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    National Network for Whole Health Care Workers: Reflections About Network Structure

    Artigo de reviso Rede Nacional de Ateno Integral Sade do

    Trabalhador (Renast): reflexes sobre a estrutura de rede

    Endereo para correspondncia: Avenida Leopoldo Bulhes, 1480, Manguinhos, Rio de Janeiro-RJ, Brasil. CEP: 21041-210E-mail: [email protected]

    Lus Henrique da Costa LeoEscola Nacional de Sade Pblica Srgio Arouca, Fundao Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro-RJ, Brasil

    Luiz Carlos Fadel de VasconcellosEscola Nacional de Sade Pblica Srgio Arouca, Fundao Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro-RJ, Brasil

    ResumoObjetivo: analisar a experincia de oito anos da Renast destacando diversos aspectos de sua dinmica de funcionamento.

    Metodologia: por meio de uma abordagem metodolgica qualitativa, realizou-se uma reviso do conceito de rede, aplicada ao campo da Sade, nas bases de dados Scielo, Medline e Lilacs, e procurou-se descrever a criao e implementao da Renast a partir de anlise de documentos primrios. Resultado: demonstram a necessidade de amadurecimento da Renast, para sua efetiva estruturao em rede. Concluso: considera-se que a perspectiva de rede pode ser uma utopia para seu avano.

    Palavras-chave: sade do trabalhador; rede; rede de ateno sade.

    SummaryObjective: analyze the experience of eight years of RenasT thighlighting various aspects of their working dynamics.

    Methodology: through a qualitative methodological approach, a revision of the concept of network was done, applied on the health, in Scielo, Medline and Lilacs data bases. Beyond, was realized the description of Renast creation and implementation from primary documents. Result: demonstrate the need for maturation of Renast for its effective organization in network. Conclusion: the network perspective may be an utopia for its development.

    Key words: occupational health; network; Renast.

    Epidemiol. Serv. Sade, Braslia, 20(1):85-100, jan-mar 2011

    doi: 10.5123/S1679-49742011000100010

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    Introduo

    A proposta de uma rede de sade do trabalhador no Sistema nico de Sade (SUS) surgiu em decor-rncia de uma reviso crtica que se fazia aos centros de referncia e programas de sade do trabalhador que no estabeleciam vnculos mais slidos com as estruturas orgnicas de sade, mantendo-se isolados e marginalizados. Alguns, inclusive, foram criados e desapareceram no decorrer das dcadas de 1980/90.

    Alm disso, esses centros no dispunham de qual-quer mecanismo mais efetivo de comunicao e rela-o entre si. Embora sua existncia fosse considerada estratgica para a consolidao da rea de sade do trabalhador no SUS, observava-se um esgotamento de sua capacidade de contribuir para novos avanos. As-sim, "se por um lado, a estratgia adotada de nuclear as aes de Sade do Trabalhador em Centros de Referncias permitiu avanos setoriais, acmulo de experincias e conhecimentos tcnicos, capacitao dos profissionais, facilitando, ainda que de modo fragmentado, a luta dos trabalhadores por melhores condies de vida e de trabalho, por outro, tem con-tribudo para manter a rea margem das polticas de sade do SUS, na medida que estes centros tm 'ficado de fora' do sistema como um todo".1

    A marginalidade institucional e a falta de recursos, inclusive pela ausncia de financiamento das aes, provocou um debate, na coordenao nacional de sade do trabalhador, entre 1999 e 2002, no sentido de rever a estrutura da rea como um todo. Nesse contexto "tornou-se urgente e necessrio, para a prpria sobrevivncia da rea, o desenvolvimento de novas estratgias visando romper com este 'gueto' e mergulhar profundamente nas polticas de sade do SUS. Para tanto, deve-se garantir a insero de suas prticas, tanto assistenciais como as de vigilncia, em todos os nveis do modelo tcnico-assistencial adotado pelo SUS".1

    Em 1999, por exemplo, entre os dias 16 e 18 de julho, foi realizado em Braslia o Encontro Nacional de Sade do Trabalhador: Desafios para a construo de um modelo estratgico, evento que reuniu representantes de vrios rgos pblicos, setores governamentais, universidades e movimentos sindicais, como Ministrio da Sade, Ministrio do Desenvolvimento, Central nica dos Trabalhadores (CUT), Conselho Nacional de Secretrios de Sade

    (Conass), Organizao Pan-Americana da Sade (OPAS), entre tantos outros.

    O encontro, de grande relevncia social e poltica, contou com a presena de quase 500 pessoas. Seu objetivo foi avaliar a trajetria da Sade do Trabalhador desde a promulgao da Constituio Federal, buscar compreender o cenrio que se vivia, poca, no mun-do do trabalho e propor novas formas de atuao para a promoo da vida dos trabalhadores, subsidiando o planejamento de aes da rea no Brasil, no que tange vigilncia, assistncia, informao, formao de recursos humanos, entre outros.2

    Naquele momento, pontos crticos da rea foram notados, como a necessidade de organizar a sade do trabalhador em todos os nveis da ateno, unificar as vrias prticas por meio de protocolos, elaborar projeto nacional de capacitao e formao, aumentar a articulao entre gestores e movimentos sociais, criar novas metodologias para a vigilncia em sade do trabalhador, construir indicadores para o planeja-mento das aes, rever o modelo calcado nos centros de referncia, no sentido de sua avaliao, e redefinir seu papel de plo de difuso e de realizao de aes, entre outras coisas.2

    Havia um consenso entre os tcnicos, na ocasio, de que a constituio de uma rede integradora poderia servir como fator impulsionador da consolidao da rea no SUS, trazendo novos aportes para a constitui-o de uma cultura mais slida do campo. Tendo como princpio formulador bsico a ideia da integrao e harmonizao das iniciativas institucionais do campo, a rede abriria espaos de debate mais qualificados para a institucionalidade da sade do trabalhador no SUS.

    Nesse sentido, em 2000, realizado um encontro sobre a criao da Rede de Sade do Trabalhador por iniciativa de tcnicos da Coordenao de Sade do Trabalhador (Cosat), da Secretaria de Polticas de Sade do Ministrio da Sade (MS). Ao mesmo tempo, outra proposta de rede era gestada por assessores da

    Tendo como princpio formulador bsico a ideia da integrao e harmonizao das iniciativas institucionais do campo, a rede abriria espaos de debate mais qualificados para a institucionalidade da sade do trabalhador no SUS.

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    Secretaria de Assistncia Sade (SAS) do mesmo Ministrio da Sade. A primeira proposta de rede acabou se perdendo, e em meio a conflitos no mbito do MS, em 2002, foi criada a Rede Nacional de Ateno Integral Sade do Trabalhador (Renast), pela Por-taria GM/MS n 1.679, de 19/09/2002, proposta que expressou o desejo de apenas um grupo.3

    A Renast, cuja finalidade era criar uma rede, como o prprio nome preconiza, articulando as aes de sade do trabalhador no contexto do SUS, conferindo orga-nicidade aos servios existentes no pas e buscando dar visibilidade rea na estrutura do SUS, foi sendo revista por meio de novas normativas, que tambm dispem sobre sua estruturao. Em 2005, portanto, a Renast foi revista e ampliada, por meio da Portaria GM/MS n 2.437, de 07/12/2005, e novamente em 2009, pela necessidade de adequao ao Pacto Pela Vida e em Defesa do SUS, com a Portaria n 2.728, de 11/11/2009.

    Neste texto, a partir de uma breve discusso sobre o conceito de rede, aplicada ao campo da Sade, procura-se resgatar a histria da Renast, debater sua organizao e dinmica de ao, destacando as dificuldades de sua estruturao em rede.

