Venturas e Desventuras do Capitão Prego e sua família ... · o faziam ver que ela era a mãe dele...
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Venturas e Desventuras do Capitão Prego e sua família: memórias de um congadeiro da
região das Vertentes, Minas Gerais
SILVIA MARIA JARDIM BRÜGGER
Introdução
Essa comunicação é fruto do projeto de pesquisa “Memórias do Cativeiro e da Liberdade
entre Congadeiros da Região das Vertentes”. Proponho analisar a forma como o capitão de
congado Claudinei Matias do Nascimento, conhecido como Prego, narra sua trajetória de vida
e a de sua família. Prego é capitão do Terno de Congado de Nossa Senhora do Rosário e Escrava
Anastácia de Tiradentes, Minas Gerais. Tem hoje 44 anos. Em sua fala se apresenta como
descendente de escravos e narra a trajetória de sua família. Apresenta a ascendência cativa, os
movimentos migratórios, as atividades desenvolvidas pelos membros da família. Mas aqui nos
ateremos à cosmovisão expressa em seu modo de narrar e explicar as mudanças na história de
sua família e na sua.
I. Venturas e Desventuras do Capitão Prego e sua Família
A primeira entrevista com o Capitão Prego versou principalmente sobre sua inserção no
congado. Sua trajetória de vida e de seus familiares apareceram pontuando aquela narrativa.
Em um segundo momento a opção foi por se ater à sua história de vida e à de seus familiares.
A primeira pergunta feita nessa segunda entrevista, aparentemente simples, deixou o capitão
desconsertado: “... a gente queria conversar um pouco sobre a sua história familiar. Começaria
pedindo para você falar um pouco sobre sua família. Quando você nasceu? Quantos irmãos
você tem? Se tem irmãos, se não tem?” (Entrevista concedida pelo Capitão Prego a Silvia
Brügger, Simone de Assis e Samuel Avelar Júnior em 16/12/2016 ) Ele pediu para que o
gravador fosse desligado por duas vezes, antes de começar a responder. A resposta começa a
apresentar uma história incômoda para ele:
Eu nasci na cidade de Barroso, em 1973, dia 19 de junho. A história é um pouco
complicada, mas vamos falar desde o início. A minha mãe de sangue, ela era dona da
casa da alegria. Quando eu falo casa da alegria, vamos falar casa da dama da noite.
Aonde fazia a alegria do pessoal. E ali, como ela já tinha muitos filhos, um dia, eu
Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense, professora associada do Departamento de Ciências
Sociais da Universidade Federal de São João del Rei. Agradeço o apoio para participação no evento do Programa
de Pós-Graduação em História da UFSJ. Agradeço a Claudinei Matias do Nascimento, o capitão Prego, a
possibilidade de produzir esse texto.
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não sei o que é que deu na cabeça dela que ela enrolou com o próprio cunhado. Desse
rolo que ela teve com o cunhado nasci eu. Mas como na época ninguém podia saber
que eu era filho do cunhado, ela começou tomando esses matos, esses chás de horta,
para eu poder nascer antes da hora. Na verdade, para poder me eliminar dentro da
barriga mesmo. Mas aí tomou muita coisa. Tem coisa que nem tem como falar. Coisa
que minha mãe mesmo, de sangue, me contou agora, pouco tempo antes dela morrer.
Ela me contou tudo que ela fez pra mim não nascer.
Mas de alguma forma, de algum propósito que Deus tinha para mim, e acho
que esse propósito era de eu vir cantar no Congado, então eu nasci. Só que eu nasci
com nove meses certinho, mas não nasci pesando nem 1kg. Para vocês terem uma
noção de como foram os estragos dos remédios, os venenos que ela tomou para me
abortar.” (Entrevista concedida pelo Capitão Prego a Silvia Brügger, Simone de
Assis e Samuel Avelar Júnior em 16/12/2016. )
Fruto de uma relação adulterina, Prego teria nascido por determinação divina e contra a
vontade de sua mãe, para cumprir uma missão: cantar no Congado. Segundo a narrativa, como
a mãe não o desejava e já tinha outros três filhos, tentou dá-lo em adoção a duas famílias, mas
como ele “não evoluía nada”, era sempre devolvido. Até que, quando estava com quatro meses,
um casal de tios resolveu adotá-lo. Foi a partir dos cuidados desse casal que o menino começou
a crescer e ganhar um pouco mais de peso. É a eles que Prego reconhece como seus pais:
“Raimunda Maria do Nascimento que é a mãe. O pai Geraldo Estêvão do Nascimento.” Ele era
irmão da “mãe de sangue” do menino. Ele conta ainda que, quando completou 7 anos, “Tia
Antonia”, sua “mãe de sangue” o queria de volta. Não tendo sucesso, começou a jogar pragas
contra ele, desejando sua morte. No entanto, quem morreu foi o único filho de quem ela gostava,
por ser de pele mais clara. A relação com a “mãe de sangue” sempre foi para Prego
problemática, na infância sentia vergonha por ser filho da “dona da casa da alegria” e mais
ainda pelas atitudes que ele entende como más da parte dela. Apesar disso, os pais que o criaram
o faziam ver que ela era a mãe dele e que ele era por causa dela que ele existia.
