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Valdeck Almeida de Jesus Memorial do Inferno A Saga da Família Almeida no Jardim do Éden

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Valdeck Almeida de Jesus

Memorial do Inferno

A Saga da Família Almeida no Jardim do

Éden

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FICHA CATALOGRÁFICA

Copyright© Valdeck Almeida de Jesus

3747/1-0500-196-2005

Dados Internacionais de Catalogação na

Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do

Livro, SP, Brasil)

Jesus, Valdeck Almeida de, 1966-

Memorial do inferno: a saga da

Família Almeida no Jardim do Éden /

Valdeck Almeida de Jesus. –

São Paulo : Scortecci, 2005

ISBN 85-366-0311-9

1. Família Almeida 2. Homens –

Autobiografia 3. Jesus, Valdeck

Almeida de, 1966- I. Título

08-1872 CDD-920.71

Índices para catálogo sistemático:

1. Homens: Autobiografia 920.71

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, João Alexandre de Jesus e Paula

Almeida de Jesus, falecidos, que foram o alicerce e os

principais pilares de minha vida.

Aos meus irmãos, Valquíria, Valmir, Valdecy,

Valdir, Vitório, Vivaldo e Ivonete, minhas únicas e

raríssimas jóias.

Aos meus sobrinhos, Murilo, Rodrigo, Ramon,

Roberto Junior, Vítor e Tiago.

Às minhas sobrinhas, Delma, Jéssica, Amanda e

Paula Fernanda.

Ao meu filho, Valdeck Almeida de Jesus Junior,

que sempre me dá motivos para evoluir.

Aos amigos que passaram por minha vida

deixando grandes e indeléveis marcas.

A todos os que, de forma anônima ou não,

ajudaram minha família a sobreviver neste país chamado

Brasil.

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APOIO:

Ivan Ramos

Lázaro Ramos

Vanise Vergasta

CAPA

Jorge Cravo

(artista plástico baiano)

PREFÁCIO

Domingos Ailton Ribeiro de Carvalho

(escritor, poeta e jornalista)

Valdeck, muita sorte em seu caminho.

BBBeijos.

Jean Wyllys, 18 de abril de 2005

(Dedicatória no livro Aflitos, de Jean Wyllys,

publicado pela Fundação Casa de Jorge Amado,

COPENE, Salvador, 2001).

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Eli, Eli, lamá sabactâni: Deus meu, Deus meu, por

que me desamparaste?

Mateus, Capítulo 27, Versículo 46

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APRESENTAÇÃO

Para que melhor se compreenda a referência que

aqui se faz ao "Jardim do Éden", é necessária uma prévia

explicação. Minha família iniciou-se praticamente a

partir das figuras de minha mãe e meu pai. Não tive avôs

nem avós, primos, tios etc. Assim, tracei um paralelo

imaginário entre minha história e a história mitológica

contada na Bíblia.

Este é um livro autobiográfico, onde assumo o

papel do narrador, para contar a história de minha vida e

a de minha família, que compreende: mãe, pai e sete

irmãos. Uma saga protagonizada por uma família de

baixa renda, residente em cidade de médio porte no

interior da Bahia, que expõe, ao longo de vários tópicos,

toda a ordem de dificuldades que essas pessoas

enfrentaram: crises financeiras, falta de habitação, de

alimentação, de escola básica, de tratamentos médico-

odontológicos e tanto mais. Ao contrário do que costuma

ocorrer com esse tipo de gente, esta família não mediu

esforços para superar as muitas barreiras que lhe foram

impostas, vencendo os mais diversos obstáculos. Sem

perder a fé no futuro, sempre incerto e duvidoso, a

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Família Almeida conseguiu, com sua luta, atingir os

objetivos almejados e marcar seu lugar ao sol.

Estas páginas, que contam o duro dia-a-dia desta

família, têm por fim incentivar outros sofridos brasileiros

a acreditar em seu país e a lutar por seus ideais.

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PREFÁCIO

Domingos Ailton Ribeiro de Carvalho (*)

A memória individual assume uma dimensão

grandiosa ao apresentar aspectos marcantes da memória

social. Essa é uma das características do livro

autobiográfico de Valdeck Almeida de Jesus. Com um

título atrativo e carregado de senso de humor (uma das

marcas da personalidade de Valdeck, mesmo nos

momentos mais difíceis de sua vida), Memorial do

Inferno - A Saga da Família Almeida no Jardim do Éden

revela a trajetória de uma vida sertaneja que comprova a

frase que se tornou célebre no livro Os Sertões, de

Euclides da Cunha: "o sertanejo é antes de tudo um

forte".

Para enfrentar os desafios que Valdeck e sua

família sofreram em Jequié, sertão baiano, é preciso

muita força de vontade e determinação. E estes são

atributos inerentes à sua vida.

