Utopia e distopia

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Utopia e distopia em um só lugar: o texto fantástico borgeano Heloisa Helena Siqueira Correia Universidade Federal de Rondônia – UNIR (Brasil) Em “Utopía de un hombre que está cansado”, conto de 1975, de Jorge Luis Borges, é possível perceber o esboço de uma utopia que, ao realizar-se, começa a demonstrar as condições distópicas da nova ordem. Ao final do conto, o narrador alcança, por assim dizer, o momento crítico em que a utopia desvela sua face monstruosa, distópica e geradora de novos problemas; momento de denúncia da utopia como algo produzido pelo cansaço dos que conhecem o caráter contraditório da existência, a projeção de melhores mundos ao lado da tessitura imperativamente real e histórica de sua realização. A referência à obra Utopia de Tomás Morus, de 1516, ao longo do conto, aponta a vizinhança, e também indica a estranheza dos dois textos. Como a obra renascentista, a utopia borgeana descreve uma sociedade em que o dinheiro não determina os valores humanos e as relações entre indivíduos e na coletividade; em que a agricultura e a língua são realmente valorizadas e em que se sabe que os

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Sobre o conto "Utopia de um homem que está cansado" de Jorge Luis Borges

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Utopia e distopia em um só lugar: o texto fantástico borgeanoHeloisa Helena Siqueira Correia

Universidade Federal de Rondônia – UNIR (Brasil)

Em “Utopía de un hombre que está cansado”, conto de 1975, de Jorge

Luis Borges, é possível perceber o esboço de uma utopia que, ao realizar-se,

começa a demonstrar as condições distópicas da nova ordem. Ao final do

conto, o narrador alcança, por assim dizer, o momento crítico em que a utopia

desvela sua face monstruosa, distópica e geradora de novos problemas;

momento de denúncia da utopia como algo produzido pelo cansaço dos que

conhecem o caráter contraditório da existência, a projeção de melhores

mundos ao lado da tessitura imperativamente real e histórica de sua realização.

A referência à obra Utopia de Tomás Morus, de 1516, ao longo do conto,

aponta a vizinhança, e também indica a estranheza dos dois textos. Como a

obra renascentista, a utopia borgeana descreve uma sociedade em que o

dinheiro não determina os valores humanos e as relações entre indivíduos e na

coletividade; em que a agricultura e a língua são realmente valorizadas e em

que se sabe que os nomes não encontram referência no real (BORGES

1994:54) (MORUS 1997: 103), são embalagens vãs e irreais. Também os

ofícios são valorizados: a personagem borgena é quem constrói sua casa e

móveis (BORGES 1994: 55), como os homens de Utopia, que, além da

agricultura, apreendem um ofício, geralmente ligado à tecelagem, ao trabalho

de ferreiro e à carpintaria (MORUS 1997: 79). Como a obra renascentista, a

utopia americana não é precisa quanto às demarcações geográficas e

espaciais, o narrador borgeano menciona apenas que está em uma planície

(BORGES 1994:52).

Diversamente da utopia que narra o contato com outras sociedades,

promovido por viagens terrestres e marítimas, a narrativa borgeana é uma

história contada pelo narrador-personagem Eudoro Acevedo, que ao viajar pelo

tempo visita um homem do futuro; esse encontro proporciona ao narrador o

conhecimento do modo de vida futuro e do que ocorrera com práticas,

conhecimentos e costumes da sociedade da qual partira.

Diferentemente do humanismo que se pode encontrar no texto de

Morus, o conto borgeano desconfia das qualidades humanas. A memória

precisa ser superada por ser fonte de sofrimento, vaidade e ilusão. A sociedade

apresentada por Borges vive sub specie aeternitatis, seus habitantes aprendem

nas escolas a arte do esquecimento (sobretudo o esquecimento do pessoal e

do local) e a dúvida. Não há estatística, história e cronologia na tal sociedade

do futuro. Nas palavras da personagem do futuro: “Pero no hablemos de

hechos. Ya a nadie le importan los hechos. Son meros puntos de partida para

la invención y el razonamiento” (BORGES 1994: 53). A superação da memória

em nome do cultivo do esquecimento, algo bem possível, ao que parece,

durante a maior parte da narrativa, demonstra-se problemática no desfecho do

conto, quando a memória ressurge assombrando a liberdade que o

esquecimento pretensamente havia conquistado para os homens, o que

veremos mais adiante.