Prego se lembra de seus avós pela linha paterna e materna (considerando aqui como
referência os seus pais de criação, posto que o pai era irmão de sua mãe de sangue). O avô
paterno, segundo ele, foi escravo e teria sido vendido ainda muito pequeno da região de
Tiradentes para Piedade do Rio Grande. Chamava-se João Maria do Nascimento. Por ocasião
da abolição teria cerca de 10 anos de idade. Continuou vivendo na região e trabalhando na
agricultura. Se casou em Piedade e teve vários filhos. Um deles foi expulso de casa, quando
tinha 9 anos de idade, e veio trabalhar em Barroso. Foi esse filho que buscou a família para se
mudar com ele para Barroso, ao saber das dificuldades pelas quais o pai passava em Piedade.
Prego assim narra a situação de seu avô:
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(...) meu avô saiu, porque até um ovo, quando meu avô ia colher um ovo no balaio,
às vezes o ovo tremia, quebrava, às vezes tinha cobra dentro do ovo. Então os
macumbeiros atacavam demais o meu avô, aonde ele teve que conseguir fazer contato
com esse filho que ele expulsou de casa, para ver se conseguia um lugar para eles
irem.
Aí eles andavam, iam em alguns benzedores, que falavam “Sr. João Maria,
para as coisas melhorarem, o senhor vai ter que ir embora da cidade. O senhor tem
que sair quietinho, não pode falar nada para ninguém para onde o senhor está indo
ou para onde o senhor deixou de ir. Vai cada cruz, cada encruzilhada que o senhor
passar o senhor vai deixar uma pedra, coloca uma pedra e não olha para trás. Que
aí assim o pessoal vai perder o rumo de onde o senhor foi. Quando eles encontrarem
o senhor já vai ter passado muitos anos, aí não vai ter como eles mexerem com o
senhor. (Entrevista concedida pelo Capitão Prego a Silvia Brügger, Simone de Assis,
Samuel Avelar Junior, em 4 de novembro de 2015.)
Ao ser pedido para explicar por que os macumbeiros atacavam o avô, Prego prossegue:
Olha, segundo a história que meu pai sempre me contou e meu tio, é porque meu avô
apesar de ser muito ruim para família, para o pessoal de fora ele era igual a um santo
de tão bom. Mas para família ele era muito ruim. Só que o que ele tinha também de
ruindade ele tinha de muito trabalhador. E aí os outros, as pessoas ficavam com muita
invição(sic) dele ser muito trabalhador. Aí as coisas dele não fluíam, nada dava certo,
às vezes a vaca que ele tinha morria, a casa deles como era de pau a pique pegava
fogo. Aí tinha um senhor lá, que chegava e falava “olha Sr. João Maria a vaquinha
do senhor morreu, pode ficar sossegado que eu não vou mais prejudicar o senhor
não. O senhor pode arrumar outras vacas que não vão morrer. A casinha do senhor
também pegou fogo, fui eu que coloquei. O senhor não preocupa não, que não vou
fazer isso mais não”. Foi indo ele foi cansando com aquilo, até chegar ao ponto de ir
embora.
Às vezes ele estava capinando, fazia algum barulho no mato, ele olhava. Ele sempre
diz que uma voz fala assim: “toma cuidado!” Quando era a quarta, quinta enxadada
que ele dava, ele puxava uma cascavel, matava jogava aquilo dentro d’água e a
cascavel sumia. (Entrevista concedida pelo Capitão Prego a Silvia Brügger, Simone
de Assis, Samuel Avelar Junior, em 4 de novembro de 2015.)