    Metodologia

    No que tange metodologia, esta uma pesquisa qualitativa, de cunho bibliogrfico, constituindo uma reviso crtica da literatura sobre os conceitos de rede e anlise de documentos primrios relacionados Renast.

    Alm de levantamento de literatura em geral, como textos, livros e documentos relacionados ao constructo rede, realizou-se uma reviso sobre o conceito de rede nas bases de dados indexadas Scielo, Medline e Lilacs, relacionando-o com os temas sade e sade do trabalhador.

    Como estratgia de busca nessas bases de dados, utilizou-se os termos rede, sade, sade do trabalhador, fazendo os cruzamentos entre eles da seguinte maneira: rede AND Sade e Rede AND Sade do Trabalhador. Em um segundo momento, realizou-se a busca por meio do termo renast, a fim de verificar publicaes especficas sobre essa temtica.

    Como critrios de incluso de publicaes en-contradas, optou-se por analisar textos que tinham como objeto o conceito de rede relacionado rea da Sade, bem como textos cuja temtica central era

    a Renast. Foram excludas diversas publicaes que analisavam problemas de sade, questes relativas sade e trabalho que no analisavam a organizao das aes e servios de sade na rede SUS, bem como textos que no possuam relao com a Renast. Esse levantamento bibliogrfico, realizado em fevereiro de 2009, foi atualizado em outubro desse mesmo ano.

    Os artigos de peridicos, textos e documentos pri-mrios analisados referem-se ao perodo entre 1988 e novembro de 2009. A publicao da Portaria n 2.728, em novembro de 2009, foi o elemento de delimitao e recorte de tempo da presente investigao documental.

    Nas bases de dados na internet, identificamos grande quantidade de artigos relacionados rede, nas mais variadas reas do conhecimento. No entanto, quanto relao entre rede e sade, a produ-o diminui. Por exemplo: ao realizarmos a busca atravs do descritor rede, na base de dados Scielo, so encontrados 119 artigos; porm, ao cruzarmos com o descritor sade, o nmero reduz para 23. J na busca pelo cruzamento de rede com sade do trabalhador, nenhum artigo foi encontrado. Na Lilacs, o nmero de artigos para rede e sade do trabalhador identificados segundo os critrios desta pesquisa de 55. Destes, apenas um sobre a Renast, e alguns que mencionam os programas de sade do trabalhador e as redes de ateno sade em geral. Quanto Renast propriamente dita, pode-se dizer que no existem muitas anlises e publicaes, indicando que ainda baixa a produo em torno desse tema. Por exemplo, apenas trs estudos so encontrados no Lilacs, a partir da busca por Renast.

    Alguns livros e artigos no indexados tambm fo-ram importantes para a realizao da pesquisa sobre o conceito de rede, mostrando toda a polissemia do conceito. Por se tratar de um elemento de discusso que permeia vrios campos do saber, passando pela biologia, ciberntica, filosofia, sociologia, antropologia e administrao, fizemos uma reviso conceitual nessas reas do saber, destacando a relao deste constructo com o campo da Sade, pois interessava, justamente, investigar a relao entre a origem e usos dos conceitos de rede e sua aplicao no mbito da sade pblica.

    Fez-se necessrio, tambm, utilizar a tcnica de anlise documental das fontes primrias utilizadas na pesquisa, como Leis e Portarias federais, textos de encontros de profissionais do Ministrio da Sade, notcias veiculadas em canais do Ministrio da Sade,

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    informativos internos, relatrios de encontros regio-nais, estaduais e nacionais de sade do trabalhador, entre outros.

    A anlise dos dados foi efetuada por meio do mtodo de Anlise de Contedos, de acordo com a proposta de Bardin. Essa tcnica, de uso variado e adequado s pesquisas qualitativas, permite a verificao da hiptese e questo levantadas e a descoberta do que est por trs dos contedos manifestos em documentos e textos, bem como as condies de produo de suas mensagens.4

    Resultados

    Sobre o conceito de rede a palavra 'rede' tornou-se familiar, recentemente, em vrios contextos, sobretudo, na organizao de servios pblicos de sade. Contudo, na familiaridade da palavra, pode se esconder a polissemia e a complexidade do con-ceito, sendo utilizada de forma indistinta em diversos campos. Nohria considera que "esta proliferao indiscriminada do conceito de rede ameaa releg-lo ao status de uma metfora evocativa, aplicada to espontaneamente que acaba significando qualquer coisa".5 Da, a importncia de transformar a familiaridade em estranhamento, para favorecer a compreenso do conceito. Ento, o que uma rede? O que significa? Qual sua origem e conceituao?

    Mais recentemente, a expresso rede ganhou status diferenciado no vocabulrio da academia, em textos e documentos de organizaes privadas e movimentos sociais, e de modo relevante, como expresso na con-figurao de polticas pblicas. Sua utilizao, embora diversa, imprime a ideia de vnculos, contatos, ligaes, entrelaamentos, acordos, conexes, agenciamentos, colaboraes, articulaes de pessoas e instituies. Dessa forma, empresas, instituies e servios pblicos tm se organizado em torno de novas configuraes de servios em redes. Surgem, tambm, agrupamentos de movimentos sociais convergindo em redes e atuando em temas como justia, meio ambiente, sade, direitos humanos, entre outros.

    O conceito moderno de rede tem marcado presena na nova ordem econmica global e na organizao do mundo contemporneo: "Conquanto as noes mais tpicas do neoliberalismo mercado, concorrncia, privatizao, individualismo, competitividade, efi-ccia, eficincia, etc. se mantenham e continuem at a assumir um lugar preponderante nos dias de

    hoje, a nova lgica reticular ou conexionista tem vindo a incorporar outras noes, como as de rede, pacto, parceria, contrato, solidariedade, incluso, coeso social, entre outras, em torno de um ideal de colaborao, dilogo e consenso".6

    O surgimento do pensamento sistmico, na primeira metade do sculo XX, com a Teoria Geral dos Sistemas desenvolvida principalmente por Ludwig von Berta-lanffy, alm de representar uma revoluo na histria do pensamento cientfico ocidental, contribuiu para o desenvolvimento da noo de rede como organizao lgica da vida. O pensamento sistmico emerge como arcabouo conceitual geral, para unificar vrias disci-plinas cientficas isoladas e fragmentadas.7

    Aplicado de forma pioneira na biologia e, poste-riormente, na psicologia da gestalt e na ecologia, o pensamento sistmico holstico e integrador, opondo-se frontalmente ao pensamento mecanicista, reducio-nista, atomizado e fragmentrio. Entre essas matrizes de pensamento, h tenso entre as partes e o todo. O mecanicismo privilegia as partes, enquanto o sistmico, o todo, pois o todo mais do que a soma das partes. Capra7 assinala: "De acordo com a viso sistmica, as propriedades essenciais de um organismo, ou sistema vivo so propriedades do todo, que nenhu-ma das partes possui. Elas surgem das interaes e das relaes entre as partes. Essas propriedades so destrudas quando o sistema dissecado, fsica ou teoricamente, em elementos isolados. Embora possamos discernir partes individuais em qualquer sistema, essas partes no so isoladas, e a natureza do todo sempre diferente da mera soma de suas partes". Podemos inferir que as caractersticas-chaves do pensamento sistmico so a mudana das partes para o todo, seus nveis de complexidade e a percepo da vida como rede de relaes.

