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ISBN: 978-85-99907-05-4 I Simpósio Mineiro de Geografia – Alfenas 26 a 30 de maio de 2014
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VALORIZAÇÃO IMOBILIÁRIA E METAMORFOSES NA
REPRODUÇÃO CULTURAL NO BAIRRO PATRIMÔNIO EM
UBERLÂNDIA-MG
Carlos Roberto Bernardes de Souza Júnior [email protected]
Graduação em Geografia - Universidade Federal de Uberlândia
Jéssica Soares de Freitas [email protected]
Graduação em Geografia - Universidade Federal de Uberlândia
Resumo
A cultura se movimenta, se metamorfoseia e age de acordo com cada sujeito. Nos espaços urbanos o tradicional está cada vez mais apagado pelas novidades proporcionadas pela globalização. O bairro Patrimônio localizado na cidade de Uberlândia estado de Minas Gerais está inserido nesse contexto. Bairro excluído em outrora se torna alvo de construtoras sedentas por prédios cada vez mais altos e menos populares. Dessa forma, seus moradores acabam por vender suas casas já que não conseguem mais se sustentar naquele espaço. Contudo, por meio da festa, especificamente o carnaval, os vínculos com o bairro permanece e se fortalece. Neste trabalho mostraremos como se dá esta dinâmica territorial e como os sujeitos fazem para continuarem conectados ao seu lugar que lhe é de direito.
Abstract
Culture is a moving thing, it metamorphoses itself and acts according to each subject. In the urban spaces the tradition is being evermore erased by the novelties occasioned by the globalization. Patrimônio’s neighborhood in Uberlandia City in Minas Gerais is inserted in this context. An once excluded neighborhood, now it is a prime place for the investments of the civil industry, which is working towards tall buildings for the middle class. This way, it’s residents sell their home seeing that they can’t sustain themselves where they lived for a long time. However, by the meanings of the festivity, specifically the Carnival, the bonds between place and subject are not only preserved, but fortified. In this paper we try to show how the territorial dynamic is and how the subjects find ways to continue connect to the
place that is in their right.
Palavras-Chaves: Bairro Patrimônio; Lugar; Globalização; Festa.
Keywords: Patrimônio’s Neighborhood; Place; Globalization; Festivity.
Eixo 8: Geografia Urbana
INTRODUÇÃO
A cultura é algo que se constrói de geração a geração, sendo um processo que
está sempre em movimento, assim como a realidade, portanto nunca será possível
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entender a cultura como o todo, tudo o que podemos fazer é entender a sua
perspectiva em um determinado espaço-tempo. Em nosso trabalho abordaremos a
Escola de Samba Tabajara e o bairro Patrimônio visando o período do início do ano de
2013, com um enfoque na época do Carnaval. Contudo é necessário lembrar que eles
não chegaram em 2013 “do nada”, houve uma construção histórica que os trouxe ao
presente, desta forma, tentaremos também entender os processos que levaram a sua
constituição, partindo sempre dos sujeitos da pesquisa, sendo estes tanto os
habitantes do bairro quanto os pesquisadores.
Tentamos neste trabalho nos situar em um ponto da realidade e analisar as
perspectivas culturais da Escola de Samba Tabajara e do bairro Patrimônio em seu
movimento, buscando sempre entender suas manifestações e reproduções dentro das
visões de mundo dos sujeitos. A construção deste espaço se dá primordialmente para
funcionar uma espécie de “depósito de negros”, destinados àqueles que trabalhavam
nas casas de brancos, no Bairro Fundinho, já que eles não podiam se misturar com
seus “sujeitados”.
Dessa forma, o bairro formado por negros recebia pouca ou nenhuma atenção
do governo da cidade, deixando-o de lado e completamente excluído, com apenas
aquilo que não poderia ser colocado no restante da cidade. O frigorífico “Omega”,
símbolo do bairro teve sua existência declarada do início do séc. XX ao fim dos
mesmo, com a chegada do Praia Clube, clube este destinado primordialmente para a
classe média.
