mesmo tempoem que deveria ajudar a solidificar as incipientes instituiçõesburguesas.

As conseqüências advindas de uma tal constatação poderão

ser acompanhadas pela observação da fortuna crítica do gênero,tanto na produção literária em língua alemã como em outras línguas culturais.

O CONCEITO HISTÓRICO DE BILDUNG

 Bildung é uma palavra alemã cuja origem remonta ao médio

alto-alemão (bildunge, no alto alemão tardio bildunga). Seu primeiro significado está atrelado a acepções visuais como "ima-

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gem" (Bild), reprodução, "representação da imagem" (Abbild,Ebenbild), "imitação", "reprodução" (Nachahmung, Nachbildung).

O acompanhamento da trajetória do termo informa umaacentuação, por volta da metade do século XVIII, do primeiro significado etimológico de Bildung como "forma" (Gestalt), sobretudo "formação" (Gestaltung), relacionado tanto à forma exterior, à conformação (até mesmo do semblante humano: ela temuma primorosa configuração de traços do rosto, uma configuração agradável - "sie hat eine vortreffliche, eine einnehmende Bildung") como também à formação e desenvolvimento de características pessoais como intelecto, bons costumes, comportamento,através de influências exteriores. (Cf. Vierhaus, 1992, p.509). Nodecorrer de sua existência, o termo Bildung ampliou seu lequede significados, sem perda da função semântica dos primeiros.Isso significa que o complexo conceito Bildung, como hoje o encontramos na língua alemã, conserva grande parte das concepçõesatribuídas ao termo, desde sua apropriação pelo discurso intelectual nos últimos trinta anos do século XVIII.

Em 1784, em resposta à questão "O que é Iluminismo" ("Washeifit aufklären") proposta pela Berlinische Monatschrift [Revista

 Mensal Berlinense], o filósofo Moses Mendelsohn fornece o testemunho histórico das circunstâncias da entrada em circulaçãodo termo Bildung no discurso intelectual moderno, atrelando-aao contexto da Aufklãrung alemã:

As palavras Iluminismo [Aufklãrung],cultura [Kultur] e formação [Bildung] são ainda recém-chegadas em nossa língua, perten

cem em princípio apenas à linguagem dos livros. O vulgo dificilmente as compreende ... Ainda não houve tempo suficiente paraque o uso lingüístico, que parece querer distinguir entre essas palavras de igual significado, pudesse conferir-lhes os respectivos limites. Formação, Cultura e Iluminismo são modificações da vida emcomunidade, efeitos da dedicação e dos esforços dos homens emprol da melhoria das condições do convívio social. Formação divide-se em Cultura e Iluminismo. A primeira parece relacionar-se antesà vida prática ... Iluminismo, por sua vez, mais parece dizer respeitoa aspectos teóricos. (Mendelsohn, Ueber die Frage: was

aufklären? Berlinische Monatschrift, 1784, apud Vierhaus, 1992,p.508)

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Nesse momento, o termo Bildung não era em si um neologismo; percebidos como novos eram seu uso, significados e peso

como conceito diretor da discussão intelectual. Mendelsohn apontaassim o contexto histórico complexo em que o termo Bildung começa a adquirir seu significado moderno.

O repertório referido por Mendelsohn não deixa dúvidas sobre a alta carga ideológica que o termo Bildung passaria a suportarna língua alemã, vinculado essencialmente aos pilares de sustentação do otimismo iluminista, como a crença na possibilidade deaperfeiçoamento pessoal e no trabalho em prol do bem comum.

A par disso, o sentido da Bildung como construção do caráter do homem foi reforçado pelos autores pietistas, tendo-se tornado predominante sobre o significado de Bildung como configuração de aparência exterior. Rudolf Vierhaus aponta um retornoàs concepções místicas da Idade Média, quando Bildung (ima-ginatio) fazia parte do conjunto das quatro virtudes tradicionais,denominando a capacidade de representação interior e de auto-investigação. Aproximamo-nos dessa forma de um dos sentidosevocados pelo termo Bildung que é essencial para a compreensãodo romance de formação: a noção de processo.

Processo, neste contexto, é a sucessão de etapas, teleolo-gicamente encadeadas, que compõem o aperfeiçoamento do indivíduo em direção à harmonia e ao conhecimento de si e do mundo. Formação (Bildung) passa então a dialogar com educação(Erziehung), conceito caro ao ideário da Aufklärung e constituinte do mundo burguês. Na Alemanha dos últimos trinta anos doséculo XVIII, Erziehung designava o processo de desenvolvimento

do patrimônio intelectual inerente ao homem, patrimônio esseque deveria ser otimizado e cultivado por meio de mecanismosde estímulo do aparelho perceptivo e do raciocínio lógico. Naprimeira metade do século XIX, o termo Erziehung (educação)encontrava-se também relacionado à concepção da literatura cristãlida no âmbito doméstico, com o intuito de preparar a criançapara o exercício da moral e dos ensinamentos cristãos.

De maneira geral, a tendência dos dicionários e do uso lin

güístico moderno é atribuir ao termo "educação" (Erziehung) osentido de uma ação dirigida, com objetivos propedêuticos bas-

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tante definidos, ao passo que "formação" (Bildung) seria entendida mais como o resultado um processo que não pode ser atin

gido apenas pela atividade metódica da educação; a Bildung "pressupõe a atividade espontânea do indivíduo", ocorrendo ao longodo processo de auto-aperfeiçoamento.

É no final do século XVIII, nas origens da educação moderna,que a natureza humana passará a ser compreendida como passível de mudança e de aperfeiçoamento. Rousseau, Pestalozzi,Basedow e o próprio Goethe na Alemanha, debruçaram-se sobrea personalidade do ser infantil e juvenil, atribuindo-lhe caracte

rísticas próprias que o diferenciavam da personalidade adulta.A "descoberta da educação" como meio de moldar e formaro caráter dos homens encontra-se portanto estreitamente ligadaao conceito de individualização, sobretudo no sentido de reconhecimento da especificidade do caráter infantil e juvenil.

Phillipe Ariès, em sua História social da família e da criança,associa o início da individualização do caráter infantil e juvenil atransformações ocorridas no espaço doméstico, na organizaçãofamiliar e ao advento da escola, em um sentido próximo ao quehoje conhecemos, isto é, como um espaço diferenciado. Assim, àmedida que avançavam e se aperfeiçoavam as relações privadas efamiliares, aumentava também a importância que se passou a atribuir à educação. A escola, substituindo a aprendizagem doméstica(no sentido da aprentissage, tirocínio, transmissão de um mister,de um ofício) como meio de educação, logra manter a criança separada dos adultos e preconiza-lhe um tratamento diferenciado.

O final do século XVIII é também o período em que irá des

pontar na Alemanha uma literatura destinada à criança e ao educando, em consonância com delimitação dos espaços familiares ea decorrente conscientização das instituições quanto às especificidades e necessidade de orientação da personalidade infantile juvenil.

Obras como o periódico Der Kinderfreund [O amigo das crianças], publicado por Christian Felix entre 1776 e 1782, e Onovo Robinson de Joachim Heinrich Campe [Robinson der Jüngere,

1779-1780], uma das inúmeras e bastante popularizadas adaptaçõesalemãs do Robinson Crusoe de Defoe, instituem, em consonância

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com os princípios da educação moderna, uma tradição de obrasvoltadas à formação e instrução do indivíduo já desde a infância.

O projeto pedagógico veiculado nessas obras segue ma-nifestadamente a concepção iluminista. No exemplo oferecido emO amigo das crianças, Mentor, o narrador fictício, acumula asfunções de pai e educador, característica comum ao projetoiluminista de educação. Ao mesmo tempo, o processo de desenvolvimento se dá pela colaboração de uma "sociedade educadora", constituída pelos amigos da família, Mestre Philokteknos,Doutor Chronickel, Senhor Papillion e Senhor Spirit. Os quatroatuam, junto a Mentor, na educação das crianças, lançando mãode uma educação sistemática, na qual cada um é responsável pelatransmissão de um ramo do conhecimento, respectivamente a teologia, a história universal, a história natural e as artes.

Reconhecem-se aqui os ecos que a obra de Jean-JacquesRousseau, Emílio ou Da educação, de 1762, irradiava por toda aEuropa. Constitui-se uma tradição de obras educativas, nas quaisa figura masculina do preceptor ou do mentor é responsável pelaformação da personalidade e do intelecto do jovem. De início,

trata-se de obras produzidas com uma intenção e destinação claramente pedagógicas, nas quais o caráter ficcional é mero veículopara a transmissão de ensinamentos que visavam, ao lado do desenvolvimento do raciocínio lógico, à estabilidade social e mesmo ao estabelecimento e à manutenção do status econômico.

O romance de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister  (1795-1796) é o exemplo paradigmático de uma série deromances nos quais podem ser identificados os mesmos pressu

postos que norteavam a literatura eminentemente educativa da Aufklärung. O caráter ficcional do romance realista atua ali comomediação entre uma certa configuração histórica, a busca individual pelo aperfeiçoamento das qualidades inerentes do homemem prol do bem comum, e a sua realização. O fenômeno literárioconstituído pelo romance de formação só pode ser compreendidose relatado à transição entre a cultura feudal e a emancipação econômica burguesa. Na Alemanha, onde o processo foi acima de

tudo lento e pouco definido, a literatura teve um papel fundamental na veiculação dos princípios que nortearam a passagem

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da cultura do mérito transmitido, fundamentado nos direitos deposse e herança, para a cultura do mérito pessoal adquirido, atri

buto do burguês em formação.

A REPRESENTAÇÃO DA EDUCAÇÃO (ERZIEHUNG) EM

OS ANOS DE APRENDIZADO DE WILHELM MEISTER

A idéia de uma sociedade educadora e intervencionista estápresente também em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister.

A Sociedade da Torre, uma espécie de associação de homens sábios nos moldes da maçonaria e das sociedades secretas do séculoXVI, preconiza o desenvolvimento das qualidades e talentos inatos no indivíduo orientado para a vida em sociedade, para a prática de ações em prol do bem da coletividade. Jarno, um dos "tutores" de Wilhelm Meister, afirma:

Só todos os homens juntos compõem a humanidade; só todasas forças juntas, o mundo; estas estão com freqüência em conflito

entre si e, enquanto buscam destruir-se mutuamente, a natureza asmantém juntas e as reproduz. (Goethe, 1994, p.536-7)

Assim como Mentor, figura paradigmática do educador esclarecido, Jarno também preconiza uma educação individual quedeverá ao mesmo tempo servir ao bem comum. Trata-se do processo de harmonização dos talentos e qualidade inerentes ao homem, em direção à própria felicidade e à de seus semelhantes.

A Sociedade da Torre é uma instituição de caráter intervencionista e paternalista autoritário. Sua forma de agir reproduz osmétodos utilizados nos Diálogos (Gespräche) iluministas, pelos quaisa razão, atributo masculino e paterno, era transmitida ao educandopor meio de um jogo de pergunta e respostas, a fim de estimular seuraciocínio. O paralelo utilizado pela Sociedade da Torre é o princípio da educação pelo erro, o qual permite ao educando entregar-sea seus equívocos como forma de superá-los:

Não é obrigação do educador de homens preservá-los do erro,mas sim orientar o errado; e mais, a sabedoria dos mestres está em

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deixar que o errado sorva de taças repletas de seu erro. Quem sósaboreia parcamente seu erro, nele se mantém por muito tempo,alegra-se dele como de uma felicidade rara; mas quem o esgota porcompleto, deve reconhecê-lo como erro... (Ibidem, 1994, p.480,grifo da autora)

Embora o princípio da educação pelo erro possa evocar a idéiade uma espécie de educação liberal, na qual o educando detém opoder de decisão sobre suas ações e trajetória, o caráter intervencionista da Sociedade da Torre deixa-se reconhecer em manobrasocultas capazes de provocar alterações significativas no destino do

educando. Decisões como a escolha de uma profissão e a permanência no país natal ou emigração para a América são tomadas peloprotagonista Wilhelm Meister pela influência, velada ou direta, deseus mentores. O grau de emancipação do educando/protagonistaé uma das questões mais controversas presentes na constituição doromance de Goethe como obra paradigmática do gênero "romancede formação", e deverá ser retomada adiante.

De todo modo, é possível reconhecer, no romance de Goethe

Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, uma afinidade histórica com os pressupostos da literatura educativa da Aufklãrung eSpätaufklärung (Iluminismo e Iluminismo tardio) veiculada especialmente pela Sociedade da Torre, a instituição pedagógica alirepresentada.

O protagonista Wilhelm Meister ultrapassa, porém, a instância relativamente limitada da concepção educativa da Sociedadeda Torre, por meio de sua busca pela formação universal. Comose verá a seguir, "formação" (Bildung) e "educação" (Erziehung),conceitos próximos em sua origem, passam a ter seus significadosdiversificados. Essa diversificação pode ser identificada tambémno desejo de Wilhelm Meister por uma "formação universal".

FORMAÇÃO INDIVIDUAL E FORMAÇÃO PARA O ESTADO

Produtos do otimismo iluminista, isento ainda de capacidade

de autocrítica, os conceitos formação e educação articulavam-se,nas últimas décadas do século XVIII, ao ideal de uma sociedade

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afortunada, isto é, à idéia de que da formação e educação dosindivíduos dependia o bem-estar da sociedade. Decorre daí o re

conhecimento de que formação e educação são tarefas obrigatórias do Estado, bem como objetos de seu interesse.Consideradas, portanto, como competência do Estado mo

nárquico autoritário, educação e formação deveriam prover o indivíduo da capacidade de responder por suas obrigações ante essemesmo Estado, de forma a assegurar a funcionalidade social. Trata-se, porém, de um Estado ainda absolutista, claramente dividido emclasses; educação e formação devem, portanto, observar essa divisão, contemplando cada classe social com uma educação e formaçãodiferenciadas, "adaptadas" à funcionalidade do Estado de classes.

Tal formação se daria sobretudo pela instrução política, entendida como uma necessária ampliação da instrução escolar nos novos Estados monárquicos. Christian Wilhelm Dohm nomeia as trêsclasses a quem tal instrução se destina: "1. a classe produtora ... 2. ados que recebem soldo ou que servem a nação ... 3. a classe dos nobres", as quais era necessário "esclarecer, formar" (aufklären, bilden)de maneira diferenciada. Propõe ainda que se incluam as classes dos

varejistas e dos comerciantes, "as quais necessitavam de uma formação completamente diferente" (apud Vierhaus, 1992, p.513).

Assim, nas últimas décadas do século XVIII, o conceito de formação encontra-se intimamente ligado à articulação da sociedadeem classes. Em nome da funcionalidade social, cada cidadão deveria receber a formação que o habilitasse da melhor maneira parao desempenho de sua função junto à coletividade.

Uma vez entendidas a educação e formação como obrigação e

interesse do Estado, abre-se campo para a concepção de um projeto de "educação nacional", destinado a fortalecer a consciência denacionalidade e a preparar cidadãos para o serviço do Estado.

A despeito da situação político-geográfica peculiar da Alemanha, dividida em muitos Estados independentes, traçaram-se planos nacionais de educação nos quais a classe média cultivada tinha papel relevante. Desenhava-se, portanto, o perfil daqueleextrato social que constitui hoje na Alemanha a grande reserva de

recursos humanos, traduzida sobretudo naqueles que exercem profissões liberais e nos funcionários de Estado. É possível detectar,

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por volta de 1775, o esforço dos reformadores sociais e educacionais em prol da constituição dessa "classe dominante", que jánão era mais exclusivamente constituída pela aristocracia, sem serefetivamente uma burguesia plenamente estabelecida. Nesse esforço pelo estabelecimento de uma classe cultivada e funcionalnos Estados alemães, produziram-se algumas dezenas de obras quetinham como objetivo final comum a eleição de um "caráter nacional", o reconhecimento de uma classe capaz de exercer influência imediata e eficaz sobre as camadas incultas, criando costumes e leis capazes de ordenar o processo de instalação burguesa.Um título escolhido aleatoriamente dentre as obras contemporâ

neas a esse esforço pode dar a dimensão do processo então iniciado. Em 1773, F. G. Rezewitz publica Die Erziehung des Bürgers

 zum Gebrauch des gesunden Verstandes und zur gemeinnützigenGeschäfftigkeit, Kopenhagen, 1773 [A educação do cidadão parao uso do bom senso e para o exercício do interesse público], obrana qual se encontram expostos os princípios de uma educaçãovoltada para a constituição das virtudes burguesas como sustentação da harmonia social. Uma tal orientação só poderia ocorrer

na medida em que também o Estado exercesse sua influência sobre os indivíduos, incutindo-lhes ao mesmo tempo as primeirasnoções de patriotismo.

A educação do indivíduo encontra-se, portanto, associada àformação do Estado burguês estamental. O romance de GoetheOs anos de aprendizado de Wilhelm Meister é  um documento contemporâneo desse processo de constituição do mundo burguês,capaz de iluminar, no plano estético, transformações que, na Fran

ça, ocorriam no plano político.

A FORMAÇÃO UNIVERSAL (ALLGEMEINE BILDUNG)

A atualização do romance de Goethe Os anos de aprendizadode Wilhelm Meister como "romance de formação" origina-se, portanto, em um pressuposto discursivo historicamente localizado.

O próprio tratamento dado ao complexo tema "formar-se" (sichbilden) no plano ficcional constituído pelo romance de Goethe

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tem sua origem em problemáticas contemporâneas de sua gênese,como a educação dos filhos das famílias burguesas em oposição à

educação destinada aos nobres. Assim, entende-se que a inscriçãode Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister sob o termo genérico "romance de formação" reflete esse momento histórico particular, quando a preocupação burguesa com o (auto-) aperfeiçoamento encontrava-se manifesta tanto no discurso teórico quantonas reformas que então se ensejavam, nomeadamente no âmbitoda educação e instrução.

Trata-se então de uma "disposição de época", reconhecidae recuperada tanto na obra que constitui o paradigma do conceito Bildungsroman, como na criação do próprio termo por KarlMorgenstern.

O romance de Goethe sustenta-se por sobre um programanarrativo que, grosso modo, pode ser apresentado como a trajetória de um jovem filho de família burguesa em busca dos próprios ideais, em busca do livre desenvolvimento de suas aptidõese daquilo que considera suas tendências, ou sua vocação.

O "velho Meister", próspero comerciante, desejava para seu

filho Wilhelm uma formação que atendesse às necessidades decorrentes dos negócios da família, ou seja, uma formação voltada aocomércio. A partida de Meister da casa paterna é determinada porum acontecimento de caráter prático-econômico: o jovem WilhelmMeister deve fazer uma visita de inspeção aos parceiros comerciaisdo pai, ao mesmo tempo em que cobrará dívidas e receberá dinheiro. A origem econômica do protagonista, nascido no seio de umapróspera família enriquecida pelo comércio, é repetidas vezes acen

tuada, não faltando mesmo uma rica descrição da casa paterna, suadecoração e cotidiano doméstico, de modo a indicar valores importantes para essa parcela da população. Práticas como a aplicação financeira, empréstimos, juros e pagamento de impostos sãocitadas com freqüência (Cf. carta de Werner a Meister, conversa aofinal com Lothario, Werner etc).

Assim, quando Meister se decide pelo caminho do autode-senvolvimento e da formação, seu primeiro grande opositor é a

própria origem social e econômica. A consciência de que as possibilidades de ampliação de horizontes reservadas à classe a qual

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pertence são ínfimas leva Meister a lamentar o destino burguês econtrapô-lo às possibilidades reservadas à aristocracia. Delineia-se, portanto, a consciência de uma sociedade dividida em classescujos limites inflexíveis constrangem o burguês eternamente a seupróprio círculo de atuação, sem que se vislumbre a possibilidadede ultrapassá-lo.

A carta de Wilhelm Meister a Werner, reproduzida anteriormente, concentra a questão que perpassa toda a obra: as limitadas possibilidades de desenvolvimento e aperfeiçoamento do jovem burguês, ante aquelas destinadas à aristocracia. Ao nobre édestinada uma formação pessoal e universalizante, isto é, de acordo

com seus talentos e habilidades natas, ao mesmo tempo que voltada para um repertório universal. Ao burguês, resta-lhe umaformação limitada e utilitarista, voltada ao exercício de uma atividade definida, como o comércio. É preciso ressaltar mais umavez que o período histórico retratado no livro coincide com omomento de produção da obra, por sua vez contemporânea datransição de um estado econômico ainda feudal e latifundiário,para uma economia mais moderna e democrática, em que os ideais

e os privilégios da aristocracia serão dissolvidos em meio aotecnicismo e cientificismo burguês. Os anos de aprendizado deWilhelm Meister  encontra-se exatamente em meio a essa transição, prenunciando a legitimação das instituições burguesas já noséculo XIX, ao mesmo tempo em que problematiza ainda questões determinadas pelo primado da aristocracia.

Para Wilhelm Meister, a única maneira de ultrapassar os limites estreitos da vida burguesa está na possibilidade de se tornar

"uma pessoa pública" (eine öffentliche Person). Meister vislumbraa possibilidade primeiramente na carreira teatral, nas maneirasapuradas dos atores em cena, que em nada lembram a estreiteza etruculência das pessoas de suas relações na cidade natal.

Essa mesma qualidade de "pessoa pública" Meister irá encontrar no círculo de aristocratas ao qual se une no fim de seusanos de aprendizado.

É assim que o conceito de formação em Os anos de aprendi

 zagem de Wilhelm Meister encontra-se associado a um pressuposto histórico típico da classe média alemã no fim do século XVIII.

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Do estabelecimento de uma classe social baseada sobretudo nolivre comércio, da ampliação de seu poder econômico e de insti

tuições sociais e financeiras geridas por essa mesma classe, decorre também um movimento em direção à expansão dos limitesque sustentam essa funcionalização. O desejo de Wilhelm Meisterde se formar, a partir de seus talentos e tendências naturais, relegando a atividade comercial recebida como herança familiar, reflete o desejo de um grupo social; no romance epistolar de GoetheOs sofrimentos do jovem Werther, de 1774, encontra-se essamesma inadequação pessoal e profissional do protagonista aomundo estreito da burguesia, que move Wilhelm Meister paraalém do universo de origem. No Werther, obra comumente conhecida apenas como uma história do amor trágico, a incapacidade de adaptação ao universo burguês e suas convençõesradicaliza-se, levando ao insucesso irrevogável, no plano pessoale profissional. Em Os anos de aprendizado, a consciência dospróprios limites (mais como camada social do que como indivíduo) leva a um movimento de negação desse destino comum,representado primeiramente pela busca da carreira teatral e de

pois pelas ligações do protagonista com a aristocracia, grupo social diferente do seu original.

A decantada harmonia que alguns críticos alegam existir nofim de Os anos de aprendizado é decorrência desse cruzamentointerclasses que deve ocorrer por meio da prometida união con

 jugai entre as personagens Wilhelm Meister e Nathalie e entrePhilline e Friedrich. Bernd Witte (1989) chega mesmo a apontar,a partir dessas uniões entre diferentes classes da sociedade abso

lutista, um paralelo estético com os acontecimentos que, na França, se davam em nível histórico, durante a Revolução Francesa.A representação do processo de formação em Os anos de

aprendizado de Wilhelm Meister  realiza-se, portanto, de duas formas diferentes. O conceito iluminista de formação-educação comoprocesso de desenvolvimento e aperfeiçoamento das qualidadesracionais encontra-se configurado na Sociedade da Torre, e maisespecificamente em seu mentor intelectual, o abade. O seu projeto pedagógico, seu princípio de "educação pelo erro", sua atuação intervencionista e esclarecida sobre a trajetória dos jovens

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sob sua tutela configuram um tipo de procedimento racionalistapaternal, nos moldes da Aufklärung.

Historicamente, entretanto, esse sentido iluminista e, na verdade, restrito, de formação, foi ultrapassado por um sentido maisamplo. Também em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister  aconcepção se amplia. O desejo de Meister por uma "formaçãouniversal" (allgemeine Bildung) encontra sua contrapartida histórica na autonomia do termo Bildung ante Erziehung. Aquele passou aser usado preferencialmente "quando era intenção designar um processo de moldagem, de cultivo, mas também de desenvolvimento ede auto-aperfeiçoamento das faculdades espirituais e intelectuais do

homem, do coração, do gosto" (Vierhaus, 1984, p.515), ao passoque Erziehung manteve o sentido de um processo pedagógico quelevava ao desenvolvimento das faculdades racionais do indivíduo.

A ampliação do conceito de Bildung tem em Herder um momento definitivo. Em Über die neuere Deutsche Literatur [Da novaliteratura alemã] (1768), o autor refere-se à Bildung sob um sentido que se opõe à mera educação ou instrução; Bildung tem emHerder um sentido de "atuação viva" daquele que forma, bem como

de atividade espontânea daquele que se forma: "formar, em vez deensinar" (bilden und nicht unterrichten), "escritores da formação"(Schrifsteller der Bildung), que não escrevem "à maneira das escolase academias"(wie auf Schulen und Akademien), aperfeiçoamento"vivo, em lugar do livresco, através da formação" (Verbesserung nicht schriftlich ... sondem lebendig, durch Bildung), são expressõespinçadas do texto de 1768, que determinam a ampliação do camposemântico do termo Bildung.

Efetivamente, em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister há trechos que se integram nesse sentido ampliado de Bildungcomo um processo não acadêmico, não livresco. O exemplo maisilustrativo pode ser encontrado no relato da personagem Friedrich,no qual explica como adquiriu sua erudição.³ Tampouco Meisterfreqüenta uma academia, durante seus anos de aprendizado.

3 Friedrich, personagem folgazã, chamado mesmo pela personagem Meister

de "nosso pícaro louro", passa por um processo de aquisição de leitura descrito como uma sátira à pretensa formação universal oferecida nas universi-

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No romance de Goethe, o conceito Bildung transita, portanto, desde um sentido pedagógico-iluminista, como configurado

na Sociedade da Torre, até o sentido de formação universal, quese opõe ao sentido absolutista da Bildung burguesa sustentado poruma sociedade de classes. Quando Wilhelm, na carta a Werner,afirma que "só ao nobre é possível uma formação universal", enquanto ao burguês só restaria "o puro e plácido sentimento dolimite que lhe está traçado", está se referindo ao conceito de formação adotado pelo estado absolutista, no qual cada indivíduodeveria ser formado segundo sua classe social.

O conceito de formação universal foi claramente definido porWilhelm von Humboldt, também contemporâneo de Goethe e autorde Ideen zu einem Versuch die Gränzen der Wirsamkeit des Staaten

 zu bestimtnen [Idéias para uma tentativa de delimitação dos limitesda atuação do Estado], de 1792. Ali, Humboldt considera a liberdade como pressuposto básico da formação do homem:

O verdadeiro objetivo do homem é a formação mais elevada emais adequada de suas faculdades em um todo. A liberdade é con

dição imprescindível para essa formação. (Humboldt, 1792, apudVierhaus, 1984, p.521)

Pode-se afirmar que, em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, o conceito de Bildung como formação universal é o queregula e dirige a trajetória do protagonista, embora o processo deaquisição dessa mesma formação permaneça inconclusivo. Meisterdistancia-se das atividades práticas da vida burguesa, buscandosempre possibilidades de desenvolver suas potencialidades latentes

em todas as direções. É um conceito "neo-humanista", na medida em que não forma o indivíduo para profissões específicas,mas sim para uma atuação universal:

o espírito e o intelecto são formados em si e para si, não em direçãoa ocupações determinadas ... A formação é uma formação indivi-

dades: sentados, ao longo de uma mesa sobre as quais se encontram abertosos mais variados títulos, Friedrich e a leviana Philine dedicam-se à leituraaleatória de uma das obras, regulada por um relógio de areia, passando imediatamente a outra obra assim que se escoa um período de tempo.

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dual e espontânea, que se completa na liberdade, na distância emrelação ao mundo prático e na ocupação voluntária com os maisdiversos objetos. (Vierhaus, 1992, p.529)

É esse, efetivamente, o conceito de formação que orienta odesejo de Wilhelm Meister em Os anos de aprendizado. Sua convivência com a aristocracia é um símbolo da legitimação do dese jo pela formação universal expressado na carta a Werner. Meister,entretanto, permanece na indeterminação, sem pertencer efetivamente à nobreza e, por outro lado, sem assumir uma ocupaçãoburguesa especializada.

É apenas no último livro da trilogia do Meister, Wilhelm MeistersWanderjahre [Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister], que esseconceito irá se transformar; da almejada Bildung universal, Meisterpartirá em busca da Ausbildung, da formação especializada.

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 2 A C O N S T I T U I Ç Ã O D OPARADIGMA LITERÁRIO

A CRIAÇÃO DO TERMO

Fritz Martini, em seu artigo Der Bildungsroman - Zur Geschichte des Wortes und der Theorie [O Bildungsroman - sobrea história do termo e da teoria], de 1961, localiza a opiniocommunis de que o termo teria sido incluído no discurso acadêmico sobre literatura por obra do filósofo Wilhelm Dilthey. Das

 Leben Schleiermachers [A vida de Schleiermacher], de 1870, é aobra na qual se encontra a primeira alusão de Dilthey ao

 Bildungsroman.

É importante observar que já essa alusão aponta para a con junção entre o termo e uma concepção harmônica e gradual dodesenvolvimento do homem, indicando esse caráter na obra deGoethe. Assim, o comentário de Dilthey reforça a idéia de correspondência entre o Wilhelm Meister de Goethe e o gênero denominado Bildungsroman, antecipando assim sua fortuna crítica.

Entretanto, Martini traz à luz uma disputa intelectual no quese refere à criação do termo Bildungsroman. Atribuída a Dilthey, a

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autoria pertenceria na verdade à figura bem menos proeminentede um certo professor da Universidade de Dorpat, Karl Morgenstern.

O artigo de Martini constitui assim um marco na pesquisasobre o Bildungsroman, trazendo a público a figura bastante significativa do professor Morgenstern, cuja análise contribui para acompreensão das circunstâncias de surgimento não apenas do termo, mas também do conceito.

O termo Bildungsroman teria sido empregado pela primeiravez por ocasião de uma conferência pública proferida por KarlMorgenstern aos 12 e aos 24 de dezembro de 1810 em Dorpat, nosalão nobre da Universidade Imperial, sobre "o espírito e as correlações de uma série de romances filosóficos". (Martini, 1961, p.45)Publicada posteriormente por Morgenstern por meio de recursospróprios em seus Dörptsche Beyträge für Freunde der Philosophie,

 Literattur und Kunst [Contribuições de Dorpat para os amigos da filosofia, da literatura e da arte], em 1817, a passagem vincula otermo Bildungsroman à obra de Friedrich Maximilian Klinger,1 entãocurador da Universidade de Dorpat e amigo pessoal de Morgenstern.Ali, o autor afirma que não há, dentre os "romances filosóficos e,

sobretudo, entre os Bildungsromane de autores alemães", nenhuma obra que se compare aos romances de Klinger quanto à capacidade de despertar a "elevação moral e a força viril do caráter".

O comentário de Morgenstern contribui, assim, para que seestabeleça uma concepção do Bildungsroman como veículo daformação do caráter, atribuindo portanto ao termo um caráterpedagógico.

É importante acrescentar ainda que, na introdução a uma se

gunda conferência proferida na Universidade de Dorpat, o próprio Morgenstern confirma estar consciente quanto ao fato deser ele o criador do termo: "seja-me permitido falar aqui da principal dentre as muitas formas do romance, nomeando-a com umapalavra até então inexistente, segundo meu conhecimento: Bil-dungsroman" (apud Martini, 1961, p.46).

1 Autor do drama Sturm und Drang, que deu nome ao movimento pré-român-tico do qual foram expoentes Schiller e Goethe.

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Por meio de relações de amizade, Morgenstern foi introduzido ao círculo estabelecido na cidade de Weimar, onde não logrou, porém, segundo cartas e documentos da época, cair nas graças dos grandes clássicos Goethe e Schiller. Enquanto isso, asexpectativas intelectuais suscitadas por sua primeira obra comofilólogo, Commentationes tres de Platonis Republica, de 1794, quemerecera até mesmo a atenção de Immanuel Kant, não foram preenchidas, por meio da publicação de outras obras do mesmo nível. E aqui emerge facilmente a razão pela qual Martini (p.470)percorre a biografia intelectual de Morgenstern com certo excessode detalhamento:

Sua [de Morgenstern] atividade em Dorpat foi frutífera de outra maneira. Ela caracteriza - e apenas por isso deve ser aqui brevemente comentada - o pano de fundo intelectual e espiritual sobre oqual se deu a criação do termo e da teoria do Bildungsroman.

Martini recupera assim, paralela aos primeiros tempos de existência do termo Bildungsroman, uma trajetória pessoal, a do pró

prio Morgenstern, em direção ao aperfeiçoamento individual, nosmoldes da idéia iluminista da formação do caráter, ao mesmo tempo impregnada de nuances subjetivas e psicológicas. Subjaz ao texto de Martini a idéia de que a denominação Bildungsroman é maisdo que uma classificação puramente ordenatória; ela deriva doconjunto de práticas específicas no tempo e no espaço, reflete umdesejo de amplitude intelectual comum a uma geração cujo pro

 jeto de aquisição de conhecimento e autoconhecimento impõe-se

como subjetividade, como desejo pessoal.De natureza psicológica fragmentária e multifacetada, Mor

genstern buscara, segundo seus críticos, o ideal da conciliação entre"talentos e habilidades dispersos", na direção de uma "formaçãoharmônica" pelo cultivo de suas tendências individuais. O conteúdo programático de seu projeto de auto-aperfeiçoamento remete mais uma vez ao Meister de Goethe, cujas capacidades etalentos, ainda latentes, necessitavam de um processo de integração

e conciliação, formando assim o indivíduo apto ao convívio social e à pratica de boas obras em prol da comunidade.

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Morgenstern é representante de uma classe de intelectuais alemães pós-iluministas, que, durante a passagem do século XVIII ao

século XIX, contribui para a constituição de um determinado sistema de pensamento em que a formação intelectual e moral dofilho de família burguesa passa a ser tematizada e problematizada.A criação do termo Bildungsroman emerge, portanto, como umfato histórico associado a esse momento do pensamento burguês,em que a preocupação com a acumulação de riquezas passa a coexistir com um desejo de superação dos limites do conhecimentopossível à classe média ascendente. A origem da "literatura de formação" pode ser compreendida como resultado de um mecanismosocial auto-reflexivo desenvolvido por uma classe que quer verespelhados seus próprios ideais na ficção de cunho realista quecomeça a firmar-se como gênero.

A trajetória intelectual de Morgenstern comprova, portanto,a idéia da existência de uma estrita correspondência entre as condições de produção e as condições de recepção da obra literária.Morgenstern, "rico em planos inacabados", teria ele próprio esboçado uma história de sua formação em forma de romance, pois

"alguma coisa haveria de estar errada quando a história da vida eda formação de um homem que realmente viveu não despertasse,para o olho e para o coração, o mesmo interesse de um bom romance" (Morgenstern, apud Süss, 1928, p.159).

O PROJETO PEDAGÓGICO

Paralelamente a suas necessidades e desejos pessoais de auto-aperfeiçoamento expressados em suas cartas e manuscritos, bemcomo no projeto irrealizado de um Bildungsroman particular, KarlMorgenstern conduziu, por meio de sua atuação como professorem Dorpat, um projeto educativo que tinha como objetivo maiora formação do jovem para a coletividade. As conferências do então professor de filologia clássica progrediram de uma estrita ocupação com o objeto primeiro de sua disciplina em direção a abordagens mais pedagógicas e mais universais, abertas a estudantes

de todas as áreas.

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O programa compunha-se de um Studium generale, cuja tradição remontava à retórica antiga, pressuposto por sua vez doestudo acadêmico da Eloqüência. A abordagem de Morgenstern

reconhecia a importância pedagógica da eloqüência, em consonância com a proposta de J. G. Sulzer em sua Allgemeine Theorieder schönen Künste [Teoria geral das belas-artes], (1773):

[A eloqüência] é reconhecidamente o meio mais perfeito paratornar os homens mais sensatos, mais sociáveis, melhores e mais felizes. Por meio dela, os primeiros sábios chamaram para a vida nacoletividade os desagregados, fazendo-lhes amar os costumes e asleis; por ela, Platão, Xenofonte, Cícero e Rousseau tornaram-se mestres da humanidade. (Sulzer, 1773, p.197, apud Martini, 1961, p.48)

O trecho acima citado aponta para a inclusão do ser individual e desagregado (zerstreut) no mundo das relações sociais,motivo tradicional da temática educativa do século XVIII iluministae pós-iluminista. É um motivo que se reconhecerá em obras posteriormente classificadas como Bildungsromane, como o Agathonde Wieland e o Wilhelm Meister de Goethe.

O ensino da Eloqüência incluía ainda o estudo e a filosofiado Belo, com o qual Morgenstern recomendou a seus alunos quese ocupassem. Seu projeto pedagógico inspirou-se, portanto, emuma tradição da Antigüidade clássica, buscando a representaçãode uma formação universal, por meio da qual todas as habilidadespotenciais são cultivadas. A linha básica sobre a qual Morgensternconstruiu seu projeto pedagógico previa um ideal que direciona,educa e harmoniza os talentos, as habilidades e o caráter que cada

homem racional já traz em si como patrimônio inato.O artigo de Martini leva-nos, pois, a reconhecer uma relação

entre a biografia pessoal e intelectual de um indivíduo, o professor de Filologia Clássica Karl Morgenstern, e a irrupção de umtermo caro à historiografia, à crítica e teoria literárias, o Bildungs-roman. Mais do que isso, leva-nos a afirmar o cunho marcadamente ideológico instalado já na própria criação do termo, quedeverá impregná-lo nas leituras que se sucederão.

A busca pessoal de Karl Morgenstern representa também oanseio de uma classe de indivíduos intelectuais pós-iluministas,

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que tinham em comum a preocupação com o aperfeiçoamentodo caráter e o desenvolvimento das qualidades latentes do ho

mem, sustentado por um projeto neo-humanista. Por meio da figura histórica de Karl Morgenstern, cujas preocupações sintetizamas aspirações intelectuais e espirituais de uma época, pode-se iluminar uma das mais determinantes configurações históricas queatuaram na origem do Bildungsroman: o desejo do burguês cultoe esclarecido pela ampliação dos limites de suas possibilidades deatuação, pelo auto-aperfeiçoamento, pela formação universal.

AS DEFINIÇÕES DE BILDUNGSROMAN 

O acompanhamento das definições do Bildungsroman ao longo da historiografia literária permite que se delineie o estabelecimento de uma concepção tradicional do gênero, que se estende apartir da criação do termo por Morgenstern, no início do séculoXIX, até meados da década de 1980.

O texto da conferência proferida por Morgenstern em 1820

contém o que se poderia chamar de definição inaugural do termo, na qual já se encontram os principais traços de constituiçãodo paradigma literário.

[Tal forma de romance] poderá ser chamada de Bildungsroman,sobretudo devido a seu conteúdo, porque ela representa a formação do protagonista em seu início e trajetória em direção a um graudeterminado de perfectibilidade; em segundo lugar, também porque ela promove a formação do leitor através dessa representação,

de uma maneira mais ampla do que qualquer outro tipo de romance. (Morgenstern, 1988, p.64)

Essa definição de Bildungsroman decorre da discussão teórica que Morgenstern desenvolve sobre as especificidades da epo

 péia antiga e do romance burguês. Para Morgenstern, a epopéiamostra o "protagonista agindo em direção ao exterior, provocando alterações significativas no mundo; o romance por sua vez

[mostra] mais os homens e o ambiente agindo sobre o protagonista, esclarecendo a representação de sua gradativa formação in-

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terior. Por isso mesmo, a epopéia apresentará antes os atos doherói com seus efeitos exteriores sobre os outros; o romance aocontrário privilegiará os fatos e os acontecimentos com seus efeitos interiores sobre o protagonista...".

Dessa forma, a primeira definição de Bildungsroman atrela-oa uma das questões mais determinantes sobre o surgimento doromance burguês. Desde o ensaio de Friedrich von Blankenburg,Versuch über den Roman [Ensaio sobre o romance], 1724, com oqual Morgenstern dialoga em sua conferência, até Georg Lukácse Walter Benjamin, a tradição literária reconhece o momento dagênese do romance burguês como resultado de suas relações edistinções ante a epopéia antiga. Assim, o termo Bildungsromannasce atrelado a uma questão fundamental da história do romance, permanecendo ligado assim à discussão mais ampla do romancecomo gênero.

É importante ressaltar aqui que a conferência de Morgenstern já contém a referência a Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister como paradigma do Bildungsroman:

Como obra de tendência mais geral e mais abrangente da belaformação do homem, sobressai-se, com seu brilho suave, Os anos deaprendizado de 'Wilhelm Meister, de Goethe, obra duplamente significativa para nós alemães, pois aqui o poeta nos oferece, no protagonista e nas cenas e paisagens, vida alemã, maneira de pensar alemã,assim como costumes de nossa época. (Morgenstern, 1988, p.66)

O trecho acima prenuncia já uma das vertentes mais produtivas na tradição crítica do Bildungsroman, aquela que o compre

ende como expressão do "espírito nacional alemão".Mais adiante, Morgenstern atribui a Os anos de aprendizado

de Wilhelm Meister  a qualidade de representar, como nenhumoutro romance, em tão alto grau e em tão vasta dimensão "oaperfeiçoamento universal harmônico daquilo que é autenticamente humano e de ter aspirado ao "mais belo ideal da formaçãoda humanidade neo-européia e da época". Morgenstern conjugaassim Os anos de aprendizado a um determinado "espírito de épo

ca", concepção que será retomada e desenvolvida posteriormentepor Dilthey, Melitta Gerhard e Ernst Ludwig Stahl.

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A mesma conferência de Morgenstern contém ainda mais umadefinição para o Bildungsroman, na qual o autor, citando indire

tamente C. F. Körner, aponta como objetivo e tarefa de Os anosde aprendizado a representação de um processo ao longo do qualse efetue o equilíbrio entre harmonia e liberdade:

A tarefa de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister não meparece ser outra senão a representação de um homem que se aperfeiçoa pela atuação conjunta de suas disposições interiores e dasrelações com o mundo exterior, de maneira gradativa e em conformidade com a natureza. A meta desse aperfeiçoamento é um equilíbrio perfeito, harmonia com liberdade. (Morgenstern, 1988, p.66)

Entretanto, é apenas em 1870 que o termo Bildungsromanserá efetivamente incluído no discurso intelectual-acadêmico sobre literatura, por obra de Wilhelm Dilthey. Em Das LebenSchleiermachers, Dilthey repete Morgenstern articulando o termo ao Meister de Goethe.

Posteriormente, em seu livro Das Erlebnis und die Dichtung[Experiência vivida e Poesia], Dilthey amplia o conceito, relacio-

nando-o a um momento específico da história da narrativa emlíngua alemã:

A partir do Wilhelm Meister e do Hesperus, todos eles representam o jovem em seus dias; como esse jovem, em uma auroraafortunada, inaugura-se na vida, procura espíritos semelhantes aosseu e depara-se com a amizade e o amor. Tais romances representam também a maneira pela qual o jovem protagonista entra emconflito com as duras realidades do mundo, amadurecendo entãopor meio das diferentes experiências da vida, encontrando-se a simesmo e tornando-se consciente de sua missão sobre a terra.(Dilthey, apud Jacobs, 1972, p.11)

Dilthey associa então essa linhagem literária específica à situação de isolamento da burguesia alemã em relação aos acontecimentos políticos e à idéia de coletividade: "Assim, tais Bildungs-romane expressam o individualismo de uma cultura limitada àesfera dos interesses da vida privada".

Dilthey contribui decisivamente para a associação do Bildungsroman ao "conceito alemão de humanidade", a um caráter

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nacional específico, dando origem à bem-sucedida fortuna críticaque compreende o Bildungsroman como um fenômeno particular,

especificamente alemão, gerado sob as condições de individualismo excessivo e de alheamento político da nascente burguesia cultana segunda metade do século XVIII. Possivelmente a mais conhecida defesa do Bildungsroman como fenômeno tipicamente alemãofoi feita por Thomas Mann em suas Confissões de um apolítico:

Existe, no entanto, uma variedade do romance que é acima detudo alemã, tipicamente alemã, legitimamente nacional; trata-se precisamente do Bildungs- e do Entwicklungsroman de cunho autobio

gráfico ... O predomínio desse tipo de romance na Alemanha, assimcomo sua singular legitimidade nacional, coincidem exatamente como conceito alemão de humanidade, ao qual, sendo ele produto deuma época em que a sociedade se atomizou, fazendo de cada cidadão um representante particular do gênero humano, vem faltando,desde sempre, o elemento político. (Mann, 1960, v.XI, p.702)

Assim, a definição do Bildungsroman por Dilthey, ao mesmotempo em que insere o termo no discurso crítico mais amplo, atrela-

o à idéia de "produto tipicamente alemão", conjunção que se legitimou e foi incorporada ao discurso crítico sobre o Bildungsroman.

Três décadas depois da intervenção de Dilthey, o livro deMelitta Gerhard, Der deutsche Entwicklungsroman bis zu Goethes'Wilhelm Meister' [O romance alemão de desenvolvimento até o'Wilhelm Meister' de Goethe], de 1926, é o terceiro marco produtivo que, já no século XX, deverá contribuir para a determinaçãodo conceito Bildungsroman.

Gerhard introduz no discurso crítico o termo Entwicklungsroman (romance de desenvolvimento) entendido como categoriageral e supra-histórica, a partir do qual se teria desenvolvido acategoria historicamente localizada e datada do Bildungsroman.Sob o termo Entwicklungsroman Gerhard entende

todas as obras narrativas que tenham por objeto a problemática doconfronto entre o indivíduo e a realidade de sua época, de seu amadurecimento gradual e sua adaptação ao mundo, sempre que se

possam reconhecer os pressupostos e objetivos dessa trajetória.(1926, p.l)

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Gerhard propõe uma definição do Entwicklungsroman comouma forma literária de significado bastante generalizado, cuja delimitação se deve menos ao recorte das circunstâncias históricasdo que ao "significado poético simbólico" do processo representado, o que possibilitaria a compreensão da existência do gêneropara além das especificidades nacionais e históricas.

Entretanto, o gênero universal Entwicklungsroman conheceria, segundo Gerhard, sua particularização no âmbito específicoda história do espírito na Alemanha. A "crescente preocupaçãocom a vida interior" teria levado à problemática do confron-tamento do indivíduo com o mundo circundante, questão essa

que se particulariza, passando a correr paralelamente à linha dahistória do romance de expressão alemã.

Guiando-se por um raciocínio historicista, Gerhard aponta ummovimento evolucionista da história literária que, iniciado a partirdo marco instituído pelo Agathon (1773-1794) de Wieland, iria culminar no nascimento do Bildungsroman moderno, plenamente realizado e inaugurado em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister.

Segundo Gerhard, o que diferencia Os anos de aprendizado

de seus antecessores, permitindo sua compreensão como modeloconstituinte do "moderno Bildungsroman" é o "impulso para aauto-formação, que atuando sobre o herói desde a juventude,move-o para adiante" (Ibidem, p.l34, grifo deste autor).

Contemporâneo da obra de Gerhard, o artigo de Ernst LudwigStahl Die Entstehung des deutschen Bildungsromans im XVIII. Jh.[O surgimento do Bildungsroman alemão no século XVIII], 1934,compartilha da opinião que inscreve o Bildungsroman como des

dobramento necessário da concepção cultural e histórica vigentena segunda metade do século XVIII. Stahl identifica como principal característica temática do Bildungsroman "a idéia do vir-a-ser" (die Idee des Werdens), a qual se associa aos "interesses psicológicos e pedagógicos" da época.

Em consonância com a idéia do alinhamento entre a manifestação estética Bildungsroman e um momento histórico específico, Stahl defende ainda essa "forma especial do romance" como

um reflexo imediato dos ideais de formação dos autores, e, maisdo que isso, como a configuração das aspirações e ideais da pró-

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pria época. Assim, "os escritores não mais criam a partir da própria inspiração. Eles dependem, em sua maioria, dos pensadoresde seu tempo, pertencem a tendências, representam as concep

ções da época" (Stahl, in: Selbmann, 1988, p.126).Sob a expressão "pensadores de seu tempo" e "concepções

da época" podem-se abrigar desde o pensamento racionalista deImmanuel Kant até os princípios pedagógicos de Basedow ePestalozzi, nomes que marcam o final do século XVIII alemão pelapreocupação com a educação intelectual e física do indivíduo. Emum momento, portanto, em que as aspirações da classe burguesaorientam-se em direção à aquisição de cultura pessoal e do exer

cício da educação como forma de aperfeiçoamento do indivíduo,em um momento em que o indivíduo burguês torna manifestoseu impulso de superação da estreiteza de ideais inerentes à suaorigem social em direção à possibilidade de "formação universal", o Bildungsroman surge como manifestação necessária dessabusca. Stahl, assim como Gerhard, dirige a compreensão do

 Bildungsroman como manifestação exemplar do "individual-uni-versal". A busca pela "formação universal" mostra-se ao mesmo

tempo como uma necessidade particular do indivíduo, como nocaso exemplar do próprio criador do termo Bildungsroman, KarlMorgenstern, e como ideal comum ao todo da humanidade.2

As definições do Bildungsroman por Morgenstern, Dilthey,Gerhard e Stahl constituem então o complexo original a partir doqual se construirão as definições posteriores do conceito. Os traçosdeterminantes levantados a partir desses quatro autores se deixarão, portanto, reconhecer e reproduzir nas concepções posteriores.

O levantamento dessas concepções irá demonstrar que elaspouco divergem entre si ou em relação a seus modelos originais. Éapenas a partir dos anos 80 do século XX que o conceito Bildungs-

2 Confira-se a respeito também Wilhelm Vosskamp (1986, p.341) , sobre amesma questão: "A ênfase sobre o indivíduo singular, o qual, em sua condição ideal logra representar o gênero humano, contempla não apenas o caráter utópico do projeto 'formação', como também ilumina o arcabouçocontextual no qual Os anos de aprendizado de Goethe foram imediatamente

recebidos e discutidos: a 'formação do indivíduo' remete continuamente à'formação coletiva da humanidade'".

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roman será problematizado em relação mesmo às concepções quelhe deram origem, por meio de uma perspectiva crítica.

AS DEFINIÇÕES "REPRODUTIVAS" DO BILDUNGSROMAN

De acordo com a tipologia proposta por Melitta Gerhard emseu livro de 1926, as enciclopédias literárias apontam o Bildungs-roman como uma forma particularizada, específica de uma dadaconjuntura histórica, recortada sobre a forma geral e "supra-histó-rica" do Entwicklungsroman (romance de desenvolvimento). Entretanto, como se verá no próprio enunciado das definições, atentativa de delimitação entre um e outro conceito é insuficientepara que se possa constituir uma tipologia. Além disso, as obrasenumeradas ora aparecem sob a égide do Entwicklungsroman, oraclassificadas como Bildungsromane, o que exclui qualquer possibilidade de distinção. Soma-se ainda a esses dois termos um terceiro,Erziehungsroman (romance de educação ou romance educativo),termo sob o qual os autores entendem obras de cunho pronun

ciadamente pedagógico, nos quais a intervenção de instituições oude mentores se faça sentir pela realização efetiva de um programapedagógico, como no Emílio de Rousseau. Porém, mesmo aí, emque a delimitação mais conclusiva de um dos termos se anuncia, astrês denominações se confundem, sendo mesmo afirmado que os trêstermos são usados freqüentemente como sinônimos.

As definições apresentadas pelas enciclopédias literárias, aquiconsideradas de 1958 a 1984, pouco contribuem para o estabeleci

mento de uma definição mais nítida do Bildungsroman. Os verbetes,que em certa medida se repetem uns aos outros, trazem definiçõesvagas e abstratas, ao mesmo tempo em que falham em delimitar umcorpus constitutivo do Bildungsroman, como se verá a seguir.

A partir da Kleines Lexikon der Weltliteratur [Pequena enciclopédia da literatura universal], 1956, de H. Pongs, ao lado da Reallexikon der deutschen Literaturgschichte [Real enciclopédia dahistória da literatura alemã], passando pela Kleines Literarisches

 Lexikon [Pequena enciclopédia literária] (1961, org. de WolfgangKayser), pelo Sachwörterbuch der Literatur [Dicionário de litera-

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tura], 1961, de Gero von Wilpert, pela Metzler Literatur Lexikon[Enciclopédia Metzler de literatura], de 1984, e Meyers Kleines

 Lexikon - Literatur [Pequena enciclopédia Meyers - Literatura],de 1986, reitera-se a cristalização do Bildungsroman, que se origina nos pressupostos reconhecidos já por Wilhelm Dilthey, KarlMorgenstern e, no século XX, Melitta Gerhard.

O Bildungsroman é considerado, no repertório citado, comoum fenômeno de natureza histórico/literária, cujas origens se confundem em meio à própria "história do espírito alemão". O excesso de subjetivismo, o caráter reconhecidamente apolítico daincipiente classe média alemã, bem como o desejo burguês por

uma formação universal e pelo equilíbrio entre a subjetividade ea coletividade formam o núcleo de circunstâncias que serão consideradas pela historiografia como a origem do Bildungsroman.

Ao mesmo tempo que consideram o Bildungsroman como umfenômeno extremamente datado em suas origens, as definiçõesnas enciclopédias literárias apontam também uma linhagem deobras que ultrapassa as condições limitadas dessa mesma origem,indicando um processo de expansão do gênero em direção às fron

teiras nacionais e temporais. Decorrem daí as inúmeras listas de Bildungsromane, nas quais se encontram obras em língua alemã eem língua estrangeira (inglês, francês) ao longo de um períodoque se estende por quase duzentos anos.

Um levantamento a partir das enciclopédias consultadas permitirá que se vislumbre aquele que se considera hoje o repertório"canônico" do gênero, repertório esse suficientemente flexível paraabarcar desde as obras consideradas como antecessoras do gênero,

passando pelo momento da gênese em direção a sua expansão:Parzifal (1200-1210), Wolfram von EschenbachSimplicissimus (1668)

Geschichte des Agathons (1776-1767), Wieland Hesperus (1795), Jean Paul Hermann und Ulrike [Hermann e Ulrike] (1780), J. C. WezelOs anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1795-1796)

William Lovell (1795-1796), Ludwig Tieck

Franz Sternbalds Wanderungen [Peregrinações de Franz Sternbald]

(1798), Ludwig Tieck

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 Heinrich von Ofterdingen (1780), Novalis

Titan (1800), Jean Paul

Flegeljahre (1805), Jean Paul

 Ahnung und Gegenwart [Pressentimento e presença] (1815), Joseph

Freiherr von Eichendorff 

Wilhelm Meisters Wanderjahre [Os anos de peregrinação de Wilhelm

 Meister] (1821-1829), Johann Wolfgang von Goethe

 Maler Nolten [O pintor Nolten] (1832), Eduard Mörike

 Der Grüner Heinrich [Henrique, o verde] (1854-1855)

Soll und Haben [Débito e crédito] (1855), Gustav Freytag

 Nachsommer [Veranico] (1857) Adalbert Stifter

 Leute aus dem Walde [Gente da floresta] (1862), Wilhelm Raabe Hungerpastor [O pastor da fome] (1864), Wilhelm Raabe

Witiko (1865-1867), Adalbert Stifter

Prinzessin Fisch [Princesa Fisch] (1882-1883), Wilhelm Raabe

Peter Camenzind  (1904), Hermann Hesse

 Demian (1919), Hermann Hesse

Siddharta (1922), Hermann Hesse

 Berlin Alexanderplatz (1920), Alfred Döblin

 A montanha mágica (1924), Thomas Mann Andreas oder die Vereinigten [Andreas ou os associados] (1930), H.

von Hoffmanstahl

O homem sem qualidades (1930-1942), Robert Musil

 José e seus irmãos (1933-1943), Thomas Mann

O jogo das contas de vidro (1933), Hermann Hesse

 Dr. Faustus (1947), Thomas Mann

O tambor  (1954), Günter Grass

Felix Krull (1954), Thomas Mann

Obras críticas mais recentes, como o livro de Jürgen Jacobs

 Der deutsche Bildungsroman [O romance de formação alemão],

1989, incluem ainda outras obras da literatura pós-1945:

 Die Strudlhofstiege (1951), Heimito von Doderer

Em busca de Christa T. (1968), Christa Wolf 

 Die neuen Leiden des jungen W [Os novos sofrimentos do jovem

W] (1973), Ulrich Plenzdorf  Breve carta para um longo adeus (1972), Peter Handke

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Jacobs acrescenta ainda o que chama de "romance de formação socialista", encontrando exemplos nas seguintes obras:

Erziehung vor Verdun [ A educação antes de Verdun] (1940), ArnoldZweig

 Abschied [Despedida] (1940), Johannes R. Becher

A par do corpus em língua alemã, as enciclopédias nomeiamtambém romances de outras literaturas nacionais:

 David Copperfield (1849-1850), Charles DickensSartor Resartus (1833-1834), Thomas Carlyle

 Jean Christophe (1904-1912), Romain Rolland

Tom Jones (1747), Henry Fielding

Nas enciclopédias mais recentes, como a Metzler  de 1984,figuram como Bildungsromane sem quaisquer reservas romancesdo século XX alemão, mesmo que, em boa parte deles, como noFelix Krull de Mann e O tambor de Grass, o conceito tradicionalde formação tenha sido subvertido ou mesmo invertido.

A enciclopédia Literatur-Brockhaus, edição de 1988, consi

dera Bildungsroman "uma forma do Entwicklungsroman limitada predominantemente à literatura de língua alemã, que se desenvolveu a partir do romance sentimental de viagem, daautobiografia pietista e do romance de caráter autobiográfico-psi-cológico (K. Ph. Moritz, Anton Reiser, 1785-1790) no contextodo classicismo de Weimar" (p.244).

A definição citada repete os mesmos pressupostos que orientam as anteriores, como a conceituação de Entwicklungsromancomo forma universal e supra-histórica, ao mesmo tempo em queaponta para uma linha genealógica do Bildungsroman, preocupação até então ausente das definições anteriores. Concordando queo Bildungsroman é uma forma restrita à literatura de língua alemã, desenvolvida no contexto do classicismo weimariano, a

 Brockhaus considera como paradigma atuante na história do gê

nero os romances de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister  (1795-1796) e Wilhelm Meisters Wanderjahre, de 1821,

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versão ampliada em 1829. Dessa forma, o paradigma assim considerado contém a representação de uma história individual daformação de um protagonista jovem que vivencia "um complexoprocesso de socialização por entre instâncias coletivas (teatro,boêmia, aristocracia, província pedagógica), alienado em relaçãoao aspecto político e que termina como 'renunciante' (Entsagender)em uma profissão burguesa".

Ao considerar também Os anos de peregrinação como constituinte do paradigma do Bildungsroman clássico, a Brockhaus levanta uma questão teórica que vai além da simples definição dotermo; se, ao contrário do que a grande maioria da crítica afir

ma, o terceiro romance da trilogia do Meister integra a constituição do paradigma, o Bildungsroman não poderá mais ser entendido como expressão máxima do conceito humanístico-filosóficoda formação universal, como o encontramos em Stahl e comotoda a crítica tradicional o entende. O subtítulo do terceiro romance do Meister, Die Entsagenden - [Aqueles que renunciam],contém já a indicação da impossibilidade do projeto idealista daformação individual-universal como o desejava Meister em Os

anos de aprendizado; em Os anos de peregrinação, o papel do protagonista é diluído e relativizado, como indício da impossibilidade da formação pessoal, individual, em proveito de uma socialização e especialização profissional.

Diferentemente também de seus predecessores, a enciclopédia Brockhaus situa o romântico Heinrich von Ofterdingen deNovalis como contraposição ao conceito socializante do paradigmaconstituído pelos romances do Meister, e não como um herdeiro

direto de sua tradição. Sabidamente, o romance de Novalis foiconcebido como um "anti-Meister", como um antídoto romântico ao "prosaísmo e mercantilismo" identificados por Novalis emOs anos de aprendizado de Wilhelm Meister. O verbete da

 Brockhaus recupera assim um sentido crítico, não consideradopelas enciclopédias literárias anteriores.

A Brockhaus considera ainda o Kater Murr  de E. T. A.Hoffmann [O gato Murr], de 1819-1821 - citado pela primeira

vez nas enciclopédias -, como paródia, o Titan de Jean Paul e Der grüne Heinrich de Gottfried Keller como crítica ao programa de

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formação estética ensejado nas obras paradigmáticas do gênero;reconhece que, já no século XX, autores como Hermann Hesse,Rilke, Musil e Thomas Mann, entre outros, retomam a tradiçãodo Bildungsroman, que se deixa encontrar então sob um "formafraturada, abalada" (gebrochene Form). Entre os autores do século XX que assim se teriam ocupado da tradição do Bildungsroman,a Brockhaus cita ainda, Franz Kafka, Max Frisch, Thomas Bern-hard, Peter Handke e Botho Strauss.