    A Teoria Geral dos Sistemas passou a ser aplicada s teorias de administrao, durante os anos 1960, com uma crescente difuso dos estudos organizacionais que enfocam as formas, vantagens e configuraes de organizaes em rede, intra e inter-organizacionais. A noo de rede, de maneira geral, vem sendo idea-lizada como um formato organizacional democrtico e participativo, segundo o qual as relaes interins-titucionais caracterizam-se pela no-centralidade, no-hierarquizao do poder, tendentes horizonta-lidade, complementaridade e abertas ao pluralismo de ideias.8

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    Trata-se de um arranjo organizacional, formado por um grupo de atores que se articula para realizar obje-tivos complexos, inalcanveis de forma isolada. Nesse sentido, os princpios fundamentais da aplicao dos conceitos de rede so a interao, o relacionamento, a ajuda mtua, o compartilhamento, a integrao e a complementaridade.9

    Relevantes contribuies para a discusso do con-ceito de rede podem ser encontradas, tambm, nos escritos do pensador francs Edgar Morin, em seus estudos sobre a complexidade. Segundo esse autor, h necessidade de um pensamento que compreenda o conhecimento do todo e das partes como interdepen-dente e que examine fenmenos multidimensionais, em vez de isolar suas dimenses. Destarte, preciso substituir um pensamento que isola e separa por um pensamento que distingue e une.11 Ou seja, um para-digma da complexidade que aspire ao conhecimento multidimensional, oposto ao pensamento simplicador e mutilador, que quer o uno e no o mltiplo, que ca-racterizou, inclusive, a formao da cincia moderna.10 "A viso simplificada diria: a parte est no todo. A viso da complexidade diz: no apenas a parte est no todo; o todo est na interior da parte que est no interior do todo".10

    A complexidade , portanto, o que est junto, o tecido composto por fios diferentes, que se transfor-mam em uma s coisa, sem destruir, por outro lado, a variedade e diversidade daquilo que o tece. "Certa-mente, a ambio do pensamento complexo dar conta das articulaes entre domnios disciplinares, que so quebrados pelo pensamento disjuntivo (que um dos aspectos principais do pensamento simplificador); este isola o que separa e oculta tudo que o liga, interage, interfere."10

    No mbito das cincias sociais existem autores que tratam da temtica "redes sociais". Contudo, a ideia de redes sociais nasce mesmo na antropologia social e a primeira aproximao pode ser atribuda a Lvi-Strauss, em sua anlise etnogrfica das estruturas de parentesco. Assim, o conceito de rede tem a ver com a concepo de algo que construdo nas relaes do cotidiano, como redes de vizinhana, parentesco, ami-zade. Ressaltam-se, neste campo, os estudos das redes primrias, para indicar formas especficas de interao entre os indivduos de determinados agrupamentos.12

    Recentemente, por intermdio dos estudos do socilogo espanhol Manuel Castells, a noo de rede

    ganha relevo. No primeiro volume ("A Sociedade das Redes") de sua obra "A era da informao: Economia, Sociedade e Cultura", o autor analisa a nova tendncia do capitalismo, agora global, incrementado pelas novas tecnologias da informao e comunicao. Sua preocupao caracterizar a dinmica da sociedade na era da informao, pois a revoluo da tecnologia e da informao vm possibilitando um arranjo em forma de rede, em escala global. Como consequncia, as redes constituem a nova morfologia social da con-temporaneidade. Essa nova estrutura social questiona a era industrial desenvolvida at ento, pois o capital se torna global e estrutura-se em torno de uma rede de fluxos financeiros. Em suas palavras: "o poder dos fluxos mais importante que os fluxos do poder".13

    Com o propsito de conceituar rede, Castells elege trs principais componentes: um conjunto de ns inter-conectados; estruturas abertas de expanso ilimitada; e a capacidade de ser instrumento apropriado para o funcionamento da economia capitalista. De acordo com seu pensamento, esse conjunto de ns interconectados capaz de expandir-se integrando novos ns, desde que haja comunicao dentro da rede e que os ns compar-tilhem os mesmos valores e objetivos. Para que a rede funcione e desempenhe apropriadamente seu papel, dois de seus atributos so fundamentais: conectividade, que a capacidade estrutural de facilitar a comunicao sem rudos entre seus componentes; e coerncia, que se refere cooperao e ao compartilhar de objetivos comuns entre os atores da rede.

    Percebe-se, assim, que o conceito de rede implica uma multiplicidade de conceitos dspares, heterog-neos, ligados uns aos outros por construtos comuns, tais como integrao, ns, pontos, linhas, vnculos, conexo, que, independentemente do conceito ado-tado, tende a consolidar a cultura da cooperao.14

    No que tange relao entre o termo rede e os ser-vios de sade no Brasil, possvel perceber mudanas de concepo, conforme descrevem Zambenedetti e Silva,15 ao analisarem a noo de rede no processo de reforma sanitria e psiquitrica do Brasil. Os autores apontam, por exemplo, a importncia da 3 Confe-rncia Nacional de Sade (CNS), realizada em 1963, onde foram debatidos os problemas de concentrao poltica, administrativa e geogrfica dos dispositivos assistenciais, fazendo emergir a proposta de criao de uma rede bsica de servios mdico-sanitrios, cuja possibilidade de realizao foi interrompida com o gol-

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    pe de 1964. "Em vrias passagens dessa Conferncia menciona-se a palavra 'rede' rede hospitalar na-cional, rede de ambulatrios, rede nosocomial, rede bsica , designando meramente um conjunto de servios com caractersticas comuns. A ideia de rede est fortemente vinculada melhor distribuio dos servios de sade, constituio e ramificao desses servios pelo territrio nacional".15

    Em 1977, nas discusses da 6 CNS, na qual se falava em expanso da assistncia sade, a ideia da articu-lao entre os rgos que executam aes de sade ganha relevo "no apenas como um mero conjunto de servios de caractersticas semelhantes e bem distribudos espacialmente, mas como um conjunto de servios complementares uns aos outros, que devem conformar um sistema, exigindo ordenao, normatizao, racionalizao. A rede confunde-se com a prpria ideia de 'sistema' ou de 'estrutura' e expressa tanto o carter de 'fazer circular' quanto o de 'controlar' a partir da articulao dos diferentes servios situados nos estratos do sistema. No se trata apenas de ter uma rede, mas de funcionar em rede, de modo articulado, tendo em vista um vis topolgico-espacial".15

    Nas 7 e 8 CNS (1980 e 1986), entretanto, ganha corpo a noo de rede regionalizada e hierarquizada, ou seja, organizada em torno de um territrio espacial e em nveis de complexidade. esta a ideia presente na construo do SUS, referendado pela Constituio Federal de 1988, conforme o seu artigo 198: "As aes e servios pblicos de sade integram uma rede re-gionalizada e hierarquizada e constituem um sistema nico, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I descentralizao, com direo nica em cada esfera de governo; II atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuzo dos servios assistenciais; III participao da comunidade."16

    O SUS , na verdade, uma grande rede de sade do Brasil, elaborada em contraposio ao modelo de assistncia sade verticalizado, fragmentado e centralizado, que caracterizou a atuao em sade por longos anos. Ao longo da dcada de 1990, "foi possvel iniciar um processo de construo de estrutura alternativa lgica hierarquizada, marcada por decises centralizadas, tpicas do "modelo INPS". A arma mais eficiente para enfrentar a extrema ver-ticalizao de estruturas decisrias sempre a ideia de rede que privilegia interaes organizacionais".17

    no contexto da rede SUS que surge a Renast, cujo papel era unir e criar interaes entre os servios de sade do trabalhador, a rede de sade do Brasil e de-mais segmentos da sociedade responsveis e engajados na questo da sade dos trabalhadores.

