V Simpósio Estado e Poder - Hegemonia (2008)

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    O avaliador de escravos: desigualdade e estratificação social(Rio de Janeiro – 1774-1831) 

    Luciano Rocha Pinto∗ 

    V Simpósio Nacional Estado e Poder: Hegemonia.

    Resumo:

    A Câmara Municipal carioca, palco de inúmeras relações de clientelismo e lutas por poder, foio lócus da elite local detentora das regalias e da própria cidadania no primeiro quartel doséculo XIX. Enquanto tal hierarquia promovia a uns, outros, no entanto, viam-se à margem dasociedade. Daí o espírito gregário e o sentimento de solidariedade que promovia os maissimples pela pertença a um determinado grupo de poder, que levou muitos a assumiremofícios menores nas municipalidades. É o caso do  Avaliador de escravos, representante dalegalidade promovia a legitimação da ideologia escravista que hierarquizava os indivíduosmediante a posse do trabalhador cativo. Mais que gerar divisas aos cofres públicos, reiterava aestrutura escravista e o status quo  daquela elite camarária que se beneficiava com a ordemvigente na América portuguesa.

    Palavras-chave: História Política, Câmara Municipal, Avaliador de escravos.

    Abstract:

    The carioca Municipal Council, which was the scenery of several relationships of clientageand fight for power, was the locus of the cream of local society, who had exclusive rights andthey were the only considered citizen in the first quarter of XIX century. Therefore thegregarious thinking and solidarity feelings of the simplest people in having power, took themto accept ordinaries jobs at council. This is the case of the slave evaluator, who was the legalrepresentative that promoted the legalization of slavish ideology, and this classified peopleaccording to having or not slaves. More than create exchange values to the publics money-box, it kept the slavish structure and the status quo of that cream of society, that gained withthe law established in the Portuguese America.

    Keywords: Politic History, Municipal Council, Slave Evaluator.

    ∗  Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais/Universidade do Estado do Rio de Janeiro.Mestre.

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    No século XIX a escravidão estava no seu auge e em nenhum outro momento se

    comercializou tantos escravos e, em especial, na sua primeira metade. Assim, tomamos como

    ponto de partida a chegada da corte portuguesa em 1808. Ocasião de singular

    desenvolvimento para a cidade e de grande importância para o “comércio de almas”, com a

    abertura dos portos. Outro evento significativo é a extinção do tráfico legal de escravos.

    (VAINFAS, 2002: 474 ) “Atendendo ao tratado firmado em 1826 com a Inglaterra e

    ratificado no ano seguinte, o Brasil decretou, em 7 de novembro de 1831, a ilegalidade

    daquele comércio”. (BASILE, 1990: 241)

    Os relatos do século XIX, mais especificamente dos viajantes, desconhecem a figura

    do Avaliador de escravos. Os diversos processos endereçados ao Senado da Câmara da cidade

    do Rio de Janeiro, com petições à função, no entanto, endossam sua existência. Para perceber

    as relações inter-individuais e as representações políticas, cujos interesses promoviam, não

    poucas vezes, tensões entre os aspirantes ao ofício, trabalhamos com a documentação relativa

    aos processos de provimento à função, controlada pelo Senado da Câmara, disponíveis, como

    vimos, no  Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. A partir da produção burocrática da

    Câmara apreendemos as especificidades deste ofício, que ocupou a vida de muitas pessoas e

    fez de tantas outras aspirantes, caso não apenas de fortuna, do status  que o ofício poderia

    proporcionar. Era o Avaliador a mão do Estado e da legalidade que ganhava as praças da

    cidade, gerava divisas aos cofres públicos e mediava o reingresso de novos braços ao mundo

    do trabalho e da ordem, reiterando, em nome de Sua Majestade, não apenas a mão-de-obra,

    mas, a hierarquia escravista e seu status quo.