Detalhando ainda mais as atitudes contra o avô, explica que elas eram feitas de longe
pelos macumbeiros: “Punha fogo só de longe, não precisava nem ir lá não.” (Entrevista
concedida pelo Capitão Prego a Silvia Brügger, Simone de Assis e Samuel Avelar Júnior em
16/12/2016.) Seriam, portanto, fruto de ações que classificaríamos como “sobrenaturais”. Para
combate-las, o avô buscou orientação com um benzedor da região, antes de seguir com a família
para Barroso, em companhia do filho que havia expulsado de casa cinco anos antes.
(...) o benzedor pediu para eles não olhar para traz, em cada encruzilhada que
passassem era para cada um jogar um punhadinho de terra ou umas pedras. Em todas
encruzilhadas eles faziam isso. E com isso eles iam chegar até no destino deles, e
ninguém não ia conseguir pegar o rumo deles. Aí foi onde que eles vieram andando,
andou a noite inteira até chegar em Barroso. Aí quando chegou, o pessoal perdeu a
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noção para onde eles tinham ido. Aí levou muito tempo para descobrir para onde eles
tinham vindo. (Entrevista concedida pelo Capitão Prego a Silvia Brügger, Simone
de Assis e Samuel Avelar Júnior em 16/12/2016.)
Para encontrar uma solução para problemas causados por forças “sobrenaturais”,
buscaram ajuda com quem entendia desse universo, curando diversos tipos de “doenças” com
ações também “sobrenaturais”. Foi a partir dessa orientação e acompanhando o filho que havia
expulsado de casa, que o Sr. João Maria do Nascimento se mudou para Barroso, onde se instalou
e passou a trabalhar para os fazendeiros da região. Segundo a fala de seu neto, “ aí já era
tranquilo. Trabalhava para os fazendeiros.” (Entrevista concedida pelo Capitão Prego a Silvia
Brügger, Simone de Assis e Samuel Avelar Júnior em 16/12/2016.)
Pelo lado da mãe de criação, dona Raimunda Maria do Nascimento, a família veio de
um lugar chamado Água Limpa, entre Ibertioga e Piedade. Era a família Sinhana. Nas palavras
de Prego:
Então a família dos Sinhana era uma família de gente muito macumbeira. Naquela
época, era os mais macumbeiros que tinha era a família dos Sinhana. Então eles
vieram dessa Água Limpa, vieram para Ibertioga. Alguns vieram para Ibertioga. Aí
quando ficou sabendo que Barroso era uma cidade boa de serviço, aí veio primeiro
o meu avô que é o Chico Sinhana. Ele veio para Barroso. Depois veio João Sinhana,
Zé Sinhana, aí veio os outros tios. Então aí veio a família dos Sinhana. Quando
chegou em Barroso, quando procurava em Barroso a família dos Sinhana, era só
procurar a família dos macumbeiros. Então tinha aqueles que era bom e tinha aqueles
que eram ruins. Então era uma família dos macumbeiros muito barra pesada. E na
família os que puxaram mais para o lado ruim foi o João Sinhana e o Zé Sinhana.
Esses eram macumbeiros... (Entrevista concedida pelo Capitão Prego a Silvia
Brügger, Simone de Assis e Samuel Avelar Júnior em 16/12/2016.)
Uma família de macumbeiros, assim Prego caracteriza o seu ramo materno. Por essa
via, o antepassado escravo teria sido sua bisavó, Sinhana Velha, de quem todos herdam o
apelido que se tornou “sobrenome de família”. Segundo Dona Raimunda, mãe de Prego, sua
avó paterna se chamava Ana Martinha de Jesus, resultando o apelido da contração de Sinhá
com Ana. Virou Sinhana. Os filhos tinham os prenomes acompanhado por Sinhana. Assim, o
pai de Dona Raimunda, avô materno de prego era seu Chico Sinhana. (Entrevista concedida por
Dona Raimunda Maria do Nascimento a Silvia Brügger, Simone de Assis e Samuel Avelar
Junior, em 30/03/2017). Foi em companhia de Sinhana Velha que a família mudou para Barroso
e se empregou na caieira. Nas palavras de Prego:
Então, eles quando eles mudaram para Praia, que é esse bairro de Barroso, quando
eles vieram lá de Ibertioga, eles vieram para Praia. Então ainda tem a casinha que
era da minha bisavó. Ainda está em pé, lá ainda. Modificou um pouquinho, mas ainda
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tem as paredes que foram feitas na época dela, que deve ter mais de 80 anos. Aí ela
veio para Barroso, também trabalhava na caieira. Deles até que eu não tenho muita
coisa para falar não. Quem tem mais coisa para contar deles é minha mãe. Eu só sei
que eles eram uma família de gente muito macumbeira. Isso eu sei.