É bastante perceptível, no verbete da Brockhaus para o Bildungsroman, a inserção de uma perspectiva crítica, até entãoausente das enciclopédias literárias, que se limitavam a reprodu

zir quase que mecanicamente os conteúdos anteriores, sem a preocupação de confrontar e averiguar os dados recebidos.

O verbete da Brockhaus reflete assim um momento em que ahistória da literatura alemã passou a refletir sobre a constituiçãode um dos seus mais significativos cânones, o Bildungsroman.Editada em 1988, a Literatur-Brockhaus traz, na indicação bibliográfica, obras consideradas revisionistas como o livro de JacobsWilhelm Meister und seine Brüder [Wilhelm Meister e seus irmãos]

de 1972, e o de Dieter Sorge, Gebrochener Teleologie. Studien zum Bildungsroman von Goethe bis Thomas Mann [Teleologia interrompida; estudos sobre o Bildungsroman de Goethe a ThomasMann], de 1983.

Quanto ao Entwicklungsroman, a Brockhaus repete os conceitos e lista de obras já apresentados por outras enciclopédias;acrescenta, porém, que a socialização do protagonista, em taisromances, pode "ser narrada como a história do aperfeiçoamen

to ou deformação, trajetória utópica ou desilusão, adaptação ounegação e renúncia, ascensão ou descensão social, na qual seentrecruzam freqüentemente vetores positivos, negativos e aqueles que conduzem à estagnação" (p.604).

A Literatur Lexikon [Enciclopédia de literatura], organizadapor Walther Killy e publicada em 1992, institui um marco nadefinição do Bildungsroman nas enciclopédias literárias. O verbete Bildungs- und Entwicklungsroman, assinado por Georg

Stanitzek, procura, em vez de estabelecer uma definição, situar oconceito em meio ao contexto da história social, e da relação

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entre as diferentes obras literárias. Stanitzek condiciona a compreensão do termo Bildungsroman ao entendimento das circunstâncias históricas que o geraram. Aponta como acontecimentofundamental para o estabelecimento do termo Bildungsroman porKarl Morgenstern o momento da história do romance em queeste deixa de ser considerado uma literatura menor, ou mesmouma literatura marginal, voltando-se para o centro do conjuntodos gêneros literários. Considera que a conjunção dos termos

 Bildung e Roman seria tomada por paradoxal, na metade do século XVIII, momento em que ao termo romance se associava aidéia de uma 'história de amor". Para Stanitzek, a conjugação só

se tornou possível a partir da existência de uma nova camada depúblico leitor, que assegurou o sucesso do gênero.

Stanitzek considera Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister como o "protótipo do gênero"; ao contrário, porém, das definições anteriores, esta não situa apenas o paradigma sem discuti-locriticamente; Stanitzek reconhece que o aparecimento de Os anosde aprendizado trouxe consigo um debate que perdura ainda hoje,debate esse que se traduz na pergunta: como se deve ler esse

texto temporalmente determinado? Acolhendo as críticas de Hegele de Friedrich Schlegel em seu verbete, Stanitzek chega mesmo aafirmar que "mesmo em relação ao Wilhelm Meister, pode-se questionar se o protagonista percorre efetivamente um processo deformação em uma acepção neo-humanística do termo" (p.120).

No fim de sua exposição, na qual insere cada obra no contexto crítico da conceituação do Bildungsroman, Stanitzek pergunta-se se o Bildungsroman seria uma forma esgotada no século

XX, denotando assim a sintonia do verbete com a crescenteproblematização crítica do conceito. Considera uma "questão quepermanece aberta" se obras como Berlin Alexanderplatz, deDöblin, O homem sem qualidades, de Musil, ou Amerika, de Kafka,podem ser interpretadas à luz do modelo do Bildungsroman.

No último parágrafo do verbete, Stanitzek expõe o que acredita ser o motivo do crescente recurso ao modelo do Bildungsroman para a interpretação de obras individuais. A classificação

de obras sob o gênero Bildungsroman, freqüente na "crítica literária folhetinesca", seria um indício da superexposição do termo,

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fato decorrente da notável facilidade de manipulação do conceito, capaz de incluir um grande número de obras sob um gênerodotado de grande reconhecimento e aceitação pelo público e pelacrítica. O adjetivo "folhetinesco", empregado por Stanitzek, refere-se, em alemão, tanto aos suplementos culturais dos grandes jornais (Feuilletons) quanto a uma crítica superficial e pouco científica. A alusão tem a intenção de censurar o emprego leviano dotermo sem que se problematize o conceito.

O verbete Bildungs- e Entwicklungsroman na Literatur Lexi-kon de 1992 é, portanto, o primeiro a refletir um reposicionamento crítico ante o Bildungsroman. É significativo que o verbeteassinado por Georg Stanitzek furte-se a propor uma definição nítida do que entende por Bildungsroman, ao mesmo tempo em quepraticamente despreza a distinção entre Bildungs- e Entwicklungsroman. Para Stanitzek, eventuais definições tipológicas não sãosuficientes para abarcar um conceito cuja amplitude é antes detudo histórica.

A apreciação do conjunto constituído pelas definições já citadas pode conduzir a algumas conclusões importantes. A pri

meira delas é que a grande maioria das definições do Bildungsroman é unânime quanto ao fato de que o conceito foi gerado noperíodo do classicismo weimariano, atribuindo-se assim ao conceito uma especificidade já em sua origem. A definição de WilhelmDilthey para o Bildungsroman, que o atrela a um pressupostohistórico particular, é efetivamente a base para todas as definições já comentadas.

Ao mesmo tempo, porém, em que todas as definições anali

sadas são unânimes em considerar o Bildungsroman uma manifestação especificamente alemã, abre-se espaço para um possívelalargamento do conceito, permitindo que se incluam obras pertencentes a outras literaturas nacionais. Essa ampliação estende-se também pelo eixo temporal; mesmo aqueles autores que consideram impossível a sobrevivência, no século XX, de formasliterárias que expressem um conteúdo de desenvolvimento pessoal linear, indicam exceções e formas de continuidade para além

do período histórico de origem. As definições tradicionais do Bildungsroman oscilam portanto entre a atribuição de uma

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especificidade que o caracterizasse de maneira bastante incisivacomo forma literária peculiar de uma época e nacionalidade únicas e a tendência de ampliação desses limites.

Essa problemática, que vem se mostrando como uma questãopermanente, reflete-se na tentativa de se estabelecer definições paraum conceito mais generalizado, de alcance supra-histórico, sob otermo de Entwicklugsroman, em oposição a um "subtipo" que permitisse então a expressão das especificidades, sob o termo de Bil-dungsroman. Essa tentativa, que tem origem no trabalho de MelittaGerhard, mostra-se, porém, improdutiva, na medida em que as tentativas de definição de um e de outro termo não são concludentes,

não oferecem instrumentos ou um corpus que permita encaixar asobras isoladas sob um ou outro tipo; ao contrário, a cada verbeteconsultado, variam consideravelmente as obras classificadas como

 Bildungs- ou Entwicklungsromane. Além disso, os autores não hesitam em afirmar que os termos são freqüentemente usados comosinônimos, o que invalida qualquer distinção tipológica a partir dessanomenclatura.

Obras consideradas por um autor como exemplos acabados

de Entwicklungsromane surgem, em outros autores, como exemplares Bildungsromane. Há casos ainda de obras citadas apenaspor um autor como integrantes do rol de Bildunsgromane, comoé o caso do Tom Jones de Fielding, citado, até onde se saiba, unicamente por Gero von Wilpert em seu Sachwörterbuch der 

 Literatur, ou ainda da obra de Carossa e Vinzenz Erath Richard,Church e Faulkner, citados apenas por Hermann Pongs como autores de Entwicklungsromane do século XX.

Da mesma forma, autores como Thomas Mann e HermannHesse têm obras suas citadas como paródia do Entwicklungsroman(referência de Pongs a A montanha mágica) e como alusão simbólicaao gênero (O jogo das contas de vidro), únicas formas capazes deexpressar a manifestação do Bildungsroman em um século como onosso, o da fragmentação do processo linear de formação e desenvolvimento. Contraditoriamente, no Sachwörterbuch de Wilpert, omesmo O jogo das contas de vidro, acompanhado agora do Peter 

Camenzind, é citado como herdeiro legítimo e direto do Entwicklungsroman, representado em seu ponto mais alto pelo Meister de

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Goethe. O mesmo Wilpert alinha também o Dr. Faustus de Mannsob essa tradição, sem referir-se porém a A montanha mágica.

A tentativa de se isolar um corpus definidor do Bildungsromana partir de uma lista de obras pertencentes ao gênero mostra-separticularmente insuficiente se considerarmos como critério amenção das mesmas obras em cada lista.

Uma comparação entre as 6 enciclopédias literárias consideradas até 1986, (excluindo-se portanto, a Literatur-Brockhaus de 1988e a Literatur Lexikon de 1992, que não estabelecem uma lista deobras pertencentes ao gênero, mas sim problematizam o próprioconceito Bildungsroman) preocupadas em apresentar uma lista de

obras pertencentes ao gênero tanto do Entwicklungsroman comodo Bildungsroman, indicará que há apenas 4 obras citadas em comum por todas as seis enciclopédias. Trata-se de Os anos de aprendizado (1795-1796), de Goethe, Der Grüner Heinrich [Henrique, oVerde], de Gottfried Keller, Der Nachsommer [Veranico], de Stifter,e Glasperlenspiel [O jogo das contas de vidro], de Hermann Hesse.É preciso ainda levar em conta o fato de que boa parte dos verbetesconsultados constitui mera reprodução de verbetes anteriores, o que

contribui para a escassa confiabilidade do critério "obras pertencentes ao gênero". Ainda, os quatro romances citados não possuem,entre si, características comuns que os diferenciem especialmentede outras obras também consideradas Bildungsromane, podendoser incluídas, ao lado destas, sob as definições generalizantes doconceito. Trata-se efetivamente de obras bastante significativas, asquais, entretanto, não poderiam sustentar por si próprias a idéia deexistência de um gênero.

O critério reduz, portanto, a possibilidade de se estabelecerum elenco de Bildungsromane reconhecidos universalmente pelacrítica.

A terceira conclusão que se adianta é que as definições são, emsua totalidade, de carater conteudístico-temático. Como já foiafirmado, apenas a opção por uma definição conteudística é capaz desustentar a necessária generalidade presente à sustentação do gênero.

O trabalho de Jürgen Jacobs ilustrará claramente a tensão a

que se submete uma definição do Bildungsroman na medida em quepropõe uma "concepção flexível" do gênero, como se verá a seguir.

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O GÊNERO "FLEXÍVEL"

Jürgen Jacobs, em seu livro de 1989 sobre o Bildungsroman,

propõe uma sistematização das características capazes de recortar os limites do Bildungsroman em relação a outras formas deromance. Em oposição a uma compreensão estreita do gênero,delimitada pela concepção de Bildung peculiar ao Goethezeit  (época goethiana), propõe uma definição para o Bildungsroman a qual,por sua extrema generalidade e flexibilidade, é capaz de "dar conta" da grande diversidade que se abriga sob o conceito.

Devem ser consideradas como pertencentes ao gênero obras

em cujo centro esteja a história de vida de um protagonista jovem, história essa que conduz, por meio de uma sucessão de enganos e decepções, a um equilíbrio com o mundo. Esse equilíbrioé freqüentemente descrito de forma reservada e irônica; entretanto, ele é, como meta ou ao menos como postulado, parte necessariamente integrante de uma história da "formação" (Jacobs,1989, p.37).

A essa definição acrescenta-se o que Jacobs considera "carac

terísticas do Bildungsroman":• o protagonista deve ter uma consciência mais ou menos explí

cita de que ele próprio percorre não uma seqüência mais oumenos aleatória de aventuras, mas sim um processo de autodes-cobrimento e de orientação no mundo;

• a imagem que o protagonista tem do objetivo de sua trajetóriade vida é, em regra, determinada por enganos e avaliações equivocadas, devendo ser corrigidas apenas no transcorrer de seu

desenvolvimento;• além disso, o protagonista tem como experiências típicas a se

paração em relação à casa paterna, a atuação de mentores e deinstituições educacionais, o encontro com a esfera da arte, experiências intelectuais eróticas [sic], experiência em um campoprofissional e eventualmente também contato com a vida pública, política.

Após a enumeração das características que considera constituintes do Bildungsroman como gênero, Jacobs afirma que "na

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configuração e valorização desses motivos, os diversos romancesdiferenciam-se de forma extraordinária. Entretanto, pela orientação para um fim harmonioso, eles recebem necessariamente umaestrutura teleológica" (Ibidem, 1989, p.37).

Fica clara, portanto, a opção pelas características predominantemente conteudísticas, em detrimento das formais. Estas, emvez de traços diferenciadores, são apenas o suporte decorrente doelenco temático/conteudístico, não conduzindo, portanto, a umcorpus definidor.

O Bildungsroman mostra-se então como uma forma literáriadefinível apenas a partir da grande Bildungs-Frage, da grande ques

tão da formação, considerada não apenas em relação ao momentoespecífico de sua gênese, mas por meio das diferentes épocas históricas. Por um mecanismo de atualização, a formação no sentidoamplo, como a considera Jacobs, ultrapassa os limites históricosda gênese do conceito Bildungsroman, universalizando-se na medida em que se alarga o programa narrativo que define o gênero. Épreciso ressaltar que a abrangente definição de Bildungsroman proposta anteriormente constrói-se a partir de características bastante

variáveis, o que se pode comprovar pelo próprio enunciado da definição, na qual o uso freqüente de advérbios tem a função de permitir e indicar a possibilidade de variação ou mesmo a ausência dedeterminadas características.

Uma definição ampla do Bildungsroman há que incluir, portanto, as oscilações perceptíveis na evolução histórica do conceito,neutralizando-as na medida em que as reconhece como características constituintes do gênero. Isso significa que a existência do

 Bildunsgroman como gênero é possível apenas se admitirmos umacontínua alteração de seus pressupostos, a qual se desenha a partir de um programa narrativo básico. Esse programa, conforme aprópria definição que Jacobs indica, constitui-se necessariamentea partir do romance de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm

 Meister.Um olhar sobre a genealogia literária do Bildungsroman irá

permitir, por sua vez, que se contemplem os diversos discursos

atuantes tanto na formação do conceito como na composição deOs anos de aprendizado de Wilhelm Meister.

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A G E N E A L O G I A

A idéia da existência de uma categoria como o "gênero literário" permite a inserção do particular no universal, da obra singularno universo coletivo de suas semelhantes. Ao longo de sua história,o conceito de gênero, por meio de avanços e recuos, permitiu quese refletissem as mais diversas concepções da matéria literária.

Desde a concepção evolucionista e teleológica de Brunetière,que anuncia o percurso "natural" dos gêneros, de acordo com aconcepção cientificista do século XIX ("Um gênero nasce, cresce,alcança sua perfeição, declina e enfim morre"), até o ataque radical de Croce à idéia de gênero, de imitação e à concepçãohistoriográfica, ressaltando o caráter intuitivo e individual da obracomo expressão única, o conceito de gênero vem permitindo aveiculação de posicionamentos fundamentais de orientação sobrea organização, tipologia e até mesmo interpretação da literatura.

Predominantemente normativa, a teoria dos gêneros nuncafoi abandonada, embora seus pressupostos tenham variado ao longo do tempo.

Uma abordagem contemporânea do fenômeno literário há quenecessariamente tomar posição ante a questão dos gêneros. Semromper definitivamente com a tradição morfológica, que classifica a obra singular em relação ao parâmetro formal constituídopelo cânone, a abordagem genealógica permite que se investigue,ao lado das semelhanças formais, a própria história do gênero. Aobra literária singular passa então a ser considerada a partir desuas relações com o universo literário preexistente, bem como com

aquele que lhe é contemporâneo. Historiar a obra significa captá-la na dinâmica dos processos de sintetização, empréstimo, transformação e exclusão que ocorrem entre as várias obras singularesque constituem um determinado universo literário. A visão globaldesses processos, ao focalizar sua dinâmica, deverá resultar naquiloque se poderia chamar de história do gênero, ou seja, na históriado estabelecimento e legitimação de uma determinada forma deexpressão literária.

No âmbito da historiografia literária, a trajetória de constituição do Bildungsroman se firma e se confunde com a própria

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história do romance na Europa. Apenas uma abordagem ge-nealógica, que leve em conta a relação da obra paradigmática do

 Bildungsroman com outras obras e gêneros afins, poderá dar conta de iluminar nossa própria compreensão contemporânea do fenômeno assim constituído.

O modelo teórico que fundamenta tal abordagem sustenta-sena idéia da existência de obras paradigmáticas capazes de constituir uma tradição, como é o caso das epopéias homéricas, dosromances epistolares de Richardson e de obras como a Utopia deMorus. Em cada um desses casos, uma única obra foi capaz de ampliar seus efeitos e sua recepção para além do círculo mais imediato de leitores. Em casos como a representação da sociedadeideal de Morus, a obra original passa a definir, por meio de umprocesso metonímico, narrativas compostas à luz do modelo porela fornecido. Um dos casos mais representativos desse processofoi a extraordinária recepção do romance Robinson Crusoe (1719),de Daniel Defoe, junto ao público leitor de língua alemã. Em 1731,contavam-se 15 romances na Alemanha que tiveram por modeloo Robinson, e o título do romance original passou a constituir

um gênero, a Robinsonade (Robinsoníada), narrativas nas quaisse representavam histórias de naufrágios e ilhas.

O processo de constituição de um gênero realiza-se, portanto,como reação ante a tradição literária que o antecede, bem comoperante demandas e constelações históricas contemporâneas desseprocesso. A experiência de leitura do público tem papel fundamental, uma vez que é por meio dela que se veicula a tradição literáriapreexistente, e que se realizam as tradições por estabelecer.

As confissões e o Emílio de Rousseau

Traçar uma linhagem literária do conceito Bildungsromansignifica menos localizar influências diretas do que isolar as disposições culturais, literárias e intelectuais favoráveis a seu surgimento.

As autobiografias intelectuais como As confissões (1791) deJean-Jacques Rousseau, são pressuposto fundamental para o

estabelecimento de uma tradição romanesca da formação e dodesenvolvimento.

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Em suas Confissões, Rousseau utilizou procedimentos deinvestigação interior e de auto-exposição ao público que congregam, pela primeira vez, o desejo do indivíduo burguês de se ver

refletido na obra de arte, ao lado da necessidade de expressão individual. Utilizando a narrativa em primeira pessoa, trechos de correspondência pessoal e o caráter memorialístico e confessional daautobiografia, As confissões prenunciam, no plano estético, o fenômeno essencialmente burguês do Bildungsroman. Faz parte desseelenco a preocupação do indivíduo com sua própria história, comos acontecimentos e personalidades que, intervindo em sua trajetória, configuraram e determinaram gostos, tendências e comportamentos. Na obra autobiográfica de Rousseau, estão presentes aindaquestões relativas à profissão e à sobrevivência de Jean-Jacques emParis, aos arranjos domésticos a que um homem de sua condiçãosocial tinha que se submeter, bem como as intrigas familiares comos parentes de Thérèse, a mulher com quem Rousseau vive e temseus cinco filhos. Essas questões miúdas do cotidiano em uma metrópole como Paris conferem à obra um caráter único no que serefere à constituição do mundo burguês, ao mesmo tempo refletindo e ajudando a estabelecer o moderno comportamento do indiví

duo na sociedade. As relações de Rousseau com a aristocracia e comos intelectuais de seu tempo, como Diderot e Voltaire, contribuempara que As confissões possam ser compreendidas também comoum testemunho histórico da entrada em cena do indivíduo moderno, aquele que realizou a passagem do mérito do nascimento parao mérito individual adquirido.

Entretanto, na autobiografia de Rousseau, a questão da formação da personalidade entra como que de viés, sem que se pos

sa falar da presença direta da preocupação com a educação e coma formação da personalidade.3 Essas questões, essenciais para opensamento da época e para o próprio Rousseau, encontram-secertamente presentes em sua autobiografia. Porém, As confissõesforam escritas sob outra perspectiva, mais determinante no texto,por meio da qual Rousseau, em seu exílio em Londres, visava a

3 Já se tornou antológica a passagem d'As confissões em que Rousseau narra o

destino de seus cinco filhos, todos entregues à educação pública desde o nascimento. Cf. p.236 da edição brasileira (Ediouro).

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um ajuste de contas, um balanço final de sua vida narrado por elemesmo com vistas a influenciar a opinião pública contemporânea. O grande objeto d'As confissões, ao longo de todas as suas

páginas, é o cidadão genebrino e o indivíduo Jean-Jacques Rousseau, sua história pessoal, suas motivações e seus julgamentos dasociedade contemporânea.

Segundo Jürgen Jacobs, As confissões de Rousseau caracterizama disposição intelectual que irá estabelecer os pressupostos do Bil-dungsroman. Ou seja, As confissões de Rousseau prenunciam o Bildungsroman no sentido em que se constituem como resposta,como reação à necessidade burguesa de expressão individual.

Se As confissões de Rousseau celebram a auto-reflexão, abrindoespaço para a memória individual e a autocrítica, o Emílio (1762)traz em si por sua vez a noção de que a educação deverá respeitaro caráter individual inerente a cada homem.

Emílio ou Da educação é  a obra de Rousseau que constituiefetivamente um marco na história da educação moderna. Considerando os diferentes estágios da personalidade infantil e juvenil,Rousseau diferencia o indivíduo não-adulto do adulto, preconizando ao primeiro um programa educativo capaz de formá-lo de

acordo com suas habilidades e tendências naturais, pela intervencão de um preceptor.

A recepção do livro, censurado e queimado na França, porém de grande alcance no resto da Europa, a ponto de a entãorainha da Suécia mandar vir um negrinho da África para educá-losegundo os preceitos rousseaunianos, denota a existência de umdiálogo, em alguns casos, direto entre as obras literárias dos últimos trinta anos do século XVIII e o "romance educativo" de

Rousseau.A questão central que subjaz a todo texto compreendido pela

historiografia literária como Bildungsroman é  a questão do aperfeiçoamento individual. O conceito de perfectibilité  (perfectibi-lidade) entra em circulação no discurso intelectual da segundametade do século XVIII por intermédio de Rousseau. Em seu segundo Discours sur l'origine et les fondements de l'inégalité parmiles hommes, Rousseau reconhece uma severa dicotomia entre o

estado natural do homem e o estado da civilização, alcancado pelodesenvolvimento da Razão. A "capacidade de se aperfeiçoar"

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(faculté de se perfectioner) está reservada apenas ao estado da cultura, ao homem civilizado. Ao mesmo tempo, é também no estado da civilização que ocorre a corrupção. Rousseau acredita queo gênero humano tanto mais se distancia de seu estado original àmedida que progride na civilização. Assim, o desenvolvimento dohomem a partir de suas qualidades e tendências naturais mostra-se irreconciliável com o aperfeiçoamento intelectual voltado paraa civilização e para a sociedade. Em Emílio, essa dicotomia ficaainda mais clara, quando Rousseau (1994, p.11) distingue claramente entre a educação pública e a privada, respectivamente destinadas ao "cidadão" e ao "homem":

O homem natural é tudo para si mesmo; é a unidade numérica,o inteiro absoluto, que só se relaciona consigo mesmo ou com seusemelhante. O homem civil é apenas uma unidade fracionária quese liga ao denominador, e cujo valor está em sua relação com otodo, que é o corpo social. A boas instituições sociais são as quemelhor sabem desnaturar o homem, retirar-lhe sua existência absoluta para dar-lhe uma relativa, e transferir o eu para a unidadecomum, de sorte que cada particular não se julgue mais como tal, e

sim como uma parte da unidade, e só seja perceptível no todo.

E, adiante,

Para ser alguma coisa, para ser si mesmo e sempre uno, épreciso agir como se fala; é preciso estar sempre decidido a respeito do partido a se tomar, tomá-lo abertamente e continuar semprecom ele. Estou esperando que me mostrem esse prodígio parasaber se ele é homem ou cidadão, ou como faz para ser ao mesmotempo um e outro.

Dessas duas coisas necessariamenre opostas decorrem duas formas contrárias de educação: uma pública e comum, outra particular e doméstica. (Ibidem, p.l2)

Em Rousseau, o conceito de "perfectibilidade" encontra-seportanto associado à formação do "cidadão", processo esse irre-conciliavelmente dissociado da formação do "homem" de acordocom seu estado natural.

Dessa forma, a dicotomia proposta por Rousseau diverge claramente da formação representada no Bildungsroman. A questão

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central que perpassa o espaço literário da Alemanha dos últimostrinta anos do século XVIII é a da formação integral do indivíduo,harmonizando e equilibrando suas tendências e talentos naturaisao lado de sua formação para a sociedade. É possível reconhecer,portanto, uma assimilação do conceito de perfectibilidade deRousseau que o reinterpreta em sua essência. Goethe assimiloude Rousseau o conceito de uma natureza humana que pode sereducada para a civilização e a cultura a partir de suas disposiçõesinatas. Meister, o protagonista de Os anos de aprendizado, devesim descobrir suas reais aptidões naturais, para utilizá-las entãoem proveito da sociedade e das instituições.

Ao lado disso, é possível identificar pontualmente a presença de Goethe como leitor de Rousseau4 e como interlocutor desua obra, ao longo de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister.A Sociedade da Torre, associação de homens sábios dispostos aeducar e a formar o jovem Wilhelm a partir do que consideramsuas tendências e habilidades naturais, cumpre o papel reservadoao preceptor de Emílio. Também a ausência, ou mesmo a negação, de uma educação livresca, aproxima Meister  de Emílio.

No último livro do romance de Goethe há um longo episódio noqual a personagem Friedrich, o "pícaro louro", de caráter fanfarrão e leviano, relata à Sociedade como adquiriu sua erudição.Trata-se de uma passagem efetivamente cômica, na qual o caráteracadêmico e livresco da educação de então é ironizado erelativizado. Já em Emílio, o único livro ao qual o educando temacesso é o Robinson Crusoe de Daniel Defoe, "livro que constituirá por bastante tempo sua biblioteca inteira", "ao mesmotempo a diversão e a instrução de Emílio...". Também a ausênciada família como educadora repete-se em ambas as obras. Em

4 Que Rousseau não passou despercebido pelo autor do Meister  está mais doque comprovado. Não apenas as semelhanças evidentes entre Otília, de Asafinidades eletivas, e Julie, a heroína de A nova Heloísa, mas também aseguinte passagem da autobiografia de Goethe comprovam-no: "Fora essepríncipe Frederico que, buscando conselhos para a educação de seus filhos,escrevera a Rousseau, cuja resposta célebre começa por estas palavras notá

veis: 'se eu tivesse a infelicidade de ter nascido príncipe...'" (Memórias: poesia e verdade. Trad. L. Vallandro, 1986, p.213).

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Emílio, a condição de orfandade é mesmo pressuposto para atarefa do preceptor: "Emílio é órfão. Não importa que tenha pai

e mãe ... Deve honrar seus pais, mas só a mim deve obedecer"(Ibidem, p.31).Wilhelm Meister, por sua vez, inicia seu processo de desen

volvimento já longe de sua terra natal, em viagem, num estado,portanto, de orfandade social, que se transforma ao longo do percurso em orfandade familiar. Há também identificação entre asfiguras virtuosas de Sophie, a jovem por quem Emílio se apaixona e com quem deverá se casar, e Nathalie, a prometida de Meister.

Ambas foram educadas segundo um padrão que alia virtude moral à atividade e sabedoria doméstica.Prosseguindo ainda na identificação pontual, agora das di

vergências, reconhecemos que Emílio, ao longo de toda a obra, époupado pelo seu próprio preceptor de quaisquer experiênciasefetivamente insatisfatórias, ao passo que o aprendizado de Meisterdeve necessariamente passar pelo erro e pela decepção, traço essecompartilhado pelos outros protagonistas de obras consideradascomo Bildungsromane.

É assim que, por meio de um jogo de semelhanças e divergências, Emílio e As confissões de Rousseau podem ser considerados antecessores genealógicos bastante próximos do Bild-ungsroman, na medida em que antecipam a preocupação doindivíduo consigo mesmo, com sua personalidade e formação,constituindo assim um pressuposto fundamental para o desenvolvimento da literatura realista burguesa da formação e do desenvolvimento.

O romance picaresco

O romance picaresco, gênero que tem origem no século XVIespanhol, é outra grande linhagem da tradição narrativa com aqual o Bildungsroman dialoga.

Efetivamente, são consideráveis as identificações entre a história dos conceitos "romance picaresco" e Bildungsroman. Am

bos têm origem em condições históricas muito bem delimitadas.Enquanto o surgimento da narrativa picaresca na Espanha "pode

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ser encarada como uma forma de conscientização da desintegração do mundo feudal na Espanha" (Gonzáles, 1994, p.229), o

surgimento do paradigma do Bildungsroman, na Alemanha, é contemporâneo do momento de transição entre a economia feudallatifundiária e o prenuncio da fase econômica e política em queos ideais e privilégios da aristocracia serão dissolvidos em meioao tecnicismo e ao cientificismo burguês.

Tendo suas origens inscritas em condições históricas assim tãodemarcadas, ambas as formas narrativas percorrem uma trajetóriaque vai do nascimento do conceito à sua expansão, de maneira que

a linhagem sucessória, embora atrelada à tradição original, nãocompartilhe com essa os mesmos pressupostos históricos e sociaisque favoreceram seu desenvolvimento.

A definição de Maria Casas de la Faunce para o romance picaresco pretende sintetizar tudo o que já se escreveu sobre o conceito, valendo-se prioritariamente do critério conteudístico:

 Defino novela picaresca como una narración fictícia, de ciertaextensión y en prosa, expuesta desde el punto de vista de un enteacomodatício cuya filosofia existencial subjetiva y unilateral enfatizael instinto primario del indivíduo que no ha desarrollado las funciones espirituales ni Ia sensibilidad anticipada en el hombre. En principio, se ocupa de narrar una vida que podríamos denominar vulgar en oposición al personage heroico que destaca por sus méritosespirituales ...El relato, generalmente, sigue un proceso lineal en elque se indican los antecedentes, estado y desenlace o suspenso de laexperiencia del pícaro. El ingenio del personage es el ingrediente quesirve para manifestar su astucia y presa a la obra el tono festivo de laburla que divierte mientras penetra en el leitor produciendo, reflexivamente, la catarsis moralizante o didáctica inherente al género.(Faunce, apud Gonzáles, 1994b, p.245)

Compare-se a definição de romance picaresco de Casas de laFaunce com a definição de Bildungsroman por Jürgen Jacobs(p.37), em seu livro de 1989:

Devem ser consideradas como pertencentes ao gênero obras

em cujo centro esteja a história de vida de um protagonista jovem,história essa que conduz, por meio de uma sucessão de enganos e

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decepções, a um equilíbrio com o mundo. Esse equilíbrio éfreqüentemente descrito de forma reservada e irônica, entretantoé, como meta ou ao menos como postulado, parte necessariamente

integrante de uma história da 'formação'.

A essa definição já por si bastante ampla, Jacobs acrescentaainda o que considera "características do Bildungsroman", entreas quais se encontram, por exemplo, a "consciência mais ou menos explícita" que o protagonista deve ter de sua trajetória deorientação e de autodescobrimento, a "avaliação equivocada" queo protagonista tem, ao início, de sua trajetória de vida, o abando

no da casa paterna, a atuação de mentores etc.A comparação entre as duas definições permite-nos concluirque, por tratarem de manifestações históricas e de grande produtividade na tradição da literatura européia, as definições do

 Bildungsroman e do romance picaresco refletem a amplitude eflexibilidade que cada uma das duas formas deverá forçosamenteexercitar, a fim de abranger o amplo espectro de obras que seabrigam sob cada um dos dois termos.

Quanto às identificações existentes entre as duas formas narrativas entre si, é preciso ressaltar que, no início, o protagonista deambas é um indivíduo que ainda não desenvolveu suas qualidadesespirituais e intelectuais. A trajetória de cada protagonista difere,entretanto.

Enquanto o protagonista dos Bildungsromane alcança, segundo as definições tradicionais do gênero, um equilíbrio no fim desua trajetória, um misto de "harmonia com liberdade", o prota

gonista pícaro pode ascender sim a um estado mais elevado socialou economicamente, porém nunca pelo cultivo de suas qualidadespessoais, mas pela trapaça.

Pode-se dizer que a distinção entre o Bildungsroman em suaconcepção tradicional, e o romance picaresco, sob a mesma perspectiva, decorre fundamentalmente do reconhecimento do "caráter" do herói. O Bildungsroman representaria a trajetória de umindivíduo jovem, bem-intencionado, no fim da qual se poderia re

conhecer um efetivo aperfeiçoamento do protagonista, no sentidode que ele adquire o desejável equilíbrio entre sua conformação

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interior e o mundo exterior das relações sociais. No caso do pícaro,esse bom caráter, essa boa intenção estariam ausentes. O herói picaresco é um anti-herói, aquele que ascende socialmente pela tra

paça. Além disso, conforme afirma Gonzáles, a trajetória do pícaronão conhece paradeiro, trata-se de uma "aventura permanente".

Ocorre, porém, que tal distinção nem sempre se dá de formaclara. No romance de Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm

 Meister, há passagens que efetivamente ficariam muito bem situadas no currículo de um pícaro. A primeira delas enfoca um episódio raramente comentado. Trata-se do diário de viagem queWilhelm Meister forja, com a ajuda de Serio, para tranqüilizar o

pai. Wilhelm descreve ali seu contato com os fornecedores e devedores do velho Meister, sem se esquecer de acrescentar passagens que comprovem o seu recém-adquirido conhecimento dascoisas do comércio, da indústria, e mesmo da geografia local.Constrói assim um verdadeiro diário de aprendizagem, o qual seráaté mesmo elogiado por Werner, seu cunhado, que representa oarquétipo do negociante burguês. Meister utiliza um expedientede trapaça para conseguir um fim determinado, no caso, mais di

nheiro para prosseguir viagem, e também a tranqüilidade de espírito de seu pai.

E preciso relembrar ainda que, segundo as Conversações comEckermann, ninguém menos do que Schiller teria comparado Osanos de aprendizado de Wilhelm Meister  ao Gil Blas de Lesage,romance reconhecido como integrante da picaresca européia, confirmando assim uma afinidade aqui sugerida.

Já no século XX, o romance de Thomas Mann, Confissões doimpostor Felix Krull, retoma ao mesmo tempo a dicção da narrativa picaresca e a do Bildungsroman clássico, transformando-seem um complexo que comporta os limites de ambas as tradições,harmonizando-as.

A literatura pietísta

Um dos mais importantes mecanismos de introspecção e deinvestigação psicológica que o mundo moderno conheceu é a lite-

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ratura de conversão religiosa. Comuns na Alemanha luterana epietista desde as primeiras décadas do século XVIII, os testemunhosde conversão e os apontamentos autobiográficos dos indivíduos"renovados" e "renascidos" descreviam a trajetória individual docrente desde sua vida pregressa até o momento da conversão mística ao pietismo. O período da vida que antecede a conversão érepresentado como uma época de convicções errôneas e julgamentos falhos, no que se refere sobretudo às relações com o mundoexterior, com a sociedade, e à própria vocação individual.

A experiência pessoal relatada nessas autobiografias místicastinha caráter exemplar e era difundida ao público, seja por meiode cartas, seja da publicação em livro.

Embora não fosse propriamente literatura, o estilo pessoal ea preocupação do indivíduo com seu desenvolvimento espiritualconfiguraram o conceito religioso de formação que, seculariza-do, contribuiria para a fixação da forma do romance burguês naAlemanha.

Ernst Ludwig Stahl cita o exemplo da coletânea de autobio

grafias pietistas reunidas sob o título Historie der Wiedergebohrnen[História dos renascidos], de 1724. Relata-se ali o processo deconversão de homens e mulheres de diferentes classes sociais e amaneira pela qual eles foram conduzidos por Deus ao estado derenovação. O estado anterior em que viviam em pecado não foraoriginado de qualquer delito ou infração moral; é simplesmenteo ato da própria existência no mundo secular que se considerapecaminoso. A Bildung pietista prevê portanto um hermético isolamento em relação ao mundo, como forma de se trilhar o caminho que leva à graça divina.

Um exemplo bastante ilustrativo do processo de isolamentoante o mundo secular está incluído no Livro 5 de Os anos deaprendizado de Wilhelm Meister, nas chamadas Confissões de umabela alma. Reproduz-se ali em primeira pessoa o relato autobiográfico da canonisa (tradução da edição brasileira do Meister paraStiftungsdame), personagem a qual se sabe ter sido inspirada por

Susanne von Klettenberg, amiga de Goethe em sua juventude.Goethe relata, em sua autobiografia, os esforços envidados por

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Frau von Klettenberg para a conversão do jovem Goethe ao cristianismo, mais especificamente, ao pietismo herrnhuto.5 Na estrutura do romance, o relato da "bela alma" ocupa uma posição,se bem que destacada, alheia ao todo orgânico da narrativa. Atrajetória da canonisa percorre precisamente o caminho que levada existência no mundo secular ao recolhimento piedoso e aoisolamento. Embora suas confissões não exerçam influência direta sobre a formação de Wilhelm Meister, a canonisa encontra-seligada ao destino do protagonista; ela revela-se depois como tia epreceptora de Nathalie, noiva de Wilhelm. A inclusão de um "autêntico" relato de conversão pietista na estrutura de Os anos de

aprendizado de Wilhelm Meister  reitera a atualidade desse tipo deleitura à época de composição do romance, contribuindo para alegitimidade da hipótese genealógica.

Tanto no relato da "bela alma", quanto nas autobiografiaspietistas reais, predomina a crença de que a trajetória do homemé conduzida exclusivamente por Deus. Não está ao alcance dohomem o arbítrio sobre seu destino, ou mesmo sobre o desenvolvimento de suas qualidades. Jung Stilling, autor contemporâneode Goethe e seu amigo pessoal, afirma em sua Lebensbeschreibung{Biografia):

Agora ficarão todos os meus leitores convencidos de que eunão sou um grande homem, um grande espírito ou um grande gênio - pois eu próprio não contribuí com a mais ínfima parcela paratoda a minha trajetória, até mesmo minhas aptidões tiveram queser preparadas e trabalhadas por meio de muito esforço e por entrecaminhos penosos; eu era apenas matéria sofredora na mão cega doartista ... Acaso não comprova toda a história de minha vida, demaneira irrefutável, que não foram a razão e a sabedoria humana,mas sim Ele, do começo ao fim, que verdadeiramente me guiou,

 formou e educou, por meio de um plano previamente estabelecido[?]. (Lebensbeschreibung. Werke: p.755, 761, 762, apud Stahl, inSelbmann, 1988 p.141, grifo da autora)

5 O nome se deve à cidade de Herrnhut , na Saxônia, onde a comunidade

pietista-evangélica liderada pelo conde Zinzendorf (1700-1760) encontrouabrigo.

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A afirmação de Jung Stilling permite que se identifiquem claramente pontos de contato entre a autobiografia pietista e o romance de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister.

É preciso recordarmos aqui que o percurso do protagonistaWilhelm foi sempre conduzido por uma instância exterior e desconhecida, pela mão invisível da Sociedade da Torre. Por intermédiode seus emissários, que pontuam as idas e vindas do protagonista,a Sociedade da Torre conduz Wilhelm de forma a não lhe permitiruma real intervenção no próprio destino. Já houve quem considerasse a Sociedade da Torre como uma organização "mais autoritária que a da Flauta mágica, ópera mozartiana de 1791" (ver

artigo de Renato Janine Ribeiro, Folha de S.Paulo, 23 de outubrode 1994, p.6-7). Da mesma forma que Jung Stilling se diz "conduzido, formado e educado" por Deus por meio de um "plano previamente arquitetado", também a trajetória de Wilhelm foi objetodos desígnios de uma instância superior. Pode-se identificar claramente um momento da chamada "transição" entre a autobiografiapietista e o Bildungsroman, configurado aqui na obra consideradaseu paradigma, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister: Stilling

atribui sua formação não à "racionalidade do homem ou à sua sabedoria", mas sim à intervenção divina; já a Sociedade da Torreatua de forma racional e de acordo com princípios pedagógicos emvigor durante os últimos trinta anos do século XVIII, em estreitaconjunção com os princípios racionalistas da Ilustração, como a"educação pelo erro" defendida pelo abade.

Entretanto, enquanto as autobiografias pietistas preocupam-se em narrar uma trajetória que se estende da perdição da alma

em direção à sua salvação, a qual coincide com o isolamento social,as narrativas de formação representam um processo de desenvolvimento voltado para a sociedade, para o equilíbrio do indivíduo com o mundo exterior. As autobiografias pietistas podem serentão consideradas "formas de transição", detentoras de um sentido extremamente religioso, o que não impediu que antecipassem um processo de secularização. Trata-se efetivamente de ummomento de transformação na própria história espiritual e inte

lectual, que se reflete na transição do conceito religioso de formação para o conceito filosófico-humanístico de formação.

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A literatura confessional pietista constitui-se assim em umpressuposto bastante significativo não apenas para a constituição

do gênero Bildungsroman mas para toda a literatura burguesa emlíngua alemã, que tem na segunda metade do século XVIII suasorigens. Autores como Wieland e Novalis descendem diretamente de círculos pietistas ou estiveram muito próximos a eles, comoo próprio Goethe.

Assim, mesmo que Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister,em sua temática invulgar e diversificada, esteja longe, como manifestação literária, dos relatos de conversão pietista, é inegávelque estes, por meio de sua dicção individualizada, de sua expressão do mundo interior, contribuíram para a fixação da forma doromance burguês na Alemanha.

O romance de aventura e de viagens

Entre as formas narrativas existentes na Europa do século XVIII,o chamado "romance de aventura e de viagens" encontra-se também na origem do processo de estabelecimento do Bildungsroman.

Wilhelm Vosskamp fala da "perda de função histórica" sofrida por esse tipo de literatura, que, na Alemanha do final doséculo XVIII, teria passado a narrar a história de um caráter emevolução. Ernst Ludwig Stahl e Wilhelm Vosskamp defendem atese que a tendência do caráter espiritual alemão à interiorizaçãodos processos, à subjetivação dos acontecimentos, levou a umatransformação das narrativas de viagens em narrativas da evolução da personalidade e do caráter individual.

O exemplo mais significativo e legitimador dessa tese é arecepção do Robinson Crusoe de Defoe no espaço literário alemão da época. A história da recepção do romance de Defoe naAlemanha é exemplo de um dos mais bem-sucedidos casos deobra capaz de instituir uma tradição literária. Entre o período desua primeira edição em língua inglesa e a publicação de InselFelsenburg [A ilha Felsenburg] de Gottfried Schnabel (v.1, 1731)contam-se na Alemanha quinze romances que tiveram o Robinson

por modelo literário, e, segundo Vosskamp, já em 1723, quatroanos após sua publicação, o romance de Defoe nomeava o gêne-

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ro, dando origem a uma galeria de romances denominados Robinsonaden (Robinsoníadas), termo até hoje existente no léxi

co literário alemão.O Robinson Crusoe de Daniel Defoe representa, paradig-

maticamente, a transformação fundamental que a narrativa de viagens e aventuras sofre no fim do século XVIII. Essa transformação anuncia o fim de um gênero e a ascensão de uma nova formade romance, o qual responde, de uma nova maneira, à situaçãohistórico-social que se impunha.

A retumbante recepção do romance de Defoe, por meio do

número incontável de "Robinsons alemães", é intermediada pelaconfiguração histórica e pelas necessidades intelectuais e espirituais da época. Essa configuração apontava então para a necessidade de se constituir um caráter individual para o burguês, capazao mesmo tempo de expressar os desejos de uma classe social.Atuam na elaboração desse deslocamento as expectativas do público leitor, em meio ao qual se incluem os autores dos novos

 Robinsons, no sentido de constituir uma história do desenvolvi

mento do caráter burguês na fragmentada Alemanha de então.A leitura do Robinson Crusoe nesse contexto foi feita a partir

do papel do indivíduo. Nem mesmo a clara orientação capitalista da obra, libelo da cultura mercantilista que se instalava entãona Inglaterra, ou o aspecto pedagógico da união entre a atividademanual e atividade intelectual, como compreendida por Rousseau,interessou ao público alemão da época. A necessidade históricade constituição de uma identidade individual e social predomi

nou sobre as demais propostas de leitura do romance de Defoe.Johann Carl Wezel, autor do Robinson Krusoe de 1779, dei

xa clara, no prefácio à obra, sua intenção de alterar "funcionalmente" o modelo original: "Procur[ei] indicar precisamente e incluir esses estágios do desenvolvimento, tanto quanto o plano daobra original mo permitiu, ainda que não houvesse indicadoresde que Defoe tiv[era] realmente essas idéias filosóficas na composição da obra" (apud Vosskamp, 1977, p.35, nota 60).

É tambem de Wezel a definição do caráter individual que deveria ser representado nas diversas adaptações do Robinson:

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Esse caráter deve ser conduzido por meio de uma série deacontecimentos prováveis, destituídos de qualquer laivo de aventura, para que alcance com inabalável perseverança o seu último ob

 jetivo - o de atuar, por meio de uma atividade laboriosa, sobregrande número de seus próximos, de uma forma que seja possívelem nosso mundo e permitida por nossas leis. (Wezel, apud Vosskamp,1977, p.35, grifo da autora)

Wilhelm Vosskamp compreende o fato como uma "perda histórica parcial de função" em relação ao modelo original, ou seja, a

 Robinsonade de caráter inicialmente "aventuresco" passa a remeteraos princípios históricos e filosóficos que antecedem e preparam o

estabelecimento do Bildungsroman alemão. Assim, os adaptadoresalemães do Robinson, ao mesmo tempo que imputam à obra umaperda parcial de função, concretizada pelo desvio em relação aomodelo original, atualizam essa mesma função, sintonizando-a comas necessidades históricas filosóficas suas contemporâneas.

É importante ressaltar aqui a coincidência ideológica entre aintenção de Johann Carl Wezel em sua adaptação do Robinson etrechos da crítica contemporânea ao surgimento do romance de

Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Daniel Jenisch,no primeiro livro dedicado ao romance, Über die hervorstech-endsten Eigentümlichkeiten von Meisters Lehrjahre; oder über das,wodurch dieser Roman em Werk von Goethen's Hand ist [Sobre asmais evidentes qualidades de Os anos de aprendizado de Wilhelm

 Meister], 1797, afirma:

Quase todos os outros romances e representações artísticas,de um modo geral, despertam em nós, por meio da representação desituações insólitas e extraordinárias, por sentimentos e atitudes extremas de seus heróis, a inclinação para a aventura, tão daninha parao tranqüilo e prolongado bem-estar, tão deletéria para as atitudes deuma vida consagrada ao trabalho ... Os anos de aprendizado de Wilhelm

 Meister tornam-nos satisfeitos com um restrito círculo de atuação,fazem cada obrigação decorrente de nossas relações com o mundoparecerem-nos mais sagradas, e, portanto, mais dignas de serem cumpridas com amor e atenção. (apud Vosskamp, 1986, p.342)

A coincidência entre os dois trechos citados, contemporâneosentre si (o texto de Wezel data de 1779, o de Jenisch, de 1797)

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torna evidente uma determinada disposição histórica na qual predomina uma orientação voltada para "a atividade laboriosa" emprol do bem comum, destituída de caráter aventuresco, adequadaao estreito círculo da vida burguesa. A reinterpretação do RobinsonCrusoe pelos seus imitadores alemães coincide e prepara algunsdos pressupostos histórico-literários que deram origem ao

 Bildungsroman, como a necessidade de construção de um caráterburguês individual e de sua inserção na sociedade constituída porseus pares.

Ao delinearmos a origem do signo literário Bildungsromanpor meio de relações perspectivistas e genealógicas, ressaltamosao mesmo tempo a necessidade de modelos de descrição que ultrapassam os limites morfológico-normativos. Dessa forma, é possível legitimar a hipótese que compreende o Bildungsroman comouma projeção do ideário coletivo, como representação dos pro

 jetos da burguesia em relação à superação dos próprios limites.O reconhecimento da historicidade das formas literárias co

mentadas permite que se identifiquem os diferentes núcleosdiscursivos efetivamente atuantes na constituição do Bildungs

roman como signo literário. As relações com a autobiografia moderna, com as confissões pietistas, com o romance picaresco, comos relatos de viagem e aventura, dão a medida do caráter empíricopresente na constituição do conceito Bildungsroman e revelam afunção cognitiva dos gêneros literários. É apenas pelo acompanhamento da história do Bildungsroman como história dinâmica dogênero que será possível compreendermos sua própria natureza.

A história do Bildungsroman confunde-se assim com a pró

pria história do romance europeu; além disso, o fato de seuparadigma estar configurado em um romance de Goethe, figuracentral da literatura européia e um "clássico", tanto no sentidoda periodização literária quanto no sentido de autor canônico,atribui ao próprio conceito de Bildungsroman uma grandiloqüênciacaramente cultivada pela historiografia literária tradicional. Essefato trouxe não poucas desvantagens ao estudo do Bildungsromancomo instituição social-literária, uma vez que a tendência da crí

tica foi, por longo tempo, considerá-lo como categoria modelar ecanônica, logo, a-histórica. Em conseqüência disso, são muitos os

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autores que, seduzidos pela flexibilidade das definições e pelo caráter insuspeito das origens, utilizaram o Bildungsroman comoarcabouço teórico rígido, sem levar em conta sua historicidade esua dinâmica.

A história da continuidade do Bildungsroman no século XXreitera o caráter dinâmico e empírico do gênero, na medida emque se estabelece uma tradição consciente do Bildungsroman.Obras como O tambor, de Günther Grass, e Felix Krull, de ThomasMann, remetem diretamente ao paradigma, ao mesmo tempo emque o subvertem.

É certo que tais subversões se devem necessariamente ao di

namismo do gênero em meio às diferentes constelações histórico-literárias. No século XX, desaparece a idéia do homem como serpsicológica e historicamente indecomponível. A representação dodesenvolvimento individual como um processo linear em direçãoao equilíbrio das tendências individuais no enfrentamento com asociedade torna-se então uma aporia.

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3 A HISTÓRIA DA OBRA NA CONSTITUIÇÃO

DO SIGNO LITERÁRIO BILDUNGSROMAN

O acompanhamento da trajetoria crítica de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister  desde sua primeira recepção em meioaos contemporâneos de Goethe torna possível também orastreamento da própria história do Bildungsroman.

Gestado em um momento em que a literatura em língua alemãpassa a reclamar e a exercer autonomia em relação aos modelosfranceses e da Antigüidade clássica, a história do Bildungsromaninsere-se na própria história da literatura alemã, contribuindo mes

mo para o estabelecimento de modelos e concepções em parte ainda hoje válidas.

São consideradas aqui como instâncias discursivas produtorasde sentido tanto a correspondência privada entre o autor Goethee seus comentadores, cujo caso mais representativo é o da longa eprolífica correspondência Goethe-Schiller sobre Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, quanto as resenhas tornadas públicas, como o exemplar trabalho de Friedrich Schlegel Über 

Goethes Meister [Sobre o Meister de Goethe], publicado no periódico Athenäum.

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Iluminam-se, dessa forma, as circunstâncias da primeira recepção do romance de Goethe, elemento fundamental no processo que antecede e prepara o nascimento do gênero Bildungsroman.

AS PRIMEIRAS CRÍTICAS A OS ANOS DE APRENDIZADO

DE WILHELM MEISTER

A correspondência privada

As primeiras manifestações críticas sobre Os anos de aprendi zado de Wilhelm Meister  realizaram-se no âmbito da correspondência privada entre o círculo de amigos próximos a Goethe,como Schiller, Körner e Humboldt. Nessa correspondência começam a delinear-se acepções críticas que irão acompanhar atrajetória do romance de Goethe, reiterando seu caráter de obrapolêmica, ao mesmo tempo em que se delineiam pressupostos

que irão constituir o signo literário Bildungsroman. Trata-se dedocumentos de caráter particular, algumas vezes de difícil acessoao público, como no caso das pequenas edições de documentosde família (ver correspondência de Charlotte von Stein, incluídaneste capítulo). Klaus Gille, em sua obra de 1971, "Wilhelm

 Meister' im Urteil der Zeitgenossen ["Wilhelm Meister' segundo acrítica de seus contemporâneos], coletou e organizou em um único volume as primeiras críticas sobre o Meister, veiculadas ini

cialmente por meio da correspondência particular. Convivem, portanto, no livro de Gille, testemunhos antológicos e largamentedifundidos e editados, como a correspondência entre Goethe eSchiller sobre Os anos de aprendizado, ao lado de documentosaos quais só se pôde ter melhor acesso após a edição do trabalhode Klaus Gille. Além do livro de Gille, sustentam a informaçãobibliográfica deste capítulo as traduções brasileiras das Cartassobre a educação estética da humanidade (Schiller), da corres

pondência entre Goethe e Schiller, bem como dos fragmentos deSchlegel e Novalis.

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Os conceitos estéticos de Schiller e o 'Meister' de Goethe

A correspondência entre Goethe e Schiller sobressai-se como

um testemunho vivo de um interesse crítico detalhado e muitopróximo à obra, anterior mesmo à sua publicação.

A correspondência entre Friedrich Schiller e Johann Wolfgangvon Goethe inicia-se em agosto de 1794. Goethe encontrava-seem Weimar, a serviço da corte, enquanto Schiller se estabeleceraem Jena, desde maio de 1789, como catedrático de história.

Após a "febre de leitura" provocada pelo seu romance Os so frimentos do jovem Werther, de 1774, Goethe não mais conheceu

um verdadeiro sucesso de público. Arnold Hauser (1972, p.775)afirma que "verdadeiramente popular ele o foi na juventude, quando publicou Götz e Werther". Klaus Gille chega mesmo a afirmarque, desde a época de Weimar, a imagem que o grande públicoteve de Goethe foi aquela do ministro e do cortesão frio, vaidosoe egoísta, cujo talento se havia extinguido. E essa também a opinião de um dos futuros críticos de Os anos de aprendizado,Friedrich Schlegel, cuja declaração de 1792 é bastante represen

tativa do abismo entre Goethe e seu público, até mesmo o público intelectual:

A essência de suas obras é a reprodução de uma alma egoísta efria. O Werther, Götz, Fausto, Ifigênia e algumas composições líricas são o começo de um grande homem - do qual logo se viu, porém, a transformação em cortesão. (Apud Gille, 1971, p.31)

Portanto, o período que antecede a publicação de Os anos de

aprendizado caracteriza-se por uma considerável distância entreGoethe e o público, distância essa que ele acertadamente compreendeu como decorrência da incapacidade de compreensão desua obra por esse mesmo público. Pode-se então reconhecer, nacorrespondência trocada entre Goethe e Schiller, o desenho deum intercâmbio por meio do qual o primeiro reconheceu no segundo um "público ideal":

E tão raro encontrar nos negócios e atividades da vida a deseja

da participação, e nesse caso altamente estético ela quase não podeser esperada, pois quantas pessoas vêem a obra de arte em si mes-

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mas, quantas podem ignorá-la, e depois só resta a tendência quepode ver tudo que ela contém, e a tendência pura que ainda podever o que lhe falta. E quanto não restaria ainda a acrescentar, a fim

de expressar o caso isolado no qual me encontro apenas com o senhor. (Cavalcanti, 1993, p.76, grifos da autora)

As cartas trocadas entre Friedrich Schiller e Johann Wolfgangvon Goethe sobre Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister inauguram a crítica ao romance de Goethe, crítica essa que se concretiza não por meio de um exercício público, mas sim no círculoíntimo da amizade entre os dois autores. Anos mais tarde, já mes

mo depois da morte de Schiller, Goethe irá avaliar definitivamente o significado da crítica exercida pelo primeiro sobre Os anosde aprendizado:

Deixo para o final o comentário sobre a participação de Schiller:ela foi a mais íntima e a mais elevada; e suas cartas sobre o assuntoainda se encontram à disposição, não posso eu dizer mais nada alémde que o conhecimento delas poderia ser um dos mais belos presentes que se possa oferecer a um público cultivado. (Goethe, apudGille, 1971, p.29)

Na famosa "carta de aniversário" enviada por Friedrich Schillera Johann Wolfgang von Goethe em 23 de agosto de 1794, o primeiro convida o autor de Os anos de aprendizado a publicar, em partes,o romance nas Horen.¹ Em razão dos direitos de seu editor, Unger,Goethe é levado a recusar o convite, comprometendo-se, porém, aenviar-lhe o primeiro livro do romance assim que as provas estivessem prontas, o que ocorreu em 6 de dezembro de 1794.

A partir de então, Schiller passa a receber em primeira mãoas provas de cada um dos livros, indicando em suas cartas a Goetheescritas até 2 de julho de 1796 a espontaneidade e vivacidade desua recepção imediata do romance.

1 Die Horen: periódico editado por Schiller de 1795 a 1797, tendo entre seuscolaboradores Goethe, Herder e A. W. Schlegel. O termo Horen designa as

três filhas de Zeus e Themis: Eunomia (Justiça), Dike (Direito) e Eirene(Paz). Designa também as quatro deusas das estações do ano. (Meyers GroBes Lexikon, 1968, p.360).

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Em carta de 9 de outubro de 1794 a Christian GottfriedKörner, Schiller declara suas grandes expectativas em relação ao

processo simbiótico que pretendia manter com o autor do Meister em relação à concepção do romance:

Seu romance ele deverá enviar-me em tomos; e então eu deverei escrever-lhe, a cada vez, o que deverá conter o próximo volume,e como este se realizará e desenvolverá. Ele fará então uso dessacrítica antecipatória, antes que mande imprimir um novo volume.Nossas discussões sobre a composição levaram-no à idéia de que,uma vez que esta seja boa e conduzida com desvelo, poderia muitobem trazer à luz as leis da composição poética. (Gille, 1971, p.10)

O trecho citado marca as grandes expectativas de Schiller antea possibilidade de um trabalho intelectual conjunto com Goethe,trabalho esse que, como se sabe, efetivamente aconteceu. No casoespecífico de Os anos de aprendizado, as expectativas de colaboração e efetivo intercâmbio de opinião são, ao final de um certoperíodo, frustradas, deixando mesmo Goethe de enviar o oitavolivro a Schiller antes de mandá-lo à impressão. De toda maneira,indícios da sintonia intelectual entre os dois autores se deixamencontrar, com maior ou menor intensidade, por entre o texto deOs anos de aprendizado, sendo mesmo possível apontar trechosnos quais a concepção estética de Schiller pode ser nitidamentereconhecida, como se verá nas linhas a seguir.

Cronologicamente, o período em que se realiza a crítica deSchiller sobre Os anos de aprendizado coincide com o momentode elaboração das Cartas sobre a educação estética da humani

dade, em que Schiller expõe os princípios de sua concepção clássica da arte.

A carta de 2 julho de 1796 constitui uma inflexão na leiturado romance; em lugar de uma apreciação quase que descom-prometida, a carta assume a forma de uma "discussão cuidadosamente articulada. Ali, Schiller refere-se ao sentimento de uma"incrível e inaudita variedade" que o domina logo após a releiturados oito livros, que acabara de empreender. Afirma ainda já ter

assimilado bem "a constância, mas não a unidade, embora nãoduvide em nenhum momento de que ainda terei uma total clare-

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za sobre esta última..." (Cavalcanti, 1993, p.63). Dessa forma,configura-se uma das principais dicções que irá orientar todo oextenso trabalho crítico de Schiller sobre o romance. Fortementeimpressionado pela riqueza de situações e caracteres ali representados, Schiller procura ao mesmo tempo uma unidade estéticaformal que acomode essa mesma diversidade, harmonizando oconjunto. Assim, os primeiros testemunhos efetivamente críticosda leitura de Schiller já se mostram como produto de uma compreensão estética predominantemente harmônica, na qual a singularidade do único deve ser absorvida pelo todo orgânico.

Ainda na carta de 2 de julho, Schiller elogia a capacidade do

autor de ordenar, no oitavo livro, em um conjunto orgânico, asdiversas figuras e situações desenhadas ao longo da narrativa:"como o senhor conseguiu reunir tão próximos os grandes e tãoespalhados círculo e cena de pessoas e acontecimentos! É comoum belo sistema planetário, e apenas os personagens italianos ligam, como cometas e também tão terríveis quanto estes, o sistema em algo distante e maior" (Ibidem, p.64).