Com o fluxo maior de pessoas de alta renda o bairro chamou a atenção de
diversas construtoras, que viram ali uma fonte para construção de prédios seja de
quantos andares for, destinados para pessoas mais abastadas. No entanto, aqueles
que criaram o bairro, fizeram dele seu lugar, com suas danças e cantares se viram
cercados por altas e caras construções de concreto.
Entendemos que os sujeitos não só veem o mundo pelos olhos de suas
culturas, mas o analisam e percebem o que encaram como verdade ou não por meio
de suas tradições, por isso decidimos que tomar o sujeito como ponto de partida seria
o caminho metodológico mais razoável para entender as transformações recentes na
Escola de Samba Tabajara e no bairro Patrimônio. A história é, na nossa visão, uma
sucessão de cotidianos e, por esse motivo, encaramos que precisamos compreender
os costumes, tradições e as culturas pelos olhos dos sujeitos que vivem esse
cotidiano, encarando-os dentro de suas complexidades e alienações, tentando
capturar toda sua densidade no movimento da realidade, fazendo esforços para dar
voz aqueles que não foram ouvidos e procurando entender o que está por trás de seus
discursos.
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REFERENCIAL TEÓRICO
Segundo Willians o termo “Cultura” era utilizado para designar “o crescimento e
o cuidado das colheitas e animais, e, por extensão, o crescimento e o cuidado das
faculdades humanas” (WILLIANS, 1979, p.18), a partir desta reflexão do autor sobre o
termo, podemos perceber que o conceito atual não foge tanto da ideia original, pois
encaramos que a cultura é algo a ser tratado e carregado pelos sujeitos, algo
intrínseco a sua existência, que cresce com a tradição e a sua reprodução,
transmitindo valores humanos. Este conceito se desenvolveu e tomou um sentido
social ao longo do tempo, se transformando em algo mais próximo do que temos hoje,
um dos fatores essenciais para seu desenvolvimento foi a valorização, durante o
século das luzes, das “artes” e a evolução da intimidade dos sujeitos (WILLIANS,
1979).
Indo para algo que se aproxima mais das nossas leituras cotidianas, vemos no
dicionário Soares Amora: “cul.tu.ra sf 1. Ação, arte, modo ou efeito de cultivar; 2.
Lavoura; 3. Criação de certos animais; 4. Biol método para obter a multiplicação de
germes microbianos para estudo; 5. Fig estudo; 6. Instrução, saber; 7. Apuro,
perfeição.” (AMORA, 2000, p.187). Há aqui uma continuação deste sentido “rural” de
Cultura, portanto é possível percebermos que, mesmo com o passar de todos estes
anos desde o século das luzes, a palavra apenas ganhou novos significados, não
perdeu sua significação originária.
Neste verbete podemos perceber, principalmente nos significados 6 e 7, uma
certa simbologia da palavra em torno do sentido cultura como erudito, ou seja, o
verbete aliena o leitor a pensar que a cultura é algo exclusivo da “elite da elite” de
nossa sociedade. Situação que, a nosso ver, é assustadora, pois, como visto em
“1984” de George Orwell (1998), a língua trás consigo um poder alienante, quem
controla a língua controla o poder, quando se fala ou se pensa em uma palavra, vários
significados e sentimentos passam pela mente do sujeito, portanto se o termo diz uma
coisa, ele implica em muitas mais; no caso deste verbete de cultura ele aliena o leitor a
pensar que a única cultura é a erudita, como se não existisse uma cultura popular.
Entretanto, o que vemos em nossos estudos e em nosso cotidiano é
justamente o contrário, a cultura existe tanto em um âmbito popular quanto erudito,
sendo o erudito uma versão “diluída” do que se reproduz na realidade do popular.
Entendemos a cultura como as práticas e rituais cotidianos de um grupo, desde
escovar os dentes a soltar foguetes porque seu time ganhou aquele jogo de futebol,
junto com toda a simbologia que esta reprodução de valores humanos trás.