Conheci Valdeck nas lutas estudantis que

realizamos no Instituto de Educação Régis Pacheco

(IERP), o maior colégio de ensino médio de Jequié. Na

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época em que fui eleito presidente do Grêmio Estudantil

Dinaelza Coqueiro, do IERP, Valdeck fazia parte da

diretoria, na qualidade de diretor de Imprensa, onde foi

co-autor do jornal Jornada Estudantil. Nossa gestão

ficou marcada na história, uma vez que, além dos

movimentos que fizemos em prol da melhoria do ensino e

do acesso à cultura e ao esporte, foi esta a primeira

diretoria de grêmio estudantil livre após o regime militar

e a redemocratização do país. Já no período de estudante

do IERP e ativista do movimento estudantil, Valdeck

despontava como um poeta criativo e como um artista em

busca de seu espaço.

Antes mesmo do advento da Internet, ele já

entrava em sintonia com o mundo globalizado, como

membro ativo do campo literário, fato que lhe

possibilitou participar de antologias como: Poetas

Brasileiros de Hoje, lançada pela Shogun Editora, Rio de

Janeiro, 1984; Transcendental, Art‟Labor Eventos e

Produções Artísticas Ltda., Salvador, 1998; Heartache

Poems, iUniverse, New York, 2004; Antologia de Poetas

Brasileiros Contemporâneos - 14º volume e Antologia de

Poetas Brasileiros Contemporâneos - 15º volume,

Câmara Brasileira de Jovens Escritores, Rio de Janeiro,

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2005; Ensaios Poéticos, Academia Virtual Brasileira de

Letras, Rio de Janeiro, 2005. Publicou ainda outros

trabalhos literários em jornais de grande circulação na

capital e no interior do estado da Bahia, além de ter sido

colaborador do jornal A Prosa, de Brasília/DF. Publicou,

em 2005, o livro de poesias Feitiço Contra o Feiticeiro,

dezenove anos após ter divulgado no Jornal de Jequié

notícia sobre o breve lançamento do referido livro. Mais

recentemente, lançou Jamais Esquecerei do Brother

Jean Wyllys, pela Casa do Novo Autor, São Paulo, 2005,

e fundou o fã-clube do jornalista e escritor Jean Wyllys.

Neste livro, Memorial do Inferno - A Saga da

Família Almeida no Jardim do Éden, Valdeck Almeida de

Jesus narra, com detalhes, a história de sua família,

abrangendo sua mãe, seu pai e seus sete irmãos, onde

conta passagens de momentos difíceis, como aquela onde

diz que "a comida variava de pão seco com café preto a

pirão de farinha com água fria. Muitas vezes dormíamos

com fome, acreditando no que minha mãe dizia: „amanhã

Jesus vai trazer comida‟. Eu me irritava e xingava muito,

pois todos os dias eu ouvia a mesma história e Jesus

nunca chegava com a comida prometida". Mas não é só.

O autor se reporta também a momentos de sucesso, como

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o fato de ter sido aprovado em concurso do Tribunal

Regional do Trabalho, em decorrência da sua boa

capacidade intelectual, e de ter sido, desde criança, um

aluno exemplar.

Valdeck Almeida de Jesus é exemplo para todos

que sonham e procuram concretizar seus sonhos. Ele tem

um pensamento fascinante: devemos ter sempre uma

atitude positiva diante da vida e deixar esta imagem

transparecer aos outros. Por este e mais tantos

ensinamentos, e pela edificante trajetória de vida do

autor, vale a pena a leitura deste extraordinário livro.

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MEU PAI, MINHA MÃE

Eu devia ter meus cinco anos de idade, mais ou

menos. Ao entardecer, surgia ele ao longe, com um

machado nas costas, roupas surradas e rasgadas pela

ação do mato. As primeiras lembranças que tenho dele

são de quando eu e Quira ficávamos na porta da casa

(casa alugada de Nazinha), esperando por sua chegada no

final da tarde. E ele nunca esquecia de passar na venda de

Seu Júlio para nos comprar bombons.

Semi-analfabeto, trabalhava em fazendas,

cortando madeira. Não sei muito de sua vida, pois, além

de trabalhar muito e estar sempre fora de casa, na época

em que convivi com ele eu era muito criança; além disso,

em minha adolescência, meu pai vivia doente e não tinha

um espírito conversador como o de minha mãe. Antes de

se casar com ela, teve um outro casamento, que lhe deu

seis filhos, até ficar viúvo.

