Urbanidades

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  • Urbanidades.Frederico de HolandaLuciana AndradeRomulo KraftaPaulo RheingantzLucas FigueiredoMarcele TrigueiroDouglas AguiarVinicius M. Netto

    Copyright 2012 dos autoresCopyright 2012 desta edio, Letra e Imagem Editora.Todos os direitos reservados.A reproduo no autorizada desta publicao, no todo u em parte, constitui

    violao de direitos autorais. (Lei 9.610/98)Grafia atualizada respeitando o novo cordo Ortogrfico da Lngua PortuguesaReviso: Pedro Sangirardi Capa: Vinicius Netto Imagem da capa: Tiago Rodrigues, sobre fotografia de Sebastio Barbosa

    Urbanidades. / Douglas Aguiar e Vinicius M. Netto, organizadores Rio de Janeiro: Folio Digital: Letra e Imagem, 2012.

    ISBN 978-85-61012-12-01. Planejamento urbano e paisagismo. 2. Arquitetura I. Ttulo. II. Aguiar, Douglas.

    III. Netto, Vincius.cdd: 710

    www.foliodigital.com.brFolio Digital um selo da editora Letra e ImagemRua Teotnio Regadas, 26/sala 602cep: 20200-360 Rio de Janeiro, rjtel (21) 2558-2326letraeimagem@letraeimagem.com.brwww.letraeimagem.com.brPara aqueles fascinados pela cidade

    APRESENTAONa trilha da urbanidade

    Douglas AguiarPassei a me socorrer do conceito de urbanidade em minhas lidas no campo da

    arquitetura no faz muito tempo. Foi a partir de abril de 2009. Chegando ento ao Rio de Janeiro fui caminhar pelo centro da cidade buscando tomar p da minha rea de estudo. Propunha-me ento a estudar o que chamei de arquiteturas efmeras, as situaes espaciais informais que por ali brotam e evanescem a cada dia, os cameldromos e mini cameldromos em seus mais variados gentipos e fentipos. Na poca eu havia

  • recentemente concludo a realizao de um filme-documentrio sobre o cameldromo da praa XV em Porto Alegre, o Tempo de Pedra, e o alargamento de zoom nesse tpico para uma situao do porte, diversidade e complexidade daquilo que ocorre no centro do Rio, me parecia ento oportuno na sequncia daquela pesquisa. Paulo Rheingantz, meu host na cidade maravilhosa, orientou-me ento nas andanas institucionais, IPP, Prefeitura etc., e me passou uma rica bibliografia sobre o centro da cidade. Munido dessa informao, fui a campo. Minha imerso na urbanidade do centro do Rio era um prazer, e em algumas situaes quase um sonho.

    Assim passei boa parte dos meus dias de 2009 nas mais diversas horas do dia, e dos dias da semana vasculhando cada canto do centro da cidade. Caminhei ali por todas, ou quase todas, avenidas, ruas e ruelas. Nesse processo adquiri um conhecimento extensivo daquela situao, o centro do Rio, percebendo a cada passo que necessitaria de muitos anos mais para que pudesse alegar algum conhecimento mais profundo daquele lugar, tal a riqueza de situaes espaciais e sociais, vinculadas a fatos histricos, ali presentes ou representadas. Meu encantamento com a rea de estudo impediu-me de levar adiante o projeto Arquiteturas Efmeras, que foi temporariamente para a prateleira. J na primeira semana de caminhadas um turbilho/emaranhado de ideias e percepes passou a assolar o meu intelecto e o meu emocional. De fato difcil relatar com palavras a experincia espacial naquele local ainda que sejamos capazes de racionalizar, via decomposio, via desagregao, via anlise, os seus diferentes protagonistas. Exerccio til apenas ao diletante. Simplesmente porque a magnfica e estonteante vitalidade daquele lugar superar toda e qualquer categoria de anlise; tanto as categorias quantitativas tpicas dos planos reguladores, quanto as categorias tipolgicas tpicas dos inventrios de patrimnio.

    Minha percepo daquele lugar, mais do que aguada pela materialidade, foi ali atrada, inexorvel e prazerosamente, para o uso do espao pelas pessoas. A cada dia ali vivenciado fui paulatinamente ampliando o meu entendimento a respeito do modo como aquelas caladas e portas interagem com as pessoas que ali esto, uma amostra sociolgica variada, abrangendo pessoas de diferentes classes sociais, ainda que o conceito de classe tenha a ele inerente um gro absolutamente insuficiente para lidar com o comportamento espacial daquelas pessoas. De fato o espontneo compartilhamento das mais variadas instncias espaciais pelas pessoas a caracterstica mais evidente daquele lugar. Percebe-se que, independentemente da origem e do bolso, todos ali se sentem em casa.

    E foi essa percepo das pessoas sentindo-se em casa no espao pblico que me encaminhou ao estudo da urbanidade como uma categoria especfica da cidade. Reparei que, independentemente dos estilos das edificaes e da sua relevncia histrica, havia ali algo peculiar sendo descrito na civilidade reinante, vinda do conjunto arquitetnico-espacial. Quando falo em civilidade me refiro condio de civitas, condio de cidade, o precioso entendimento albertiano da cidade como casa, a grande morada. E foi esse o modo como cheguei ao conceito de urbanidade, vivenciando na pele o espao pblico do centro do Rio em toda a sua generosidade, benevolncia e acolhimento para com as pessoas que ali habitam transitoriamente. E assim foi que, amparado nessa noo ainda incipiente da condio de urbanidade ali racionalizada, busquei redefinir a minha pesquisa.

    Diante de um objeto de estudo dessa magnitude, e me sentindo basbaque com

  • aquilo que passei a denominar de urbanidade, vi-me necessitado de companhia para proceder ao desbravamento desse universo conceitual. Perguntava-me ento, quais seriam as condies geradoras dessa encantadora condio de urbanidade, de acolhimento pleno a todos que reina no centro da cidade do Rio de Janeiro? E foi imerso em um mar de diferentes conjecturas sobre as possveis respostas a essa pergunta que, em busca de amparo intelectual, dei incio ao que se conhece hoje como a rede@urbanidade de pesquisadores.

    Tenho os estudos da sintaxe espacial na base da minha formao em arquitetura. No entanto, no iniciei por a a escolha dos meus interlocutores. Eu havia conhecido Paulo Afonso Rheingantz na Califrnia. L estivemos simultaneamente, como professores visitantes, a convite de Vicente del Rio. Trocamos por l informaes sobre os nossos mtodos de estudo e de trabalho, eu trabalhando em uma linha mais configuracional, arquitetnica e urbana, e ele ento imerso nos estudos da Teoria Ator-Rede (ou Actor-Network Theory, ANT). Um aspecto particular dos estudos do Paulo me interessou especialmente ento; aquele referente ao papel e as possibilidades daquele que ele denominava como o observador incorporado, na produo do conhecimento em arquitetura e urbanismo e o valor preponderante da experincia espacial no processo de conhecer. Ao longo da minha estada observando o centro do Rio como um laboratrio da urbanstica, dei-me conta de o quo insubstituvel esse modo de apreender a realidade, mtodo esse em geral desprezado pelos arquitetos, focados em desenhos, fotos e modelos. Foi ali que desenvolvi o que passei a chamar de mtodo do observador.

    Convidei na sequncia a participar do grupo o meu colega de faculdade e velho amigo Romulo Krafta, com quem mantenho um dilogo criativo nos temas da arquitetura e da vida em geral desde h muito. E foi por indicao do Romulo que convidei a participar da nossa @conversa Vinicius Netto, que eu havia conhecido como estudante de graduao trabalhou no estilo de Zaha Hadid quando passou por minha disciplina na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e tambm como barman em um vero j distante na Praia da Ferrugem em Santa Catarina. Vinicius havia passado pela Bartlett, UCL, fez seu doutorado com Bill Hillier, e me parecia ento apenas uma participao oportuna. O que eu no sabia ento era o quo essencial viria a ser a participao dele, Vinicius, com seu conhecimento e relacionamento, na ampliao e animao da nossa rede @urbanidade de pesquisadores, sala digital de bate-papo. Participaram ainda desse ncleo inicial o meu colega de faculdade Julio Vargas, outro estudioso da urbanidade e da morfologia urbana, e Luciana Andrade, que me foi apresentada pelo Paulo e havia mostrado interesse no tema. Conversamos sobre o trabalho que havia feito em Berlim, sobre o seu trabalho na Rocinha, e sobre as similaridades observadas por ela nas espacialidades daqueles lugares aparentemente to diferentes. Mais tarde chegaram ao grupo, via Vinicius, os professores Lucas Figueiredo, outro arquiteto-cientista, e o professor Frederico de Holanda, o estudioso da sintaxe espacial mais conhecido em nosso meio, completando assim o que veio a constituir o grupo original da rede. E foi ento que, por sugesto do Vinicius, esse grupo de pesquisadores produziu o conjunto de artigos que veio a constituir esse livro, inicialmente com o objetivo de compor uma das mesas voltada ao tpico da urbanidade nas sesses temticas do Enanparq, o primeiro encontro nacional dos programas de pesquisa em Arquitetura e Urbanismo, que estava para acontecer no final de 2010 no Rio de Janeiro. Tivemos nesse primeiro Enanparq uma rica e divertida mesa e os artigos ento apresentados vieram a resultar, aps algum

  • aprimoramento, no contedo do presente volume. Boa leitura a todos!

    INTRODUOO que , afinal, urbanidade? Notas sobre um dilogo tortuoso

    Vinicius M. Netto e colegasA espacialidade o gravitas em torno do qual o social orbita e a vida urbana

    pulsa, o lugar onde habitam e convergem sua ancoragem. Mas o que dizer da urbanidade? Seria a urbanidade um efeito e expresso desse jogo e dessas pulsaes?

    Meus colegas neste livro dificilmente concordariam plenamente com essa definio inicial ou qualquer outra, provavelmente achando-a incompleta, parcial, uma projeo mais dos interesses e limitaes de um autor ou de sua viso da cidade que o incio de uma descrio adequada da propriedade nica que a urbanidade. No entanto, dificilmente discordaramos da impresso de que urbanidade uma propriedade robusta, chave; uma propriedade que parece enderear o corao da vida urbana e suas condies. Mas pouco mais do que isso comum nas aproximaes da urbanidade que veremos a seguir. A urbanidade parece to elusiva e difcil de entender quanto a prpria cidade (e como poderia ser diferente?). uma essncia do urbano? uma qualidade das pessoas nos lugares, dos lugares em si, ou ainda das relaes entre estes? Se ela habita a relao e no as coisas, qual seu modo de existncia? O que inclui e exclui em seu campo de possibilidades como experincia ou como fato urbano? Ela se manifestaria entre atores ou existiria l fora, impressa nas espacialidades em que vivemos?

    Por seu poder evocativo quanto a qualidades e dimenses do urbano, por se tratar de um dos aspectos mais abrangentes da condio da vida urbana, ou pela multidimensionalidade do urbano em si, tal propriedade parece convidar construo de conceitos que correspondam ao que reconhecemos na cidade, ao mesmo tempo em que parece resistir tenazmente a tais esforos de definio.