    O Avaliador de escravos é um caso típico de agente legitimador da estrutura. A gênese

    desta funcionalidade pode estar ligada ao crescimento da importância da cidade que entre osanos de 1790 e 1840 constituiu-se no centro econômico e político do sudeste brasileiro.

    (FRAGOSO, 1998:305) Dois fatores ocorridos nos setecentos contribuíram para a integração

    da capitania no mercado atlântico: a descoberta do ouro na região das minas e o açúcar

    fluminense. Em meados do século, 1/3 dos escravos importados na colônia permaneciam no

    Rio de Janeiro. Seu porto crescia em importância, conhecendo maior desenvolvimento após a

    chegada da família real em 1808.

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    O Avaliador de escravos surge neste contexto de crescimento econômico e maior

    utilização da mão-de-obra cativa. Não estava a serviço de particulares, mas do próprio Estado.

    Era a legalidade que tomava as ruas. O oficial da função, licenciado por um ano gerava

    divisas aos cofres públicos, ao apreçar o escravo para ser leiloado e, assim, mediava o re-

    ingresso dos escravos ao mundo do trabalho, da mesma forma que, reiterava em nome do

    Estado a hierarquia escravista e seu status quo.  A criação da função na cidade do Rio de

    Janeiro é, no entanto, bem anterior ao anúncio das avaliações. Remonta à lei de 20 de Junho e

    25 de Agosto de 1774, na qual os os bens penhorados seriam leiloados em praça pública após

    avaliação de pessoas peritas.1 

    A gênese da função, contudo, é da década de 1730 2 e sua efetivação na cidade do Rio

    de Janeiro, apenas em 1774, tendo por primeiro avaliador de escravos Jerônimo Pereira

    Guimarães, que atuou entre os anos de 1775 e 1777,3  surgiu da necessidade de organizar a

    crescente utilização da mão-de-obra cativa e de promover a manutenção do mundo da ordem.

    Para que alguém pudesse preencher uma das duas vagas disponíveis à função de Avaliador de

    escravos, na cidade do Rio de Janeiro, em primeiro lugar deveria fazer uma carta de petição

    destinada ao Senado da Câmara. Assim o fez Joaquim José Pereira do Amaral, aos 21 de

    agosto de 1805.4 

    Sem dúvida era preciso justificar sua adequação ao ofício. Os candidatos, de modo

    geral, dependendo do capital social que ostentavam, apressavam-se em comprovar sua

    adequação aos princípios de idoneidade e conhecimento requerido para acomodação na

    função, levando consigo carta comprobatória. Um bom exemplo é a carta de José da S.

    Borges, auditor das Tropas de Mar e Terra do Brasil, que endossava o acesso ao cargo de

    Joaquim José Pereira do Amaral, como podemos ver em sua carta que se segue.

     Atesto que Joaquim José Pereira do Amal

     servindo de Avaliador de Escravos

    se portou de tal maneira que nunca me constou Cometer crime que o mal conceituasse

    e por esta me ser pedida lhe mandei passar que assignei.

     Rio de Janr o , 4 de Agosto de 1807.

    1 AGCRJ, 6-1-10, f. 16.2

     AGCRJ, 6-1-11, f. 45v.3 AGCRJ, 6-1-10, f. 2.4 AGCRJ: 6-1-10, f. 45J.

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     José Loureiro Borges5 

    No entanto, a própria Câmara se encarregava de averiguar a idoneidade do

    pretendente. Após abrir o processo com pedido formal ao Senado, um segundo momento

    consistia em fazer Correr Folha. Era uma acareação pública nas quais os escrivães atestavam,

    após consulta junto aos cidadãos, a idoneidade do pretendente, ou seja, sua adequação ao

    regime de verdade, necessário à manutenção e reiteração temporal do constructo e do status

    quo dominante. Acarear a idoneidade nada mais é que perceber seu lugar no campo social.