Ao invés do justo governo projetado pela mente renascentista, a utopia

contemporânea em questão acontece na condição de uma sociedade em que

os governos deixaram de existir, nas palavras da ficção:

—¿Qué sucedió con los gobiernos?

—Según la tradición fueron cayendo gradualmente en desuso. Llamaban a

elecciones, declaraban guerras, imponían tarifas, confiscaban fortunas,

ordenaban arrestos y pretendían imponer la censura y nadie en el planeta

los acataba. La prensa dejó de publicar sus colaboraciones y sus efigies.

Los políticos tuvieron que buscar ofícios honestos; algunos fueron buenos

cómicos o buenos curanderos. La realidad sin duda habrá sido más

compleja que este resumen. (BORGES 1994:55)

Onde se percebe a presença marcante da ironia borgeana que concebe

os ofícios do cômico e do curandeiro como ofícios honestos a que alguns

políticos recorreram ao fim dos governos. Trata-se de um ideário que abole a

política comum e a substitui pelo humorismo e curandeirismo. Este último, com

certeza, censurável pelo ideário racionalista renascentista, mas muito mais útil

que práticas governamentais corruptas, lugar histórico em que a utopia

renascentista e o iluminismo desembocaram.

Em outras palavras, evidencia-se que o conto borgeano é

contemporâneo do processo de ruína da razão ocidental, simultâneo à

desesperança inspirada pelas guerras e pela violência social de todos os tipos;

não à toa, os habitantes do futuro não possuem cidades ou famílias, elementos

sociais fraturados que, ao longo da história materializam a dilaceração das

coletividades. No futuro a imprensa está abolida, porque no passado “Sólo lo

publicado era verdadero. Esse est percipi (ser es ser retratado) era el principio,

el medio y el fin de nuestro singular concepto del mundo” (BORGES 1994:54) ,

exatamente como faz nossa sociedade midiática.

A utopia em questão revela o fortalecimento do individual em detrimento

do coletivo, com a ressalva de que se trata de um individual livre de

pessoalidades e propriedades: não é demais lembrar que a personagem do

futuro é chamada de “alguém”, não tem nome próprio ou marca de origem.

Essa forma de chamamento faz lembrar outro viajante, o herói grego Odisseus

que, para enganar seu inimigo, autodenominou-se ninguém, o que lhe

proporcionou o ardil necessário para sair triunfante do combate. A personagem

borgeana, no entanto, não carece do falsete de linguagem nem da força do

substantivo, basta-lhe o pronome indefinido para atestar sua existência. O que

também indica ausência de vaidade, orgulho e pessoalidade heroicos. Além

dos trabalhos, a personagem do futuro pinta telas e toca harpa, o que sugere

vivência estética contínua.

Pela babélica situação contemporânea das línguas e linguagens

justifica-se que os homens do futuro tenham encontrado uma língua única,

estranhamente, no entanto, regressaram ao latim. A personagem explica ainda

que a língua é um sistema de citações (BORGES 1994: 55), coroando nosso

paradigma contemporâneo da teoria e crítica literárias que concebem a língua

como intertextualidade infinita e incessante.

A concepção da língua como sistema de citações é base de construção

da obra borgeana, que trama um registro ficcional composto de palavras de

outros textos, autores e épocas; registro novo em que as apropriações, burlas,

fragmentações, distorções, adaptações e empréstimos trabalham a favor da

diluição da personalidade do autor, espécie de proposta estética de Borges

(MONEGAL 1980). A utopia borgeana, nesse sentido, realiza-se; ali, na língua

do futuro, Borges alcança o pagamento da autoria: não há palavra que seja

apenas borgeana, a língua é um conjunto de citações. Também a importância

conferida por Borges à releitura e a libertação do labirinto de textos da

Biblioteca de Babel realizam-se no conto:

—Nadie puede leer dos mil libros. En los cuatro siglos que vivo no habré

pasado de uma media docena. Además no importa leer, sino releer. La

imprenta, ahora abolida, ha sido uno de los peores males del hombre, ya

que tendió a multiplicar hasta el vértigo textos innecesarios. (BORGES

1994: 53-54)

Basta uma nova visada sobre o conto para a percepção da fragilidade da

utopia borgeana: o texto revela uma marca pessoal intransferível, o conto é

borgeano por excelência. As menções a Tomas Morus, Bernard Shaw,

Arquimedes e Jesus Cristo estranhamente inauguram a novidade. A utopia

presente no conto parodia a utopia de Morus: não há governo ou governante

porque são inviáveis, a liberdade segue sendo determinada pela história e pelo

passado, e as crenças não deixam de existir. A história do pensamento, da

ciência e da religião, caras ao homem do século XVI, foram abolidas com o

cultivo do esquecimento:

—¿Todavía hay museos y bibliotecas?

—No. Queremos olvidar el ayer, salvo para la composición de elegías. No

hay conmemoraciones ni centenarios ni efigies de hombres muertos. Cada

cual debe producir por su cuenta las ciencias y las artes que necesita.

—En tal caso, cada cual debe ser su propio Bernard Shaw, su propio

Jesucristo y su propio Arquímedes. (BORGES 1994: 55)

Reler sempre, ânsia borgeana que se repete ao longo de textos de

períodos diversos, é prática que sugere a mnemotécnica, o que contraria a

aprendizagem da arte do esquecimento professada pelas escolas do futuro,

novamente a utopia borgeana se fragiliza. E, em outro sentido, se a língua é

um sistema de citações, ainda que não haja a reprodução impressa de textos,

as palavras mesmas reproduzem significados sobre significados, de modo que

a biblioteca de babel sobrevive de modo minimalista em cada palavra e a

libertação do labirinto segue adiada.

De acordo com o conto, há, ainda, outros hábitos entre os habitantes do futuro:

Cuando el hombre madura a los cien años, está listo a enfrentarse consigo

mismo y con su soledad. Ya ha engendrado un hijo.

¿Un hijo? —pregunté.

—Sí. Uno solo. No conviene fomentar el género humano. Hay quienes

piensan que es un órgano de la divinidad para tener conciencia del universo,

pero nadie sabe com certidumbre si hay tal divinidad. Creo que ahora se

discuten las ventajas y desventajas de un suicidio gradual o simultáneo de

todos los hombres del mundo. Pero volvamos a lo nuestro.

Asentí.

—Cumplidos los cien años, el individuo puede prescindir del amor y de la

amistad. Los males y la muerte involuntaria no lo amenazan. Ejerce alguna

de las artes, la filosofía, las matemáticas o juega a un ajedrez solitario.

Cuando quiere se mata. Dueño el hombre de su vida, lo es también de su

muerte. (BORGES 1994: 54-55)

Observa-se aí o engendramento de apenas um filho para atender à

sobrevivência da espécie. E como uma hipérbole do racionalismo iluminista, a

razão soberana que torna o homem senhor de si mesmo, proporciona que ele

exercite essa razão contra sua própria vida, no pleno gozo da lógica da

liberdade sem principiologia. A utopia iluminista tornara-se outra coisa, espécie

de racionalismo elevado ao rigor das últimas consequências.

Em outra direção, que se relaciona com o avanço das ciências, a

personagem do futuro, visitada pelo narrador que viaja pelo tempo, não se

surpreende com o visitante porque tais visitas acontecem de século em século,

o que significa que a sociedade de partida alcançara a possibilidade das

viagens no tempo, em sintonia com os postulados da física contemporânea.

Isso se confirma na intrínseca relação entre tempo e espaço afirmada pela

personagem, quando o narrador lhe pede informações sobre as viagens

através do espaço sideral:

—¿Y la grande aventura de mi tiempo, los viajes espaciales? —le dije.

—Hace ya siglos que hemos renunciado a esas traslaciones, que fueron

certamente admirables. Nunca pudimos evadirnos de un aquí y de un ahora.