Eu até queria ter herdado deles. Mas isso eu acho que ainda não consegui
herdar, não. Mas assim, uma coisa boa. Eu não consegui herdar muita coisa não. Só
que assim, era gente muito trabalhador. O meu avô, que era o Chico Sinhana, benzia.
Eu lembro1 que ele benzia, ele tinha um copo d’água, um copo d’água, tinha um
quadrozinho de São Jorge, e tinha uma vela branca, e um cordão de São Francisco.
Ele benzia mais ou menos nessa coisa. (Entrevista concedida pelo Capitão Prego a
Silvia Brügger, Simone de Assis e Samuel Avelar Júnior em 16/12/2016.)
Nota-se que, para Prego, ser benzedor e ser macumbeiro quase que se equivalem. Ser
benzedor seria ser macumbeiro para coisa boa.
Aqui já se pode começar a pensar nas chaves a partir das quais o capitão de congado
Prego e a memória familiar, que ele apresenta em sua narrativa, entendem o mundo. Proponho
que uma cosmovisão banto se faz presente nesta forma de narrar suas experiências. Os bantos
são o grupo linguístico e cultural, oriundo da África Centro Ocidental, que predominou entre
os escravos da região sudeste no Brasil, em especial no século XIX. Segundo Cramer, Vansina
e Fox (apud KARASCH, 2000), a cosmovisão deste grupo centrava-se no que chamaram de
“complexo ventura-desventura”. Este baseava-se na afirmação do predomínio do bem (ou da
ventura) na ordem natural das coisas (saúde, fecundidade, harmonia, riqueza etc.). O universo
de vivos e mortos estaria povoado por diversos tipos de espíritos e ancestrais com intenções e
ações boas. Haveria, porém, também “forças malévolas”, fora da ordem natural, capazes de
provocar tudo o que é mau, acionadas por “pensamentos e sentimentos malignos e outras
pessoas significativas” (CRAMER apud KARASCH, 2000: 355-356). Esse desequilíbrio da
ordem natural, entendido como “desventura”, manifestava-se em toda ordem de problemas de
saúde, fracasso, empobrecimento, morte, destruição. Portanto, se a “desventura” era provocada
pelo acionar de forças que classificaríamos como “sobrenaturais”, era também nestas instâncias
que deveria ser buscado o restabelecimento do estado de “ventura”, através de orientações
espirituais, amuletos e rituais.
Ora, parece-me clara, nas falas do Capitão Prego, a influência desta cosmovisão banto
no seu modo de narrar sua história familiar e, em especial, nos seus momentos de inflexão, ou
1 Capitão Prego narra essas lembranças de olhos fechados.
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seja de mudança. As perdas econômicas do avô paterno (a casa que pega fogo, as vacas que
morrem, a cobra que aparece em meio a plantação) são explicadas pela ação de “macumbeiros”,
que nada mais seriam do que aqueles capazes de acionar as “forças malévolas” para provocar a
“desventura”. A busca pelo reequilíbrio, pela recuperação do estado de “ventura”, vem com a
mediação de benzedores. Estes orientariam as ações das pessoas afim de escaparem das “forças
malévolas”. Foi um benzedor que orientou a saída da família de Piedade em direção a Barroso,
indicando o ritual a ser seguido no trajeto: em cada encruzilhada que passassem deviam colocar
uma pedra, afim de que o rumo que tomavam fosse ignorado pelos que os perseguiam
espiritualmente. Ora qual o significado da encruzilhada? Robert Slenes, citando Robert
Thompson, indica o significado de um “cosmograma Kongo”, no qual em meio a um traço oval
há uma cruz. A linha horizontal da cruz seria a kalunga, ou seja, o mar, a divisão entre o mundo
dos vivos e dos mortos, e as extremidades dos traços representariam os quatro momentos do
sol: na extremidade mais alta estaria o meio-dia, a força no mundo terreno; na inferior, a meia-
noite e o auge da força no “outro mudo” (mundo dos mortos); nas extremidades horizontais,
não apenas o nascer e o pôr do sol, mas o momento em que ele romperia a barreira da kalunga,
comunicando o mundo dos vivos e dos mortos. A cruz representa, portanto, essa comunicação
e a passagem pelos quatro momentos do universo. (SLENES, 1992: 63) A pedra colocada na
encruzilhada talvez tivesse o sentido de impedir as “forças malévolas” de continuarem a fluir
do mundo dos mortos para o dos vivos, trazendo infortúnio à família.