    Estamos falando, então, de prestígio. Participar da Câmara, ser considerado cidadão era uma

    honra devida a alguém reconhecido por seus pares. Afinal, honradez neste caso significa

    existir socialmente, estar conforme a ordem e por ela constituído singularmente. Esta parte do

    processo objetivava perceber o lugar social do pretendente. Fazia-se preciso reconhecer sua

    distinção e honradez, ou seja, sua diferenciação em relação à desordem.6  

    Como o desenrolar destes processos nem sempre se dava com tranqüilidade, era

    prudente fazer procuração a algum Vereador a fim de garantir os fins desejados. Apenas duas

    vagas não eram suficientes para a satisfação do desejo daquela gama de pretendentes, de

    forma que agravos e acordos diversos faziam parte da rotina destes processos. Muitos

    candidatos, então, concediam plenos poderes a um Procurador que deveria, com a devida

    procuração lavrada em cartório fazer valer os direitos do Suplicante.7  

    Uma vez admitido no ofício, o candidato recebia provisão para

    exercício de um ano na função, devendo jurar diante do presidente do Senado bem

    servir ao emprego que recebia em nome de sua Majestade Imperial, para o bem

    público, atuando conforme as posturas do poder local.8  

    Vale a nota na qual havia certa insegurança no exercício do ofício. Era um direito de

    sua Majestade e/ou dos membros da Câmara poder retirar o concedido. No mais, restava ao

    recém Avaliador, após provisão, receber licença para exercer o ofício junto à praça.9 

    5 AGCRJ: 6-1-11, f. 16.6 AGCRJ: 6-1-12, f. 2-2v.7

     AGCRJ: 6-1-11, f. 6.8 AGCRJ: 6-1-12, f. 5-5v.9 AGCRJ: 6-1-12, f. 16.

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    Estes eram, portanto, os principais passos previstos pela burocracia em sua legalidade

    operacional. Na prática as coisas não eram tão simples ou mesmo tranqüilas. Uma rede

    relacional privilegiava poucos homens bem localizados no campo social, portadores de uma

    série de capitais que valendo-se do poder que exerciam junto à Câmara Municipal

    beneficiavam-se mutuamente com um sistema de apadrinhamento e troca de favores que,

    inclusive, dificultava o provimento de muitos pretendentes ao ofício.

    É o caso de Joaquim José Pereira do Amaral que recebeu provisão em agosto de

    1805.10  Ninguém permaneceu mais tempo na função que este cigano cuja última provisão,

    que temos registro, foi transmitida em 11 de janeiro de 1826.11 No entanto, há indícios que

    também no ano de 1827 Pereira do Amaral estava entregue à função até partir para Portugal

    no dia 18 de outubro daquele ano.12 

    Tantas reclamações não impediram que a Câmara nomeasse Joaquim José Pereira do

    Amaral, Avaliador. Este negociante de escravos13 morava no campo da Lampadosa em 1805,

    ano de seu primeiro provimento. No final de sua carreira, quando partiu para Portugal, em

    1827, residia no Valongo.14  Esta trajetória é bastante significativa, pois, Campo da

    Lampadosa foi o nome empregado a partir de 1747 ao antigo Campo do Róssio, depois

    chamado Campo dos Ciganos até que em 1890 foi denominada Praça Tiradentes. Uma região

    de brejos bastante desvalorizada. Mudar-se para o Valongo, por sua vez, parece indicar certa

    prosperidade. Não era a região do Valongo o lócus  prioritário da elite carioca oitocentista.

    Longe disso. Antes, estava marcado pela sua razão de ser principal: comércio de escravos.

    Quem ali morava não pertencia às camadas mais enriquecidas da população, no entanto, não

    se contava entre as mais pobres.