Louvando assim a harmonia presente no último livro, Schiller

refere-se aos "personagens italianos" como os únicos elementosque escapam ao conjunto. A referência contempla certamente aspersonagens Mignon e o tocador de harpa, elementos prenunciadores de catástrofe que, ao lado de Mariane e Aurelie,2 "saemcompletamente do sistema e se separam dele como criaturas estranhas, depois que simplesmente serviram para produzir ali ummovimento poético". A afirmação de Schiller é importante porque aponta para sua concepção do belo como o genérico, uni

versal, em que a particularização, o contingente, o extremamenteindividual não podem ter lugar permanente, pois limitam o beloque resulta exatamente dessa qualidade universal. Assim, tanto a

2 As qua tro personagens citadas, Mignon, Augustin, Mariane e Aurelie, sãoexemplos de naturezas apaixonadas, poéticas e "irracionais". Mignon é filhade uma relação incestuosa. Augustin, o tocador de harpa e pai de Mignon (oque se vem a descobrir exatamente no oitavo livro), torna-se insano e peri

goso. Aurelie e Mariane são figuras femininas que se deixam levar e destruirpor paixões inadequadas. O destino das quatro personagens é a morte.

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história quanto o destino das personagens citadas servem a um"movimento poético", sem constituir parte integrante do conjunto harmonioso.

Também a carta imediatamente seguinte, de 3 de julho de1796, trata da concepção do todo. A análise da personagemWerner é inserida a partir da ótica da composição geral da obra:"Muito me alegrei com a triste transformação de Werner ... Essa

 figura também é muito benéfica para o todo porque explica e enobrece o realismo para o qual o senhor conduz o herói do romance".(Ibidem, p.70, grifo da autora).

As observações iniciais de Schiller sobre as personagens do

romance de Goethe originam-se em uma reflexão estética queSchiller vinha desenvolvendo em seu próprio trabalho teórico. Epossível identificar uma relação bastante próxima entre as concepções de Schiller veiculadas na crítica ao Meister e os princípios desenvolvidos em sua obra teórica Cartas sobre a educaçãoestética da humanidade, sobretudo no que se refere à conceituaçãodo "estado estético", aquele em que todas e nenhuma determinação são possíveis, em que a liberdade estética se universaliza

como "infinitude plena", na medida em que "a beleza não oferece resultados individuais ao entendimento ou à vontade".

Ao lado da concepção de "estado estético", que encontrarásua contrapartida na crítica de Schiller ao Meister como se verá aseguir, figura também a concepção formalista da arte, em detrimento do aspecto conteudístico.

Escrita em 1795 (no mesmo ano, portanto, em que vêm apúblico os primeiros livros do Meister), a seqüência de 27 cartas

reunidas sob o título Cartas sobre a educação estética da humanidade veicula as concepções de Friedrich Schiller "acerca da formação do cidadão e do Estado; em seguida, seu conceito de belezacomo ideal a ser alcançado; depois os problemas concernentes àrepresentação do Belo; por último a arte como instrumento demediação entre o homem e a beleza, as artes plásticas, a poesiadramática e épica bem como o romance" (Sousa, 1994, p.15).

Na carta de número 22 Schiller discorre sobre o papel pre

dominante da "disposição estética" na composição do "todo dahumanidade": o "estado estético é o mais fértil com vistas ao co-

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nhecimento e à moral"; mais do que isso, o estado estético é aqueleque inclui o particular e o individual na composição orgânica dotodo:

Por não proteger de modo exclusivo nenhuma das funções dahumanidade, ela [a disposição estética] favorece todas, sem exceçãoe se não favorece nenhuma isoladamente, é por ser a condição depossibilidade de todas elas. Todas as outras atividades dão ao espíritoum destino particular e impõem-lhe, por isto, um limite particular;somente a estética conduz ao ilimitado ... somente o estético é umtodo em si mesmo. (Schiller, 1963, p.102, grifo da autora)

Dessa forma, pode-se reconhecer, no texto das cartas sobre aeducação estética, a gênese da crítica exercida por Schiller sobre Osanos de aprendizado; da mesma forma que as personagens, no romance de Goethe devem justificar sua trajetória particular em relação ao todo da composição, a "disposição estética" é aquela queuniversaliza as disposições particulares, congregando-as ao todo.

Não são poucas as conseqüências dessa aproximação. Pela leitura de Schiller, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister  inau

gura sua fortuna crítica atrelado ao ideário humanista-filosóficodo classicismo alemão, permeado pela dinâmica entre os aspectosindividual-universais do processo de desenvolvimento estético.Estabelece-se assim uma interpretação harmônica do Meister, clássica em seu ideal de equilíbrio entre a liberdade individual e apossibilidade de determinação do destino coletivo, do desenvolvimento da humanidade.

Efetivamente, essa concepção da formação do caráter individualmoldada pelas necessidades comuns e imediatamente relacionada ainstâncias sociais concretas, ou seja, ao coletivo "humanidade",encontra-se claramente expressa no próprio texto de Os anos deaprendizado de Wilhelm Meister. Jarno, membro da Sociedade daTorre, comunica a Wilhelm, por ocasião da continuação da leiturada Lehrbrief [Carta de Formação], os princípios que orientam aconcepção pedagógica do Abade, figura central da Sociedade. Jarnoafirma que

A maior parte dos homens, mesmo os melhores, é limitada;cada qual aprecia em si mesmo e nos outros determinadas qualida-

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des; e ele só favorece aquelas que quer ver desenvolvidas. De ummodo totalmente oposto age o abade; tem sentido para tudo, teminteresse de tudo reconhecer e promover ... Só todos os homens

 juntos compõem a humanidade; só todas as forças reunidas, o mundo. Estas estão com freqüência em conflito entre si e, enquantobuscam destruir-se mutuamente, a natureza as mantém juntas e asreproduz. (Goethe, 1994, p.536-7)

Analogamente ao desenvolvimento de todas as qualidades individuais, sem prejuízo ou precedência de uma única, também cadaindivíduo singular deve atuar em harmonia com seus semelhantes,ajudando a compor o todo da humanidade.

A concepção estética professada por Schiller nas Cartas podetambém ser diretamente identificada em trechos do romance deGoethe que tratam especificamente do fenômeno estético, delimitando assim concepções compartilhadas por ambos os autoresdurante o período do chamado "Classicismo de Weimar".

Segundo a carta de número 22, a "autêntica obra de arte" devedeixar-nos em uma disposição de "alta indiferença e liberdade deespírito". Ambos os termos devem ser entendidos como decorren

tes de um estado de espírito que não privilegie uma "determinadamaneira de agir ou de sentir" em detrimento de outras maneiras.Isso seria "prova segura de que não experimentamos um efeitoverdadeiramente estético" (Schiller, 1963, p.102). Assim, "quantomais geral for esta disposição e quanto menos limitada for a direção que um determinado gênero de arte e um produto particulardentro dele dão ao nosso espírito, tanto mais nobre será aquelegênero e tanto mais excelente tal produto" (Ibidem, p.103).

Reconhecendo como ideal aquele gênero artístico de caráteruniversal, Schiller não deixa de apontar as "afinidades particulares"que uma peça artística pode despertar no espírito daquele que acontempla, ouve ou lê. Tais afinidades particulares serão, porém,diluídas, ao alcançar a obra de arte um "nível mais alto". De acordocom uma concepção classicista da arte, Schiller reconhece, nasartes plásticas, o paradigma perfeito do estilo harmonioso da Antigüidade. Todas as outras formas de expressão artística são refe

ridas às artes plásticas, representação perfeita do caráter artísticoharmonioso:

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A música, em sua nobreza mais alta, transforma-se em figura eafeta-nos com o calmo poder da antigüidade; as artes plásticas, emsua máxima perfeição, tornam-se música e afetam-nos por sua ime

diata presença sensível; a poesia, em sua manifestação mais plena,deve prender-nos poderosamente como as artes sonoras e, ao mesmo tempo, circundar-nos da serena clareza das artes plásticas. Oestilo perfeito em cada arte revela-se, justamente, ao afastar-lhe aslimitações específicas sem negar as virtudes particulares, conferindo-lhe um caráter mais universal pela sábia utilização de sua peculiaridade. (Ibidem, p.l04)

Ainda sobre as "afinidades particulares" despertadas no espí

rito humano pelas diferentes formas da arte, Schiller estabeleceuma certa tipologia dos efeitos:

Deixamos uma bela peça musical com vivo sentimento, o belopoema deixamos com a imaginação vivificada, e o belo quadro ouedifício com o entendimento desperto; mas quem quisesse incitar-nos ao pensamento abstrato imediatamente após o alto prazer musical; utilizar-nos para um negócio comedido da vida comum, logoapós o alto prazer da poesia; afoguear nossa imaginação e surpreen

der nossa emoção, logo após contemplarmos belas telas e esculturas, teria escolhido uma oportunidade infeliz. (Ibidem, p. 104, grifoda autora)

Schiller afirma assim a diferente atuação das diferentes matérias artísticas sobre os sentidos da percepção. Enquanto a músicatem com os sentidos uma afinidade "maior que a permitida pelaverdadeira liberdade estética", incitando-nos a experimentar emexcesso uma determinada disposição de espírito, a poesia incita

demasiadamente a imaginação; apenas as "belas telas e esculturas"organizam e apaziguam o tumulto interior dos sentidos, confirmando mais uma vez a afinidade entre as obras plásticas e a ordenação estética harmoniosa.

Schiller atribui assim às artes plásticas da Antigüidade umpoder calmante e ordenatório sobre o espírito humano, poder esseque se opõe à exacerbação dos sentidos provocada pela música, esobretudo, pela poesia.

Essa concepção pode ser identificada na trajetória estética doprotagonista Wilhelm Meister em seus anos de aprendizado. No

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décimo capítulo do segundo livro do romance, há um episódioque marcadamente comprova a asserção de que a poesia exacerba

os sentidos, desorganizando-os. Trata-se do episódio em que a trupede Wilhelm reúne-se nos aposentos deste, para uma leitura emvoz alta de "obras de cavalaria" (Ritterstücke). A excitação provocada pelo heroísmo nacional das situações e personagens representados, bem como a alteração dos ânimos provocada por bebidaalcoólica, leva os integrantes da trupe a um estado de total confusão e exacerbação dos sentidos:

Estavam todos inflamados pelo fogo do mais nobre espírito

nacional. Quão prazeroso era para aquele grupo de alemães, emconformidade com seu caráter, deleitar-se com a poesia em seu próprio solo! ...

Perto do quinto ato fez-se mais ruidoso e mais sincero o aplauso, e, ao final, quando o herói escapava verdadeiramente de seuopressor e punia-se o tirano, foi tão grande o entusiasmo geral que

 juravam todos nunca haver desfrutado momentos tão felizes. Melina,arrebatado pela bebida, era o mais inquieto, e como já haviam esvaziado a segunda poncheira e se aproximava a meia-noite, Laertesmanifestou solenemente que doravante não haveria mais ninguémdigno de levar aos lábios aqueles copos e, ante tal afirmação, arremessou o seu pela janela contra a rua. Os outros seguiram seu exemplo e, a despeito dos protestos do estalajadeiro, que acudiu prontamente, fizeram em mil pedaços a própria poncheira para que, depoisde uma festa como aquela, não mais a profanassem com bebidasimpuras. (Goethe, 1994, p.l19)

No trecho acima citado, "o alto prazer da poesia" (Schiller)encontra-se associado ao delírio e descontrole emocional provo

cado pela ingestão da bebida alcoólica; a euforia provocada inicialmente pela leitura da obra poética conflui na excitação alcoólica,igualando-se a ela. Ainda mais significativo é o trecho seguinte,em que se atribui (algo ironicamente, é certo) a uma obra poéticaum efeito desorganizador:

Nesse meio tempo, a tropa da guarda havia chegado e ameaçava entrar na estalagem. Wilhelm, excitado demais pela leitura, embora não tivesse bebido muito, teve bastante trabalho para acalmaros guardas mediante algum dinheiro e boas palavras, e conduzirpara casa os membros da companhia no estado deplorável em que

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se encontravam. Ao regressar, dominado pelo sono, atirou-se contrariado e sem se despir à cama, e nada poderia compara-se à desagradável sensação que experimentou na manhã seguinte ao abrir os olhos

e contemplar com um olhar sombrio os estragos do dia anterior, asujeira e os péssimos resultados obtidos por uma engenhosa, animadae bem-intencionada obra poética. (Ibidem, p.120, grifos da autora)

A passagem acima contrasta vivamente com a descrição do"Salão do Passado" (Saal der Vergangenheit), recinto construídopelo tio de Natalie {der Oheim), onde se encontram dispostas, emum conjunto harmônico, obras pictóricas e arquitetônicas modernas ao lado de esculturas da Antigüidade e de construções deproporções clássicas.

Embutidas nas paredes, arcadas bem proporcionais abrigavamgrandes sarcófagos, nas colunas interpostas viam-se pequenos nichos, ornados com urnas e vasos funerários; as outras partes dasparedes e da abóbada estavam regularmente distribuídas e, entrealegres e variadas molduras, guirlandas e ornamentos, viam-se figuras alegres e simbólicas pintadas em divisórias de tamanhos diferentes. Os elementos arquitetônicos estavam revestidos de um belo

mármore amarelo, tendente para o vermelho; listras de um azulclaro, de uma feliz composição química, imitando o lápis-lazúli,deleitavam o olhar pelo contraste e davam ao conjunto unidade ecoesão. Todo esse esplendor e ornamento apresentavam-se dentrodas puras proporções arquitetônicas, e assim qualquer um que alientrava parecia elevar-se por sobre si mesmo ao aprender pela primeira vez, graças àquela arte harmoniosa, o que é e o que pode sero homem. (Ibidem, p.526)

O trecho encontra-se no livro de número 8, o último, caracterizando assim uma possível alteração da percepção estética deWilhelm Meister, ou, ao menos, diferindo o suficiente daquelacomoção estética perturbadora causada pela leitura das obras decavalaria para que se possa falar de um amadurecimento da percepção estética do protagonista.

Na carta de 9 de julho de 1796, seguinte àquela que institui omomento de crise entre os dois missivistas quanto à critica doWilhelm Meister, Schiller irá tratar especificamente desse episódio, argumentando pelos meios de sua própria concepção estética que privilegia a forma:

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Tenho ainda algo a lembrar sobre o comportamento deWilhelm na sala do passado, quando ele entra nela pela primeiravez com Natalie. Para mim, ainda há muito do antigo Wilhelm,

que na casa do avô prefere ficar com o filho doente do rei,' e oqual o desconhecido encontra num caminho tão equivocado. Também aqui ele permanece quase que exclusivamente no conteúdodas obras de arte e, na minha opinião, poetiza demais com isso.Não seria aqui o momento de mostrar o começo de uma crisemais feliz nele, de apresentá-lo não como conhecedor - pois isto é impossível - mais como um observador mais objetivo...? (Cavalcanti, 1993, p.87, grifos da autora)

Assim, mesmo que se possa apontar uma diferenciação entreos dois momentos, aquele da leitura das peças de cavalaria, quetermina em total confusão dos sentidos, e este da apreciação da"arte harmoniosa" colecionada pelo tio de Natalie, ainda assimSchiller considera insuficiente o "progresso" de Wilhelm Meister,apoiando-se ainda em sua concepção clássica da predominânciada forma sobre o conteúdo.

3 Referência a um quadro pertencente à coleção do "velho Meister" , peloqual Wilhelm demonstrava predileção. O trecho, que se reproduz abaixo,encontra-se no capítulo dezessete do primeiro livro; ali, Wilhelm reencontrao comprador da coleção de quadros que pertencera a seu avô:

"... - Lembro-me de uma tal pessoa, mas não a teria reconhecido no senhor.- É que já se passou muito tempo e, um pouco mais um pouco menos,sempre mudamos. Se bem me lembro, havia entre aqueles quadros um queera seu preferido e do qual não queria se desfazer de forma alguma.- E verdade! representava a história do filho enfermo do rei, consumido deamor pela noiva de seu pai.- Não era propriamente a melhor pintura; mal composta, era de um colorido que nada tinha de especial e num estilo amaneirado.- Não entendia e ainda não entendo dessas coisas; o que me agrada numquadro é o tema [no orignal, Gegenstand], não a arte." (Os anos de aprendi

 zado de Wilhelm Meister, 1994, p.63, tradução de Nicolino Simone Neto,grifo da autora)

A citação torna bastante nítida a origem da censura de Schiller pois atribui aWilhelm Meister uma compreensão conteudística da arte, que se opõe claramente à proposição schilleriana da fruição formal da obra de arte, integrante das Cartas sobre a educação estética do homem (Ver nota explicativa de

número 16 da tradução brasileira, ao final do Livro I, p.72, que contextualizao tema ali representado).

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Em trecho da carta de número 22, Schiller (1963, p.105)afirma a predominância da forma sobre o conteúdo, em uma

obra de arte:Numa obra de arte verdadeiramente bela, o conteúdo nada

deve fazer, a forma é tudo; é somente pela forma que se age sobre ohomem como um todo, ao passo que o conteúdo visa apenas a forças particulares. O conteúdo, por sublime e amplo que seja, agesobre o espírito sempre como limitação, e somente da forma pode-se esperar verdadeira liberdade estética ... O espírito de quem ouveou de quem contempla deve permanecer plenamente livre e incólume, deve sair puro e perfeito da esfera mágica do artista como das

mãos do criador.

No romance de Goethe (1994, p.528), a personagem Nataliedá voz à oposição forma/conteúdo também na música, pelacontraposição entre a desejável despersonalização e universalidadeda voz que executa a melodia, e os gestos individuais e dramáticos dos atores em cena:

O teatro nos perverte totalmente; a música nele só serve porassim dizer aos olhos, ela acompanha os movimentos, não as emoções. Nos oratórios e nos concertos perturba-nos sempre a figura domúsico; a verdadeira música é somente para o ouvido; uma bela vozé o que se pode pensar de mais [universal], e se o limitado indivíduoque a produz se põe diante de nossos olhos, destrói o puro efeitodessa [universalidade]4... aquele que para mim canta deve ser invisível; sua figura não deve seduzir-me nem extraviar-me.

Assim, tanto no tratado estético de Schiller quanto no romance

de Goethe encontra-se uma concepção da arte como um constructouniversal, sobre o qual o excesso de particularização atua de forma limitante.

Conjugada à leitura de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister como obra na qual se concretizam princípios fundamentais da estética clássica, que privilegia a composição orgânica dotodo, encontra-se também o reconhecimento da representação da

4 Sugestão de tradução da autora.

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trajetória de um caráter individual em direção à harmonia resultante do equilíbrio entre a determinação individual e a universali

dade ideal. Para Schiller, o protagonista do romance de Goetheteria atingido o "estado estético", a "liberdade estética em relaçãoa todas as determinações":

No estado estético, portanto, o homem é zero sempre que procuramos o resultado isolado e não as faculdades como um todo,sempre que consideramos, nele, a ausência de todas as determinações específicas. Daí terem razão aqueles que declaram, com vistasa conhecimento e moralidade, serem o belo e a disposição em queele coloca o espírito de todo indiferentes e estéreis. Têm razão ple

na, pois a beleza não oferece resultados individuais ao entendimentoou à vontade, não realiza, isoladamente, finalidades intelectuais oumorais ... e é, numa palavra, tão incapaz de fundar o caráter quantode iluminar a mente. A cultura estética, portanto, deixa plenamenteindeterminados o valor e a dignidade pessoais de um homem, namedida em que possam depender dele, e nada se alcançou além da possibilidade natural de fazer ele de si mesmo aquilo que quiser, jáque lhe é devolvida completamente a liberdade de ser o que deve.(1963, p.100-1, grifos da autora)

Portanto, o herói de Goethe em sua indeterminação recorrente representa, para Schiller, a concretização desse estado estético e livre, uma vez que traz em si a possibilidade natural, a liberdade de ser o que deve ser.

Entretanto, na carta de 8 de julho de 1796, Schiller expressa suadiscordância quanto ao tratamento que Goethe passou a dar ao protagonista. Schiller afirma que a "moral" não coincide com a "fábula',apontando assim o que em sua opinião consiste em uma inadequação

do caráter do protagonista em relação a uma possível "filosofia geral" de Os anos de aprendizado: "Quero dizer: a fábula é completamente verdadeira, a moral da fábula é completamente verdadeira,mas a relação de uma com a outra ainda não salta aos olhos comclareza suficiente" (Cavalcanti, 1993, p.80, grifo da autora).

Efetivamente, a carta de 8 de julho de 1796 contém o inícioda crítica mais rigorosa exercida por Schiller a partir de suaperspectiva de teórico e autor "clássico". Ali, Schiller desenvolve

observações apenas esboçadas em cartas anteriores, como a necessidade de se acomodar toda a diversidade em uma unidade,

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atribuindo aos acontecimentos um nexo causai que, na opiniãodo crítico, está ausente em certas passagens, e mesmo no caráterdo protagonista. Schiller ressente-se ainda de uma "explicaçãoestética" que justificasse a "maquinaria" constituída pela Sociedade da Torre e suas intervenções: "Em tudo isto, eu teria aindadesejado que o senhor tivesse aproximado um pouco o aspectosignificativo dessa maquinaria, a necessária relação da mesma como ser interior. Este deveria olhar sempre em direção à economiado conjunto, mesmo que esta deva permanecer oculta às figurasem ação" (Ibidem, p.78).

Schiller, portanto, passa a reclamar para a obra "uma relaçãoclaramente pronunciada" entre os acontecimentos. É assim que,segundo ele, haveria de se "mencionar com mais detalhe o motivoque tornou Wilhelm objeto dos planos pedagógicos do abade"; e,de forma ainda mais veemente, Schiller discute a maneira como estãocaracterizados os conceitos de "aprendizado e mestria": "A maneira,pois, como o senhor explica o conceito dos anos de aprendizado ede mestria parece impor a ambos um limite mais estreito. Pelo primeiro, o senhor entende somente o engano de procurar fora de si

aquilo que o seu interior deve produzir; pela segunda, a convicçãodo equívoco daquela procura" (Ibidem, p.80).

É assim que Schiller chega a considerar insuficiente a formacomo ambos os conceitos de aprendizado e mestria colocam-separa o herói do romance.

Reconhecendo que a "mestria" (Meisterschaft) de Wilhelmconsiste em nada além do que "a convicção do caráter equivocado de tal busca" (die Überzeugung von der Irrigkeit jenes Suchens),

Schiller sugere a Goethe a "emancipação" do Meister: "Agora aexigência se lhe transfere ... a exigência de impor o seu pupilocom total independência, segurança, liberdade e por assim dizer,firmeza arquitetônica, de forma que assim ele possa manter-se eternamente, sem precisar de um apoio externo..." (Ibidem, p.86).

Essa emancipação consistiria, ainda segundo o texto da cartade 8 de julho de 1796, em prover o Meister de um fundamentofilosófico, preservando-o de um resvalo no misticismo. Klaus Gille

(1971, p.19) reconhece no caráter emancipatório da proposiçãoschilleriana uma filiação direta aos acontecimentos da Revolução

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Francesa: "Para Schiller, o resultado da educação de Wilhelmmostra-se na liberdade, igualdade e fraternidade, diante das quais... o seu ambiente esteticamente cultivado o confronta".

Schiller afirma que o romance de Goethe nada tem de"sansculotista",5 "parecendo, muito pelo contrário, que a aristocracia tem a palavra" (Cavalcanti, 1993, p.73).

Tais afirmações certamente justificam-se na "mania de nobreza" de Wilhelm Meister, que pontua a narrativa em diversasocasiões: "Três vezes felizes aqueles que, desde o nascimento, secolocam acima das camadas inferiores da humanidade; que nãoprecisam passar, nem mesmo como hóspede em trânsito, por situações que atormentam em grande parte a vida de tantos homens de bem!" (Goethe, 1994, p.151).

O trecho citado faz parte do monólogo de Wilhelm Meister,quando se encontra prestes a adentrar pela primeira vez o "grande mundo", o espaço de atuação da aristocracia, quando, a convite do Conde, a trupe de atores deverá atuar no castelo. O trecho refere-se diretamente ao comportamento desembaraçado,seguro e elegante do Conde, da Condessa e do Barão, em compa

ração ao limitado espaço de atuação e ao comportamento acanhado reservado ao burguês. Trata-se portanto do mesmo temaque Meister desenvolverá na carta enviada a seu cunhado Werner,no capítulo 3 do livro 5.

Há que se ressaltar, porém, que Schiller não prescrevia paraOs anos de aprendizado uma atitude efetivamente "sansculotista",revolucionária. Schiller prescreve antes, como pontifica KlausGille, uma "integração de Wilhelm no universo reconhecidamente

5 Advérbio derivado de "Sansculloten". Segundo Cláudia Cavalcanti, o termofrancês sans-cullote eqüivale a "sem-calças". Apelido dado aos radicais revolucionários durante a Revolução Francesa, que usavam, em vez da peçalarga na parte superior e ajustada a partir do joelho, as chamadas "pantalons",calça masculina longa surgida à época da Revolução. Cláudia Cavalcantiacentua também a referência ao "famoso artigo de Goethe publicado nas

 Horas em maio de 1795, sob o título de Literarischer Sanscullotismus (Sans-culotismo literário), no qual analisa a situação cultural da nação, a necessi

dade da existência de um autor nacional clássico, entre outras coisas"(Cavalcanti, 1993, p.74).

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não-problemático da nobreza; ele deve esquecer'' sua origem burguesa. Assim, para que Wilhelm Meister ascenda de sua condiçãosocial, seria preciso que o conde, por meio de seu "respeitávelcomportamento", o conduzisse "de sua classe" para "uma posiçãomais elevada" concedendo com isso "a nobreza ainda ausente"(Carta de 9.7.1796).

As expectativas de Schiller não se concretizam no transcorrerda narrativa. O tratamento dispensado aos atores, entre elesWilhelm Meister, no castelo do Conde está longe de poder serclassificado como "distinção" (ver p.153-7 da edição brasileira).A nobreza permanece ausente mesmo quando, no fim do último

livro, se anuncia a união de Natalie, irmã da Condessa, com oburguês Wilhelm. Tal união, que poderia concretizar dessa formao que Schiller chamou de "mésalliance", ou seja, um casamentointerclasses, não se realiza, e o livro termina no momento do anúncio, transportando para um tempo futuro a efetiva concretização.Porém, nem mesmo no terceiro livro do Meister, Wilhelm MeistersWanderjahre [Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister], essaunião se concretiza, e Natalie deixa mesmo de ocupar uma po

sição de destaque, tornando-se mera referência longínqua.Dessa forma, Schiller acaba por reconhecer em Os anos de

aprendizado uma hesitação, no desenvolvimento da narrativa, noque se refere à alteração da classe social do protagonista, considerando, portanto, ausente um signo claro de sua ascensão.

Pode-se então traçar, com algum detalhe, os fundamentos dacrítica de Friedrich Schiller ao romance de Goethe Os anos deaprendizado de Wilhelm Meister. A partir da carta de 2 de julho,

marco de uma recepção mais crítica e articulada, torna-se possível identificar ao menos dois direcionamentos fundamentais, quese complementam. Por um lado, as concepções de Schiller mostram-se claramente orientadas por uma perspectiva estéticaclassicista, em harmonia com suas concepções expressas nas Cartas sobre a educação estética. Essa concepção reflete-se na ma-

6 "Poderá ele um dia esquecer o burguês, e não deverá fazê-lo, se o seu destino tem de desenvolver-se inteiramente belo?" (Cavalcanti, 1993, p.73).

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neira como Schiller reconhece, no romance de Goethe, a existência de uma "liberdade estética" configurada nas infinitas possibilidades de determinação reservadas ao protagonista, atrelando aobra à concepção da arte como conceito universalizante, o qualprevê a não-particularização de seu objeto; da mesma forma, quando identifica na composição das personagens sua relação com otodo do romance, Schiller ressalta a percepção da obra como umconjunto estético orgânico, em sintonia ainda com os parâmetrosclássicos. Por outro lado, quando manifesta o desejo de ver o protagonista mais bem provido de um equipamento filosófico que oresguarde do misticismo irracionalista, assim como na preocupa

ção de detectar em Os anos de aprendizado os fundamentos deum efetivo processo formador, Friedrich Schiller insere, na crítica contemporânea da gênese da obra, uma perspectiva racionalista,em sintonia com os princípios do Iluminismo francês e da

 Aufklärung alemã.

O "rompimento"

Klaus Gille pergunta-se "quando teria Goethe se apercebidodo fato de que as concepções de Schiller sobre a idéia e forma daobra desviavam-se definitivamente das suas". Efetivamente, a correspondência entre Schiller e Goethe sobre Os anos de aprendizadoé interrompida após a resposta de Goethe à carta de 8 de julho de1796, depois do que Goethe envia o último livro à impressão semantes oferecê-lo novamente à leitura de Schiller (o que não equivaleabsolutamente ao rompimento da relação epistolar entre os dois

autores). O episódio marca, sem dúvida alguma, o rompimento dotrabalho comum sobre Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister.

A versão do romance que chegou até nós mostra que Goethe,de maneira geral, manteve inalteradas as questões mais criticadaspor Schiller. A chamada "autonomia" filosófica e social de WilhelmMeister permanece na sugestão do crítico, sem ter sido realizadapelo autor. Também permanece ausente um sinal de distinção, que

 justificasse o interesse da Sociedade da Torre sobre Wilhelm Meister.

Assim, se por um lado a crítica exercida por Schiller aproximaOs anos de aprendizado, em sua concepção estética, dos mesmos

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pressupostos que orientam as Cartas sobre a educação estética, ouseja, de um dos baluartes do classicismo alemão, por outro pode-sereconhecer uma divergência básica entre as opiniões gerais do crítico Friedrich Schiller e a obra concretizada pelo autor Goethe.Expressando de forma modelar a necessidade de uma coincidênciamais extensa entre a personalidade do protagonista e as dimensõesteóricas que considera desejáveis, Schiller reconhece a tensão entresua concepção para a "moral" que deveria orientar a trajetória doprotagonista e a "fábula" efetivamente levada a termo pelo autordo Meister. O reconhecimento de uma tensão desse caráter, já emum comentarista do porte de Schiller, no momento mesmo de com

posição do romance, vem reafirmar a vocação de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister como obra polêmica, indócil a classificações mais definitivas. Da mesma forma que se deixa impregnarpela atmosfera estética do classicismo weimariano, do qual Goetheé a figura central, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister escapa a uma perspectiva mais filosófica e moralizante, como aquelaarticulada pela crítica de Schiller. Como se verá a seguir, a críticacontemporânea à primeira publicação de Os anos de aprendizado

deverá oscilar entre esses dois pólos, já identificados por Schiller;ora o romance será compreendido como obra prima da formaçãoestética e moral, ora será combatido como obra perniciosa de umesnobe. O reconhecimento dessa tensão deverá desempenhar importante papel nas tentativas posteriores de se desenvolver o conceitodo signo literário Bildungsroman, entendido corno a conjunção dosenunciados históricos e culturais da Bildung burguesa ao romancede Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister.

0 Meister como representante das virtudes burguesas -Christian Gottfried Körner

Integra os primórdios da crítica de Os anos de aprendizado acarta de Christian Gottfried Körner7 ao editor de Die Horen,

7  Christian Gottfried Körner (1756-1831), magistrado do Superior Tribunalde Apelação em Dresden, amigo e correspondente de Schiller. Sobre a carta

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Friedrich Schiller. A carta de Körner é documento fundamentalna história da crítica de Os anos de aprendizado, pois inscreve oromance de Goethe diretamente no campo semântico da Bildung

burguesa, reconhecendo ali a representação de um efetivo processo de formação. Em harmonia com a concepção crítica iniciada por Schiller em suas primeiras cartas a Goethe, o ensaio deKörner inscreve o romance na tradição da idéia da educação estética e moral.

As primeiras referências de Körner ao romance que Goetheentão escrevia podem ser encontradas em sua correspondênciacom Schiller. Percebe-se ali a opinião negativa que o restrito pú

blico tinha então daquele que se consagrara anteriormente comoo "autor do Werther": "Que achas do romance de Goethe? É eleisento daquela astenia e frieza que eu tenho encontrado em alguns de seus novos produtos?" (apud Gille, 1971, p.32).

O comentário de Körner alude certamente a uma comparação com Os sofrimentos do jovem Werther, romance anterior deGoethe publicado em 1774. Repita-se aqui que a popularidadede Goethe sofrera significativo decréscimo após a "febre de lei

tura" provocada pelo Werther, e que seu público em geral esperava a publicação de "um novo Werther", ou seja, um romancetão "eloqüente" quanto o primeiro. Tranqüilizado por Schiller,que, entusiasmado após a leitura do primeiro livro, afirma-lhe queo autor é, em Os anos de aprendizado, "sem dúvida muito maistranqüilo e mais frio do que no Werther, porém tão verdadeiro,tão individual, tão vivo como no romance citado, e que pelo livrotodo predomina 'um sentido claro e calmo, uma razão serena'

( apud Gi l l e , 1971 , p .33) , Körne r pa s sa en t ão a a companha r a pude Körner publicada em Die Horen comenta o próprio Goethe: "A carta de

Körner alegrou-me muito, tanto mais que me encontrou numa dura solidão

estética. A clareza e a liberdade com as quais ele abrange o seu assunto é

realmente admirável; ele paira sobre o todo, abrange as partes com persona

lidade e liberdade, escolhe aqui e lá uma prova para seu julgamento, decom

põe a obra para depois reuni-la à sua maneira e prefere deixar de lado o que

atrapalha a unidade que procura ou encontra, a só manter-se ou até mesmo

apoiar-se por completo, como habitualmente fazem os leitores." (Carta deGoethe a Schiller de 19.11.1796, ver Cavalcanti, 1993, p.93).

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blicação de cada volume. Após a leitura do último, envia umacarta a Schiller, editor da revista Die Horen, que a publica.

Ali, Körner, ao contrário de Schiller em sua última carta, reconhece a conclusão de um processo formador do protagonista,processo esse que teria culminado na aquisição de uma "humanidade harmônica". Para Körner, a representação do processo deformação do protagonista é efetivamente o tema do romance,processo esse que ele reconhece acabado, completado. Körner refere-se à composição do romance como um equilíbrio entre asforças individuais do homem e a influência das forças exteriores,da natureza e do ambiente, sobre o desenvolvimento pessoal.

Körner expõe sua concepção do romance de Goethe, Os anosde aprendizado de Wilhelm Meister, como a representação harmônica do processo de determinação do homem, considerandoainda o princípio da unidade no todo:

Eu concebo a unidade do todo como a representação de umabela natureza humana, que se aperfeiçoa gradualmente por meio daatuação conjunta de suas tendências interiores e das relações com ouniverso exterior. O objetivo desse aperfeiçoamento é o de um ple

no equilíbrio - harmonia com liberdade ... Quanto maior a capacidade pessoal de se deixar formar [Bildsamkeit], e quanto maior acapacidade formadora [bildende Kraft] do mundo circundante, tanto mais rica a nutrição do espírito que permite tal manifestação.(Apud Gille, 1979, p.10)

E Körner, portanto, o primeiro a apontar efetivamente a existência e um processo de formação totalmente realizado, culminandono desenvolvimento harmonioso das tendências do protagonista.

A fortuna dessa concepção, ao longo da história da crítica de Osanos de aprendizado, é incalculável. Christian Gottfried Körner,ao lado de Karl Morgenstern, criador do termo Bildungsroman,constrói efetivamente aquilo que se vem chamando, ao longo deste livro, de "signo literário", conjugando Os anos de aprendizadode Wilhelm Meister  ao campo semântico do termo Bildung(Bildsamkeit, bildende Kraft). É preciso ainda ressaltar que KarlMorgenstern, alude à crítica de Körner, ao classificar Os anos de

aprendizado como Bildungsroman (Morgenstern, in Selbmann,1988, p.66).

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Em consonância com essa concepção, Körner consideraWilhelm Meister efetivamente como um protagonista dotado deenergia, afirmação e independência. Considera que WilhelmMeister possui, no mais alto grau, aquelas qualidades que não sepodem obter a partir do mundo exterior, "espírito e força" (Geist und Kraft), afirmando ainda que Wilhelm Meister "pertence àquelaclasse de homens que em seu mundo são vocacionados para dominar". Christian Gottfried Körner insere o romance de Goethe,Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, numa perspectivaolímpica e clássica, a qual compartilha com Friedrich Schiller emsuas primeiras cartas. O romance abre, portanto, as perspectivas

de um mundo, "do qual se pôde esperar a formação não de umartista, de um homem de Estado, de um erudito, de um homemde bom-tom, mas sim de um exemplar do gênero humano" (apudGille, 1971, p.10. Humboldt e Herder - o Meister como epopéiae a crítica moralizante).

A leitura idealizadora de Os anos de aprendizado realizada porKörner encontra um contraponto, já mesmo em meio ao círculo dacorrespondência trocada entre o autor Goethe e seus comentadores

mais próximos. Inaugurando a série de comentadores do Meister que irão apontar certa "fraqueza de caráter" no protagonista,Wilhelm von Humboldt contesta as concepções defendidas porKörner. Considera traços de caráter de Wilhelm Meister

sua capacidade generalizada para se deixar determinar, destituídade quase toda determinação efetiva, sua contínua aspiração voltadapara todas as direções, sem uma energia definitiva e natural orientada para uma única, sua inesgotável tendência para reclamar, e suatibieza, para não dizer frieza de sentimentos, sem a qual não sepoderia compreender seu comportamento após a morte de Mariannee de Mignon. (Geiger apud Gille, 1971, p.43)

Para Humboldt, a perspectiva que transforma Os anos de aprendizado em obra única entre suas semelhantes é aquela que refleteuma visão orientada "para o mundo e para a vida", em oposição àrepresentação da trajetória de um desenvolvimento individual: "Em

minha opinião, realmente o grande mérito que faz do Meister umaobra única entre todos os seus semelhantes, é que ele [o romance

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Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister] descreve o mundo e avida exatamente como eles são, totalmente independentes de umaindividualidade singularizada, e exatamente por isso abertos parauma tal individualidade" (apud Gille, 1971, p.44).

No romance de Goethe, não se descreveria o desenvolvimentointerior e individual do protagonista, mas sim um quadro maisamplo, uma "reprodução do mundo". Dessa forma, Os anos deaprendizado se aproximariam, em termos de gênero, mais da epopéia, na qual se representam os acontecimentos exteriores, do quedo romance burguês, em que a tônica é a representação dos acontecimentos interiores.8

Em carta a Goethe de 28 de novembro de 1796, tambémSchiller compartilhará da opinião de Humboldt sobre o estatutodo herói Wilhelm Meister, em contraposição à opinião de Körnerque vê no Meister um verdadeiro herói de romance:

As lembranças de Humboldt sobre a carta de Körner parecemnão de todo insignificantes, embora ele, no que diz respeito à personagem de Meister, pareça ir longe demais pelo lado oposto. Körnerviu essa personagem muito como o verdadeiro herói do romance;

seduziram-no o título e a velha tradição de ter em todo romance umherói. Wilhelm Meister chega a ser necessário, mas não é a figuramais importante; justamente pertence às singularidades do romance,a de não ter nem precisar de uma figura mais importante. Por ele eem torno dele acontece tudo, mas na verdade não por sua causa;

 justamente porque as coisas em torno dele representam e expressamenergias, mas ele [representa] o ideal de formação, então ele deve teruma relação totalmente diferente com as outras personagens da quetem o herói em outros romances. (Cavalcanti, 1993, p.96)

A primeira recepção de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, realizada no âmbito privado e intelectualizado do círculode amigos de Goethe, encontra-se, portanto , impregnada pelas dis-

8 Ê preciso lembrar que, já no século XX, essa aproximação de Os anos deaprendizado de Wilhelm Meister à epopéia constituirá a base da aceitação doromance por parte de Georg Lukács. Em seu segundo estudo sobre a obra,reproduzido na edição brasileira de Os anos de aprendizado, Lukács considera

o romance de Goethe como a conciliação entre o excessivo individualismoburguês, peculiar ao romance moderno, e o universo coletivo da epopéia.

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cussões estéticas da época. A leitura do romance varia, assim, desdesua compreensão como obra representativa dos ideais da "educação estética" (como nas primeiras cartas de Schiller), passando pela

afirmação de Körner a qual reitera a representação da "formaçãonão de um artista, de um homem de estado, de um erudito, de umhomem de bom-tom, mas sim de um exemplar do gênero humano",chegando à perspectiva de Humboldt que o aproxima do universocoletivo da epopéia, apontando assim para a escassa individualidade do caráter do herói. É preciso ainda ressaltar que todas essasconcepções originaram, cada uma delas, uma tendência crítica, quese deixa reconhecer ao longo da história da obra Os anos de apren

dizado de Wilhelm Meister bem como do conceito Bildungsroman.Delineia-se, portanto, já nas primeiras leituras do Meister, o carátercontrovertido da obra e de sua conjunção ao conceito Bildungsroman, caráter esse que se reflete permanentemente nas tentativasde se definir esse mesmo conceito a partir de características bastante objetivas, morfológica e tematicamente.

Ao lado da crítica que enfatizou basicamente a composiçãoestética da obra, expressou-se também uma crítica de teor efeti

vamente moralizante, que apontou no Meister a existência de uma"moral frouxa".

É também por meio da correspondência privada que se podeter acesso à opinião de Herder sobre Os anos de aprendizado. Emcarta de 1796 à Condessa Baudissin, Herder comenta o romancede Goethe a partir de uma leitura do quarto livro do romance. Nessacarta, Herder expressa sua principal objeção ao romance, deixando clara sua reprovação quanto ao tipo de comportamento femi

nino ali retratado, criticando em conseqüência o envolvimento doprotagonista com tais personagens:

As Marianes e Philines, toda essa confusão é-me odiosa. Eucreio que o autor também deve ter desejado torná-las desprezíveis,como talvez a seqüência do livro deverá demonstrar. Infelizmente,ele não nos deu essa seqüência, apresentando apenas a primeiraparte. Mas também aqui Goethe agiu conforme sua própria vontade. Qualquer que seja a dita seqüência, o protagonista não poderá

livrar-se de sua mácula; com que tipo de criatura ele desperdiçouseu primeiro amor! (apud Gille, 1971, p.56)

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Klaus Gille caracteriza de maneira bastante clara o cerne dessaapreciação moralizante "negativa" de Os anos de aprendizado, que

Herder tão bem representa. Segundo Gille (1971, p.60), o "friodistanciamento com o qual Goethe se retira para trás de suas personagens, a superioridade irônica com que ele as deixa agir, são pouco apropriados para despertar uma atividade moral no leitor". Ocomentário de Gille aponta para uma concepção da época, herdadado Iluminismo, que preconiza à obra literária um caráter formador,didatizante.

A crítica de Herder a Os anos de aprendizado, expressada na cartade 1796 à Condessa Baudissin, constrói-se, portanto, a partir de duasconstatações básicas. A primeira refere-se à "má companhia" (schlechteGesellschaft) em meio a qual Goethe traz seu protagonista. É umaconcepção moralizante, que encontrará continuidade em Novalis, JeanPaul e mesmo em Friedrich Schlegel. O segundo aspecto importanteda crítica de Herder refere-se à atribuída simpatia de Goethe pelaaristocracia, já reconhecida anteriormente por Schiller quando constata que no romance não há "nada de sansculotista". Böttiger refere-se à reação de Herder ainda durante a leitura do quarto livro do

Meister: "Herder queixou-se dos sofismas que Goethe constrói comtanta freqüência, e também da maneira como, por meio de Lothario,que ele louva por todo o canto, sejam colocadas almofadas para suster a voluntariedade dos grandes" (Böttiger apud Gille, 1971, p.62).

A referência contempla possivelmente a posição de Lotharioante os princípios da economia feudal, quando este defende que aincidência de impostos sobre as terras pertencentes também aosaristocratas deveria garantir a "segurança do direito de proprieda

de" (die Sicherheit des Besitzes) (Wilhelm Meisters Lehrjahre, 1962,p.507). Lothario defende assim o pagamento de impostos ao Estado como forma de assegurar privilégios "dos grandes". E possívelque Herder esteja aludindo também ao comportamento leviano deLothario ante os negócios amorosos, comportamento esse garantido sobretudo pela sua posição social superior.

Ainda no círculo de Weimar, encontra-se a apreciação deCharlotte von Stein, amiga de Goethe, cuja compreensão de Os anos

de aprendizado parece ter sido realizada segundo a mesma críticamoralizante praticada por Herder:

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Além do mais, suas mulheres ali são todas de comportamentoinadequado, e onde quer que ele, aqui e ali, concretize sentimentosnobres na natureza do homem, trata logo de cobri-los com um pouco

de lama, para que não reste nada de celestial na natureza humana.(apud Gille, 1971, p.64)

Pode-se depreender que as primeiras interpretações de Os anosde aprendizado de Wilhelm Meister refletem a ausência de "popularidade" de seu autor à época, traduzida menos quantitativamentedo que qualitativamente. O romance de Goethe, como demonstramos testemunhos colhidos por Klaus Gille, foi efetivamente lido por

um círculo próximo ao autor, até mesmo antes de sua publicação;essa leitura orientou-se, porém, por perspectivas estéticas e moraisevidentemente estreitas para uma "compreensão" da obra. A crítica exercida por Herder, assim como por Humboldt e Charlottevon Stein, não teve sensibilidade para a "ironia com a qual Goethetrata seu protagonista." (Gille, 1971).

Os primeiros leitores do Meister construíram certamente umaexpectativa de leitura que reclamava a representação de um efetivo

processo de desenvolvimento do protagonista, expectativa essa quereconheceram frustrada. Daí o teor das críticas que atribuem aGoethe uma ausência de moral e de ideal.

Goethe escaparia, portanto, do enquadramento do autor nafigura do "reformador do mundo" (Weltverbesserer), daquele queproduz de obras destinadas a elevar e efetivamente educar seus leitores. Nesse aspecto, é representativo o comentário da CondessaSchimmelmann, de Nordelbingen, na Dinamarca, onde se estabe

lecera ao redor do conde e camareiro imperial Ernst HeinrichSchimmelmann uma sociedade literária cujo gosto se formara apartir do Aufklärung e da filosofia kantiana, aliada a um verdadeiro "culto" a Schiller. Sobre Goethe, a Condessa declara:

É certo que ele [Goethe] esquadrinha com olhar profundo ocoração humano e raramente encontra ao redor reais virtudes - porém, parece-me que exibir dessa maneira a onipotência do mal e dabaixeza no Homem não é tarefa de um verdadeiro reformador do

mundo, o qual pode e deve conduzir-se em toda sua dignidade, (apudGille, 1971, p.74)

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O próprio Goethe reconhecerá posteriormente as conseqüências da vinculação que se fez de parte de sua obra uma literatura

que tivesse por função precípua educar e elevar o público leitor. Emsuas memórias, referindo-se à comoção provocada pelo romanceepistolar Os sofrimentos do jovem Werther (1774), Goethe ressente-se de que

 Não se pode exigir que o público acolha intelectualmente umaobra intelectual. Não se considerou senão o fundo, o tema, como jáo tinham feito meus amigos; ademais, viu-se reaparecer o velho

 preconceito, fundado na dignidade de uma obra impressa, de que ela

deve ter uma finalidade didática. Mas a verdadeira exposição nãotem tal objetivo. Não aprova nem condena: desenvolve no seu encadeamento próprio as ações e os sentimentos, e é dessa forma queesclarece e instrui. (Goethe, 1986, p.445, grifos da autora)

Embora o trecho citado se refira em princípio diretamente aWerther, pode-se estender sua aplicação sem sombra de dúvida auma ordem de pensamento mais ampla. A reflexão de Goethesobre a interpretação de sua obra é paradigmática em relação às

primeiras críticas moralizantes a Os anos de aprendizado, na medida em que estas exigiram diretamente um posicionamento doautor que visasse ao aperfeiçoamento das relações sociais.

As primeiras críticas na imprensa

Ao lado da crítica exercida no círculo pessoal da correspondência, encontram-se também as primeiras críticas públicas sobre Os

anos de aprendizado. Trata-se sobretudo de resenhas publicadas emperiódicos eruditos, comprometidos com "o espírito da Aufklärung,que observavam a vida literária em Weimar com grande reserva ecujos editores e colaboradores tornavam-se freqüentemente vítimasdas Xenien"9 (Gille, 1971, p.79). Basicamente, essa crítica susten-

9 Reproduz-se aqui a nota explicativa de Cláudia Cavalcanti (1993, p.49) sobre as "Xenien": "Goethe havia expressado [a Schiller) a idéia de fazer críticas à literatura contemporânea em forma de dísticos epigramáticos satírico-polêmicos, levado principalmente pelas crescentes e severas observações que

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tou-se sobre a comparação entre Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister e Os sofrimentos do jovem Werther, reificando o visível pen

dor público em favor do segundo.

10

Citem-se aqui dois exemplos:"Em vão se procura aqui a representação pulsante e o profundo sentimento que respiram no Werther; aqui, trata-se apenas de manifestações isoladas, que, ao desaparecer, permitem que se vislumbrenovamente o autor" (Gille, 1971, p.81).

Da mesma forma expressa-se Georg Sartorius, professor deHistória e de Administração Pública em Göttingen: "A expectativa de se encontrar nesta nova obra algo de semelhante ao Wertherencontra-se frustrada em mais de um aspecto. Meister jamais encontrará um público tão grande como encontrou o Werther" (Gille,1971 , p.81).

Ao passo que as resenhas publicadas nos periódicos da épocatinham como principal referência a comparação entre os dois romances, com visível predominância a favor de Werther, o primeirolivro publicado sobre Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister parece ao contrário louvar, em Os anos de aprendizado, aquelas

fazia sobre o público leitor por causa da má aceitação que tiveram As horas[Die Horen]. Além disso, a correspondência entre os dois escritores mostrava o ceticismo relativo às possibilidades que tinham de impor suas posiçõesa um público mais amplo".

10 Uma das únicas vozes a se levantar contra o lugar comum da crítica quepreferiu o Werther ao Meister  foi a de Karl Morgenstern, o criador do termo

 Bildungsroman. O trecho a seguir, publicado na Neue Bibliothek der SchönenWissenschaften [Nova Biblioteca das Belas Ciências), periódico editado emLeipzig, parece constituir resposta direta ao comentário de Georg Sartorius

transcrito no corpo do texto:

"O senhor, meu amigo, e consigo muitos de meus conhecidos, esperam um 'pendant' aos sofrimentos de Werther. Como não o encontram,queixam-se da expectativa frustrada. Mas o que significaria esperar umWerther Segundo? O grande artista destrói a fôrma de sua magnífica obrade arte, pois é orgulhoso demais para reproduzir a mesma coisa ou mesmo uma obra semelhante. Goethe especialmente é um Proteu, que seapraz com a eterna transformação das inúmeras e diferentes formas, domesmo modo que a Natureza em suas criações. Esta não se limita a umdeterminado estilo, ao compor suas obras. Assim, o mais perfeito estilo

do gênio seria não possuir estilo algum, mas sim representar o objeto emtodas as suas particularidades" (Morgenstern apud Gille, 1971, p.83).

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qualidades certamente ausentes em seu predecessor. A primeiracrítica publicada em livro sobre o Meister  é a obra de DanielJenisch, Ueber die hervorstechendsten Eigenthümlichkeiten von

 Meisters Lehrjahren; oder über das, wodurch dieser Raman ein Werk von Götbens Hand ist [Sobre as mais evidentes qualidades de Osanos de aprendizado de Wilhelm Meister; ou, sobre aquilo que

 faz deste romance uma obra das mãos de Goethe], de 1797.Jenisch, pregador, poeta e escritor berlinense de pouca ex

pressão e freqüente alvo de zombaria dos autores das Xênias edas Horas, louva em sua obra as qualidades pequeno-burguesas econciliatórias que considera presentes no romance de Goethe,

como o casamento burguês, o papel da mulher na constituição dasociedade, a função do trabalho.

A interpretação de Jenisch, que se pode considerar, no mínimo, ingênua, tem sua origem explicada por mecanismos sociaisvigentes à época da publicação de Os anos de aprendizado deWilhelm Meister. A emergente burguesia mercantil projeta seusanseios e ideais sobre uma forma narrativa que os representassede maneira "sublime", por sua vez também idealizada. Ao situar

o protagonista de Os anos de aprendizado a meio caminho entre ogênio e o herói burguês, Daniel Jenisch empresta grandiosidadeao estreito círculo de atuação ao qual o burguês está destinado.Considera o caráter mediano de Wilhelm como "a virtude máxima da tranqüila vida privada", "a imagem da pura humanidade".Acrescenta ainda que, estando Wilhelm a meio caminho do gênioe do herói, "ele age, na balança da dignidade moral, com maiorgrandiosidade do que ambos". Assim, a leitura de Jenisch, embo

ra ingênua, eleva o burguês da posição acanhada que lhe é reservada no mundo social à qualidade de herói romanesco, projetandoassim os ideais coletivos da própria burguesia retratada na obra.Para Wilhelm Vosskamp, o romance de Goethe "oferece a possibilidade de identificação e de projeto para um público leitor médio, que se reconhece nas personagens e nas constelações depersonagens do romance. A estreita conjunção entre a produção e o consumo de literatura conflui, além disso, para a consti

tuição de uma nova consistência estética do romance no conjuntoda narrativa do século XVIII" (Vosskamp, 1986, p.338).

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O comentário de Vosskamp esclarece não apenas a relação quese institui entre o romance de Goethe e uma interpretação que sepode chamar de conciliatória, como a realizada por Jenisch, comotambém salienta a relação entre o processo de emancipação estética do romance como gênero e o processo de auto-reflexão ensejadopor um público leitor oriundo da burguesia mercantil.

Acompanhando-se, portanto, a história crítica de Os anos deaprendizado de Wilhelm Meister desde as suas primeiras manifestações no âmbito privado até a publicação do primeiro livro quetrata especificamente do romance de Goethe, obtém-se um traçado crítico que projeta as vertentes históricas e discursivas quecolaboraram para a conjunção das partes que formam o signo literário Bildungsroman, ao mesmo tempo em que já reflete a tra

 jetória polêmica desse mesmo signo. Em um mesmo período detempo e espaço cultural, constroem-se opiniões como as do primeiro Schiller, que vê no romance de Goethe um digno exemplardas idéias estéticas do classicismo weimariano, de acordo com suaspróprias teorias estéticas; o mesmo Schiller, meses mais tarde, iráapontar no Meister deficiências no caráter do protagonista em re

lação à perfectibilidade de seu desenvolvimento estético e filosófico; lado a lado com Schiller, estabeleceu-se a opinião de ChristianGottfried Körner, que considera efetivamente representado noromance um processo formador perfeito, acabado. Alinham-seainda as opiniões do público culto e restrito que constituiu a primeira camada de leitores de Os anos de aprendizado, cujas opiniõesassinalam uma fraqueza moral naquele que deveria ser o protagonista de um processo de formação, ao lado da interpretação

burguesa conciliatória de Daniel Jenisch, no primeiro livro sobreo Meister.

A CRÍTICA PRIMEIRO-ROMÂNTICA A OS A N O S D E

APRENDIZADO DE WILHELM MEISTER -

FRIEDRICH SCHLEGEL E NOVALIS

A crítica exercida pelos primeiros românticos FriedrichSchlegel e Novalis sobre Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister 

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é peça relevante para a história do Bildungsroman, assim comopara a concepção da "nova literatura" que então começava a sefirmar, contendo já princípios estéticos fundamentais do chama

do primeiro romantismo.Em relação à tradição crítica do romance de Goethe, os traba

lhos de Schlegel e Novalis são fundamentais porque apontam, emmeio à recepção diversificada de Os anos de aprendizado, a oscilaçãoexistente entre o cânone e a ironia, entre uma leitura harmoniosa econciliatória e uma outra leitura, moderna e "problemática".

Realizada e veiculada em outro círculo que não aquele dosamigos do autor e seus comentadores mais imediatos, a crítica

por Schlegel e Novalis sinaliza um deslocamento em relação auma compreensão do Meister  como obra harmônica e conciliatória, como difundida por Daniel Jenisch, ou mesmo em relaçãoà compreensão predominantemente estética e classicista porFriedrich Schiller. É preciso ainda acrescentar que, tanto no ensaio de Schlegel quanto nas anotações de Novalis sobre o Meister,a questão da "formação" ultrapassa a perspectiva dos primeiroscríticos do romance que viram em Os anos de aprendizado um

conteúdo programático da formação burguesa que se estendiamesmo em direção ao leitor. A Bildung está efetivamente presenteno texto dos dois primeiros românticos sobre o Meister, porémnão imediatamente relacionada a um conteúdo pessoal e programático da formação do indivíduo. Em Schlegel e Novalis, trata-seantes da formação mesmo de um novo paradigma estético-científico-filosófico, da qual o romance de Goethe Os anos deaprendizado de Wilhelm Meister é um indicador de caminhos.

Dessa forma, a leitura de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister pelos primeiros românticos Schlegel e Novalis determinanovas possibilidades para a pesquisa sobre o romance de Goethecomo parte integrante do signo literário Bildungsroman.

A concepção poética de Friedrich Schlegel

A resenha de Friedrich Schlegel sobre Os anos de aprendiza

do de Wilhelm Meister, Über Goethes Meister [Sobre o Meister deGoethe] (1798) integra, ao lado de seu ensaio teórico Gespräch

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über Poesie [Conversa sobre poesia], dos Fragmente e dos Hymnenan die Nacht [Hinos à noite], de Novalis, o cume da produçãotrazida a público no Athenäum, periódico fundado por Friedrich

e seu irmão August Wilhelm Schlegel.O Übermeister, como assim se referiu ao ensaio o próprio

Schlegel, traz em si princípios de uma teoria literária a qual Schlegelcomeçava a sistematizar. Princípio norteador dessa teoria foi o reconhecimento da diferenciação entre Antike e Moderne, entre a Antigüidade clássica, modelo até então perseguido como perfeição, e adisposição moderna e "característica", "interessante" e "em progressão", como Schlegel irá depois caracterizar a "nova literatura".

O jovem Schlegel, discípulo e admirador de Winckelmann,nutria admiração pela arte da Antigüidade clássica e respeito pelas normas de criação artística dela decorrentes. (Hans Eichneridentifica, nessa admiração nutrida pelo século XVIII em relaçãoaos ideais da Antigüidade, uma espécie de utopia voltada para opassado, "pela qual se cunhou um contrapeso espiritual e intelectual à estreiteza e monotonia da vida burguesa".)

O ensaio intitulado Ueber das Stadium der griechischen Poesie

[Do estudo da poesia grega] (1795) foi originalmente concebidocomo prefácio e base teórica de uma história da literatura. Ali seanuncia o estudo da poesia antiga grega como o único caminho aser trilhado pela poesia moderna, a fim de se libertar de suas tendências errôneas e de poder elevar-se em direção ao verdadeiro Belo.

Nesse estudo, Friedrich Schlegel opõe duas categorias poéticas, aquela produzida pela civilização natural ("natürliche"Civilisation - a Antigüidade greco-romana) e a civilização artificial

("künstliche").¹¹ A civilização da Antigüidade produziu uma "poesia natural", na medida em que esta se submete ao ciclo da infância, juventude, idade viril e senilidade, ao passo que a nova civilizaçãocria, a partir dos artifícios da razão,'2 uma "poesia artística", quenão se submete, portanto, ao ciclo natural de evolução.

11 A tradução de Willi Bolle, em Fundadores da Modernidade, é  "poesia artística", em contraposição a "poesia natural".

12 Entende-se aqui "razão" (no original, Verstand) não no sentido iluministapleno; é antes provável que designe a capacidade humana de fabricação, de

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Para o Schlegel do Studiumaufsatz, a "poesia artística" sofrede uma heterogeneidade descaracterizante. Descreve a poesia danova civilização como um "armazém estético" onde se alinham

produtos poéticos variados e de gosto duvidoso:

Como em um armazém estético, encontram-se aqui lado a ladopoesia popular e poesia de bom-tom, e mesmo o metafísico procura, não sem sucesso, seu próprio sortimento; epopéias nórdicas oucristãs para os amigos do norte e da cristandade; histórias fantasmagóricas para os apreciadores dos horrores místicos, e odes iroquesasou canibais para os apreciadores de carne humana... (Schlegel, 1988,p-222)

Schlegel considera então que a existência de uma heterogeneidade poética, característica da "arte artificial", desfaz o ciclonatural do desenvolvimento da civilização (e da arte), sendo portanto compreendida de forma negativa; três anos depois, Schlegelescreve uma crítica laudatória de Os anos de aprendizado de Wilhelm

 Meister, obra em que o particular e o "interessante", o subjetivo e olocalizado configuram e sustentam a narrativa, distanciando-seportanto da almejada objetividade clássica. Assim, o outrora "discípulo de Winckelmann" redireciona seus posicionamentos estéticos;em lugar de uma rigorosa objetividade clássica, alheia à heterogeneidade temática e genérica, Schlegel desenvolve uma poética"moderna",13 da qual Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister ésignificativa ilustração.

produção de artefatos, de indústria, que se oporia ao estado "natural" dascivilizações antigas.