    Sobre o processo de construo da Renast no decorrer da dcada de 1990, vrias iniciativas foram tomadas no sentido de consolidar a rea de sade do trabalhador no SUS. Podem ser destacadas: a realizao da 2 Conferncia Nacional de Sade do Trabalhador, em 1994; a elaborao da Norma Ope-racional de Sade do Trabalhador (Nost - Portaria 3.908/98); a publicao da Portaria n 3.120/98, que instituiu a Instruo Normativa de Vigilncia em Sade do Trabalhador; e da Portaria n 1.339/99, que insti-tuiu a Listagem de Doenas Relacionadas ao Trabalho. Ao final da dcada, integrantes da rea tcnica (Cosat - Coordenao de Sade do Trabalhador), abrigada na Secretaria de Polticas de Sade do Ministrio da Sade, formularam uma proposta para a constituio de uma Renast.

    Tendo em vista a disperso das aes nos centros e programas de sade do trabalhador, os tcnicos da Cosat propuseram a criao de uma rede que agre-gasse, articulasse e integrasse os diversos programas e profissionais de sade do trabalhador distribudos nos estados e municpios brasileiros. Encontro ocorrido em Braslia, em agosto de 2000, com a participao de vrios coordenadores e tcnicos de programas, debateu a criao da Rede Nacional de Sade do Trabalhador. A estrutura apresentada e analisada no encontro propunha a organizao em torno de ncleos de inteligncia, em nveis nacional, estadual, regional, consorcial e municipal, os quais estabeleceriam redes de formulaes, informaes, articulaes, capaci-taes, estudos, pesquisas e projetos estratgicos.18 Ademais, foi proposta a criao de uma rede virtual de

    O SUS , na verdade, uma grande rede de sade do Brasil, elaborada em contraposio ao modelo de assistncia sade verticalizado, fragmentado e centralizado, que caracterizou a atuao em sade por longos anos.

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    comunicao, que contribuiria para consolidar a or-ganizao da rede. Uma das primeiras iniciativas nessa direo foi a criao do InfoRedeST, um informativo bimensal destinado a "estabelecer um canal perma-nente de comunicao entre todas as instncias de Sade do Trabalhador, tais como os centros, progra-mas e servios municipais e estaduais do SUS, alm dos demais setores com interesse nessas questes ou que venham participando de aes relacionadas atuao na rea de sade do trabalhador, tais como universidades, rgos pblicos, sindicatos e profissionais de sade, entre outros".19

    Preconizava-se tambm o desenvolvimento de pesquisas multicntricas concentradas em torno de eixos comuns e articulados, de modo a evitar que se constitussem em experincias isoladas, pontuais e re-petitivas. Era uma tentativa de integrao entre projetos estratgicos de sade do trabalhador que vinham se desenvolvendo em pesquisas dispersas pelo pas, cuja mesma fonte de financiamento no impedia a dupli-cao dos instrumentos e meios, sem qualquer con-trole. Uma vez configurada a rede, a Cosat, enquanto coordenao tcnica nacional, poderia fortalecer cada um dos projetos, particularmente, e seu conjunto, na medida em que impedisse sua duplicao, otimizando a utilizao de recursos financeiros e o intercmbio tcnico-cientfico.20

    A proposta original da Renast no se efetivou, contudo, devido a dificuldades de articulao na prpria estrutura ministerial. At 2002 existiam duas secretarias no Ministrio da Sade: a Secretaria de Polticas de Sade (SPS), na qual situava-se a Cosat, e a SAS, que abrigava desde 1999 uma assessoria de sade ocupacional. A fragmentao institucional no MS refletia o prprio campo da sade do trabalhador, cuja dificuldade em estabelecer articulaes e conexes havia suscitado o propsito de constituio da rede.3

    Sem que fossem superadas as dificuldades de articulao interna, em 2002, e sob crticas de diversos setores Cosat, Conass, CUT, entre outros , por intermdio da Portaria n 1.679/2002, foi instituda a Renast, baseada na verso elaborada pela SAS. As crticas recaam, principalmente, sobre o processo de elaborao, em que ficou patente a desarticulao das reas de poltica e assistncia do MS e as divergncias entre elas sobre o modelo da rede. Os tcnicos da Cosat discordavam da tnica assistencialista da Renast.3

    Assim instituda, a Renast, textualmente, tinha o propsito de articular aes de promoo, preveno e recuperao da sade dos trabalhadores urbanos e rurais, independentemente do vnculo empregatcio e tipo de insero no mercado de trabalho, de forma regionalizada e hierarquizada. A rede desenvolver-se-ia de maneira articulada entre as esferas de governo (MS e secretarias estaduais e municipais) e a organizao de aes de sade do trabalhador articular-se-ia em trs contextos: rede de ateno bsica e do progra-ma Sade da Famlia; rede de centros de sade do trabalhador (estaduais e regionais); e aes na rede assistencial de mdia e alta complexidade.

    Na Renast, os Cerest seriam servios articuladores da rede e de retaguarda do SUS, conforme se l no texto da Portaria n 1.679. "Os Centros de Referncia em Sade do Trabalhador devem ser compreendidos como plos irradiadores [...] assumindo a funo de suporte tcnico e cientfico [...]. Suas atividades s fazem sentido se articuladas aos demais servi-os da rede do SUS, orientando-os e fornecendo retaguarda nas suas prticas, de forma que os agravos sade relacionados ao trabalho possam ser atendidos em todos os nveis de ateno do SUS, de forma integral e hierarquizada. Em nenhuma hiptese, os CRST podero assumir atividades que o caracterizem como porta de entrada do sistema de ateno".21

    A Portaria n 1.679, portanto, possibilitou a ha-bilitao de centros de referncia em todo o pas. Especialmente por meio de incentivos financeiros, rubricados na alta complexidade do MS, grande parte dos centros j existentes e outros tantos criados no perodo passaram a se habilitar na Renast, de modo a receber um aporte mensal de recursos que se pro-punha a financiar aes em sua rea de abrangncia, de acordo com critrios estabelecidos na Portaria.

    Apesar desse aporte financeiro e aumento de nme-ro de Cerest no Brasil, possvel dizer que a Renast, como estratgia de articulao das aes de sade do trabalhador no SUS, a par dos avanos, obteve resultados situados aqum das expectativas iniciais.3,22

    Nos trs anos seguintes, a necessidade de efetuar ajustes e incorporar novas formas de atuao da Renast convergiu para a publicao da Portaria n 2.437/2005. O documento visava ampliar e fortalecer a Renast, mediante: organizao de servios e munic-pios-sentinela; implementao de aes de vigilncia e

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    promoo da sade; fortalecimento do controle social; e aumento do repasse financeiro.

    De acordo com o texto dessa Portaria, o principal objetivo da Renast seria integrar a rede de servios do SUS voltados assistncia e vigilncia, a fim de desenvolver as aes de sade do trabalhador. Desse modo, os Cerests autuariam como unidades especiali-zadas de retaguarda tcnica para as aes, conforme o anexo IV dessa normativa. Nessa Portaria, foi adotada, oficialmente, a nomenclatura de Centros de Referncia em Sade do Trabalhador, e recomendada sua deno-minao em todos os estados da Federao.23

    Tanto a Portaria n 1.679/2002 quanto a Portaria n 2.437/2005 estabeleciam a relao de profissionais que deveriam compor os recursos humanos dos Cerest, fazendo parte da equipe mdicos, enfermeiros, tcnicos de segurana do trabalho, entre outros. A Portaria de 2005 recomendava que os profissionais de nvel supe-rior comprovassem experincia (mnimo de dois anos) em servios de sade do trabalhador ou especializao em Sade Pblica ou Sade do Trabalhador.