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Entendemos também que a cultura, em toda a sua amplitude (seja ela popular
ou erudita), é um dos fatores que move a história dos homens, influenciando suas
ações e modos de pensar, sendo uma das principais fontes de conflitos e
metamorfoses, por isso pensamos que é de suma importância o seu estudo e sua
reflexão. Também é limitante falar em cultura, achamos que é mais relevante e
abrangente falarmos em culturas, já que a cultura é algo que se constrói, como visto
em Claval (2001), por meio da experiência, considerando que cada sujeito é único em
sua visão e perspectiva da realidade. Podemos inferir que as culturas são tão diversas
quanto são diversos os sujeitos, levando em conta que vivemos em um mundo com
mais de sete bilhões de pessoas, é muita diversidade!
Tendo isso em mente, também é importante lembrarmos que as culturas são
heterogêneas, mas não há uma hierarquia entre elas, não existe uma cultura superior
ou inferior, não existe uma tradição ou um rito mais “evoluído” que qualquer outro. É
essencial percebermos que essas reproduções culturais não estão estáticas no tempo,
elas estão em um constante movimento, sendo metamorfoseadas pelas forças
externas e alterando o seu meio.
A cultura se manifesta também nos sentimentos de pertencimento e identidade
dos sujeitos, podendo ser esta uma identidade nacional, municipal, racial ou outra
qualquer, muitas vezes sendo associada com o lugar, criando um elo ainda mais forte
do sujeito com o ambiente, este é um dos motivos de sua abordagem ser necessária
ao âmbito dos estudos geográficos. Se torna importante, também, sublinhar que a
cultura é parte integral da condição humana, movendo os homens através das eras e
dos séculos e é no dialogo e na metamorfose destas culturas que se fazem as
grandes mudanças no modo de pensar, ser e existir.
Quando pensamos em tradição logo nos vem à cabeça ideias de valores
humanos que se reproduziram ao longo de séculos ou, ao menos, décadas, atos do
cotidiano e rituais que se provaram tão consistentes que continuamos a viver em torno
deles, então o tradicional seria aquelas reproduções culturais mais antigas dos povos?
Na realidade as coisas são mais complicadas que isso. Se levarmos em consideração
a obra de Hobsbawm (HOBSBAWM & RANGER, 1983) esta concepção apresentado
agora a pouco se caracteriza como o costume, sendo tradição a ritualística e as
práticas formais que permeiam o costume, portanto a tradição está diretamente ligada
ao costume, mas não tem uma ligação tão forte assim com o tempo.
Ainda na obra de Hobsbawm (HOBSBAWM & RANGER, 1983), afirma-se que
a tradição é criada na formalização e ritualização por meio da repetição, sendo
normalmente referenciada no passado. Sendo assim, podemos ir ainda mais além e,
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como Giddens (2002), preferimos afirmar que não existem tradições “tradicionais”, ou
tudo é tradicional ou tudo é novo.
Todas as tradições são inventadas e reinventadas constantemente para se
adequar ao mundo e a realidade que estão em constante movimento, ou seja,
podemos afirmar, por exemplo, que o carnaval do ano passado não é o carnaval
desse ano, mesmo sendo uma tradição. Percebemos ao longo de nossas pesquisas
bibliográficas e empíricas que o novo é construído através de desconstruções e
reconstruções do passado, portanto o novo é apenas uma reinvenção do que já existe,
assim, seguindo nesse nosso devaneio, o novo não existe, apenas o “tradicional”
existe. Entretanto esse “tradicional”, estes costumes, não são genuinamente antigos,
eles são constantemente renovados, logo temos que classifica-los como “novos”, mas,
como afirmamos anteriormente, não existe o novo, sendo, portanto uma relação
paradoxal.
Por mais que nos pareça estranho, de acordo com Giddens (2002), o próprio
termo “tradição” também é uma invenção moderna, a palavra só aparece no século
das Luzes e vem para criticar os povos que os iluministas consideravam inferiores, ou
seja, o termo “tradição” tem sua gênese em torno daquilo que era classificado como
dogmático ou ignorante. Encaramos como algo de uma ironia incrível da parte dos
iluministas chamar os povos “tradicionais” de dogmáticos, sendo que eles mesmos, no
processo de tentarem racionalizar sua visão de mundo estavam a criar dogmas que
viriam a reger a ciência até os dias atuais.