    Talvez uma das origens da dificuldade de definio de urbanidade possa ser relacionada com sua gnese em uma espcie de universalidade que subjaz tanto propriedade quanto conceito, ao menos inicialmente urbanidade, desdobramento do urbano, termo que define qualquer cidade ou o modo de vida nas cidades, em oposio a outras espacialidades, como a rural ou aquelas das sociedades no urbanas. A tenso posta no cerne de uma propriedade com essa aparente raiz universal, mas que emerge distinta em distintos contextos ser um dos obstculos que qualquer um enfrentar no esforo de definir urbanidade. E desconstruir esse suposto a priori universal latente na definio original de urbanidade ser parte do trabalho de alguns dos autores a seguir, exercitado pelo menos inconscientemente no confronto com cidades de diferentes culturas, razes e manifestaes distintas da urbanidade. Enquanto outros daro seguimento, conscientemente ou no, a ideias e formas de urbanidade que atravessariam contextos para encontrar assim como cidades existem em diferentes contextos o que confere este esprito urbano especfico, distinto daquele que emerge em espacialidades geradas em sociedades no urbanas.

    Como sinalizado acima, o presente livro trar as contribuies de um grupo de pesquisadores engajados na discusso da urbanidade, das formas de captur-la teoricamente e metodologicamente e da prpria possibilidade de sua captura e entendimento. Essas contribuies foram inicialmente elaboradas para o Simpsio Temtico Urbanidades no I Enanparq. Tivemos adiante a incluso de Marcele Trigueiro

  • (com trabalho sobre urbanidade apresentado em outro simpsio temtico no mesmo evento), que veio a juntar-se a nosso projeto do livro substituindo Alice Rauber, ento envolvida em sua concluso de dissertao e sem condio de seguir a uma prxima rodada de discusso e reviso coletiva. A reviso dos trabalhos para esta coleo ainda viu Douglas Aguiar substituir a posteriori seu texto original, que descrevia derivas no centro do Rio, por este aqui includo, mais terico.

    Um dos nossos objetivos levar a pblico os resultados de um confronto explcito entre pontos de vista (veja nosso eplogo Aproximaes da urbanidade um dilogo eletrnico) em uma diversidade de abordagens desde a fenomenolgica e ciberntica ontolgica, passando por leituras morfolgicas, sociolgicas e sistmicas. Perguntas como essas surgiram logo nos primeiros momentos do nosso debate:

    O que urbanidade? Ao que se refere? Qual a especificidade da experincia e da vida urbana? No que ela se diferenciaria de outras formas de vida em sociedades e espaos no urbanos?

    Qual o papel da morfologia arquitetnica e urbana? Haveria uma condio espacial para a gerao da urbanidade? Quais as relaes entre escalas e o problema da representao do espao no entendimento da urbanidade?

    Quais so as interfaces e interdependncias de humanos e espaos que definiriam urbanidade? Quais as relaes entre urbanidade e comportamento social nas cidades? Quais as causalidades, no linearidades e contingncias em jogo? Qual a possibilidade de diferentes lugares de urbanidade ou diferentes urbanidades?

    A possibilidade da urbanidade enquanto conceito ontolgico: o sublime da noo de urbanidade; a urbanidade como desdobramento e efeito, ethos e devir do urbano; as dimenses da urbanidade para alm do espacial e para alm do experiencial.

    Quais as limitaes dos discursos eruditos e os modos de experincia da urbanidade: urbanidade para quem? A gerao espontnea da urbanidade; desurbanidade: qual a relao entre urbanidade, a produo do espao segregado e a cidade contempornea?

    O debate em torno do tema tomou algo como trs anos at chegar a essa coleo de textos, e foi iniciado quando nosso colega Douglas Aguiar fez dele seu tema de pesquisa e aproximou alguns colegas vivendo no Rio de Janeiro e Porto Alegre. De um encontro presencial de alguns de ns em uma caminhada pelo centro do Rio e suas espacialidades diversas (podemos dizer urbanidades diversas) em 2009, seguimos discutindo por mais de um ano em dezenas de e-mails provocativos, com novos interlocutores sendo adicionados medida que o debate transcorria. Estabelecemos de sada uma tica da crtica como exerccio de cortesia e polidez acadmica: a crtica franca e aberta como gesto de apreciao pelo trabalho do colega. Essa a cortesia da crtica: a da no condescendncia e da recusa da busca de reafirmao de laos e posies que pouco adicionam qualidade intelectual dos argumentos e pouco servem para avan-los. Optamos pela diferena e choque de ideias lembrando irreverentemente Durkheim, uma forma de solidariedade mais orgnica que mecnica: mais apoiada nas diferenas de pontos de vista (e portanto possveis complementaridades enriquecedoras) que na busca de similaridades fceis e da homogeneidade de discursos que parece pautar muitas das prticas de pesquisa no Brasil.

    Durante nosso debate e nos momentos de crticas mtuas aos textos, pude observar nossas interaes e chegar a uma espcie de pequena sociologia da pesquisa.

  • Em momentos o dilogo chegou ao limite da quebra de comunicao; testou a inteligibilidade dos argumentos e a condio de abertura para entender o argumento alheio. Eventualmente pareceu a mim que mesmo para pessoas dedicadas a descrever e falar sobre a cidade, a capacidade de entendimento mtuo fraturava em pontos. Posies pessoais distintas pareciam insensveis ao argumento e crtica do outro. Seguiu nessas vezes uma frustrao sutil da ininteligibilidade da comunicao, essa espcie de paradoxo, dado que a comunicao exatamente um fenmeno de arguio e entendimento mtuo: como pode a comunicao se tornar ininteligvel? O fato que a comunicao esbarra de quando em quando em barreiras e sofre quebras. Entendo que, nesses momentos, estudiosos da questo urbana supostamente preparados para reduzir sua parcialidade e dotados de certa racionalidade em seus discursos so no fundo sujeitos s mesmas fixaes daqueles que defendem ideologias ou mesmo religies. Os edifcios de suas vises do urbano, racionais em sua construo, so assentados sobre um cerne de ideias centrais, e essas ideias expressam vises bsicas de mundo. Em outras palavras, definies compostas a respeito de coisas como urbanidade so produzidas como articulaes de ideias sobre modos de funcionamento ou operao do mundo, que por sua vez enrazam-se em elementos de entendimento e posicionamento bastante fundamentais de cada sujeito frente realidade que se apresenta.

    Esses elementos de entendimento sequer so ideias no sentido de poderem ser explicitados. So antes fundaes da compreenso pessoal, pontes fundamentais entre sujeito e mundo, como chaves originais de interpretao profundamente associadas a itens de outra natureza: so orientadas por valores e sensibilidades a certos fatores, mais que a outros. So atenes fundamentais movidas e orientadas tambm por afetos. Como pressupostos que no podem ser expostos crtica ou sujeitos mudana (e essa abertura um princpio da racionalidade da comunicao segundo o kaiser da filosofia alem e da teoria social da comunicao, Jrgen Habermas), ganham antes a forma de axiomas quase inconscientes, beirando o no discursivo, e certamente ancorados no no discursivo. Como certezas ntimas repletas de motivao, so componentes essenciais para a prpria segurana ontolgica do sujeito em seu esforo de entender e atuar no mundo volta (creio que muitos de ns percebem que o esforo de entender e atuar no mundo no tarefa fcil). Esse fundo de convices e valores, que constituem uma viso de si no mundo e pautam as construes racionais que o explicam para o sujeito, no pode ser questionado ou mudado facilmente: essa mudana pode colocar o sujeito em crise, abalar as fundaes sobre as quais ele estrutura seu prprio situar-se no mundo.

    E por isso a mudana nas nossas posies sobre um tema se mostra to difcil: a crtica contundente de uma ideia ou definio pode ressonar com sentido at atingir esse cerne, inquestionvel, para ser ento rechaada por ele. Portanto, e isso no naturalmente positivo, pesquisadores tampouco mudam suas posies. No mximo, flexibilizam as ideias compostas mais perifricas, que podem ser avanadas, mudadas e sofisticadas a partir da crtica. No fundo do raciocnio, entretanto, temos colunas que no podem ser movidas. H uma ininteligibilidade habitando o centro do esforo do entendimento, da argumentao e da prpria inteligibilidade da comunicao. Estes alicerces cognitivos so equivalentes aos dogmas. Terminamos dogmticos; esbarramos em muralhas de ideias. Esses itens tendem a colocar todo tipo de trava comunicao. Entendo que precisamos ficar atentos a esses fundamentos e s cegueiras que eles impem ao entendimento pleno dos temas e do ponto de vista do outro, se o objetivo

  • avanarmos na comunicao e na nossa prpria atuao.Os pontos de dificuldade de entendimento mtuo se tornaram eventualmente

    pontos crticos na comunicao, onde o projeto do dilogo em si, o esforo coletivo, poderia ou quebrar ou seguir adiante em outro patamar. Como disse, passamos por dois ou trs momentos onde o dilogo pareceu chegar a seu limite. Fiquei bastante satisfeito ao atravessarmos essas bifurcaes e avanarmos na construo dos entendimentos individuais, mas at certo ponto mtuos cada um sobre seu prprio trabalho, mas agora tambm sob a tnue luz alocntrica da perspectiva do outro sobre nosso prprio trabalho individual. Creio termos conseguido, na persistncia das tentativas do dilogo e da exposio dos nossos argumentos, entender (lembrando Foucault) o lugar de onde o outro fala: qual o ponto de vista dos colegas em seus trabalhos. E algo ainda mais difcil, mesmo entre acadmicos (ainda que essa constatao soe grave): conseguimos certo grau de apreciao por outras abordagens. Ainda que, evidentemente, nenhum autor tenha cedido a aparente prioridade de sua abordagem ou o privilgio epistemolgico assumido de sua perspectiva em comparao a dos demais.

    Estamos irremediavelmente presos na ironia de uma circularidade lgica: a de usar essencialmente os mesmos critrios para produzir e para julgar a prpria ideia ou obra. Assim, cada um, em seu ntimo, sente ter encontrado a abordagem mais adequada. Isso parece inevitvel tambm por outro motivo demasiadamente humano: parte (lembrando novamente Foucault) da vontade de saber, legtima, e ainda da confiana de todos na sua leitura e abordagem, guiados pelo punhado de noes e axiomas centrais que nos orientam, e colhidos em todo tipo de circularidade. Uma confiana irredutvel em sua essncia, uma absolutizao pessoal de abordagens decorrentes da nossa proteo em torno daquelas noes fundamentais de mundo algo que compartilhamos, no fundo, com os que defendem modelos ou religies. Ironicamente, a fixao das atenes e a linearidade do raciocnio significam que ver algo deixar de ver tantas outras coisas. Ver tambm nos faz cegos.