    A necessidade de adequao da Portaria n 2.437 ao Pacto pela Vida e de Gesto, de 2006, motivou a pu-blicao de outra normativa: a Portaria n 2.728/2009, que volta a dispor sobre a implementao da Renast.24 Em seu texto, ressalta a exigncia de pactuao nas comisses intergestoras bipartite e tripartite (CIB e CIT), seguindo a lgica de gesto do sistema que bus-ca o consenso interfederativo, consoante com o SUS. Contudo, vrias iniciativas so elencadas na Portaria, como pontos de pactuao futura, dependentes de realidades contextuais muito distintas em nosso pas. O fato vislumbra novas dificuldades.

    A Portaria, todavia, mantm as mesmas diretrizes de incluso, implementao e fomento da Renast, fato que demonstra as dificuldades de implementao das aes propostas nas Portarias anteriores.

    Em sntese, a Renast definida como uma rede nacional de informao e prticas de sade, organizada com o propsito de implementar aes assistenciais, de vigilncia e de promoo, qualificando a ateno sade j exercida pelo SUS. Sua estrutura intenciona, a partir de centros de referncia, servios de sade de retaguarda de mdia e alta complexidade e municpios-sentinela organizados em torno de um dado territrio, estabelecer fluxos de ateno aos trabalhadores em todos os nveis, de modo articulado com as vigilncias sanitria, epidemiolgica e ambiental.1

    A organizao de municpios-sentinela que propi-ciem a produo, sistematizao e disponibilizao da informao em sade do trabalhador deve ser definida "a partir de dados epidemiolgicos, previdenci-rios e econmicos, que indiquem fatores de riscos significativos sade dos trabalhadores, oriundos de processos de trabalho em seus territrios" e pactuada na CIB e na CIT, de acordo com Portaria n 2.728/2009.

    At maro de 2009, a Renast possua 178 Cerest habilitados no Brasil, conforme essa mesma Portaria indica,24 e diversos servios mdicos e ambulatoriais de mdia e alta complexidade constituintes da rede sentinela, responsveis pelo diagnstico de doenas e acidentes relacionados ao trabalho e pelo seu registro no Sistema de Informao de Agravos de Notificao (Sinan), conforme preconiza a Portaria GM/MS n 777, de 28/04/04.25

    Embora a Renast tenha sido concebida como rede de informao, vigilncia, capacitao, assistncia, investigao, pesquisa, controle social, comunicao e educao em sade do trabalhador, sua trajetria vem denotando impasses e obstculos para sua efetiva implementao.

    Andrade e Kassawara,22 em pesquisa de 2004, realizada em cinco Cerest regionais, trs estaduais e um municipal, localizados em trs estados brasileiros, verificaram concentrao na assistncia, inexistncia de um sistema de capacitao, inexistncia de um sis-tema de informao e falta de canais de comunicao, entre outros problemas apontados pelos membros entrevistados nesses centros.

    Noutra pesquisa, realizada em 2006, em vrios municpios do estado da Bahia, grande parte das atividades dos Cerest se concentravam em "consultas em medicina do Trabalho".26

    Em 2008, um encontro realizado no Norte Flumi-nense evidenciou alguns pontos crticos na regio: escassez de ao de vigilncia em sade do trabalhador, baixa articulao intra-setorial, inexistncia de pactos intersetoriais e baixa comunicao em sade do tra-balhador entre os municpios da regio.27

    A anlise de algumas normativas da Renast permite perceber tentativas de mudanas para engendrar maio-res articulaes no contexto da Rede. Por exemplo, a Portaria n 1.679 faz aluso a uma rede de sade de carter mais intra-setorial; j a 2.437 e a 2.728 ampliam essa viso sob uma lgica de rede intra e inter-setorial.

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    Todavia, os exemplos acima citados demonstram a dificuldade de implementao de aes em rede apenas por medidas normativas, sem maior partici-pao das partes envolvidas no processo, inclusive as representaes dos trabalhadores.

    So ainda escassos os trabalhos analticos sobre a estruturao e funcionamento da Renast. Com a informao acumulada no convvio com profissionais e atores da rea tcnica de Sade do Trabalhador do MS e dos Cerest, e a anlise de textos e documentos relacionados Renast, possvel, entretanto, discutir o estado das prticas da Renast.

    Discusso

    Tendo-se refletido sobre o sentido e significado da palavra rede e a descrio da Renast, discute-se aqui a relao entre o conceito de rede e a configurao da Renast desde que esta no tem atuado, a rigor, na perspectiva de rede. A Renast, assim, encontra dificul-dades em sua estruturao como rede. Para se chegar a essa concluso, nossa reflexo se baseia nos seguintes pontos de crise da Renast: 1) a ausncia de uma con-cepo de integralidade; 2) a nfase desproporcional em uma das partes da ateno o assistencialismo; 3) a ausncia de mecanismos visceralmente mais slidos e compulsrios de articulao e comunicao; 4) a heterogeneidade da insero institucional dos centros de referncia; 5) o reconhecimento imprprio dos membros dos Cerest em relao a seu papel; e 6) a ausncia de uma misso estruturante. Vejamos um a um desses pontos.

    1) A ausncia de uma concepo de integralidade O SUS tem como um de seus primados doutrinrios

    a questo da integralidade. De um lado, sua ideia fundamentada no contraponto ao modelo terico-conceitual fragmentador e redutor da sade biolo-gia, ao cuidado segmentado e ao modelo assistencial hospitalocntrico;28 de outro lado, "o princpio da integralidade tem repercusses sobre o arranjo das instituies governamentais voltadas para formular e implementar as polticas de sade".29

    Considerando que a Renast pretende ser uma rede de ateno integral, seus pilares estruturadores das aes e servios deveriam buscar, mais claramente, contrapor-se ao modelo fragmentador, inserindo-se de

    forma mais ostensiva na formulao das polticas de sade voltadas aos trabalhadores. Nessa perspectiva, a Renast deveria atuar como estratgia estruturante de aes e servios menos assentados no modelo assis-tencial e mais nas prticas de vigilncia da sade, na ateno primria, na educao popular e na educao permanente dos profissionais do sistema de sade como um todo, para ficar em alguns.

    Para ser coerente com a integralidade, a Renast deve doutrina um comportamento holstico sobre as relaes sade-trabalho que, embora a Lei re-gente do SUS tenha apontado, no foi considerado. Podemos destacar, entre as atividades previstas na Lei Orgnica de Sade, a vigilncia epidemiolgica e sanitria, a promoo, a proteo, a assistncia, a recuperao, a reabilitao, a realizao de estudos, pesquisas, avaliao e controle dos riscos e agravos potenciais, a normatizao, a fiscalizao e o controle da produo, a avaliao de impactos tecnolgicos, a comunicao e informao sobre os riscos, a nor-matizao, fiscalizao e controle dos servios nas instituies e empresas pblicas e privadas, a reviso peridica da listagem oficial de doenas e, finalmente, a postura de poder pblico garantidor da recusa ao trabalho em situao de risco iminente sade dos trabalhadores.30

    A Portaria n 2.728, de certa forma, aponta na direo da integralidade ao preconizar a implanta-o das aes de promoo, assistncia e vigilncia em sade do trabalhador na rede SUS, inclusive indicando o estabelecimento de instrumentos que possam favorecer a integralidade. Entretanto, a nfase da Renast tem se voltado ao assistencialismo, como veremos adiante.

    2) A nfase desproporcional em uma das partes da ateno o assistencialismoLoureno e Bertani31 afirmam que apesar do campo

    sade do trabalhador ter sido construdo com a par-ticipao de vrios atores sociais e polticos e de ter sido reconhecido no plano legal, no foram efetivadas novas prticas para alm da assistncia mdica, salvo algumas aes inusitadas, todavia focais. Embora se perceba, em algumas regies, aes efetivas de vigi-lncia e capacitao, por exemplo, a tnica do modelo Renast recaiu sobre a assistncia, conforme o prprio texto de sua fundao: Portaria n 1.679; e o manual de gesto da Renast, de 2006.