Vemos assim, novamente, uma alienação na raiz do termo, mostrando uma
utilização do discurso para se garantirem no poder, ou seja, utilizavam de recursos de
exclusão, assim como vistos em Foucault (2012), sendo mais especifico, abusavam da
rejeição, tratavam os “tradicionais” da mesma forma como loucos, porém com um ar
de superioridade e “piedade”, se escondendo atrás de seus racionalismos faziam o
que bem entendiam com estes “tradicionais”.
Voltando ao conceito de tradição como a forma que os sujeitos encontram para
reproduzir suas práticas formais e ritualísticas, chegamos ao mesmo problema que
Hobsbawn (HOBSBAWN & RANGER, 1983), então seriamos nós obrigados a encarar
a burocracia, por exemplo, como uma tradição dos nossos tempos? É claro que sim!
Portanto, por mais que tentemos afirmar que existem sociedades com tradições
intocadas e antigas nunca chegaremos a lugar algum, pois no conjunto da realidade
nada é imune ao tempo.
Assim como afirmamos anteriormente, as tradições são essa amalgama de
invenções e reinvenções, de adaptações e resistências dos costumes a passagem do
tempo. A nosso ver, se todas as tradições fossem realmente estáticas, como alguns
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preferem pensar, o mundo seria um lugar muito mais desinteressante, não teríamos a
quantidade de diferenças que temos hoje.
Desta maneira, encaramos que a tradição se define na perpetuação dos rituais
e na repetição, sempre se renovando de acordo com as mudanças nas condições
externas e internas. Logo, é insuficiente a utilização do termo tradicional para
representar o antigo, falar que algo é tradicional, a nosso ver, significa que este “algo”
reproduz rituais e se repete independente de há quanto tempo e não necessariamente
da mesma forma, sendo uma força que se diferencia pela instituição de algo que se
aproxima de uma espécie de verdade. É na tradição que se dão os modos de vida,
portanto, é na tradição que se faz a sociedade, sem tradição não há a possibilidade de
existir uma sociedade, por mais que ela mude, talvez até sua função não seja mais a
mesma, mas ela estará sempre no centro do convívio social humano.
A tradição é o que determina o passado e o passado é o que determina o
presente, então, como visto em “1984” (ORWELL, 1998), quem controla a tradição
controla o passado, quem controla o passado controla o futuro e quem controla o
presente contra o passado, portanto é necessário tomar cuidado com a forma como
abordamos o “tradicional”. Por mais que tentemos nos manter neutros, somos sempre
sujeitos da pesquisa e, portanto, somos parciais e temos nossas próprias alienações,
as quais ditam nossas tendências dentro da pesquisa.
A tradição não é intrinsecamente benéfica ou maléfica, ela simplesmente faz
parte do conjunto realidade e, assim como a cultura, faz parte, ao menos para os
autores deste, da condição humana, sendo essencial para a reprodução dos valores
humanos. Logo para a cultura e o conhecimento, além disso, é na tradição que o
sujeito vai construir a sua identidade, já que, como dito anteriormente, é nela que a
cultura irá se reproduzir.
FESTA E METAMORFOSE NO BAIRRO PATRIMÔNIO
A festa, assim como pudemos ver em Santos (2008), entre outras coisas, serve
para o enfrentamento das dificuldades do dia-a-dia, a superação das carências, sendo
uma criação intimamente necessária para a reprodução de seus valores humanos,
auxiliando na passagem da cultura entre as gerações. A festa reúne o lúdico com o
costume, mostrando que os homens não são apenas construtos alienados que
passam seu tempo sendo explorados pelo capital, que eles têm gostos, se divertem e
dividem experiências.
É na festa que os sujeitos da comunidade se reúnem e dividem seus saberes,
suas formas de encarar a realidade e de enfrentar as dificuldades cotidianas, assim, a
festa não é apenas uma reprodução dos prazeres, é uma forma de transmissão de
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cultura e da manifestação dos costumes. Em sociedades com costumes mais
enraizados e que se repetem há muito tempo com certa constância, é comum que
certos sujeitos vivam em função da festa, ou seja, a festa dá significado a vida deles,
eles passam o ano todo a planeja-la e esperam ansiosamente pelo momento de
materializa-la.