Con una sonrisa agregó:

—Además, todo viaje es espacial. Ir de un planeta a otro es como ir a la

granja de enfrente. Cuando usted entró en este cuarto estaba ejecutando un

viaje espacial. (BORGES 1994: 55)

Em termos literários e pensando na vinculação da ficção borgeana à

tradição da literatura fantástica, constata-se a atualização do tema comum às

narrativas fantásticas: a viagem no tempo. No caso do conto em questão, a

viagem se dá pelo espaço-tempo, sem cisão que lhe possa compartimentar. Ao

mesmo tempo, curiosamente, o que interessa à sociedade do futuro é o

presente: o aqui e agora da existência, o que equivale a dizer que o que

importa é o contemporâneo e o próximo, o vívido.

O narrador apresenta-se escritor de contos fantásticos (BORGES 1994:

53), e “alguém” conhece em especial duas obras fantásticas: As viagens de

Gulliver e a Suma Teológica (BORGES 1994: 53). Neste ponto, a proposta

estética de um fantástico construído com a matéria da metafísica, que se pode

encontrar já na década de 1940 e 1950, respectivamente em Otras

Inquisiciones e Ficciones, entre outros textos, converte-se em algo que já se

configurou, por isso a personagem refere-se tranquilamente à obra Suma

Teológica como um conto fantástico. O que se supunha uma revisão da

tradição torna-se, assim, lugar comum para o leitor futuro do fantástico literário.

Esta utopia borgeana se realiza sem que o conto a despedace em momento

posterior, o que é inesperado em se tratando da obra de um mestre em

reviravoltas.

Como a Máquina do Tempo de Wells, no conto borgeano há uma prova

da viagem no tempo; a personagem Eudoro volta à sua época com uma tela

presenteada a ele por “alguém”, personagem do futuro: “En mi escritorio de la

calle México guardo la tela que alguien pintará, dentro de miles de años, con

materiales hoy dispersos en el planeta” (BORGES 1994: 56).

A reviravolta textual, ainda que familiar aos leitores de Borges, acontece

no desfecho deste conto de modo surpreendente, demonstrando que a suposta

utopia baseada em uma vida sem memória, e, portanto, sem aprisionamento

no passado, revela sua condição distópica ao denunciar o perigo do

esquecimento, até então, apenas apresentado como algo libertador.

Ao acompanharmos o narrador, a história prossegue com o encontro das

personagens mencionadas com dois homens e uma mulher. Todos juntos

esvaziam a casa da personagem do futuro e o acompanham em direção a uma

torre, onde dará fim a sua vida. Nas palavras de Alguém: “—Es el crematorio —

dijo alguien—. Adentro está la cámara letal. Dicen que la invento un filántropo

cuyo nombre, creo, era Adolfo Hitler” (BORGES 1994:56).

É exatamente neste momento que a utopia escancara a distopia nela

contida: o esquecimento de quem foi Hitler, de sua existência e ações nefastas,

implica no perigo da utopia totalitária. A possibilidade de resistir a ela reside na

experiência histórica, nos documentos e testemunhos do passado e na

manutenção da memória histórica, sob pena de o esquecimento abrir espaço

para utopias semelhantes em totalitarismo, violência e barbárie. O final do

conto é alarmante, a ficção fantástica critica a utopia e a limita. Não se trata de

afirmar que a realização das utopias é impossível, mas sim que a criação das

utopias se tornou uma tarefa arriscada, perigosa. Ao invés de fazer vislumbrar

a felicidade que as utopias perseguem, o conto demonstra a ilusão pura e

simples, materializada nas palavras da personagem feminina que, logo em

seguida da entrada de “alguém” no “crematório”, afirma: “—La nieve seguirá-...”

(BORGES, 1994: 56).

Referências bibliográficas

BORGES, Jorge Luis

1994 “Utopía de un hombre que está cansado”. En: Obras completas: 1975-

85. Buenos Aires: Emecé Editores, 52-56.

MONEGAL, Emir

1980 Borges: uma poética da leitura. São Paulo: Perspectiva.

MORUS, Tomas

1997 Utopia. Porto Alegre: L&PM.