    O que s enfatiza a relevncia da eventual contaminao de ideias, mesmo que perifricas, na formao de conceitos pessoais e na transformao dos discursos. O dilogo a nica coisa capaz de nos retirar das circularidades, das redues do raciocnio, dos pontos cegos. Ao menos de quando em quando, trabalhos a seguir incorporaram mudanas ou reconheceram contrapontos e portanto, limites. Esses foram os mais bem-sucedidos dentro do propsito da nossa construo dialgica. Quando isso acontece, temos mostras de que o dilogo e a utopia da comunicao plena valem seus esforos.

    Vejamos os resultados dessas trocas. As breves descries abaixo dos textos aqui reunidos na forma de captulos fazem uso dos sumrios dos prprios autores, de seus textos e do meu entendimento de seus trabalhos.

    Em A urbanidade como devir do urbano, discuto urbanidade como um dos conceitos mais ambiciosos sobre a condio urbana da vida coletiva e da nossa experincia. Construo uma reflexo sobre as dimenses da urbanidade a partir da aproximao entre duas reas ainda estranhas entre si: os estudos urbanos e a filosofia. Afinal, se urbanidade uma forma de experincia, precisamos buscar aqueles que falam de experincia como ningum na filosofia de modo a entendermos a especificidade da experincia urbana em relao experincia como um todo ou as possibilidades da experincia do mundo. Lembrando o conceito de senso comum da

  • urbanidade como civilidade do convvio urbano, desdobro, uma a partir da outra, uma srie de definies de urbanidade (a imagem do origami, as formas dobradas japonesas, me vm mente). Reconhecendo a fora da diferenciao social, inicio pela ideia da experincia do mundo e do outro mediada pela cidade e espacializo a bela expresso de Chakrabarty, a copresena dos diferentes modos de ser. Proponho um papel integrador da urbe na forma de trs momentos da urbanidade: o momento fenomenolgico (nossa experincia em comum a partir da cidade), o comunicativo (a cidade como ambiente para nossas interaes simblicas) e o ontolgico (o papel das cidades na ligao entre humano e material, entre nossas prticas e a moldagem da materialidade do mundo volta na forma das cidades).

    Veremos abaixo (sobretudo no eplogo a este livro) que o papel do espao na urbanidade um item controverso a ponto de se questionar se o espao teria qualquer papel na urbanidade, numa viso da urbanidade como um comportamento, como a noo de senso comum sugere (e aqui est o perigo em se limitar a tais noes e ignorar um dos papis do conhecimento exatamente em alargar os sentidos do senso comum). Argumento que a definio de urbanidade deve manter o espao como dimenso ativa, sob o risco de desespacializarmos a noo e retirarmos componentes espaciais que possam estar ativos, mesmo que livres de relaes causais. Tanto a urbanidade no poderia ser induzida pelo espao apenas como no emergiria em qualquer condio espacial. Argumento que a investigao da urbanidade deve esclarecer as condies entre esses extremos.

    A propriedade incluiria assim as conexes entre nossas prticas em comum e o espao, a efervescente ontologia de relaes e interaes mediadas pela cidade. Desse modo, avanos no esclarecimento do que a urbanidade implicariam em avanos tambm no entendimento da prpria relao sociedade-espao.

    Argumento ainda que se a urbanidade um fenmeno produzido nas relaes entre o social e o espacial, diferenas em socialidades e espacialidades se colocariam como fontes de diferenas de urbanidade. Entender tais diferenas se coloca, portanto, como um dos problemas centrais no entendimento das urbanidades (decididamente no plural).

    Como alguns de meus colegas sugeriro, o reconhecimento das diversas formas de urbanidade envolveria, desse modo, a incluso de toda e qualquer forma de vida urbana. No obstante, essa concluso a princpio com sentido nos levaria a incluir na urbanidade mesmo as socialidades hostis, o distanciamento social, a quebra de comunicao, os espaos de violncia e represso. Uma ideia de urbanidade nesses termos entraria em contradio com a riqueza tica da definio original de urbanidade, amparada na civilidade do convvio. Proponho uma sada para tal contradio: o reconhecimento de que a urbanidade, em sua diversidade, est associada a um ethos urbano, uma condio para a vida coletiva. Essa definio tem o potencial de reconhecer na urbanidade aspectos tanto materiais quanto ticos: um ethos da orientao ao Outro (Heidegger) baseado em princpios como a comunicao livre de coero (Habermas) e o bem-vir s diferenas mais que o tolerar as diferenas (Derrida). Trata-se de um conceito certamente analtico , amplo o bastante para reconhecer a centralidade da coexistncia e da comunicao e sua condio tica, algo que escapa a formalizaes da ideia de urbanidade. Esse conceito colocar tais aspectos como um horizonte da vida urbana: a urbanidade, convergncia das alteridades, como o devir do urbano.

  • Em Urbanidade e a qualidade da cidade, Douglas Aguiar explora o conceito de urbanidade como o carter do urbano em suas diferentes dimenses: uma diversidade de definies de urbanidade, iniciando pelos espaos com urbanidade so espaos hospitaleiros e a definio de urbanidade como o conjunto de qualidades, boas ou ms, que constituem as cidades. Entende que as cidades tm mltiplas caractersticas e todas, em conjunto, compem sua urbanidade. As pessoas, o corpo, interagindo com os espaos das cidades, em qualquer circunstncia so tidas como o parmetro da urbanidade em suas intensidades e gradaes. Aguiar busca ecos da urbanidade nas definies de Jacobs sobre vitalidade e diversidade, e em Lynch sobre legibilidade, continuidade dos espaos e a sinestsica do movimento no espao urbano para entender que a urbanidade estaria nesse modo de apropriao da situao pelas pessoas.

    Essas incurses preparam o caminho para encontrar em Tschumi e, sobretudo em Hillier, traos mais decisivos das condies da urbanidade manifesta socialmente, na forma da comunidade virtual (a materializao de uma sociedade ou populao na forma de encontros, sobretudo entre habitantes e estranhos, no espao pblico), e espacialmente, na axialidade do movimento do corpo. As pessoas, ainda que no de modo consciente, relacionariam-se naturalmente com as condies da urbanidade manifesta no modo como a cidade acolhe o corpo (a urbanidade est no modo como a relao espao/corpo se materializa). Aguiar tem como premissa a ideia de que a cidade seria, em princpio, um abrigo, maior ou menor, melhor ou pior, e tem portanto, em qualquer caso, urbanidade, de algum tipo e em algum grau.

    Da ideia da urbanidade latente nos modos de apropriao e no modo como o espao recebe o corpo individual e coletivo, sua abordagem chega definio da urbanidade como uma qualidade da forma ou das formas; trata-se de algo essencialmente material, ainda que repercuta diretamente no comportamento e no bem estar das pessoas no espao pblico. Este caminho termina de fato em Hillier e sua nfase no espao como gerador da copresena, passando ainda pela crtica da definio de Holanda no par formalidade-urbanidade, chegando finalmente afirmao da importncia da estrutura da cidade, ou mais precisamente, da sua dimenso global ou estrutural e sua dimenso local na produo das condies da urbanidade. Prope que a dimenso estrutural da cidade, e portanto da urbanidade tende a estar relacionada com a vitalidade dos espaos entendida como a presena maior ou menor de pessoas. Considera, em paralelo, a dimenso local, na escala de cada um de seus espaos e a constituio dos espaos, a intensidade de ligaes entre interiores privados e espao pblico, a geometria das formas construdas, dos espaos abertos e mais elementos que compem a unicidade de cada situao urbana.

    Aguiar considera que essas duas dimenses estaro sobrepostas em cada espao da cidade (a urbanidade inerente s diferentes escalas do espao pblico). Finalmente, temos nas condies tanto locais quanto estruturais do espao urbano em seu acolhimento ao corpo a definio da urbanidade como um parmetro maior, e abrangente, na avaliao da qualidade dos lugares.

    Em Pacificao da cidade: a urbanidade legitimada, Marcele Trigueiro traz uma discusso bem amparada teoricamente sobre a relao assumida de causa e efeito entre qualidade urbanstica e qualidade social no centro das aes das autoridades responsveis por transformaes nos espaos do grand ensemble Les Minguettes, em Lyon (Frana): qualquer que seja o grau de interveno na esfera construda, a

  • interferncia sobre o espao pblico inevitvel. Seu trabalho aponta a relao entre os fabricantes da cidade (representantes polticos, funcionrios das municipalidades, arquitetos e urbanistas autores dos projetos etc.) e o pblico urbano em torno do prprio espao. Trazendo um conceito que merece mais ateno nos estudos urbanos o de anomia, de Durkheim para examinar o caso da suposta degradao social de um grande conjunto residencial na Frana e o papel do espao na gerao da coeso social, a autora tem como foco maior os limites das intervenes e projetos urbanos e da prpria configurao espacial em impactar socialidades e comportamentos.

    Trigueiro examina as premissas e a agenda das intervenes urbanas em sua promulgao de um retorno ao estado urbano normal e do restabelecimento da coeso social e as aes urbansticas empreendidas nestes setores a partir do momento em que a crise urbana interpretada como uma crise da coeso social: a pesquisa captura expresses de solidariedade social entre os habitantes, a partir de tticas que se desenvolvem na esfera privada (no seio da famlia e entre amigos), a fim de compensar as carncias de um sistema social e associativo considerado ineficaz. E nos traz uma reflexo sobre as condies de urbanidade resultantes de tais transformaes, ou a capacidade que os espaos pblicos urbanos tm de oferecer possibilidades em prticas urbanas e estimular o processo de acionamento de outros inmeros objetos e usos, os espaos pblicos urbanos e sua anlise dos espaos pblicos como instrumentos da urbanidade.

    A anlise do conjunto residencial em Lyon e do exame dos padres de apropriao do espao e dos lugares de uso e sociabilidade da populao residente leva a concluses tericas de interesse em outros contextos, bem como de interesse no reconhecimento das relaes entre sociedade e espao: [i]mprescindveis para a elaborao da urbanidade, as sociabilidades urbanas se alimentam do acaso inerente atividade social urbana no programada, da experincia da diversidade, do aprendizado da tolerncia, em suma, do conflito social que o espao pblico tem a capacidade de promover. Sua anlise leva a interessantes observaes, como a objetivao da solidariedade social em parte responsvel pelo processo de individuao e de autonomia urbana que torna possvel a urbanidade.

    Outro item fresco de sua anlise urbana a relao entre o uso dos dispositivos tcnicos e espaciais do urbano (os DSTU) que interligaria pblicos e objetos: o ordenamento dos espaos pblicos parece valer enquanto expectativa de comportamentos e os dispositivos tcnicos, que os espaos pblicos renem, parecem constituir possibilidades concretas de ao, oferecendo alternativas em termos de prticas sociais. Esses dispositivos tcnicos e espaciais teriam o potencial de favorecer o encontro e a convivencialidade urbana algo entretanto problematizado pela seo emprica do trabalho, que aponta um baixo ndice de presena de equipamentos no bairro associado baixa renda dos habitantes, e a prtica pouco expressiva das atividades ao ar livre. A pesquisa de Trigueiro sobre as prticas sociais da populao aponta que a qualidade espacial proposta para os dispositivos tcnicos no garantiria a mobilizao dos mesmos por parte da populao, nem muito menos a construo de uma urbanidade vlida para o bairro.

