Vertov - A Experiencia Do Cinema

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ÍSMAIL XAVIER (organizador) A EXPERIÊNCIA DO CIA[EMA antologia 4a edição gmal

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ÍSMAIL XAVIER(organizador)

AEXPERIÊNCIADO CIA[EMA

antologia

4a edição

gmal

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i r > / M 7 M :/I/ d;i apresentação geral, das introduções e das notas by Ismail Xavier

()s detentores dos direitos de tradução e reprodução dos artigos que compõemi-sla antologia estão relacionados na página de colofao.

CIP-Brasil. Catalogação na FonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

E96 A Experiência do cinema: antologia / Ismail Xavier organizador.- Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafílmes, 1983.

Bibliografia

1. Cinema - Filosofia e estética 2. Cinema - História e críticaL Xavier, Ismail II. Série

CDD - 791.4301791.437

CDU - 791.01791.43

83-0127

T'edição março 1983

Direitos adquiridos pela

Edições Graal Ltda.Rua do Triunfo, 177

Santa Efigênia, São Paulo, SP - CEP 01212-010Tel.: (11) 3337-8399 - Fax: 3223-6290

e-maií: [email protected] page: www.pazcterra.com.br

2008Impresso no Brasil/P/w//^ i n Bra%//

ÍNDICE

Apresentação geral/ Ismail Xavier 9|

PRIMEIRA PARTE — A ordem do olhar: a codificação docinema clássico, as novas dimensõesda imagem 171

Introdução/ Ismail Xavier 19|

1 .1 . Hugo Munsterberg 25|

1 . 1 . 1 . A atenção 27|

1 . 1 . 2 . A memória e a imaginação 36|

1 . 1 . 3 . As emoções 4(

1.2. V. Pudovkin

1 . 2 . 1 . Métodos de tratamento do material (montagem es-trutural ) 5'

\.2.2. Os métodos do cinema 6f

1 . 2 , 3 . O diretor e o roteiro 7 U

i . 3. Bela Balázs 7í

1 .3 .1 . O homem visível . , 7'

1 . 3 . 2 . Nós estamos no filme ;_. r, .. 8'

1 . 3 . 3 . A face das coisas v.j.t. . . 8'

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Tradução de MARCELLE PITHON

2 - 2 .

Dziga Vertov

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2.2.1.NÓS1*

VARIAÇÃO DO MANIFESTO

_L^ os NOS denominamos KINOKS para nos diferenciar dos "ci-neastas1, esse bando de ambulantes andrajosos que impingem comvantagem as suas velharias.

Não há, a nosso ver, nenhuma relação entre a hipocrisia e aconcupiscência dos mercadores e o verdadeiro "kinokismo11.

O cine-drama psicológico russo-alemão, agravado pelas visõese recordações da infância, afigura-se aos nossos olhos como umainépcia.

Aos filmes de aventura americanos, esses filmes cheios de dina-mismo espeíacular, com mise en scène à Pinkerton, o kinok diz obri-gado pela velocidade das imagens, pelos primeiros planos. Isso ébom, mas desordenado e de modo algum fundamentado sobre o

1 (Este e todos os textos subsequentes de Dziga Vertov foram traduzidosdo livro Articles, Joitrnaux, Projeis, Paris, Union Générale d'Éditions, 1972).

* (PubHcado no n.° l da Revista Kinophol de 1922). Primeiro pro-grama publicado na imprensa pelo grupo dos documentaristas-kinocs. fundadopor Vertov em 1919.

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estudo preciso do movimento. Um degrau acima do drama jlógico, falta-lhe, apesar de tudo, fundamenta. Ê banal. E ada cópia.

NÓS declaramos que os velhos filmes romanceados etêm lepra.

— Afastern-se deles!

— Não os olhem!

- Perigo de morte!

— Contagiosos!

NOS afirmamos que o futuro da arte cinematográfica é aCão do seu presente.

A morte da "cinematografia" é indispensável para que acinematográfica possa viver.

NÓS os concitamos a acelerar sua morte.

NÓS protestamos contra a miscigenação das artes a que muiloschamam de síntese. A mistura de cores ruins, ainda que escolhidaseníre todos os tons do espectro, jamais dará o branco, mas sim uturvo.

Chegaremos à síntese na proporção em que o ponto mais altode cada arte for alcançado. Nunca antes.

NÓS depuramos o cinema dos kinoks dos intrusos: música, lite-ratura e teatro. Nós buscamos nosso ritmo próprio, sem roubá-lode quem quer que seja, apenas encontrando-o, reconhecendo-o nosmovimentos das coisas.