13 René Welleck define o conceito de poesia moderna em Schlegel: "A poesiamoderna é artificial, 'interessante' (isto é, não desinteressada, envolta nosfins pessoais do autor), 'característica', 'amaneirada' (no sentido que davaGoethe à palavra, o qual contrasta a maneira subjetiva com o estilo objetivo),impura na mistura e confusão de gêneros, impura na sua mescla do didáticoe filosófico, impura por incluir até mesmo o feio, o monstruoso e anárquico, e em sua rejeição a leis. A literatura moderna sente o 'terrível mas infrutífero desejo de espalhar-se até o infinito, a sede ardente de penetrar o individual". [das furchtbare und doch fruchtlose Verlangen sich ins Unendlichezu verbreiten; der heiBe Durst das Einzelne zu durchdringen] (citado na

reedição de Jakob Minor, Friedrich Schlegel 1794-1802: seine prosaischen Jugendschriften, Welleck, 1967, p.308).

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Eichner localiza, a partir de 1797, o ponto de inflexão naconcepção estética desenvolvida por Schlegel, configurada por umaampliação do horizonte (quase que) estritamente classicista emdireção à sua obra vinculada ao romantismo. O teórico que pregava a estrita separação entre "poesia" e "ciência", para quem apoesia não deveria "filosofar" e a filosofia por sua vez não deveria "poetizar", passa a conclamar a união de "Goethe e Fichte",da arte e da ciência, e, em lugar da clássica separação dos gêneros, prega a concepção de uma "poesia mista" (Mischgedicht). Oromance encontra-se no cerne dessa nova poética. (Em seuStudiumaufsatz, entendido aqui como a defesa dos ideais do

classicismo grego, apontava já para as possibilidades da poesiauniversal progressiva, concepção a ser desenvolvida pelo Schlegelromântico.)

Os fragmentos publicados no Lyceum em 1797 veiculam ma-nifestadamente a oposição a uma concepção estritamente clássica:

Todos os gêneros poéticos clássicos em seu purismo rigorososão agora ridículos. (Schlegel, 1991, p.36)

Os antigos não são nem os judeus, nem os cristãos, nem osingleses da poesia. Eles não são um povo aleatoriamente escolhidopor Deus para o exercício da arte, tampouco são detentores docredo exclusivo do Belo; não possuem também um monopólio poético. (Ibidem, 1988, Lyceums Fragmente 91)

Toda a história da poesia moderna é um comentário contínuodo breve texto da filosofia: toda arte deve tornar-se ciência, e todaciência deve tornar-se arte; a poesia e a filosofia devem tornar-se

uma só. (Ibidem, 1991, p.37)

Essa reorientação estética de Friedrich Schlegel teria origem,segundo seu estudioso Hans Eichner, em acontecimentos e conflitos pessoais. O Schlegel da juventude queixara-se, em cartasíntimas, de sua falta de harmonia pessoal, do predomíniodestrutivo "da racionalidade artificial" sobre seu estado de espírito. Essa mesma fragmentação ele descobriu na poesia moderna,

identificando-se com o Hamlet de Shakespeare, cuja queda deveu-se à "desarmonia", "à relação equivocada e desmedida entre

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a atividade do espírito e a atividade prática" (Ibidem, 1988, p.248).Para Schlegel, Hamlet constitui ponto alto da poesia moderna, naqual ele identificara também a perfeita ilustração da tendência ao"filosófico", ao "interessante".

Encontra-se então preparado o terreno para o trabalho sobreo Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, no qual, como sesabe, uma encenação do Hamlet  constitui ponto de crise (ou desolução de crise!) da trajetória de Wilhelm Meister.

A poesia romântica moderna como pressupostoteórico para a crítica do Meister

Ao detectar a emergência de uma estética nova, FriedrichSchlegel identificou-a a uma corrente principal, derivada da oposição entre Antigüidade e Modernidade. Essa literatura, contidano "essencialmente moderno" (Wesentliches-Modernes) careciade um conceito que abarcasse, em sua amplitude, a emergentecomplexidade estética. Os adjetivos "característico", "interessante", "didático", entre outros, já haviam sido empregados porSchlegel no Studiumaufsatz como indicativos da literatura maisrecente.

O nome para a literatura "essencialmente moderna", pelo qualse decidiu Schlegel foi "poesia romântica" [romantische Poesie], e aantítese hoje tão manifesta entre clássico/romântico deve a tal decisão sua existência. (Eichner, 1985, p.33)

O adjetivo "romântico", em voga nos circuitos estéticos aofinal do século XVIII, comportava conotações variadas (cf. Eichner,1972). Para este trabalho interessa mais especificamente um significado que hoje se perdeu e que se deixa recuperar amiúde naleitura dos manuscritos de Schlegel especialmente entre os anos1797 e 1800. Assim como "épico", "lírico" e "dramático" referem-se aos gêneros epopéia, lírico e drama, o adjetivo "românti

co" referia-se, para Schlegel e seus contemporâneos, ao gênerodo romance. Não se trata, como frisa Hans Eichner em seu prefá-

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cio a Ueber Wilhelm Meister, de um sentido excludente das outraspossibilidades, mas de uma acepção a mais, passível de convivência com todas as outras acepções suas contemporâneas (como "ro

mântico" em oposição ao prosaico, expressão do fantástico e doexótico, ou mesmo no sentido de "estória de amor", ou ainda naacepção que aponta para a língua e literatura românica popularda Idade Média e da Renascença).

Para Schlegel, o romance constituiu o "fenômeno central" dapoesia "essencialmente moderna", à qual ele passa a denominar,por isso mesmo, "romântica". Constrói-se assim a seqüência cronológica das formas estéticas mais significativas para o mundoocidental: "Três gêneros poéticos predominantes 1, tragédia entre os gregos 2, sátira entre os romanos 3, romance entre os modernos" (Schlegel, 1988, p.88, v.XVI).

Embora o termo "romance" caracterizasse sobretudo, ao final do século XVIII, o mesmo tipo de narrativa em prosa mais oumenos realista como ainda hoje o entendemos, a amplitude designificação era bem maior, assim como ocorre com o adjetivo

"romântico". A época de Schlegel, o termo podia abarcar desde ogênero relativamente jovem e especialmente fluente na Inglaterrada segunda metade do século como também Faerie Queene deSpenser, Niebelungenlied, Orlando Furioso de Ariosto, ou mesmoas peças de Shakespeare, que para Herder constituíam "romancesfilosóficos".

O termo "romântico" possuía então, à época de Schlegel(1991, p.39), uma carga semântica que possibilitara um amplo

espectro de conotações, adequando-se à caracterização de umaliteratura moderna que se opusesse especialmente à contenção eorientação para a hegemonia dos modelos clássicos. "Romântico" qualifica-se então como expressão do "essencialmente moderno", do romanesco, do poético e do prosaico. Para Schlegel, oconceito deve conter em si todos os "subgêneros" possíveis, o drama e o épico, a poesia e a filosofia, o fantástico, o sentimental; acrítica e a filosofia devem unir-se à poesia, constituindo assim a

"poesia universal", em clara oposição aos ideais puristas de seusescritos anteriores.

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O romance, segundo a acepção de Schlegel como gênero ca

paz de abarcar em si todos os assuntos e formas possíveis, não

pode constituir uma especificidade histórica, mas sim "uma tare

fa sempre inacabada", um ideal, do qual é possível aproximar-se,mas nunca realizá-lo: o romance é a forma progressiva par 

excellence, e a poesia romântica, como o famoso fragmento 116

da Athenäum proclama, "poesia progressiva universal".

116. A poesia romântica é uma poesia universal progressiva. Ela sedestina não apenas a reunir todos os gêneros separados da poesia e

 pôr a poesia em contato com a filosofia e a retórica. Ela quer, etambém deve, ora misturar, ora fundir poesia e prosa, genialidade ecrítica, poesia artística e poesia natural, tornar a poesia viva e sociável, e a vida e a sociedade poéticas, poetizar o chiste e encher esaturar as forma artísticas com todo o tipo de substância sólida paraa formação, animando-as com as pulsações do humor. Só a poesiapode, como a epopéia, se tomar o espelho de um mundo inteiro emvolta, uma imagem da época ... Ela é capaz da formação mais aprimorada e universal, não só de dentro para fora, como também defora para dentro. Para cada totalidade que seus produtos devemconstituir, ela organiza uma totalidade semelhante em todas as suaspartes, abrindo desse modo a perspectiva para uma classicidade crescente sem limites. A poesia romântica é, entre as artes, o que ochiste é na filosofia, e o que a sociedade, as relações, o amor e aamizade são na vida. Outros gêneros poéticos já estão terminados,podendo agora ser inteiramente analisados. A poesia romântica aindaestá se formando; e é esta a sua verdadeira essência, o eterno devir,sem jamais se dar por acabada. Nenhuma crítica pode esgotá-la, eapenas uma crítica divinatória poderia ousar classificar seu ideal.Só ela é infinita, assim como só ela é livre; e ela reconhece como suaprimeira lei que a vontade do poeta não deve submeter-se a lei ne

nhuma. O gênero da poesia romântica é o único que é mais que umgênero e que é, por assim dizer, a própria arte poética: pois, numcerto sentido, toda poesia é ou deve ser romântica. (1991, p.39)

O fragmento 116 foi publicado na mesma edição da Athenäum

em que Schlegel trouxe a público sua resenha sobre o Meister.

Uma vez que o gênero "romance" detém a posição central em sua

teoria poética, é natural que Schlegel se ocupasse do romance

"mais significativo e com maior poder gerador de influência"

(Eichner, 1985, p.39) dos anos 90.

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A resenha de Friedrich Schlegel sobreOs anos de aprendizado de Wilhelm Meister

O "Übermeister" veio a público na segunda edição do Athenäum,em junho de 1798, projetada para ser a primeira parte de um trabalho cuja continuação, porém, nunca foi escrita.

Friedrich Gundolf classifica o ensaio de Schlegel como "amelhor crítica existente em língua alemã", enquanto Jakob Steinero inclui entre os "mais eminentes documentos produzidos peloespírito crítico alemão".

A confrontação inicial com o texto de Schlegel pode levar,

porém, o leitor (mesmo o mais sensível, e talvez especialmenteeste) a uma certa perplexidade e confusão em seus horizontes deexpectativa. Já que, se Schlegel elegera no romance, ao lado dofragmento, o veículo essencial da poesia moderna universal progressiva, se o fragmento 216 da revista Athenäum eleva o Meister de Goethe, ao lado da Revolução Francesa e da Doutrina das ciências de Fichte, à condição de figurar entre as "maiores tendências da época", e se o próprio ensaio de Schlegel é considerado

como crítica modelar, como encaixar um tom algo incerto no maisdas vezes em relação ao seu personagem principal, apontandomesmo que este é mera pilastra na arquitetura do romance, enquanto "a abóbada que aspira ao céu", o homem "completo" cujo"espírito encontra-se em contínuo progresso" (Schlegel, 1956,p.282) configura-se em outro, em Lothario, a "figura humana maisinteressante do romance"?

Uma das linhas condutoras do ensaio de Schlegel é a compre

ensão de que Wilhelm Meister não é a personagem principal.Enquanto a mesma idéia, em Schiller, é compreendida como decorrência do fato de que Os anos de aprendizado não necessita deter um protagonista, em Schlegel (1956, p.282) existe a claraafirmação de que Meister é personagem secundária: "Lothario, oAbade e o Tio são, em certa medida, e cada um a seu modo, opróprio espírito do livro; os outros são apenas caracteres semautonomia".

A leitura de Über Goethes Meister  transita por um discursocrítico sem dúvida laudatório, em que o elogio à obra, entretan-

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to, não se estende sempre e necessariamente ao elogio do represen

tado; o parágrafo introdutório fornece-nos já um breve exemplo

de como essa dicção sutil irá impor-se por todo o ensaio, tornan

do-o talvez por isso mesmo "exemplar":

Sem pretensão e sem alarde, como se dá a formação silenciosa

de um espírito sequioso, e da mesma forma como o mundo em

transformação se eleva suavemente a partir de seu interior, assim

começa essa história clara. Aqui não acontece nada fora do comum

e não se fala de assuntos extraordinários, tampouco são grandiosas

ou espetaculares as personagens que se adiantam: uma velha esperta, que acima de tudo considera as vantagens, e que concede a prece

dência ao pretendente mais rico; uma jovem que, nem bem se livradas tramas dessa perigosa conselheira, entrega-se impetuosamenteao amante; um rapaz puro, que consagra a uma atriz a bela chamade seu primeiro amor. (Ibidem, p.263, grifo da autora)

As linhas mestras da crítica de Schlegel ao Meister são sobretu

do o reconhecimento da presença da ironia 14 do próprio enunciado

14 São grandes as dificuldades para se delimitar um conceito definitivo da ironia literária. No âmbito deste capítulo, acreditamos não se tratar nem dachamada "ironia retórica, socrática, ou mesmo da chamada 'ironia romântica', cujos recursos concorrem para a 'destruição deliberada da ilusão'" comoem Tieck e Brentano, E. T. A. Hoffmann e Heine. A ironia que FriedrichSchlegel reconhece na obra de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm

 Meister  e que ao mesmo tempo emprega em seu próprio ensaio sobre oromance, é reconhecível como o princípio da união dos contrários: "a percepção de uma contradição irreconciliável entre o não-contingente e o contingente, da impossibilidade e necessidade de uma comunicação perfeita"(das Gefühl von den unauflöslichen Widerstreit des Unbedingten und des

 Bedingten, der Unmöglichkeit und Nothwendigkeit einer vollständigen Mittheilung) (Lyceums-Fragment 108, Das Fischer Lexikon 2/1 p.306). Segundo a formulação de René Welleck (1967, p.13), "a ironia é, para Schlegel,o reconhecimento do fato de ser o mundo, em sua essência, paradoxal, e deque apenas uma atitude ambivalente pode apreender a sua totalidade contraditória. Schlegel considera a ironia como a luta entre o absoluto e o relativo [des Unbedingten und des Bedingten], a consciência simultânea da im

 possibilidade e a necessidade de uma descrição completa da realidade [derUnmöglichkeit und Nothwendigkeit einer vollständigen Mittheilung]" (sãomeus os grifos e colchetes inseridos na tradução portuguesa de Lívio Xavier

para o mesmo trecho do fragmento 108 acima transcrito em sua totalidade).Essa atitude ambivalente irá permitir um distanciamento e uma objetividade

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em relação ao objeto da narrativa, e a percepção da organicidadeque articula as partes do todo. Logo no início do ensaio, Schlegel(p.267-8) expressa uma recomendação de leitura válida não apenaspara a obra em questão, mas com certeza a ela aludindo:

É bom e necessário entregar-se inteiramente ao efeito de umaobra, permitir ao artista que faça conosco o que lhe aprouver, deixando que a reflexão confirme o sentimento apenas em determinados pontos singulares, elevando-os ao pensamento e, onde aindapersistir a dúvida ou a controvérsia, decida e complete o sentido.Isso é o primordial e o mais importante ... É preciso que nos elevemos acima de nossas preferências e que sejamos capazes de destruir 

em pensamento aquilo que veneramos. (Grifo da autora)

O parágrafo citado é exemplar quanto à dicção predominante por todo o texto; enquanto as primeiras linhas sinalizam parao predomínio da fruição quase que intuitiva, não reflexiva, as últimas afirmam a necessidade de uma postura crítica ante o texto,a qual só se consegue pela isenção.

Logo, o próprio ensaio crítico de Schlegel sobre o Meister 

mostra-se também um exemplo da aplicação da ironia que o autor reconhece presente também em seu objeto, configurando assim um exemplo típico da crítica romântica, "que é menos um

 julgamento da obra de arte, do que o método para seu aperfeiçoamento" (Bolle, in: Chiampi, 1991, p.37, nota 19).

Schlegel (1956, p.280) prossegue afirmando que a tarefa principal proposta já no título do romance de Goethe não se teriacompletado. Em Os anos de aprendizado, não se cuidou exata

mente da formação de Wilhelm Meister: "Nós vemos tambémque estes anos de aprendizado querem e podem antes formar qual-

em relação ao objeto da crítica, bem como o distanciamento do artista emrelação à sua própria criação. A ironia, autoconsciente, exige que o artista seerga cima do seu "ponto mais alto" (sich selbst über ihr Höchstes zu erheben)(apud Welleck, nota 48, p.308, citando a Edição Minor, 2, p.195). É essasuperioridade e objetividade que F. Schlegel encontrará no Meister de Goethe,o qual "parece sorrir das alturas de seu espírito para a sua obra-prima" (auf sein Meisterwerk von der Höhe seines Geistes herabzulächeln scheint) (apudWelleck, op. cit., nota 51, citando a Ed. Minor, 2, p.51).

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quer outro que não o próprio Wilhelm em um hábil artista ou emum cidadão capaz" (Grifo da autora).

Ao negar a existência de um processo individual de formaçãopara Wilhelm Meister, Schlegel amplia entretanto o espectro dessa Bildung em direção à natureza e à vida. Assim, embora WilhelmMeister não adquira mestria, os anos de aprendizado são "os anosde aprendizado para a arte da vida" (Lebenskunst).

Ao deslocar a Bildung do âmbito mais limitado da formaçãopessoal, a crítica de Schlegel ao Meister remete certamente à suaconcepção de poesia romântica, de "poesia universal progressiva" expressada no fragmento 116 da revista Athenäum.

Existem, efetivamente, pontos de contato entre a concepçãode "poesia moderna universal-progressiva" exposta no fragmentoe a resenha sobre o Meister. No texto do fragmento, Schlegel (p.264)atribui à poesia romântica e moderna a qualidade da correspondência entre a totalidade da unidade e uma totalidade semelhante"em cada uma de suas partes"; ou seja, Schlegel reconhece umaorganicidade na poesia romântica que se repete também em Osanos de aprendizado de Wilhelm Meister. Ali, o "tipo de represen

tação" permite que "também o mais limitado pareça ser simultaneamente um Todo completamente independente em si mesmo, eainda assim um outro aspecto, uma nova alteração da naturezauniversal e, a despeito de todas as transformações, ainda uma natureza do homem, uma pequena parte do mundo inesgotável".

Em ambos os textos, Schlegel reconhece a organicidade comoqualidade, como forma de recuperar, no fragmentário, a inde-pendênncia do Todo. Os dois textos também compartilham da atri

buição de poeticidade a temas por definição não poéticos: arte eciência, filosofia e temas do cotidiano, tudo isso a poesia universalprogressiva engloba e torna em material poético, assim como no

 Meister a liberalidade do gênero romance permitiu que se tratassede temas e personagens "nada extraordinários" e apoéticos, comoa "velha esperta" Barbara e a vulnerável e leviana Mariane, bemcomo dos assuntos relativos à economia mercantil.

Schlegel afirma, ainda no texto do fragmento, que a poesia

universal progressiva "é capaz da formação mais aprimorada emais universal",' aproximando assim o tema da Bildung de um

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campo semântico mais amplo e menos datado pelo anseio da burguesia por uma formação pessoal e universal, como no romancede Goethe. A Bildung tem, no texto do fragmento, um sentido deformação de um novo paradigma poético e intelectual, expressado sob o termo de "poesia universal progressiva".

É possível ainda depreender do texto do fragmento 116 maisuma possível relação com o romance de Goethe; se se compreender o processo de formação de Wilhelm Meister não como um processo acabado, mas sim como uma trajetória ainda sempre renovada a caminho de um destino, de uma "formação", pode-seinterpretá-lo sob o tema do "eterno devir", da perfectibilidade

inacabada que permanece como ideal. O comentário de HansEichner (1985, p.38) sobre a concepção do romance como gêneroem Schlegel poderia assim esclarecer também a natureza do processo de formação sofrido por Wilhelm Meister: "Entretanto, comouma obra que abrangesse todos os temas possíveis está além dacapacidade humana, assim também o romance perfeito não podeser uma circunstância histórica, mas sim uma tarefa interminável,um ideal, do qual é possível se aproximar, mas nunca realizá-lo ".

Ao mesmo tempo, porém, que Friedrich Schlegel (1988,v.XVI, p.30ss.) reconheceu, no romance de Goethe, uma ilustração da "revolução estética" a que já aludira em seus escritos anteriores, manteve suas reservas sobretudo quanto à "falta de religião do autor", perceptível na obra em questão. Pois "a poesia é alinguagem da religião e dos deuses. Esta é a sua mais real definição ... A perfeição em si mesma apenas enobrece o objeto beloem direção a uma beleza autônoma; e somente a qualidade divi

na dá a ele um valor absoluto, infinito".É interessante ainda notar que o ensaio de Schlegel, escrito

"sob encomenda" para ser publicado no periódico Athenäum, contrasta vivamente com suas anotações pessoais nos chamados "cadernos" recuperados pelos pesquisadores. Hans Eichner coletoualguns exemplos, nos quais se pode perceber a alusão ao Meister:

A má idéia que Goethe tem do romance, [de] que a intrigaanalítica faça parte essencial do conjunto, que o protagonista tenha

que ser um "bobalhão pedante" [Schwachmathikus], que o TomJones seja um bom romance... (Ibidem, v. XVI, p.94)

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Ou ainda:

Um romance perfeito deveria ser uma obra muito mais romântica do que o Wilhelm Meister; mais moderno e mais antigo, maisfilosófico e mais ético e mais poético, mais político, mais liberal,mais universal, mais social. (Ibidem, p.l08)

O Meister por isso mesmo incompleto, porque não é totalmente místico. (Schlegel, 1988, v. XVI, p.114)

Todo romance completo deve ser obsceno; deve dar também oabsoluto da luxúria e da sensualidade - no Meister não há nemluxúria nem cristandade suficiente para um romance, (p.133)

Estabelecem-se, portanto, dois registros diferentes. O Schlegelda Athenäum, autor de Über Wilhelm Meister, ensaio no qual convivem o elogio expresso ao romance de Goethe como obra esteticamente revolucionária com laivos da própria ironia, instrumentalcrítico reconhecido por Schlegel na obra comentada e utilizadono ensaio, e o autor das anotações pessoais, as cartas, nas quaisuma reprovação mais concreta se dirige sobretudo à ausência de

misticismo, de religiosidade (Goethe ist ohne Wort Gottes [AGoethe falta-lhe a palavra de Deus]15), componente essencial, navisão de Schlegel, para toda obra universal, "romântica".

Essa oscilação entre o elogio do romance de Goethe comoindicador de caminhos e sua rejeição pode ser observada pela comparação de duas versões do famoso "fragmento das tendências".Publicado no Athenäum em 1798, na mesma edição que trouxe apúblico a resenha sobre o Meister, o fragmento 216 eleva o ro

mance de Goethe à condição de figurar entre as "maiores tendências da época":

A Revolução Francesa, a Doutrina das ciências de Fichte e oMeister de Goethe são as maiores tendências da época. Quem sesentir provocado por esta constelação, quem não considerar importante uma revolução que não seja ruidosa e material, ainda não

15 Anotação de 1798, apud Eichner, 1985, 58.

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atingiu a perspectiva elevada e ampla da história da humanidade.(Schlegel, 1991, p.40)

A versão original, datada de 1797 e recuperada na edição crítica de 1988, declara:

As três maiores tendências de nossa época são a Doutrina dasciências, Wilhelm Meister e a Revolução Francesa. Entretanto, todos os três são apenas tendências, sem concretização mais profunda. (Ibidem, 1988, v.XVIH, p.85)

Completa o sentido da versão original do fragmento o significado do termo "tendências" no "Dialeto dos Fragmentos", comoesclarece Schlegel (1988, v.II, p.367) no ensaio Über die Unver-stándlichkeit [Da ininteligibilidade], de 1800: "tudo mais é apenas tendência, a época é a época das tendências".

A relação entre crítico e objeto da crítica é permeada, portanto, por um jogo sutil. Ao mesmo tempo em que Schlegel elogia o romance de Goethe pela sua estrutura orgânica, pela sua

sincronia com o advento de uma poética moderna e universal,expressa sobretudo por meio do romance como gênero, advertetambém para o descompasso entre entre "intenção pressuposta"e obra, entre uma tradição harmônica que já começara a firmar-se e a percepção de um viés que desloca o Meister  para alémdessa tradição, inscrevendo-o no universo da polêmica.

Decorridos apenas três anos da publicação do romance, a crítica de Schlegel estendeu os limites da primeira interpretação do

 Meister como representação de um processo de formação harmonioso e individual, em direção a uma poética moderna e dialógica,na medida em que os pressupostos da formação se alargam paracompreender o caráter progressivo e dinâmico que Schlegel soube reconhecer em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister.

Meister como "Candide contra a poesia"

A tarefa de publicar uma crítica ao Meister no Athenäum foraprimeiramente um desejo de Novalis, que, entretanto, não levou oprojeto adiante. Mesmo assim, seus fragmentos esparsos, bem como

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seu diário, dão prova de uma intensa ocupação com o romance deGoethe, à mesma época em que Schlegel compôs sua resenha.

Sob o título Zu Goethes 'Wilhelm Meister' [Sobre o 'Wilhelm Meister' de Goethe] encontram-se alinhadas suas reflexões primeiramente sobre o autor, que refletem a posição ambígua dosprimeiros românticos em relação a Goethe, perceptível tambémem Schlegel: "Goethe é poeta de grande senso prático. Ele é emsuas obras - como os ingleses em seu comércio - extremamentesimples, agradável, cômodo e duradouro ... Ele tem, como osingleses, um gosto estético naturalmente mercantil e um gostonobre adquirido pelo intelecto" (Novalis, 1953b, p.486).

Novalis aponta já para a crítica ao prosaísmo mercantilistaque ele detecta no romance de Goethe e que irá conduzir sua reflexão sobre a obra. A relação ambígua com o autor e sua obraOs anos de aprendizado de Wilhelm Meister está presente tambémno texto de Novalis, mais evidente até do que em Schlegel. Aoleitor contemporâneo apresenta-se a tarefa de interpretação dacrítica, mais uma vez pontuada pela ironia (aqui, puramente retórica), havendo, portanto, que se distinguir entre essa e o tam

bém presente elogio da obra e do autor.É importante notar que as concepções de Novalis sobre

Goethe identificam-se com as do Schlegel "pós-classicista" no quese refere por exemplo à arte fabricada pela razão em oposiçãoaos produtos da Antigüidade clássica. Para Novalis, "a razão é averdadeira morada da arte". Razão pode ter aqui o mesmo sentido de "fabricação", de produto artificial e artístico em oposição àmera imitação da natureza, sentido esse referido por Schlegel como

característica da poesia moderna. Alude, portanto, ao sentido positivo da obra "moderna", porque oposta aos cânones da tradição clássica.

Assim como Schlegel, Novalis ressalta também a composiçãoorgânica da obra, por meio dos contrastes entre pares e gruposde personagens, que delimitam assim a estrutura:

A tia e Therese - Jarno e o tio são dois contrastes principais.

Philine pertence à família de Jarno assim como NarzilB. Assim comoo tio e a tia são galhos da mesma árvore, também Jarno e Therese.

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Um terceiro contraste principal é formado por Mignon e Philine- estas cruzam duas famílias diferentes."

Elencos trágicos e cômicos do romance.

(Antigo) (moderno)(Vulgar) (nobre) (Apud Gille, 1979, p.59)

Embora Novalis não se expresse com o mesmo entusiasmo com

que Schlegel o faz no Übermeister, ressalta também a organicidade

da obra em sua composição por meio das oposições e afinidades en

tre personagens. Ao salientar o trágico e o cômico coexistentes, res

salta as infinitas possibilidades do romance como "poesia mista",

como gênero no qual se cruzam formas anteriormente impossibili

tadas de coexistir. Depreende-se, portanto, também um elogio do

romance de Goethe como indicador de caminhos, ao lado da crí

tica ácida sobre o seu prosaísmo desmedido. Também o recurso à

ironia é salientado:

A filosofia e moral do romance são românticas. Tanto o acontecimento mais ordinário quanto o mais importante [são] considerados e representados com ironia romântica ... O primeiro livro do

 Meister  demonstra como também os acontecimentos comuns e cotidianos se deixam ouvir, se forem relatados de forma modulada eagradável, se forem revestidos de uma linguagem fluente e articulada, se avançarem em passos moderados. (Novalis, 1953b, p.487)

Novalis (p.487) comenta aqui a inclusão de cenas não gran

diosas, de acontecimentos comuns nas casas burguesas, que passam

então a fazer parte do plano da ficção, ao lado de personagens

medianas e destituídas de qualquer traço heróico, compondo um

pacato cenário doméstico:

16 Os contrastes citados por Novalis foram construídos certamente com base emcaracterísticas pessoais e tendências psicológicas. Jarno e Therese são "galhosda mesma árvore" em razão de sua inserção no mundo prático; ela, mulherburguesa dedicada à casa e à terra, ele, militar, voltado às questões concretas.A tia e o tio (Novalis certamente refere-se aqui a "der Oheim" e "die Stifts-dame"), ambos espíritos contemplativos, desligados do mundo prático, elepor meio da arte, ela da religião. Entre Mignon e Philine, o contraste tambémé da mesma ordem; a primeira, criatura "romântica", esquiva, distanciada domundo real enquanto Philine é mundana por excelência

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mundo real enquanto Philine é mundana por excelência 

Um tal prazer é assegurado por um serão passado no solar deuma família, a qual, sem abrigar em seu seio nenhum ser espetacular,sem possuir paisagens especialmente sedutoras - mas sim pela or

dem e amabilidade reinantes em seu arranjos domésticos, pelaexecução harmoniosa de seus talentos moderados e de suas concepções, e pela utilização e preenchimento racional de seu espaço e deseu tempo, deixa uma recordação sempre agradável de se evocar.

A passagem acima vai contrastar com outro parágrafo alinha

do sob o título Gegen Wilhelm Meister [Contra Wilhelm Meister],

no qual Novalis (p.489) declaradamente se posiciona contra o

prosaísmo presente no romance de Goethe:

Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister são, de certo modo,necessariamente prosaicos - e modernos. O caráter romântico vai,por esse motivo, a pique como também a poesia da natureza, omaravilhoso. Ele trata apenas de coisas humanamente ordinárias -a natureza e o misticismo são completamente esquecidos.

Ou ainda, os aforismos:

Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, ou A Peregrinação em busca do Título Nobiliário.

Wilhelm Meister é na verdade um Cândido contra a poesia.Ele transforma as Musas em comediantes, em vez de tornar as

comediantes em Musas. É realmente trágico que ele ponhaShakespeare em meio a tal companhia.

Aventureiros, comediantes, concubinas, caixeiros-viajantes efilisteus são parte integrante do romance. Quem o toma direto à

sensibilidade não será capaz de ler mais romance algum.O protagonista retarda a entrada do evangelho da economia.Teatro de marionetes no começo. O final compara-se ao fim dasessão no parque de diversões da bela Lili. (Apud Gille, 1979, p.60)

Os dois últimos parágrafos ilustram bastante bem a relação

ambígua dos primeiros românticos com o Meister  de Goethe. Ao

reconhecer que "quem o toma direto à sensibilidade não será ca

paz de ler mais romance algum", Novalis indica a grande possi

bilidade de leitura pela ironia. Ao mesmo tempo, ao criticar os

tipos vulgares que fervilham por toda a narrativa, Novalis acaba

por confirmar a vocação do romance como gênero universal, ca-

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paz de abarcar as mais diferentes castas sociais e suas relaçõesentre si, vocação essa da qual o romance de Goethe Os anos de

aprendizado de Wilhelm Meister  é representante indiscutível emodelo gerador de influência.Confirma-se, portanto, por intermédio de Schlegel e Novalis

em sua ocupação com o Meister, uma possibilidade de leitura queextrapola o cânone da primeira recepção harmônica indicada jápor Schiller e Körner especialmente. Os primeiros românticos,ao mesmo tempo em que se ressentiram do prosaísmo ateu quereconheceram no romance de Goethe, souberam reconhecer sua

extrema importância como indicador de caminhos para a novapoética que então se instalava.

Assim, Friedrich Schlegel e Novalis realizaram sobre o romance Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister uma leitura capazde deslocá-lo do ideário da formação, no sentido de obra exemplar veiculadora de preceitos. Ao apontar a oscilação entre umacompreensão harmônica da obra e uma leitura moderna "problemática", os primeiros românticos indicam novas possibilidades

para a pesquisa do Bildungsroman, confirmando a necessidade deuma crítica que se ocupe do romance de Goethe menos comoobra canônica, modelo exemplar estabelecido na tradição literária, e mais como elemento fecundo no traçado da "história dosproblemas" engendrados dentro dessa mesma tradição.

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4 OS ANOS DE APRENDIZADO

DE WILHELM MEISTER COMO

PARADIGMA DO BILDUNGSROMAN

Nos capítulos anteriores, investigou-se o estabelecimento doconceito Bildungsroman, bem como a eleição de Os anos deaprendizado de Wilhelm Meister  como obra paradigmática dogênero, ao longo da historiografia literária.

Aos olhos da história literária contemporânea, caberia, sem dúvida alguma, revisitar a obra e reavaliar esse estatuto reconhecidohá quase duzentos anos.

O reconhecimento da existência do Bildungsroman como umgênero literário acabado faz pressupor, por sua vez, o reconhecimento de uma tradição literária gerada dentro de limites históricos e nacionais bastante específicos, os últimos trinta anos doséculo XVIII na Alemanha, ao mesmo tempo que se faz necessáriotambém pressupor e legitimar uma continuidade, uma expansão

do gênero para além desses limites. De todo modo, a obra deGoethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister  permanece,para a história da literatura, como o exemplar mais perfeito dogênero, como a realização ideal de uma projeção histórica e lite

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g ç p j ç 

Uma contemporânea história da literatura não poderá isentar-se então de proceder à revisão do romance de Goethe à luz datradição que o inscreve como paradigma do gênero.

Essa eleição não se realizou de forma abrupta; constituiu-segradativamente pelos posicionamentos críticos que reconheceram,no romance de Goethe, a narrativa de uma trajetória de constituição de um caráter pessoal. A criação do termo Bildungsromanpor Karl Morgenstern, assim como o reconhecimento da existência de um processo de formação em Os anos de aprendizado pelarecepção imediata à sua publicação, especialmente ChristianGottfried Körner, foram os vetores iniciais de uma longa tradiçãocrítica, que culminou na cristalização do signo literário constituído, por um lado, pelo romance de Goethe e, por outro, pelo termo Bildungsroman.

Como se pode depreender pelo acompanhamento efetuado noscapítulos anteriores, essa conjunção nem sempre se mostrou harmônica. Já o primeiro crítico de Os anos de aprendizado, FriedrichSchiller, cujas primeiras apreciações da obra conjugaram-na ao idealdo classicismo estético, reconhece, em suas últimas cartas sobre o

romance dirigidas ao próprio Goethe, de alguma forma umdescompasso entre "a moral e a fábula", uma falta de sintonia entreo efetivo comportamento do protagonista e as expectativas do leitor mais crítico quanto à realização de uma formação universal e deuma autonomia da personalidade de Wilhelm Meister em relaçãoaos acontecimentos.

A primeira recepção crítica de Os anos de aprendizado foirealizada em meio a um ambiente cultural bastante fértil, no qual

se entrecruzavam diferentes correntes estéticas, refletindo um cenário literário em meio ao qual conviviam ao mesmo tempo representantes da Aufklärung tardia, os primeiros românticos e aindaalguns representantes da literatura pietista, ao lado do classicismoesteticista centralizado em Weimar.

Assim, a constituição do signo literário Bildungsroman encontra-se vincada por uma multiplicidade cultural que se refletetanto na heterogeneidade das críticas que foram dirigidas ao ro

mance como na relativização de um real processo de formaçãodo protagonista.

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Dentre a diversidade crítica e controvérsias provocadas pelapublicação da obra, foi vitoriosa a vertente discursiva que elegeuo romance de Goethe como paradigma do Bildungsroman. Paracríticos do porte de Ernst Ludwig Stahl, o romance de Goetheconfigura o ponto máximo do "ideal humanístico-filosófico daformação". A afirmação de Stahl é exemplar de um posicionamento crítico que se estendeu até nossos dias.

O romance de Goethe tornou-se assim o arcabouço formal econteudístico ao qual as obras que se lhe sucedem deveriam amoldar-se. Jürgen Jacobs, em seu livro de 1989, já salientou que asobjeções ante as definições do Bildungsroman como gênero literário se articulam em torno do fato de que todas essas definiçõesforam construídas a partir de Os anos de aprendizado. O própriotrabalho de Jacobs aqui citado é em si um exemplo da amplitudeda influência do modelo goetheano sobre as obras posteriores, namedida em que tem por referência o distanciamento ou a aproximação entre as obras que compõem a galeria dos Bildungsromanee o romance de Goethe. A própria dificuldade em se "definir" oconceito Bildungsroman deita raízes certamente nessa conjunçãotão imediata entre a entidade teórica Bildungsroman e a concretudedo romance de Goethe.

Quais são, efetivamente, as características de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister  capazes de tornar essa obra em umexemplo paradigmático da representação de um processo de formação e desenvolvimento individual?

O romance de Goethe consiste, generalizadamente, da narra

tiva de um percurso individual, da representação de diferentesepisódios da vida de um jovem de origem burguesa aparentementesem conexão entre si. A interligação entre os diferentes episódiosvivenciados por Wilhelm Meister aparecerá, no fim do livro, comoobra da Sociedade da Torre (Turmgesellschaft), associação de homens sábios e esclarecidos que tem por objetivo a formação de

 jovens. Acontecimentos que tanto o protagonista como o leitoratribuem, no transcorrer da narrativa, ao mero acaso mostram-se

como obra de uma instância superior e "invisível", instância essaque, operando por meio de emissários, se dará a conhecer apenasno fim do livro.

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O DESEJO PELA FORMAÇÃO UNIVERSAL: O TEATRO

O desejo de Wilhelm por uma formação universal e pelo aperfei

çoamento de suas habilidades inatas encontra-se expresso claramentena carta enviada a seu cunhado Werner, documento obrigatório nacrítica do romance de Goethe e exemplar de um desejo comum auma classe social que pretendia estender seus limites para além daestreiteza do círculo burguês de atividades: "Pois bem, tenho justamente uma inclinação irresistível por essa cultura' harmônica deminha natureza, negada a mim por meu nascimento ... Não vounegar-te que a cada dia se torna mais irresistível meu impulso de me

tornar uma pessoa pública, de agradar e atuar num círculo maisamplo (Goethe, 1994, p.286-8).

A carta de Meister a Werner resume exemplarmente os pro jetos de auto-aperfeiçoamento de Wilhelm Meister e transmite aoleitor as expectativas do protagonista. Dessa forma, confirma-seuma perspectiva que já vem se estabelecendo por toda a obra,dirigindo também a expectativa do leitor para a realização desseprojeto de formação universal, conduzindo assim parte da críti

ca, que viu em Os anos de aprendizado o ideal de uma formaçãohumanístico-filosófica. A base humanística e democrática desseprojeto reside efetivamente na idéia de que o indivíduo deve desenvolver seus talentos e habilidades latentes; "aperfeiçoar-me, apartir do que realmente sou" significa: detectar no indivíduo suasinclinações e desenvolvê-las por meio de um exercício e um ambiente propícios a esse desenvolvimento.

O projeto é democrático na medida em que prevê ao burguês

as mesmas possibilidades de aperfeiçoamento que lhe são negadas por sua origem. Meister reconhece que apenas aos nobres estáreservada a possibilidade de formação universal; acredita então

"Cultura" traduz aqui Ausbildung, substantivo formado pelo radical presente em bilden e ausbilden. Como acontece no caso dos verbos, o acréscimodo prefixo aus- especializa o sentido de Bildung, aproximando-o de um sentido mais prático de instrução e preparação profissional, como um estágiode aperfeiçoamento. Na tradução portuguesa de Paulo Eugênio de Castro,utilizou-se "desenvolvimento".

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que o teatro poderá fornecer-lhe um sucedâneo, um espaço ondepossa ampliar seu círculo de atuação, tornando-se, assim como o

nobre, uma "pessoa pública".O teatro é, portanto, a primeira esfera de relações que deverá constituir a trajetória de Wilhelm Meister. A dedicação deMeister a seu projeto teatral estende-se desde o primeiro livro aosétimo. Não se trata, porém, de um processo representado linearmente; a narração dos acontecimentos teatrais é entremeada coma narração de aventuras, viagens, encontros.

O jovem Wilhelm Meister, ao início da narrativa, mostra-se

como um indivíduo possuidor de talento artístico. Já as primeirascenas do capítulo I do livro primeiro mostram-no às voltas com oteatro, por seu relacionamento com Mariane, a atriz a quem "consagra a pura chama de seu primeiro amor" (Schlegel). Nas conversascom Mariane, Wilhelm refere-se com freqüência às representaçõesdomésticas do teatro de bonecos, com ênfase e paixão (às quaisMariane tenta retribuir com interesse, custando, porém, a disfarçaro tédio que tais descrições lhe provocam).

A vocação teatral é, para Meister, mais do que um diletantismo;é por ela que Meister pretende alcançar o desenvolvimento plenode suas qualidades, o alargamento dos estreitos horizontes burgueses, nos quais lhe estaria reservada apenas a submissão às leis davida cotidiana.

É também pelo teatro que Meister se aproxima pela primeiravez do "grande mundo", do mundo da aristocracia. Na condiçãode diretor da trupe ambulante, Meister adentra pela primeira vez

um palácio da nobreza. Dessa forma, aproxima-se também de seuideal de formação, pois acredita que "apenas ao nobre é possíveluma formação universal".

Assim, a primeira parte da trajetória de Wilhelm Meister encontra-se determinada por dois núcleos principais: sua dedicaçãoao teatro e sua admiração pelas possibilidades de atuação reservadas à nobreza. Uma vez que, por uma questão de origem social,os privilégios concedidos à nobreza lhe são definitivamente nega

dos, Wilhelm Meister acredita que o teatro seja a única instânciana qual um jovem de origem burguesa poderá desenvolver suasqualidades e seus talentos.

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Meister segue, portanto, com seus projetos artísticos, primeiramente, formando uma trupe provinciana junto com Melina, depois,

dedicando-se à companhia teatral de Serio, a qual encena dramaturgos ingleses e autores alemães, como Shakespeare e Lessing.Introduzido por Jarno, um dos representantes da Sociedade daTorre, na leitura de Shakespeare, Meister dirige e atua em uma bem-sucedida apresentação de Hamlet. A companhia teatral, porém,não se mantém por muito tempo. Serio e Melina aproveitam-sede uma ausência de Wilhelm e transformam a companhia teatralem uma companhia de ópera, adaptando-se assim ao gosto do

público e aumentando seu lucro.Os projetos teatrais de Wilhelm Meister, apresentados ao início tanto como uma possibilidade de ampliação dos horizontesindividuais como um caminho para educar o gosto do público,não têm continuidade. A opção pela ópera, pelo espetáculo musical em lugar dos dramas shakespearianos e alemães demarca ofinal do projeto acalentado por Meister de um "teatro nacional"inspirado pela dramaturgia de Shakespeare. As palavras de Melina,

membro da companhia e responsável pela mudança de rumos,ilustram o destino reservado a tais projetos: "Melina zombou semmuita sutileza dos ideais pedantes de Wilhelm, de sua arrogantepretensão de educar o público, ao invés de se deixar educar porele, e assim, verdadeiramente convencidos, os dois [Melina e Serio]reconheceram que não deveriam fazer outra coisa senão ganhardinheiro, enriquecer ou divertir-se..." (Goethe, 1994, p.343).

As palavras de Melina anunciam o final de um projeto de con

tornos coletivos; as de Jarno, membro da Sociedade da Torre e,portanto, um dos responsáveis pela "formação" de Meister, selam o fim de seus projetos individuais: "- Ademais - respondeuJarno -, penso que o senhor deve abandonar de vez o teatro, parao qual não possui nenhum talento" (Ibidem, p.458).

As palavras de Jarno são tanto mais significativas quando seconsidera o fato de que foi Jarno quem introduziu Meister naleitura das obras de Shakespeare.

No fim do oitavo capítulo do sétimo livro, Wilhelm Meisterdespede-se definitivamente da carreira teatral, incerto sobre seupróprio talento. Escreve mais uma vez a Werner, seu cunhado e

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responsável pelos negócios da família, em um tom que prenunciauma possível futura dedicação a atividades da vida prática: "Deixo

o teatro e me junto a homens cujo contato haverá de me conduzir,em todos os sentidos, a uma pura e sólida atividade" (Ibidem, p.477).É assim que o primeiro grande núcleo, apresentado como

formador, se desfaz, nada restando, no quadro final da narrativa,dos projetos iniciais de Wilhelm Meister em relação à carreirateatral. A dedicação ao teatro pode mesmo ser entendida como ogrande equívoco da juventude de Wilhelm Meister, que cultivoupretensos talentos e aptidões que realmente não possuía.

Portanto, Meister "não se forma" pelo teatro; não é este ocaminho que deverá conduzi-lo ao amadurecimento e ao plenodesenvolvimento de suas aptidões.

A S R E L A Ç Õ E S C O M A A R I S T O C R A C I A

( N A T A L I E C O M O F O R M A D O R A )

Paralelamente aos projetos teatrais e mesmo em relação deinterdependência com eles, ocorre a aproximação de Meister aocírculo da nobreza. Essa nova esfera de relações inicia-se porintermédio do Barão, da Condessa e do Conde. Do primeiro,Meister acaba por obter, de maneira servil, recursos em pagamento por suas apresentações teatrais; da segunda, Meister consegue uma espécie de flerte, culminando com um beijo às escondidas nos aposentos da nobre. Sobre o quadro todo, o de Meistercomo intruso penetrando no quarto da Condessa, às escondidasdo Conde, o marido, paira uma atmosfera jocosa. Assim, o primeiro contato de Meister com o "grande mundo" está longe deconstituir-se em mecanismo de aprendizado, formação ou instrução. Parece-se antes com as aventuras de um pícaro.

Esse primeiro Wilhelm Meister, que se utiliza de recursos pouco desculpáveis (como a falsificação do diário de viagem a ser

enviado ao pai) para sobreviver é o que perdura por toda a primeira metade do romance.A trajetória de Meister adquire um novo estímulo após um

encontro com a "misteriosa amazona", ou Natalie, que encontra

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o herói ferido após uma luta com salteadores e trata de seusferimentos. Essa figura feminina desaparece logo depois do episódio. Meister irá reencontrá-la adiante, no oitavo e último livro,

quando acontece a elucidação de relações e tramas até então aparentemente misteriosas. Natalie é o fio condutor, é o ponto dereferência ao redor do qual se esclarecem boa parte dos princípios que regeram a ação.

Podem-se reconhecer algumas modificações no comportamento do protagonista, a partir da influência emanada da belaamazona, ou Natalie, quando esta e Wilhelm finalmente se encontram. Wilhelm abandona a "má companhia" que os críticos do

romance tanto lhe censuraram, passa a freqüentar efetivamenteos ambientes aristocráticos, chega mesmo a apresentar algum interesse por assuntos da vida econômica (apenas na medida, é verdade, em que lhe garantam a sobrevivência), como se poderáobservar no reencontro com Werner. É preciso lembrar, porém,que em todas essas novas situações Wilhelm desempenhará papelsubalterno, cumprindo incumbências como acompanhar Lydie,amante de quem o aristocrata Lothario já havia se enfastiado e de

quem precisava livrar-se.No capítulo 9 do livro 7, o Abade, após a leitura da carta de

aprendizado, declara terminados os anos de aprendizado de Wilhelm Meister; já no segundo capítulo do livro seguinte, Wilhelmencontra-se pela primeira vez com Natalie, após o episódio emque ela o ajuda a restabelecer-se depois do ataque dos salteadores. O reencontro com Natalie é precedido por uma passagemque evidencia o desejo de Wilhelm Meister de ver a configuração

final dos "diversos fios" que conduziram sua trajetória e que deverão desenhar seu destino: "Estavam todos satisfeitos porque osnegócios importantes que haviam preparado foram concluídos efechados sem demora, e Wilhelm aguardava com ansiedade paraver como se reatariam e em parte se romperiam tantos fios, ecomo sua própria situação determinaria seu futuro. (Ibidem, p.496,grifo da autora).

Também a proximidade dos dois episódios, aquele em que a

Sociedade da Torre considera terminados os anos de aprendizadode Meister, e aquele em que Wilhelm irá reencontrar Natalie,

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permite antever uma relação que associa a personagem da "belaamazona" no fim do processo de aprendizado conduzido pela

Sociedade. Natalie reaparece no oitavo e último livro, pontuandoas explicações e revelações que esclarecem a Meister as diferentesintervenções da Sociedade da Torre, os acontecimentos que lhepareceram até então fortuitos e que na verdade possuíam encadeamento entre si. O encontro com Natalie é simbólico, investe-sede uma função organizadora e integradora dos diferentes episódios vividos por Meister ao longo da narrativa.

É também na presença de Natalie que Wilhelm, na última cenado livro, irá declarar não saber o valor de um reino, mas saberáreconhecer o valor incalculável daquilo que conseguiu. E Nataliefaz parte dessa conquista. Cabe então analisar o que Natalie representa na trajetória de Meister.

Efetivamente, já ao adentrar o vestíbulo da residência, Meistercomeça a sofrer os efeitos da proximidade da "bela amazona". Oambiente circundante mostra-se em afinidade com o estado deespírito do protagonista e desperta-lhe familiaridade:

Entrou na casa e se viu no lugar mais solene e, em conformidade a seu sentimento, mais sagrado que já havia pisado. Um candeeiro suspenso, deslumbrante, iluminava uma larga e suave escada quehavia a sua frente e que, no alto, se dividia em duas partes. Dispostas sobre pedestais e em nichos, erguiam-se estátuas e bustos de mármore, alguns dos quais lhe pareceram conhecidos. As impressões dainfância não se esvaem, nem mesmo em seus ínfimos detalhes. Reconheceu uma Musa que pertencera a seu avô, não pelo formato nempelo valor, seguramente, mas por um braço restaurado e por partesde sua vestimenta que lhe foram novamente inseridas ... Entrou naante-sala e, para sua maior surpresa, avistou numa das paredes oquadro do filho enfermo do rei, seu velho conhecido ... Ali, ocultapor um quebra-luz que lhe fazia sombra, uma mulher sentada lia.(Ibidem, p.502, grifo da autora)

A familiaridade sentida por Wilhelm ao aproximar-se deNatalie, o reconhecimento dos objetos de arte que pertenceram aseu avô, prenunciam um ponto de viragem na trajetória deWilhelm, um possível momento de resolução. (Observe-se, poé há i di l d f i

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é há i di ã l d f it 

pertencera ao avô "não pelo formato nem pelo valor", mas porsinais prosaicos, a vestimenta e uma restauração).

A partir desse reencontro, torna-se cada vez mais nítida a relação entre Natalie e episódios da vida e trajetória de WilhelmMeister. Já no dia seguinte à sua chegada, depara-se com um retrato que supõe ser de Natalie, embora ao mesmo tempo perceba diferenças; Natalie lhe explica que se trata de um retrato de sua tia,fazendo então um breve relato das circunstâncias da vida da mulher retratada; trata-se da "bela alma", de cujas experiências Wilhelmtivera notícia por meio de um longo relato autobiográfico, típicotestemunho de conversão pietista, que lhe chegara às mãos quase

que por acaso, e que constitui, na estrutura da obra, todo o livro V.Tal episódio, intitulado "Confissões de uma bela alma", não se articula efetivamente com o todo narrado, bem como não parece, atéentão, ter provocado qualquer efeito sobre a personalidade ou asconcepções de Wilhelm Meister. É apenas por Natalie, e em suapresença, que Wilhelm refere-se ao episódio narrado, reconhecendo mesmo algum efeito das confissões da tia sobre sua própria vida:

Seria possível - replicou Wilhelm, depois de refletir um instantesobre aquelas circunstâncias tão diversas que lhe pareceram coincidentes - seria possível que essa magnífica e bela alma, cujas secretasconfissões comigo também foram compartilhadas, fosse sua tia?

- O senhor leu o caderno? - perguntou Natalie.- Sim - respondeu Wilhelm -, com o maior interesse, e não

sem que ele influísse em toda a minha vida. (Ibidem, p.506)

Embora a última frase de Wilhelm deva ser lida com reservas,pois, em toda a narrativa, há pouca ou nenhuma notícia da influência do relato da bela alma sobre a vida de Wilhelm, está claro quea ligação entre Natalie e a tia faz parte de um momento de reconhecimento das diversas relações entabuladas por Meister em toda asua trajetória, e que se desdobrará por todo o oitavo livro.

AS CONCEPÇÕES PEDAGÓGICAS

É também por Natalie que se esclarecerá, para Wilhelm, aorigem de seu amigo Lothario, bem como da Condessa e de

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Friedrich, o louro. São todos os três irmãos de Natalie e sobri

nhos da bela alma. Também a figura do Abade adquire contornos

mais precisos, evidenciando-se sua influência pedagógica na educação dos irmãos, bem como as concepções que a sustentam:

- Já que me encontro em meio a este círculo familiar -prosseguiu Wilhelm -, será provável que o abade, mencionadonaquele escrito, seja o mesmo homem estranho e misterioso queencontrei na casa de seu irmão, depois dos acontecimentos maisinsólitos? Talvez a senhora pudesse dar-me algumas informaçõesprecisas sobre ele?

Natalie respondeu:A respeito dele haveria muito o que dizer; estou mais exatamente a par é da influência que exerceu sobre nossa educação. Durante algum tempo esteve convencido de que a educação não deviasenão adaptar-se aos talentos; não posso dizer como pensa agora.Afirmava que a primeira e a última coisa no homem era a atividadee que nada poderia ser feito sem haver aptidão ou instinto que aisso nos impulsione. Admite-se, costumava dizer, que se nasça poeta, e o mesmo se admite para todas as artes, porque é preciso queassim seja e porque tais efeitos da natureza humana mal podem serarremedados; mas, examinado mais atentamente, veremos que todaa capacidade, mesmo a mais ínfima, nos é inata, e que não podehaver capacidade indeterminada. Só nossa educação equívoca, dispersa, torna indecisos os homens, desperta desejos em vez de animar impulsos, e ao invés de beneficiar as verdadeiras disposiçõesdirige seus esforços a objetos que, com muita freqüência, não seafinam com a natureza que por eles se esforça. Prefiro uma criança,um jovem, que se perde seguindo sua própria estrada, àqueles outrosque caminham direito por uma estrada alheia. Quando os primeiros

encontram, não importa se por si mesmos ou por outra direção, seuverdadeiro caminho, ou seja, quando estão em harmonia com suanatureza, não o deixarão jamais, enquanto os outros correm a todoinstante o perigo de se livrar do jugo alheio e entregar-se a umaliberdade incondicional. (Ibidem, p.508-9)

Portanto, por Natalie, é exposta a concepção pedagógica do

Abade, em cuja base está a idéia de que a educação deve respeitar

os talentos e habilidades inatas ao homem. Encontram-se ali também os princípios da "educação pelo erro", que traduzem na rea

lidade o modo de ação da Sociedade em relação ao próprio

Meister. Como se saberá em seguida, a Sociedade da Torre, em-

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bora acreditando ser Wilhelm destituído de vocação teatral, permite que se dedique a ela, até que, instado por circunstânciasalheias à sua vontade, Wilhelm abandona a companhia de Serio,

encerrando assim sua carreira artística.Após a exposição de Natalie, Meister expressa seu espanto

quanto a ter sido escolhido como objeto das preocupações pedagógicas do Abade, bem como põe diretamente em dúvida os princípios que nortearam o processo: "- É estranho, disse Wilhelm -que esse homem notável tenha-se interessado também por mim,e, segundo me parece, tenha-me a seu modo, senão dirigido, pelomenos corroborado durante um certo tempo em meus erros. Devo,

pois, esperar pacientemente que tipo de justificativa me dará porhaver de certo modo zombado de mim, ele e tantos outros".

Meister, uma vez ciente da intervenção da Sociedade da Torre sobre os acontecimentos mais recentes que orientaram sua trajetória, expressa, embora de maneira comedida, sua contrariedade.Ao que responde Natalie:

Não tenho por que me queixar dessa mania do Abade, se éque pode ser considerada uma mania ... pois não resta dúvida de quede meus irmãos eu fui a que melhor me saí. Não vejo tampouco comomeu irmão Lothario teria podido receber melhor educação; talvezsó a Condessa, minha boa irmã, necessitasse de um tratamentodiferençado, e talvez fosse possível infundir em sua natureza umpouco mais de seriedade e vigor. O que há de ser de meu irmãoFriedrich, não se pode ainda imaginar; temo que se torne vítimadessas experiências pedagógicas. (Ibidem, p.509)

Pode-se depreender, a partir da fala de Natalie, uma avaliação pouco positiva das concepções pedagógicas do Abade, sob asquais os quatro irmãos foram educados. Natalie reconhece o sucesso do procedimento em relação a si mesma e a seu irmão Lothario,enquanto põe em dúvida os resultados em relação a Friedrich e àCondessa. A despeito do elogio a Lothario, já se pôde ter notícia,em passagens anteriores, do comportamento pouco ético deLothario em relação a Lydie e Aurelie, e o texto indica mesmo que

essas não teriam sido as únicas ocasiões em que o barão Lotharioteria se comportado de maneira leviana nos negócios amorosos.

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Quanto a Friedrich, sobre o qual, no fim do livro 8 se saberá ser omesmo Friedrich do início, folgazão e irresponsável, fica eviden

te o malogro da concepção pedagógica do Abade. O mesmo ocorreem relação à Condessa, que, em sua breve passagem pela narrativa, demonstra sua leviandade e fraqueza de propósitos. Trata-seda mesma Condessa com quem Wilhelm teve sua pequena aventura no castelo do Barão (p.191-4 da edição brasileira).

É bastante significativo o trecho em que Natalie descreve ocaráter do irmão Friedrich, seguido imediatamente da reflexãode Wilhelm sobre aquilo que ele considera "paradoxos":

-A senhora tem ainda um outro irmão? - exclamou Wilhelm.- Sim! - respondeu Natalie. - Possuidor, sem dúvida, de uma

natureza alegre, estouvada, e como não o impediram de correr omundo, não sei qual será o resultado desse ser travesso e leviano.Há muito que não o vejo. A única coisa que me tranqüiliza é saberque o Abade e sobretudo a Sociedade de meu irmão estão sempreinformados do local onde ele se encontra e do que faz.

Wilhelm já estava a ponto não só de sondar as idéias de Natalie

acerca daqueles paradoxos, como também de extrair-lhe algumasinformações a respeito daquela sociedade misteriosa, quando entrou o médico... (Ibidem, p.509)

Natalie descreve o irmão Friedrich como "um ser travesso eleviano", dizendo ao mesmo tempo que a Sociedade da Torreacompanha sua trajetória e sabe de seu paradeiro. Para Wilhelm,constitui-se aí um paradoxo, pois como pode Friedrich perma

necer travesso e leviano com a anuência da Sociedade? No momento em que Wilhelm decide informar-se a respeito disso e daprópria natureza da Sociedade da Torre, o narrador interrompe-lhe o gesto, passando-se então a outro tema.

O trecho é bastante esclarecedor quanto à concepção geraldos projetos pedagógicos da Sociedade da Torre no âmbito danarrativa. Ao lado de toda a solenidade que acompanha o episódio da leitura da Carta de Aprendizado, bem como do tom filosófico dos diálogos entre Wilhelm e os enviados da Sociedade,evidencia-se, por meio da descrição de Natalie no oitavo livro, ocaráter ambíguo das concepções pedagógicas que orientaram aeducação dos quatro irmãos e que interferiram na trajetória de

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educação dos quatro irmãos e que interferiram na trajetória de 

Wilhelm Meister. Natalie afirma que, dentre os quatro irmãos,

ela foi a mais bem-sucedida no empreendimento pedagógico, não

hesitando então em apontar falhas de caráter em Friedrich e na

Condessa, o que permitira sem embargo depreender que, no casode Natalie (e mesmo de Lothario) teria sido uma natureza feliz

que a predispusera ao sucesso da constituição da personalidade,

mais do que um projeto pedagógico.