    Essa crtica da pacificao e hiper-programao espaciais latente nos projetos de interveno urbana denuncia sua frequente ineficcia em estimular a sociabilidade urbana, ao falharem em capturar a essncia da vida social no espao pblico como a

  • aleatoriedade dos encontros e a sobreposio de prticas de naturezas distintas. H ainda uma relao sugerida no texto entre a ideia dos DSTU e a ideia de disposio prtica, algo que pode ser explorado no esprito de Bourdieu: os sistemas de disposio generativa (o habitus): as disposies da prtica frente s disposies tcnicas e espaciais. O estudo emprico mostra evidncias, na forma de anlises de quantidades e lugares de encontro social e de usos de lugares, da coliso entre essas disposies espaciais projetadas e as disposies dos habitantes. E nos deixa imaginando o que poderia oferecer uma anlise similar das relaes entre expectativas de reverso de quadros de anomia social (supostos ou reais), intervenes concretas e a vida social e suas condies espaciais nos assentamentos precrios, objetos de polticas de pacificao na cidade do Rio de Janeiro.

    Em Impresses digitais da urbanidade, Romulo Krafta localiza explicitamente a urbanidade na forma urbana e adiciona um aspecto da urbanidade ausente ou assumido como no problemtico em outras abordagens do tema: a urbanidade historicamente produzida. [A] tenso histrica uma fora inerente cidade, resultante da diferena de velocidade da evoluo dos costumes e necessidades (rpida) e das estruturas fsicas (lenta), que faz com que todo indivduo viva literalmente numa cidade que demanda constante adaptao. Krafta oferece uma viso da produo de urbanidades amalgamadas no tempo por meio do espao urbano: o exame das caractersticas de cada objeto luz de suas pr-existncias pode indicar (assumindo que toda ao de produo pressupe algum cdigo de urbanidade) como a urbanidade implcita na construo da cidade era entendida no momento de sua produo.

    A urbanidade inicialmente proposta como uma relao reconhecidamente virtuosa entre pessoas, no meio urbano, que ns arquitetos pretendemos estender para uma relao entre pessoas e o meio urbano. Isso implica que o meio urbano participaria da urbanidade de duas formas : como suporte das prticas interpessoais e como resultado de prticas virtuosas na sua prpria produo. Na primeira situao, o meio urbano teria potencial para despertar, facilitar, ou, ao contrrio, dificultar, inibir prticas interpessoais virtuosas. Na segunda, o meio urbano seria o testemunho de prticas virtuosas (em menor ou maior grau) do passado, como que congeladas e expostas no presente (mesmo distantes no tempo, indivduos estaro dialogando atravs dos objetos que inserem na manufatura urbana). Considerando a natureza cumulativa da produo do meio urbano, uma espcie de trabalho colaborativo atravs do tempo, virtualmente todo lugar urbano seria resultado da acumulao de diferentes urbanidades do passado, todas amalgamadas e ainda operando no presente como suporte a prticas interpessoais: a interao entre agentes urbanos leva produo de uma estrutura (a cidade) que, uma vez produzida, incorporada como limitadora de futuras interaes por muito tempo. A inteireza desse circuito se completa com a adio, no presente, de novas urbanidades.

    Krafta argumenta que ao menos duas tentativas tericas de abarcar esse fenmeno so conhecidas: a Morfognese de Conzen e a Inter-Representation Networks (IRN), de Haken e Portugali. Conzen se limita a descrever lgicas de agenciamento do espao urbano, associadas a momentos histricos e possivelmente indutoras de formas urbanas particulares (leia-se urbanidades particulares). Haken e Portugali, mais ambiciosos, buscam unificar dois campos tericos, da produo da cidade e da cognio espacial. Sua proposio estabelece vnculos operacionais entre a memria (vista como representao interna de um fenmeno concreto) e cidade (vista como representao externa da

  • memria). Seu trabalho explora duas possibilidades de reconhecer a urbanidade, propiciadas pela teoria IRN: o conceito evolvente de urbanidade, e a compresso temporal de padres de diferentes momentos do passado, operantes no presente, ambas inter-relacionadas. Krafta estende essa leitura temporal s aes de produo do espao urbano, propondo que a urbanidade da forma passa a depender de trs pressupostos: situaes onde (a) os diferentes objetos que a compem derivam de aes de diferentes indivduos, (b) os diferentes objetos que a compem so diacrnicos, (c) a interao entre diferentes objetos ocorre como ato de vontade, portanto fora dos constrangimentos impostos pelos diversos protocolos que regem a produo da cidade. Assim, qualquer interface entre diferentes objetos de diferentes autores pode ser considerada manifestao de urbanidade. A aferio da urbanidade contida em cada lugar fica, assim, associada possibilidade de se identificar essas diferentes pautas e suas interferncias, tanto do lugar quanto da cidade como um todo.

    Em seguida, tipos de urbanidade da forma so definidos o mais complexo sendo aquele que emergiria da diversidade da forma arquitetnica. O primeiro tipo seria expresso atravs da insero de sucessivos objetos visando homogeneidade e envolve a tentativa de contornar a tenso histrica atravs da emulao de regras de convivncia entre objetos urbanos produzidos em tempos diferentes. Seu segundo tipo, expresso atravs da insero sucessiva de objetos, formando uma diversidade de domnios locais homogneos, envolve um compromisso com a tenso histrica pela justaposio de fragmentos internamente homogneos, mas diferentes entre si. Criando diversidade, a cidade sempre aumenta sua capacidade de prover suporte para mais gente, mais atividades e mais interao. O terceiro e ltimo tipo, a urbanidade da forma expressa atravs da insero sucessiva de objetos que alteram a composio pr-existente e constroem uma nova ordem, envolve a constante adaptao da cidade aos requerimentos das pessoas e das instituies. Esta, embora aparentemente selvagem e oposta ao sentido comum de urbanidade, seria a urbanidade possvel e necessria continuidade do processo urbano. Krafta tem sido um crtico dos esforos do planejamento e do projeto, para os quais interessa menos entender o mundo que modific-lo: objetos e arranjos urbanos so duradouros, logo, no deveriam ter em vista apenas a dimenso local e momentnea da interao entre agentes envolvidos. Uma vez mais as noes de superposio, de fronteiras porosas, de ruptura da unidade parecem ser as melhor associadas noo de urbanidade.

    Em Narrativas outraduesde urbanidade, Paulo Rheingantz examina a urbanidade luz dos princpios da Actor-Network Theory (ANT) desenvolvida por Bruno Latour e John Law, entre outros, e da dificuldade de seu enquadramento enquanto discurso cientfico. O que particular na leitura de Rheingantz sua resistncia ideia de que o raciocnio, e por extenso, a linguagem, so capazes de capturar o que a urbanidade evocando regularmente a importncia da experincia das coisas frente interpretao ou entendimento das coisas, e a impossibilidade da experincia ser descrita. A exemplo da doura do acar, Urbanidade uma relao de um coletivo que resulta das relaes e interaes entre os humanos e os no humanos o ambiente, os materiais, o clima, a cultura e a esttica e seu entendimento depende diretamente do contexto vivencial de nossas experincias.

    Essa posio derivada de um conjunto diverso de autores e matrizes da fenomenologia da percepo e a defesa do sincretismo de Merleau-Ponty ciberntica de

  • Maturana e Varela. Rheingantz argumenta que o ambiente urbano contm dois ngulos diferentes: o da materialidade de seu espao fsico, configurado pelo conjunto de elementos no humanos naturais e construdos e pelo conjunto de elementos humanos que os habitam: seus valores, seus afetos, suas emoes. Existem cidades e lugares que nos emocionam, que provocam nossa imaginao, que nos acolhem; tambm existem cidades e lugares que nos provocam mal-estar ou um sentimento de estarmos em um no lugar. Estes sentimentos de Urbanidade surgem durante nossa relao com as cidades e lugares. Eles so nicos, e no podem ser traduzidos ou representados por palavras.

    O autor centra o tema da Urbanidade (com letra maiscula) tanto na esfera da experincia do sujeito quanto nas relaes simtricas entre humanos, objetos, artefatos e espaos. Uma vez aceita a possibilidade da Urbanidade ser entendida como uma experincia, no mais possvel falar dela como algo exterior a ns, passvel de ser observado com distanciamento crtico. Em funo dessa posio epistemolgica, Rheingantz opta por uma construo no dualista e no essencialista da urbanidade: uma descrio que no reconhea a prioristicamente as diferenas entre humanos e espaos, ou as diferenas entre tudo aquilo que compe e anima a vida urbana. Aqui, ele encontra suporte na nova ontologia de Bruno Latour, uma descrio capaz de fazer o que John Law chama jogar ao fogo as diferenas entre as materialidades das coisas. Seu captulo neste livro tambm pode ser visto como uma breve apresentao da ANT, j conhecida em reas da sociologia e na geografia humana fora do Brasil para um pblico mais amplo nos estudos urbanos em nosso pas. A ANT entende o mundo a partir da justaposio de elementos heterogneos que se configuram como um conjunto de experincias ou fluxos e possibilidades no deterministas.

    Vista sob a tica da ANT, a urbanidade conteria mas no se limita a materialidade e a configurao espacial de um lugar e no deve ser entendida como uma moldagem ou ordem concebida exclusivamente pelos humanos. Como a natureza da Urbanidade ocorre na sociedade, no possvel separar a natureza as coisas em si da sociedade o mundo dos homens em si. Nada na natureza independente dos homens e nada da sociedade independe da natureza. Urbanidade uma relao surgida com a urbanizao e antecede o urbanismo e suas teorias; no pode ser representada nem resumida por suas teorias. Urbanidade um mundo comum, algo que continuar a existir independentemente do que digam ou pensem os arquitetos. Assim, Rheingantz opta pela descrio no da urbanidade como efeito em si, mas de situaes a exemplo de Figueiredo, em seu texto de urbanidade e desurbanidade como elas se apresentam em um lugar especfico, a Rua Pires de Almeida, no Rio de Janeiro, entendida como um coletivo, um conjunto internamente indiferenciado, onde todos os componentes importam na produo da urbanidade em uma srie de narrativas de urbanidade.

    Em Urbanidade: arquitetnica e social, Frederico de Holanda, pioneiro do estudo sistemtico sobre urbanidade no Brasil, insere o conceito de urbanidade numa discusso mais ampla sobre taxonomia scio-arquitetnica, que implique compreender tipos de sociedade e tipos de arquitetura. Holanda defende a necessidade de uma descrio precisa e verificvel tanto da urbanidade quanto do espao (ou arquitetura, como prefere). Podemos falar em urbanidade social quando os atributos estiverem relacionados a modos de interao social e urbanidade arquitetnica quando os atributos estiverem relacionados ao lugar. Prope urbanidade como um atributo social que implica visibilidade do outro, negociao de papis e frgil fronteira entre eles,

  • mobilidade social, estruturas societrias mais simtricas etc. Para seu florescimento, a urbanidade precisaria de uma arquitetura com

    determinados atributos: espao pblico bem definido, forte contiguidade entre edifcios, frgeis fronteiras entre espao interno e externo, continuidade e alta densidade do tecido urbano etc. Aponta que, contudo, a relao entre arquitetura e urbanidade no de determinao, mas do estabelecimento, pela primeira em relao segunda, de possibilidades (que podem ou no ser exploradas) e de restries (que podem ou no ser superadas), segundo as circunstncias.