Muitas vezes o importante não é a festa em si, mas, como constatamos em
campo, a preparação dela, as reuniões e a movimentação no lugar, os momentos
onde a comunidade está reunida se ajudando. A festa reforça os laços da comunidade
dos sujeitos que habitam o lugar, criando entre eles a necessidade de terem uma
relação harmônica, pois sem uma vizinhança unida, a festa não tem possibilidades de
ser concluída. Assim, verificamos que, mesmo depois que a festa termina, ela não
morre, ela continua viva na comunidade por meio de seu planejamento meticuloso,
como vimos em uma das nossas entrevistas “[...] Assim que terminou a quaresma no
dia oito de Abril [...] No dia nove nós fizemos uma primeira reunião, isso para discutir o
enredo de 2013, isso foi em Abril, as pessoas não imaginam que temos tanta
organização aqui, quando foi em julho nós já tínhamos o enredo pronto [...].”(Entrevista
coletada em campo no dia 26/03/2013), deste modo, a festa se constitui como uma
razão para a existência desses sujeitos.
Encontramos na festa, por ser um momento de reunião da comunidade e de
reprodução dos valores humanos e dos costumes, uma forma de entender melhor as
relações que permeiam o lugar patrimônio, essa manifestação já se repete a décadas
no bairro, mas não é o mesmo carnaval da época da fundação da escola, ele se
transformou com o tempo, abrigando pessoas que não são do bairro, mas que se
identificam com a comunidade e que chegam a adotar o bairro como seu lugar.
Verificamos isso claramente na composição atual da diretoria, onde vários dos
integrantes são “agentes externos”, ou seja, pessoas que não nasceram e cresceram
na Escola de Samba Tabajara, mas entraram em contato com ela em algum momento
de suas vidas e se apaixonaram pelos seus costumes e pela tradição deste povo.
É na festa que os sujeitos se estabelecem socialmente, é nela que surgem as
paixões, as intrigas, os acordos e reconciliações, na amplitude da festa a comunidade
se metamorfoseia constantemente, renovando as tradições. Sem a festa não haveriam
as mesmas vivências e valores, os sujeitos não conseguiriam se afirmar como
membros de um grupo, portanto, sem ela não há uma cultura.
É importante também diferenciarmos a festa do espetáculo, a festa trás consigo
toda esta reprodução de valores humanos e de metamorfoses para os sujeitos, já o
espetáculo é uma versão diluída e capitalizada da festa, onde não há mais uma
preocupação com a reprodução cultural, se procura apenas se vender o lazer. Os
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sujeitos ficam no espetáculo em uma situação passiva, estão lá se divertindo, mas
pouco tem a ver com produção dele, ao contrário do que ocorre com a festa, nela eles
tem a possibilidade de participar ativamente em todas as partes de sua construção e a
conclusão dela é só uma consequência de seus múltiplos esforços.
A partir da festa pudemos ver as maneiras encontradas pelos indivíduos para
continuarem seus laços de amizade e pertencimento para com o bairro e a
comunidade do Patrimônio. Portanto, encaramos que a análise da festa é essencial
para os estudos da geografia cultural, pois nela podemos verificar claramente as
sensações de pertencimento e as perspectivas do lugar para os sujeitos, assim,
vemos na festa uma forma de “sentir” o lugar, sendo desta forma um meio para
tomarmos o sujeito como ponto de partida para nossa pesquisa.
Considerando essas análises, vemos que a festa é tão essencial para os
sujeitos quanto os sujeitos são essenciais para a festa, assim, verificamos que o
sujeito participa da festa e a constrói, a festa reproduz seus valores humanos e
transmite os costumes dos povos para as próximas gerações, portanto são
interdependentes. Encaramos, desta forma, que a vida dos sujeitos se manifesta no
lugar, se reproduz nas tradições e se transmite na festa, sendo esta uma das forças
que movem a realidade.