Pelo lado materno de sua família, Prego afirma não ter muito o que falar. Diz saber
apenas que os Sinhana eram muito macumbeiros, uns pelo lado mau, outros pelo bom. Seu avô
Chico Sinhana benzia recorrendo a um copo d´água, um quadro de São Jorge, uma vela branca
e um cordão de São Francisco. Os elementos de contato entre o mundo dos vivos e dos mortos
novamente se apresentam: a água (representando a kalunga) e a vela que quando acesa, além
do fogo (elemento de purificação) traz a fumaça (outro meio de comunicação entre o mundo
dos vivos e dos mortos). As referências a representações de santos católicos podem ser
entendidas, como sugere Mary Karasch, como a incorporação de novos amuletos, de origem
católica, mas apropriados pela concepção banto (KARASCH, 2000).
Essa cosmovisão banto presente na narrativa sobre seus ascendentes, aparece também
nas palavras de Prego sobre sua própria vida em idade adulta. Prego casou-se, em Barroso, com
Lucimar, no entanto, segundo ele, lá não viviam em harmonia. Prego explica a situação:
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É, então, Barroso para a gente, as condições da gente, apesar que a gente tinha a
nossa casa, mas nossas coisas não fluíam, não ia para frente. Então (...) de 94 até 99,
a nossa vida era só briga, minha e dela. Briga, briga, briga, briga todo dia. Todo dia,
todo dia, todo dia briga. Aí até quando ela ficou grávida, foi em 98. Aí ela ficou
grávida, aí ela tinha muita dor de cabeça, aí ela foi benzer no Sr. Geraldo Carteiro.
Só que como ela já tinha perdido uma criança antes, aí o Sr. Geraldo Carteiro
mandou ela me pedir que era para mim ir lá. Apesar que a minha família sempre foi
muito macumbeira, eu nunca dei muita importância nesse tipo de coisa. Ela falou
comigo que ele pediu para a gente rezar de noite, não lembro o que foi que ele pediu.
Aí ela pega e pediu para mim rezar, enquanto ela estava rezando, eu estava achando
ruim com ela, e tampava e cobria a cabeça, não estava nem aí para a reza. Nisso foi
passando o tempo, aí ela teve o Bruno, nasceu, graças a Deus tudo bem. Foi passando
o tempo e a situação só piorando, só piorando. (...) Até que um dia, eu trabalhava em
Juiz de Fora, antes de eu ir para Juiz de Fora, a gente passou uma situação muito
ruim aqui. Graças a Deus não faltou comida aqui não, mas passou pertinho de faltar
comida. Aí (...) fui para Juiz de Fora, quando eu fui para Juiz de Fora, teve um dia
eu sai de Juiz de Fora, cheguei em casa, dei uma briga com ela, violenta mesmo, que
eu dei um monte de soco nos braços dela, nas costas. Aí o pai mais a mãe ficou, o pai
principalmente, ficou doído com aquilo, achou que estava muito errado demais. Aí
me pegou, me levou para benzer com um senhor, bem na serra ali em Barroso.”
(Entrevista concedida pelo Capitão Prego a Silvia Brügger, Simone de Assis e
Samuel Avelar Júnior em 16/12/2016.)
No entanto, a orientação do benzedor não convenceu Prego, pois, segundo ele, falou
coisas que não correspondiam a suas práticas. A esposa, então, o chamou para ir com ela ao
outro benzedor da região, Sr. Geraldo Carteiro. Prego narra o que ouviu:
Aí falou comigo assim: “olha minha criancinha”, a entidade falando, “eu vou fazer
o seguinte, eu vou ser obrigado a te falar a verdade. Você está indo num lugar levando
o seu dinheirinho suado e dando para os outros e não resolveu nada. [referência à
ida no outro benzedor] Então eu vou te falar a verdade. Você pega os seus parentes
todos, pega os seus parentes todos, escolhe a dedo que você ainda vai escolher
errado, ainda vai escolher errado. Você tira o seu pai e a sua mãe, o resto você vai
escolher errado. Eu vou te ser sincero, eu vou te falar a verdade, se você quiser viver
bem, você vai juntar suas coisas e vai embora daqui. Só que a coisa está tão pesada,
que eu preciso fazer uma coisa, só que eu não faço isso que tem que fazer. Mas a
pessoa que vai fazer ela cobra e é lá em Lafaiete. Você tem que me trazer aqui para
mim depositar na conta dessa pessoa a quantia de acho que era R$160,00. E eu não
tinha, mas a Luci [esposa] tinha esse dinheiro. Ela falou eu tenho, que ela estava
desesperada. Aí ele pegou e falou assim, você tem que trazer esse dinheiro para mim
antes de 6 horas da manhã. E vai fazer barulho na sua casa por volta da meia noite,
você não assusta não. Aí realmente fez barulho, né? (Entrevista concedida pelo
Capitão Prego a Silvia Brügger, Simone de Assis e Samuel Avelar Júnior em
16/12/2016.)