Algumas páginas adiante, quando Natalie relata a Wilhelm o

desenvolvimento de suas próprias inclinações naturais sob a orien

tação do Abade, Wilhelm pergunta-lhe se ela adotara esses mes

mos princípios professados pelo Abade na educação das jovens

sob sua tutela.A resposta é surpreendente:

- Não! - disse Natalie. Esse modo de agir com as pessoas viriatotalmente de encontro aos meus sentimentos Quem prontamentenão socorre, parece-me jamais socorrer; quem não dá conselhosimediatos, jamais aconselhará. Assim como também me parece absolutamente necessário formular e incutir às crianças certas leis quedêem à sua vida certo amparo. Sim, quase poderia afirmar que é 

melhor equivocar-se segundo as regras que se equivocar quando aarbitrariedade de nossa natureza nos deixa à deriva, e, tal como vejoos homens, parece-me sempre restar em sua natureza um vazio quesó uma lei categoricamente formulada pode preencher. (Ibidem,p.515, grifo da autora)

Para Natalie, o educador não deve deixar o jovem entregue a

seus equívocos, esperando que a vocação natural vença por si

mesma. A concepção pedagógica de Natalie diverge, portanto,

dramaticamente daquela concepção da "educação pelo erro", professada pelo Abade e efetivamente utilizada pela Sociedade da Tor

re em suas intervenções sobre a trajetória de Wilhelm:

- Não é obrigação do educador de homens preservá-los doerro, mas sim orientar o errado; e mais, a sabedoria dos mestres estáem deixar que o errado sorva de taças repletas de seu erro. Quem sósaboreia parcamente seu erro, nele se mantém por muito tempo,alegra-se dele como de uma felicidade rara; mas quem o esgota por

completo, deve reconhecê-lo como erro... (Ibidem, p.480, grifo daautora)

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Uma vez que se reconheça Natalie como a personagem quereúne em si a resolução e a configuração final dos "fios" que te

ceram a trajetória de Meister, pode-se legitimamente depreenderque a pedagogia aplicada pela Sociedade da Torre sobre seus discípulos está longe ser legitimada no todo da narrativa. Ao contrário, as afirmações de Natalie conduzem antes a uma relativizaçãodos princípios professados pelo líder intelectual da Sociedade, oAbade, do que a sua confirmação.

É também Natalie que transmitirá a Meister as concepçõesestéticas do Oheim, tio avô de Natalie e comprador da grande co

leção de arte posta à venda pelo avô de Wilhelm Meister temposatrás. Como já se comentou no capítulo sobre a correspondênciade Goethe e Schiller sobre Os anos de aprendizado, o reencontro dacoleção de obras de arte que pertencera ao avô tem um efeito emocional, afetivo, sobre Meister. Schiller esperava que o episódio ilustrasse um possível amadurecimento estético de Meister, o que, narealidade, não ocorreu, como se pode depreender a partir do trecho que relata o reencontro do quadro que representa "o filho doente

do rei". Meister continua apreciando o quadro mais por seu temado que por sua composição, demonstrando assim pouco ou nenhuma evolução de sua capacidade de apreciação artística, segundo ospadrões clássicos defendidos pelo próprio Oheim. De toda maneira, o reconhecimento da coleção do avô, bem como o contato coma concepção estética do Oheim se dá na presença de e por Natalie,o que mais um vez confirma sua função de elemento de resolução econjunção dos diversos momentos do romance.

WILHELM MEISTER E WERNER, O BOM BURGUÊS

No capítulo 1 do oitavo livro ocorrem ainda, também ao redorde Natalie, o reencontro entre os dois amigos de infância WilhelmMeister e Werner e o passeio de Wilhelm com Felix, a criança que

lhe foi apresentada como seu filho. Trata-se, portanto, de dois momentos singulares da trajetória de Meister. Ao lado de Werner, efetua-se uma comparação entre os dois modos de vida. Werner dedicou-se a administrar a fortuna paterna, casando-se com a irmã de

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Wilhelm e efetivando assim, além do casamento burguês, a união

da fortuna das duas famílias. Quanto a Meister, sabe-se que seu

percurso desviou-se totalmente da trajetória seguida por Werner.

Longe dos círculos burgueses, Meister dedicou-se primeiramenteao teatro e às relações com a aristocracia, sem fixar-se em uma ati

vidade definida. A descrição física dos dois amigos acentua a diver

sidade dos caminhos seguidos por um e por outro:

Surpreso, Wilhelm foi ao encontro deles e não pôde confiar emseus próprios olhos: era Werner, que também hesitou um instanteantes de reconhecê-lo. Os dois se abraçaram carinhosamente, sem

conseguir ocultar o quanto ambos haviam mudado. Werner garantiuque seu amigo estava mais alto, mais forte e mais encorpado, maisdistinto em sua natureza e mais agradável em seu comportamento ...

Faltou muito para que Werner causasse em Wilhelm uma impressão igualmente favorável. O bom homem parecia haver antesrecuado do que avançado. Estava muito mais magro do que outrora, seu rosto anguloso parecia mais fino; seu nariz, mais largo; suafronte e o alto da cabeça, desprovidos de cabelo; sua voz, fina, forte e vociferante, e seu peito retraído, seus ombros caídos, suas facesdescoloridas não deixavam margem a qualquer dúvida: ali estava

um laborioso hipocondríaco.2

(Ibidem, p.489-90)

Fiel aos princípios da acumulação de capital, Werner sugere

ao amigo que, uma vez que este tenha empregado mal seu tempo,

e, como Werner supõe, não tenha amealhado bens, deveria então

aproveitar-se da "figura que tens" e "adquirir uma bela e rica her

deira". Segue então a descrição de Meister pelo próprio Werner:

"Tens os olhos mais profundos; a fronte, mais larga; o nariz, mais

afilado; e a boca, mais afável. Vejam só como ele se sustém! Comotudo lhe assenta bem e se harmoniza! Como prospera a preguiça!

Em compensação, eu, pobre-diabo - e mirou-se no espelho -, se

durante todo esse tempo não tivesse ganhado dinheiro bastante,

não seria absolutamente nada... (Ibidem, p.490)

A contraposição que se estabelece é bastante clara. Werner,

dedicado à acumulação de capital, reflete, por sua lamentável dis-

2 Um "maníaco por trabalho", em uma tradução livre.

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posição física, os efeitos dessa atividade. Chama-se a si próprio"pobre-diabo", reconhecendo que, se não tivesse aumentado ain

da mais sua fortuna, não teria conseguido nenhum outro benefício. Quanto a Meister, sua bela aparência reflete uma vida semcuidados e longe das obrigações burguesas, ao mesmo tempo emque denota a ausência da acumulação de capital.

Retoma-se assim novamente a grande cisão que perpassa todaa narrativa, o contraste entre os modos de vida do nobre e doburguês. A passagem remete claramente ao conteúdo da carta deWilhelm Meister a Werner, em que o primeiro perfila ao segundo

as vantagens e prerrogativas concedidas à aristocracia, e os limites por entre os quais o burguês tem de mover-se.

A comparação entre o capitalista Werner e o diletante WilhelmMeister não resultará, porém, na afirmação da predominância deum estilo de vida sobre o outro. Não se fará a defesa de uma hierarquia do diletante sobre o burguês ou vice-versa. Isso não significa,porém, que haja neutralidade na caracterização de Werner ou deMeister. É ainda por meio dos comentários do primeiro sobre a

trajetória do segundo que se pode identificar a opinião crua que asociedade burguesa da época mantinha sobre um jovem oriundodessa classe que não compartilhasse dos mesmos ideais:

Wilhelm elogiava sua situação e a felicidade de haver sido acolhidoentre pessoas tão excelentes. Werner, ao contrário, sacudiu a cabeça e disse:

- Não deveríamos crer senão naquilo que vemos com os próprios olhos! Mais de um amigo me assegurou que vivias com um

 jovem fidalgo libertino, que o apresentavas às atrizes, que o aju-davas a gastar seu dinheiro e que eras o culpado por ele haver-seindisposto com todos os parentes. (Ibidem, p.491)

Complementa essa descrição da situação de Meister por Wernera descrição da situação familiar na terra natal de ambos, na qual sepode identificar o filistinismo da vida pequeno-burguesa:

Werner apressou-se em contar tudo o que havia mudado, o queainda subsistia e o que estava ocorrendo.- As senhoras da casa - disse - estão contentes e felizes, nunca

lhes falta dinheiro. Passam a metade do tempo a se enfeitar, e a

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outra metade a se mostrar enfeitadas. São tão econômicas quantopoderiam ser. Meus filhos prometem tornar-se jovens sensatos. Jáos vejo em pensamento sentados e escrevendo, calculando, corren

do, fazendo negócios e permutas; cada um deles haverá de estabelecer, quanto antes, seu próprio negócio... (Ibidem, p.491)

No discurso de Werner, encontram-se os componentes essenciais da economia capitalista ao lado da ideologia burguesa e peque-no-burguesa. São louvadas as virtudes dos conceitos de propriedade,hereditariedade e especulação de capital, ao lado de um ambientedoméstico pobre de perspectivas mais enriquecedoras.

Werner prossegue, criticando agora o traje com o qual Meisterse fizera retratar: "Tua mãe e tua irmã acharam adorável aquele jovem senhor com o pescoço livre, o peito seminu, uma grandegorjeira, cabelo solto, chapéu redondo, colete curto e calças compridas e largas, enquanto eu sustentava que um traje daquele nãoestava senão a dois dedos de distância da roupa de um arlequim"(Ibidem, p.492).

A descrição refere-se provavelmente à época em que Meister

fazia parte da trupe teatral. Sua indumentária de então condiziacom a de um ator, ou mesmo a de um bandoleiro. Embora nãohaja uma descrição dos trajes atuais de Wilhelm, no momento emque ele convive com o fidalgo Lothario, pode-se depreender, pelaobservação de Werner, que a convivência com o aristocrata conferiu-lhe certa distinção: "Agora, tens a aparência de um homem,só te falta a trança3 na qual te peço prendas teu cabelo, do contrário podem tomar-te a caminho por judeu e te exigir peagem e

escolta"4

(Ibidem, p.492).Os trajes atuais de Meister parecem a Werner mais apropriados, uma vez que ajudam a compor a aparência distinta de

3 Reproduz-se aqui a nota de rodapé da tradução brasileira: "'só te falta atrança': estamos na época em que o grupo do Sturm und Drang suprimiu atrança entre os jovens. De modo geral, isto só se impôs vinte anos mais tarde(nos anos 90). Os judeus não seguiram a moda das perucas e coletas".

4 Reproduz-se aqui a nota de rodapé de número três da tradução brasileira:

"'peagem e escolta': desde a Idade Média até o final do século XVIII, os judeus foram obrigados a pagar uma taxa pessoal quando passassem de umprincipado a outro."

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um burguês que circula por entre a aristocracia. O detalhe doscabelos soltos não permite, porém, que se possa concluir pela to

tal adesão de Wilhelm aos princípios burgueses, mesmo no que serefere restritamente à indumentária. A figura de Meister permanece "romântica", no sentido mais ingênuo do termo, mesmo naspassagens finais em que se espera efetivamente a conclusão daformação de sua personalidade.

O reencontro com Werner, no primeiro capítulo do oitavolivro, auxilia a compor o contraponto entre modos de vida bastante diversos: o da burguesia mercantil; o dos artistas, em alu

são ao passado teatral de Meister e o da aristocracia latifundiária,representada por Lothario e sua família. Wilhelm Meister orbitapor entre todos eles, sem efetivamente engajar-se a nenhum.Relembre-se aqui a queixa de Schiller, quando, em carta a Goethe,reclama, em relação a Meister, que a "nobreza permanece ausente". Da mesma forma que não há indício de um efetivo enga

 jamento de Meister ao grupo aristocrático, permanece ausentetambém uma ligação com o mundo do comércio representado por

Werner. Meister deixa que seu patrimônio seja administrado pelocunhado e amigo de infância, isentando-se de qualquer participação. Dessa forma, permanece à margem de uma efetiva inserçãoem um estrato social definido, transitando livremente por entreos dois que se lhe apresentam como possibilidades. O casamentocom Therese, que lhe teria assegurado as virtudes e tranqüilidadeda vida burguesa, não se realiza; a união com Natalie, irmã daCondessa e do Barão Lothario, anunciada às últimas linhas do

último capítulo, permanece futuridade; nem mesmo na chamada"continuação" de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister,Wilhelm Meisters Wanderjahre [Os anos de peregrinação de Wilhelm

 Meister], obra que veio a público quase trinta anos depois, sabe-se do destino da relação entre Meister e a bela amazona; as alusões a Natalie são raríssimas, destituindo-se assim a concretizaçãoda união anunciada na obra anterior.

Conclui-se assim pela não-inserção de Meister em uma classe

social bem definida; pertencendo, por origem, à burguesia comerciante, desliga-se desta logo às primeiras páginas do livro, quando se une à trupe de atores. Ao mesmo tempo, sua adesão ao "gran-

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de mundo", ao mundo da aristocracia, não se concretiza, o quepoderia ter sido feito por meio de sua união com Natalie ou pelaconcessão de um título de nobreza, como reza a crítica do primeiro romântico Novalis. É preciso ressaltar aqui que a censurade Novalis considerando o romance de Goethe um "passaportepara a nobreza" não pode ser entendida como a avaliação de umprocesso que se tenha efetivamente concluído. A adesão ao mundo da aristocracia fica a meio caminho, e a afirmação de Novalissó pode ser considerada como uma 'tendência" da trajetória deMeister, sem efetiva realização. Da mesma forma, pois, como nãose decide nem pela carreira artística, nem por uma profissão bur

guesa, Meister também não se associa efetivamente a uma classesocial. Renegando os limites impostos por sua origem, Meistertambém não ascende à aristocracia, permanecendo, portanto, emuma espécie de limbo social.

O MESTRE-APRENDIZ

No mesmo oitavo livro, ainda no primeiro capítulo, pode-seidentificar um novo símbolo que poderia ser tomado como indício da conclusão dos anos de aprendizado. Trata-se do relacionamento de Meister com seu suposto filho Felix.

No capítulo oitavo do livro sétimo, ou seja, do livro que antecede as cenas finais, o pequeno Felix é apresentado a Meister comoseu filho, fruto da relação com Mariane, o primeiro amor de Meister.Embora sinta grande afinidade com criança, Meister hesita em acre

ditar no relato da velha Barbara, governanta e conselheira deMariane. É Barbara quem relata a Meister os últimos dias de vidade Mariane, bem como lhe revela sua paternidade. O relato comoveMeister, que hesita, porém, entre acreditar totalmente na versãodos fatos que lhe é apresentada e duvidar de uma mulher cujo caráter interesseiro e alcoviteiro já se conhece do início da narrativa. Épreciso relembrar aqui que, pouco antes de partir em viagem determinada por seu pai, Wilhelm intercepta um bilhete de Norberg,

amante de Mariane, sentindo-se então traído e partindo sem vê-la(Cf. p.66-7 da edição brasileira). Barbara, ao relatar-lhe os acon-

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tecimentos após sua partida, reitera dramaticamente a inocência deMariane, querendo fazer crer a Wilhelm que Felix é indubi

tavelmente seu filho.A dúvida sobre a paternidade de Felix deverá acompanharMeister por todos os capítulos seguintes. Depois da velha Barbara,Mignon é a primeira personagem a dizer a Meister que Felix éseu filho. Esta confessa a Meister há muito saber do segredo semtê-lo revelado a ninguém. Os argumentos de Mignon não pertencem, porém, à esfera da argumentação racional. Ela afirma terintuído a relação entre pai e filho em um momento em que a

criança correra perigo (Cf. p.462 da edição brasileira). Mignonrefere-se aqui ao episódio em que o velho harpista, insano, atentacontra a vida de Felix, episódio no qual o menino é salvo pelosgritos de Mignon e por Meister, a quem ela chama para acudir omenino. O argumento é, portanto, um argumento mágico, produzido pelas relações de Mignon com o invisível, destituído dequalquer racionalidade. Assim, os dois primeiros depoimentos queWilhelm tem a favor da paternidade de Felix são o da velha

Barbara, cujo caráter faz duvidar de qualquer afirmação sua, e odepoimento da frágil e insólita Mignon, figura a quem o próprioJarno, membro da Sociedade da Torre, irá chamar de "criaturaparva e hermafrodita".

A dúvida quanto à paternidade de Felix expressa-se tambémnas falas do próprio Meister. Seu diálogo com a velha Barbara épontuado por exclamações e críticas, em que Meister censura ocomportamento interesseiro da governanta. A passagem relatadaa seguir descreve o encontro de Meister e de Barbara, no qual elarelatará com detalhes o que se passou após a partida de Meister:"Sibila! Fúria! - exclamou Wilhelm, levantando-se de um salto ebatendo com o punho sobre a mesa. - Que espírito maligno tepossui e te move? ... Sempre te abominei e ainda me é difícil crerna inocência de Mariane sabendo que tu eras sua companheira"(Ibidem, 1994, p.464).

A hesitação de Meister pode ser percebida também em seucomportamento ambíguo diante do próprio Felix. A passagem aseguir descreve a decisão de Meister de enviar Mignon e Felixpara longe de si, aos cuidados da senhorita Therese:

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Isso lhe foi tão mais fácil quanto continuava temendo em considerar como seu filho o belo Felix. Tomou-o nos braços e caminhou com ele no colo; o menino gostava que o erguessem à altura

do espelho, e, sem confessá-lo a si mesmo, Wilhelm de bom gradoo punha defronte do espelho e procurava descobrir semelhançasentre ele e a criança. Houve um instante em que elas pareceram tãoverossímeis que ele estreitou contra seu peito o menino; mas, derepente, assustado com a idéia de que podia enganar-se, colocou devolta no chão a criança, que saiu correndo. (Ibidem, p.476)

A dúvida persegue Meister até mesmo durante o solene epi

sódio da leitura da Carta de Aprendizado, no capítulo nono do

mesmo sétimo livro. Após a leitura da carta, Wilhelm pede licença para fazer uma pergunta a seus benfeitores:

- Posso fazer uma pergunta?- Não hesite! E pode esperar uma resposta decisiva, caso se

trate de um assunto que lhe toque antes de tudo o coração, e quedeva o coração tocar.

- Pois bem! O estranhos e sábios homens, cuja visão penetraem tantos segredos, podem dizer-me se Felix é realmente meu filho?

- Glória por haver feito tal pergunta! - exclamou o abade,batendo palmas de alegria. - Felix é seu filho! Por tudo que há demais sagrado que em nós se oculta, eu lhe juro que Felix é seu filho.E quanto a seu caráter, a finada mãe do menino não era indigna dosenhor. Receba de nossas mãos essa adorável criança, retorne e atreva-se a ser feliz. (Ibidem, p.482-3)

Espera-se então que a palavra do Abade seja suficiente para

destruir as dúvidas que Meister ainda cultiva. Ao mesmo tempo,é possível defender a idéia de que isso não passa de mais um es

tratagema da Sociedade da Torre, dentre os muitos utilizados para

conduzir Meister por um determinado caminho. É possível afir

mar que a Sociedade da Torre considerasse benéfica para Meister

a idéia de paternidade, no conjunto do desenvolvimento de sua

personalidade.

Para o próprio Wilhelm as dúvidas subsistirão. No início do

oitavo livro, durante seu reencontro com Werner, Meister hesitaem revelar ao amigo a suposta paternidade de Felix:

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- Quem é esse pequerrucho? - perguntou Werner.Wilhelm não teve coragem naquele instante de dizer a verda

de, nem vontade de contar uma história, sempre duvidosa, a umhomem nada ... crédulo por natureza. (Ibidem, p.492)

A passagem, que ocorre depois da leitura da Carta de Aprendizado e, portanto, depois da confirmação da paternidade de Felixpelo Abade, demonstra a persistente hesitação de Meister em acreditar sem reservas na atribuição da paternidade de Felix.

O excurso do narrador também deixa espaço livre para algu

mas especulações. Wilhelm não teve coragem de dizer a verdade,nem vontade de contar uma história, sempre duvidosa, a um homem nada crédulo. Se a história duvidosa que necessita de umadose de credulidade para que acreditem nela é a história que atribui a Meister a paternidade de Felix, então a verdade a qualMeister não tem coragem de contar é aquela que o destitui dessafunção.

No conjunto da narrativa, a questão da incerteza quanto à pa

ternidade de Felix é bastante significativa, pois Felix desempenharáefetivamente um papel na compreensão de mundo de Meister. Umavez que se vê, pela primeira vez, na iminência de desempenhar opapel de educador de um espírito mais jovem e supostamente maisdespreparado do que o seu, Meister tem chance de refletir sobresua própria condição, sobre o estágio de sua própria formação.

O fato de persistir a incerteza quanto à relação paterna entreMeister e Felix não impede, por sua vez, que Felix seja efetivamente um vetor no início do processo de auto-conhecimento deMeister. Sim, pois há reais indícios de uma tomada de consciência de Meister sobre si mesmo no início do oitavo livro, e esta émovida pela relação com Felix. Embora não se possa dizer queMeister tenha amadurecido, pode-se dizer que ele se encontra, aofinal do romance, pronto para iniciar o processo de amadurecimento, e a relação com Felix pode ser considerada o principal

motor desse estado.No início do primeiro capítulo do oitavo livro tem-se, pela

primeira vez, uma reflexão de Meister sobre sua relação com omundo exterior, o mundo da natureza:

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Felix havia corrido para o jardim, e Wilhelm o seguiu arrebatado; a esplendorosa manhã revelava cada objeto sob novo encanto, eWilhelm desfrutava seu momento mais feliz. Felix era novato e livre

no magnífico mundo, e seu pai não conhecia muito mais os objetospelos quais o pequeno lhe perguntava repetida e incansavelmente.Foram reunir-se, por fim, ao jardineiro, que teve de lhes relatar comtodos os pormenores o nome de muitas plantas e sua utilidade.Wilhelm via a natureza por um novo órgão, e a curiosidade, a ânsiade saber da criança faziam-no sentir somente agora que débil interesse tivera pelas coisas exteriores a ele e quão pouco conhecimentotinha delas. Naquele dia, o mais feliz de sua vida, parecia tambémcomeçar sua própria cultura;5 sentia a necessidade de se instruir sendo convocado para ensinar. (Ibidem, p.489)

Wilhelm Meister reflete, pela primeira vez em seus anos de

aprendizado, sobre seu pouco conhecimento do mundo; Meister

encontra-se no seu dia inaugural, o dia em que "parecia também

começar sua própria [formação]". Mais do que nunca, o sobreno

me Meister  (mestre) parece inapropriado para aquele que o traz,

estando Wilhelm mais próximo da condição de discípulo do que da

mestria. Cabe ao leitor esquecer-se de que já se encontra no prim eiro

capítulo do último livro do romance , na cena que antecede o "gran dfinale" em que os fios que conduzem a trajetória de Meister deve

rão adquirir sua configuração final. Ao leitor parece antes encon

trar-se nas cenas que deveriam inaugurar a representação de um

processo de aprendizado, no preâmbulo de toda ação, no momen

to em que o neófito toma consciência de suas necessidades, de suas

imperfeições e incompletudes, e sai em busca de preenchê-las. Ao

mesmo tempo que a existência de Felix serve de contraponto para

que se evidenciem as carências da personalidade de Meister, a presença do garoto desperta no adulto sentimentos de proteção pater

na, de responsabilidade ante o menor e mais fraco, mais inocente:

A sofreguidão da criança por cerejas e frutos silvestres, quelogo estariam maduros, recordou-lhe os tempos de sua infância e

5 No original, Bildung, "formação". A tradução brasileira ignora, aqui, o sentido de processo presente no termo original, ao traduzir Bildung por "cultura",deslocando assim a trajetória de Meister do sentido de um processo formador.

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os múltiplos deveres do pai de preparar, providenciar e conservar asatisfação dos seus. Com que interesse contemplava os viveiros deárvores e os edifícios! Com que ânimo pensava em reparar o que

havia sido negligenciado e restaurar o que estava em ruínas! Elenão via mais o mundo como uma ave de arribação, um edifíciocomo um caramanchão, erguido às pressas, que se deteriora antesde o deixarmos. Tudo o que pensava plantar devia crescer ao encontro do menino, e tudo que estabelecesse devia durar por váriasgerações. Nesse sentido, haviam chegado ao fim seus anos de aprendizado, e com o sentimento de pai havia adquirido também todas asvirtudes de um cidadão. Sentia-o assim, e nada podia igualar-se àsua alegria. (Ibidem, p.492, grifo da autora)

No parágrafo citado, Meister, em um monólogo interior relatado pelo narrador em terceira pessoa, percebe-se com propósitosque se assemelham em muito aos da burguesia acumuladora de bens.O desejo de solidez e de durabilidade dos projetos fazem lembrar adescrição da casa da família Meister e a aparência e o desejo dedurabilidade, solidez e transmissão de bens expressados pelo Meisterpai em relação a seus descendentes.6 Por um momento, Wilhelm

aproxima-se totalmente dos ideais que combatera ao início de suatrajetória, chegando mesmo a considerar terminados, nesse sentido, seus anos de aprendizado. A citação corresponde ao momentoem que a idéia de cidadania e maturidade de Wilhelm Meister atinge seu clímax, sustentada pela idéia de paternidade. Entretanto, esseestado de espírito é fugaz, e interrompe-se logo às páginas seguintes, quando Meister volta a sentir-se indeciso e inseguro, quanto ao

6 "O velho Meister, logo após a morte de seu pai, transformara em dinheirouma valiosa coleção de quadros, desenhos, gravuras em cobre e antigüidades;ergueu de cima a baixo sua casa, mobiliou-a segundo o gosto mais modernoe tratou de valorizar o resto de sua fortuna de todas as formas possíveis.Uma parte considerável dela havia empregado no comércio do velho Werner,famoso como comerciante ativo e cujas especulações em geral eram favorecidas pela sorte. Mas nada havia desejado mais o velho Meister que poderincutir em seu filho qualidades que a ele próprio faltavam, e legar a seus

 filhos os bens aos quais atribuía o maior valor. Tinha ele, na verdade, umainclinação particular para o luxo, para aquilo que salta aos olhos, mas quetambém deveria ter ao mesmo tempo um valor e uma duração intrínsecos.Tudo em sua casa devia ser sólido e maciço; as provisões, abundantes, abaixela, de prata pesada..."

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próprio destino e ao de Felix. A expressão grifada na penúltimalinha da citação, "sentia-o assim", leva o leitor a reconhecer o estado das coisas como resultado de uma disposição emocional transitória do protagonista que, nesse momento, sente-se um cidadão.

Mais do que tudo, porém, a presença de Felix acentua o desconhecimento de Meister sobre a realidade exterior, sobre os fenômenos naturais sobre o andamento da natureza. Por meio doquestionamento de Felix sobre as coisas do mundo natural, torna-se evidente a Meister sua ignorância também em relação a taisassuntos:

O desejo do menino de estabelecer distinções crescia a cada dia.Ao descobrir que as coisas tinham nomes, quis aprender os nomes detudo; acreditava que ninguém exceto seu pai havia de saber tudo;incomodava-o amiúde com perguntas, dando-lhe ocasião de se inteirar de coisas às quais até ali havia dispensado pouca atenção. Também o instinto inato de querer saber a origem e o fim das coisas semanifestou precocemente na criança. Quando ele perguntava de ondevinha o vento e para onde ia a chama, só então o pai se dava conta desua própria limitação. (Ibidem, p.493, grifo da autora)

No oitavo e último livro do romance, o confronto com Felixprovoca em Meister a consciência quanto a suas próprias deficiências, o estado acanhado de sua própria formação.

Este agradável sentimento de que o menino tinha sobre suaexistência uma bela e verdadeira influência alterou-se por um instante tão logo Wilhelm percebeu que na verdade era mais o meninoque o educava do que ele ao menino. Nada tinha para censurar na

criança, não estava em condições de indicar-lhe um rumo que elemesmo não seguia... (Ibidem, p.493, grifo da autora)

Se, por um breve momento, a idéia de paternidade levouWilhelm a se considerar de posse das "virtudes de um cidadão",pronto para a convivência e atividade no mundo, essa mesma idéiaé capaz de apontar-lhe as lacunas de sua própria formação, tornando-o consciente delas e desejando preenchê-las. Seria lícito

afirma-se, portanto, que o oitavo livro, embora seja o último naestrutura do romance, é o primeiro em que Wilhelm parece efeti-

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vamente apto a iniciar seus anos de aprendizado. Surge assim ahipótese de que o grande aprendizado de Wilhelm Meister foi ter

adquirido consciência sobre suas deficiências, e de que um efetivo processo de formação ainda estaria por vir.Enquanto Meister parece então apto a finalmente iniciar seus

anos de aprendizado, o destino das outras personagens que, comoele, iniciaram seu percurso no começo da narrativa já se resolveu.

O DESTINO DAS PERSONAGENS

Schiller já afirmara que, no que diz respeito às personagens,Goethe soubera muito bem posicioná-las em relação ao todo. Éassim que personagens que aparecem ao início da trama, como oburguês e filisteu Werner, assumem, no fim da narrativa, uma posição bastante coerente com os indícios que já apresentara antes,ao mesmo tempo que se localizam também diante do todo. Wernerapresenta-se, no fim do livro, como um rematado capitalista, des

provido de percepção artística e preocupado apenas com as finanças, coroando assim um perfil de oposição entre o burguêsfilisteu e o artista. Seguindo-se ainda as observações de Schiller,também Mignon, o harpista, Aurelie e Mariane têm um destinobem definido e coerente com a lógica interna da narrativa, bemcomo com o gosto estético do crítico. As quatro personagens representam um universo desordenado e apaixonado, sem lugar naconfiguração final da trama. Seu destino trágico, a morte, é o de

senvolvimento lógico para seu percurso em termos da organização narrativa. Mignon e o harpista são dois elos com o mundomágico, invisível e poético ao extremo. Mignon, como se descobrirá no fim da narrativa, é filha de uma relação incestuosa. Oharpista, seu pai, enlouquece e comete suicídio. Mariane e Aurelie,embora sejam representadas como mulheres dotadas de qualidades, têm comportamento amoroso leviano e humor instável. Aprimeira morre ao dar à luz um filho ilegítimo, a segunda, morreem razão das conseqüências de um amor fracassado.

Também personagens de menor importância, como o casalMelina, integrante da trupe teatral, ou mesmo a velha Barbara,

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acompanhante de Mariane, têm um destino coerente e bem definido. O casal Melina, inicialmente membro da trupe de atoresambulante da qual Meister fora diretor, transforma-se em proprie

tário de uma companhia de ópera; seu destino acompanha, dessaforma, o destino dos projetos teatrais de Wilhelm Meister, quenão se concretizam. Já a velha Barbara, apresentada nos primeiroscapítulos como intrigante e alcoviteira, segue mantendo o mesmo ofício e mesmos estratagemas, e suas revelações no sétimolivro contribuem decisivamente à configuração do final.

A grande surpresa fica para as personagens de Philine, a levianaamiga de Wilhelm de seus tempos da trupe teatral, e Friedrich, o

criado que, conforme se vem a saber depois, é irmão de Nataliee Lothario, e, portanto, nobre. Apresentados ao início como criaturas fúteis e vulgares, Philine e Friedrich comprovam, nas cenasfinais, terem passado por um efetivo processo de burilamento dapersonalidade e aquisição de cultura.

O primeiro encontro com Philine ocorre no capítulo 4 dosegundo livro, quando Wilhelm, já em viagem, hospeda-se na aldeia de Hochsdorf e conhece Laertes, Philine, Mignon e Friedrich.

Philine observa o recém-chegado da janela de seu quarto, emanda Friedrich cumprimentá-lo e convidá-lo para sua casa. Oparágrafo a seguir reproduzido descreve o primeiro contato entreWilhelm e Philine: "A mulher saiu do quarto para recebê-los, calçando miúdos pantufos de saltos altos. Havia jogado uma man-tilha negra sobre seu négligé branco, que, exatamente por não estar muito limpo, lhe dava um ar caseiro e sem-cerimônia; sua saiacurta deixava à vista os pezinhos mais delicados deste mundo"

(Ibidem, 1994, p.90).Embora sutil, a descrição da personagem aponta claramente

para uma personalidade sedutora e aparentemente descuidada, semdeixar de delatar uma dose de premeditação e interesse. A brevealusão a uma possível falta de asseio faz lembrar ao leitor a descrição da desordem reinante nos aposentos de Mariane, desordem essa que Meister, mesmo quando dela se apercebe atônito,acaba por achar cativante (Cf. p.53-4 da tradução brasileira).

O rapazote que se pode tomar pelo criado de quarto de Philineé Friedrich, o louro, o irmão "travesso e leviano de Natalie", cuja

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verdadeira identidade só se descobrirá no oitavo livro. Friedrichtransitará como um pícaro pela narrativa, sempre pronto a aplicar trotes e a apoiar travessuras.

Philine, por sua vez, comprovará ser personagem da "mesmafamília" (Novalis) da qual provém Friedrich. Leviana e adulado-ra, perseguirá o favor dos grandes, adulará a Condessa durante aestada da trupe no castelo, demonstrando um comportamentopouco sóbrio e educado.

Philine permanece ao lado de Wilhelm, acompanhando-o e àtrupe, até que parte em circunstâncias misteriosas. Também Friedrich,

o criado de quarto, abandona a cena a uma certa altura. Ao leitorparecerá que ambos deixaram de merecer foco de atenção.Surpreendentemente, Friedrich aparecerá, também no oitavo

livro, revelando ao leitor e a Wilhelm sua verdadeira identidade.No início do capítulo 6, quando a sociedade se encontra reunidano castelo de Lothario, Friedrich se faz anunciar, surpreendendoa todos pelo seu súbito aparecimento. Na ocasião, Wilhelm, queo reconhece e o chama de "nosso pícaro louro", observa o vocabu

lário erudito então exibido pelo recém-chegado. É então que, pormeio do relato de Friedrich, se terá notícia de um dos episódiosmais significativos (e cômicos) de todo o livro, episódio que temligação direta com os conceitos de educação e formação que pontuam a narrativa.

Ao se apresentar à sociedade reunida no castelo de Lothario,Friedrich acrescenta, à sua excêntrica maneira de expressão, temas e vocábulos da história universal, da religião e da mitologia;referindo-se a Meister, declara:

Cuidem bem deste herói, deste comandante supremo e filósofo dramático! ... Ele é magnânimo como Cipião, generoso comoAlexandre ... Não pensem que amontoava brasas sobre a cabeça deseus inimigos, que, como se diz, deve ser um dos piores serviços ase prestar a alguém...

- Não se assombrem - exclamou - com minha grande erudição

nos escritos sagrados e profanos; em breve saberão como adquiriesses conhecimentos. (Ibidem, 1994, p.540)

Segue o relato de Friedrich sobre a aquisição dessa erudição:

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- Diga-me - perguntou Wilhelm -, onde adquiriu esta tão vasta erudição? Ouço assombrado a maneira estranha que tem adotadoao falar, fazendo sempre referência a histórias e fábulas antigas.

- Tornei-me erudito, e na verdade, muito erudito, da formamais divertida - disse Friedrich. Philine está comigo agora; sublo-camos de um arrendatário o velho castelo de uma possessão feudal,onde, como duendes, levamos a mais divertida vida. Ali encontramos uma biblioteca, embora limitada, é verdade, bastante seleta,onde há uma Bíblia in-fólio, a Crônica de Gottfried, dois volumesdo Theatrum Europaeum, os Acerra Philologica, escritos de Gryphius,e outros livros menos importantes. Pois bem, depois que dávamoslivre curso a tudo, às vezes nos sentíamos enfadados e passávamos a

ler; antes de nos prover, já era maior o nosso tédio. Ocorreu entãoa Philine a magnífica idéia de abrir todos os livros sobre uma grande mesa; sentávamo-nos frente a frente e líamos, um para o outro,nada além de trechos ora de um ora de outro livro. Uma verdadeiradiversão! Acreditávamos estar numa boa sociedade onde se tem porimpróprio estender-se longamente sobre a mesma matéria ou mesmo querer debatê-la a fundo; acreditávamos estar numa sociedadeanimada onde ninguém dá ao outro a palavra. Entregamo-nos regularmente todos os dias a esse entretenimento e aos poucos nos

tornamos tão eruditos que nos surpreendíamos com nós mesmos. Jánão encontrávamos mais nada de novo sob o sol, e nossos conhecimentos nos servem para tudo como referência. Praticamos diversasvariações nesse modo de nos instruir. Às vezes líamos acompanhadosde uma velha e deteriorada ampulheta, que em minutos já estava vazia.Sem perda de tempo, o outro a virava e dava início à leitura de umlivro, e nem bem a areia preenchia o vidro inferior, recomeçava ooutro com seu discurso, e assim estudávamos de maneira verdadeiramente acadêmica, só que nossas aulas eram mais curtas e nosso estudos,

manifestadamente variados. (Ibidem, 1994, p.542)

Essa é a descrição do processo de aquisição da cultura erudi

ta por Friedrich e Philine, o casal de "travessos e levianos", perso

nagens que se mostraram por toda a narrativa como caracteres

pouco confiáveis, ardilosos e mesmo cômicos. No oitavo livro,

por meio do relato de Friedrich, tem-se efetivamente o relato de

um processo de instrução, de aquisição da cultura universal

livresca, embora esse relato seja pontilhado pela ironia que pesatanto sobre os próprios indivíduos objetos do processo de instru

ção quanto sobre o próprio processo em si, crítica aguda da cul-

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tura erudita dos salões da sociedade burguesa, arremedo dos programas das academias levado a cabo por dois bufões.

A união de Philine e Friedrich, além de representar, portanto, um excêntrico processo de formação e aquisição de cultura,realiza também um dos casamentos interclasses, ou mésalliances.Ao lado das uniões anunciadas de Wilhelm e Natalie e Lothario eTherese, constituem o único par que realmente concretiza a união,coabitando. Philine, grávida, faz crer a Friedrich que é dele ofilho que espera, repetindo assim o mesmo mecanismo posto emação quanto a Felix, filho de Mariane e Wilhelm. Assim, para ocasal Philine e Friedrich, a paternidade e maternidade também semostram em princípio como sinal exterior de amadurecimento eresponsabilidade. Mais uma vez, porém, assim como no caso deMeister, essa paternidade é duvidosa:

- Devo confessar - replicou Wilhelm sorrindo - que há de sermuito engraçado vê-los juntos como pai e mãe.

- É um verdadeiro desvario - disse Friedrich - que eu tenhaafinal de passar por pai. Ela o afirma, e as datas coincidem. A prin

cípio me desconcertava um pouco a visita que ela lhe fizera aquelanoite, depois do Hamlet. (Ibidem, p.543)

Friedrich refere-se aqui à misteriosa visita noturna de umamulher ao quarto de Meister, logo após a encenação do Hamlet,revelando assim a Meister a identidade da mulher misteriosa, Philine.Friedrich prossegue:

Essa história me foi, decerto, um duro dote, mas quando nãose transige com certas coisas, não há como amar. A paternidadebaseia-se principalmente na convicção; estou convicto, logo, soupai. Como vê, sei empregar a lógica também no lugar apropriado.(Ibidem, p.543)

A afirmação de Friedrich, além de evidenciar o caráter duvidoso dessa segunda paternidade, sugere ao leitor a possibilidadede uma 'troca". Sim, pois se o filho que Philine espera pode tersido gerado durante seu encontro noturno com Meister, substituiassim biologicamente a paternidade de Felix, sobre a qual o pró-

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prio Meister jamais estará seguro. O mecanismo sugere assim aconsideração plena da afirmação de Friedrich de que a paternidade baseia-se sobretudo na convicção.

De toda maneira, Philine e Friedrich são as personagens quemelhor ilustram a concretização de um processo de desenvolvimento. Embora narrado com ironia e comicidade, seu processo deaquisição de cultura livresca, sua união por meio de um casamentointerclasses, e o reconhecimento efetivo da paternidade, são sinaisde uma definição pessoal que o próprio Wilhelm Meister não iráalcançar. Assim, o destino do protagonista de Os anos de aprendi

 zado perde em definição e concretização, quando comparado à tra jetória das personagens circundantes, como Philine e Friedrich oumesmo os anteriormente citados casal Melina, Mignon, o velhoharpista, Mariane e Aurelie.

AS INTERVENÇÕES DA SOCIEDADE DA TORRE

A Sociedade da Torre é a instituição formadora que promove, ao longo da narrativa, intervenções que deverão dirigir o destino e trajetória de Wilhelm Meister, que só aparentemente dispõe de livre-arbítrio sobre suas decisões. Já no livro primeiro,capítulo 17, registra-se pela primeira vez o encontro de Meistercom um desconhecido, o qual, como se saberá no fim, se tratavado Abade, ou mesmo de seu irmão gêmeo, também membro da

Sociedade. O episódio da "Conversa sobre arte e destino com odesconhecido" ocorre imediatamente antes da descoberta, porWilhelm, da traição de Mariane. A conversa gira em torno dasmaneiras de se apreciar a arte, quando Wilhelm demonstra pelaprimeira vez na narrativa a predominância de sua apreciação pelotema sobre a forma, predominância que o acompanhará até mesmo no fim do livro, quando reencontra a coleção de arte. quepertencera a seu avô. Em seguida, passam a falar sobre o destino.

Meister refere-se à sua presumida vocação teatral, para a qualse imagina determinado pelo destino. Ao que o desconhecidoresponde:

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Infelizmente, mais uma vez ouço a palavra destino pronunciada por um jovem numa idade em que é comum submeter suas vivasinclinações à vontade dos superiores.

- Mas, então, o senhor não crê em destino? Num poder quenos governe e tudo conduza para o nosso bem?

-... A trama deste mundo é tecida pela necessidade e pelo acaso;a razão do homem se situa entre os dois e sabe dominá-los ... Infelizdaquele que, desde sua juventude, habitua-se a querer encontrar nonecessário alguma coisa de arbitrário, a querer atribuir ao acaso umaespécie de razão, tomando-se mesmo uma religião segui-lo! Que seriaisto senão renunciar à própria razão e dar ampla margem às suasinclinações? Imaginamo-nos piedosos, enquanto avançamos, vagando

sem refletir, deixando-nos determinar por contingências agradáveis,e acabamos por dar ao resultado de uma tal vida vacilante o nome deuma direção divina. (Ibidem, 1994, p.64, grifo da autora)

As palavras do emissário da Torre podem ser entendidas como

uma defesa do desenvolvimento programado das qualidades huma

nas, em detrimento da idéia do acaso e de um destino pré-traçado.

O primeiro encontro entre Meister e um dos integrantes da

Sociedade da Torre dirige, portanto, a discussão para um temaque predomina por toda a primeira metade do livro. Trata-se da

pretensa vocação teatral de Wilhelm Meister, para a qual se ima

gina predestinado. A argumentação rígida do emissário da Socie

dade da Torre a favor da razão e contra o desenvolvimento livre

das "inclinações" posiciona-se claramente contra a idéia de que o

indivíduo possa deixar aflorar livremente seus talentos e habili

dades: "Só a capacidade nos é inata; faz-se necessário, pois, apren

dê-la e exercitá-la cuidadosamente" (Ibidem, 1994, p.65).O segundo encontro com um emissário da Sociedade da Tor

re dá-se durante uma travessia de barco, quando Wilhelm já se

encontra reunido ao grupo que será sua trupe teatral: "Subiu à

embarcação um homem de belo porte, que por seu traje e sua

aparência respeitável poderia ser tomado por um eclesiástico"

(Ibidem, p.l13).

O desconhecido junta-se ao grupo nas brincadeiras e repre

sentações improvisadas, começando depois a conversar comMeister. A princípio, trocam idéias sobre os exercícios mais ade

quados a um ator, depois sobre a formação mais apropriada a um

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ator. Da mesma forma que no encontro anterior, o enviado da

Torre mostra-se contrário ao conceito de gênio, acreditando

sobrepujá-lo a educação:

- ... Ora - replicou Wilhelm -, uma feliz disposição natural, naqualidade de princípio e fim, não haveria de conduzir a tão elevadoobjetivo não só um ator, mas qualquer artista, ou mesmo qualquerser humano?

- Poderia ser e continuar sendo o princípio e o fim, o primeiroe o último; mas entre um e outro ficam faltando ao ator muitas coisas,quando a educação7 não faz dele o que ele deveria ser, e, para sermais preciso, uma educação precoce, porque talvez seja pior para

aquele a quem se atribui gênio que a um outro que só possui aptidõescorriqueiras, pois aquele pode degenerar-se mais facilmente e serimpelido para o mau caminho com mais impetuosidade que este.(Ibidem, p.l 15, grifo da autora)

Da mesma forma que no encontro anterior, o desconhecido

argumenta de forma contrária às disposições do destino (no sen

tido de "acaso"), no que se refere à formação e educação do ho

mem. Constitui-se claramente o paralelo entre o processo de educação e desenvolvimento das habilidades inatas e a vocação

"genial" intuitiva, a "feliz disposição natural" que Meister acre

dita possuir. A alusão à "pior" situação daquele "a quem se atri

bui gênio", pois este "pode degenerar-se mais facilmente" ilustra

à perfeição o grande equívoco de Wilhelm Meister em relação à

sua vocação teatral.

O desconhecido:

- ... Fala-se e escreve-se muito sobre educação,8 mas não vejosenão uma parcela de homens capaz de compreender e levar a cabo osimples porém grande conceito que encerra em si todos os demais.

- É bem possível que seja verdade - disse Wilhelm -, pois todohomem é limitado demais para querer educar o outro à sua própriaimagem. Felizes aqueles de quem se encarrega o destino, que a todos educa à sua maneira.

7 No original, Bildung, "formação".8 No original, Erziehung, "educação".

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O destino - replicou o outro, sorrindo - é um preceptor excelente, mas oneroso. Eu preferiria ater-me ao julgamento de um mestre humano. O destino, a cuja sabedoria rendo total respeito, tem no

acaso, por meio do qual age, um órgão muito canhestro. Pois rarassão as vezes em que este parece realizar com acerto e precisão o queaquele havia determinado.

- Este me parece um pensamento muito singular - replicouWilhelm.

- De maneira alguma! A maior parte das coisas que ocorremno mundo justifica minha opinião. Não é fato que muitos acontecimentos mostram a princípio um grande sentido e acabam sempre

 por resultar em algo insignificante?

- O senhor está caçoando.- Mas não é o que ocorre - prosseguiu o outro - com rodos os

indivíduos? Suponha que o destino tivesse escolhido alguém parase tornar um bom ator ... digamos que, por um infortúnio qualquer, o acaso conduzisse o nosso jovem homem a um teatro demarionetes, onde não poderia deixar de tomar parte em algo insí-pido, de achar suportável e até mesmo interessante algo disparatado, de receber assim, sob um aspecto errôneo, aquelas impressõesinfantis que nunca se esvaem e pelas quais nunca deixamos de sentir um certo apego. (Ibidem, 1994, p.l16, grifos da autora)

O exemplo aparentemente casual incomoda Wilhelm, pois

trata-se de nada menos do que uma referência direta a seus dotes

de ator, bem como ao teatro de marionetes ao qual ele tanto se

dedicara na infância e do qual tanto se orgulhara, narrando mes

mo a Mariane suas encenações infantis. Embora nem o protago

nista nem o leitor ainda o saibam, o emissário da Sociedade da

Torre trata de falar a Meister sobre os enganos a que um jovem

está exposto quanto ao auto-reconhecimento de seus talentos e

de sua vocação.

O que para Meister parece então extremamente significativo,

sua vocação teatral, trata-se, para os membros da sociedade, de

uma tendência juvenil, incitada e mantida pela carga de afeto que

o homem dedica às atividades ligadas às recordações da infância

e primeira juventude. É esse um dos sentidos da afirmação do

emissário sobre os "muitos acontecimentos [que] mostram a prin

cípio um grande sentido e acabam sempre por resultar em algo

insignificante". A mesma frase, tomada literalmente ao contrário,

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combina perfeitamente com a frase final de Friedrich, no oitavolivro, quando atribui a Meister a mesma sorte de Saul, filho deKis, que "saiu em busca das jumentas de seu pai e encontrou emlugar disso um reino". A trajetória de Wilhelm Meister encontra-se, portanto, determinada entre o acaso, que, na acepção da Sociedade da Torre, é o veículo pelo qual age o destino, e a intervenção racional sobre as capacidades inerentes ao homem. Se, porum lado, é possível identificar assim a existência de um real pro jeto de formação por parte da Sociedade da Torre, de baseracionalista e intervencionista, é necessário, por outro lado, inferir em que medida esse projeto foi efetivamente levado a cabo,

no total da narrativa.Uma real concretização dos desígnios da Sociedade da Torre

quanto ao destino de Meister pode ser verificada naquela que odistancia do teatro, entendido por ele até então como vocação àqual estava predestinado. Durante a estada da trupe teatral nocastelo do Conde, Wilhelm Meister conhece Jarno, militar que,como se saberá depois, é uma das lideranças da Sociedade da Torreao lado do Abade. Durante uma discussão sobre teatro, em que o

príncipe ali presente declara sua preferência pelo teatro francês(p.l73 da edição brasileira), também Wilhelm declara-se conhecedor e admirador de Racine e Corneille; Jarno o interrompe epergunta-lhe se já havia lido alguma peça de Shakespeare. Ante anegativa, Jarno promete enviar-lhe alguns livros. Assim, Meisteré introduzido por Jarno na leitura do poeta inglês, concretizan-do-se então uma ação bastante próxima e concreta da Sociedadeda Torre sobre a educação e formação de Meister. Segue a des

crição dos efeitos da leitura: "Nesse estado de ânimo recebeu oslivros prometidos e em pouco tempo, como se pode presumir,arrebatou-o a torrente daquele grande gênio, conduzindo-o a ummar sem fim, no qual rapidamente se esqueceu de tudo e se perdeu" (Ibidem, p.l75).

O comportamento inicial de Wilhelm diante da leitura das peçasde Shakespeare reproduz, sem dúvida alguma, o espírito dos "Sturm-und-Dränger"; a leitura de Shakespeare por Wilhelm Meister é

arrebatada e apaixonada, irracional. Não parece ter sido esse odesígnio de Jarno. No capítulo seguinte, o diálogo entre os dois dá

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a dimensão das intenções de Jarno. A leitura de Shakespeare põe

Meister em estado de arrebatamento:

- Estou tão admirado de sua força e delicadeza, de sua violência e serenidade, e ao mesmo tempo tão desconcertado, que esperoansioso o momento em que me encontrarei num estado melhor, queme permita continuar a leitura.

- Bravo! - exclamou Jarno ... - Exatamente como eu imaginava!E as conseqüências que espero não tardarão certamente a aparecer.

- Quisera - replicou Wilhelm - poder revelar-lhe tudo o que sepassa agora dentro de mim ... Esses olhares ligeiros que lancei aomundo de Shakespeare me instigam, mais do que qualquer coisa, aseguir adiante, a progredir com maior rapidez no mundo real, a misturar-me no fluxo dos destinos que lhes estão reservados, e um dia,havendo logrado êxito, haurir do imenso mar da verdadeira natureza alguns copos e oferecê-los diretamente do palco ao sequiosopúblico de minha pátria.

- Como me alegra vê-lo em tão boa disposição de espírito! -replicou Jarno ... - Não permita esmorecer seu propósito de voltar-se para uma vida ativa, e dê-se pressa em aproveitar bravamente osbons anos que lhe são concedidos ... Ainda não lhe perguntei como

veio parar nesta companhia, para a qual certamente não nasceunem foi criado. Tenho visto, e é o que espero, que está ansioso paradeixá-la ... Asseguro-lhe que ainda não compreendi como pôde tornar-se amigo dessa gente. Quantas vezes presenciei com desgostoe irritação como o senhor, só para poder viver razoavelmente, tevede dedicar-se de coração a um músico ambulante e a uma criaturaparva e hermafrodita. (Ibidem, p.l86-7, grifos da autora)

Para Jarno, o interesse de Wilhelm por Shakespeare é positi

vo na medida em que deverá permitir a inserção de Meister emuma atividade voltada para o mundo exterior, e, paradoxalmen

te, longe do teatro e dos arroubos artísticos. A recomendação de

leitura não é feita com a intenção, como se pode pensar de início,

de contribuir para a formação do ator Wilhelm Meister, mas sim

a de trazê-lo mais próximo da experiência do mundo real.

A referência demeritória a "essa gente" com a qual Wilhelm

se juntou, especialmente o harpista e Mignon, denota a intenção

de Jarno de separar Meister de tudo aquilo que contraria os prin

cípios da razão e da atividade produtiva. A disposição de espírito

que Jarno saúda em Meister é aquela que deveria levá-lo a ocu-

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par-se de objetos e atividades voltados para a vida ativa. Para Jarno,o germe dessa disposição encontra-se mesmo na breve frase dodiscurso de Meister em que este se diz instigado a progredir commaior rapidez no mundo real. Como se verá a seguir, após a primeira encenação de Hamlet pela companhia teatral de Meister, o atormisterioso que interpretara o espectro do rei deixa sobre o leito deWilhelm um lenço, em que se pode ler as seguintes palavras: "Pelaprimeira e última vez, foge! Foge, meu jovem, foge!".

A inscrição não tem aparentemente sentido algum paraMeister. No oitavo livro, ao encontrar-se com os membros daSociedade da Torre no castelo de Lothario, Meister (e os leitores)saberá que o ator que interpretara o espectro do rei era o Abade,e que a inscrição o incitava a abandonar o mundo de teatro.

Efetivamente, Meister é levado a fazê-lo. Incumbido pelaamiga Aurelie, que, antes de morrer, pede-lhe que leve uma cartaa Lothario, Wilhelm é obrigado a deixar temporariamente a companhia, à qual ele não mais se juntará. Os planos de Melina eSerio são de transformar a companhia teatral em uma companhiade ópera, que deverá trazer-lhes mais lucros. Assim, a companhia

teatral de Wilhelm Meister, que encenara Hamlet  e Emilia Galotti,deverá adequar-se ao gosto popular da época. Terminam assimtristemente os projetos teatrais de Wilhelm, e deles não mais sevoltará a falar até o final do livro. Assim, os desígnios da Sociedade da Torre no que se refere à carreira teatral de Meister sãorealizados, menos em razão de uma real influência ou ação daSociedade do que pelo próprio acaso, contrariando assim os princípios norteadores da mesma Sociedade.

Quando Jarno e Meister voltam a se encontrar, desta vez casualmente, no castelo de Lothario, a conversa entre os dois aborda novamente o tema da necessidade da razão como condutor doespírito humano:

A espécie humana não teme outra coisa senão a razão; deveriamtemer é a estupidez, se tivessem noção do que é temível; mas a razão éincômoda, ao passo que a estupidez não é senão perniciosa, e por issose pode esperar ... Mas diga-me, o que lhe sucedeu? Eu vejo, eu sinto

que o senhor também mudou. Como anda sua antiga mania de criaralgo belo e bom com uma companhia de ciganos? (Ibidem, p.426)

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A presumida mudança que Jarno atribui a Meister refere-secertamente a seu desligamento da companhia teatral. O comentá

rio sobre a mudança de Meister segue-se ao comentário sobre arazão e a estupidez, quando Jarno afirma que a "estupidez podeesperar". Ao leitor que estiver ciente do papel de Jarno como tutor, fica clara a alusão aos naufragados projetos teatrais de Meister,manifestações, portanto, de sua estupidez.

A pergunta de Jarno sobre sua antiga mania "de criar algobelo e bom com uma companhia de ciganos", Wilhelm respondecom um discurso inflamado pelo qual critica a vaidade e o egoís

mo dos atores, sua incapacidade de dedicar-se a algo que não sejarotina, sua estupidez, enfim:

Não só cada um quer ser o primeiro, como também o único; todos excluiriam, com prazer, os demais, sem ver que, mesmo comtodos juntos, mal poderiam realizar alguma coisa; todos se imaginam maravilhosamente originais e, no entanto, são incapazes dedescobrir no que quer que seja algo que esteja fora da rotina, o queos leva a sentir um eterno desassossego por algo de novo. Com queviolência agem uns contra os outros! E só o mais mesquinho amorpróprio, o mais tacanho egoísmo fazem unir-se um ao outro... quemnão vive licenciosamente, vive como um imbecil. Todos reclamam amais incondicional estima, e todos são sensíveis à menor crítica ...Sempre necessitado e sempre desconfiado, parece não temer nadasenão a razão e o bom gosto, nem procura ater-se a outra coisa quenão o direito majestoso de seu capricho pessoal. (Ibidem, p.426-7)

O discurso de Meister deixa entrever sua decepção com a ex

periência junto à companhia teatral de Serio, cuja proposta inicial, a de encenar obras do teatro inglês e peças de autores nacionais alemães, caiu por terra em nome do lucro e do divertimentofácil do público. Wilhelm censura assim os antigos companheirosquando fala da "incapacidade de descobrir algo que esteja forada rotina, o que os leva a sentir um eterno desassossego por algode novo". O seu discurso nada positivo, a descrição crua das vai-dades e caprichos pessoais dos atores seus antigos companheiros,

faz que seu interlocutor, rindo, lhe diga:Pois saiba, meu amigo ... o que me descreveu não foi o teatro,

mas o mundo, e que eu poderia encontrar em todas as classes sociais

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personagens e ações suficientes para suas duras pinceladas? Perdoe-me, mas só me resta continuar rindo, já que realmente crê que essasbelas qualidades sejam exclusivas dos palcos. (Ibidem, p.427)

Se, por um lado, o discurso de Wilhelm Meister evidenciasua decepção com o teatro, aproximando-o, portanto, de um desígnio da Sociedade da Torre, Jarno, emissário da Sociedade,ironiza a ingenuidade de Meister quando este pensa estar descrevendo apenas um grupo restrito, o dos atores, enquanto pinta umquadro do próprio mundo. Ainda assim, a passagem citada podeser considerada, em todo o livro, como aquela que melhor evi

dencia uma efetiva transformação de Wilhelm Meister. Embora,como já se exemplificou anteriormente, Meister chegue no fimdo oitavo livro ainda antes como aprendiz do que como um verdadeiro mestre, qualidade paradoxalmente explícita em seu próprio nome, é inegável que entre o jovem que se dedicava ao teatro de marionetes e aquele que proferiu o discurso citado existeuma diferença notável. Tendo uma vez abandonado sua vocaçãoteatral, Meister, porém, não abraça outra. Os negócios de sua fa

mília são administrados por Werner, o que o isenta de ter queenvolver-se com eles. A indefinição quanto ao destino de Meisterpermanece, o que permitiu o elogio de Schiller quanto ao fato deque o protagonista "permanece na indeterminabilidade, sem perder a bela capacidade de se deixar determinar".

O DESTINO DE WILHELM MEISTER

O oitavo livro traz à luz, portanto, fios que se encontravamaté então ocultos, esclarecendo e finalizando situações, embora oleitor possa sentir-se incomodado com o destino dado a algunsconflitos. O próprio destino de Wilhelm Meister encontra-seirresolvido até as últimas páginas do livro. Tendo-se decidido pelocasamento com a burguesa e virtuosa Therese, Meister vê seusplanos desmoronarem na medida em que ela é considerada livree desimpedida para unir-se a Lothario, de quem se acreditava an

teriormente irmã. Meister vê falhar assim um dos seus poucosprojetos de iniciativa própria, o qual ele vê frustrado com a cola-

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boração de Jarno, membro da Sociedade da Torre, que revela atodos a origem de Therese.

Meister passa então a sentir-se indesejado por aquela mesmasociedade que o acolhera, acreditando mesmo que os amigos querem livrar-se dele a qualquer custo, uma vez que não há comoencaixá-lo na nova configuração assumida pelas relações pessoaisentre os membros da pequena sociedade reunida ao redor de Natalie.É quando se tem notícia pela primeira vez dos planos de Jarno deembarcar para a América, fazendo-se acompanhar por Meister. Issose dá no capítulo 7 do oitavo livro, e o romance termina no capítulode número 10. (Os planos de emigração para a América serão de

senvolvidos em detalhe pela Sociedade da Torre em Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister. Em Os anos de aprendizado, tais planos são comentados de maneira breve. Sabe-se apenas que osplanos de emigração para a América derivam da preocupação deJarno quanto às "grandes transformações" que se esperam.) Quando ouve pela primeira vez os planos de emigração para a América,Wilhelm se espanta, dizendo-se surpreso por ter sido escolhido comocompanheiro de viagem para semelhante aventura. Jarno responde

que "é preciso conhecer um pouco dos negócios do mundo paraperceber que nos esperam grandes transformações, e que as propriedades não estão seguras em parte alguma". Trata-se possivelmente detransformações econômicas e políticas, como se pode depreenderdo seguinte parágrafo:

Nos dias de hoje, nada é menos aconselhável que ter umapropriedade num só lugar, que confiar seu dinheiro a uma só praça;mas é igualmente difícil mantê-los sob vigilância em muitos lugares,daí porque concebemos algo diferente: de nossa velha torre há desair uma sociedade que se espalhará por todas as partes do mundo,e na qual de todas as partes do mundo se poderá entrar. Asseguramosreciprocamente nossa existência para o caso único de que umarevolução nacional desaloje um ou outro de suas propriedades. Voupara a América com a intenção de aproveitar as relações que nossoamigo fez durante sua estada nesse país. O abade irá para a Rússia,e o senhor deve escolher, caso queira unir-se a nós, se fica ajudandoLothario aqui na Alemanha ou se parte comigo. Penso que o senhorescolherá esta última, pois para um jovem é extremamente proveitoso fazer uma viagem. (Ibidem, p.547)

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As preocupações da Sociedade da Torre com a manutençãodos direitos de propriedade e segurança parecem constituir de

corrência direta das preocupações que efetivamente assolavam aAlemanha quanto ao processo revolucionário que ocorrera naFrança e seus desdobramentos. Assim, a viagem para a Américasurge como um projeto dissociado da preocupação com a formação individual, mas sim como o germe de um projeto coletivo, sebem que anti-revolucionário.