NÓS os conclamamos:- a fugir -

dos langorosos apelos das cantilenas românticasdo veneno do romance psicológicodo abraço do teatro do amantee a virar as costas à música

- a fugir —

giinlicmos o vasto campo, o espaço em quatro dimensões (3 -lo i cn tpo) , à procura de um material, de um metro, de um ritmocompletamente nosso.

O "psicológico" impede o homem de ser tão preciso quanto oi i M i i i x n e t r o , limita o seu anseio de se assemelhar à máquina.

Não temos nenhuma razão para, na arte do movimento, dedi-i a i n essencial de nossa atenção ao homem de hoje.

A incapacidade dos homens em saber se comportar nos colocanu posição vergonhosa diante das máquinas. Mas, o que se há deIn/cr , se os caprichos infalíveis da eletricidade nos tocam mais doI | I I L - o atrito desordenado dos homens ativos e a lassidão corruptailos homens passivos?

A alegria que nos proporcionam as danças das serras numaserraria é mais compreensível e mais próxima do que a que nosproporcionam os requebros desengonçados dos homens.

NÓS não queremos mais filmar temporariamente o homem, por-que ele não sabe dirigir seus movimentos.

Pela poesia da máquina, iremos do cidadão lerdo ao homemdétrico per jeito.

Ao revelar a alma da máquina, promovendo o amor do ope-rário por seu instrumento, da camponesa por seu trator, do maqui-nista por sua locomotiva,

nós introduzimos a alegria criadora em cada trabalho mecânico,nós aproximamos os homens das máquinas,nós educamos os novos homens,

O novo homem, libertado da canhestríce e da falta de jeito,dotado dos movimentos precisos e suaves da máquina, será o temanobre dos filmes.

NÓS caminhamos de peito aberto para o reconhecimento do rit-mo da máquina, para o deslumbramento diante do trabalho mecânico,para a percepção da beleza dos processos químicos. Nós cantamosos tremores de terra, compomos cine-poemas com as chamas e ascentrais elétricas, admiramos os movimentos dos cometas e dos me-teoros, e os gestos dos projetores que ofuscam as estrelas,

Todos aqueles que amam a sua arte buscam a essência profundada sua própria técnica.

A cinematografia, que já tem os nervos emaranhados, necessitade um sistema rigoroso de movimentos precisos.

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O metro, o ritmo, a natureza do movimento, sua dispi' i i •rígida com relação aos eixos das coordenadas da imagem e, I ; I Í Mos eixos mundiais das coordenadas (três dimensões 4- a quarln, Otempo) devera ser inventariados e estudados por todos os cr ia i i indo cinema.

Necessidade, precisão e velocidade; três imperativos que umexigimos do movimento digno de ser filmado e projetado.

Que seja um extrato geométrico do movimento por meio ilnalternância cativante das imagens, eis o que se pede da montagem

O kinokismo é a arte de organizar os movimentos necessário*dos objetos no espaço, graças à utilização de um conjunto artístioirítmico adequado às propriedades do material e ao ritmo interior di-cada objeto.

Os intervalos (passagens de um movimento para outro), e nu nca os próprios movimentos, constituem o material (elementos daarte do movimento). São eles (os intervalos) que conduzem a aça»para o desdobramento cinético. A organização do movimento é aorganização de seus elementos, isto é, dos intervalos na frase. Dis-tingue-se, em cada frase, a ascensão, o ponto culminante e a quedíido movimento (que se manifesta nesse ou naquele nível). Umaobra é feita de frases, tanto quanto estas últimas são feitas de inter-valos de movimentos.

Depois de conceber um cine-poema ou um fragmento, o kinokdeve saber anotá-lo com precisão, a fim de dar-lhe vida na tela,desde que haja condições favoráveis para tal.

Evidentemente, nem o roteiro mais perfeito será capaz de subs-tituir essas notas, tanto quanto o libreto não substitui a pantomimae os comentários literários sobre Scriabin não dão nenhuma ideia dasua música.

Para poder representar um estudo dinâmico sobre uma folhade papel é preciso dominar os signos gráficos do movimento.

NÓS estamos em busca da cine-gama.

NOS caímos e nos levantamos ao ritmo de movimentos,lentos e acelerados,

correndo longe de nós, próximos a nós, acima, em círculo, eml inha , em elipse,

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(t direita e à esquerda, com os sinais de mais e de menos,os movimentos se curvam, se endireitam, se dividem,se fracionam, se multiplicam por si próprios,cruzando silenciosamente o espaço.

O cinema é também a arte de imaginar os movimentos dos obje-ION no espaço. Respondendo aos imperativos da ciência, é a encar-IIH. ; ;LO do sonho do inventor, seja ele sábio, artista, engenheiro oui .npinteiro. Graças ao kinokismo, ele permite realizar o que é irrea-l i A i v e l na vida.