No analisar das entrevistas e das nossas anotações realizadas em campo,
pudemos verificar as alterações que o processo valoração imobiliária realizou sobre o
lugar e, por consequência, a forma como se realizou sobre os sujeitos. Para os
sujeitos, o patrimônio e a Escola de Samba Tabajara são a vida deles, e nestes
ambientes sobrepostos que reproduzem seus valores humanos e tomam referências
para suas decisões.
Para os sujeitos de nossa pesquisa, o bairro ultrapassa as barreiras do físico e
se encarna como uma ideia, o Patrimônio é um centro de significações único na
cidade de Uberlândia, um ponto de gênese cultural para cidade, a resistência da força
negra na cidade, “tudo que é de bom em Uberlândia nasce no patrimônio” (Entrevista
coletada em campo no dia 30/01/2013), eles se orgulham de ser do bairro. Entretanto,
vemos uma situação de confronto quando, através dos processos globalizantes
chegam novos moradores no bairro, os quais vem de um ambiente diferente e
possuem uma carga sociocultural diferente, muitos deles não entendem as
manifestações e festas dos moradores mais antigos do bairro e os desrespeitam.
Esses novos moradores, por possuírem uma situação social melhor, sendo
muitos pessoas influentes na sociedade, abusam destas suas posições para maltratar
os sujeitos que têm os seus costumes pautados no bairro, limitando a duração das
festas, as quais antes duravam a noite toda e agora tem que acabar até as dez horas,
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no máximo meia noite, a própria Escola de Samba Tabajara se viu obrigada a parar de
fazer seus ensaios nas ruas do bairro e foi obrigada a encontrar um lugar e arranjar
aparatos legais para protegê-la, buscando formas de convivência em meio a estes
confrontos culturais. O problema é que estes novos moradores não entendem e,
sequer buscam entender, as práticas dos que já tem seus costumes e enraizamentos
no bairro, gerando uma briga por conta de ignorância, talvez seja necessário um
processo de conscientização destas pessoas, pois, aos olhos dos sujeitos desta
pesquisa, eles pensam que os mais antigos do bairro são todos usuários de drogas
e/ou envolvidos com atividades ilegais só porque tem uma situação social menos
favorecida.
Assim, o que vemos é um conflito não só cultural, mas socioeconômico com
desdobramentos políticos. Os moradores novos, que vieram com a especulação
imobiliária para o patrimônio não entendem as práticas culturais dos moradores mais
antigos por não terem o mesmo sentimento de pertencimento e não terem capacidade
ou interesse de analisar os símbolos destes sujeitos porque tem preconceito, assim,
não se preocupam em preservar estas práticas culturais que permeiam o bairro e, por
ter mais influência, fazem com que o governo municipal ignore os gritos de apelo de
parte da população que tem seu enraizamento neste lugar.
Este conflito se evidencia claramente na juventude do bairro, os jovens sócios
do Praia Clube, de situação financeira mais confortável, em seu caminho para o clube,
com raquetes de tênis, sapatos caros e roupas de marcas são, muitas vezes,
roubados pelos jovens que já moravam a mais tempo no Patrimônio, isto se deve ao
fato que eles tem raiva dos “meninos do praia”, eles veem claramente as diferenças
sociais e se perguntam por que aqueles garotos podem ter tudo aquilo e eles tão
pouco? Por que eles entram no clube que está no meu bairro há tanto tempo e eu
não? Estas perguntas geram um desconforto e, na hora que eles veem estes jovens
sócios indo para o clube, eles enxergam uma oportunidade de “vingança”, entretanto,
ao perpetuar o crime eles aprofundam ainda mais o conflito e fazem com que os novos
moradores desejem que os antigos realmente sejam expulsos, pois pensam que sem
os moradores “tradicionais” do bairro, a violência diminuiria. O próprio clube já tomou
nota desta situação e decidiu que, para tentar apaziguar a situação para os seus
sócios e diminuir a violência, a solução seria a criação de projetos para ajudar a
comunidade que já está presente no bairro há mais tempo, começando com as
crianças.