João Alexandre de Jesus era um pai do tipo rígido,

que batia de cinto quando necessário. Mas também sabia

ser amigo, dar bons conselhos e fazer carinhos, ao seu

modo. Lembro-me, uma vez, já morando na casa de

Amanda, de uma ocasião em que ele queria me bater, por

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uma travessura, da qual não me recordo bem. A porta da

rua era muito alta, para descer havia uma espécie de

escada. O terreiro era de cascalho. No afã de fugir das

cintadas certeiras, joguei-me porta abaixo, caindo e

esfolando toda a barriga no cascalho. Meu tórax e

abdome sangravam, eu chorava de dor. Então ele disse:

"Vem!". Eu relutei, com medo de apanhar. E ele

continuou já com a voz mais mansa: "Não vou te bater

mais". Eu fui e ele não bateu... Esta cena se inscreveu

para sempre em minha memória.

Era um homem de pouca saúde. Sobretudo, pelas

más condições de seu tipo de trabalho. Lembro-me de

que minha mãe contava sobre uma tora de madeira (uma

árvore) que havia caído em cima de meu pai, em uma das

roças onde trabalhou. Ele também sofria de uma sinusite

crônica, que o deixava atordoado. Vivia a queixar-se de

dores de cabeça. Com a velhice, tudo foi se acumulando, e

ele acabou morrendo, vitimado por uma série de

problemas de saúde.

Ao final da vida, havia momentos em que perdia a

memória. Ficou violento e, por segurança, minha mãe

passou a mantê-lo trancado no quarto, para evitar que se

ferisse ou que saísse pela rua sem rumo. Nessa época,

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início dos anos 80, criou o hábito de pedir comida às

pessoas que iam visitá-lo. Dizia sentir fome, porque os

filhos comiam tudo e nada deixavam para ele. As pessoas

acreditavam no que ele dizia e lhe levavam comida, mas

não sem antes advertir-nos para não mais agirmos

daquela maneira com o nosso próprio pai. Para resolver o

assunto, minha mãe, um dia, pediu aos que traziam

comida a meu pai para ficarem escondidos e observá-la

enquanto lhe dava a comida; ele comia tudo. Depois,

chamava a visita para vê-lo novamente. Como ele não

reconhecia ninguém, nem os próprios filhos, repetia a

mesma história de que teríamos comido tudo, sem deixar

nada para ele.

Meu pai foi aposentado por invalidez. Recebia um

salário mínimo por mês. Quando morreu, esta pequena

renda se extinguiu e minha mãe se viu com oito filhos

menores, sem condições financeiras de sustentá-los.

O velho João - como costumávamos chamá-lo -

sofreu muito durante a vida e, quando esteve doente, de

cama, quase à beira da morte, seu sofrimento foi muito

maior. O sofrimento dele era também o nosso

sofrimento. No dia de sua morte, Albérico, um parente

distante, tirou fotografias de meu pai na cama, na hora

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em que agonizava. Eram seus últimos momentos de vida.

Assisti a tudo e ajudei, inclusive, a colocar uma vela em

sua mão. Para ser franco, devo dizer que não me comovi

com sua partida, não senti sua falta, não fiquei triste. Ao

contrário, senti mais alívio por vê-lo partindo do que a

dor de perder um ente querido. Vim chorar sua falta

somente dez anos depois. Era um domingo de Dia dos

Pais, e neste dia senti profundamente a sua ausência. Fiz

até um poema em sua homenagem.

***

Paula, minha mãe, costumava falar demais.

Sempre contava muitas histórias de sua vida, mas, na

maioria das vezes, nós, os filhos, não levávamos muito a

sério o que ouvíamos. Na maior parte do tempo,

simplesmente fingíamos ouvir suas histórias, e, em

outras ocasiões, corríamos, deixando-a a falar sozinha.

Ela contava que a mãe tinha morrido de parto e

que fora criada pelo pai até os doze anos de idade; que

sua avó paterna era uma índia "pega a dente de

cachorro". Segundo ela contava, seu pai era um

ambulante, louro e de olhos azuis. Essa história foi

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confirmada, após sua morte, por uns primos, descobertos

por minha irmã Valquíria lá perto do Frisuba - cerca de

15 quilômetros de Jequié -, local onde minha mãe passou

boa parte da infância e juventude.

Cabe dizer aqui que nossa idéia de família remonta

praticamente à figura de minha mãe e de meu pai, já que

não tínhamos conhecimento da existência de outros

parentes.

O fato de meu avô materno ter sido loiro e de olhos

azuis explica o fato de quase todos nós termos nascido

com cabelos loiros, que mais tarde teriam sua cor

modificada para preto ou castanho claro, pelos efeitos do

tempo. Explica também os olhos claros com que alguns

de nós fomos contemplados. Antenor, um de nossos

recém-descobertos primos, afirma que esse avô materno

era descendente de italianos. Diz que ele vivia pelas

bandas de Santo Antônio de Jesus e que era, realmente,

um ambulante. Trabalhava com confecção artesanal de

cestas e produtos feitos com palha.