    Holanda relembra seu paradigma da formalidade e o paradigma da urbanidade funo, simultaneamente, de atributos sociais e de atributos arquitetnicos, e a utilidade do binmio para entender sociedades e espaos de outros tempos e culturas, permitindo estudos comparativos, e a possibilidade de us-lo como um parmetro para o projeto e diferentes escalas urbanas ou arquitetnicas. A urbanidade uma qualidade objetiva de uma certa vertente scio-arquitetnica (h outra vertente: a da formalidade) que transcende tempo e espao . Exemplos ilustram: 1) lugares construdos restritivos que a indisciplina social transformou no tempo, visando o resgate da urbanidade; 2) lugares onde, mantido um mesmo espectro social, uma nova configurao implicou novos padres de usos; 3) espaos propcios urbanidade e que, no tempo, tornaram-se desertos em razo de mudanas de valores sociais. Holanda segue para desenvolver anlises de um nmero de reas: Vila Planalto e Esplanada dos Ministrios (Braslia), em breves comparaes com espaos como Teotihuacan, Ouro Preto e Siena; Nova Iorque (cuja estrutura urbana foi projetada no Maranho) e a casa do prprio autor estudos que exemplificam o uso dos conceitos formalidade e urbanidade em vrias escalas e em vrias instncias.

    Finalmente, Holanda argumenta que, mesmo em uma sociedade contempornea de valores hegemnicos antiurbanos, haveria uma contnua guerra pelo resgate da urbanidade, exemplificado em inmeras batalhas, muitas perdidas, algumas vitoriosas.

    Onde est a urbanidade: em um bairro central de Berlim ou em uma favela carioca?, Luciana Andrade busca a concretude do que urbanidade, e mostra, sem a frequente vitimizao, a situao de urbanidade da populao de uma rea precria icnica na Amrica Latina, e sua relao sociedade civil como um todo em contraste com a expresso de urbanidade aparentemente to plena no bairro da capital alem. Andrade acredita que o confronto entre estes dois bairros, to diversos, contribuir para ampliar as possibilidades de compreenso de urbanidades distintas, o que pode ser rico para a construo e tambm a desconstruo de conceitos que permeiam esse termo. A Rocinha em sua intensidade extremamente dinmica, tanto das interaes humanas quanto do espao construdo, e Schneberg, com regras claras e pblicas de produo do espao edificado e de convivncia social, muito podem falar sobre esse tema caro e controverso para arquitetos-urbanistas. Entretanto, de modo muito interessante, a narrativa de Andrade das suas vivncias, impresses e caractersticas nessas duas reas to emblemticas, termina por reverter-se ao longo de suas experincias e reflexes.

    Andrade utiliza a noo de urbanidade num contexto terico que considera fundamentais os estudos que analisam as cidades sob vrios enfoques. Compartilha teorias que tributam ao fenmeno urbano uma complexidade que envolve, pelo menos, seus aspectos polticos, sociais e fsico-formais. As anlises de Andrade esto estruturadas numa trama de conceitos embasadores do debate da urbanidade.

  • Considerando a importncia do senso comum para estudos que envolvam a sociedade, um destes conceitos fundamentais seria o de civilidade: a ideia de processo civilizatrio, incluindo aqueles fatores que levaram a uma maior liberdade e cordialidade dos hbitos nas relaes de sociedades urbanas (a partir de Elias).

    Outro princpio caro urbanidade decorreria do fato que a civilidade demanda uma indiferenciao da destinao dos gestos corteses. O ser capaz desta civilidade impessoal seria o homem pblico na modernidade. O homem pblico pde ser constitudo em espaos onde era possvel o convvio da diferena e onde os pactos sociais eram ligados a princpios de democracia. Assim, ao refazer percursos nas ruas de Schnemberg e nas vielas da Rocinha analisando suas prticas scio-espaciais, Luciana Andrade confronta-se com as formulaes de Sennett e Elias discutindo o carter da(s) urbanidade(s) encontradas nestes espaos.

    Finalmente, Desurbanismo: um manual rpido de destruio de cidades, ttulo espirituoso de Lucas Figueiredo, argumenta que o crescimento e adensamento das cidades brasileiras nas ltimas dcadas no foi simplesmente desorganizado ou aleatrio. Obedeceu, predominantemente, a uma lgica de produo de tipologias arquitetnicas, espaos e sistemas de transporte que privilegiam alguns poucos modos de vida em detrimento de todos os outros. O desurbanismo aqui descrito como a destruio das relaes entre o pblico e privado, a negao dos espaos pblicos, o crescente uso do automvel, o enclausuramento, dentre outras foras, tendncias e estruturas que separam pessoas e ideias. Se cidades so estruturas de aglomerao que facilitam encontros e a copresena e, potencialmente, interao e cooperao entre pessoas, o desurbanismo pode ser definido, ento, como uma estratgia de destruio de cidades.

    Figueiredo descreve diversas foras ou tendncias desurbanas em ao nas cidades brasileiras identificando-as como parte de um acoplamento estrutural entre modos de vida especficos e o ambiente construdo, um acoplamento que se sobrepe a todos os outros possveis atravs de diversos mecanismos de realimentao. O desurbanismo seria uma estratgia eficiente medida que esta realimentao materializa estruturas fsicas que restringem ou impossibilitam modos de vida urbana alternativos ao mesmo tempo em que resultam em vantagens cumulativas para os modos vencedores, numa espiral que produz continuamente novas tendncias desurbanas.

    A existncia de mecanismos de realimentao e vantagens cumulativas indicaria que intervenes isoladas na cidade no so capazes de reverter os efeitos do desurbanismo. Apenas uma mudana estrutural no sistema como um todo, isto , um novo acoplamento estrutural, poderia reconstituir o modelo anterior de cidade e suas urbanidades. Figueiredo examina assim as condies urbanas cruas para a converso da urbanidade em uma desurbanidade um processo que o planejamento e a produo arquitetnica e urbana no Brasil viriam a dominar com maestria e que deve ser imediatamente desmontado em um retorno a formas urbanas providas de urbanidade.

    Esses so breves sumrios das reflexes e proposies desenvolvidas neste livro, de certa diversidade, sem dvida. Na verdade, essa prpria diversidade de ideias e a necessidade de leituras distintas para entender urbanidade foi o tema do nosso debate. Recordo que, em algum momento do dilogo, coloquei ao grupo o seguinte: Nosso debate tem se estendido por mais de um ano. Em um dos momentos recentes, tocamos explicitamente no problema da natureza do conceito de urbanidade: o reconhecimento de uma multidimensionalidade do conceito, que requereria operaes tericas dentro e fora

  • de bordas disciplinares. Uma definio multidimensional no implica multidisciplinar ou interdisciplinar. Implica que se encontrou um fenmeno complexo, que exige o tatear ou aproximar por diferentes facetas. Essas facetas podem ser abordadas de dentro de uma mesma disciplina ou pelo uso de ferramentas de outras. No defendo nenhuma dessas posies como metodologia exclusiva. Defendo uma posio, entretanto: no confundir as coisas da lgica com a lgica das coisas, como diria Nigel Thrift: no podemos limitar a explicao porque h uma lgica dentro da teoria ou campo que assim se impe, obedecendo a uma coerncia interna que pode simplesmente no pertencer ao fenmeno. No podemos correr o risco de confundir a explicao com o fenmeno.

    A questo que a complexidade da urbanidade lhe inerente; ns s nos esforamos para entend-la. Em outras palavras, a urbanidade demanda ferramentas tericas para que possamos nos aproximar dela receio, sem nunca poder toc-la completamente. Evidentemente, teorias e epistemologias diferentes permitem reconhecer aspectos diferentes dos fenmenos, antes no vistos, ou invisveis em outras abordagens. Assim, a complexidade do objeto que pede lentes tericas diversas. Como individualmente tendemos a usar poucas lentes (parte de uma espcie de coerncia metodolgica, condio construda dentro dos discursos cientficos), faz sentido estarmos coletivamente engajados em entender urbanidade por diferentes abordagens e teorias. Individualmente, receio que s tocaremos partes, ou pequenas tramas dentro da trama da urbanidade. Essas tentativas so sempre uma aproximao, que podem ganhar coerncia interna e poder explicativo em relao ao fenmeno, num certo momento.

    Esperamos ter oferecido aqui um leque de lentes, leituras e aproximaes da urbanidade suficientemente frescas aos interessados no tema urbano.

    Desejamos agradecer aos organizadores do I Enanparq pelo interesse em nosso Simpsio Temtico, no qual tivemos a oportunidade de apresentar e discutir essas aproximaes presencialmente; e sobretudo Fundao Carlos Chagas de Amparo a Pesquisa (Faperj) pelo suporte para chegarmos a esta publicao.

    A URBANIDADE COMO DEVIR DO URBANOVinicius M. NettoH muitos que resistem a um certo tipo de filosofia. Eles a acham difcil de

    apreciar abstrata, e aparentemente sem grande valor prtico. Ela lhes parece um vago e obscuro nonsense. Sempre houve, nas vrias pocas da histria humana, pessoas que assim pensassem assim como sempre houve aqueles que percebessem as revelaes do pensamento especulativo como sendo da maior importncia.

    John M. Anderson, introduo a Discourse on Thinking, de Martin Heidegger INCIO: PHILO | POLIS | SOPHIA

    Poucos conceitos em estudos urbanos aspiram enderear a condio urbana como o de urbanidade. Talvez no por acaso, poucos outros encontram definies to difusas ou pouco sistemticas. Conceitos conhecidos variam da viso de senso comum da urbanidade como civilidade do convvio ao foco nas relaes objetivas entre configuraes do espao urbano e o uso do espao pblico (como em Holanda, 2002), s

  • condies espaciais de uma aparente vitalidade urbana. Tal observao sugere uma srie de perguntas: seria possvel capturar a condio urbana? O que diferencia a experincia urbana da experincia de outras espacialidades ou ambientes no urbanos? Mais amplamente, como as cidades mediam nossa experincia do mundo ao nosso redor, e do outro? O presente trabalho se afastar de definies usuais de urbanidade para propor um entendimento a partir de uma rea capaz de oferecer subsdios para capturar a experincia particular da urbanidade; uma rea tradicional que, apesar de considerar o problema do espao, ainda distante ao tema urbano: a filosofia.