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    A nfase na assistncia mdica caracterizou a orga-nizao da Renast como favorecedora de uma lgica mecanicista (lgica das partes), em detrimento de uma perspectiva holstica (lgica do todo) mais condizente com a real efetivao de uma rede. Desde sua formu-lao, a nfase assistencial refletia o financiamento da Renast originado na rubrica da alta complexidade ministerial. Uma tendncia ao predomnio das aes de assistncia em detrimento das aes de vigilncia e promoo da sade do trabalhador, de certo modo, impediu uma vocao de cunho mais preventivo. Se um determinado fator componente da estrutura da rede retm maior nfase, afrouxam-se os laos com outros fatores, comprometendo a estrutura reticular.

    No processo de elaborao da Portaria n 1.679/2002, o foco assistencial da Renast j era assinalado: "Apesar das crticas e dos desencontros institucionais observados no processo de elabora-o desse instrumento, em particular nfase nas aes assistenciais, a portaria foi apoiada pelos profissionais e tcnicos dos CRST e setores do mo-vimento dos trabalhadores, que reconheceram na iniciativa uma oportunidade de institucionalizao e fortalecimento da Sade do Trabalhador, no SUS".32

    Nessa linha, a Renast passou a ser confundida com uma nova rede de assistncia sade do trabalhador paralela rede de servios de sade j existente no SUS. No anncio ministerial feito por ocasio do lanamento da Portaria n 1.679/2002, no Informe Sade, ano VI, n 182, de setembro de 2002, lia-se: "Trabalhadores tero rede de assistncia no SUS".33 Alm da nfase na assistncia, o anncio denota uma perspectiva de compartimentalizao e distanciamento das prticas correntes da rede SUS.

    Conforme informaes do prprio stio eletr-nico oficial do MS, acessadas no incio de 2009, por exemplo, "os Centros de Referncia prestam assistncia aos trabalhadores que adoecem ou se acidentam, promovem, protegem e recuperam os trabalhadores, alm de investigar as condies de segurana dos ambientes de trabalho".34

    O Manual de Gesto e Gerenciamento da Renast, lanado em 2006 pelo MS, corrobora esse entendi-mento ao atribuir aos Cerest "aes assistenciais individuais, como atendimento, acolhimento do usurio, consultas, exames e orientaes".35

    A prpria denominao 'centro de referncia', presente nas normativas da Renast (Portarias n 1.679,

    2.437 e 2.728), carrega um sentido organizacional de perspectiva ambulatorial e curativa, ou mesmo de centro especializado em tratamentos. A lgica assis-tencialista e o enfoque 'medicocntrico', provenientes da cultura da doena, por certo, est por trs dessa nomenclatura. O modelo favorece a convergncia de aes assistenciais em sade do trabalhador para os centros de referncia e impede a disperso das aes sistmicas a partir dos centros, na medida em que os servios do SUS demandam aos Cerest o atendimento aos acidentados e doentes do trabalho. Uma desejada ao centrfuga para consolidar a sade do trabalha-dor no SUS acaba em ao centrpeta, que favorece o isolamento e a imobilidade.

    No ano 2000, a proposta original da Renast, formu-lada pela Cosat, estruturava no centros de referncia e sim ncleos de inteligncia que fomentariam polticas locais de sade do trabalhador, agregando agentes e setores intra e inter-institucionais, atores e movimen-tos sociais e instncias pblicas em torno da relao sade-trabalho, nos processos produtivos do seu raio de abrangncia.

    Os tcnicos da Cosat que se contrapunham nfase no assistencialismo, poca da publicao da Portaria n 1.679/2002, emitiram parecer sobre esta, na qual assim se expressavam: "em sntese, o modelo de ateno a partir da estruturao de centros de refe-rncia, funcionou e vem funcionando, como porta de entrada de casos e, muitas vezes, como clnicas de atendimento de acidentados de trabalho".36

    Ainda que as Portarias n 1.679, 2.437 e 2.728 pro-bam expressamente que os Cerests assumam funes correspondentes aos Servios Especializados de Segu-rana e Medicina do Trabalho, ou funcionem como porta de entrada do sistema de sade, a nomenclatura e modelo Cerest favorece a nfase na atuao mais assistencial que preventiva, principalmente em regies onde o controle social em sade do trabalhador esteja enfraquecido, e os Cerests desarticulados em relao s estruturas das secretarias de sade.

    A Portaria GM/MS n 1.956, de 14/08/2007, que dispe sobre a coordenao das aes relativas sade do trabalhador no mbito do Ministrio da Sade, determina que a gesto e a coordenao das aes de Sade do Trabalhador promovidos pelo MS sejam exercidas pela Secretaria de Vigilncia em Sade. Esta mudana, de cunho institucional, na rea tcnica da Sade do Trabalhador pode representar um avano na

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    proposio das aes da Renast, no sentido de auxiliar na implementao de aes sistemticas de vigilncia em sade do trabalhador em detrimento das assisten-ciais, independentemente das configuraes regionais onde estejam inseridos determinados Cerests.37

    3) A ausncia de mecanismos visceralmente mais slidos e compulsrios de articulao e comunicao A ligao entre os Cerest, cuja capacidade de comu-

    nicao em rede, fazendo-os dialogar, permite a ampla circulao de informao e estabelece mecanismos de cooperao entre si, no identificada na Renast. A parceria e a conectividade so ainda incipientes e dependentes de aes voluntaristas de alguns tcnicos dessas instncias. Nos ltimos anos, foram realizados alguns encontros, conferncias e eventos sobre temas de sade do trabalhador promovidos pela coordenao nacional e pelos prprios Cerest, sem qualquer garan-tia de comunicao contnua e sistemtica entre eles.

    Apesar das atuais possibilidades oferecidas pela informtica, de rapidez na comunicao e na es-tocagem e circulao da informao, o que pode conferir eficcia s redes,11 entre os Cerest, no se verificam mecanismos efetivos de comunicao com a misso de conect-los permanentemente entre si. O fato favorece o isolamento e o distanciamento entre esses servios.

    Disseminados pelo territrio brasileiro, os centros componentes do modelo Renast parecem manter sua identidade de rede to somente na uniformizao da nomenclatura Cerest, cujas atividades so desu-niformes, errticas e inconsistentes, no sentido da consolidao da poltica.

    O que se observa um conjunto de servios de sade do trabalhador desarticulados, sem efetividade e sem constituir uma rede, sob a perspectiva sistmica. Como vimos, o pensamento sistmico considera que nas partes isoladas umas das outras, no so encon-tradas as propriedades do todo: "a natureza do todo sempre diferente da mera soma de suas partes".7

    O conjunto dos Cerest, no Brasil, no configura um sistema reticular e sim, to-somente, um somatrio de partes isoladas, desconectadas e dispersas entre si, em que a lgica sistmica no impera. De acordo com Castells,13 sem conectividade e coerncia no existe rede. o caso dos Cerest, componentes de grande relevncia na Renast. Segundo a Portaria n 2.728,

    inclusive, a implementao da Renast dar-se-ia por meio da "estruturao da rede de Centros Refern-cia em Sade do Trabalhador, entre outras aes, elencadas no texto".24

    Desde o incio da Renast, algumas iniciativas foram tomadas pelo MS no sentido de estabelecer mecanis-mos de informao e articulao, ainda que tmidas. Uma delas foi a criao do Observatrio de Sade do Trabalhador em parceria com a Organizao Paname-ricana da Sade, que atendia a demandas antigas como: organizar uma inteligncia central para a Renast; esta-belecer indicadores de sade do trabalhador e eventos sentinela; e, entre outros, estabelecer indicadores de gesto e de avaliao da qualidade dos dispositivos da Renast. Segundo informaes do prprio stio ele-trnico,38 em fevereiro de 2009, o observatrio havia sido visitado 86.121 vezes desde dezembro de 2003 (1.360 visitas por ms, em mdia). Porm, s havia informaes sobre a Renast referentes ao ano de 2003. Mesmo depois da publicao da Portaria de 2005, no havia sido inserido algo novo. Por exemplo, no quadro "Envie-nos sua experincia", havia apenas um relato. Essa escassez de participao aponta para a ausncia de intercmbio, a fraca articulao e, enfim, a falta de uma perspectiva de rede entre os atores institucionais da Renast.