Desenhos em movimento. Esboços em movimento. Projetost k- um futuro imediato. Teoria da relatividade projetada na tela,

NOS saudamos a fantástica regularidade dos movimentos. Car-regados nas asas das hipóteses, nosso olhar movido a hélice se perdeno futuro.

NÓS acreditamos que está próximo o momento de lançar noespaço as torrentes de movimento retidas pela inoperância de nossatática.

Viva a geometria dinâmica, as carreiras de pontos, de linhas,de superfícies, de volumes.

Viva a poesia da máquina acionada e em movimento, a poesiados guindastes, rodas e asas de aço, o grito de ferro dos movimen-mentos, os ofuscantes trejeitos dos raios incandescentes.

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2.2.2.RESOLUÇÃO DO CONSELHO DOS T K i ^EM 10-4-1923

A situação no front do cinema deve ser considerada desfa-vorável.

Como era de se esperar, as primeiras realizações russas, a quepudemos assistir, nos lembram os velhos modelos artísticos, tantoquanto os homens da NEP ** lembram a velha burguesia czarisUi.

A divulgação da programação que, neste verão, será levada àstelas aqui e na Ucrânia, não nos inspira nenhuma confiança.

As perspectivas de um trabalho amplo e experimental estãorelegadas a segundo plano.

Todos os esforços, suspiros, lágrimas, esperanças e orações têmpor objetivo apenas ele, o cine-drama.

Eis porque, sem esperar que os kinoks comecem a trabalhaideixando de lado seu próprio desejo de executarem eles mesmos seus

** NHP -- Nova Política Económica, vigente na União Soviética de1921 a 1928, def in indo um retorno parcial a relações capitalistas de produção.( N o t u do Organizador).

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( l i* , i ) Conselho dos Três abre mão, momentaneamente, do di-ll t1 i i u i n r e decide o que se segue: publicar, imediatamente, porn l i u das atuaiidades, para que todo mundo possa beneficiar-se,u ip i a s e as palavras de ordem dessa revolução iminente; con-luiiciUe e, em primeiro lugar, determina-se ao Kinok Dziga

> v , segundo a disciplina do partido, que publique trechos doHfvolução Kinok, que explicitem com suficiente clareza o ca-

revolução.

CONSELHO DOS TRÊS

l .m cumprimento à resolução do Conselho dos Três de 10.04.publ ica r os seguintes trechos:

l . Após examinar os filmes que nos chegaram do Ocidentet i t ; i América e, tendo em vista as informações que possuímos sobren i i n h a l h o e as pesquisas realizadas aqui e no exterior, cheguei à

• í - u i i i t e conclusão:

A sentença de morte pronunciada pelos kinoks em 1919 contraIni los os filmes, sem exceção, permanece válida ainda hoje. Nemmu exame mais atento pôde revelar filme ou pesquisa que traduzisseii aspiração legítima de libertar a câmera reduzida a uma lamentávelEscravidão, submetida que foi à imperfeição e à miopia do olhohumano.

Nada temos a repetir sobre o trabalho de solapamento que ocinema realiza contra a literatura e o teatro. Aprovamos plenamentea utilização do cinema em todos os setores da ciência, mas definimosesta função como sendo acessória, ou seja, uma ramificação secun-dária.

O principal, o essencialé a cine-sensação do mundo.

Assim, como ponto de partida, defendemos a utilização da câ-mera como cine-olho, muito mais aperfeiçoada do que o olho humano,para explorar o caos dos fenómenos visuais que preenchem o espaço,

o cine-o!ho vive e se move no tempo e no espaço, ao mesmotempo em que colhe e fixa impressões de modo totalmente diversodaquele do olho humano. A posição de nosso corpo durante a

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observação, a quantidade de aspectos que percebemos neste < M I noquele fenómeno visual nada têm de coercitivo para a cârncra. ipercebe mais e melhor na medida em que é aperfeiçoada.

Nós não podemos melhorar nosso olho mais do que já foi k'lld|mas a câmera, ela sim, pode ser indefinidamente aperfeiçoada,

Até hoje, o que se vê são observadores recriminarem-si; pi Mter filmado um cavalo deslocando-se com lentidão pouco mi l uni l(movimento rápido da manivela da câmera); ou, ao contrário, u n itrator arando o campo a toda velocidade (movimento lento da munivela), etc...

Trata-se é claro de acidentes, mas nós preparamos um sistema,um sistema pensado a partir de casos desse género, um sistennide aberrações aparentes, de fenómenos estudados e organizados.

Até hoje, nós violentávamos a câmera forçando-a a copiar otrabalho do olho humano. Quanto melhor a cópia, mais se ficavacontente com a tomada de cena. Doravante, a câmera estará liberliie nós a faremos funcionar na direção oposta, o mais possível distan-ciada da cópia.