    Fig. 1. Em busca de uma definio de urbanidade. (Fonte: flickr/victoriapeckham)Na verdade, o evocar do urbano como aspecto da experincia humana isto , do

    que vivido, da vida com o outro j inicia essa aproximao. Tanto do ponto de vista da filosofia quanto dos estudos urbanos, esse propsito significa a entrada em territrios potencialmente estranhos, talvez novos, e a possibilidade de tocar aspectos que seriam vistos com grande dificuldade em cada uma dessas reas separadamente. Esse texto tambm um convite para caminhar dentro e entre reas ainda um tanto estranhas entre si. Entretanto, uma incurso assim requer preparao prvia, pelo menos quanto a dois aspectos. Primeiro, necessrio esclarecer o que o pensamento filosfico pode oferecer abordagem urbanstica e vice-versa. Segundo, necessrio abordarmos essas diferentes reas com cuidado se pretendemos explorar o tema da urbanidade por meio de uma aproximao terica entre elas. Essa aproximao no pode ser feita de fora de cada uma dessas reas, como que por um estrangeiro, numa construo onde ideias oriundas de cada territrio sejam meramente justapostas de modo ad hoc. Atentos a estas condies, vejamos o que o pensamento filosfico pode oferecer ao entendimento da urbanidade, e o que a investigao do urbano pode revelar sobre nossa forma de vida e experincia, temas da filosofia.

    Considerando a filosofia, notemos que nossa cultura a fixa e a joga em uma espcie de outro plano, como se seus temas pouco tivessem de contato com nossas vidas cotidianas. Na verdade, a filosofia lida com coisas to reais quanto a forma de uma cidade. Ela fala de coisas constantes do modo como vivemos. Usualmente atentamos aos fatos como eles se apresentam. O que a filosofia faz tocar nas condies dos fatos: o que h por trs deles, a natureza de sua apario, seus sentidos e efeitos sobre nossa experincia. Ela no abstrata em seus temas, mas precisa da abstrao para alcanar e descrever o cerne dos fatos e da nossa experincia dos fatos.

    Considerando a reflexo sobre a cidade, observemos que nossa experincia do mundo e do Outro frequentemente mediada pela cidade como uma estrutura do sensorial, como emaranhados da ao e interao ancorados sob a forma de lugares e espacialidades. Observemos tambm que a filosofia, ainda que tenha se ocupado imensamente do problema do tempo e das condies temporais da experincia e da ao (como em Henri Bergson ou Heidegger), tambm dispe de conceitos de espao (como o espao como categoria da experincia em Kant ou o habitat do prprio Heidegger, entre outros). Entretanto, o conceito de espao na filosofia tende a ser visto como um pano de fundo menos ou mais homogneo, abstrado da forma que o espao toma nas estruturas que chamamos cidades e o efeito das suas complexidades no experienciar e no agir. Filsofos no parecem dispor de conceitos do meio urbano analticos o bastante, ricos o bastante para tocar a estruturao espao-temporal da experincia e da vida coletiva que

  • toma a forma das cidades: h uma especificidade, um detalhamento no desdobramento do espao na forma urbana, uma riqueza material que parece canalizar e amparar temporariamente, mas o tempo todo, o fluxo da prtica e do vivido. Em ambiente urbano, somos sempre mediados em nossos atos pela materialidade particular das cidades.

    Essa estruturao da experincia do mundo e do outro que toma a forma de cidade , na verdade, um primeiro esboo da definio de urbanidade. Antecipo que construirei aqui camadas, conceitos de urbanidade, perseguindo sua trama fio por fio. A explorao do tema nesses termos vai nos levar a diferentes instncias da realidade social e material e, por consequncia, a diferentes ideias e autores como guias o que pode resultar em um caminho bastante heterogneo em termos tericos. Dada a dificuldade em tal descrio, um texto com esse objetivo s poderia procurar esboos e proceder por aproximaes: uma busca por traos da urbanidade capturados de modo inevitavelmente parcial pelo discurso; traos construdos como conexes entre conceitos filosficos e urbanos.

    (1) Experienciar urbanidade significa experienciar o mundo em condies diferentes de outros arranjos materiais da vida coletiva um modo particular entre tantas experincias possveis, atrelado estrutura da prpria cidade, caleidoscpio de ns e canais mltiplos da ao. Significa tambm experienciar o mundo em diferentes modos para diferentes atores com implicaes no que podemos chamar experincia do Outro, o contato entre os diferentes. A primeira seo busca reconhecer os diferentes modos de experincia urbana atravs de Bergson, Ricoeur e Lim.

    (2) A experincia da urbanidade uma experincia do mundo social: suas condies de continuidade e integrao, e seu oposto as tendncias de distanciao e segregao social. Ela dependente dessas caractersticas. A segunda seo argumentar que conhecer o lugar da cidade na experincia do mundo social implica em reconhecer as foras de segregao que pem em risco a sua reproduo e que afetam a urbanidade como experincia da diversidade e da complexidade social, atravs de conceitos de Heidegger e Weigert, Bourdieu e Freeman.

    (3) A terceira seo explora o lugar da cidade na produo das tenses de desintegrao do mundo social assim como na possvel soluo material para tais tenses. Busca reconhecer a urbanidade como a experincia e prtica dessa superao em trs instncias: em uma dimenso fenomenolgica da urbanidade pulsando na esfera do sujeito (o reconhecimento do Outro a partir da sua presena em nosso campo de percepo, usando ideias de Schtz e Heidegger); uma dimenso comunicativa da urbanidade (a cidade e seus espaos como loci do convvio urbano e meio da comunicao, atravs de Habermas); e uma dimenso ontolgica da urbanidade (produzida na relao entre prticas e espaos da cidade como dados estruturantes da realidade material).

    (4) A proposio de um papel potencialmente integrador da urbe demanda o esclarecimento dos seus atributos e efeitos sobre o mundo social: saber quais seriam as propriedades materiais da cidade que lhe assegurariam tal papel. A seo discute a urbanidade como efeito de convergncias de atos, atores e espaos no presente da cidade.

    (5) Contudo, caractersticas espaciais no so homogneas nem se repetem de cidade para cidade, cultura para cultura. Argumentarei que, se h diferentes condies materiais e sociais para a urbanidade, haveria consequentemente diferentes urbanidades. Compreender tais diferenas passa a ser um problema central no entendimento das

  • urbanidades (decididamente no plural e decididamente aberta s idiossincrasias do particular, do universo de universos possveis).

    (6) O reconhecimento de diferentes urbanidades nos levaria incluso de toda e qualquer urbanidade, incluindo socialidades hostis e espaos de represso, violncia e degradao do humano. Tal definio se chocaria com a definio comum da civilidade do convvio, assim como com o potencial emancipatrio do conceito. Fazendo uso de ideias de Derrida e Habermas, Bergson e Deleuze, proporei um modo de evitar a equivalncia entre qualquer experincia urbana e urbanidade atravs de um critrio, um princpio tico um ethos da urbanidade como coexistncia e bem-vir das alteridades, e como um desejo de futuro: o devirdo urbano numa urbanidade plena e aberta.

    Esse caminho heterogneo deve introduzir uma interpretao hbrida, entre a puramente urbana e a puramente filosfica: uma terceira abordagem. Vejamos essa construo em detalhe. A URBANIDADE COMO EXPERINCIA DO MUNDO E DO OUTRO

    Fig. 2. Cenas da cidade: urbanidade como encontro de condies sociais e materiais. (Fonte: Library of Congress, USA e Stuck in Customs, sob Creative Commons)

    Busco uma conceituao capaz de mostrar a experincia humana como constituda de um tecido aderente, colado ao ato, impregnando-o; uma viso da vida urbana como atravessada de espao e tempo. Abordarei as temporalidades do urbano pelas filosofias de Paul Ricoeur e principalmente de Henri Bergson e sua utilizao por Bliss Cua Lim. Criticarei a tendncia viso de um espao homogneo na filosofia apontando as heterogeneidades e permanncias do espao da experincia como presena ativa em nossas atuaes. O objetivo desta seo descrever o modo de vida urbano como experincia.

    Fao trs proposies iniciais: (i) a cidade como um modo de estruturar a experincia de cada um tanto temporalmente quanto espacialmente, um framing comum da nossa experincia do mundo; (ii) uma estrutura que converge prticas de temporalidades distintas, um caleidoscpio que projeta atos passados no presente, em canais de movimento e lugares de atividades e memrias que conectam atos na atualidade do agora; (iii) a cidade como coexistncia de diferentes modos temporais e espaciais de ser e como possibilidade de encontro e reconhecimento do outro, um framing da experincia da alteridade. Em outras palavras, a vida urbana envolve uma ambiguidade fundamental: ela ampara diferentes experincias individuais e as relaciona em modos de experincia em comum, sob a forma do convvio. A CIDADE COMO ESTRUTURA ESPACIAL E TEMPORAL DA EXPERINCIA

    Espacialmente, nossas posies e movimentos no so inteiramente livres, irrestritos, mas modelados por uma estrutura material que nos antecede e nos cerca. Nossa experincia construda por sentidos que capturam informao sensorial do ambiente (veja Merleau-Ponty, 1962), um ambiente largamente moldado sob forma de cidades. Cidades passam a ser formas de mediao da nossa experincia fsica, material do mundo. Sua estrutura particular de edificaes de suporte atividade humana, agregadas em quarteires de formas variadas e definindo os espaos livres das ruas, implica em uma canalizao espao-temporal inevitvel da nossa experincia. Nossa

  • experincia do mundo estruturada a partir das tramas de canais e os topoi da cidade (posies ou lugares no espao urbano, em relao entre si).

    O problema do tempo atravessa igualmente o da urbanidade: nossa experincia da cidade intimamente associada a ritmos especficos, a temporalidades que impregnam a vida urbana. Uma impresso comum, por exemplo, a do tempo acelerado das grandes cidades, a impresso de que, quanto maior a cidade, mais rpido o tempo parece passar, no suceder de ao aps ao; nos tempos consumidos em deslocamentos ao lugar de trabalho, na passagem por paradas, estaes e lugares; na sequncia de tarefas que se apresentam mesmo fora do trabalho. Algumas cidades nos parecem especialmente ferozes nesse engolir dos nossos tempos individuais. A impresso do acelerar do tempo, contudo, no nova: ela aparece com fora nas descries da metrpole que emergem no final do sculo XIX, na impregnao da modernidade no que Husserl (1976) chama Lebenswelt, o mundo da vida; descries da compresso temporal da experincia tornaram conhecidos seus intrigados autores, como Simmel e Kracauer. O tempo da experincia urbana parece alterado pela crescente sucesso das trocas, em nmero e variedade, de modo que no s nossa ao seja acelerada ao dar lugar a outra e outra ao, mas que assistamos ao fluxo aparentemente imparvel das aes de nossos contemporneos atuando nesses espaos. Frequentemente presente nessas descries est uma impresso de vertigem: um vertiginoso tempo urbano.