    A criao da Biblioteca Virtual em Sade do Tra-balhador, outra iniciativa, pode contribuir para a pes-quisa, disponibilizando dados e outros recursos para atualizao das equipes dos Cerest e pesquisadores da rea. Porm, a difuso de material na internet no suficiente para a estruturao de uma rede: "A nfase na articulao, na comunicao e no financiamen-to precisa culminar num estgio superior, que o do trabalho permanente da rede como um todo, para alm dos momentos ocasionais de reunies e da mera difuso pela Internet".39

    Em matria de comunicao, o Ministrio da Sade, em 2007, desenvolveu um informativo denominado COSAT Informa! ..., com o objetivo de "orientar e manter informadas as equipes dos Centros de Refe-rncia em Sade do Trabalhador sobre as atividades desenvolvidas pelo Ministrio da Sade, bem como sobre temas relevantes relacionados Sade do Trabalhador".40

    Iniciado em janeiro de 2007, o informativo teve cinco edies que funcionaram como um jornal mu-ral para os Cerest. A estratgia durou pouco tempo,

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    at a ltima edio, no ms de julho do mesmo ano. Embora tenha sido uma boa iniciativa, so necessrios outros mecanismos horizontais de comunicao, mais condizentes com a noo de rede.

    Por certo, a disponibilizao de recursos finan-ceiros mensais da Renast para o funcionamento dos Cerest deveria estabelecer mecanismos mais orgnicos de articulao e comunicao, exigindo contraparti-das de cada nvel local nessa direo. A ausncia de indicadores de resultados de constituio de rede um fator central do problema. A tendncia tem sido de exigir indicadores de avaliao dos Cerest na linha assistencial, o que agrava o problema.

    4) A heterogeneidade da insero institucional dos centros de refernciaA falta de padronizao da insero dos Cerest nas

    secretarias estaduais e municipais de sade ainda um ponto crtico da sade do trabalhador no SUS, uma vez que, com a criao e implantao da Renast, persistem problemas dessa ordem.

    Ainda nos anos de 1999 e 2000, foi feita pela Cosat, por meio do informativo em rede (InfoRedeST), uma tentativa de levantamento da insero institucional dos programas de sade do trabalhador, estimados em 150 poca. Seu objetivo era, a partir de um diagnstico, avanar na padronizao das estruturas que, inseridas em inmeros locus, no guardavam qualquer coern-cia poltico-institucional entre si.

    Havia, ainda, uma discrepncia de denominaes que refletia, concretamente, a falta de uma perspectiva comum e integradora.19 A questo se reportava aos pri-meiros programas de sade do trabalhador da dcada de 1980, que surgiram como experincias isoladas e desconectadas entre si.

    As inseres dos programas de sade do traba-lhador, anteriores criao da Renast, eram muito variadas, ora em setores de Vigilncia Epidemiolgica, de Vigilncia Sanitria, da Rede Assistencial, e mesmo ligados diretamente gesto.

    Com a Renast, as diversas designaes dos pro-gramas, como coordenao, departamento, diviso, ncleo, centro, entre outras, foi padronizada como Cerest, embora alguns centros ainda exibam outra denominao, tais como o Cesat (Bahia) e o Nusat (Rio de Janeiro). Contudo, a esperada padronizao de sua insero institucional no ocorreu. O fato de as secretarias estaduais e municipais possurem

    estruturas organizacionais bastante distintas entre si no justifica a ausncia de uma padronizao mnima. A recomendao da Portaria n 2.437 para a adoo da nomenclatura Cerest por parte dos estados da Federao pode ser uma tentativa na direo da padro-nizao. Porm, tanto esta Portaria da Renast quanto as outras, 1.679 e 2.728, no determinam a insero padro dos Cerest.

    Desse modo, a despeito de a designao Centro de Referncia em Sade do Trabalhador ter sido oficia-lizada, no houve a homogeneizao da insero dos Cerest nas estruturas do SUS. Os Cerest continuam vinculados a distintas reas do setor Sade, o que pode repercutir na gesto dos centros, trazendo dificuldades integrao institucional e, mesmo, organizao das aes, dependendo de sua insero.

    Trata-se de um ponto crtico para alm da gover-nabilidade da prpria Renast, que deve ser levado s instncias de pactuao do SUS como parte da poltica nacional para a rea, o que , isso sim, funo da Re-nast. preciso refletir sobre qual tipo de estruturao da rea poderia melhor dar conta da complexidade da ateno sade do trabalhador. Conhecendo-se o desenho organizativo das estruturas existentes, pode-se adotar um modelo mais adequado s diversas realidades, segundo a articulao em rede, o que at hoje no foi realizado. As inseres diferenciadas na estrutura do SUS, seja na assistncia, na vigilncia ou em gerncias diversas acarretam disparidades na utilizao dos recursos, na autonomia decisria, no alcance das aes e nos nveis de interlocuo intra e intersetoriais.3

    5) O reconhecimento dos membros dos Cerest em relao a seu papelConsideramos que, de uma maneira geral, existe um

    reconhecimento inadequado do papel dos profissio-nais de sade inseridos nos centros de referncia da Renast. No parece haver clareza da misso institucio-nal da Renast, ao contrrio de outras redes de sade de mbito nacional que "j superaram esta etapa do debate estrutural, como os programas de sade da mulher, da criana e do adolescente, do idoso, entre outros, que concentram sua atuao no desenvol-vimento de polticas de sade e no na criao de instncias executoras de aes assistenciais".3

    Considerando que a capacidade instalada da rede SUS a responsvel pelo atendimento da populao,

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    inclusive trabalhadora, as estratgias de implementa-o de polticas pblicas, como a Renast, por exemplo, devem se pautar em "aes de inteligncia da gesto, no sentido de aprimorar as aes assistenciais, sim, mas tambm encontrar solues para outras questes como normatizao, informao, ensino, pesquisa, relaes sociais e intersetoriais, definio de novas polticas".3 A rigor, os profissionais dos Cerest no atuam nessa linha, na parcela que lhes compete. evidente que o problema no reside nos profissionais em si mas na prpria fragilidade dos mecanismos de capacitao da Renast.