E ele continua:
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Aí dei o dinheiro a ele. Ele pegou e falou: “Oh! Minha criancinha eu vou te ser
sincero, se vocês quiserem viver bem, vocês vão ter que juntar suas coisas e ir embora.
E eu vou te ser sincero, ela [a esposa de Prego] já estava pronta para sumir. Ela ia
pegar as coisas dela, ela ia sumir e nunca mais você ia ver ela. E a pessoa que você
mais gosta que é o seu pai, ia virar as costas para você. Ela ia sumir com as duas
crianças e nunca mais você ia ver ela. ” Aí fez eu ajoelhar aos pés dela, fez eu pedir
perdão para ela. Aí ajoelhei aos pés dela e pedi perdão do jeito que as entidades tinha
mandado. Aí eles pegaram e falaram com a gente: “vocês vão fazer assim, se vocês
quiserem viver bem”. A mesma coisa que aconteceu com o meu avô aconteceu
comigo. Só que meu pai já tinha me dado uma alerta sobre isso, que achava que isso
ia acontecer. Aí ele falou: “olha você vai juntar suas coisas, não vai falar nada com
ninguém. Vai pegar suas coisas, vai arrumar um carro e vai atravessar a divisa da
cidade. Aonde você for, você vai vender. Você vai buscar no mato e ela vai vender.
Eu não sei se é terra, se é barro, o que é que é., mas você não vai falar nada com
ninguém. Quando você mudar, eles vão perder a noção para onde você está. Eles vão
esquecer de vocês. ” Aí falei com o meu pai que nós íamos mudar. Juntei as coisas e
nós arrumamos um caminhão. Quando o pessoal assustou nós mudamos mesmo. A
gente veio embora para Tiradentes. (Entrevista concedida pelo Capitão Prego a
Silvia Brügger, Simone de Assis e Samuel Avelar Júnior em 16/12/2016.)
Em Tiradentes, depois de outras experiências de trabalho, hoje, Prego e Lucimar vivem
de artesanato. Cumprindo o que havia dito a entidade em Barroso, Prego busca as cabaças no
mato, limpa e Lucimar produz objetos de decoração, como galinhas, balões, e os vende em sua
casa. Foi depois da mudança para Tiradentes também que Prego iniciou o trabalho com o
Congado, embora sua família já fosse de congadeiros. E o envolvimento com o congado tem
sua origem ligada a uma experiência de cura. Segundo Prego, quando se mudou de Barroso
para Tiradentes, ele já veio doente, sofrendo muito com problema de coluna, em função de
“ataques de parentes”, com inveja dele estar construindo sua casa. Assim como ocorrera com
seu avô paterno, esses ataques seriam de ordem espiritual. Nesta ocasião, Sr. Geraldinho
Carteiro, benzedor de Barroso não estava podendo atender por também estar doente, e indicou
uma benzedeira em Ponto Chique, uma região de Ibertioga. Uma amiga de Tiradentes o levou
a essa benzedeira e lá ela informou à amiga de Prego que a situação dele era muito delicada,
que talvez ele não durasse nem mais uma semana. Desesperada com a situação, a amiga queria
leva-lo a um médico em São João del Rei. Mas Prego se recusou porque, segundo ele, não gosta
de médicos. A amiga conseguiu convencê-lo a ir com ela a um massagista, na cidade de São
João. No mesmo lugar onde atendia o massagista, trabalhava também uma esteticista. Ao subir
as escadas do prédio, essa esteticista o observou e, quando ele deixou a sala do colega com a
orientação de que só um médico poderia ajuda-lo, ela se dirigiu à amiga de Prego e avisou: “o
problema do seu colega não é médico não. Traz ele aqui um outro dia que o problema dele não
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é médico não.” (Entrevista concedida pelo Capitão Prego a Silvia Brügger, Simone de Assis e
Samuel Avelar Júnior em 4/11/2015)
Passados, segundo Prego, uns três dias, ele voltou com a amiga ao consultório da
esteticista e ela lhe disse que iriam fazer uma “troca de energias”. A esteticista o chamou para
sua sala, onde começou a conversar com ele com as mãos trançadas sobre a boca. Fez diversas
afirmações sobre a vida de Prego, mas ele estava desconfiado e só se convenceu da seriedade
da conversa quando ela mencionou um fato ocorrido quando ele tinha 5 anos de idade. O seu
avô materno sentou sobre o seu gatinho e o matou, fazendo Prego chorar muito. Em suas