Segue a resposta de Meister ao convite:

- A proposta é digna de toda reflexão, já que em breve minhadivisa será: "Quanto mais longe, melhor". Espero que me dê maisdetalhes sobre seu plano. Talvez seja meu desconhecimento domundo, mas me parece que uma tal associação deve topar com dificuldades invencíveis, (p.547)

Percebe-se, no tom utilizado na resposta, o desagrado de Meister,sua percepção de que "está a mais" na sociedade constituída ao redorde Natalie e Lothario, como também a percepção de que as mes

mas pessoas que até então se teriam ocupado dele e de seu destinopretendem agora livrar-se dele. É importante notar que, no capítulo 7 do oitavo livro, poucas páginas antes da cena final, Meisterrefere-se ainda ao seu "desconhecimento do mundo", que talvez oimpedisse de considerar factível o projeto da Sociedade da Torrepara a América. Jarno responde-lhe que as dificuldades de tal pro

 jeto estão, em suas maior parte, eliminadas, dado serem eles osmembros até agora "bem poucos, homens honestos, sensatos e

decididos, que têm um certo sentido do geral, de onde unicamentepode provir o sentido de sociedade" (p.547).

Assim, aquilo que se apresentara em princípio como o processo de desenvolvimento individual de Wilhelm Meister conduzido pela Sociedade da Torre conflui em um projeto de sentidocoletivo, planejado para o futuro e de caráter utópico, dado quesua realização permanece futuridade.

No sétimo capítulo, delineiam-se, portanto, decisões que se

mostram surpreendentes, tanto pelo seu imediatismo quanto porsua praticidade. Embora Meister não se mostre disposto a acompanhar Jarno à América, há outros candidatos. Friedrich interes-

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sa-se pelo projeto, compromentendo-se a levar Philine. Sugere ainda que o destino da "pobre Lydie", a amante desprezada por

Lothario, se resolva também da mesma forma.Friedrich propõe assim a emigração para a América como um"remate de males", como uma solução para aqueles cujos planosmais ambiciosos e pessoais não se realizaram, como Wilhelm e Lydie,que, desiludidos ambos amorosamente, poderiam juntar-se e iniciar uma nova vida.

Tanto Wilhelm quanto Natalie discordam da solução apresentada. O destino de Lydie, porém, já estava designado. Jarno, o

mentor do projeto, decidira desposá-la, sanando assim uma faltade Lothario e uma situação desonrosa e desconfortável para Lydie.Dessa forma, o projeto do bufão Friedrich deverá realizar-se damesma forma, com Jarno em lugar de Meister.

Essas resoluções, em seu imediatismo, parecem contrariar asaspirações originais do protagonista Wilhelm Meister e mesmo oespírito da obra como um todo. Já se está muito distante daquele

 jovem Meister cujo desejo maior era "aperfeiçoar-me, como realmente sou", segundo reza o texto da carta enviada a Werner. Emboranão se possa dizer que as aspirações de Meister tenham desaparecido, é possível afirmar que as expectativas de sua realizaçãosão praticamente nulas. Os projetos que se lhe apresentam desviam-se dos planos de uma formação pessoal, de um desenvolvimentoideal de suas qualidades individuais, como era seu desejo expressado a Werner. O caráter prático e imediatista dos planos da Sociedade da Torre contrariam assim o idealismo das ambições originaisdo protagonista.

Uma vez que Meister se recusa a acompanhar Jarno no projeto de emigração para a América, deixando-o para os "vencidos davida" como Lydie, apresentam-lhe imediatamente uma segundaproposta, trazida pelo Abade: Wilhelm poderia acompanhar comosecretário um marquês italiano, que precisava de alguém que dominasse a língua alemã "e mais alguma outra". O Abade acrescenta que Wilhelm conhece a língua, "além de ser instruído emmais algumas coisas", as quais, porém, não especifica. Dentre osmembros da sociedade, ninguém se opõe à proposta, sendo essaaté mesmo encorajada.

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Assim, logo que Wilhelm recusa a idéia de viajar à América,apresentam-lhe imediatamente outra proposta de encaminhamen

to: acompanhar um marquês italiano em viagem pela Alemanha. Égrande a diferença entre as duas propostas. Isso pode conduzir o leitor à conclusão de que, para a Sociedade da Torre, não é muito importante o tipo de finalização que se dará ao projeto de formação deMeister; porém, é preciso observar que qualquer uma das duas possibilidades traz em si uma idéia de atividade voltada para a coletividade, para o mundo exterior, até então estranha para Meister. O fatode ninguém ter apresentado oposição a essa segunda proposta re

força o reconhecimento de uma indiferença quanto ao caminho quedeve ser tomado por Meister, o que ele próprio percebe.

Wilhelm, em seu íntimo, estava tão indignado com essa novaproposta que mal o conseguia dissimular. Via claramente naquiloum arranjo para se livrarem dele o mais depressa possível, e, o queera ainda pior, faziam tudo às claras, sem nenhuma consideração ...

Conteve-se e respondeu:- Essa proposição merece certamente uma reflexão madura.

- Uma decisão rápida se faz necessária - replicou o abade.- Não estou preparado para isso agora - respondeu Wilhelm. -... Mas devem, de antemão, aceitar uma condição básica: que eupossa levar meu Felix comigo e conduzi-lo por toda a parte.

- Essa condição dificilmente será aceita - replicou o abade.- E não vejo por que - exclamou Wilhelm - deveria deixar que

qualquer um me impusesse condições. E por que, para visitar minha pátria, necessito da companhia de um italiano?

- Porque um jovem - replicou o abade com uma seriedadeimponente - tem sempre motivo para se juntar a alguém. (p.550)

O parágrafo reproduzido permite que se perceba, em primeiro lugar, a consciência de Wilhelm Meister quanto a seu papelmínimo na determinação do próprio destino. Meister revolta-sequanto ao autoritarismo da Sociedade da Torre e quanto à nãoconsideração dos seus desejos e necessidades na determinação deseu próprio destino. Por outro lado, a última afirmação do Abadereitera a concepção que parece predominar finalmente como baliza das preocupações formadoras da Sociedade. Se "um jovemtem sempre motivo para juntar-se a alguém", então o destino deWilhelm Meister deverá efetivamente resolver-se em meio à cole-

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tividade, e não mais como uma trajetória individual em busca da

formação universal, no sentido do desenvolvimento pleno das

qualidades individuais. Assim, é apenas no último livro do ro

mance que as verdadeiras determinações da Sociedade da Torre

se manifestam com maior clareza.

Porém, não será ainda esse o destino de Wilhelm Meister. Pres

sionado pelo Abade, que lhe cobra uma decisão, Wilhelm Meister

contemporiza, indicando a possibilidade de um futuro indepen

dente dos laços que o prendem à Sociedade:

- Que me concedam apenas algum tempo para pensar, e su

ponho que bem depressa decidirei se tenho motivo para continuar ame juntar a alguém ou se, ao contrário, o coração e a astúcia não meordenam de modo irresistível desatar-me de tantos laços que me ameaçam como uma prisão eterna e miserável.

Disse tais palavras com a alma vivamente comovida. Um olharsobre Natalie o tranqüilizou de certo modo, apossando-se dele deforma tão profunda naquele momento de paixão a figura e o valorda jovem.

- Sim - disse a si mesmo, ao se ver sozinho -, confessa-te; tu

a amas e de novo sentes o que isto significa quando o homem podeamar com todas as suas forças. (p.550)

Wilhelm Meister, depois de ver fracassarem seus projetos de

união com Therese, descobre que ama Natalie. Percebe então que,

qualquer que seja o destino que a sociedade lhe atribuir, estará

abandonando o verdadeiro bem, a ventura que Natalie representa:

Agora que a conheces, que estiveste tão perto dela, que tanto

interesse por ti ela demonstrou, agora estão gravadas profundamenteem tua alma suas qualidades, como antes sua imagem em teussentidos. É angustiante viver procurando, mas é muito mais angustiante achar e ter que abandonar. (p.551)

Natalie apresenta-se portanto como o objeto final da busca

de Meister. Quando descobre finalmente que a ama, Wilhelm

Meister relativiza e põe em xeque seus desejos em relação ao mun

do exterior:Que devo pedir agora ao mundo? Que devo procurar dentro de

mim? Que região, que cidade guarda um tesouro semelhante a este?

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E devo viajar para encontrar sempre só o inferior? Acaso a vida nãoé senão uma mera pista de corridas em que se deve retornar uma vezalcançado o ponto extremo? E estará aí o bem, o excelente, como

uma meta fixa, inalterável, da qual haverá que se afastar ligeiro comcavalos velozes quando se acreditava havê-lo alcançado? Enquantoaquele que aspira a mercadorias terrestres pode procurá-las nos maisdiferentes pontos da terra e até na feira e no mercado. (p.551)

Acreditando ser impossível atingir o objeto desse amor ainda

idealizado, Meister decide-se por partir junto com Felix. Após essa

decisão, em vez de encontrar a calma, perde-se num lastimável

estado de desorientação e angústia cuja descrição nada fica de

vendo aos momentos mais tensos e penosos que antecedem ascenas finais do romance epistolar de Goethe Os sofrimentos do

 jovem Werther  (1774), na chamada fase "Sturm und Drang" de

Goethe:

Em tal estado, não encontrava ele repouso espiritual ou físiconem de dia nem de noite. Enquanto todos dormiam, ele circulavapela casa. A presença daquelas antigas e conhecidas obras de arte oatraíam e o repeliam. Não podia apanhar nem abandonar nada doque estava à sua volta: tudo o fazia lembrar tudo; ele abarcava com oolhar todo o círculo de sua vida, mas este infelizmente jazia quebradoà sua frente e parecia assim não querer fechar-se nunca mais. Essasobras de arte, que seu pai havia vendido, pareciam-lhe um símbolodo qual ele também estava excluído, em parte de uma posse tranqüilae sólida das coisas desejáveis do mundo, em parte despojado porculpa própria ou alheia. Perdia-se a tal ponto nessas singulares e tristesdivagações que muitas vezes se sentia como um fantasma, e mesmoquando sentia ou apalpava as coisas exteriores, mal podia precaver-

se contra a dúvida de estar realmente vivo e se encontrar ali.Só a viva dor que às vezes o atacava de ter que abandonar de

um modo tão afrontoso e, no entanto, tão necessário tudo o quehavia encontrado e recuperado, só suas lágrimas lhe restituíam osentimento de sua existência. (p.552-3)

Esse estado de espírito confuso e angustiado do protagonista é

interrompido pela sucessão de acontecimentos sensacionais, como

a leitura da carta que explica a origem de Mignon e suas exéquias.

Volta-se a falar do destino de Wilhelm apenas no capítulo décimodo oitavo livro, de forma breve, sem alusão a seu estado de espírito.

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Ali, Wilhelm está decidido a acompanhar o marquês à Itália. Équando se tem a notícia do suposto envenenamento de Felix, bemcomo da morte do harpista. Assim, no oitavo livro, acontecimentosde caráter extraordinário interrompem o fio que deveria levar àtrajetória final de Wilhelm Meister. Suas decisões são sempre alteradas, seu estado de espírito sempre modificado por um acontecimento exterior de caráter sensacional, de modo que não se deixainstalar uma sucessão contínua de suas reflexões.

Às últimas páginas do livro, Wilhelm Meister encontra-se emmeio a uma grande indecisão quanto ao próprio destino, sem es

paço para colocar em ordem as próprias reflexões. Seus ditosmentores, cuja influência se fez sentir por meio de intervençõesocultas durante a trajetória anterior de Wilhelm, de nada lhe valem agora; ocupados com assuntos mais práticos, inclusive com oalojamento de uma comitiva de hóspedes no castelo do barãoLothario, encontram-se longe de poder efetivamente orientar operplexo Wilhelm Meister. É possível mesmo inferir que um estado de confusão e perplexidade toma todos os integrantes da socie

dade que se reúne ao redor de Natalie e Lothario, após os acontecimentos extraordinários e sucessivos que dizem respeito aMignon, a Felix e ao harpista:

Tantos acontecimentos estranhos e terríveis, sucedendo-se umapós o outro, obrigaram a um modo de vida inabitual, levando atudo desordem e confusão, e a casa a uma espécie de delírio febril.As horas de dormir e acordar, de comer, beber e reunir-se estavamconfusas e invertidas. Exceto Therese, ninguém mais estava em seueixo ... Wilhelm estava abalado, transtornado pelas paixões maisviolentas ... Contrário a seu costume, Jarno andava calado, e poder-se-ia dizer que havia perdido um pouco de sua alegria habitual.(p.582)

Esse é o estado de espírito reinante entre os membros da pequena sociedade. É quando Friedrich, o "travesso e leviano" irmão de Natalie e Lothario, o "brincalhão que costumava beber

mais vinho que o razoável", apodera-se da conversa; Friedrichpassa a fazer alusões ao estado doentio de Wilhelm, declaradooficialmente enfermo pelo médico; Friedrich alude ao quadro de

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filho enfermo do rei, cuja doença nada mais era do que paixãopela esposa de seu pai. Em meio a uma verdadeira intriga amorosa, Wilhelm vê sua posição piorada ao ter revelado seu mais ocul

to desejo por meio das brincadeiras de Friedrich, cujo sentido é ode revelar a inclinação de Wilhelm por Natalie. Meister diz entãoa Lothario:

- Se sou culpado pelo que se passa, pelo que nos acontece,castigue-me então! Prive-me de sua amizade, aumentando ainda maismeus sofrimentos; deixe-me partir por este vasto mundo, no qualdevia ter-me perdido há muito tempo ... Adeus! Não ficarei nemmais um minuto nesta casa, onde, contra meu desejo, violei terri

velmente o direito de hospitalidade. A indiscrição de seu irmão éimperdoável, impele minha infelicidade ao mais alto grau e me levaao desespero.

Ao que Lothario responde:- E se seu casamento com minha irmã - replicou Lothario,

tomando-lhe a mão - fosse a condição secreta que fez Therese decidir-se a me dar a mão? (p.584)

Explique-se: Therese, anteriormente comprometida com

Meister, viu-se repentinamente livre para unir-se a seu verdadeiro amor, Lothario, o qual até então considerava seu irmão. Liberada por Meister de seu compromisso, ainda assim preocupa-secom a felicidade sentimental do ex-noivo, e passa a observar seucomportamento perante Natalie, confirmando assim uma suspeita. A revelação de Lothario vem, assim, trazer a Meister uma solução para a complicada trama amorosa em que se envolvera.Então, os gracejos precipitados de Friedrich anunciam o que efe

tivamente seria decidido pelas "pessoas sérias" da Sociedade. Eassim, mais uma vez, Meister é impelido por mãos estranhas aum destino que, finalmente, parece ser o seu.

A confirmação da disposição de Natalie em unir-se a Wilhelmvem mais uma vez por intermédio do mesmo Friedrich, que ouvira junto à porta uma conversa reservada entre Natalie e o Abade,quando esta revelou sua inclinação por Meister.

Essa revelação ocorre na penúltima página do livro. Friedrich,

que toma a palavra nas cenas finais, alude aos futuros casamentos que deverão realizar-se, não sem uma dose de ironia:

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- Agora, rápido! - replicou Friedrich. - Como serão as cerimônias? Pode-se contá-las nos dedos. Partirão em viagem, o convite do marquês veio mesmo a calhar. Quando estiverem além dos

Alpes, haverão de se sentir em casa; os homens lhes agradecerãopor fazerem algo de extraordinário, e os senhores proporcionarãoa eles um entretenimento pelo qual não precisarão pagar. Assim,como se dessem um baile público,* e as pessoas de todas as classespudessem participar. (p.585)

Friedrich refere-se, de maneira sem dúvida jocosa, aos plane

 jados casamentos interclasses ou mésalliances anunciados entre

Lothario e Therese, Wilhelm e Nathalie, e, de alguma forma, tam

bém a sua união com Philine. É imediatamente censurado peloAbade.

Entretanto, nos três últimos parágrafos do livro, é apenas

Friedrich que tem a palavra. Nem mesmo ao Abade, líder intelec

tual da Sociedade, são reservadas as últimas frases. É Friedrich, o

bufão, que finaliza a cena e atribui a Meister uma sorte inespera

da em relação ao modo como os acontecimentos se desenrola

ram. A um comentário de Friedrich sobre as circunstâncias em

que ambos se encontraram pela primeira vez, por obra de Philine,Meister responde:

- Não me lembres neste instante de felicidade suprema daquele tempo.

- Do qual não há por que te envergonhares, como tampouconinguém tem por que se envergonhar de suas origens. Eram bonsaqueles tempos, e tenho mesmo de rir ao olhar para ti: tu me lembras Saul, o filho de Kis, que foi à procura da jumenta de seu pai e

encontrou um reino.- Não sei o valor de um reino - replicou Wilhelm -, mas sei

que alcancei uma felicidade que não mereço e que não trocaria pornada neste mundo. (p.586)

9 Reproduz-se aqui a nota 24 da edição brasileira: "'baile público' : baile demáscaras, público, em que se permitia dançar juntos nobreza e burguesia, do

qual 'todas as classes sociais podiam participar'. Era uma exceção, numaépoca em que a nobreza e a burguesia habitualmente formavam ... umasociedade fechada".

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O livro termina com o parágrafo acima reproduzido. É bastante significativo o fato de que seja concedido o privilégio dascenas e declarações finais ao "travesso e leviano" Friedrich, ao"pícaro louro", a uma personagem até então considerada comocomediante, e, segundo Natalie, um dos irmãos sobre quem o processo educativo levado a cabo pelo Abade não surtira o menorefeito positivo.

Também a analogia com Saul coaduna-se com uma indicaçãode negação dos princípios rígidos que porventura instituíssem umprocesso tradicional de formação. Os acontecimentos da últimacena levam o leitor a pensar em uma possível atuação do acasona trajetória de Wilhelm Meister, o que decerto contraria o processo de intervenção idealizado e efetivamente realizado, até certo ponto, pela Sociedade da Torre.

OS ANOS DE PEREGRINAÇÃO - DA FORMAÇÃO UNIVERSAL

À INSERÇÃO NA SOCIEDADE

No último romance da trilogia goethiana, Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister, o protagonista irá abraçar uma profissão, uma atividade prática; torna-se médico, especializando então uma formação que desejava, no princípio, universal.

Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister, cuja segunda edefinitiva versão foi publicada em 1829, pode ser entendido, já apartir de seu título, não só como a continuação de Os anos deaprendizado, mas até mesmo como seu segundo volume. Em car

ta a Schiller (12 de julho de 1796), o próprio Goethe reconhecerao final aberto e algo desarticulado do romance de 1796, propondo-se assim a tarefa de encaixar algumas "engrenagens" por meio deuma continuação.

Entretanto, entre a intenção anunciada por Goethe em 1796e sua concretização, cerca de trinta anos depois, estende-se umgrande hiato. O terceiro romance do Meister diferencia-semarcadamente de seu antecessor. Enquanto no romance de 1796

a biografia de Wilhelm Meister é o principal fio condutor da narrativa, interligando os diferentes episódios (a despeito da "falta

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de autonomia" que grande parte dos críticos lhe atribui), em Osanos de peregrinação essa posição encontra-se bastante enfraquecida. Wilhelm se teria tornado "uma herança quase penosa" parao narrador" (Gundolf, 1922, p.730), "menos o protagonista doque o paciente factotum que tudo providencia, lê, relaciona".(Bielchowsky, apud Jacobs, 1972, p.90).

Efetivamente, entre os dois romances há um considerável deslocamento estrutural e temático, em decorrência direta das transformações históricas que se anunciaram entre a publicação de Osanos de aprendizado e Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister.

Grande parte dos comentadores de Os anos de peregrinaçãode Wilhelm Meister vê, no caminho que se estende do segundo aoterceiro "romance do Meister", a ilustração da transição histórica do século XVIII para o século XIX, ou mesmo "o salto para oséculo XX - do pensamento individualista para o pensamento socialista" (Radbruch, apud Gille, 1979, p.244).

Assim, o ideal da formação filosófico-humanística efetivamente ensejado no primeiro romance, Os anos de aprendizado de Wilhelm

 Meister,não se realiza, malogra. Talvez seja mais apropriado afir

mar que ele se transforma. Essa transformação acompanha umatransformação histórica, em que aos ideais da cultura universalhumanística deveriam substituir as necessidades de uma culturaeconômica, voltada à especialização. Quando Jarno diz a Meisterque uma atividade prática deve se estabelecer em lugar dos talentosartísticos que um indivíduo acredite ter, veicula ao mesmo tempoos prenúncios dessa transformação.

Em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, essa reformulação dos ideais da formação encontra-se apenas indicada. EmOs anos de peregrinação de Wilhelm Meister, romance que veio apúblico cerca de 30 anos depois de seu predecessor, ela deixa-seidentificar claramente.

No primeiro livro de Os anos de peregrinação, WilhelmMeister reaparece, surgido da última cena de Os anos de aprendizado. O livro anterior terminava com a promessa de um futuro

ao lado de Natalie e junto aos membros da Sociedade. Entretanto, quando se inicia o terceiro livro, Wilhelm encontra-se, ao ladode seu filho Felix, cumprindo a sentença de constante peregrina-

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ção que lhe foi atribuída pela mesma Sociedade da Torre; Wilhelmnão deveria permanecer mais do que três dias em um mesmo lugar. Tal sentença só poderia ser suspensa a partir do momento em

que Wilhelm se decidisse por uma determinada ocupação, por "umofício proveitoso". Logo nas páginas iniciais, Wilhelm reencontraseu antigo mentor da Sociedade da Torre, Jarno, agora Montan,dedicado às atividade relacionadas à natureza e à ciência, especificamente à extração e classificação mineral. O diálogo entre osdois restabelece-se com naturalidade, voltando aos mesmos temas que preocupavam Meister no livro anterior. Trata-se aindada questão da formação universal, que Meister ainda defende e

considera vantajosa: "Uma formação universal tem sido considerada entretanto vantajosa e necessária".

A resposta de Montan contraria radicalmente esse ponto devista. Quanto à formação universal, afirma que

Ela pode mesmo sê-lo, a seu tempo ... A universalidade, efetivamente, apenas prepara o elemento a partir do qual a especializaçãopode atuar, à qual tem sido dado suficiente espaço, nestes tempos.Sim, esta é a época das especializações. Feliz aquele que compreende

e que atua, para si e para os outros, nesse sentido ... Faz de ti umaparte do todo e espera pelo lugar que os homens, almejando o bemcomum, hão de te atribuir em meio à coletividade ... Limitar-se a umofício, isso é o melhor a fazer. Há sempre um ofício para o espíritomais estreito, para o melhor há sempre uma arte... (Goethe, 1989,v.8, p.37)

É assim que, em Os anos de peregrinação, o projeto de formação universal, de formação humanístico-filosófica, dá lugar a

uma concepção utilitarista, sintonizada com as vivências da técnica e do acúmulo de capital. Se, em Os anos de aprendizado, osideais almejados pelo protagonista no início não são realizados,restando em seu lugar, segundo Schiller, "uma bela indeterminação", em Os anos de peregrinação, esse ideal sofre uma transformação radical. No documento mais significativo da trama deOs anos de aprendizado, a carta de Meister a seu cunhado Werner,o primeiro expõe, como se sabe, seu desejo de abandonar a pro

fissão mercantil à qual o pai o destinara. Meister desdenha claramente nesse texto as propostas de Werner quanto a assumir a

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administração de um sítio, além do que burla a vigilância de seupai quando lhe envia um fictício diário de viagem, dando-lhe contados parceiros comerciais visitados (Cf. p.260 da edição brasileira).A concepção utilitarista e economicista do mundo é, portanto,integralmente negada por Meister como possibilidade de formação. Mesmo ao final, quando Lothario e Werner se associam emempreendimentos comerciais, nos quais o capital da famíliaMeister está envolvido, Wilhelm delega todas as responsabilidades de administração ao cunhado, não participando das negociações e discussões.

Já em Os anos de peregrinação, a prática comercial e suas de

corrências, a técnica e a concepção de um mundo mecanicizado,o conceito de uma profissão especializada em oposição à idéia deformação universal são apresentados como necessidades daintegração social, como esferas pelas quais o indivíduo jovem deveaprender a transitar.

O binômio formação especializada/inserção na sociedade é,portanto, determinante em Os anos de peregrinação. FerdinandGregorius (1849) e Gustav Radbruch (1944) são dois dos comen

taristas do romance de Goethe que, em decorrência dessa associação, viram ali prenúncios de uma concepção socialista. ParaGregorius, essa concepção já se anunciava mesmo no livro anterior, no qual Goethe teria "nivelado as diferenças de classe, namedida em que elas dizem respeito ao nascimento, por meio da

 Bildung" (Gregorius, apud Gille, 1979, p.160). Já em Os anos de peregrinação o autor teria extinguido essa mesma diferença de classes pela atribuição de "inteligência à classe trabalhadora". Gre

gorius vê no elogio do trabalho a grande característica que aproxima o romance de uma concepção socialista e libertadora. Afirmaque "Goethe teve a percepção de que o trabalho torna o pensamento claro e poderoso, o coração aquecido e audaz ... (Ibidem,p.161).

Para Gustav Radbruch, o sentido mais evidente de Os anosde peregrinação de Wilhelm Meister  encontra-se nas seguintes palavras de Jarno: "Grande bobagem é essa vossa formação univer

sal, assim como todas as suas instituições" (Goethe, 1989, v.8,p.282).

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As palavras de Jarno antecedem a decisão de Wilhelm Meisterde se tornar cirurgião, de se dedicar a um ofício determinado eatuar em prol do bem comum. Radbruch esclarece a partir daí osentido do subtítulo do romance: Die Entsagenden, ou seja, "aqueles que renunciam".

Wilhelm Meister renuncia à aspiração de se tornar ele mesmoum todo abrangente e auto-suficiente, almejando então apenas ser ummembro útil no organismo constituído pelo todo social. Em Osanos de aprendizado ele queria formar-se ator, uma profissão que éum símbolo da capacidade universal de transformação e de sensibilidade. Em Os anos de peregrinação ele torna-se "cirurgião", ouseja, literalmente, um artífice, que desempenha uma tarefa a serviço do bem comum. (Radbruch, apud Gille, 1979, p.244)

O deslocamento do eixo em volta do qual gravita o conceitode formação de Os anos de aprendizado para Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister está, portanto, historicamente determinado. Aos ideais humanístico-filosóficos da formação individualsubstitui a necessidade de uma especialização voltada para a vida

prática.Esse deslocamento não ocorre, porém, sem prejuízo da con

cepção estrutural original do romance. Se, em Os anos de aprendi zado, é possível criticar a pouca autonomia do protagonista, corroborada pelo comentário de Schiller de que o romance "nãoprecisa de uma tal personagem principal", em Os anos de peregrinação cabe a Wilhelm uma atuação efetivamente secundária. Oestatuto do herói é dramaticamente diferente nos dois romances.

Enquanto no romance de 1796 a biografia de Wilhelm Meister éo principal fio condutor da narrativa, interligando os diferentesepisódios (mesmo que se possa relativizar o que isso reverte emautonomia para o protagonista), em Os anos de peregrinaçãoWilhelm é apenas o elo entre os diferentes núcleos de ação, paraque se mantenha um mínimo de unidade de ação, espaço e tempo.

Assim, o deslocamento do eixo da formação individual universal em direção a uma especialização prática e integrada às ne

cessidades econômicas e sociais da época em que veio a público osegundo romance reflete-se na composição estrutural da obra. Isso

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contribui para que a tradição literária não considere Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister como um Bildungsroman. Segun

do Jacobs, o último Meister configura-se, ante o panorama constituído por Os anos de aprendizado, como um exemplo de comoas formas literárias podem se transformar, sob a impressão deexperiências históricas, e de como os temas centrais da tradiçãoliterária podem se transformar sob uma nova luz.

O comentário de Jacobs pode ser entendido de outra forma.Considerando-se que, em Os anos de aprendizado de Wilhelm

 Meister, o projeto de formação universal do protagonista não se

concretiza, fica a meio caminho como uma "teleologia inacabada"(Amrine, 1987), considerando-se que o autor tenha efetivamentelevado em conta as alterações históricas ocorridas entre os quasetrinta anos que separam os dois romances, é possível entender Osanos de peregrinação efetivamente como uma continuação do romance anterior. Essa continuação se concretiza não como umdesenvolvimento detalhado dos conflitos temáticos e dos núcleosde personagens introduzidos no romance anterior; ao contrário,a grande maioria dos personagens anteriores é dramaticamenteenfraquecida ou mesmo esquecida, e uma figura central comoNatalie em Os anos de aprendizado praticamente desaparece noromance posterior. Como já foi dito anteriormente, o estatuto dopróprio Wilhelm se altera; a narrativa se interrompe e dá lugar auma série de pequenas novelas, a digressões e a trechos de diáriosparticulares de diversas personagens introduzidas. Os projetos

individuais, como a própria formação de Wilhelm, dão lugar aprojetos coletivos, como a emigração para a América.

Entretanto, reside exatamente nessa dissolução do projetoindividual, nessa coletivização dos destinos, a finalização doprocesso inacabado no livro anterior. Obviamente, não se podefalar aqui do preenchimento das expectativas de formaçãouniversal, ou mesmo de um amadurecimento estético ou intelectual de Meister. Wilhelm forma-se, porém, para o exercício de

uma atividade real, para um ofício útil à sociedade. Passa da Bildung (formação) para a Ausbildung (especialização, aperfeiçoamento), do desejo desmedido de uma formação sem limitespara a especialização de um ofício aprendido e restrito.

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p p ç p 

Quando Meister finalmente se decide por uma profissão, saiem busca de aprendê-la. Dedica-se à anatomia como disciplinabásica. Para surpresa do leitor, Meister declara não lhe ser a matéria totalmente estranha:

De uma forma inesperada, que ninguém adivinharia, eu já meencontrava bastante adiantado no conhecimento da anatomia humana, precisamente durante minha carreira teatral; pensando bem,no teatro o corpo humano é que desempenha o papel principal, umhomem belo, uma mulher bela! (Goethe, 1989, v.8, p.322)

A passagem se liga à afirmação de Jarno, que considera a formação universal o precedente sobre o qual a especialização se constrói: "A universalidade, efetivamente, apenas prepara o elemento apartir do qual a especialização pode atuar". O teatro, consideradopor Wilhelm no livro anterior como a possibilidade de formaçãouniversal, serve de ponte, no segundo livro, para seu aperfeiçoamento como cirurgião.

No mesmo capítulo em que Wilhelm relata seus estudos deanatomia, há o relato de um escultor que pôs seu talento a serviço da ciência, moldando em cera, gesso e madeira, partes do corpo humano, ossos e articulações:

Nem bem eu aprendera alguma coisa, passaram a exigir demim imagens de homens dignos em mantos largos, amplas mangase inúmeras pregas; como me recusasse, e como não pudesse empregar aquilo que sabia em prol da expressão da beleza, decidi-me então a ser útil... (Goethe, p.328)

Assim como Meister restringe suas ambições de pleno desenvolvimento de todas as suas tendências e qualidades em prol deum ofício específico e útil à comunidade, assim como a experiência teatral de Meister serve de base a seu estudo de anatomia,também o escultor põe sua arte a serviço da ciência, do saber organizado e especializado. Arte e técnica atingem assim um desejável equilíbrio:

Arte e técnica mantêm a balança equilibrada e de forma tãopróxima inclinam-se uma para a outra, de modo que a arte não

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possa se rebaixar sem que se transforme em um louvável ofício, eque o ofício não se eleve sem que se torne artístico. (Ibidem, p.329)

Confirma ainda o elogio ao trabalho e à técnica presentes emOs anos de peregrinação o fato de que mesmo personagens comoPhiline, "a mais inútil das criaturas deste mundo", Friedrich, o"pícaro louro", e Lydie, uma mulher de comportamento leviano,reaparecem, durante poucas linhas, apenas para comunicar quetambém adquiriram uma profissão. Philine e Lydie tornaram-secostureiras, enquanto Friedrich se torna uma espécie de secretário e escrevente. Os três estão a serviço da grande comunidadeque deverá emigrar para a América.

O próprio Wilhelm Meister tem a legitimação final de seuofício como médico na última cena do livro, quando, por suahabilidade, salva da morte seu filho Felix (Cf. p.360 da ediçãoutilizada).

O terceiro livro do Meister mostra-se, portanto, como umaefetiva conclusão da questão proposta em Os anos de aprendizadode Wilhelm Meister. A despeito do papel secundário destinado aWilhelm, da multiplicidade de focos de ação e da pouca relaçãocom o livro anterior, Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister traz efetivamente o destino do protagonista e o paradeiro de suatrajetória. Dispensado da sentença que o impedia de permanecerpor mais de três dias em um mesmo lugar, Wilhelm deverá seguir ogrupo que deve emigrar para a América e exercer ali sua profissão.

Paradoxalmente, a questão da Bildung, iniciada no livro anterior, se resolve por sua extinção; é apenas quando se decide peloaprendizado de um ofício, de uma atividade específica em meioà comunidade, que Wilhelm adquire sua autonomia como cidadão e membro da comunidade. A Bildung resolve-se portantona Ausbildung, a formação integral transforma-se em atividadeespecializada.

É preciso porém ressaltar que Os anos de peregrinação deWilhelm Meister é  tradicionalmente excluído da constituição doparadigma do Bildungsroman. Friedrich Gundolf (1922, p.74)considera Os anos de peregrinação mais como um "livro de sabedoria" (Weisheitsbuch) do que uma composição poética. Gregorius

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(apud Gille, 1979, p.l60) considera-o uma "obra poética social"(soziale Dichtung), enquanto Gustav Radbruch afirma que, nessaobra, defrontamo-nos, mais do que em qualquer outra, com oGoethe pensador (Ibidem, p.243). Entretanto, na medida em que sepassa a considerar efetivamente apenas o destino dado à questão daformação do protagonista, pode-se efetivamente compreender Osanos de peregrinação de Wilhelm Meister como complementação dolivro anterior.

Em termos da tradição crítica do Bildungsroman, isso constitui sem dúvida alguma mais um problema, pois, paradoxalmente,o que deveria ser a coroação dos esforços pela Bildung universal

transforma-se no elogio da atividade especializada.A transformação do conceito da formação universal em instru

ção especializada só pode ser compreendida a partir da identificaçãodos a priori históricos que sustentaram a cosmovisão presente noromance de Goethe:

As três décadas que separam os dois romances são marcadaspelos desdobramentos políticos da Revolução Francesa e pela

irrupção da Revolução Industrial. Goethe, antevendo as implicações da divisão capitalista do trabalho, é levado à reformulação deseu conceito de formação. Assim, enquanto os Lehrjahre proclamavam que o homem deve se desenvolver em todas as direções, osWanderjahre fazem outra colocação: a formação deve estar direcionada para uma profissão especializada, a inserção social é necessária desde o início. (Mazzari, 1999, p.85)

Assim, ao passo que Os anos de aprendizado de Wilhelm

 Meister  tem sua gênese em um momento da cultura burguesa noqual foi determinante o desejo e a busca por uma formação universal, Os anos de peregrinação é produto de uma inteligênciapolítica, e acima de tudo, econômica, que contradiz a universalidade e a arte em sua contrapartida técnica. Apenas dessa formaparadoxal é que Os anos de peregrinação pode ser considerado acontinuidade e a resolução do livro anterior.

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5 A MORAL E A FÁBULA

O HERÓI SEM AUTONOMIA

Schiller, ao considerar bela a indeterminabilidade do protagonista do romance de Goethe, porque esta lhe permitiria uma liberdadeestética e moral, inaugurou ao mesmo tempo uma interpretaçãode Os anos de aprendizado que entende essa mesma indeterminabilidade como falta de autonomia e fraqueza de caráter. Thomas

Carlyle (1916, p.276), que traduziu o Meister para o inglês, considerou Wilhelm Meister um "filhinho de papai, o qual, a despeitode todos os seus talentos, é difícil deixar de desprezar". Legitimada pela afirmação de Goethe, citada nas "Conversações comEckermann", que caracteriza Meister como um "pobre-diabo", ocomentário de Carlyle dá origem a um núcleo interpretativo quevê, na falta de autonomia e determinabilidade do protagonista, umadificuldade teórica quanto a se eleger Os anos de aprendizado de

Wilhelm Meister  como paradigma do Bildungsroman.Filiam-se a essa linha as críticas mais evidentes de FriedrichSchlegel, que afirma encontrar no romance as possibilidades de se

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formar qualquer outro, exceto Wilhelm Meister, "em um hábil artista ou cidadão capaz", ou mesmo quando afirma, na mesma resenha de 1798, Über Wilhelm Meisters Lehrjahre [Sobre Os anos deaprendizado de Wilhelm Meister], ser Lothario "a figura mais interessante do livro", o "cume da abóbada", na metáfora arquitetônicautilizada por Schlegel, ao passo que os outros todos seriam apenasas colunas de sustentação.

A pouca experiência de mundo do herói foi também fortemente assinalada por Novalis, que chama o protagonista de"Candide contra a poesia", em alusão ao protagonista do romance de Voltaire e ao prosaísmo que encontra no romance de Goethe.

No século XX, o artigo de Hans Eichner (1966) "Zur Deutungvon 'Wilhelm Meisters Lehrjahren'" [Da interpretação de "Os anosde aprendizado de Wilhelm Meister"] é um marco representativo dadiscussão do estatuto do protagonista do romance de Goethe e assuas conseqüências para o reconhecimento do Bildungsroman comoum gênero de amplo alcance: "Wilhelm não é apenas, e talvez nãoseja definitivamente, o protagonista de um Bildungsroman. Ele étambém o protagonista de um romance picaresco e, se for possível

ousar uma caracterização tão radical, o protagonista de uma fábularealista. Ele é um Hans sortudo"1 (Eichner, 1966, Gille, 1971,p.288).

É importante salientar aqui que, pela comparação extrema comHans sortudo, personagem de um Märchen, de um "conto de fadas"da tradição popular, Eichner atribui a Wilhelm Meister uma característica definidora desse tipo de personagem: o herói do Märchen nãose transforma com o tempo, não aprende pela experiência, e conti

nua cometendo os mesmos erros (Volobuef, 1991, p.75).A afirmação de Eichner contesta, assim, de uma única vez,

tanto a representação da trajetória de Wilhelm Meister como uma

1 "Hans im Glück": protagonista de um conto popular recolhido pelos irmãos Grimm, em que Hans, ajudante de moleiro, ao abandonar seu ofíciorecebe em pagamento um torrão de ouro; ao longo de seu caminho, Hanstroca o ouro sucessivamente por um cavalo, uma vaca, um porco, um ganso,

uma pedra, um poço sem água, ficando assim, finalmente, de mãos vazias,dirigindo-se então feliz e satisfeito para a casa paterna.

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trajetória em direção a uma formação bem definida quanto, conseqüentemente, o próprio estatuto de Os anos de aprendizadocomo Bildungsroman.

Klaus Gille (p.l7-8), em seu livro de 1971, no qual traça uma"história da recepção" de Os anos de aprendizado de Wilhelm

 Meister, ressalta, na mesma linha de Eichner, a restrita possibilidade de influência do protagonista sobre seu próprio destino, focalizando especificamente os dois últimos livros (sétimo e oitavo), momento em que se estabelece a configuração final da trama:

Se considerarmos os dois últimos livros do romance, perceberemos então que Wilhelm ainda está longe daquela "bela liberdademoral" postulada por Schiller em teoria. É certo que Wilhelm adquire, por meio de sua admissão à Sociedade da Torre, a compreensão da insensatez de sua carreira teatral, tem sua absolvição declaradapela Sociedade da Torre e é liberado de seus anos de aprendizado.Entretanto, a obra termina com a total resignação de Wilhelm, junto do reconhecimento do absurdo de qualquer esforço em prol daformação. Dois estímulos para um projeto de vida individual, a uniãocom Therese e o rompimento com o círculo da Torre por meio de

uma fuga, fracassam, e, ao final, Wilhelm adquiriu para sua formação nada mais do que o seguinte reconhecimento: "entrego-me totalmente a meus amigos e à sua orientação ... É inútil empenhar-seneste mundo em agir segundo a própria vontade".

Anterior ainda aos estudos de Gille e Eichner, constituindoassim voz distoante da crítica em sua época, Karl Schlechta (p.242),filósofo e editor, defende, em seu livro de 1953 Goethes Wilhelm

 Meister [O Wilhelm Meister de Goethe], a tese de que a trajetóriade Wilhelm Meister não é uma linha evolutiva em busca de umobjetivo "positivo"; ao contrário, trata-se de uma linha descendente, que vai do momento vivo e apaixonado que inaugura olivro, o encontro com Mariane, em direção ao momento"asséptico" (lebensfeindlich) de "reflexão sábia" da Sociedade daTorre: "E de uma vez por todas cessa a peregrinação de Wilhelm.Ele não chegou a lugar algum. Ao contrário: é sumariamente ar

rancado de nós - emigra".Schlechta (p.203) apresenta ainda um argumento que deses

tabiliza diretamente a tese do desenvolvimento do protagonista:

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Consideremos o andamento do romance em seus traços gerais, detendo-nos especialmente no desenvolvimento de Wilhelm.Dificilmente poderemos então nos furtar à impressão de que no

todo, assim como nas inúmeras singularidades, exerce-se um tipode ironia oculta com nosso herói. Ele desenvolve-se - sem dúvida;mas, de uma forma misteriosa, ele também diminui cada vez mais;perde em cores e contornos, bem como em determinação sob todosos aspectos, perde em calor e em poder de persuasão; sua figura,sua maneira de perceber e de se expressar se perdem - podemosperceber isso especialmente nas ocasiões em que ele aqui e alireassume o antigo tom. De um homem de carne e osso faz-se quaseum conceito, um "ideal".

Ao lado da interpretação "ortodoxa" que entende o Bildungs-roman como um gênero acabado e prolífico, representado exemplarmente pelo paradigma Os anos de aprendizado de Wilhelm

 Meister, coexiste, portanto, uma perspectiva que reconhece no protagonista do romance de Goethe um "herói sem autonomia"; essaperspectiva, que se vem desenvolvendo em forma de uma críticarevisionista, opõe-se à idéia mesma da existência de uma entidadeliterária denominada Bildungsroman, como também à compreen

são do romance de Goethe como paradigma.

A MORAL E A FÁBULA

A origem da vertente que vem desestabilizar a idéia de Os anosde aprendizado como paradigma do Bildungsroman no sentido clássico é o já citado estudo de Hans Eichner de 1966, "Da interpreta

ção de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister", em que o autorrejeita a idéia de que o romance seja um Bildungsroman no sentidoideal. Eichner acredita que a insistência em se interpretar Os anosde aprendizado de Wilhelm Meister como "a representação de umdesenvolvimento linear, bem definido e isento de contradições",levaria necessariamente à conclusão de que esse romance teria sidoo "malogro de Goethe" (apud Gille, 1979, p.277).

Enquanto a literatura romanesca do século XX mantém com

o modelo do Bildungsroman uma relação dialógica e dinâmica,através de um processo de "tradição consciente", a crítica especia-

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lizada dá mostras de desconfiança e suspeita ante um conceitoque, durante quase duzentos anos, foi referência exemplar paraboa parte da produção literária, na Alemanha e fora dela. A investigação da história do Bildungsroman levou-nos a concluir pelacoincidência entre os ideais cultivados pela classe burguesa embusca de aperfeiçoamento intelectual e humanístico e aqueles ideaisprojetados por Wilhelm Meister nos documentos mais eloqüentes que a narrativa nos apresenta, como a carta a Werner. Alémdisso, ao traçar a chamada '"genealogia" do Bildungsroman, sempre entendido como a aproximação ideal entre o termo criado

por Morgenstern e o romance de Goethe, foi possível verificarseus parentescos com formas narrativas inseridas na história cultural da Europa do século XVIII, como os testemunhos de conversão pietistas, as autobiografias e o romance rousseauniano.

A dificuldade teórica emerge, entretanto, na medida em que, já desde seus primeiros críticos como Schiller e Friedrich Schlegel,o romance de Goethe parece afastar-se desse ideal que contribuiupara sua constituição como paradigma do Bildungsroman.

É a partir dessa argumentação que se pode discutir a afirmação de Hans Eichner. O trabalho de Eichner recorre a uma comparação com outro romance de Goethe, anterior a Os anos deaprendizado: para Eichner, Werther, o protagonista de Os sofrimentos do jovem Werther, é "um jovem de caráter delirante e entusiasta" (Schwärmer) que faz exigências desmedidas ao mundo eque por isso mesmo vai a pique. Meister, herói do romance escrito quase 20 anos depois - o ator diletante -, começa como um

entusiasta, tendo depois que, para utilizar a expressão de Hegelque caracteriza o típico herói do romance moderno, "meter o raboentre as pernas" e, "com todas as suas aspirações e opiniões, adequar-se à ordem estabelecida".

A idéia central do trabalho de Eichner é, portanto, a da limitação, a do processo de imposição de limites ao desejo desmedido,às pretensões desmedidas cultivadas pelo protagonista. Eichner

retira do próprio discurso dos enviados da Sociedade da Torre indicações de que o verdadeiro aprendizado é aquele que leva o indivíduo à renúncia de suas ambições pessoais mais altas, como o desejopela "formação universal". Jarno afirma, no quinto capítulo do

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oitavo livro, que "o homem não é feliz antes de seus desejos incondicionais determinarem a si mesmos", que é ilusório querer fruir"tudo ou fruir parte de sua plena humanidade" e que, para se poderfazer algo, é sempre necessário sacrificar uma outra coisa.

Esse reconhecimento foi realizado já pelo autor do primeirolivro sobre o Meister, Daniel Jenisch. Em seu livro de 1797, Jenisch(apud Gille, 1979, p.278) afirma que o significado de Os anos deaprendizado encontra-se literalmente nessa renúncia à paixão, aoentusiasmo desmedido:

Precisamente nessa aspiração contínua pelo aperfeiçoamento

... quero dizer, na sempre audaciosa libertação do espírito em vistado entusiasmo desmedido, do exagero apaixonado e daquele tipode ilusão que expõe o espírito ao equívoco e o coração à sedução;ali, exatamente ali, encontra-se uma das mais singulares virtudesdos anos de aprendizado de Meister."

Em Daniel Jenisch, o reconhecimento dessa renúncia à paixão e ao entusiasmo são efetivamente entendidos como características que asseguram ao romance de Goethe seu papel forma

dor sobre o jovem burguês, uma vez que ali se representa umprocesso harmônico de desenvolvimento. A interpretação deJenisch, já comentada em capítulo anterior deste trabalho, pecapor ingenuidade e falta de percepção para a ironia que pontua oromance. De toda maneira, é importante ressaltar que, para umcrítico contemporâneo do romance, já estava manifesta a indicação da renúncia aos projetos grandiosos de formação.

Eichner resume, em poucas palavras, o que acontece efeti

vamente com as pretensões de Meister quanto à sua formaçãouniversal:

A aspiração de Wilhelm pela formação universal jamais atingiusua meta mais elevada ... entretanto, essa aspiração não foi totalmente em vão. Conduziu-o pelo mundo, ensinou-o a reconhecer omundo em sua realidade. (Ibidem)

Fica então claro que a trajetória de Wilhelm Meister não o

levou à almejada "formação universal" nem a nenhuma outra; oque efetivamente ocorreu ao protagonista do romance de Goethe

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foi, em relação ao jovem entusiasta dos capítulos iniciais, umapermanente decepção com os ideais que cultivava, sejam os que

dizem respeito ao mundo teatral, sejam os que se referem ao "grande mundo", ao mundo da aristocracia. Meister encontra-se assim, ao final do livro, apto a iniciar seu processo de formação,uma vez que os acontecimentos desbastaram sua ingenuidade tantoquanto às desmedidas ambições artísticas como à concepção idealizada do mundo da nobreza.

A dificuldade teórica a que se aludiu acima decorre certamentedas expectativas que o livro inaugura, e que, no transcorrer da

narrativa, são destituídas, desalojadas, transformadas. Essa percepção encontra-se, de maneiras diferentes, em toda a tradiçãocrítica de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. O que maispoderia sustentar críticas como as de Novalis, que compara ascenas finais do romance com as horas que "antecedem a últimasessão em um parque de diversões"? Também Emil Staiger (1958,p.172), em sua interpretação canônica de Os anos de aprendizadode Wilhelm Meister  como obra clássica, tem reservas quanto ao

final do romance:

Quanto mais ele [Wilhelm Meister] se aproxima do ápice, maispálida sua imagem se torna ... Isso decorre do tratamento sumáriodado por Goethe aos últimos livros. Depois do momento de abandono da carreira teatral, o desenvolvimento de Wilhelm ocorre depressa demais. Com os casamentos anunciados ao final, retoma-secompletamente o padrão romanesco de uma literatura pré-clássica.Goethe queria terminar e empregou para isso uma fábula.

Hans Eichner afirma que o comentário de Staiger pode parecer ao leitor um "desmancha-prazeres", pois desestabiliza as expectativas de um "grande final", de um final digno de um

 Bildungsroman:

A luz das afirmações acima [de Staiger], poderia ser ainda maisprovável que Goethe quisesse, por bons motivos, escrever um final

de comédia ou uma cena final de ópera, e que tenha feito exatamente isso ... Talvez não seja o melhor final para um Bildungsromanno sentido das definições ortodoxas; mas é o final correto para oromance que Goethe realmente escreveu. (apud Gille, 1979, p.288)

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Os comentários de Eichner reafirmam uma idéia que os críticos de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister  vêm repetin

do, com maior ou menor intensidade, já desde seu primeiro comentarista, Friedrich Schiller; a existência de um descompassoentre "a moral e a fábula", de um lapso ideológico entre os pressupostos de um "romance de formação" no sentido tradicional ea realidade constituída pelo romance de Goethe de 1796.

É possível detectar então a existência de uma diretriz críticae teórica, originada a partir do artigo de Eichner, que põe emdúvida diretamente a existência do Bildungsroman como um "gê

nero universal" capaz de incluir obras variadas sob a égide decaracterísticas comuns básicas. Ou seja, trata-se de uma críticaque, a partir do final da década de 1970, passou a discutir opróprio estatuto do Bildungsroman e a adequação de seuparadigma, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister.

O artigo de Frederick Amrine, "Rethinking the Bildungsroman"[Repensando o Bildunsgroman], de 1987, é um dos exemplos contemporâneos mais representativos de uma crítica direcionada a apontar efetivas dificuldades em se definir um "gênero", uma forma literária específica sob o termo Bildungsroman por meio do instrumentalpróprio da teoria literária. Amrine (1987, p.l 19) afirma que "poucos conceitos literários são tão largamente empregados e ao mesmotempo tão problemáticos como o termo Bildungsroman".

A principal dificuldade estaria na extrema amplitude das existentes definições do termo, que resulta em imprecisão e generalidade demasiadas. Se pode ser considerado um Bildungsroman"qualquer romance que descreva o desenvolvimento individualde um herói ou heroína ... poucas e raras obras não serão classificadas como Bildungsromane, e, efetivamente, poucas escaparamda classificação, em determinadas épocas".

Abre o artigo de Amrine uma citação de Rolf Selbmann (1984),a qual aponta a direção que a análise deve tomar. Selbmann reconhece no Bildungsroman um termo universalmente aceito, ao mesmotempo em que relativiza sua aplicação: "o que vem a ser um Bildungsroman 'correto'? -a pergunta é respondida para cada Bildungsromane em cada época de forma totalmente diferente" (Selbmann, apudAmrine, 1987, p.123).

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Apontando contradições nas definições de Bildungsroman porMorgenstern e Blanckenburg, Amrine (1987, p.123) consideraconfusa a história crítica do Bildungsroman já em seus princípios.Cita uma passagem de Versuch über den Roman [Ensaio sobre oromance] (1774), na qual Blanckenburg descreve "um tipo deficção que poderia ser entendida como um Bildungsroman". Otrecho de Blanckenburg reza que "o aperfeiçoamento, a formação de um caráter" deveria ser "o objetivo firme" de todo bomromance. Amrime aponta que, poucas linhas depois, Blanckenburgreconhece a pouca ocorrência de obras desse tipo: "Talvez nãotenhamos mais do que dois ou três desses romances; - talvezmesmo apenas um" (Blanckenburg, apud Amrine, 1987, p.l23).

Para Amrine, o paradoxo se constitui tanto na afirmação deque quase não há mais romances do tipo descrito, bem como nofato de que o único que talvez corresponda ao modelo aludidoseja, na opinião de Blanckenburg, o Agathon de Wieland, masapenas na medida em que seja compreendido como uma bem-sucedida imitação de Richardson (Clarissa, Pamela) e Fielding

(provável alusão ao Tom Jones), autores que, segundo aindaAmrine, não escreveram Bildungsromane.

Por um pragmatismo extremo, Amrine prossegue alinhavandoargumentos que corroborem a hipótese apresentada no iníciode seu artigo, de que o Bildungsroman é um conceito poucoapreensível a partir do instrumental tradicional da teoria literária.

Ele adota ainda um corpus sucinto de obra consideradas Bildungsromane, sugerido por Michel Beddow (1982). São elas

Geschichte des Agathons [História de Agathon], de Wieland, Osanos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe, Der 

 Nachsommer [Veranico], de Stifter, Der grüne Heinrich [Henrique,o Verde], de Keller, e A montanha mágica, de Mann. Embora nãose detenha na discussão de cada obra, Amrine (1987, p.123) afirma que "ao revermos as tentativas dos estudiosos para determinar os elementos compartilhados por esses textos, o que descobrimos, mais uma vez, é que o processo simplesmente se

interrompe. Em lugar de um elenco de critérios nítidos, o queveio gradualmente à tona foi um amplo ceticismo quanto à existência mesma do próprio gênero."

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O crítico propõe, ao final de seu artigo, algumas formas de aproximação teórica ao fenômeno Bildungsroman que, em sua opinião,poderiam contornar as maiores dificuldades e paradoxos apontados

e "oferecer a promessa de novas e significativas perspectivas".Entre tais propostas, cabe citar aquela que prevê o Bildungs

roman como um "gênero híbrido": uma vez que considera tarefaimpossível instituir-se um cânone mínimo, capaz de permitir oreconhecimento do Bildungsroman como "gênero puro", Amrinepropõe considerar o Bildungsroman à luz de outras convençõesgenéricas, como o "romance trivial" ou mesmo como paródia deuma obra determinada.

Deve ainda ser destacada a proposta que o crítico denomina"poética revolucionária" (revolutionary poetics), construída a partir da consideração da história da recepção crítica de Os anos deaprendizado de Wilhelm Meister. Ele reconhece uma oposição entrea interpretação de Schiller contra a de Friedrich Schlegel: enquantoSchlegel

entendeu o potencial revolucinário do "novo" romance de forma

mais profunda ... a linha de Schiller-Körner-Dilthey salientou oautodesenvolvimento harmônico e aquilo que se poderia chamarde complacência de um evidente processo bem-sucedido; FriedrichSchlegel e outros românticos [sic] salientaram a fragmentação dosujeito, a ironia, potencialidade e progressividade. A crítica eruditado século XIX deserdou os "goethianos de esquerda", enterrandoo que havia de experimental e mesmo revolucionário em sua poética sob a temática conservadora da Bildung. Além disso, tais Bild-ungsromane não pregam meramente o evangelho do humanismoburguês: a razão pela qual essa suposta "teleologia" permanece

"inacabada" (Jacobs) é porque os críticos projetaram sobre tais romances algo que simplesmente não estava lá. (Ibidem, p.135)

Amrine desloca assim o conceito Bildungsroman de seu estatuto tradicional, privilegiando a perspectiva da história da recepçãodo romance de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister,e do próprio conceito Bildungsroman. O fragmento citado traduzuma opinião, compartilhada com Jeffrey Sammons (1981) e

Hartmut Steinecke, que compreendem a existência do Bildungsroman como uma "ficção crítica". O trecho de Steinecke (1984,

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p. 112) esclarece a tese: "O termo Bildungsroman tem sua legitimaçãohistórica, porém, e não caracteriza o fenômeno, mas antes sua in

terpretação". Entretanto, não é o artigo de Steinecke a instânciaoriginal da opinião crítica que compreende o Bildungsroman comouma formação puramente discursiva, "fabricada" por uma críticaconservadora. O artigo de Jefrrey Sammons, da Yale University, publicado na revista Genre em 1981, é a fonte dessa tese.

A tese central defendida por Sammons (1981, p.230) é a deque não se podem encontrar exemplos de Bildungsromane na literatura alemã do século XIX: "Sou obrigado a relatar que, depois do

que considero uma investigação e uma pesquisa razoavelmenteconscienciosas, fui incapaz de localizar esse celebrado gênero noséculo XIX".

Sammons inicia sua argumentação afirmando que não se podeentender o termo Bildungsroman sem recorrer a Goethe, atreladoao conceito de evolução análogo aos processos biológicos de sístolee diástole, expansão e contração, expressado no poema Urworte:Orphisch, de 1817. No poema goethiano, a trajetória evolutiva está

estruturada em cinco estágios, e a cada um corresponde uma "palavra original" em grego: daimon, tykhe, eros, anangke e elpis, respectivamente a semente individual e primordial, as determinações acidentais, o envolvimento amoroso, a necessidade invencível e aesperança.

Os romances do Wilhelm Meister representariam o casoconcreto desse processo de desenvolvimento morfológico. Ali,

um indivíduo de dimensões bastante comuns, seriamente desprovido de um conhecimento apurado de si próprio, porém pleno depotencialidades latentes, desenvolve a si mesmo, em direção à plenitude de sua própria individualidade e à consciência desse processo de transformação. Concorrem para esse desenvolvimento o processo de tentativa e erro, a atividade e o amor, ao lado da sábiaorientação de terceiros, a qual deve conduzir à aquisição da capacidade de julgamento independente. (Ibidem, p.231)

Sammons retoma portanto uma interpretação canônica nãoapenas de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, referindo-se ao conjunto dos "romances do Wilhelm Meister" como a ilus-

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tração de um processo de desenvolvimento análogo ao desenvolvimento biológico/morfológico. Sob esse aspecto, a leitura deSammons é tradicional, conservadora. A inovação de seus pontosde vista consiste na afirmação de que "tais obras [os 'romancesde Wilhelm Meister'], especialmente o primeiro deles,2 projetamuma sombra bastante longa sobre o posterior desenvolvimentodo gênero romance na Alemanha" (Ibidem).

Ao longo de seu artigo, Sammons argumentará que o conceito Bildungsroman não pode ser tomado sem reservas como um termode significado genérico. Primeiramente, porque o termo Bildung éhistoricamente datado, um "rebento da Aufklärung", atrelado a uma

concepção fundamentalmente otimista das potencialidades do indivíduo. Além disso, o conceito Bildungsroman estaria relatadonecessariamente a um processo teleológico, nos moldes da evolução biológica. Assim, "um indivíduo... que permance inalterado aolongo de sua trajetória de vida pode passar por experiências deaprendizado, mas não por formação (Bildung)".

Sammons recolhe assim argumentos na defesa da hipótese deque o Bildungsroman é  um termo estreitamente ligado a concep

ções vigentes ao final do século XVIII na Alemanha, das quais oprocesso evolutivo sofrido pelo protagonista de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister é uma das mais lapidadas expressões.

Como decorrência, o termo Bildungsroman perderia suacapacidade de designar obras alheias ao núcleo histórico e cultural constituído pelas expectativas "otimistas" da burguesia ilustrada, sendo portanto compreendido como um conceito historicamente restrito.

Para Sammons, o "Bildungsroman ideal" encontra-se efetivamente concretizado nos limites dos romances de Wilhelm

 Meister; entretanto, embora Wilhelm Meister deixe muitos traçosvisíveis em romances alemães posteriores, isso não faz deles

 Bildungsromane.

1 Equivocadamente, Sammons refere-se aqui a Wilhelm Meisters teatralische

Sendung [Missão teatral de Wilhelm Meister], em lugar de Os anos deaprendizado.

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A hipótese central de Sammons é a de que o Bildungsroman éum "gênero fantasma" no século XIX, tanto na Alemanha quanto

em outras literaturas nacionais européias. Retoma o corpus sugerido por Martin Swales (em The gertnan Bildungsroman fromWieland to Hesse, Princeton University, 1978), constituído pelo Nachsommer [Veranico] de Stifter, Der Grüne Heinrich [Henrique,o verde] de Keller e, mencionados "de maneira bastante fugaz", Heinrich von Ofterdingen de Novalis, Ahnung und Gegenwart [Pressentimento e presença] de Eichendorf, Maler Nolten [O pintor Nolten] de Mörike, Die Epigonen [Os epígonos] de Im-

mermann, Soll und Haben [Débito e crédito] de Freytag e Der  Hungerpastor [O pastor da fome] de Raabe, para argumentar, antecada um desses romances do século XIX, sua inadequação perante o modelo canônico do Bildungsroman.