    H uma tendncia, pode-se considerar como louvvel, dos profissionais dos Cerest estabelecerem estratgias de acolhimento dos trabalhadores. Ocorre que o acolhimento individualizado, similar assistn-cia ambulatorial comum, tende a criar mais problemas do que solues. Analisando o trabalho do assistente social no campo da sade do trabalhador, Lcia Freire, em sua tese de doutorado (1998), observa: "O assistente social, potencialmente, tanto pode contribuir para reforar a alienao no avesso do seu discurso humanista tradicional como tambm para elucidar e desencadear mediaes em relao a situaes e processos sociais, no sentido do seu entendimento mais amplo no local de trabalho e na sociedade e na direo do enfrentamento das contradies, expressas na realidade cotidiana, po-sio que tenho denominado avesso do avesso".41

    Nessa linha, o profissional promotor da ateno integral, seja o assistente social, o mdico, o psic-logo, o fonoaudilogo, entre os demais membros dos Cerest, pode cair nessa armadilha do avesso do discurso. O contraponto alienao desse discurso passa pela reviso do papel dos Cerest e da prpria Renast como um todo, "na medida de sua capacidade de fazer mediaes com o coletivo de trabalhadores, sinalizando para a capacidade de interveno sobre os processos determinantes dos problemas. Buscar, enfim, o avesso do avesso".3

    6) A ausncia de uma misso estruturante A Renast entendida como uma estratgia de

    implementao das aes e servios no SUS, com respeito s relaes sade-trabalho. Historicamente, a responsabilidade pblica no trato com as questes de sade no trabalho esteve margem das polticas de sade pblica e do aparato institucional da Sade.

    A incluso da sade do trabalhador no espectro de atuao do SUS buscou trazer para seu mbito essa nova responsabilidade pblica, cuja implementao de aes e servios afins deveria acompanhar a cons-truo do prprio sistema. Consideramos que esse o objetivo maior da Renast, no sentido de auxiliar o SUS a se tornar apto a lidar com essas questes inditas em seu cardpio executivo.

    A Renast no deve ser entendida como uma estru-tura perene, ou como um fim em si mesmo. factvel compreender que o xito da misso estruturante das aes e servios no sistema de sade decretar o fim da necessidade de existir da Renast. Uma vez que a doena e o acidente de trabalho sejam vistos pelo SUS como agravos epidemiolgicos de interesse da sade pblica, que os sistemas de informaes gerem indicadores fiis da realidade, que a vigilncia sani-tria inclua o trabalho como categoria central a ser observada, que os profissionais de sade, como um todo, sejam capazes de reconhecer o trabalho como determinante do processo sade-doena e que a ges-to do SUS reconhea a magnitude, a relevncia e a transcendncia do tema para um agir responsvel em sade pblica, estar concluda a misso da Renast.

    As dificuldades de compreenso da Renast com esse sentido decorrem, em grande parte, da prpria atuao do SUS como um "sistema no sistmico",3 cuja misso constitucional de interpenetrar as demais polticas pbli-cas de interesse da sade no obedecida. com esse esprito que vemos a Renast, com uma misso provisria na construo do SUS mas com um potencial inovador de contribuio para atuaes mais sistmicas, tanto na perspectiva intra-setorial quanto intersetorial.

    O papel estruturante intra-setorial bem evidente, aplicando-se s inmeras variveis de ateno no setor Sade propriamente dito. Seja na ateno bsica, na mdia e alta complexidade, nas diversas vigilncias, seja na educao permanente ou nas distintas polticas especficas, e ainda no controle social, a Renast o ponto focal de introjeo da relao sade-trabalho nas prticas correntes do SUS.

    Na questo da intersetorialidade, a sade do traba-lhador, necessariamente, s avanar com a implica-o das diversas estruturas do aparelho de Estado e da sociedade que lhes dizem respeito direto e indireto no desenvolvimento de polticas pblicas e privativas. O destaque, nessa questo, fica por conta da sociedade organizada representativa dos trabalhadores, em cujo

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    comprometimento com a sade do trabalhador no SUS reside a possibilidade de mudana de cultura e perenidade de suas aes e servios.

    Enfim, a Renast no deve ser estruturante de si prpria em que seus centros passem a se ver inseridos no SUS, em uma perspectiva de isolamento de servios ensimesmados.

    Consideraes finais

    possvel dizer que no contexto da Renast h um culto palavra rede, e no uma cultura de rede.

    A falta de comunicao entre os Cerests, poucas articulaes intra e intersetoriais e o predomnio da concepo assistencialista em sade do trabalhador evidenciam o embasamento mecanicista, segmentado e fragmentado da Renast. A lgica das partes prevalece. Para avanar na perspectiva da rede, a Renast depen-de de uma matriz diferente, calcada em uma lgica do todo, na perspectiva sistmica, integralizadora e totalizadora.

    O caminho para o avano da sade do trabalhador no Brasil a construo de estruturas condizentes com o paradigma sistmico e holstico da concepo de rede, capaz de incentivar o estabelecimento de articulaes mltiplas, a criao de projetos multi-cntricos e trans-disciplinares, aes intersetoriais e trans-setoriais, o desenvolvimento de mecanismos de comunicao e interlocuo entre as instncias gover-namentais, sociais, possibilitando o protagonismo dos trabalhadores como sujeitos de transformao, sob a perspectiva terica das relaes do trabalho com o processo sade-doena.

    No h soluo fcil para problemas crnicos de ordem econmica e social, enfim, estrutural. Uma utopia do pensamento sistmico, algo que impulsiona ao e no do inatingvel, estende-se prtica mediante o estabelecimento de redes, integrando instituies, atores sociais, aes e servios to diversos entre si, no tecido social e poltico brasileiro, esta pode ser a utopia da Renast.

    Os problemas de sade da populao brasileira de-correntes das condies de trabalho so fenmenos de dimenses profundas e complexas demais para serem resolvidas, ou pelo menos, minimizadas por aes assistenciais realizadas nos Cerest. Como o estabele-cimento de conexes, possvel ao Estado brasileiro uma atuao mais eficaz, mais prxima de sua vocao

    constitucional que passa por garantir aos cidados direito sade no trabalho e, enfim, dignidade.

    O campo da sade do trabalhador no Brasil tem uma bela histria de pessoas, instituies e movimen-tos organizados que lutaram e lutam, desde a Reforma Sanitria da dcada de 1970, por sua concretizao e institucionalizao. Ao mesmo tempo, possui uma histria de invisibilidade e isolamento.

    'Fazer' sade do trabalhador, de acordo com os princpios fundadores do Modelo Operrio Italiano, que engloba a participao dos trabalhadores e a transformao das condies de trabalho e sade, envolve a necessidade de dilogo entre rgos gover-namentais e extra-governamentais, trabalhadores e suas representaes, entendendo a Renast como algo no estanque, fixo, imvel. Se o SUS uma construo contnua, repensada para aprimorar seu funcionamento e eficincia, a Renast ser parte dessa construo na medida de impedir a cristalizao de guetos e paralelis-mos ao prprio SUS. "A concepo sistmica de rede persegue a ideia de articulao intra e inter-setorial nos diversos nveis do SUS de forma a estabelecer mecanismos de comunicao entre os setores pr-prios, entidades e instituies que atuam na ques-to sade e trabalho, permitindo-lhes uma melhor definio de papis, uma melhor compreenso das realidades locais e garantindo a atuao conjunta na capacitao e na disseminao de conhecimentos e informaes."42

    A constituio de uma Rede Nacional de Ateno In-tegral Sade do Trabalhador que v alm de uma sim-ples nomenclatura moderna, que encarne e dissemine a cultura de rede efetiva, que possibilite intervenes nos determinantes da sade dos trabalhadores, que engendre aes de promoo, preveno, assistncia bsica, cuidado e reabilitao o nosso desejo. E, por certo, de todos os que tm compromisso com a sade do trabalhador no Brasil.

    O campo da sade do trabalhador no Brasil tem uma bela histria de pessoas, instituies e movimentos organizados que lutaram e lutam, desde a Reforma Sanitria da dcada de 1970, por sua concretizao e institucionalizao.

    Rede Nacional de Ateno Integral Sade (Renast)

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    Recebido em 04/01/2010 Aprovado em 15/08/2010

    Rede Nacional de Ateno Integral Sade (Renast)

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