    Duas indicações ao ofício podem nos ajudar a dimensionar o prestígio que Pereira do

    Amaral gozava. A primeira é uma indicação anexa ao pedido de renovação da provisão

    assinada por um Juiz de Fora, ex presidente do Senado e, então, auditor das tropas de mar e

    terra do Estado do Brasil:

    10 AGCRJ: 6-1-10, f. 45c.11 AGCRJ: 6-1-12, f. 39.12

     AGCRJ: 6-1-12, ff. 42, 43 e 47.13 AGCRJ: 6-1-11, f. 3.14 AGCRJ: 6-1-12, f. 50.

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     José da S. Loureiro Borges, Juiz de Fora, Crime Provedor, expresidente do

    Senado, Auditor das Tropas de Mar e Terra deste Estado do Brazil p. S.A.R.

     Atesto que Joaquim José Pereira do Amaral servindo de Avaliador de

     Escravos se portou de tal maneira que nunca cometeu crime que o mal conceituasse e

     por esta me ser pedida mandei passar que assignei.

     Rio de Janeiro, 4 de Agosto de 1807.

     José Loureiro Borges15

     

    A segunda indicação foi feita pelo próprio D. João, em 1819, mantendo Pereira doAmaral no ofício de Avaliador de escravos:

    ...E em atenção também a honra, promptidão e limpeza de mãos com que elle

    expunha haver sempre servido o dito offício e ao pleno conhecimento que tem do

    valor dos escravos, por ser nestes em que gira o seu negócio (...) sou servido

    determinar-vos que conserveis ao Supplicante na Serventia do referido offício

    d’Avaliador de Escravos sem que della possa ser removido e privado na forma das

     Minhas Leis sem culpa formada.16 

     

    Uma intervenção nos assuntos camarários permitiu a continuidade de Amaral. Desde

    sua primeira provisão, contamos quatorze anos que Pereira do Amaral exercia este ofício

     juntamente com sua ocupação de negociante de escravos. Em algum momento, mudou-se para

    o Valongo, ou seja, comercializava escravos novos e avaliava os cativos em posse da Câmara

    Municipal da capital do Império. Em todo este tempo Pereira do Amaral nunca prestou

    serviço ou fez algum agrado à D. João? Por que motivos D. João interviria em favor de um

    negociante e Avaliador de escravos? São questões difíceis de serem respondidas, mas

    perfeitamente possíveis de alguma legitimidade. Pereira do Amaral parecia gozar de algum

    prestígio junto à coroa e alguns oficiais da Câmara. Sua continuidade motivava tanto o ex-

    presidente da Câmara, José da S. Loureiro Borges, quanto àquele que jurava bem servir. No

    15 AGCRJ: 6-1-11, f. 16.16 AGCRJ: 6-1-10, f. 60.

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    entanto, a descontinuidade e a exclusão também são formas de manutenção do poder. “O

    poder, quanto mais exclui, mais se afirma”. (PEREIRA, 2003:14)

    Pois bem, passamos a tratar agora daqueles que desejaram, mas, não conseguiram seuintento. A busca pelo ofício de Avaliador de escravos deixou candidatos frustrados, pois não

    possuíam as qualificações “necessárias” para ocupar a função. O poder exige, de seus

    nomeados, adequação ao regime de verdade. Diógenes Tibúrcio Pamplona é um caso

    interessante. Disputando a função com Joaquim Pereira do Amaral em 1808, arrastou o

    processo por sete meses. No entanto, apenas vontade não bastava a quem não tinha negócios

    com escravos e, por isso, ignorava seus valores; não tinha nenhum tipo de ocupação, batendo

    à porta da Câmara como quem buscasse simplesmente um emprego e; por fim, padecendo desurdez.17  Diferente de Pereira do Amaral que negociava escravos, Tibúrcio Pamplona foi

    considerado pela Câmara “hum individuo totalmte  inhabil, pela sua imperícia, e pela sua

    surdes, de bem exercer o Off o de avaliador dos Escros”.18 Não havia, portanto reciprocidade

    entre o desejo de poder e o esperado para a representatividade.