Estes sujeitos sofrem historicamente com a questão do preconceito,
constatamos em campo que era no bairro Patrimônio que moravam os trabalhadores
da população negra e indígena da cidade de Uberlândia, lá eles foram segregados e
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simplesmente jogados em meio a uma terra doada por um fazendeiro para a Igreja,
mesmo assim, demonstraram raça e força ao continuarem a reproduzir seus
costumes, festas e tradições, se tornando agentes culturais proeminentes na cidade,
entretanto não eram reconhecidos como tais por serem vistos como seres inferiores,
eles eram apenas a mão de obra dos habitantes do bairro Fundinho. Esperar-se-ia que
hoje a situação haveria de ter mudado, que estes sujeitos estariam a ser
reconhecidos, entretanto, por mais que a situação tenha melhorado, eles ainda não
têm o respeito que tanto merecem, será que esperaremos o bairro morrer para
garantirmos a ele e aos seus habitantes a “honra” de serem aceitos como os grandes
reprodutores da cultura popular de Uberlândia?
Com o desaparecimento da personalidade do bairro, muitos de seus moradores
começam a perder seu norte e a não verem mais sentido em continuarem lá, já que
vários dos seus amigos que estavam lá já foram embora ou morreram, seu lugar
começa a tornar uma forma idealizada, mais metafísica, seus encontros com ele
passam a se tornar menos frequentes e pode chegar um momento onde ele pare de o
frequentar, que o lugar pare de ter sentido em sua vida, que a simbologia já não se
entrelace com suas vivências. E é ai que a Escola de Samba Tabajara, como uma
manifestação da festa, entra, ela faz com que o convívio tenha frequência, criando um
lugar dentro do lugar e dando um sentido para a vida dos sujeitos que perderam o
contato direto com o lugar bairro Patrimônio, ou seja, nasce um novo lugar de
manifestação metafísica.
É importante ressaltar que a Escola de Samba Tabajara não tem um espaço
físico no bairro Patrimônio, ela usa um espaço emprestado por alguns membros que é
o Terreirão do Samba, o qual é usado para várias outras festas do bairro, o que o
torna, por si só, um lugar. Os integrantes da escola realmente lamentam a falta deste,
pois possibilitaria que ela atingisse a comunidade de forma mais direta, propiciando a
criação de projetos e, talvez, criando até empregos, exercendo uma função social e
tirando as crianças das ruas, que é o que o Tabinha tenta fazer, é uma bateria da
escola de samba formada pelos jovens da comunidade, buscando ensina-los algo,
ocupar o tempo deles fora da escola, ensinar princípios morais e reproduzir a cultura
da comunidade.
Por mais contraditório que possa parecer, foi também por conta de agentes
externos que a tabajara se reinventou e passou por um processo de metamorfose nos
tempos recentes, ela passou mais de uma década sem ganhar sequer um título de
vice-campeã e foi somente quando uma nova diretoria, composta por vários membros
que não eram das famílias fundadoras da escola, mas de membros que entraram na
escola por terem se apaixonado por ela em algum momento de suas vidas assumiram
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que começou a atual onda de vitórias. Essa nova diretoria tem a preocupação em
expandir a Escola de Samba Tabajara e renovar os horizontes do carnaval de
Uberlândia, respeitando toda a história desta “senhora” escola que já está quase
completando seus sessenta anos, ou seja, por mais que tenham seus conflitos,
existem novas forças entrando em jogo para fortalecer a festa e a tradição, esses
sujeitos também mostram que você não precisa nascer em um determinado local para
tê-lo como seu, tudo que precisa é estar em sintonia o bastante e ter amor por ele,
reproduzindo sentimentos de pertencimento e respeito por ele, tomando-o como
referência nas suas relações e o levando em consideração no sentido de sua vida.