    Temos uma condio temporal para nossos atos relacionada a uma condio urbana: diferentes temporalidades da nossa experincia mediadas pela urbe. Nessa pluralidade de experincias e leituras pessoais do tempo, o fato de que conseguimos produzir aes conjuntas parece quase improvvel. Essas coordenaes parciais, momentneas s so possveis pelo agenciamento dos lugares e arquiteturas como os topoi de convergncia dos mltiplos ritmos temporais que viabilizam o urbano como heterotemporalidade. O espao no pode ser visto meramente como extenso, mas heterogeneidade produzida por atos e pelo esforo do atuar coletivo.

    Assim, se desejamos usar o conceito de urbanidade para entender o modo de experincia de um mundo que se apresenta imediatamente urbano, devemos entender o cruzamento entre a espacialidade particular das cidades como estruturas e projees de aes conjuntas, seu papel como meio da ao coletiva e a temporalidade singular da experincia urbana, em encontros e interaes de outro modo impossveis de serem produzidos. A espacialidade urbana tem, portanto, relao intrnseca aos ritmos variados da prtica uma forma de presena na produo das temporalidades diversas das aes das pessoas e suas experincias do tempo. Conjuntamente constituem urbanidade.O CALEIDOSCPIO: CANAIS E TOPOI DE ATIVIDADE E MEMRIA, CONEXO ENTRE PASSADO E PRESENTE

    O espao urbano tem uma condio material particular: durvel, mutvel apenas lentamente. Krafta, neste livro, nos lembra que seu presente resultado de aes passadas, frequentemente acumuladas por longo tempo. Podemos dizer que os traos de prticas anteriores projetam-se em cada presente urbano. De fato, a ideia do tempo impresso na cidade encontrada na teoria urbana. Aldo Rossi (1995), entre outros, nos fala da permanncia dos fatos urbanos.

    A questo, contudo, entender a permanncia de fatos urbanos como uma projeo de urbanidades passadas ou, como pergunta Ricoeur (2010:60), como o agora reproduzido chega a representar um passado? Essa representao um mistrio, porque

  • implica a passagem entre atos produzidos na cidade e sua espacialidade. Implica identificar como atos so produzidos coletivamente, quais as condies espaciais para tais atos sociais virem tona a cada presente, e tornarem-se impressos no espao da cidade e acumulados atravs do tempo como condio de convvio e coexistncia. Urbanidades formas de encontro e vida coletiva parecem guardadas como forma arquitetnica e urbana durvel, e assim se projetam no futuro.

    A relao entre tempo e espao como mutuamente determinantes da experincia urbana estaria longe de mera coincidncia: haveria uma possibilidade da temporalidade complexa da experincia urbana estar latente na prpria espacialidade dos lugares, arquiteturas e ruas da espacialidade que projeta temporalmente o social, o impulso da ao, e a necessidade das aes conjuntas. Analogamente, os ritmos e temporalidades nos quais somos imersos em nossas vidas urbanas no so invenes de nossas atuaes: fomos levados at eles por construes sociais, temporais e espaciais passadas. Um passado urbano informa cada deciso que fazemos no agora.

    A cidade representa o que Bergson chama a sobrevivncia do passado, a coexistncia do passado e presente em um ser-memria que impregna mesmo a matria mesmo a materialidade da cidade. O espao urbano uma memria ontolgica de socialidades, temporalidades de aes e vises de mundo passadas.

    A memria projetada no espao urbano temporaliza a percepo por completar nossa experincia presente a cada momento, enriquecendo-a com experincias j adquiridas. Percepes so conectadas por memrias impressas no espao, nas configuraes arquitetnico-urbanas nas quais vivemos em nossas cidades, materializada na narrativa das fachadas e arranjos de edifcios que amparam prticas e formas de vida. Atividades desaparecero, edificaes sero substitudas, mas as estruturaes urbanas de que fazem parte tendero a ficar. A forma lentamente mutvel dessas estruturas nos fala de urbanidades anteriores, projetadas na durabilidade do espao.

    Vimos a cidade como estrutura espao-temporal da experincia humana, um caleidoscpio de movimentos e atos em convergncias e sincronias parciais de encontros nos canais e lugares de atividades lugares de memrias que projetam atos passados ao presente e conectam atos presentes entre si, na atualidade do agora. No entanto, h diferentes estruturas da experincia, relacionadas a diferentes modos de habitar o mundo.A URBANIDADE COMO COPRESENA DOS DIFERENTES MODOS DE SER

    Gostaria de evocar a bela expresso de Chakrabarty (em Lim, 2009) em sua crtica ps-colonial, a copresena dos diferentes modos de ser, e traz-la ao contexto urbano. A despeito da regularidade do tempo homogneo da modernidade (Bergson, 2004), a filosofia e os estudos culturais tm progressivamente reconhecido que pessoas tm temporalidades distintas em suas aes e entendimentos do mundo. Uma das foras de diferenciao evidentemente social. As diversas temporalidades da durao de Bergson descrevem os tempos inerentes s experincias de diferentes atores e destacam tais diferenas:

    (i) Temporalidades menos ou mais programadas das aes cotidianas, sobretudo na esfera do trabalho. Temos, nesse sentido, uma temporalidade em geral mais linear e rgida dos atores envolvidos no trabalho manual.

    (ii) As temporalidades diferenciadas no enfrentamento da frico do espao nas distncias. Aponto a possibilidade de tempos mais arrastados das aes notadamente para grupos sociais de menor renda, por fora de frico espacial provocada pelas distncias e

  • configuraes da cidade, pelo menor acesso tecnologia e pela limitao de recursos para sustentar aes diversas. A menor mobilidade pode induzir um efeito de habitar a cidade permanentemente em um tempo anterior em relao s aes de outros grupos no mesmo espao geogrfico.

    O reconhecimento dessas diferenas abre a possibilidade de desvelar as temporalidades da prtica assim como as temporalidades psquicas inerentes a diferentes formas de vida associadas a capacidades de atuao em seus ambientes urbanos e suas compreenses do mundo. Divergncias dessa natureza podem ainda ser ativas nas possibilidades de convvio na gerao da urbanidade.

    A urbanidade, como experincia do outro, depende da temporalidade e espacialidade do encontro. Tanto a espacialidade quando a temporalidade da prtica do outro podem coloc-lo distante de ns. Estes tempos dessincronizados so vetores de disjuno do encontro, de dissipao de possibilidades de interaes futuras em ausncias, distncias, estranhamentos. A disjuno do encontro pode induzir uma desconexo de aes futuras a rarefao do encontro ao Outro em gestos de excluso temporal (expresso de Chakrabarty em Lim, 2009:15). O tempo anterior, no qual grupos sociais de menor mobilidade parecem habitar implica um rudo no potencial de urbanidade como encontro entre diferentes, como intensidade de encontro de mundos sociais no caleidoscpio do urbano.

    Uma noo de urbanidade comeou a se desenhar acima, relacionada a uma estruturao temporal e espacial compartilhada da nossa experincia do mundo e mediada pela cidade, e as especificidades de temporalidade e espacialidade na experincia de atores socialmente diferentes. Vejamos agora as origens dessas diferenas, bem como suas consequncias.AS TENSES NO CERNE DO SOCIAL

    Proponho utilizarmos uma noo da filosofia capaz de capturar diferenas entre atores sociais e suas identidades: o conceito hegeliano de Outro ou alteridade. O conceito, desdobrado sobretudo na filosofia ps-moderna, representa um movimento para alm do solipsismo da experincia subjetiva, um giro na ateno coexistncia de mltiplas identidades. Gostaria de relacionar as condies de coexistncia intrnsecas na noo de senso comum da urbanidade e o problema das tenses da diferenciao social que emanam do processo de formao das identidades e definem grupos sociais distintos e distantes, ainda que atuando simultaneamente na cidade.

    A primeira dessas tenses de diferenciao se relaciona com a questo das classes sociais, mas vai alm dela. Em um sistema socioeconmico modernizado, classes so funcionalmente relacionadas em estruturas da prtica do trabalho. A estrutura social associada a relaes de trabalho no se traduz em comunicao efetiva entre membros de classes distintas, mas tem estabelecido funcionalmente formas de reproduo social. Relaes funcionais no se traduzem em interaes efetivas mas so poderosas em sua penetrao no mundo da vida.

    Contudo, ainda que as tenses de diferenciao social sejam certamente intensificadas ao estarem inseridas em contextos de desigualdade socioeconmica, os riscos da desintegrao ocorrem sobretudo em outras esferas: aquelas relacionadas s interaes de natureza no instrumental, fora da produo e trabalho, as quais consistem de parte substancial da vida coletiva e da reproduo simblica de identidades e grupos. Fraturas nessas esferas no instrumentais da prtica social, provocadas pela segregao

  • residencial ou segregao em redes sociais atuando na cidade e a consequente ausncia da copresena entre diferentes podem significar a instalao de um distanciamento entre grupos diretamente no centro do tecido do nosso cotidiano: a reduo substancial da possibilidade de interao e reconhecimento. Entretanto, tais tenses so produzidas endogenamente. Elas parecem iniciar na relao entre ser e mundo social, na formao das identidades e seu duplo: os processos de associao no locus da cidade.

    A definio de nossas identidades envolve um movimento de reapropriao: reconhecer-nos atravs do reconhecimento das caractersticas e idiossincrasias que constituem o Outro como Outro, um movimento progressivo na busca de similaridades entre uns simultaneamente diferenciao em relao a outros. Identidades cobrem desde aquelas singularmente ligadas ao ator quelas compartilhadas com outros nas mesmas categorias sociais [...] A dinmica sociocultural resulta em identidades continuamente em transformao, competindo, e entrando em conflitos (Weigert, 2010:250). Produzir e projetar identidades implicaria em construir avaliaes e categorias relativas a identidades atribudas a outros: identificar a si e ao outro defini-los como desiguais (Weigert, 2010).

    Assim, fundamentalmente, a identificao opera sob a forma da afirmao de diferenas. Ainda, h uma dinmica social objetivamente associada ao processo invisvel de formao das identidades um segundo movimento, externo ao sujeito, ocorrendo nas dinmicas da agregao social face s demandas internas da identificao. A identificao implicaria em aproximaes e formao de grupos de atores mais similares entre si que diferentes.

    O mundo social se formaria incluindo tenses endgenas de diferenciao, como se tambm movido por um impulso diferenciao. Agregaes de atores relacionados ao que Bourdieu (1989) chama campo social terminariam por implicar em aumento de interaes internas (no entendamos tais campos como fechados, mas abertos e em constante formao) custa de uma reduo de interaes externas. Uma dinmica psicossocial terminaria por injetar vetores de aproximao interna e distanciao externa sob forma de diferentes graus de interao entre grupos (grfico 1).