    Jozé Soares Pinho é outro caso típico de não adequação ao mundo da ordem. Em 4 de

    novembro de 1826 tentou indicar seu filho na função de Avaliador de escravos. O jovem, no

    entanto, não preenchia as exigências da Câmara. Era menor de 25 anos, até aí nada de mais,

    porém, cigano. Este fato dependeria dos demais capitais que o jovem fosse capaz de ostentar.

    Contudo, “se achava reduzido ao estado de indigência”.19  Ter menos de 25 anos pode

    resolver-se com o tempo. Não conhecemos casos de alguém com esta idade nas funções

    camarárias, mas, cremos que este é dos males o menor. O mesmo podemos falar de ser

    cigano. Vimos, anteriormente, que este fato não era decisivo para a exclusão dos indivíduos.

    Gerava algum preconceito, mas, plenamente vencível com o acúmulo de algum capitaleconômico. Estar, contudo, indigente, era demais. Esta informação vetou o acesso ao cargo de

    nosso jovem pretendente. É adequação exacerbada ao concebido por desordem. Não entrando

    o filho, tentou o pai.

     Illmo

     Senado

    17

     AGCRJ: 6-1-11, f. 7.18 AGCRJ: 6-1-11, f. 15.19 AGCRJ: 6-1-12, f. 32.

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     Diz José Soares Pinho homem branco Cidadão Brazileiro maior de 50 annos

    cazado, e onerado de 4 f os

     sem meios para os manter pelo actual estado de indigência

    a que se acha reduzido pela falta de bens, que a sua noticia chega, q hum dos

     Avaliadores dos Escr os

      do Conselho Joaqm  José Per 

    a  do Amaral se auzentara

     fugitivamte deste cid 

    e para fora do Imperio deixando em abandono o exercicio do d 

    empredo o qal

     não pode sufrer pelo prejuízo q resulta as partes hum s[o momento de

    vagança sem haver quem o supra, ao menos interinamte  em q

    to  se verifica a sua

    vagatura; e como o Sppe se persuade concorrer nele os precizos conhecim

    tos para bem

     poder servir pela muita pratica q tem tido no giro do negócio de vender Escos

     em que

    se tem empregado por mtos

      annos, recorre pois a VVSS as

      hajão de nomearem para

    servir o d o Emprego ao menos na auzencia do Sup

    de até que se realize a vagança do

    mmo

     por não sofrer o publico impate nos seos negócios.

    P. a VVSS as

     lhes facão a graça q suplica atento ao exposto

     Jozé Soares de Pinho [Ass.]20

     

    Homem branco e maior de cinqüenta anos podem até dizer algo que possa promover.

    No que se refere ao ofício pretendido, atestar experiência em negociar escravos mais ainda. O

    grande problema de Soares Pinho, de seu filho e de todos aqueles que não assumiram afunção é a falta de capital econômico. Pereira do Amaral, por exemplo, era comprovadamente

    cigano. O preconceito em torno da etnia cedeu lugar ao acúmulo de capital econômico. No

    caso em questão, é a falta deste capital que posiciona mal socialmente e não lhe dá acesso à

    função. Sabemos que “os negociantes, em seu intuito de ascender na sociedade de Corte,

    gastavam boa parte de suas fortunas a fim de obterem (...) prestígio social”. (GORENSTEIN,

    1992:191) Diversos negociantes procuravam ocupar funções que pudessem trazer algum

    reconhecimento social. Fica fácil entender, então, porque os negociantes de escravos

    buscavam ocupar-se como Avaliadores. O caminho inverso, no entanto, não era tolerado. Um

    negociante arrasado financeiramente não poderia ascender aos ofícios municipais. Aliais,

    todos aqueles que afirmaram ser negociante de escravos e demonstraram localização no

    campo social receberam provimento na função.