palavras,
Aí nessa hora a desconfiança acabou. Já não tinha necessidade de eu ter tido
desconfiança. Ela falou: “então, vou falar o que está acontecendo. Os seus dois avós,
o seu avô do lado da sua mãe morreu com o sentimento de culpa, porque ele matou
seu gatinho e você chorou muito. E o avô do lado do seu pai porque ele era muito
ruim, muito ruim para família, então ele está tentando te ajudar. Só que eles não têm
força para te ajudar e, nisso que eles não têm força para te ajudar, eles estão te
prejudicando demais. Um tenta ajudar e o outro tenta ajudar. Um para cobrir a
ruindade que ele foi para família, ele tenta te ajudar e não tem força. E o outro porque
morreu com o sentimento de culpa, porque ele matou seu gatinho. Então a gente vai
ter que fazer um tipo de trabalho aqui, para poder melhorar”. Aí (...) a senhora de
Tiradentes [amiga de Prego] foi e arrumou uma pedra, que é até essa pedra que está
aqui comigo, essa pedra que está aqui. Colocou assim no chão, estava chovendo
muito e mandou eu pegar. Aí quando eu abaixei me deu uma fincada muito forte na
ponta do dedo, que eu dei até um grito. Aí nisso que eu dei um grito, aí já levantei
com muita dor nas costas. Aí ela pediu para eu fazer movimentos que eu nunca
conseguia fazer, uma estrelinha para cá, estiquei. Aí ela falou: “olha, você vai ter
que tomar muito cuidado, como você já foi muito danificado você não vai poder
abusar com o peso.” Ela perguntou com quem eu estava falando, se eu sabia com
quem eu estava falando, aí falei que não. Ela falou: “você está falando com a escrava
Anastácia.”. (Entrevista concedida pelo Capitão Prego a Silvia Brügger, Simone de
Assis e Samuel Avelar Júnior em 4/11/2015)
Prego detalha:
Aí que teve que fazer alguma coisa que, foi feita com a escrava Anastácia, para ajudar
[os avós] a seguir o caminho deles. E depois disso, graças a Deus, o meu problema
de coluna acabou. E a coisa lá vai fluindo, vai fluindo lentamente. Mas lá vai. Tem
dia que a gente tem dinheiro, outro dia não tem. Mas pelo menos de saúde está boa
para continuar a luta. (Entrevista concedida pelo Capitão Prego a Silvia Brügger,
Simone de Assis e Samuel Avelar Júnior em 16/12/2016.)
Alguns aspectos chamam a atenção na história de Prego. Primeiro à indicação do
benzedor de Barroso para que ele mudasse de cidade, como já havia ocorrido a seu avô, para se
livrar de ataques de “forças malévolas” que provocavam o estado de “desventura” em que vivia
com sua esposa. Essas forças negativas afetavam também a sua saúde. Em relação a esse
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problema, o que surpreende não é a solução através da ação de um espírito benevolente, como
o da escrava Anastácia (o que se mantém dentro da lógica do “complexo ventura-desventura”),
mas que ele tenha se manifestado através de uma esteticista. Isso parece remeter a um outro
elemento da cosmovisão banto, a plasticidade, a flexibilidade. É claro que muito provavelmente
essa esteticista possuía uma inserção religiosa, era médium, mas não é nessa condição que ela
é apresentada por Prego e nem é em nenhum terreiro ou mesmo num gongá caseiro que ela o
atende. É no local onde atua profissionalmente como esteticista. Mas o atendimento que presta
e chama de “troca de energia” permite compara-la a figura do “nganga nzambi”. Segundo
James Sweet, no Brasil escravista teriam havido diferentes tipos de “nganga”, que adivinhavam
em rituais de possessão. Para o autor, o “nganga nzambi” era um “sacerdote dos espíritos”,
especializado no tratamento de doenças causadas por vinganças de espíritos mortos que haviam
sido esquecidos. Ainda segundo ele, no Brasil teriam ocorrido também uma prática ritual
centro-africana, o “Tambo”, “que era uma cerimônia fúnebre complexa, destinada a assegurar
uma transição confortável da alma da pessoa morta para o outro mundo.” (SWETT, 2007: 209)
Em Angola, essa prática implicava em vários dias de luto e na preparação do corpo do falecido
com ervas e raízes. Sem isso, acreditavam que a alma do morto regressaria e os faria adoecer.