Vemos nos sujeitos que, apesar de tudo, eles gostam da visualização que o
bairro tem ganhado recentemente devido justamente a especulação imobiliária que
tem minado suas práticas de reprodução cultural, demonstrando seu forte sentimento
de apego ao lugar, mostrando o orgulho que eles sentem por pertencer a ele. Já os
novos moradores, parecem sentir vergonha em falar que moram no Patrimônio,
usando de outros nomes para se referir ao local onde moram, como, por exemplo,
Morada da Colina ou Copacabana, evidenciando que realmente não entendem ou tem
interesse de entender alguma lógica diferente da do capital.
CONSIDERAÇÕES
Ao longo deste, pudemos verificar a forma como o processo da globalização se
reproduz em um lugar próximo a nossa realidade, fazendo um estudo de um caso
especifico, partindo dos sujeitos e tentando os compreender em toda sua
subjetividade, procurando perceber suas contradições e sentimentos dentro da
perspectiva do lugar usando como ponto de referência o carnaval da Escola de Samba
Tabajara, sua festa. Percebemos que estes sujeitos têm carências e enfrentam
problemas devido à especulação imobiliária no seu lugar, roubando-lhes o espaço de
reprodução dos seus costumes e de sua cultura.
Verificamos empiricamente que estes sujeitos apresentam resistências e que
elas se manifestam principalmente na festa, pois reúne todos os sujeitos do lugar,
unindo-os e criando um sentido para suas vidas. Os sujeitos vibram com o samba
enredo, estremecem com a agonia da espera para a contagem de pontos e
comemoram a vitória em comunidade, a festa fortalece seus laços e os ajudam a
superar suas dificuldades. A festa surge em meio às dificuldades como uma luz no fim
do túnel, uma oportunidade de reunião com os que estão longe fisicamente, mas que
no coração ainda estão juntos no lugar, na união conseguem superar as dificuldades
do dia-a-dia e se metamorfosear junto com a festa e a tradição em meio à
globalização.
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Vimos com isso que não existe a possibilidade do tradicional se manter intacto
por muito tempo no mundo contemporâneo, pois os processos globalizantes aceleram
os tempos e os modos de vida, fazem com que as metamorfoses ocorram em
velocidades cada vez maiores e possibilita uma quantidade maior de conflitos e
contatos com outros modos de ver o mundo, com outras culturas. Entendemos que é
nesse contato que o tradicional se renova, se reinventando ou fazendo surgir o novo,
entretanto o novo nada mais é do que uma reinvenção do “tradicional”, portanto,
verificamos a existência do “Paradoxo do Tradicional”.
Também pudemos ver que o carnaval tenta ser um espaço democrático, que
aceita qualquer um, seja esse sujeito da cor, classe social ou gênero que for, todos
tem um espaço na festa. Acreditamos que é através de reproduções culturais como
esta que podemos vislumbrar uma futura “democratização” da democracia, visando
dar voz a todos. A nossa própria prefeitura tem muito a aprender com práticas como
esta, como vimos na situação dos mapas e da delimitação dos limites dos bairros, ela
poderia dar mais voz aos sujeitos, afinal, seu papel é governar nos representando.
É no contato com o mundo que o lugar se metamorfoseia, transformando, por
consequência seus sujeitos e sua festa, seus costumes e tradições mudam, há
perdas, porém também existem ganhos, o que já se reproduzia há tempos e sobrevive
as mudanças se fortalece e garante que os sujeitos possam continuar a reproduzir sua
cultura. Acreditamos que, talvez, no futuro, o lugar Escola de Samba Tabajara deixe
de estar dentro do lugar Patrimônio e o Patrimônio passe a estar dentro da Escola de
Samba Tabajara. Assim, mesmo que o bairro Patrimônio venha a desaparecer um dia
do mapa de Uberlândia, ele sempre vai continuar vivo no coração e na memória dos
foliões da Escola de Samba Tabajara.
Percebemos através de nossas análises e incursões ao campo, que o que
ainda mantém o bairro unido, que oferece resistência as forças globalizantes é a
Escola de Samba Tabajara, onde os sujeitos encontram formas de tentar continuar a
reproduzir seus costumes, valores e tradições mesmo morando em outros bairros.
Podemos ver a força do lugar para os sujeitos, por mais que eles já não morem mais
nele os laços afetivos e sociais não se desfazem.
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