    Grfico 1. Tenses de desagregao social.A reduo substancial da interao entre os socialmente diferentes sobretudo se

    no compensadas por dinmicas de interao entre campos sociais pode implicar em restrio de interaes. Ora, sabemos que a restrio de interaes a prpria definio a mais sofisticada e simples de egregao (Freeman, 1978). Sociedades enfrentam constantemente riscos para sua prpria integrao trazidos por tendncias de diferenciao, em parte relacionadas a processos de formao de identidades socialmente reconhecidas e potencialmente exageradas em contextos de maior desigualdade. Sociedades poderiam quebrar em nichos de comunicao s relacionados funcionalmente e, em casos extremos, em lugares desconectados, impermeveis, segregados (vivemos em nossas cidades e sociedades essas duas condies). Certamente a reduo de interaes externas na formao mtua de identidades e grupos sociais frequentemente termina produzindo suas prprias espacialidades em nossas cidades. Dado que sua eliminao tampouco possvel, essas tendncias de restrio do encontro devem ser contrabalanadas, de modo que sistemas sociais no quebrem em nichos completamente desconectados ou conectados apenas funcionalmente.

  • PARA ALM DOS CAMPOS SOCIAIS: A CIDADE NA INTEGRAO DO MUNDO SOCIAL

    Em face de tais tendncias de desagregao disparadas no prprio processo de formao de identidades, o que mantm sistemas sociais integrados? Poderamos associar um papel da cidade na possibilidade de convergncia dessas socialidades diferenciadas ao fenmeno da urbanidade? A compensao das tendncias de restrio do encontro requer processos de interao capazes de sobrepujar sua acelerao na forma de segregao. Tal compensao pode ser encontrada nos esforos conjuntos da reproduo material via microeconomia ou interaes na esfera do trabalho, por exemplo, mas tero como principal meio a copresena em situaes cotidianas no instrumentais, envolvendo prticas de ordem simblica as quais transcendem processos de agregao social exclusiva ao envolver contatos e reconhecimentos mtuos capazes de produzir permeabilidade entre campos sociais.

    Minha aproximao do problema da urbanidade ao da integrao social evoca a ideia de urbanidade como resultado e como condio da integrao social, simultaneamente; como sua construo, expresso e experincia. Refere-se ao papel das dinmicas da urbe ao estabelecer condies de relao (mesmo momentneas) entre pessoas e entre campos sociais o efeito da urbe sobre o tecer das nossas associaes. Tal papel dependeria de espaos urbanos capazes de superar a restrio da interao, por meio do suporte (i) copresena dos diferentes, sobretudo considerando as diferenas da temporalidade de suas prticas e experincias e a fragilidade do encontro como convergncia de atores em circunstncias espao-temporais definidas em canais de movimento e lugares de atividade, como vimos acima; (ii) ao reconhecimento das diferenas e das alteridades na copresena; e (iii) ao potencial de interao entre os diferentes. produo desses trs modos de contato social tem sido um papel histrico da cidade.

    Contudo, se a copresena, reconhecimento mtuo e a interao entre os diferentes so os meios de travessia entre campos sociais, como o espao urbano poderia efetiv -las? No que exatamente esses meios constituem as experincias e as prticas da urbanidade? Esse papel integrador da urbe na forma de urbanidade se efetivaria em trs momentos ou dimenses: (a) uma dimenso fenomenolgica: a urbe como possibilidade de compartilhar a experincia uma forma de convvio e integrao social pulsando na esfera do sujeito; (b) uma dimenso comunicativa: a urbe como lugar e meio da interao e da comunicao livre de coero; (c) uma dimenso ontolgica, envolvendo as relaes entre prticas, significados e espaos da cidade como amarras da realidade social e material, e meios para a construo de outros sistemas de integrao social. A dimenso fenomenolgica da urbanidade: a cidade na experincia em comum

    Meu objetivo nesta seo entender como a impresso da urbanidade ocorre na esfera do sujeito. Fundamentalmente, trata-se da experincia do outro em nosso horizonte de percepes recprocas. Quero identificar a possibilidade de sobreposio dos campos de percepo dos sujeitos atuando em seus entornos uma sobreposio gerada pela cidade em sua moldagem dos encontros. A ideia chegar descrio da experincia em comum na percepo dos sujeitos. De fato, a possibilidade de termos experincias em comum parece um dos aspectos mais importantes da vida urbana. No universo do sujeito, ela passa a ser um fator de integrao social: ela est na passagem da percepo da integrao social a atos socialmente integradores. A anlise fenomenolgica, focada na

  • relao entre sujeito e mundo, parece particularmente til para capturar como a urbanidade percebida pelo sujeito.

    Esse sinal da urbanidade pode ser localizado no papel e presena da urbe na relao entre experincia individual do que Schtz e Luckmann (1973) chamam mundo-a-minha-volta para o tipo de experincia do mundo que Heidegger vai definir como relao entre mim e o outro. H muito de espacialidade nessas relaes, e o prprio Heidegger se encarregar de traz-la tona. [O] mundo sempre aquele que compartilho com outros. O mundo do ser-a ( Dasein) um mundo-com. Ser-em ser-com-outros (1962:159). Heidegger (1966) fala de uma regionalizao do ser, um ser atrelado a seus espaos. Ele associa ser e habitar, um ser que se determina a partir do lugar (Heidegger, 1971), que se descerra ao outro em um campo de compartilhamento, no crculo de sua manifestao no mundo material (Heidegger, 2009:142). As descries de finalidade sociolgica de Schtz e Luckmann oferecem mais detalhes quanto ao espao do ser-com-o-outro. Elas trazem a ideia da minha experincia do Outro no mundo que me envolve (Schtz e Luckmann, 1973:60) relacionada a uma congruncia interpessoal: o aprendizado de que o mundo que experienciamos socializado.

    Tal aprendizado levaria os sujeitos a uma reciprocidade das perspectivas. Ele se relaciona descoberta da alteridade, a existncia de outros diversos de mim, vital no senso de pertencimento a um mundo social internamente diferenciado, complexo, em relao ao qual a prpria identidade deve ser relativizada. A experincia imediata do outro equivale, na terminologia heideggeriana, ao descerramento do outro em minha experincia, quando compartilhamos os espaos no mundo da vida. O encontro imediato, iniciado com a ateno ao outro, esta presena em meu campo perceptivo, desdobra-se na minha orientao ao outro, uma ateno recproca, uma passagem da percepo do outro para o agir com o outro.

    Schtz chama esse processo de o espelhamento do eu na experincia do estranho fundamental no processo de socializao (Schtz e Luckmann, 1973:67). Na situao do encontro, a possibilidade de interao entre sujeitos ou atores e a intersubjetividade so confirmadas: no se trata do meu mundo privado ou do seu, mas o mundo da nossa experincia em comum. No encontro, as experincias no apenas se coordenam entre si, mas so reciprocamente determinadas. Schtz reconhece, como vimos Bergson reconhecer, que a experincia envolve temporalidade e espacialidade. A sobreposio dos campos de percepo estruturada na forma de possibilidades de encontro e interao.

    Uma descrio desta natureza tem por fim objetivar a experincia da urbanidade como aspecto da integrao do mundo social uma integrao que se iniciaria e se encerraria na esfera do sujeito. A anlise material da experincia em comum permite trazer tona o papel do espao urbano na determinao de como eu apreendo o Outro. Schtz afirma que esse conhecimento definir a estrutura das relaes e atos na situao social. Partindo de uma interpretao fenomenolgica da teoria da ao de Max Weber, Schtz aspira descrever a passagem entre a estrutura da experincia para estruturao de complexos de aes, as condies da comunicao no espao e no tempo (Schtz e Luckmann, 1973:307). Ele avana sua fenomenologia material em noes como a estratificao e arranjo espacial do mundo da vida em regies da experincia.

    Entretanto, o conceito de espao de Schtz ainda difuso. Mais gravemente, a leitura fenomenolgica no consegue romper com a fixao no sujeito remanescente da

  • filosofia da conscincia (Habermas, 1984), e que ainda impregna abordagens em percepo urbana. Precisamos da passagem da urbanidade como experincia do Outro em coexistncia para a urbanidade como experincia do Outro em interao.A dimenso comunicativa da urbanidade: a cidade como ambiente de interao

    Gostaria de explorar agora a ramificao da experincia em comum temporalmente e espacialmente estruturada no atuar com o outro, nas associaes dos nossos atos na urbe. Isso implica em colocar a cidade como condio do convvio efetivo, parte da interatividade das prticas urbanas. Interao e convvio so essencialmente processos comunicativos (Habermas, 1984). De fato, a condio da comunicao no nosso cotidiano historicamente gerada pela urbe. Seus espaos so relacionados nossa imerso em trocas lingusticas; so suporte para uma densidade variada de comunicaes. Essa imerso em comunicao, fundamental na socializao, o prprio esprito da urbe. Aqui temos a convergncia entre uma dimenso da urbanidade como forma de vida afeita comunicao e a produo do social. Ela inicia na gerao da copresena elementar para a prtica comunicativa.

    Agora temos condies de entender mais completamente a urbanidade como imerso em alteridades, associada intensidade e diversidade comunicativa na cidade. A passagem entre copresena e interao inicia pelo espao como fonte de informao sobre atividades em andamento, uma forma de conhecimento da cidade, seu tecido social, as possibilidades de atuao. Tanto as trocas funcionais, monetrias ou na esfera da produo econmica tm uma infraestrutura comunicativa subjacente quanto s dinmicas da variedade e repetio do encontro nas relaes sociais. A cidade representa a possibilidade de densidade de comunicao e relao entre prticas, de compresso das interaes, tecido da conectividade dos nossos atos e de estruturao social uma urbanidade efetivada como entrelaamento de atores e espaos na produo da troca lingustica. A dimenso ontolgica da urbanidade: a cidade na ligao entre o humano e o material

    Vimos que o espao urbano um caminho para a intensificao da prtica comunicativa. Esse papel ganha mais relevncia se observarmos que as tenses de distanciamento entre pessoas e grupos, voltadas para campos ociais especficos, requerem rocessos que os contraponham. Se a reproduo do social crivada de tenses ao ponto de Luhmann (2002) reconhecer o risco da improbabilidade da integrao do mundo social, a cidade pode consistir de um modo de soluo parcial para a tenso dos processos da dissociaoe restrio de interaes, naturalizada em nossos cotidianos. A urbanidade se mostraria, assim, tanto como resultado quanto meio de integrao social.

    Vejamos as espacialidades urbanas na trama do real: a possibilidade de um lugar do espao urbano nas relaes intrnsecas, inerentes ao mundo social e material um lugar que parece subestimado tanto em teorias do social quanto em ontologias filosficas. Esse papel do espao pode ser, surpreendentemente, invisibilizado por sua prpria onipresena e pela ateno a meios mais evidentes do que Parsons (1972) chama de integrao social, como o sistema de trocas econmicas, a linguagem e comunicao (Habermas, 1984; Luhmann, 1995) e as redes de artefatos tcnicos (Latour, 2004). Entretanto, esses meios de integrao social no tm o mesmo papel. H uma fragilidade desses meios, no sentido de elusividade e inconstncia em sua penetrao no mundo social.

  • H assim uma necessidade de mediao desses extraordinrios sistemas de integrao social e suas elusivas propriedades; um meio material capaz de amparar as trocas via linguagem, economia e novas tecnologias de comunicao distncia. Gostaria