Minha mãe sempre teve problemas sérios de

saúde. Contava que, quando criança, sofria de uma

espécie de doença, que nunca entendi bem do que se

tratava, se um problema de coração ou de ordem

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espiritual. Dizia que, durante uma época, ficava presa

num quarto, amarrada em algo semelhante a uma

camisa-de-força, por não ter controle dos movimentos do

corpo. Ficava a se debater todo o tempo, a ponto de os

parentes precisarem amarrá-la à essa camisa-de-força

improvisada, feita com couro de boi, para que não se

machucasse. Essa situação deve ter durado muito tempo

e marcado bastante sua vida, pois freqüentemente

voltava a tocar no assunto.

Quando já tínhamos mais consciência da vida,

presenciamos muitas de suas crises: sistema nervoso,

asma, coração. Costumava ficar, por boa parte do tempo,

sem os movimentos dos membros inferiores,

praticamente paralisada. Arrastava-se pelo chão, sem

qualquer sensibilidade nas pernas. Não sentia a parte

inferior de seu corpo nem mesmo ao fazer suas

necessidades. Era um sofrimento só, tanto para ela

quanto para as crianças. Precisava de cadeira de rodas.

Conseguimos uma, depois que tive a idéia de enviar uma

carta ao programa apresentado por Geraldo Teixeira, na

Rádio Baiana de Jequié. Nesta oportunidade, foi-nos

doada uma cadeira de rodas usada, que serviu à minha

mãe até ela apresentar melhoras e poder substituí-la por

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um par de muletas. Após muitos anos, finalmente, voltou

a andar.

Essa foi uma das fases mais marcantes para a vida

de minha mãe, e também para a nossa. Ficávamos mortos

de vergonha por termos de empurrar aquela cadeira rua

acima e rua abaixo, para que ela conseguisse as esmolas

que ajudariam a gente a comer, beber, se vestir, estudar,

sobreviver. A cadeira era imensa, minha mãe pesada, e

nós franzinos e fracos para agüentarmos todo aquele

peso; além da questão, é claro, da timidez e vergonha de

sermos vistos empurrando a cadeira de rodas. Mas não

tínhamos escolha. Ou empurrávamos a cadeira para pedir

esmolas ou morríamos de fome. De minha parte, sentia

uma vergonha enorme ao ser visto conduzindo aquela

cadeira de rodas pelas ruas, sob o sol quente.

Durante todo o tempo passado ao lado de minha

mãe, o que mais me recordo, além das constantes

mudanças de endereço, já que não morávamos em casa

própria, eram as idas e vindas ao Hospital Geral Prado

Valadares, onde ela permanecia internada por grandes

intervalos de tempo. Durante essas fases, cada um dos

filhos ficava na casa de um vizinho, até que ela retornasse

e mostrasse condições de reassumir a casa e as crianças.

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Esses vizinhos chegavam a lhe propor que doasse os

filhos, alegando que as crianças poderiam ter vida mais

digna e confortável, mas ela jamais admitiria tal hipótese.

Dizia: "Onde come um, comem dois". Passava apertos,

privações, necessidades, mas jamais seria capaz de doar

qualquer um de seus filhos. Era uma experiência sem

igual, já que na casa do anfitrião tínhamos tudo o que não

tínhamos em nossa casa: comida, cama, banho, televisão.

Mas o desejo maior era de que minha mãe pudesse voltar

do hospital e todos retornássemos ao aconchego do lar e

do colo materno. Era uma grande festa quando

recebíamos a notícia de que nossa mãe tinha tido alta

médica e que estava voltando para casa.

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CENAS DE UMA INFÂNCIA

Primeira residência - Casa de Nazinha

A casa ficava num local que hoje se chama

"Banca", no bairro Jequiezinho, em Jequié. Na época em

que moramos ali, não havia água encanada, linha de

ônibus nem calçamento nas ruas. Cabe aqui ressaltar que,

passados mais de quarenta anos, esta e outras ruas do

bairro permanecem ainda sem calçamento e sem linha

regular de transporte coletivo. Apenas uma linha de

ônibus circula nos arredores.

Os esgotos ainda correm a céu aberto e as casas

mantêm o aspecto da pobreza e da miséria que ainda

ronda o antigo bairro. Vivi ali boa parte de minha

infância. Passei fome e brinquei por entre os lixos,

catando ossos para vender. Freqüentemente pedia

comida na casa de um e de outro. Este fato rendeu a mim

e à minha irmã Valquíria (Quira) alguns apelidos do tipo

"Gordurinha" (Quira) e "Paquira" (eu), pois, quando

íamos à casa de Seu "Santin" pedir comida, eu costumava

dizer: "Minha mãe falou pro senhor mandar um

pedacinho de carne PAQUIRA", enquanto Quira vivia

pedindo "uma gordurinha". Seu "Santin" matava porco e