    20 AGCRJ: 6-1-12, f. 42.

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    José Soares Pinho, por sua vez, não era portador de muitos capitais. Em inventário

    aberto após a morte de sua mulher D. Thereza Maria de Jesus, em 1833,21 o Juiz dizia não

    entender por que tanta briga por uma escrava apenas.22 Nos pareceu, segundo o inventário,

    que seu genro Bento estava obcecado no único bem da família, sobre o qual pediu, inclusive,

    uma avaliação.23  Definitivamente, Soares Pinho, não parecia ostentar cabedal suficiente,

    segundo o esperado pelos homens bons  do termo, para assumir a função de Avaliador de

    escravos.

    Antônio José Pereira do Amaral estava tentando a vaga de seu sobrinho Joaquim José

    Pereira do Amaral. Este foi para Portugal e deixou filhos pequenos. O pretendente, tio-avô

    das crianças por elas se responsabilizou e tentou assumir as funções deixadas por seusobrinho.24  Disputando a função com o Capitão Daniel Luiz Vianna e José Soares Pinho,

    poucas chances couberam-lhe. Soares Pinho já vimos sua situação. Luiz Viana, no entanto,

    era “Capitão” e traficava escravos a mais de vinte anos.25 Levou testemunho sobre seu trato

    com escravos e idoneidade.26 Antônio José Pereira do Amaral, por sua vez, apresentou apenas

    a necessidade e o parentesco com alguém que abandonou a função sem dar explicações.27 O

    que identifica nossos excluídos é, sem dúvida alguma, a necessidade, o caos e a legitimação

    do regime de verdade pela vontade.

    Licenciado para atuar em conformidade com a legalidade, em benefício do próprio

    Estado sobre a escravaria, o Avaliador, como agente nomeado, passava a gozar de um

    conjunto de relações sociais, junto ao Senado a quem jurava bem servir em nome de sua

    Majestade para a satisfação pública. Mais que idoneidade, era preciso uma boa dose de capital

    social. Vimos o quanto uma indicação era importante para a permanência na função. Mais que

    isso, era preciso reciprocidade com quem detinha o poder político num duplo beneficiamento.De certo, o Avaliador de escravos fazia mais que apreçar, ele localizava socialmente o

    escravo a partir de uma série de predicações, conformes o regime de verdade estabelecido e

    segundo os quais, hierarquizava-o. Evidente que existe muito mais a ser dito. Há, no entanto,

    21 AN: Inventários post mortem da Vara Cível do RJ, no 882, cx. 301.22  Idem, f. 12v.23  Idem, f. 15.24 AGCRJ: 6-1-12, f. 50.25

     AGCRJ: 6-1-12, f. 43.26 AGCRJ: 6-1-12, f. 44.27 AGCRJ: 6-1-12, f. 47.

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    um provérbio africano que diz assim: “a sola do pé conhece toda a sujeira da estrada”. Este é,

    portanto, o resultado de uma caminhada que se fez no próprio exercício de caminhar. É um

    olhar sobre o caminho. Outros olhares são bem-vindos.

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    BASILE, Otávio N. de C. O Império Brasileiro: panorama político. In LINHARES, MariaYedda (org.). História Geral do Brasil. 9a ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 1990 – 11a reimpressão.FRAGOSO, João Luís. Homens de Grossa Aventura: Acumulação e hierarquia na praçamercantil do Rio de Janeiro (1790 -1839). Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1998.

    GORENSTEIN, Riva . Comércio e Política: o enraizamento de interesses mercantis portugueses no Rio de Janeiro (1808-1830). In: MARTINHO, Lenira Menezes;GORENSTEIN, Riva. Negociantes e Caixeiros na Sociedade da Independência. Rio deJaneiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro / Secretaria Municipal de Cultura, Turismo eEsportes / Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, 1992.PEREIRA, Antônio. A analítica do poder em Michel Foucault . Belo Horizonte: Autêntica;FUMEC, 2003VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.