A hipótese de Sammons é construída a partir da idéia centralde que o Bildungsroman é, na literatura do século XIX na Alemanha, uma ficção crítica. Sammons difere aqui de Amrine ao admitira existência do paradigma constituído pelo romance goethiano;

entretanto, também reconhece a precariedade de constituição deum "gênero ... de uma categoria à qual se possa admitir apenasWilhelm Meister e talvez mais dois exemplos e meio".

Argumenta, com base em dados da história literária, que o papelpredominante do modelo goethiano na tradição literária alemã podeter impedido a repercussão dos romances que "as pessoas efetivamente escreveram e leram". Isso significa que uma produção variada de romances históricos, sociais e políticos, de romances realistas

com acento regional, teve sua autonomia eclipsada pela longa epoderosa sombra do modelo goethiano do Bildungsroman, considerado como predominante e característico.

A hipótese de Sammons compartilha da perspectiva denominada por Amrine de "poética revolucionária", que pressupõe oestabelecimento de um cânone conservador e pleiteia a revisãode preceitos estabelecidos pela história da literatura; neste caso,Sammons contraria a acepção de que o romance realista, social e

político tenha sido praticado na Alemanha com menor ênfase doque em outras literaturas nacionais européias, como afirma, porexemplo, Hans Meyer em Von Lessing bis Thomas Mann [De

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 Lessing a Thomas Marin ], ou mesmo Lukács, em sua Teoria doromance. Em defesa da hipótese de Sammons, podem ser consi

deradas três premissas de caráter histórico-literário.A primeira delas reconhece a existência de um grande hiato,no sistema público-obra do século XIX, entre os romances de "qualidade artística" e as obras que efetivamente chegavam à visibilidade do público: "Os romances mais populares são de mais baixaqualidade, enquanto aqueles livros que hoje possuem estatutocanônico eram obscuros e foram lidos, se tanto, por uma eliteintelectual constituída por uma estreita faixa da população"(Ibidem, p.239).

Com isso, Sammons pretende afirmar que, na Alemanha, aleitura de romances era uma espécie de tarefa intelectual,³ ao passoque na literatura de língua inglesa, por exemplo, essa prática deu-se de forma mais próxima ao público. A hipótese de Sammons

A hipótese de Sammons, de que Goethe não foi, à sua época, um autor popular,pode ser corroborada pelo Walter Benjamin de O que os alemães liam enquanto

seus clássicos escreviam, peça de 1932 em que, através de alegorias como a "Vozda Ilustração", "Voz do Romantismo", "Primeiro Literato" e "Segundo Literato",bem como da caracterização das figuras históricas do editor alemão JohannFriedrich Unger (editor de Goethe) e do escritor Karl Philipp Moritz, delineia-seo panorama do público leitor da Alemanha entre 1790-1800. Reproduz-se aquium pequeno trecho do diálogo entre o Locutor e a Voz da Ilustração:

"Locutor: E o que você trouxe para as pessoas?Voz da Ilustração: Justiça e Cultura ao alcance de todos. Locutor: De todos? Você fala evidentemente em sentido figurado.Voz da Ilustração: Como assim?

 Locutor: Os livros de seus amigos custam caro. A História da Guerrados Trinta Anos, de Schiller, está por 18 marcos, de acordo com o catálogo da Editora Göschen. Para o Benvenutto Celinni estão pedindo 24marcos. E a edição das obras de Goethe, publicada em 1790, consta docatálogo com o preço de 57 marcos.Voz da Ilustração: Sinto muito. Mas isso não prova apenas que a leiturados clássicos era de difícil acesso, mas também, que havia pessoasdispostas a fazer sacrifícios. A edição de um clássico era uma aquisiçãopara a vida inteira. Digo mais: um dote para filhos e netos.

 Locutor: Ficava na prateleira, mas será que era lida? Ao fim de sua vida,Goethe disse, ele que devia conhecer o assunto: O grande público tem

tão pouco juízo quanto pouco gosto; mostra o mesmo interesse pelovulgar e pelo sublime."

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explica, portanto, a vasta projeção teórica do modelo do Bild-ungsroman sobre a produção romanesca do século XIX na Ale

manha como resultante desse modo de leitura, que teria aproximado o romance como categoria genérica do conteúdoprogramático da Bildung (formação) burguesa.

O segundo argumento de Sammons, relacionado ao primeiro,leva em conta a constituição do próprio cânone da tradição literária alemã. Segundo ele, o cânone qualitativo que nós hoje reconhecemos formou-se na era guilhermina, uma canonização relativamente moderna. Desde então, Goethe e o romantismo encontram-se

no centro dessa configuração, o que por si asseguraria um caráterespecificamente alemão em contraste com a cultura de outras nações. O próprio termo Bildungsroman em sua significação moderna foi posto em circulação por um dos expoentes críticos da épocaguilhermina, Wilhelm Dilthey. Essa configuração histórico-literá-ria teria então assegurado ao Bildungsroman a predominância anteo romance social, ao romance histórico ou político; ou seja, o

 Bildungsroman teria sido então compreendido como uma catego

ria genérica capaz de abranger grande parte da produção romanesca do século XIX, impondo-se a ela como modelo interpretativo.

O terceiro argumento decorre do anterior e tem na figura doautor Goethe o ponto central de sua sustentação: "a avassaladora

Ou ainda, o trecho que trata das vendas de exemplares de obras de

Goethe:

"Heinzmann: ... O senhor sabe quantos assinantes Göschen conseguiupara a edição de Goethe, que ele publicou entre 87 e 90? Peguei osnúmeros com o próprio. Seiscentos! Quanto às edições de obras isoladas, parece que a vendagem era pior ainda. Da Ifigênia e do Egmont,trezentos exemplares. Sem falar do Clavigo ou do Götz." (Benjamin,1986, trad. de Willi Bolle, p.64-81)

O texto da peça de Benjamin reforça a hipótese da grande distânciacultural entre as obras clássicas e o público leitor na Alemanha do final do

século XVIII, ávido por almanaques, historietas, por "literatura trivial", enfim. Indiretamente, o texto de Benjamin legitima a proposta de Sammons,que vê no Bildungsroman uma projeção intelectual e elitista da estreita faixados leitores de Goethe seus contemporâneos.

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magnitude de Goethe e o enorme investimento sobre sua imagemautoral no início da era da formação do cânone obscureceu totalmente o fato de que ele era uma figura aberrante na tradição alemã.Ele não foi representativamente alemão, e nem as pessoas em suaprópria época pensaram que ele fosse". (Ibidem, p.241)

O último parágrafo do artigo de Sammons reitera sua hipótese do Bildungsroman como "ficção crítica" na produção romanesca do século XIX, ao mesmo tempo em que reafirma a amplitude de seu alcance no conjunto da história da literatura:

Há, sem dúvida, muitas lendas na história literária. Eu me pergunto, porém, se há alguma tão desprovida de fundamento e tãocapaz de produzir equívocos como o gênero fantasma do Bildungsroman do século XIX ... Entretanto, quando se encontra a afirmação de que o Bildungsroman é o gênero característico e singularmente nacional da narrativa alemã do século XIX - e ela seráencontrada, cedo ou tarde -, deve-se reconhecer a presença de ummito e assumir a postura apropriada de reverência e ceticismo.(Ibidem, p.243)

A despeito de seu caráter radical, a interpretação de JeffreySammons para o fenômeno do Bildungsroman na tradição literária pode contribuir para que se compreenda o caráter ideológicoque permeia todo o processo. Vinculado, por um lado, aosurgimento da idéia conservadora da Bildung burguesa, e, poroutro, à tradição olímpica da figura de Goethe na tradição literária européia, o Bildungsroman carrega consigo o peso dos discursos peculiares a essas configurações estéticas e históricas.

Durante os quase duzentos anos passados desde a criação dotermo, bem como da publicação de Os anos de aprendizado deWilhelm Meister, instituiu-se uma grande diversidade discursiva,capaz tanto de estabelecer um gênero, atrelando-o a seu paradigma, como de desestabilizá-lo.

A problematização, vista de um ângulo mais abrangente, estáafeita portanto à própria natureza do conceito, pouco apreensívelpor meio de categorias literárias tradicionais em razão de seuatrelamento circunstancial aos diversos núcleos discursivos dos

quais tem sido objeto. Em conformidade com esse processo, é

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bastante coerente uma compreensão do Bildungsroman como umproduto de configurações históricas e literárias determinadas, quese transformam ao longo da existência do próprio conceito. Alongevidade do Bildungsroman no contexto das literaturas européias, e, mais recentemente, das literaturas americanas, só podeser explicada por essa capacidade do conceito de se deixar apropriar pelas diferentes épocas histórico-literárias. Tal compreensão opõe-se a uma leitura do Bildungsroman como manifestaçãocristalizada e imutável no curso da história literária.

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6 A TRADIÇÃO CONSCIENTE

No século XX, o conceito teleológico do desenvolvimentoindividual sofre uma ruptura. No século da psicanálise e das duasguerras mundiais, a representação do indivíduo como um todoharmônico, desenvolvido segundo suas tendências naturais, nãocorresponde nem ao cidadão nem ao indivíduo. As condiçõeshistóricas que sustentavam o grande projeto burguês esfacelam-se, ao mesmo tempo que a personalidade individual se descobrefragmentária.

As conseqüências desse quadro para a história do espírito podem ser reconhecidas na própria história do romance como gênero literário. Assim como, em sua origem, o Bildungsroman estáassociado às condições de instalação e ao reconhecimento do romance no panorama dos gêneros "dignos", também sua continuidade para além das circunstâncias de origem entrelaçam-se à his

tória do romance no século XX.Sob a égide da "crise do romance" configurou-se, nas pri

meiras décadas do século XX, uma concepção que reconhece adissolução dos pressupostos que sustentaram o romance burguês

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realista, e, por conseguinte, do modelo teleológico de desenvolvimento e formação.

O pressuposto fundamental para a idéia da existência de umprocesso evolutivo, de um processo de formação e desenvolvimentodo indivíduo, herança do racionalismo do século XVIII e docientificismo do século XIX, é interrompido no momento em quese abandona a idéia de uma consciência una, passível de se amoldar e se formar por meio de um processo linear da experiência; oindivíduo é fragmentário, assim como sua "formação" tambémdeverá sê-lo.

É Nietzsche quem afirma que o Eu se transformara "em fá

bula ... em ficção, em jogo de palavras" (Werke, ed. por KarlSchlechta, II, p.973).

A experiência literária realista refletiria esse estado de coisaspor meio de uma transformação no próprio caráter da representação romanesca:

Para a literatura do fin de siècle a dissolução do eu foi uma dasexperiências centrais ... As suspeitas sobre a constituição una doindivíduo e a desintegração da experiência tornaram questionável

uma categoria até então válida para a representação do mundo noromance. Estavam ameaçadas a consistência das personagens, a visibilidade da realidade representada, a coerência da experiência temporal. (Jacobs, 1989, p.199)

A idéia de uma "crise do romance" como constituída já no início do século XX aponta nos depoimentos dos próprios romancistas, que, confrontados com uma ordem social que já não correspondeao modelo positivista e progressista do século XIX, saem em busca

de uma nova forma de representação da realidade:

Certo dia ocorreu-me o pensamento de que o mundo não maispoderia ser representado como nos romances antigos, isto é, a partir do ponto de vista de um escritor. O mundo se desintegrara, e sóaquele que tivesse a coragem de representá-lo em sua desintegraçãoseria capaz de produzir uma representação verossímil da realidade.(Elias Canetti, apud Durzak, 1976, p.92)

Para a crítica, bem como para os próprios romancistas desteséculo, a experiência do romance burguês realista estava destina-

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da à extinção. Uma das maiores conseqüências literárias desse reconhecimento conflui no romance experimental, na narrativa dofluxo de consciência, nos modelos não-lineares de narrar; em conseqüência disso, o Bildungsroman do modelo goethiano, que impregnara a literatura romanesca desde o século XVIII, deveria forçosamente conhecer o seu ocaso.

Georg Lukács, na Teoria do Romance de 1916, desenvolveum raciocínio paralelo, que, embora sustentado por uma argumentação oposta àquela que anuncia a dissolução da narrativaindividual e subjetiva no século XX, leva à mesma conclusão de

que o modelo tradicional do romance de formação e/ou desenvolvimento não teria mais lugar naquilo em que Lukács chama de"momento pós-goethiano".

Para o Lukács de 1916, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister  de Goethe representa o momento de resolução da criseinstalada entre o indivíduo solitário e exclusivamente pessoal (protagonista do romance burguês) e o todo representado pelo mundo social, pela coletividade épica. Lukács (s. d., p.13) afirma que

sua teoria do romance foi escrita sob influência do pensamentohegeliano e diltheyano; ali, o autor "procura estabelecer umadialética dos gêneros assentada historicamente na essência dascategorias estéticas". Isso significa que o teórico de 1916 via aquestão do romance burguês sempre em contraponto ante o universo coletivo da epopéia antiga: ou seja, à maneira de Hegel,Lukács via no romance burguês individualista e interiorizante um"romantismo da desilusão", o momento histórico em que o indiví

duo solitário problemático fracassaria em seus empreendimentos,o momento em que a narrativa desse percurso solitário reflete ofracasso dos projetos exclusivamente individuais.

No estudo de 1916, o romance de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister  é, portanto, considerado sob a perspectiva da "tentativa de síntese", de "reconciliação entre o indivíduo problemático com a realidade social concreta". Lukács (p.14)reconhece na obra de Goethe "um equilíbrio entre a ação e a con

templação, entre a vontade de intervir eficazmente no mundo e aaptidão receptora em relação a este. É aquilo a que se chama oromance de educação".

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Lukács reconhece Os anos de aprendizado como a possívelsíntese entre os desejos subjetivos do indivíduo e a realidadesocial, repetindo assim uma concepção presente já em Diltheyque reconhecia no modelo goethiano a tendência a um "finalharmônico", um equilíbrio entre a subjetividade (vita contemplativa) e a atividade voltada para o mundo exterior (vitaactiva). Afirma, entretanto, que tal fórmula se tornaria cada vezmais difícil de ser repetida nos modelos pós-goethianos. Nesses,os caracteres individuais perdem sua capacidade de serem "exemplares", "protagonista e destino são algo exclusivamente pessoal". Essa subjetividade excessiva empresta ao todo representado

"o caráter fatalmente insignificante e sem alcance de uma história puramente privada ... Trata-se do perigo a que sucumbiu nosnossos dias o romance de educação na maioria dos casos".(Ibidem, p.147).

Lukács acredita, portanto, em uma intensificação histórica daexperiência subjetiva, no sentido da narrativa das experiênciaspessoais, do cotidiano privado. Os anos de aprendizado de Wilhelm

 Meister  representaria então o momento ideal, a última possibili

dade literária de representação da reconciliação entre indivíduo erealidade social, a síntese entre a subjetividade da história individual e o sentido épico da história coletiva.

Lukács compreendeu assim o Bildungsroman, por meio de seuparadigma Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, não comouma narrativa predominantemente individual, na qual as questõesparticulares são o centro das problematizações, mas como umromance que se aproximaria da narrativa épica, na medida em que

contempla também as aspirações e os questionamentos de uma coletividade. Entretanto, esse momento ideal da história do romancemoderno seria historicamente datado; Lukács considera Os anosde aprendizado de Wilhelm Meister como o ápice de uma forma destinada ao desaparecimento, uma vez que se alteraram os pressupostos históricos que lhe deram origem.

Assim, também Georg Lukács, um dos teóricos de maior influência para a história do romance no século XX, reconhece acontinuidade do modelo tradicional do Bildungsroman como umaimpossibilidade histórica; o Meister  de Goethe teria sido assim o

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momento máximo da concretização dos ideais de conciliação entre indivíduo e sociedade.

É possível detectar uma linha de raciocínio semelhante nosdois ensaios de Walter Benjamin, O narrador e A crise do romance(1930). Ambos os textos levam adiante a oposição entre o romance burguês e a narrativa épica. Benjamin atribui ao primeiroum caráter predominantemente escriturai e subjetivo; a ele seinterpõe a narrativa de origem oral e anônima, integrante e decorrente da experiência coletiva. Para Benjamin (1987b, p.201),

O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa- contos de fadas, novelas - é que ele nem procede da tradição oralnem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da narrativa. Onarrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada por seus ouvintes. O romancista segrega-se. Aorigem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falarexemplarmente sobre suas preocupações...

Benjamin (p.211) atribui ao romancista uma "memória

perpetuadora", que, "em contraste com a breve memória donarrador, é consagrada a um herói, uma peregrinação, um combate". A memória do narrador, ao contrário, dedica-se a "muitosfatos difusos".

Em O narrador, de 1936, encontram-se, portanto, desenvolvidos os pressupostos de A crise do romance, de 1930, em queBenjamin efetivamente se refere ao "velho romance de formaçãodo período burguês".

Ali, Benjamin comenta o então recém-publicado romance deAlfred Döblin Berlin Alexanderplatz, à luz do "fortalecimento daradicalidade épica", afirmando que o romance de Döblin, pormeio do princípio estilístico da montagem, "faz explodir o 'romance', estrutural e estilisticamente, e abre novas possibilidades,de caráter épico" (Ibidem, p.56). O protagonista de Alexanderplatz, Franz Biberkopf, percorre efetivamente um itinerário, àmaneira dos protagonistas do romance de formação: "Como essa

fome de destino é saciada, saciada por toda a vida ... e como omarginal se transforma num sábio - esse é o itinerário de suavida" (p.59).

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Benjamin emprega mesmo a palavra "amadurecimento", entre aspas, para designar o processo sofrido por Biberkopf. Reco

nhece, porém, na trajetória do herói de Döblin, o momento emque "Franz Biberkopf deixa de ser exemplar e ascende, em vida,ao céu dos personagens romanescos". Esse é o momento em queBiberkopf, protagonista de um romance que resgata os valores erecursos épicos, encontra um paradeiro, um destino individual,aproximando-se assim do herói do romance burguês:

Pois essa é a lei da forma romanesca: no momento em que oherói consegue ajudar-se, sua existência não pode mais ajudar-nos.

E se é certo que essa verdade vem à luz, em sua forma mais implacável, na Education sentimentale, então a história de Franz Biberkopf é a Education sentimentale dos marginais. O estágio mais extremo,mais vertiginoso, mais definitivo, mais avançado, do velho "romancede formação" do período burguês. (Ibidem, p.60)

O comentário citado é extremamente significativo para a história do conceito Bildunsgsroman no século XX. Seguindo em princípio uma linha de raciocínio semelhante à de Lukács, que vê na

recuperação da narrativa de caráter épico a contrapartida para oexcesso de individualismo burguês peculiar ao romance, Benjamin reconhece a possibilidade de subsistência do "velho romancede formação do período burguês" em uma forma mais "extrema,mais vertiginosa, mais definitiva, mais avançada", configurada noromance de Döblin, Berlin Alexanderplatz.

Entretanto, ao passo que para Lukács o modelo de síntese entre o romance burguês e uma narrativa de caráter épico e aberto

tem em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister a sua melhorexpressão e, ao mesmo tempo, seu último exemplo, em Benjaminesse modelo parece ser uma forma de sobrevivência do romanceburguês.

Este só poderia então manifestar-se por meio de uma forma"vertiginosa e extrema", "épica", forma essa que, no caso do romancede Döblin, se concretizou pela representação da trajetória de um marginal, Franz Biberkopf, em lugar dos anos de formação de um herói

burguês, como Fréderique Moureau de A educação sentimental deFlaubert ou o Wilhelm Meister de Os anos de aprendizado.

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É, portanto, Walter Benjamin, e não Lukács, que indica aspossibilidades de continuidade do romance burguês e do modelo

identificado no Bildungsroman, na realidade histórica e social doséculo XX.Estabelece-se assim uma nova galeria de protagonistas de ro

mances em que a questão da formação está presente, de uma forma, porém, que ultrapassa os pressupostos do romance realistaburguês, reconfigurando-os conforme a realidade histórica.

DOIS CASOS EXEMPLARES: O FELIX KRULLDE THOMAS MANN E O TAMBOR DE GÜNTER GRASS

Confissões do impostor Felix Krull (Bekentnisse des Hoch-staplers Felix Krull), romance de Thomas Mann iniciado em 1911e publicado em 1954, e O tambor (Die Blechtrommel), de 1959,serão analisados aqui sob a perspectiva da continuidade da tradição do Bildungsroman.

O Felix Krull de Thomas Mann e O tambor de Günter Grasssão obras em que se reflete a contradição entre o individualismonecessariamente constitutivo do gênero "romance" e uma fragmentação ou ampliação dos limites do universo individual, namedida em que este se transforma em relação ao romance burguês de modelo goethiano.

Em seu caráter crítico-parodístico, como se verá a seguir, oFelix Krull, rebento confesso do conceito de formação da época

de Goethe, o atualiza por meio da paródia e do recurso à picaresca. O Felix Krull consiste em resposta ao modelo do romanceburguês tradicional, e, mais precisamente, ao modelo do romance de formação como entendido pela tradição, na medidaem que o protagonista, ao relatar sua trajetória, não tem comoperspectiva a integração, a constituição de uma personalidadeindividual, mas sim a abolição de quaisquer marcas distintivas decaráter.

Também em O tambor está presente o conceito goethiano deformação, por meio de alusões diretas a passagens significativastanto do romance Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister 

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quanto da autobiografia de Goethe Dichtung und Wahrheit [Poesia e verdade]. Aqui, o conceito de formação no sentido clássico éatualizado sobretudo pela figura do protagonista, um "aborto doséculo vinte", em oposição aos "jovens de caráter nobre WilhelmMeister e Henrique, o verde" (referência ao romance de Keller,

 Heinrich der Grüne). Além disso, em O tambor está presente também, ao lado da narrativa da história de seu protagonista OskarMatzerath, a perspectiva épica da história de um povo, na medida em que a narrativa da biografia de Oskar imbrica na narrativa de episódios coletivos da história européia entre os anos de1928 a 1958 (o período que cobre o nascimento do protagonista

até o momento em que ele passa a escrever sua biografia).A referência manifesta, nos dois romances, ao modelo cons

tituído pelo romance de Goethe Os anos de aprendizado deWilhelm Meister e à autobiografia Poesia e verdade não significa,absolutamente, que Felix Krull e O tambor possam ser simples ediretamente classificados como Bildungsromane. Mais correto seria dizer que, tanto em Felix Krull como em O tambor, o conceitode formação que se conjugou à obra de Goethe Os anos de apren

dizado de Wilhelm Meister está presente de maneira diluída, transformado, em sintonia com as cristalizações da história recente daEuropa.

O discurso da paródia

O Felix Krull

Em sintonia com suas Confissões de um apolítico (Betrachtungeneines Unpolitischen), obra em que Thomas Mann trouxe a públicosua própria crise de desenvolvimento ante a nova configuraçãoeuropéia e também especificamente alemã provocada pelas alterações políticas e sociais do pós-Primeira Guerra, o Felix Krull surgecomo resposta a uma questão ao mesmo tempo política e estética.

Nas Confissões de um apolítico, Mann mostra-se consciente

de um avanço da democracia e da crescente politização que se instalara na Europa após o término da Primeira Guerra Mundial. Li-

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terariamente, esse avanço representava, em sua opinião, o desaparecimento de uma tradição intelectual e espiritual típica do espíritoalemão: o romance individual, burguês, apolítico e interiorizante.Assim, em defesa de uma forma de romance que preservasse a individualidade interiorizante e a especificidade do "espírito nacionalalemão", Mann (1960, v.XI, p.702) escreve em 1916:

Existe, no entanto, uma variedade do romance que é acima detudo alemã, tipicamente alemã, legitimamente nacional; trata-seprecisamente do romance de formação (Bildungs-) e do romance dedesenvolvimento (Entwicklungsroman), de caráter autobiográfico.O predomínio dessa forma de romance na Alemanha, a evidênciade sua singular legitimidade nacional, está estreitamente associadoao conceito alemão de humanidade, o qual, por ser o produto deuma época em que a sociedade se atomizou, fazendo de cada cidadão um indivíduo, carece desde sempre do elemento político.

Para Mann, o romance burguês de cunho individualizante,que tem no Bildungsroman seu paradigma mais eloqüente, é a forma narrativa de maior afinidade com o "conceito alemão de humanidade", com as características interiorizantes e apolíticas deum provável "espírito alemão", como Mann então o entendia.A experiência coletiva atribuída por Mann ao romance social(Gesellschaftsroman) opunha-se um conceito herdado da tradição: o romance de formação (Bildungsroman) de caráterautobiográfico: "formação (Bildung) é um conceito especificamentealemão; provém de Goethe, e dele herdou seu caráter plástico-artístico, o sentido da liberdade, cultura e crença na vida ... porintermédio dele esse conceito foi elevado a princípio educativona Alemanha como em nenhuma outra nação" (Ibidem, p.505,v.XII). E acentuando o caráter apolítico desse ideal: "Pois o caráter alemão é radicalmente oposto à politização, o elemento político falta efetivamente ao conceito alemão de formação" (Ibidem,p.l11, v.XII).

Assim, para o Mann de 1916, o romance burguês individualizante de caráter autobiográfico mostrava-se como a alternativacontra a coletivização própria de uma civilização de massa, con

tra o desaparecimento de uma tendência à auto-reflexão e àestetização da própria existência peculiar ao espírito alemão.

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Ao mesmo tempo, porém, em que reconhecia a afinidade do"espírito alemão" com uma forma narrativa interiorizante, subjetiva e apolítica, Mann dava-se conta de que a crescente "democratização" não mais permitia a possibilidade histórica de um "romance de formação individualista alemão".

É possível acompanhar, no romance Confissões do impostor Felix Krull, as decorrências estéticas do reconhecimento da impossibilidade histórica da continuidade de um romance tributáriodo individualismo burguês romântico ante a compreensão de queo aspecto político e social são "parte integrante da condiçãohumana".

Tributário de duas grandes tradições da narrativa européiaaparentemente irreconciliáveis, o modelo goethiano biográfico/ autobiográfico e o romance picaresco, As confissões do impostor Felix Krull situam-se assim na discussão estética e teórica sobre aspossibilidades do romance no século XX.

O Felix Krull e o modelo goethiano

O romance de Mann representa a trajetória do jovem FelixKrull desde a província, passando por Frankfurt, Paris e finalmenteo mundo, ou o "grande mundo". Filho de um fabricante de falsochampanhe, Krull e sua família, composta então pela mãe e pelairmã, são obrigados a abandonar suas propriedades após a bancarrota e o suicídio do pai, Engelbert Krull.

Já no primeiro parágrafo, fica evidente a filiação que onarrador pleiteia para a obra:

Pegando da pena para, em completo ócio e isolamento - comboa saúde, aliás, embora cansado, muito cansado ... - para começar, pois, a confiar a este paciente papel as minhas confissões, nacaligrafia limpa e agradável que me é peculiar, assalta-me o receiode talvez não estar à altura deste empreendimento intelectual, porcausa de minha formação e instrução. Mas, como tudo que tenho arelatar provém de minhas experiências, enganos e paixões mais diretos e pessoais - e é assim que domino perfeitamente o meu tema

-, tal dúvida pode, quando muito, relacionar-se ao ritmo e à qualidade do meio de expressão de que disponho; além disso, acho que,

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nessas coisas, os estudos regulares são bem menos importantes doque talento natural e boa formação na infância. (Mann, 1991, p.9)

O narrador Felix Krull narra a trajetória de sua vida, a partirde um ponto no espaço e no tempo no qual já se encontra distanciado do material narrado e capaz de refletir sobre os acontecimentos passados. Chama ao próprio projeto de "empreendimentointelectual", aproximando-se então de um tipo de escritura quetem seu modelo nas autobiografias intelectuais como As confissões de Rousseau e Poesia e verdade de Goethe, obra com a qual o

romance de Mann evidentemente dialoga.Krull não hesitará mesmo em relatar ao leitor seu período deaprendizado, numa clara alusão tanto ao conteúdo da autobiografia Poesia e verdade quanto ao romance de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister.

Esse período de aprendizado é narrado como a estada de Krullem Frankfurt (não por acaso a cidade natal de Johann WolfgangGoethe), no período que antecederá ou sua partida para Paris ou

o serviço militar. Lá, Krull dedica-se ao aperfeiçoamento de suasqualidades. E este se dá pelo ócio, "sempre tão necessário e bem-vindo ao adolescente". Consciente de seus talentos inatos, Krulldedica-se a aperfeiçoá-los, pois "ninguém pode adquirir o que nãotraz em si desde o nascimento, e não devemos querer possuir oque nos for estranho. Quem é de constituição inferior não obteráelevação de espírito; quem a conquista jamais foi grosseiro"(Ibidem, p.75).

Fiel, portanto, a essa máxima pedagógica que acredita poderaperfeiçoar apenas os talentos inatos, Krull passa a dedicar-se a seus"estudos urbanos", aos quais chama de sua "formação cultural".

Esta se realiza prioritariamente por meio das andanças pelasruas dos bairros luxuosos da cidade, onde Krull, observando asvitrines, aprenderá a avaliar corretamente o valor e a necessidadedos objetos que servem ao luxo da aristocracia e alta burguesia.Krull aprende a conhecer "as necessidades de uma vida nobre e

diferente, os frasquinhos de perfume, as escovas, os nécessaires ...o adolescente podia impregnar sua memória de tudo o que faziaparte de um elegante enxoval masculino" (Ibidem, p.76).

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Krull familiariza-se assim com os objetos necessários ao cotidiano dos ricos, dos atores do "grande mundo"; aprende a avaliar o valor de cada jóia, de cada obra de arte exposta nas vitrines, bem como se familiariza com os hábitos da camada social àqual virá a pertencer, na pele do Marquês de Venosta:

E as papelarias, cujas estantes me ensinavam que papéis umcavalheiro emprega em sua correspondência, e como se manda imprimir neles as iniciais do próprio nome, com coroa e brasão? ...

O dom de olhar, este me fora concedido, e era naquela épocatudo o que me importava - certamente um dom educativo diantedas coisas concretas, das exposições atraentes e instrutivas do mundo.

(Ibidem, p.78-9, grifo da autora)

Em seus "anos de aprendizado" Felix Krull projeta seu idealde formação sobre a aristocracia, Krull considera parte de seuprograma de aprendizado a familiarização com os objetos queservem à nobreza, iniciando-se na arte da aparência. O conhecimento assim adquirido será fundamental para que Krull assuma,no terço final do livro, a identidade do Marquês, ponto alto de

sua trajetória.Assim como Wilhelm Meister acredita que apenas o nobre

pode adquirir uma formação universal, projetando assim seusideais em uma classe social superior à sua, também Krull acreditapoder desenvolver todas as suas potencialidades em um círculosocial e econômico elevado.

Também como Wilhelm Meister, Krull é originário da pequena burguesia. Enquanto Meister está consciente de suas origens

burguesas e das impossibilidades que elas lhe atribuem, Felix Krullcorteja a idéia de ter entre seus antepassados um grande senhor,um fidalgo. Consciente de seus talentos intelectuais e de sua tendência natural às boas maneiras, bem como de sua bela figura,Krull passa a pôr em dúvida a herança genética que lhe atribuíram seus antepassados.

Como me pareciam tolos e inferiores os outros meninos dacidadezinha, que obviamente não tinham essa capacidade, e por

tanto jamais desfrutariam das alegrias silenciosas que eu tirava disso sem qualquer manifestação externa, com um simples ato de von-

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tade! É certo que eles, os rapazes comuns, de cabelo duro e mãosavermelhadas, teriam passado momentos amargos e tornar-se-iamridículos, se tivessem desejado convencer-se de que eram príncipes.

Mas eu tinha cabelos macios como seda, raramente encontradosem pessoas do sexo masculino, e, por serem louros, formavam junto aos olhos de um cinza azulado um contraste fascinante com omoreno dourado de minha pele: ... minhas mãos, das quais cuideidesde cedo, sem serem demasiadamente pequenas, eram muito bem-feitas, nunca suadas, mas moderadamente cálidas, secas, com unhasde belo formato e agradáveis por si sós; minha voz ... era doce aoouvido ... De qualquer modo, eu não podia ignorar que era formado de material refinado, ou, como se costuma dizer, de madeira

mais nobre que meus semelhantes ... fiel à verdade, repito que souesculpido da mais fina madeira. (Ibidem, p.15-6)

Krull concede a si mesmo o benefício da dúvida, entre a crença

numa natureza generosa que o escolhera aleatoriamente como

portador de seus melhores dotes e uma dádiva hereditária, trans

mitida por uma ligação clandestina entre mulheres de sua família

e um hipotético antepassado aristocrático do qual não se tem no

tícia mais concreta.

De modo geral, porém, convenci-me de que não devia muitoàs minhas origens; e, como não quisesse aceitar que em um pontoindeterminado da história de minha estirpe tivessem ocorrido secretas irregularidades, de modo que entre meus antepassados naturaishouvesse algum cavalheiro e grande senhor, seria preciso descer àsminhas próprias profundezas para esclarecer a origem de meus privilégios. (Ibidem, p. 66-7, grifo da autora)

A passagem transcrita veicula a crença de Felix Krull na idéia

de que a cultura e o refinamento, mesmo físico, são dotes inaces

síveis ao burguês, são privilégios de uma hereditariedade seleta e

predeterminada, ou então um dote da natureza a seus escolhidos.

Wilhelm Meister, o protagonista do romance de Goethe, acre

dita, em um primeiro momento, ser possível superar esse abismo

de classes por meio da carreira teatral. O teatro ofereceria a única

possibilidade de ultrapassar esses limites, de se tornar, assim como

o nobre, uma "pessoa pública", desenvolvendo e harmonizando suas

qualificações pessoais. Meister escreve então na carta a Werner: "Já

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percebes que só no teatro posso encontrar tudo isso e que só nesseelemento posso mover-me e cultivar-me à vontade. Sobre os palcos, o homem culto aparece tão bem pessoalmente em seu brilhoquanto nas classe superiores..." (Goethe, 1994, p.288)

Meister acredita poder resolver o conflito de sua origem burguesa e suas aspirações a uma formação universal e a um desenvolvimento harmonioso de suas qualidades latentes pela dedicaçãoao teatro, a uma atividade artística, de representação, em que seria permitido ao burguês comportar-se com a mesma dignidade egraça de um nobre, cultivando assim suas qualidades.

Assim, se o herói de Os anos de aprendizado vê na representação um caminho para sua formação pessoal, para o desenvolvimento de uma personalidade, Krull utiliza o mesmo expediente, a representação, o disfarce e até mesmo o embuste e atrapaça, para ascender socialmente. Porém, enquanto no romance de Goethe são evidenciados os esforços do protagonista embusca de assumir uma personalidade própria, harmônica, em FelixKrull esses esforços convergem para a assunção de todas e nenhuma identidade.

O modelo goethiano veicula a trajetória do indivíduo em buscada constituição de uma personalidade individual, diferenciada eharmônica. Ali, a referência aos modelos fornecidos pela aristocracia é decorrência inevitável de uma sociedade fortementeclassista, na qual as possibilidades de ascensão e flexibilização social pelo mérito e pelo trabalho praticamente não existiam.

Em Felix Krull, a trajetória do protagonista demonstra não odesejo de constituir uma personalidade individual, cultivando-a

segundo os padrões de uma desejável universalidade, mas sim odesejo de livrar-se de qualquer pessoalidade, de quaisquer marcasde individualidade que possam levar ao reconhecimento do cidadão que as porta.

Dessa forma, o Felix Krull, evidente rebento da tradiçãogoethiana do desenvolvimento de uma enteléquia, do cultivo dasqualidades individuais, contrapõe-se dramaticamente a seu modelo. A trajetória de Krull é uma sucessão de disfarces, de pe

quenos delitos, de muitas trocas de nome e de identidade, queculminam no grande acontecimento que é a troca de identidade

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com o Marquês de Venosta. Os prenúncios dessa vocação para a

farsa e para a anulação das marcas exclusivamente pessoais fa

zem-se sentir já no jovem Krull, em comentários aparentemente

casuais, que já anunciam, porém, sua vocação para o disfarce:

Mas, voltando a falar de mim, naquelas semanas ocupou-meespecialmente a troca de nome que o casamento significaria paraminha irmã, e pela qual, segundo recordo, eu a invejava a pontode sentir rancor ... Como é cansativo e tedioso assinar a vida inteira o mesmo nome em cartas e documentos! A mão acaba por separalisar de repulsa e fastio! Que benefício, que estímulo, que re-frigério da existência, apresentar-se com novo nome e ouvir-sechamar assim! A possibilidade de pelo menos uma vez na vidamudar de nome pareceu-me um grande privilégio do sexo feminino em relação aos homens, aos quais esse privilégio é negado pelalei e pela ordem.

E, numa alusão do narrador ao que lhe aconteceria no futuro:

Quanto a mim, que não nasci para levar, na proteção da ordem

burguesa, a vida indolente e segura da grande maioria, mais tarde,não sem talento inventivo, muitas vezes passei por cima dessa proibição, que se opunha à minha segurança e à minha necessidade dediversão. (Mann, 1991, p.54)

Em Felix Krull, o talento para o disfarce e para a troca de

identidade são mais do que mero exercício artístico ou contin

gência de uma vida vivida à margem da lei burguesa; para Krull,

a máscara e o disfarce são as únicas formas possíveis de se apre

ender a própria realidade:

Assim, como se vê, comecei a levar uma vida dupla, cuja belezaconsistia em permanecerem ignorados qual minha forma real e qual omeu disfarce: quando servia solicitamente como empregado nos salões do Saint James and Albany, ou quando, senhor desconhecido edistinto, dando a impressão de ter um cavalo de montaria e, depois deseu jantar, visitar certamente alguns salões ainda mais exclusivos, deixava-me servir à mesa por garçons, nenhum dos quais, pensava eu, se

igualava a mim nessa outra qualidade. Disfarçado eu estava de qualquer maneira, e a realidade não mascarada era impossível de definir, porque realmente não existia. (Mann, 1991, p.211, grifo da autora)

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A última oração concentra, em sua agudeza, a síntese da tra jetória de Krull. Confessando-se "disfarçado de qualquer maneira", Krull confronta seu mimado leitor com o enigma de sua própria personalidade de protagonista, que permanece obscura atéas últimas páginas. Dessa forma, As confissões do impostor FelixKrull contrapõe-se dramaticamente a seus modelos confessos, aautobiografia de Goethe e Os anos de aprendizado de Wilhelm

 Meister, invertendo mesmo os pressupostos deste. É possível compreender-se o último livro de Mann como um anti-Bildungsroman,uma paráfrase mas também uma antítese dos pressupostos quesustentaram a idéia do romance burguês subjetivo, individual e

interiorizante, como Mann o desejara em seu ensaio de 1916. Bildungsroman às avessas, o Felix Krull revela também seu

parentesco com outra grande forma de romance europeu, o romance picaresco.

O Felix Krull e o modelo picaresco

Se, por um lado, Confissões do impostor Felix Krull dialoga com

Os anos de Aprendizado de Wilhelm Meister e com a autobiografiade Goethe, Poesia e verdade, refletindo assim sua filiação ao romanceburguês individualista e interiorizante, o romance de Mann atualiza, por outro lado, essa mesma forma, contrapondo a ela o seuantípoda, o romance picaresco. Como já se afirmou neste trabalho,no capítulo dedicado à genealogia do Bildunsgroman, a narrativapicaresca poderia mesmo ser entendida como um Bildungsroman aonegativo, na medida em que a distinção mais definitiva entre uma e

outra forma se daria pelo bom ou mau caráter do protagonista, pelassuas qualidades enfim aperfeiçoadas ou pela insistência no erro.

O romance de Mann vai atualizar o modelo goethiano pormeio do recurso ao modelo da narrativa picaresca, buscando assim uma solução para a impossibilidade histórica da continuidadedo romance burguês individualista no século XX.

Mário Gonzáles, em seu trabalho de 1994, propõe sua definição para romance picaresco. Tal definição, cunhada a partir de

uma perspectiva da história do gênero, é suficientemente amplapara comportar obras heterogêneas, que ultrapassem o es-

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pelhamento formal de dois ou três modelos do paradigma clássico, e ao mesmo tempo capaz de conservar as perspectivasbasilares do gênero. Afirma Gonzáles (p.261):

Feitas essas colocações, achamos possível tentar encontrar nesse intertexto, que constitui o núcleo da picaresca clássica espanhola, os elementos necessários para uma definição adequada que permita estabelecer o grau de relação que com ele possa guardar outrotexto remoto ou próximo. Assim, com base nesse intertexto, paranós, um romance picaresco será: a pseudo-autobiografia de um anti-herói, definido como marginal à sociedade, o qual narra suas aventuras, que, por sua vez, são a síntese crítica de um processo de ten

tativa de ascensão social pela trapaça e representam uma sátira dasociedade contemporânea do pícaro, seu protagonista.

A definição cunhada por Gonzáles permite que se tragam àluz processos narrativos e temáticos presentes em Felix Krull, queo aproximam da definição de romance picaresco.

Salta aos olhos, na definição do romance picaresco porGonzáles, o termo "pseudo-autobiografia". Efetivamente, o cará

ter autobiográfico mostra-se historicamente, como característicaessencial do romance picaresco strictu sensu. Cláudio Guillén, "talvez o primeiro a se propor explicitamente uma aproximação àdefinição do gênero" (Gonzáles, 1994, p.225), inclui a perspectiva autobiográfica como um dos oito traços característicos dosromances picarescos strictu sensu.

 As confissões do impostor Felix Krull são efetivamente dispostas em forma de relato autobiográfico. Como elas se relacio

nam com o adjetivo "pseudo" voluntariamente acrescentado porGonzáles à definição do gênero? Não se pode afirmar, por umlado, que as confissões de Krull pequem por ausência de autenticidade ou honestidade quanto à veracidade dos fatos que narra,com detalhe e precisão. Krull narra episódios de sua trajetóriacom boas dose de realismo. Se pensarmos, porém, que o narradordetém o controle do ponto de vista, da perspectiva, e, por conseguinte, do discurso, o que lhe permite selecionar e manipular os

enfoques, as causas e conseqüências dos acontecimentos, o adjetivo empregado por Gonzáles terá um de seus possíveis significados esclarecido, no que se refere ao romance de Mann:

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Quanto ao meu talento natural para as boas maneiras, desdesempre, como prova de toda a minha ilusória vida, pude ter absoluta certeza dele ... De resto, estou decidido a usar da mais perfeita

sinceridade nestas minhas anotações, sem medo de ser acusado devaidade ou despudor. Que valor ou sentido moral teriam estas con fissões escritas com outra preocupação que não a da veracidade!(Mann, 1981, p.10, grifo da autora)

A passagem, logo à segunda página do capítulo primeiro,antecipa o compromisso do narrador com a veracidade dos fatosque está por relatar. Ao mesmo tempo, já na segunda linha essemesmo narrador chama a própria vida de ilusória, o que dá mar

gem a uma série de considerações. Ilusória para quem? Para opúblico que vai ler? Para o narrador? Para aqueles a quem iludiu?

É possível compreender então a autobiografia de Krull comopseudo-autobiografia, na medida em que o relato dos fatos biográficos passa pela manipulação discursiva do narrador, sob o cunho de sua visão de mundo e de sua filosofia de vida. Pode-seainda entender as confissões de Krull como pseudo-autobiografiano que se refere aos contínuos disfarces e trocas de identidade

sofridas pelo protagonista. Uma vez que o gênero autobiográficoé entendido como a expressão máxima da individualidade, darememoração e do subjetivismo burguês, como pode Felix Krull,dono de muitas identidades e de nenhuma, apresentar a seu leitorsua autobiografia como expressão máxima de subjetividade?

Isso não quer dizer, por outro lado, que as confissões de Krullnão constituam efetivamente um corpus formal e tematicamenteautobiográfico, reconhecível por meio das características pecu

liares a esse tipo de narrativa, como o uso da primeira pessoa, aanalepse, as rememorações constantes entremeadas das reflexõesdo narrador, sem que, para tanto, seja necessária uma mudança deregistro, do emissor do discurso. Autobiografia formal e temática,as confissões de Krull relatam as experiências de um indivíduo paradoxalmente destituído de marcas individuais, reconstitui umapersonalidade que não se fixa, não se desenvolve, amoldando-seantes às circunstâncias mais favoráveis.

Ao herói picaresco em geral, estaria vedado, segundo a definição de Gonzáles, o verdadeiro relato autobiográfico, uma vez

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que sua individualidade como sujeito é fugidia, impossível de sedeixar alcançar.

Acompanhando ainda a definição de romance picaresco porGonzáles, vê-se que o anti-herói, protagonista da narrativa, é definido pelo traço "marginal à sociedade".

No caso de Felix Krull, essa característica não lhe é atribuídapor acréscimo, pelos atos desonrosos ou criminosos que Krullviria a cometer, mas o acompanha já como traço de origem. Afamília Krull, "refinada, embora um tanto descuidada", é mal-vistae mal recebida, tanto na sociedade local da província, onde vive,

como nos lugares freqüentados pela alta burguesia e aristocracia.Felix Krull narra um episódio de sua infância quando participade uma pequena farsa preparada por seu pai. O pequeno Krull,armado de um violino de madeira sem corda e de arco untadode vaselina, representa, junto à orquestra da estação de águas deLangenschwalbach, o papel de menino-prodígío perante um público de aristocratas que antes o ignorara e que agora se apressaem adulá-lo.

A reserva em relação à prosaica família Krull é mantida até omomento em que a pequena encenação arquitetada pelo pai Krullé bem-sucedida. Pela primeira vez das muitas que se seguirão, Felixalcança o favor das classes mais altas pelo engodo e pela aparência:

Damas e cavalheiros aristocráticos rodearam-me, acariciarammeus cabelos, faces e mãos, chamando-me "garotinho infernal" e"anjinho". Uma velha princesa russa, vestida de seda violeta, com

imponentes cachos de cabelos alvos sobre as orelhas, pegou minhacabeça entre suas mãos cheias de anéis e beijou minha testa úmida.Depois tirou apaixonadamente do pescoço um faiscante broche dediamantes em forma de lira e, falando francês sem parar, prendeu-oem minha camisa... Crianças de origem nobre, belas e ricas, os pequenos condes Siebenklingen, que muitas vezes eu buscara com olharesnostálgicos mas que só me haviam lançado em resposta olhares frios,convidaram-me educadamente para uma partida de croqué. (Mann,1991, p.23-4)

Se sua origem já o coloca, obrigatoriamente, à margem daboa sociedade, Felix Krull tudo faz para integrar-se a ela, e nãopara modificá-la.

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Quando se apresenta a serviço no hotel parisiense SaintJames and Albany, (ocasião em que demonstra notável talento

para as línguas estrangeiras

1

), Krull mantém com seu futuroempregador, Sr. Stürzli, um notável diálogo quanto às suas disposições perante a sociedade. Contratado como ascensorista,Krull trata de fazer comentários sobre a forma de trabalho deseu colega de profissão:

Ele pára alto ou baixo demais, e forma uns degraus perigosos,senhor diretor. Mas só quando anda com gente de sua classe. Comsenhores toma mais cuidado, se é que entendi direito. Não julgolouvável essa diferença de tratamento no exercício do seu ofício.

- Você não tem nada que louvar aqui! Acaso é socialista?- Não, senhor diretor! Considero encantadora a sociedade tal

qual é, e ardo em desejos de conquistar seus favores. (Ibidem, p. l37,grifo da autora)

Assim, embora posto à margem da sociedade pela sua condição de origem, Krull declara seu desejo de integrar-se a ela, oque acaba caracterizando mais um dos traços distintivos do romance picaresco definido por Gonzáles, a ascensão social pelatrapaça. Estranhamente, porém, o mesmo traço que aproxima asConfissões de Krull da narrativa picaresca enquadra-o como descendente direto tanto de Os anos de aprendizado de Wilhelm

 Meister. O desejo de integração em uma classe social diferentedaquela de origem é compartilhado assim pelos protagonistas

1 "Tudo muito bom, meu jovem - disse ele -, mas a questão é saber quais são

as suas qualidades atuais. Você aparece aqui em Paris ... mas ao menos falafrancês?

Era água no meu moinho. Rejubilei-me interiormente, porque comessa pergunta a conversa assumia um rumo favorável. Devo dizer aqui algosobre meu talento para aprender línguas, que sempre foi enorme e misterioso.De tendências universais, guardando em mim todas as possibilidades domundo, eu não precisava estudar realmente um idioma estrangeiro para,mal tendo noção dele, pelo menos dar a impressão de dominá-lo fluentemente,com uma imitação tão exageradamente perfeita da pronúncia, que raiava àfarsa" (p.136). Na ocasião, Krull demonstra mais uma vez seu talento para aencenação e para a aparência, contrapondo suas "tendências universais" a

uma eventual personalidade individual.

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Wilhelm Meister e Felix Krull. Porém, enquanto Meister demonstra descontentamento com a sociedade de classes, ao acusar o pri

vilégio de uma formação universal possível apenas aos nobres,Krull anseia por juntar-se à sociedade "tal qual é", e conquistarseus favores.

A ascensão pela trapaça é efetivamente o destino de Krull.Levando a vida dupla de garçom do Saint James and Albany ecavalheiro burguês à noite, Krull trava conhecimento com oMarquês de Venosta, jovem de sua idade a quem os pais queremafastar de Paris em razão de uma questão amorosa. Venosta

estava enamorado de uma grisette, de uma Costureirinha, e ospais pretendem afastá-lo de Paris propondo-lhe uma viagem pelomundo.

Desesperado, Luís de Venosta confessa-se com Krull, ouArmand, a quem toma por um sujeito misterioso e intrigante, emrazão de sua vida dupla. O marquês propõe a Krull que troquemde identidade, tomando este o lugar daquele na viagem que deverá durar um ano. Assim, efetivamente, Felix Krull assume mais

uma vez uma personalidade que deverá portar até no último detalhe, até na assinatura, na indumentária e nos cartões de visita. Éassim que Krull despede-se de sua vida de empregado de hotel,assumindo a promissora personalidade de um nobre, como jáfizera antes à guisa de encenação e agora deverá fazer como exercício cotidiano. No trem de primeira classe que o levará a Lisboa,primeiro destino de sua longa viagem, Krull reflete sobre os acontecimentos que o levaram a essa situação:

Eu não desejava nenhuma ocupação, nenhuma leitura. Sentar-me ali e ser quem eu era - de que outra distração precisava? Minhaalma comovia-se brandamente, sonhadoramente com esse estadode coisas, mas erraria quem acreditasse que meu contentamento sedevia única e principalmente ao fato de eu ser agora tão distinto.Não, a mudança e a renovação do meu eu usado, despir o velhoAdão e entrar num outro, era isso, na verdade, que me dava plenitude e felicidade. Percebi que a troca de existências não produzia

apenas uma deliciosa renovação, mas também uma certa obliteraçãono meu interior - no sentido de que todas as recordações de minhavida anterior haviam sido exiladas de minha alma. Sentado ali, eutambém já não tinha direito a elas - com o que certamente não

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perdia grande coisa. Minhas recordações! Não era prejuízo algum já não terem de ser minhas... Uma estranha sensação de falta delembrança, sim, de vazio na memória, quis assaltar-me em meu lu

xuoso recanto. (Ibidem, p.237-8)

Assim, o mecanismo de ascensão social pela trapaça, peloengodo, toma forma como mais uma manifestação da ausênciade personalização, de individualidade. Krull, na pele do Marquêsde Venosta, leva ao paroxismo sua falta de identidade própria, aoabrir mão das próprias rememorações, das lembranças de seupassado único, individual. O vazio na memória é a tela em bran

co sobre a qual serão pintadas as novas aventuras, os sucessosque lhe ocorrerão na pele do Marquês de Venosta. O indivíduoFelix Krull, que nunca existira completamente, parece então apagar todos os vestígios de sua existência sobre a terra.

A formação do pícaro

O romance de Mann As confissões do impostor Felix Krullremete, portanto, confessadamente a duas ricas fontes da tradiçãonarrativa européia.

Se, por um lado, o romance burguês autobiográfico einteriorizante correspondia à contrapartida estética do "espíritonacional alemão", como afirma Mann em seu ensaio de 1916,uma nova configuração social o transformara em aporia. Gestadoem um longo período que se estende de 1911 a 1954, compreen

dendo, portanto, as duas grandes guerras e ultrapassando aindaem nove anos o final da segunda, o Felix Krull reproduz esteticamente as transformações políticas do período.

Em seu caráter crítico-parodístico, o Felix Krull atualiza a forma do romance burguês autobiográfico herdado da tradição. Rebento confesso do conceito de formação da época de Goethe, oKrull o atualiza por meio da paródia e do recurso à picaresca.Dessa forma, o romance de Mann concentra em si uma das possibilidades de resolução da grande contradição que acompanha oromance burguês no século XX, canalizando para o procedimento

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parodístico uma possibilidade que Walter Benjamin viu na epopéia e Georg Lukács no realismo crítico.

O romance de Mann configura assim uma das possibilidadesde continuidade do Bildungsroman no século XX. Dialogando diretamente com Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister e coma autobiografia Poesia e verdade, o Felix Krull traz em si mesmouma indicação das alterações históricas pelas quais o conceito

 Bildungsroman teve que passar.

O Tambor de Günter Grass

O tambor (Die Blechtrommel) (1959) é o primeiro romancede Günter Grass. É também a obra que consagrou o autor, a ponto de a revista Time americana afirmar, em sua primeira capadedicada a um romancista alemão do pós-guerra, em 1970: "Aos42 anos, Grass não se parece nem um pouco com o maior romancista do mundo ou da Alemanha, mas pode, sem dúvida alguma, sê-lo" (apud Raddatz, 1979, p.6).

A trajetória do protagonista Oskar Matzerath é narrada pelopróprio Oskar, aos trinta anos de idade, que a escreve em seuquarto de interno em uma clínica psiquiátrica.

Oskar abre a narrativa apresentando o primeiro encontro entre seus avós maternos, privilegiando uma perspectiva cronológica e autobiográfica: "ninguém deve descrever sua vida sem ter apaciência de, antes de datar a própria existência, recordar ao menos a metade de seus avós" (Grass, 1982, p.14).

O narrador inaugura portanto sua história sob um tom pessoal, memorialístico, o que aproxima a obra do romance burguêsde cunho autobiográfico, assim como é o caso do Felix Krull deThomas Mann.

Um primeiro distanciamento já irá ocorrer, entretanto, entrea dicção do narrador e o objeto narrado, na medida em que Oskarpassa a referir-se a si mesmo na terceira pessoa. Alternando entre a primeira e a terceira pessoa, o narrador de O tambor  consegue assim, por meio de um mecanismo simples, criar um distanciamento entre narrador e personagem, bloqueando aspossibilidades de uma narrativa eminentemente confessional. Se-

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gue um exemplo dessa alternância, dentre as inúmeras passagensexistentes:

Estávamos provavelmente no aprazível subúrbio de Hochstriess,saímos por um momento da casa de nosso anfitrião, sem vestir ossobretudos, deixamo-nos fotografar pelo dono da casa, com o pequeno Oskar fazendo manha no meio, para logo voltar ao interioraquecido ... Há ainda uma dúzia ou mais de instantâneos do pequeno Oskar: de um ano, de dois anos, de dois anos e meio; deitado, sentado, engatinhando, andando. As fotos são todas mais oumenos boas e formam um conjunto de preliminares àquele meuretrato de corpo inteiro que haviam de tirar no dia de meu terceiro

aniversário. (Ibidem, p.68)

De toda maneira, Oskar narra efetivamente sua trajetória,desde o nascimento até a internação em uma clínica psiquiátrica,passando pelos episódios da experiência escolar, da experiênciateatral, das experiências amorosas.

Descrito sucintamente, o currículo de Oskar poderia muitobem permitir que se encaixasse o romance de Grass sob a classifi

cação de Bildungsroman.Efetivamente, a crítica a O tambor vem se ocupando da ques

tão já desde o ensaio de Hans Magnus Enzensberger (1979, p.13),veiculado pela primeira vez pela Süddeustscher Rundfunk Stuttgart em 18 de novembro de 1959, ano da primeira edição do livro.Ali, Enzensberger afirma: "O tambor  é um 'romance de desenvolvimento' (Entwicklungsroman) e um 'romance de formação'(Bildungsroman). Estruturalmente ele se nutre na melhor tradiçãoda prosa narrativa alemã. É composto com um cuidado e clarezapeculiares aos clássicos".

Enzensberger alinha O tambor  sob a tradição do "Bildungsroman", ressaltando sua relação com a tradição da "melhor prosanarrativa alemã", ou seja, indica uma característica não apenastemática mas também estilística, que aproximaria o romance deGrass do modelo clássico.

Linhas abaixo, Enzensberger (1979, p.14-5) salienta aquilo

que parece diferenciar O tambor do modelo clássico herdado datradição: "Wilhelm Meister e Henrique, o verde, são, com toda a

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certeza, os jovens de caráter nobre. Seu descendente tardio, OskarMatzerath, tocador de tambor, aleijão, idiota, é um produto de

seu século, assim como aqueles o são de seu próprio. Ele nãoconta apenas sua própria história, ele é também um porta-vozda nossa".

O comentário de Enzensberger resume, em poucas linhas,duas diretrizes principais que têm norteado a história do conceito

 Bildungsroman no século XX: obras como O tambor  ligam-se àtradição do Bildungsroman tanto por sua temática, a narrativa datrajetória de um jovem ao longo das diversas estações da infância

e juventude em direção à maturidade, como também pelo estilo,pela linguagem, pelo modo de narrar. Ao mesmo tempo, OskarMatzerath, "produto de seu século como Wilhelm Meister eHenrique o verde são de seu próprio", diferencia-se tanto pelassuas características de aleijão e de anão como pelo desenvolvimento peculiar de seu processo de formação. As distinções entreo herói de Grass e o de Goethe ou Keller são as mesmas queseparam o século XX dos séculos XVIII e XIX; a crença em uma

trajetória teleológica que conduzisse ao pleno desenvolvimentodas habilidades naturais do indivíduo não mais se pode manter,nem ser representada literariamente.

Ao mesmo tempo, ao afirmar que Oskar é o porta-voz nãoapenas de sua própria história, mas também da nossa, Enzensbergeraponta para uma dimensão coletiva, que aproximaria o romancede Grass de uma narrativa épica, da qual efetivamente há episódios em O tambor, como a tomada do correio polonês em Danzigou a invasão pelas tropas russas. A história de Oskar Matzerath sesituaria, assim, entre o tom biográfico de uma história da formação individual e a narrativa épica da história de um povo, de umaguerra, de uma época.

Como protagonista de um processo de formação individual,Oskar Matzerath é o exemplo vivo de uma trajetória invertida,literalmente, na medida em que já nasce "com intelecto, sentidos

e até mesmo personalidade plenamente desenvolvidos". Em seucaso, "a questão da 'formação', do desdobramento das possibilidades individuais sofre um deslocamento radical em sua história"(Mazzari, 1999, p.89).

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Efetivamente, a história de Oskar, embora principie e transcorra como a história de uma biografia, difere drasticamente domodelo ao qual remete, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister.

Marcus V. Mazzari, em seu livro Romance de formação em perspectiva histórica, dedica um capítulo à questão da relação entre o romance de Günter Grass e a obra paradigmática do

 Bildungsroman, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Ali,a relação entre os dois romances é explicada à luz de "uma intenção paródica".

O primeiro ponto de contato entre a trajetória de Matzerath ea de Wilhelm Meister é o conflito entre a vocação artística e a de

cisão paterna de que o jovem deveria "herdar o negócio", tomar asi as atividades comerciais do pai que constituíram a fortuna dafamília. No caso de Oskar, a mãe interpõe-se à decisão paterna,quando decide que, aos três anos de idade, Oskar deverá ganharum tambor de lata.

No caso de Meister, a vocação teatral, de certa forma também favorecida pela mãe, irá desviar o protagonista dos desígniospaternos.

Entretanto, enquanto Wilhelm Meister não se cansa de repetir seu desejo por uma formação universal, por um desenvolvimento pleno das capacidades latentes, Oskar Matzerath dá porencerrado seu desenvolvimento físico e mental aos três anos deidade; por causa de uma queda simulada, Oskar justifica o fatode seu crescimento ter cessado exatamente no dia de seu terceiroaniversário. Uma vez que já nascera dotado de capacidade crítica,raciocínio intelectual refinado e todas as outras qualidades que

compõem uma inteligência racional, Oskar dá por encerrado seudesenvolvimento. Marcus Mazzari (1999, p.93) comenta: "Ao fundamentar a opção de vida tomada, Oskar busca desmascarar osconteúdos absolutamente banais que se ocultam atrás das idéiasligadas ao 'programa de formação', tal como absorvido e cultivado pela pequena burguesia alemã".