É claro que na narrativa de Prego não há qualquer menção a esse ritual, nem a uma vingança
por parte do antepassado falecido, mas o retorno da alma buscando compensar falhas terrenas,
aparece como a causa da doença; o que pode ser lido como uma reelaboração daquela
percepção, talvez apropriada com elementos católicos, como o arrependimento pelos males
provocados em vida.
Por fim, é preciso mencionar a referência à escrava Anastácia como a entidade
responsável pela cura de Prego. O mito da escrava centro-africana Anastácia indica que ela teria
tentado resistir, sem sucesso, ao assédio sexual de seu senhor, que teria lhe impingido o uso da
máscara de flandres, impedindo-lhe de se comunicar pela fala, mas não pelos olhos. A devoção
à escrava Anastácia possui grande relação com a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e
São Benedito dos Homens Pretos do Rio de Janeiro. A sua igreja abriga o Museu do Negro,
onde uma exposição realizada nos anos de 1970, divulgou imagem da escrava com a máscara
de flandres, reprodução de uma litografia do século XIX (viajante francês Étienne Arago).
Depois disso, uma novela televisiva e o samba-enredo Kisomba, da Escola de Samba Unidos
de Vila Isabel (1988), contribuíram para a divulgação de Anastácia. A popularização da
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devoção à escrava, embora não reconhecida oficialmente pela Igreja, liga-se também ao
contexto de fortalecimento do movimento negro e das lutas pela emancipação feminina, além
das críticas ao regime militar e a suas práticas de censura, contra os quais o símbolo de
Anastácia e sua máscara cabiam perfeitamente. (SOUZA, 2007; ASSIS, 2016)
O reconhecimento de Prego pela atuação da escrava Anastácia em sua cura manifesta-
se na escolha para juntamente com Nossa Senhora do Rosário dar nome ao Terno de Congado
que comanda. Segundo o capitão, a presença da escrava na camisa e na bandeira do grupo causa
impacto e respeito em relação a eles por parte de outros ternos.
Para concluir, retomando a aproximação da forma pela qual o capitão Prego narra sua
história de vida e de sua família e a cosmovisão banto, não é demais lembrar a associação
comumente feita entre a figura da escrava Anastácia e a dos pretos-velhos da umbanda, o que
inclusive contribuiu para sua não aceitação pela ortodoxia católica. (SOUZA, 2007). Nesse
sentido, cabe reforçar a hipótese levantada no clássico trabalho de Karasch quanto à semelhança
entre a religião dos bantos do século XIX e a umbanda do século XX. (KARASCH, 2000). Ao
narrar suas venturas e desventuras, o capitão Prego nos permite pensar nos processos
reelaboração pelos quais a cosmovisão banto pode ter passado, mas também nas permanências
desse universo em nossa sociedade.
BIBLIOGRAFIA
ASSIS, Simone de. Memórias do cativeiro nos cantos de congado: cultura e pertencimento.
Relatório de iniciação científica, UFSJ, 2016.
KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Cia. das
letras, 2000.
SLENES, Robert. “Malungu ngoma vem!”: África coberta e descoberta do Brasil. Revista da
USP, no. 12, 1992.
SOUZA, Mônica Dias de. “Escrava Anastácia e pretos-velhos: a rebelião silenciosa da memória
popular”. In SILVA, Vagner Gonçalves. Imaginário, Cotidiano e Poder. Memória afro-
brasileira. São Paulo: Editora Selo Negro, 2007. Disponível em
https://books.google.com.br/books?hl=ptBR&lr=&id=msvyJG1orbkC&oi=fnd&pg=PA15&d
q=escrava+anast%C3%A1cia&ots=b_yUP4jWID&sig=ZlNmsRxnNW4STH3Jhtjps9eap2Q#
v=onepage&q=escrava%20anast%C3%A1cia&f=false
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SWEET, James H. Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro-português
(1441-1770). Lisboa: Edições 70, 2007.