A decisão de Oskar justifica-se, portanto , pela negação, recusa, ausência de qualquer modelo que o inspirasse. Sua opção pela

aparência infantil e conseqüente negação do mundo dos adultosé assim caracterizada por Oskar:

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Para não ter de matraquear nenhum gênero de caixa registradora ruidosa, aferrei-me ao meu tambor e, a partir de meu terceiroaniversário, não cresci nem um dedo a mais; estacionei nos três

anos, mas também com uma tríplice sabedoria: superado no tamanho por todos os adultos, mas tão superior a eles; sem querer medir minha sombra com a deles, mas interior e exteriormente já acabado, enquanto eles, mesmo em idade avançada, continuavam seinfernizando a propósito de seu desenvolvimento; compreendendoo que os outros somente logram com a experiência e freqüentementea duras penas; sem necessitar mudar ano após ano os sapatos ecalças para demonstrar que algo crescia. (Grass, 1982, p.69)

Dessa forma, o protagonista de O tambor  declara-se dramaticamente avesso a um processo de desenvolvimento, de crescimento, de aperfeiçoamento de suas características interiores e exteriores, uma vez que o mundo para o qual elas preparavam oindivíduo é um mundo desprezível. A superioridade intelectualde Oskar leva-o, portanto, a declinar de um processo de formação à maneira convencional, como se reconhece em seuscontraparentes Wilhelm Meister ou Henrique, o verde, ou mesmo

de Felix Krull, que acha a sociedade "adorável assim como ela é",e que converge esforços no sentido de se fazer aceitar por ela.

Marcus Mazzari afirma que a trajetória de Oskar Matzerathé composta de uma sucessão de recusas: a recusa da profissão dopai, a recusa do desenvolvimento nos moldes pequeno-burgueses,a recusa do aprendizado escolar.

A experiência escolar mostra-se incompatível com a naturezade Oskar. Em substituição a ela, Oskar terá de traçar ele mesmo

um efetivo programa de aprendizado voltado a ler e escrever, pois,a despeito de seus dotes intelectuais, essas são técnicas que elenão domina.

No capítulo "Rasputin e o ABC", Oskar descreve sua tentativade aprender a ler e a escrever, pois, desde o fracasso no primeiro diade aula, foram deixados de lado os esforços no sentido de lhe transmitir qualquer ensinamento. Conscientes de que Oskar era estúpido demais para aprender, "nem Matzerath nem mamãe ocuparam-

se de minha instrução durante os meses que se seguiram" (Grass,1962, p.67). Consciente da necessidade da instrução formal (ler eescrever) que deve associar-se à sua superioridade intelectual, Oskar

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passa a procurar, entre os diferentes moradores dos dezenove apartamentos de seu edifício, aquele que lhe sirva de mestre.

A trajetória em busca de um mentor, procurado entre a arraia-miúda da pequena burguesia da vizinhança, concretiza parodis-ticamente a sucessão de mentores pelos quais passa o herói deGoethe, Wilhelm Meister. Oskar tenta primeiramente com o compositor e trompetista Meyn: "O Sr. Meyn tinha quatro gatos e estava sempre bêbado... Um dia encontrei-o em seu sótão, estendidono piso de barriga para cima, de calças pretas e camisa social branca, fazendo rodar entre os pés descalços uma garrafa vazia de gene

bra e ao mesmo tempo tocando trompete deliciosamente" (Grass,1982,p.l02).

Oskar o acompanha com o tambor em dueto. Quando a música termina, Oskar tira de sob seu pulôver um velho exemplar do jornal Neueste Nachrichten, alisa as folhas, acocora-se junto dotocador de trompete Meyn, oferece-lhe as folhas e pede que lheensine o ABC maiúsculo e minúsculo. Meyn, porém, caíra no sono.

Oskar tenta então o verdureiro Greff. Este presta-lhe pouca

atenção, pois "Oskar era demasiado pequeno para ele, e seus olhostampouco eram bastante grandes nem sua tez bastante pálida"(Ibidem, p.104). Oskar alude aqui às preferências amorosas doverdureiro. Greff não compreende a intenção de Oskar, e quando este passa a mexer nos livros que Greff tem em sua loja, grita-lhe que os deixe onde estão, e que brinque com as batatas, emlugar dos livros.

Havia ainda Frau Greff, mulher do verdureiro, a qual "já a essa

época passava semanas na cama, agia como se estivesse doente,cheirava a camisola usada e pegava nas mãos todo tipo de coisa,exceto algum livro que pudesse me instruir" (tradução livre).

A próxima tentativa é feita com Gretchen Scheffler, a mulherdo padeiro, a quem Oskar lisonjeia por meio de um comportamento falso:

E foi aqui que vim parar para aprender o pequeno e o grande

ABC. Esforcei-me para que a porcelana e as lembranças de viagemnão sofressem dano algum ... Fiz amizade com duas das bonecasKathe-Kruse; apertava-as contra o peito e flertava com as pestanasdessas duas daminhas que me fitavam com perpétuo assombro; e

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assim, através dessa amizade fingida com a bonecas - que por serfingida parecia mais real -, eu ia tecendo uma trama de tricô aoredor do coração de Gretchen Scheffler, com duas malhas do lado

direito e duas do lado avesso.2 (Ibidem, p.l06)

Oskar conquista assim a simpatia de Gretchen Scheffler, conseguindo por fim que esta lhe mostre os poucos livros que possui.Entre relatos de marinheiro que pertenceram ao irmão de Gretchen, uma história da cidade de Danzig e a história "da tal lutapor Roma", Oskar encontra, na estante de Gretchen, "um livroque tratava de 'débito e crédito' [Soll und Haben], algo sobre afi

nidades eletivas de Goethe e o grosso volume ricamente ilustrado: Rasputin e as mulheres" (tradução livre).

No elenco citado por Oskar percebe-se a alusão a obras datradição da literatura alemã, como Soll und Haben [Débito e crédito] (1855) (segundo tradução de Otto M. Carpeaux) de GustavFreytag, obra do realismo burguês que figura em algumas das listas de Bildungsromane; além disso, alude-se a Die Wahlverwand-schaften [As afinidades eletivas], (1808), o último romance de

Johann Wolfgang Goethe, obra que irá compor, ao lado do livrosobre o curandeiro russo, a "obra da formação" (Bildungsbuch)de Oskar.

Por um processo semelhante ao utilizado pelo narrador deKater Murr, o romance de E. T. A. Hoffmann de 1819-1821, noqual a biografia do músico Johann Kreisler confunde-se e funde-se à narrativa da biografia de Murr, constituindo assim um obraúnica e singular, Oskar vai arrancando as páginas tanto do ro

mance de Goethe como do livro Rasputin e as mulheres e reunin-do-as novamente de maneira aleatória, constituindo assim umúnico livro, no qual aprende efetivamente a ler.

Oskar ... mesclava as páginas soltas das Afinidades eletivas comoutras de Rasputin, à maneira como se embaralham cartas, lia olivro recém-criado com surpresa crescente, mas nem por isso menos divertida: via Otília passeando pelo braço de Rasputin por en-

2 "Duas malhas do lado direito e duas do lado avesso": equivale a dois pon-tos-meia e dois pontos-tricô.

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tre jardins da Alemanha central, enquanto Goethe, sentado em umtrenó com a dissoluta e aristocrática Olga, deslizava de orgia emorgia através de uma São Petersburgo invernal. (Ibidem, p.l 12)

O livro assim composto vai acompanhá-lo ao longo de seupercurso, concentrando as duas influências extremas que reconhece como válidas: "A sombria figura do curandeiro russo, amante de orgia e de todos os excessos, fornece-lhe um contrapeso àinfluência apolínea de Goethe, o luminoso príncipe dos poetas"(Mazzari, 1988, p.68).

Oskar constrói então para si "a visão de um mundo dominado metade por Rasputin, metade por Goethe" (Ibidem, p.70). Essaimagem alegoriza a própria relação do romance de Günter Grasscom a tradição da literatura alemã, na medida em que em O tambor  convivem elementos de um hiper-realismo grotesco junto aum estilo que Hans Magnus Enzensberger não hesitou em classificar como descendente da "melhor tradição da prosa alemã", aolado de uma temática que o aproxima do modelo do conceito do

 Bildungsroman clássico.A relação ambígua de Oskar com a tradição cultural alemã e

com os ideais goethianos é definida pelo protagonista, referindo-se a si mesmo na terceira pessoa:

Goethe, Oskar, se você tivesse vivido e tocado tambor no tempo dele, só teria visto em você o anormal, teria condenado vocêcomo encarnação material da antinatureza, e a natureza dele - queno fim das contas você tem admirado tanto e a que sempre temaspirado, mesmo quando ela se pavoneia de forma pouco natural -a natureza dele, ele a teria alimentado com confeitos superado-cicados, e pulverizado você, senão com o Fausto,³ ao menos com oalentado volume da sua teoria das cores. (Grass, 1982, p.108)

Essa relação que, ao mesmo tempo, reifica e nega a tradiçãoliterária alemã refletiu-se na diversidade da classificação do romance de Grass ora como anti-Bildungsroman, ora como paródiaao "gênero", ora como um Bildungsroman propriamente dito.

3 Faust: em alemão, punho. O trocadilho, intraduzível, refere-se ao drama deGoethe.

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O estudo de Enzensberger já comentado, que insere o romancede Grass sob a tradição do romance de desenvolvimento (Entwick-

lungsroman) e do Bildungsroman, não o faz sem ressalvas; apontano protagonista Oskar Matzerath as transformações que o fazemum produto de seu próprio século e que o diferenciam dos jovensde caráter nobre Wilhelm Meister e Henrique, o verde.

Da mesma forma o comentário de Fritz J. Raddatz (1979,p.6), publicado no jornal Die Zeit em 1º de janeiro de 1979, vinteanos após a primeira edição de O tambor:

Um romance alemão de desenvolvimento, sem dúvida. Maseles costumavam chamar-se Simplicissimus ou Wilhelm Meister, Henrique, o verde, ou Buddenbrooks; o título vinha do nome doprotagonista. Não é por acaso que pela primeira vez, um objetoempurre o indivíduo para fora do título do livro, ainda por cimaum objeto de uso costumeiramente bélico. O livro de Grass, quenão se chama O tocador de tambor, é um anti-romance de desenvolvimento. História, em vez de psique.

Sintomaticamente, Raddatz, ao mesmo tempo em que incluiO tambor sob a tradição do Bildungs- e Entwicklungsroman, aponta para o fenômeno da substituição do indivíduo pelo coletivo,da subjetividade pessoal pelo peso épico da história.

Bastante significativa é a interpretação de Detlef Krumme, aquicomentada por intermédio do trabalho de Marcus Mazzari. Krummeafirma que a compreensão de O tambor como Bildungsroman propriamente dito, como paródia ao modelo ou como antítese, depen

de da maneira como se considera o protagonista:

A interpretação de O tambor como Bildungsroman, como suaparódia ou ainda como anti-Bildungsroman, depende do julgamento que se faça do protagonista. Se Oskar for compreendido comouma personagem extrema, mas no fundo ainda passível de ser entendida de maneira realista, como um anão grotesco que deve suaexistência à imaginação transbordante do autor, pode-se entãotranqüilamente classificar a obra sob a rubrica do Bildungsroman

ou da paródia do gênero. Se, por outro lado, Oskar for compreendido simbolicamente, como produto de uma não-humanidade caótica, como um constructo totalmente fabricado, O tambor pode sercompreendido como antítese ao Bildungsroman. (Detlef Krumme.

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 Die Blechtrommel. München, Carl Hanser Verlag, 1986, p.78, apudMazzari, 1988, p.42)

Significativamente, o comentário de Krumme apresenta omesmo raciocínio utilizado neste trabalho quanto à classificaçãode certas obras como romances de formação ou romances picarescos,o que reforça a hipótese defendida ao longo deste trabalho deque o Bildungsroman é um conceito constituído discursivamente,isto é, sustentado antes por uma atitude histórico-discursiva doque por suas características literárias imanentes.

Jürgen Jacobs, em seu livro de 1989 O romance de formação

alemão - história do gênero do século XVIII ao século XX, dedicapoucas linhas ao romance de Günter Grass. Para Jacobs, O tambor está longe de ser "um Bildungsroman no sentido tradicional",pois Oskar Matzerath renuncia, desde o início, a uma integraçãosocial e a um desenvolvimento pessoal. Da mesma forma, estáausente no romance um confrontamento do indivíduo com omundo social que o conduzisse a um estado de maturidade. ParaJacobs (p.231), "não seria totalmente errado classificar O tam

bor  exatamente como um anti-Bildungsroman com tendênciasparodísticas".

Uma visão em perspectiva dos diferentes comentários sobre arelação de O tambor com a tradição do Bildungsroman conduz primeiramente à conclusão de que, no romance de Grass, há efetivamente um diálogo consciente com a tradição goethiana, tanto pelasalusões diretas ao problema da formação como em trechos que parafraseiam textos do próprio Goethe, como o episódio do nascimento,

no qual se pode perceber a semelhança de tom e de estilo:

No dia 28 de agosto de 1749, ao bater meio-dia, vim ao mundo em Frankfurt am Main. A constelação era feliz: o Sol encontrava-se no signo de Virgem e em seu ponto culminante para esse dia;Júpiter e Vênus contemplavam-no favoravelmente e Mercúrio semhostilidade; Saturno e Marte mantinham-se indiferentes. Só a Lua,cheia na ocasião, exercia tanto mais o poder de seu reflexo que asua hora planetária havia começado ao mesmo tempo. Opunha-se,

por isso, ao meu nascimento, que não se consumou senão depois detranscorrida aquela hora.

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Esses aspectos favoráveis, que os astrólogos nunca se cansariamde assinalar mais tarde, bem poderiam ter sido a causa de minhaconservação, já que, por imperícia da parteira, vim ao mundo como

morto e foram precisos grandes esforços para me trazer à vida.(Goethe, 1986, p.19)

Segue a narração do nascimento de Oskar Matzerath por elemesmo:

Eram os primeiros dias de setembro. O Sol estava no signo deVirgem. De longe aproximava-se através da noite, movendo caixase armários de um lado para o outro, uma tormenta de fins de verão.

Mercúrio fez-me crítico, Urano fantasioso, Vênus fez-me acreditarnuma escassa felicidade, Marte em minha ambição. Libra, subindona casa do ascendente, fez-me sensível e dado a exageros, Netunoentrava na décima casa, a da metade da vida, estabelecendo-medefinitivamente entre o milagre e a simulação...

Exceto pela não rara ruptura do períneo, meu parto transcorreusuavemente. Não tive dificuldade para me livrar da posição de cabeça tão apreciada pelas mães, fetos e parteiras. (Grass, 1982, p.51-2)

Goethe relata a feliz conjunção dos astros que antecedeu einfluenciou a hora de seu nascimento. Também Oskar determina aposição dos astros em sua hora natal, atribuindo a cada um a influência exercida sobre sua personalidade; Goethe, o "príncipe dospoetas", nasce à hora clara, ao meio-dia luminoso; entretanto, oparto é difícil e o feto é dado em princípio por morto. Oskar, adeformidade, nasce à noite, em meio a uma tempestade de verão.O parto é tranqüilo.

A comparação das duas passagens já indica, por si, a relaçãoque O tambor  manterá com a tradição literária, e, mais especificamente, com o modelo goethiano. Uma tradição consciente, naqual se mesclam submissão e irreverência, paródia e aspiração aomodelo clássico.

Em segundo lugar, pode-se afirmar que O tambor, ao ladodo Felix Krull ilustra uma possibilidade de sobrevivência do conceito Bildungsroman em um momento em que os pressupostos

que lhe deram origem estão historicamente ausentes.Ambos os romances ilustram exemplarmente as conseqüências das modificações históricas sobre o próprio gênero "roman-

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ce". A subjetividade fragmentada, a impossibilidade de representação de um processo teleológico de aquisição de consciência eharmonia individual, a representação de processos históricos co

letivos paralela à representação da biografia individual são manifestações de um deslocamento dos a priori discursivos que possibilitaram o estabelecimento do gênero Bildungsroman. Osromances de Thomas Mann e de Günter Grass configuram aspossibilidades de sobrevivência do gênero pelo processo de alusão parodística, pelo diálogo com uma tradição que é eminentemente histórica.

Ambos os romances, escolhidos como ilustração tanto por se

tratarem de obras de autores capitais na história da literatura européia do século XX, como por serem rebentos confessos da tradiçãoliterária, configuram um procedimento intertextual de transfiguração, bastante próximo dos modelos aos quais se referem, ao mesmo tempo em que indicam possibilidades de novas configuraçõesdessa mesma tradição.

O Bildungsroman apresenta-se então como referência recorrente na história da literatura de língua alemã dos últimos duzen

tos anos. Essa longevidade, ao mesmo tempo em que reitera umatendência, conduz a um problema teórico, na medida em que ogênero, fortemente vincado por suas circunstâncias históricas deorigens, sobrevive necessariamente por sua própria trangressão.Os dois exemplos já comentados ilustram o caráter dinâmico dessatransgressão no âmbito da produção literária em língua alemã,ainda no contexto europeu, deslocando-se o eixo temporal.

Formação feminista e formação proletária: 

o Bildungsroman no Brasil 

A história do Bildungsroman pode ser compreendida a partirda dialética entre suas circunstâncias de origem, extremamentelocalizadas, e sua expansão. É possível falarmos hoje de uma história do gênero para além do ambiente cultural e literário ale

mão, seja no eixo eurocêntrico, seja nas literaturas norte e sul-americanas. Nos Estados Unidos, como se pôde verificar pelo

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trabalho de Jeffrey Sammons e Friedrich Amrine, a crítica vem se

ocupando da revisão historiográfica da própria tradição alemã,

dando continuidade a uma "dissidência crítica" iniciada já porFriedrich Schlegel no seu Uebermeister.

No caso brasileiro, é possível identificar, na primeira metade

da década de 1990, um crescente interesse pelo gênero, manifes

tado por uma dinâmica que ao mesmo tempo em que assimila, já

se apropria, de maneira peculiar, do termo Bildungsroman, "adap

tando-o" a contextos particulares da literatura brasileira e de ou

tros países em desenvolvimento.

A trajetória do termo Bildungsroman no Brasil é ainda recente. O termo integra o Dicionário de termos literários de Massaud

Moisés (1978, p.64), representado por um verbete que se repro

duz a seguir:

 Bildungsroman - Alemão Bildung, formação, Roman, romance. Francês: roman de formation. Português: romance de formação. Também se pode empregar, como sinônimo, o termo alemãoErziehungsroman (Erziehung, educação, Roman, romance).

Modalidade de romance tipicamente alemã, gira em tornodas experiências que sofrem as personagens durante os anos deformação ou educação, rumo da maturidade. Considera-se o pioneiro nessa matéria o Agathon (1766), de Wieland, e o ponto maisalto o Wilhelm Meister  (1795-1796), de Goethe. No fio da tradição germânica, outros ficcionistas cultivaram o tema: Tieck,Novalis, Jean Paul, Eichendorf, Keller, Stifter, Raabe, HermannHesse. Em língua inglesa, citam-se: Charlotte Brontë, CharlesDickens, Samuel Butler, Somerset Maugham. Em francês: RomainRolland.

Em vernáculo, podem-se considerar romances de formação,até certo ponto, os seguintes: O Ateneu (1888), de Raul Pompéia,

 Amar, verbo intransitivo (1927), de Mário de Andrade, os romances do "ciclo do açúcar" (1933-1937), de José Lins do Rego, Mundos Mortos (1937), de Otávio de Faria, Fanga (1942), de AlvesRedol, Manhã submersa, de Vergílio Ferreira, o ciclo A velha casa(1945-1966), de José Régio.

A definição de Bildungsroman por Moisés opta, portanto,

por uma conceituação bastante generalizante e temática, na linhadas enciclopédias literárias alemãs. Em comum ainda com as de

finições alemãs, o verbete do Dicionário salienta que o Bildungs-

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roman é uma "modalidade de romance tipicamente alemã", admitindo, porém, sua continuidade além das fronteiras nacionais

e cronológicas. O verbete traz ainda uma lista de obras em línguaportuguesa, consideradas "até certo ponto" Bildungsromane. Comisso, Moisés dá o primeiro passo para uma legitimação crítica eficcional do gênero em língua portuguesa, o que, entretanto, nãoaconteceu.

Se na literatura européia, o conceito de Bildungsroman, adespeito de todas suas variações e diferentes abordagens críticas,constituiu-se pedra angular, em referência prolífica e essencial na

história da narrativa, tendo mesmo suas origens confundidas coma própria origem do romance como gênero, na literatura de língua portuguesa, mais especificamente na literatura nacional doBrasil, o conceito permaneceu como referência erudita e poucoprodutiva.

O estudo de Cristina Ferreira Pinto, O Bildungsroman feminino: quatro exemplos brasileiros, deve ser considerado um marco na tradição da crítica brasileira na apropriação e utilização do

conceito Bildungsroman. Datado do início da década de 1990, olivro, publicado na coleção Debates da Editora Perspectiva, insere-se como um estudo teórico, no qual o uso ao termo Bildungsroman se dá como recorrência a um modelo teórico e mesmointerpretativo.

A autora recorre ao modelo narrativo temático do Bildungsroman para analisar os romances Amanhecer, de Lúcia Miguel Pereira, As três Marias, de Rachel de Queiroz, Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector, e Ciranda de pedra, de Lygia FagundesTelles. Trata-se de romances escritos por mulheres, cujas personagens principais também são femininas. O estudo fará portanto aaproximação do Bildungsroman à escrita feminina e feminista.

Ferreira Pinto ocupa-se, nas primeiras páginas de seu livro, embuscar a definição e a história do termo Bildungsroman, utilizando-se especialmente do artigo de François Jost La tradition du Bild

ungsroman (1969), e do livro de Martin Swales, The German Bildungsroman from Wieland to Hesse, de 1978. Parte assim deestudos críticos considerados canônicos da abordagem atual ao

 Bildungsroman fora da Alemanha. Escritos respectivamente em lín-

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gua francesa e inglesa, os estudos de Jost e Swales podem ser considerados a ponte para o leitor de língua portuguesa.

Uma das questões essenciais abordadas logo no início pelaautora é o reconhecimento da ausência de Bildungsromane femininos. Depreendendo, a partir da definição de Jost, que o objetorepresentado no Bildungsroman é, necessariamente, a trajetóriade um jovem, de um homem, a autora pergunta-se sobre o porquê "dessa quase total ausência da mulher como personagem central no Bildungsroman" (Pinto, 1990, p.12), acrescentando que"o problema da ausência da protagonista feminina na tradição do

 Bildungsroman ... tem sido levantado por diversas críticas feministas". Segundo Cristina Pinto (p.14), "nos últimos dez anos têmsurgido novos trabalhos que procuram estabelecer a existência deuma tradição feminina do Bildungsroman e que propõem umaredefinição do gênero". Essa tradição compõe-se de obras escritassobretudo por mulheres e tem por referência "as característicasque convencionalmente definem o gênero". Estabelece-se entãoum corpus de características temáticas definidoras desse Bildungsroman escrito por mulheres, que seriam, em resumo:

infância da personagem, conflito de gerações, provincianismo oulimitação do meio de origem, o mundo exterior (the larger Society),auto-educação, alienação, problemas amorosos, busca de uma vocação e de uma filosofia de trabalho que podem levar a personagema abandonar seu ambiente de origem e tentar uma vida independente. (Ibidem, p.14)

A definição temática acima identificada não seria, porém, adequada para incluir efetivamente o Bildungsroman feminino: seriamconsideráveis as diferenças temáticas em um corpus constituído apartir das "características que definem convencionalmente o Bildungsroman. No verdadeiro Bildungsroman feminino, o desenvolvimento da personagem se daria de maneira diferente dos padrões do"Bildungsroman tradicional".

As distinções começam já no quesito idade do (da) protagonis

ta; enquanto no chamado Bildungsroman tradicional a trajetóriade desenvolvimento inicia-se na infância ou na adolescência, nacontrapartida feminina o desenvolvimento da protagonista inicia-

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se freqüentemente na idade adulta. A fim de neutralizar essa primeira distinção, a autora, apoiada em bibliografia especializada (TheVoyage, in: Fiction of female development. Ed. por Elizabeth Abel,

Marianne Hirsch e Elizabeth Langland, Dartmouth College, 1983)propõe a terminologia novels of female development.

Desenha-se assim a relação entre o Bildungsroman "tradicional" e o Bildungsroman da literatura feminina. A autora (p.27)compreende a apropriação do Bildungsroman pela escrita femininacomo uma "prática subversiva", uma decorrência da atitude deafirmação da literatura de mulheres perante os cânones da tradiçãoliterária, predominantemente masculinos:

A literatura feminina se caracteriza também como subversivaao adaptar ou reescrever temas e enredos tradicionalmente masculinos, invertendo a relação entre personagens, jogando o foco narrativo sobre um aspecto novo, estabelecendo perspectivas incomunsou oferecendo uma visão alternativa da realidade: ou seja, a narrativa feminina, numa prática subversiva, apresenta uma revisão degêneros masculinos e uma revisão da história, escrevendo-a de umponto de vista marginal.

Trata-se portanto não de uma "continuidade" do gênero, masde sua transgressão, transgressão essa possível apenas se se entendero Bildungsroman como um gênero de características definidas, veículo de uma visão triunfalista da burguesia progressista e dos ideaisque lhe são peculiares. A autora (p.27) reconhece ainda que "O

 Bildungsroman feminino é uma forma de realizar essa dupla revisão literária e histórica, pois utiliza um gênero tradicionalmente

masculino para registrar uma determinada perspectiva, normalmentenão levada em consideração, da realidade".

Ferreira Pinto (p.27) reconhece ainda como distinção entre o Bildungsroman feminino e o modelo tradicional masculino os diferentes desfechos da narrativa: "Enquanto em Bildungsromanemasculinos - mesmo em exemplos modernos - o protagonista alcança integração social e um certo nível de coerência, o final danarrativa feminina resulta sempre ou no fracasso ou, quando mui

to, em um sentido de coerência pessoal que se torna possível apenas com a não integração da personagem em seu grupo social".

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Assim, a existência de um final harmônico, que integre o protagonista ao mundo social após uma relação tensa entre o indiví

duo e a realidade exterior, característica considerada por críticosque vão de Wilhelm Dilthey a Jürgen Jacobs como traço definidordo Bildungsroman, está ausente na revisão levada a cabo pelo "romance de aprendizagem feminino". Nas quatro obras analisadaspela autora à luz do modelo teórico do Bildungsroman tradicional,as características do final harmônico, da integração ao mundo social estão ausentes de diferentes maneiras. Nos romances Amanhecer (1938), As três Marias (1939), Perto do coração selvagem (1944)

e Ciranda de pedra (1954) as protagonistas "iniciam seus processosde Bildung desejando alcançar a integração e realização do EU e aintegração social". Enquanto nos dois primeiros o processo é frustrado, nos dois últimos "as protagonistas abrem mão da integraçãono seu grupo social para alcançar a integração do EU... A integraçãopessoal só se torna possível a partir da não integração social damulher" (Ibidem, p.30).

Assim, o modelo do Bildungsroman tradicional como definido

por Dilthey, Morgenstern, Jost e mesmo Jacobs é mais uma vez transgredido em uma de suas características básicas, a integração socialdo protagonista em um desfecho harmônico da narrativa.

O romance de formação ou de aprendizagem feminino mos-trar-se-ia pois como um vetor revolucionário, subversivo, pela subversão do próprio modelo textual ao qual recorre. Ferreira Pintocita recursos narrativos como a ironia e o humor, considerados pelaautora como formas de subversão do cânone instaurado pelo

 Bildungsroman tradicional. O processo, incessante, incluiria, segundo a autora, obras que se apresentam como "romances de aprendizagem", de "transformação e renascimento", "romances do despertar da mulher", ou simplesmente romances que retratam odesenvolvimento feminino, "narrativas em que o final fracassadovolta a aparecer, talvez com menos freqüência, e em que novas possibilidades e horizontes, sempre maiores, são abertos pelas escritoras e seus personagens". Cristina Ferreira Pinto afirma que o estudo dos quatro romances citados à luz do modelo do Bildungsromantradicional deflagra uma discussão do processo de transformação dasociedade e da mulher brasileira, de maneira crítica e a partir do

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próprio ponto de vista feminino. Dessa forma, o trabalho aqui comentado "acaba por ser também uma contribuição para o estudo do

 Bildungsroman feminino, pois oferece novos exemplos que comprovam a evolução do gênero e refutam as definições tradicionais deMorgenstern, Dilthey, Jost e outros". A existência de um Bildungsroman feminino e feminista institui portanto a revisão do conceitotradicional de Bildungsroman, reclamando para si uma subversão dascaracterísticas determinantes do conceito tradicional. Para FerreiraPinto (p.32), o Bildungsroman feminino reclama que se ultrapasse "aafirmação de Jost, segundo a qual a função didática do 'romance deaprendizagem' está em auxiliar o indivíduo a ser 'homem'", e "o Bild

ungsroman contribui hoje para a afirmação da individualidade damulher e para a realização de seus anseios, assim como para a formação de uma sociedade onde isso possa concretizar-se".

Pode-se concluir, a partir dos pressupostos explicitados porCristina Ferreira Pinto, que o recurso a um modelo teórico atéentão pouco familiar na literatura e crítica brasileiras passa necessariamente por uma atualização de fundo "político", na medida em que a autora se apropria do conceito, desconsiderando

as condições históricas particulares de sua origem, para realinhá-lo nas fileiras de uma crítica manifestadamente feminista.

Processo semelhante pode ser reconhecido em artigo publicado,em 1994, na Revista da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic): "Jorge Amado e o Bildungsroman proletário". Ali,Eduardo de Assis Duarte analisa o romance Jubiabá sob a luz domodelo Bildungsroman. Segundo Assis Duarte (1994, p.158), em

 Jubiabá "Amado se apropria da tradição do romance de aprendizagem, para situá-lo no nível das classes populares no Brasil dosanos 30".

Da mesma forma que Cristina Ferreira Pinto, Assis Duarteutiliza o modelo do Bildungsroman tradicional, representado peloparadigma Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, como referência de interpretação a uma obra da literatura brasileira.

Porém, a literatura secundária que serve de "ponte" entre o

conceito tradicional de Bildungsroman e o leitor/crítico brasileironão é mais o estudo de Jost, mas sim o Lukács de Teoria do romance

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na tradução portuguesa de 1955. Trata-se do segundo ensaio deGeorg Lukács sobre o Meister de Goethe, escrito em 1936, durante

o exílio soviético. Ali, Os anos de aprendizado é apreciado a partirde uma perspectiva marxista, que considera o romance de Goethecomo importante herança para o realismo socialista. A tônica doensaio de Lukács é o reconhecimento de Os anos de aprendizadocomo a possibilidade de "reconciliação do homem problemático -dirigido por um ideal que para ele é a experiência vivida - com arealidade concreta e social". Assis Duarte (p.160) afirma, citandoainda Lukács, que "esta reconciliação 'não pode nem deve ser um

simples acomodamento', nem muito menos uma "harmoniapreestabelecida", sendo o personagem "forçado a procurá-la à custa de difíceis combates e de penosas vagabundagens, ao mesmotempo em que deve estar, contudo, em condições de a alcançar".

O aspecto ressaltado por Assis Duarte no modelo fornecido pelo Bildungsroman é, portanto, o da integração social. O autor (p.160)compara então o romance de Jorge Amado ao romance de Goethe,ressaltando que, no primeiro, "esta integração ao todo social passa

por mediações inexistentes na obra goethiana, a começar pela origem burguesa de Wilhelm, bastante diversa da quase indigêncialúmpen de Balduíno ... O caráter de Balduíno vai sendo delineadoa partir de situações sociais bastante distintas das que produzirama ascensão burguesa na Alemanha. Ele cresce tomando ciência deuma memória familiar marcada pela tradição da rebeldia social ede uma memória comunitária que atualiza a tradição do cativeiro".

Além do texto de Lukács, sustenta a proposta do autor a

tipologia do romance proposta por Mikhail Bakhtin em suaEsthétique de Ia création verbale (Assis Duarte cita a tradução francesa; a portuguesa data de 1992). Bakhtin (1992, p.239-40) classifica o romance de formação ou de educação em cinco subtipos,dentre os quais considera o quinto o "mais importante":

Nele [nesse quinto tipo] a evolução do homem é indissolúvelda evolução histórica. A formação do homem efetua-se no tempo

histórico real, necessário, com seu futuro, com seu caráter profundamente cronotópico ... O homem seforma ao mesmo tempo que omundo reflete em si mesmo a formação histórica do mundo ... Eleé obrigado a transformar-se em um novo tipo de homem, ainda

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inédito ... A imagem do homem em devir perde seu caráter privado... e desemboca ... na esfera espaçosa da existência histórica.

Assis Duarte sustenta, portanto, seu modelo de análise de Jubiabá como "Bildungsroman proletário" a partir dos textos deLukács e de Bakhtin. A perspectiva assim constituída permite quese entenda Jubiabá como uma narrativa em evolução, em direçãoa um momento histórico em que o proletariado deveria tomarseu destino nas próprias mãos. É Assis Duarte (1994, p.l63) quemafirma: "O triunfo realista de Jubiabá está situado justamente nestacombinação da aprendizagem e do crescimento do heróico com anarração do movimento ascensional das classes subalternas, queé o dado histórico mais importante da década de 1930".

O "jogo de semelhanças e diferenças" entre os dois romancesevidencia-se ainda na questão do desejo de ascensão. EnquantoWilhelm "quer subir no palco como quem sobe na vida", ou seja, aopção pelo teatro evidencia-se como "alternativa para uma formação que eleve o jovem ao mesmo patamar de reconhecimento social desfrutado pela classe dominante", o mesmo desejo de ascensão tipicamente burguês está ausente no protagonista de Jubiabá. Atrajetória de Balduíno, do tablado das lutas de boxe, passando pelaestiva e culminando na liderança de uma greve insere seu destino,segundo Assis Duarte, no referencial da utopia socialista.

Prosseguindo no balanço das semelhanças e das diferenças, oautor reconhece que tanto Balduíno como Meister tornam-se "pessoas públicas". Porém, enquanto Meister apresenta dramas ale

mães no teatro, Balduíno exibe-se em tablados e ringues de circo;enquanto o personagem de Goethe "evolui do teatro para a medicina e finda sua peregrinação integrado ao avanço econômico esocial da burguesia",4 Balduíno "sai do tablado para a estiva etermina liderando uma greve cujo referencial é a utopia socialista, e não a 'ideologia da filantropia burguesa em sua formaçãoutópica' que permeia o Meister" (Ibidem, p.161).

4 Aqui, Assis Duarte refere-se obviamente a Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister, embora não aluda diretamente ao segundo romance do Meister nocorpo do texto.

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Duarte (p. 162) argumenta ainda que, enquanto Meister transita por um processo de formação eminentemente individual, a

trajetória de Balduíno se dá num "processo de crescimento coletivo de nítida coloração épico-romanesca. Sua formação é maispolítica do que propriamente individual: é toda uma classe que selevanta e luta por direitos mínimos de cidadania".

Na verdade, a compreensão da trajetória de Wilhelm Meistercomo um processo de formação "basicamente individual" é problemática, e deixa de contemplar um dos aspectos mais importantes na constituição do Bildungsroman: a possibilidade do indi-

vidual-universal, a possibilidade de representação dos ideais deformação da humanidade por meio do desejo individual pela formação universal. Porém, essa questão não será aqui problemati-zada, uma vez que este capítulo tem por objetivo identificar asformas de apropriação do Bildungsroman pela crítica brasileira.

Sob essa perspectiva, Assis Duarte (p.161-2) argumenta que,em resumo, Jubiabá coloca-se como "estilização 'proletária' do

romance de formação burguês", afirmando ainda que o"Bildungsroman proletário se afasta, e mesmo opõe-se a seu correspondente burguês pelo encaminhamento dado ao desenrolarda trama".

Assim como Cristina Ferreira Pinto, Assis Duarte utiliza oconceito Bildungsroman como modelo teórico e reaplica-o sobreobras da literatura brasileira. Enquanto na literatura de língua alemã a alusão ao modelo Bildungsroman se dá prioritariamente pela

relação dialógica da paródia, da reprodução ou da oposiçãodirigida diretamente ao romance de Goethe Os anos de aprendi

 zado de Wilhelm Meister, como ocorre exemplarmente em O tambor de Günter Grass e no Felix Krull de Thomas Mann, a críticabrasileira, em um processo ainda incipiente, vem se apropriandodo paradigma constituído pelo romance de Goethe por uma estratégia que postula menos a semelhança do que a diversidade.

A possibilidade de um "Bildungsroman proletário", comoexplicita Assis Duarte, está, porém, em sintonia com um dos acontecimentos mais significativos para a história do Bildungsromanno Brasil.

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A primeira tradução brasileira de Os anos de aprendizado deWilhelm Meister veio a público no segundo semestre de 1994. Junto à edição integral do romance, com a reprodução das notas

explicativas da edição original da Deutscher Taschenbuch Verlag,a edição brasileira traz, como posfácio, o ensaio de Georg Lukácsde 1936, no qual o autor considera o romance de Goethe como"legado irrenunciável para o realismo socialista". A escolha, queem princípio pode parecer aleatória, inscreve-se na linha editorial da editora paulistana Ensaio; uma pequena amostra de outros títulos publicados pela mesma editora poderá comprovar oespaço prioritariamente concedido a obras críticas e teóricas de

autores, nacionais e internacionais, ligados à questão do socialismo, do comunismo e das esquerdas em geral.

Constituiria, porém, uma simplificação bastante reducionistaafirmar que o ensaio de Lukács insere Os anos de aprendizado comouma obra defensora ou representante dos ideais socialistas, oumesmo do socialismo utópico. O próprio Lukács afirma que "nãohá em Goethe, evidentemente, nenhum socialismo utópico. Todasas tentativas de enxertar algo semelhante em suas obras ... hão de

levar a uma distorção de suas concepções". Para Lukács, Goethetenta renovadas vezes solucionar a grande contradição entre aspaixões individuais ante a sociedade exterior de maneira utópica,"no quadro da sociedade burguesa". Isso significa que Lukács reconheceu o "final harmônico" de Os anos de aprendizado como oequilíbrio entre as paixões individuais e a inserção no coletivo social, como já prenunciava seu ensaio de 1916. Essa inserção, porém, ele reconhece como um "fundamento contraditório" da con

cepção de sociedade em Goethe, "uma espécie de 'ilha'" dentro dasociedade burguesa. De toda maneira, Lukács (in: Goethe, 1994,p.597) vê no romance de Goethe uma crítica humanista "à sociedade" e também "à divisão capitalista do trabalho, mas também contra o estreitamento, contra a deformação do ser humano pelo apri-sionamento no ser e na consciência da classe social". É este, paraLukács, o ponto de vista central sob o qual são expostas e criticadasas diversas classes e os tipos que a representam.

Embora o artigo de Assis Duarte não cite a tradução brasileira de Os anos de aprendizado, à qual possivelmente não tenha

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tido acesso à época de redação do artigo, valendo-se antes da tradução de Marcus Vinícius Mazzari,5 salta aos olhos a evidente

coincidência entre sua leitura e a leitura proposta pela ediçãobrasileira. A editora Ensaio optou por uma acepção crítica deOs anos de aprendizado de Wilhelm Meister  que ressalta as possibilidades de existência de um Bildungsroman proletário; ao ladodo artigo de Assis Duarte, a edição brasileira do romance de Goethepode vir a constituir um paradigma para a leitura do Meister e doromance de formação no Brasil.

Em suma, pode-se afirmar que tanto a concepção de um

 Bildungsroman feminista como a de um Bildungsroman proletário firmam-se como possibilidades de releitura ideologicamenteestabelecidas. Assim como a própria origem do termo (e do conceito) Bildungsroman encontra-se impregnada das concepções his-tórico-culturais de sua época, também a apropriação brasileira doconceito se estabelece a partir de núcleos histórica e socialmentedeterminados, como os movimentos das mulheres e do proletariado. Dessa forma, reafirma-se a natureza ideológica do conceito,sua capacidade de associação a diferentes modelos históricos, umavez diluídas as características temáticas originais em proveito decada novo núcleo definidor de sentido.

Esse mecanismo possibilita por sua vez que se possa falar emum Bildungsroman feminista, em um Bildungsroman proletário,em um Bildungsroman "psicanalítico". Assim, cada época, cadaconfiguração histórica e intelectual pode ter seu próprio Bildungs

roman, na medida em que recorre aos princípios fundamentaiscapazes de definir o conceito, necessariamente transformando-osou mesmo subvertendo-os.

Encaixa-se nesse modelo de explicação a afirmação de GeorgStanitzek (ver Killy, 1992, p.l18) quanto à popularização do recurso ao Bildungsroman como modelo teórico e interpretativo.Em seu verbete sobre o Bildungsroman, Stanitzek reconhece que

5 Citando aqui a nota de rodapé do artigo de Assis Duarte: a tradução, diretodo original, é parte do ensaio "Utopia da formação e utopia social nos romances Wilhelm Meisters Lehrjahre e Wilhelm Meisters Wanderjahre". SãoPaulo: FFLCH/USP, 1982, cópia mimeografada.

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au o: C /US , 98 , cóp a eog a ada. 

a freqüente referência que a crítica folhetinesca faz ao Bildungs-roman "serve, na maioria das vezes, apenas para medir a distância em relação à concepção tradicional do Bildungsroman, distância essa que se pode observar na mais recente e freqüentementepopular literatura romanesca. Com o recurso ao Bildungsromancoloca-se à disposição um esquema crítico facilmente utilizável ede declarada capacidade de reconhecimento".

O comentário de Stanitzek denota sem dúvida uma censura àutilização desmedida do modelo Bildungsroman como instrumentocrítico e interpretativo de obras que em princípio não se encaixariam nessa forma. Ao mesmo tempo, o comentário refere-se a um

processo de atualização do modelo que vem ocorrendo na medida em que críticos como os citados aqui comparam obras individualizadas ao modelo tradicional do Bildungsroman, ressaltando,porém, as distinções. Dessa forma, nos casos já comentados, éapenas o reconhecimento das diferenças que possibilitará a referência ao modelo.

AS RESENHAS NOS JORNAIS

Integram a incipiente história do conceito Bildungsroman noBrasil as resenhas introdutórias do romance de Goethe a partirda primeira tradução brasileira em 1994, publicadas nos suplementos culturais.

O artigo do professor Renato Janine Ribeiro publicado no jornal Folha de S. Paulo em 2 de outubro de 1994 introduz Os

anos de aprendizado de Wilhelm Meister ao leitor brasileiro. JanineRibeiro inicia sua resenha com a frase: "Os anos de aprendizadode Wilhelm Meister  pode ler-se em várias linhas". A partir daí, otexto percorre as várias estações que devem constituir uma leitura introdutória do Meister.

A primeira dessas instâncias é a articulação do romance deGoethe ao conceito Bildungsroman. Segundo Janine, "trata-se doexemplar mais acabado do Bildungsroman, do romance de edu

cação ou de formação." O autor articula, portanto, o Meister deGoethe ao a priori histórico do nascimento da educação moder-

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na, da época que, com Rousseau e Pestalozzi, rompeu "a milenarcrença numa natureza humana que nem a história nem a pedago

gia alteravam, mas apenas, a seus distintos modos, ilustravam".Uma vez estabelecida essa perspectiva de contato, o artigo deJanine ressalta, entretanto, a estranheza que "este belo romance","este romance notável", causará ao leitor de nosso dias. Essa estranheza se constitui, em grande parte, pela quase ausência de uma"história", de um mínimo de "suspense". Em detrimento dos componentes tradicionais de uma narrativa romanesca, o romance deGoethe intensifica os debates teatrais e filosóficos, o que torna aobra "difícil" para o leitor contemporâneo. Janine Ribeiro recomenda, corretamente, ao leitor que desejar um efetivo prazer naleitura, Os sofrimentos do jovem Werther ou As afinidades eletivas,do mesmo Goethe.

Estranha ao leitor de hoje seria também "a idéia de uma maturidade que se atinge após 'anos de aprendizado'", "que assimcomo a idéia de uma 'felicidade social segundo a natureza' estariam datados demais dos inícios da dominação burguesa, ou dosiluminismos do século XVIII, para que passem por nós impunemente". O artigo de Janine Ribeiro exercita, portanto, a dinâmica da recepção histórica, localizando os pontos mais obscurospara o leitor contemporâneo, isto é, aqueles com maior capacidade de produção de sentido, que carecem de interpretação.

Janine Ribeiro localiza no romance de Goethe ainda mais umnúcleo produtor de sentido: a questão da construção da nacionalidade alemã, que "passa pela formação de um teatro nacional".Efetivamente, a passagem de Wilhelm Meister pelo teatro compreende o desejo romântico de constituição de um teatro nacional, onde atores alemães representassem autores alemães para umpúblico alemão, ao qual se deveria educar. Entretanto, o projetoé malogrado; enquanto a nobreza parece preferir os autores franceses, o público popular demonstra preferência pela opereta àmaneira italiana. Quando Meister se desvincula da companhia teatral da qual fora diretor, esta já se prepara para encenar as óperasitalianas.

O artigo do professor Janine Ribeiro (1994, p.6-7) ressalta, portanto, a dedicação de Wilhelm Meister ao teatro como uma das esta-

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ções de seu aprendizado, relacionada ao desejo coletivo pela aquisição de uma identidade nacional: "Está em cena o suporte emocionalpara uma cultura; pois era o teatro a forma mais intensa pela qualesta se dava ao público antes de surgirem os meios de comunicaçãode reprodução mecânica ou eletrônica que hoje socializam a massa.E é por aí que a pergunta pelo teatro nacional, ou seja, pela identidade alemã, acompanha a busca de Meister por sua própria vida".

O comentário anterior recupera uma leitura de Os anos deaprendizado como obra na qual se representa o "individual-uni-versal", em que os anseios individuais seguem paralelos às ambições de um grupo social. Reafirma-se, assim, uma possibilidade

de leitura constituída já nas primeiras críticas de Friedrich Schillere C. F. Körner, que viram no romance de Goethe uma representação dos ideais da formação universal.

Ainda assim, a obra permaneceria distante e "estranha" aoleitor brasileiro contemporâneo, senão contraditória. A existência de uma instituição como a Sociedade da Torre, instância queo autor reconhece como autoritária e manipuladora, vai de encontro à idéia de que o protagonista possa alcançar, ao final dos

acontecimentos, liberdade e autonomia. Para nós, afirma Ribeiro,essa manipulação "já não suscita entusiasmo nem sequer simpatia". Assim, mesmo o ideal de educação iluminista, que constitui,sem dúvida alguma, um dos pressupostos do romance de Goethe,não poderia ser assimilado pelo leitor brasileiro contemporâneosem uma boa dose de estranhamento.

Conclui-se então que o artigo de Renato Janine Ribeiro optapor introduzir Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister ao lei

tor contemporâneo e real a partir de uma visão de contraste eestranhamento, apontando os possíveis núcleos de constituiçãodo "MiBverständnis" (mal-entendido), dos pontos de ocultamentode sentido que são, ao mesmo tempo, produtores de sentido. Aofinal de seu artigo, Ribeiro (p.6-7) indica aquela que parece ser aperspectiva possível para uma atualização do Bildungsroman e deseu paradigma, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister: "Mastalvez esteja nesta distância, que sentimos ante uma das obrasconstitutivas do mundo burguês em seu empenho pela educação,

a razão de ela ainda estar viva: porque não a lemos só para fruir

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uma boa história; o que nela achamos são questões que vale apena discutir, mesmo que seja para ter outras respostas.

O artigo de professor Renato Janine Ribeiro, além de apresentar o romance de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister ao leitor brasileiro, preocupa-se em contribuir para a instituição de uma perspectiva crítica, ainda incipiente entre nós.

Nessa mesma linha insere-se o artigo de Marcus V Mazzari,publicado no Jornal de Resenhas da Folha de S. Paulo, em 2 deoutubro de 1995.

Seguindo de perto a trajetória de Meister, a resenha salienta

pontos críticos do percurso do protagonista, considerado sob aperspectiva da formação. É importante ressaltar que o artigo deMazzari aponta, pela primeira vez na crítica brasileira, a ausênciade harmonia no processo representado, bem como ressalta a perspectiva algo irônica sob a qual a Sociedade da Torre é apresentada.Dessa forma, apresenta-se ao leitor brasileiro uma leitura consoante com a crítica européia mais recente, como as obras de Klaus Gillee Hans Eichner.

Comentando o percurso de Meister desde a casa paterna atéo abandono do teatro, Mazzari afirma que "o processo de formação traçado no romance está longe de percorrer o desenvolvimentoharmônico que se costuma associar a concepções classicistas".

Acrescenta ainda o fato de que à declaração do término deseus anos de aprendizado sucederá "um momento de profundadesorientação [o qual] mostra mais uma vez que a formação do

 jovem Meister não tem um desenvolvimento harmônico, linear

mente evolutivo, dando-se antes de forma descontínua, tambématravés de erranças e reveses" (Mazzari, 1995, p.12).

Apresenta-se assim ao leitor brasileiro uma problematizaçãoda natureza do próprio processo de formação vivenciado peloprotagonista, o que contribui por sua vez para o estabelecimentode uma perspetiva crítica para além do conceito tradicional e "ortodoxo" de Bildungsroman.

É possível ainda reconhecer na resenha em questão o desen

volvimento de um pressuposto estabelecido por Friedrich Schlegel,em Über Wilhelm Meisters Lehrjahre (Sobre o Wilhelm Meister), oÜbermeister de 1798. Ali, Schlegel (1956, p.282) afirma que "es-

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tes anos de aprendizado querem e podem antes formar um outroque não o próprio Wilhelm em um hábil artista e em um cidadãocapaz", acrescentando que Lothario é "a figura humana mais interessante em todo o livro": "Lothario é um grande homem ...Lothario é perfeito, seu aspecto é simples, seu espírito está sempre em progressão...".

A resenha de Marais V. Mazzari (1995, p.6-7) recupera demaneira indireta a concepção de Friedrich Schlegel na medida emque dedica dois longos parágrafos à personagem de Lothario, "espécie de social-democrata avant Ia lettre" que "se ocupa prioritariamente de questões sociais". Embora a personagem Lotharioapareça apenas no livro VII, aproximadamente no terço final doromance, suas concepções sobre distribuição de terra e sobre atributação das propriedades da nobreza salientam suas qualidadesde "indivíduo politicamente inteligente, de visão ampla, que agede acordo com as necessidades da época. Membro da nobreza,Lothario possui aguda consciência da delicada situação políticana Europa do século XVIII. Por conseguinte, defende ideais deuma convivência equilibrada entre nobreza, burguesia e camadas

populares".Dessa forma, a resenha de Marcus Mazzari propõe ao leitor

contemporâneo uma leitura de Os anos de aprendizado que incluiuma perspectiva crítica sob a qual o processo de aprendizado deixa de ser visto como um processo teleológico, como uma evolução harmônica; ao mesmo tempo, recupera uma concepção jáintuída por Schiller em suas últimas cartas sobre o Meister e declarada por Friedrich Schlegel, de que Wilhelm Meister não seria

um efetivo protagonista, de que seus anos de aprendizado nãoconstituem a temática central do romance.

O estudo contribui, portanto, para a problematização do romance de Goethe no Brasil, na medida em que também apontapara os deslocamentos em relação às concepções classicistas e ortodoxas de Bildungsroman.

A partir da análise dos exemplos aqui comentados, é possível concluir que a história do conceito Bildungsroman no âmbito

da crítica literária brasileira é ainda recente. Entretanto, já se delineia uma determinada maneira de apropriação do conceito que

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se caracteriza pelo esforço de "adaptação" de expressões peculiares da literatura produzida no Brasil no século XX ao modelo tra

dicional do Bildungsroman alemão do século XVIII. A idéia deum Bildungsroman feminino, ou mesmo feminista, ilustra exemplarmente o alcance desse processo, que necessariamente pressupõe uma subversão dos parâmetros que sustentam as definições"tradicionais" de Bildungsroman.

As resenhas publicadas nos jornais ilustram, por sua vez, umamodalidade diferente de apropriação do Bildungsroman no Brasil. Em vez de promover a aplicação do modelo europeu sobre

produções particulares da literatura brasileira, o artigo de RenatoJanine Ribeiro esforça-se por avaliar a distância entre o leitor brasileiro contemporâneo e os pressupostos que constituem o romancede Goethe. A estranheza que daí decorre não tem sua origem apenas na questão intercultural ou de época, mas na própria natureza da obra, esse romance "belo"' e "notável", porém estranho.

O artigo do professor Janine Ribeiro convida o leitor a umexercício de interpretação do romance de Goethe à luz da histó

ria das idéias, bem como à luz de sua própria tradição crítica,exercício esse do qual também o artigo posterior de MarcusVinícius Mazzari nos dá notícia.

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CONCLUSÃO

A abordagem ao Bildungsroman a partir da investigação dosa priori histórico-literários que o constituem permitiu que sedescortinassem certas características do gênero que importammesmo para o estatuto e a economia do Bildungsroman no campo dos estudos literários.

A primeira delas diz respeito à própria natureza do Bild

ungsroman: defendeu-se, nas páginas anteriores, a necessidadede compreensão do Bildungsroman como um signo literário,construído pela conjunção do termo Bildungsroman, criado porKarl Morgenstern em 1803, ao romance de Goethe Os anos deaprendizado de Wilhelm Meister  (1795-1796). Como conseqüência histórico-literária dessa conjunção, uma abordagem ao

 Bildungsroman deve necessariamente considerar os discursos

realizados sobre o romance de Goethe; da mesma forma, é preciso rever o estatuto canônico de Os anos de aprendizado deWilhelm Meister  como obra paradigmática do gênero, experimentando a validade dessa articulação ao longo da história

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O Bildungsroman ultrapassa então sua natureza de fenômenoliterário, tornando-se um objeto constituído também pelas pro

 jeções críticas e interpretativas que sobre ele se debruçaram. Ouseja, o Bildungsroman, como hoje o conhecemos, é um fenômenoconstituído tanto pela sua inteireza de "entidade literária" comopela discursividade que dele se vem ocupando desde a criação dotermo. Dessa forma, o Bildungsroman mostra-se ainda hoje comoconceito em constante movimento, o que possibilita sua apropriação por parte das diferentes literaturas nacionais e dos maisdiferentes modos de interpretação.

Apenas uma perspectiva que considere o Bildungsroman comouma forma histórica dinâmica permitirá fazer convergir as diversas e não poucas vezes paradoxais leituras que dele se tem feito; éapenas pela compreensão do Bildungsroman como um objeto formado predominantemente por manifestações discursivas que sepoderá legitimar a existência de um Bildungsroman diferente acada período histórico-cultural, a cada núcleo formador de significado. A compreensão de um tal mecanismo pode então legitimara existência de um Bildungsroman medieval, um Bildungsromanbarroco, um Bildungsroman clássico, um romântico, realista, capitalista, socialista, e até mesmo um Bildungsroman psicanalíticoe um feminista.

Também quanto a sua origem e gênese, a abordagem ao Bildungsroman deve ser feita sob uma perspectiva dinâmica; nocapítulo intitulado Genealogia pretendeu-se legitimar a hipótese

de que o Bildungsroman se sustenta, em seu estatuto literário,como instituição impregnada pelo contato com outras formas denarrativa, como os testemunhos de conversão pietistas, os relatosde viagem, a narrativa picaresca, a literatura predominantementeeducativa da Aufklärung, as autobiografias intelectuais. Por meiode suas relações de parentesco, portanto, o Bildungsroman mostra-se mais uma vez como uma formação complexa, apontandopara núcleos de significação engendrados na história social.

Em sua constituição híbrida, o Bildungsroman é um gêneroque se deixa apropriar pelas mais diferentes abordagens. Essa facilidade de apropriação e superexposição do conceito tem conseqüências para os estudos literários; repita-se aqui o argumento de

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Georg Stanitzeck quanto à superutilização do Bildungsroman comoesquema interpretativo: "Com o recurso ao Bildungsroman, fica

à disposição um esquema crítico de manipulação comprovadamente fácil e de alta capacidade de reconhecimento" (Killy& Meid, 1992, p.122).

A afirmação de Stanitzeck chama a atenção para um processo de superexposição e, de certa forma, vulgarização do

 Bildungsroman, já desenvolvido nas literaturas nacionais européias e incipiente entre nós, como se pretendeu demonstrar nocapítulo sobre o Bildungsroman no Brasil. A compreensão desse

processo será tanto mais produtiva quanto se tomar em conta aconsiderável carga ideológico-discursiva que impregna o conceito já desde sua origem.

O Bildungsroman mostra-se, portanto, paradoxalmente, comoum conceito facilmente identificável, em razão dos pressupostosextremamente datados que permeiam sua gênese, e ao mesmotempo como um conceito de difícil apreensão, em virtude doprocesso de vinculação aos diferentes núcleos discursivos que dele

se apropriam.Consideram-se aqui, portanto, impróprias ou infrutíferas asabordagens ao Bildungsroman que levam em conta exclusivamenteo instrumental tradicional da teoria literária, como por exemploo gênero entendido como categoria normativa e classificatória,sob a qual se identifica um modo específico de representação, dereprodução da realidade. Como se pretendeu ter demonstrado,tais abordagens malogram ao confrontar-se com as definições do

 Bildungsroman, em suas tentaitvas de delimitar um corpus de características capazes de isolar o objeto.

Em lugar disso, o que possibilita a abordagem ao Bildungsroman é a compreensão de sua diversidade, de seu estatuto híbrido entre constructo literário e projeção discursiva.

Nas páginas anteriores, o que se empreendeu foi a investigação "arqueológica" das diferentes camadas discursivas que vêmatribuindo significação ao signo literário constituído pelo termo

 Bildungsroman e pelo romance de Goethe Os anos de aprendi zado de Wilhelm Meister; essa investigação conduziu à compreensão do Bildungsroman antes como formação eminentemente

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histórico-discursiva do que como entidade predominantementeliterária. A decorrência teórica desse fato é um realinhamento do

instrumental de abordagem ao Bildungsroman, realinhamento queprivilegia o estatuto dos objetos de estudo da teoria e história daliteratura como instituições social-literárias.

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SOBRE O LIVRO

Coleção: Prismas

Formato: 14 x 21 cm Mancha: 23 x 43 paicas

Tipologia: Classical Garamond 10/13Papel: Offset 75 g/m2 (miolo)

Cartão Supremo 250 g/m2 (capa) I a edição: 2000

EQUIPE DE REALIZAÇÃO

Produção Gráfica

Edson Francisco dos Santos (Assistente)

Edição de TextoFábio Gonçalves (Assistente Editorial)Carlos Villarruel (Preparação de Original)

Francisco José Mendonça Coutoe Armando Olivetti Ferreira (Revisão)

Editoração Eletrônica

Nobuca Rachi Kawata

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Impresso nas oficinas daGráfica Palas Athena

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o desejo da burguesia culta de superar os limites demarcados pela classe dominante na Alemanha absolutista do século XVIII. Mais tarde, Thomas Mann compreenderá o Bildungsroman  como "uma manifestaçãotipicamente alemã", uma variedade de romance próprio de uma sociedade atomizado, onde cada indiví

duo se transforma num representante do gênero humano, em um contexto onde falta, quase que completamente, o elemento político. Na Alemanha, onde asrevoluções burguesas tiveram todas um caráter "insuficiente", o romance burguês realista, já mesmo no século XIX, não teria atingido o mesmo grau de representação social presente em Balzac, Dickens ou Melville.

O trabalho da autora ganha especial atualidade e

vigência por mostrar a trajetória e permanência dessegênero literário. O "modelo" original será inevitavelmente submetido a um processo de diluição, à medidaque se deixa apropriar por outras instâncias literárias ecríticas em meio à literatura alemã, a outras literaturaseuropéias e mesmo pela crítica literária brasileira. Doprisma de uma história da literatura como história daobra, dos gêneros e da crítica, o estudo mostra a constituição desse cânone desde seu contato com outras formas narrativas como os testemunhos das conversõespietistas ou a literatura educativa da Ilustração, concentrando-se em Goethe, para chegar a Thomas Manne Günter Grass.

O leitor brasileiro tem, pois, em mãos uma discussão original e profunda sobre um conceito historicizadoem sua essência, que se transforma em cânone atem-poral e permanece indissoluvelmente ligado à própriahistória da literatura ocidental.

Eloá di P/erro Heise 

Wilma Patrícia Maas  é professora de literatura alemã na UNESP de

Araraquara. Estudiosa da obra de Goethe e Friedrich Schlegel, tem

trabalhos publicados nas áreas de hermenêutica literária, história ehistoriografia da literatura.

Capa: Vicente Pimenta, sobre imagens fractais.

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p , g 

"Um romance perfeito deveria ser uma obra de

arte muito mais romântica do que o Wilhelm

Meister; mais moderna e mais antiga, mais filo

sófica, mais ética e mais poética, mais política,

mais liberal, mais universal, mais social."

(Friedrich Schlegel)