No limiar das fraquezas do olho humano. Nós professamos ocine-olho, que revela no caos do movimento a resultante do movi-mento límpido; nós professamos o cine-olho e sua mensuração dotempo e do espaço, o cine-olho que se eleva como força e possibi-lidade, até a afirmação de si próprio.

2. Eu posso forçar o espectador a ver esse ou aquele fenómenovisual do modo como me é mais vantajoso mostrá-lo. O olho sub-mete-se à vontade da câmera e deixa-se guiar por ela até esses mo-mentos sucessivos da ação que conduzem a cine-frase para o ápiceou o fundo da ação, pelo caminho mais curto e mais claro.

Exemplo: filmagem de uma luta de boxe não do ponto de vistado espectador que assiste ao espetáculo, mas filmagem dos gestos.sucessivos (dos golpes) dos boxeadores.

Exemplo: a filmagem de bailarinos não é a filmagem do pontode vista do espectador sentado numa sala assistindo a um bale nopalco.

Num bale, o espectador acompanha, efetivamente, e de mododesordenado, ora o grupo dos bailarinos, ora, ao acaso, uma expres-

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i n l c t i i particular, ora as pernas, enfim, uma série de percep-« I h i n i i n r diferentes para cada espectador.

.In Im fnino apresentar tal coisa ao cine-espectador. O sis-in4 i t t 1 jii^los sucessivos exige que os bailarinos ou boxeadores se-H H l i i i i i i l n s pela ordem de apresentação das figuras em cena, e. ^ iiiuulcm umas às outras, de modo a atrair o olho do espec-

Mi|i ' t pu i ii os sucessivos detalhes que ele deve forçosamente ver.

A i'iimera "dirige" o olho do espectador das mãos às pernas, dasMtm nus olhos, etc., na ordem que mais lhe favoreça, e organizai l f t i i l l i u s graças a uma montagem cuidadosamente estudada.

_ \, no ano de 1923, você anda por uma rua de Chicago||ll pnsso obrigá-lo a cumprimentar o camarada Volodarski que

l ln l iu , em 1918, por uma rua de Petrogrado e não responde ao•Hl

Outro exemplo: Caixões de heróis do povo são baixados à ter-. • > Mimado em Astracan em 1918), o túmulo é fechado (Cronstadt1 U . M ) , salva de canhões (Petrogrado, 1920), lembrança eterna, opovo se descobre (Moscou, 1922); tais cenas se combinam entre

i musmo quando se trata de um material ingrato que não foi fil-i i i . u l o especialmente para esse fim (ver o n.° 13 da série Kinopravda).p, preciso também lembrar aqui a montagem da saudação das mui-i u l n e s e a montagem do aceno das máquinas ao camarada Leniu(Kinopravda n.° 14), filmadas em locais e momentos diversos.

Eu sou o cine-olho.

Eu sou um construtor, Você, que eu criei, hoje, foi colocadapor mim numa câmara (quarto) extraordinária, que não existia atéentão e que também foi criada por mim. Neste quarto há dozeparedes que eu recolhi em diferentes partes do mundo. Justapondoas visões das paredes e dos pormenores, consegui arrumá-las numaordem que agrade a você e edificar devidamente, a partir de inter-valos, uma cine-frase que é justamente este quarto (câmara).

Eu, o cine-olho, crio um homem mais perfeito do que aqueleque criou Adão, crio milhares de homens diferentes a partir de dife-rentes desenhos e esquemas previamente concebidos.

Eu sou o cine-olho.

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De ura eu pego os braços, mais fortes e mais destros, do outroeu tomo as pernas, mais bem-feitas e mais velozes, do terceiro acabeça, mais bela e expressiva e, pela montagem, crio um novohomem, um homem perfeito.

4. Eu sou o cine-olho. Eu sou o olho mecânico. Eu, má-quina, vos mostro o mundo do modo como só eu posso vê-lo.

Assim eu me liberto para sempre da imobilidade humana- Eupertenço ao movimento ininterrupto. Eu me aproximo e me afastodos objetos, me insinuo sob eles ou os escalo, avanço ao lado deuma cabeça de cavalo a galope, mergulho rapidamente na multidão,corro diante de soldados que atiram, me deito de costas, alço vooao Jado de um aeroplano, caio ou levanto voo junto aos corpos quecaem ou que voam. E eis que eu, aparelho, me lancei ao longodessa resultante, rodopiando no caos do movimento, fixando-o apartir do movimento originado das mais complicadas combinações.

Libertado do imperativo das 16-17 imagens por segundo, livredos quadros do tempo e do espaço, justaponho todos os pontos douniverso onde quer que os tenha fixado.

O meu caminho leva à criação de uma percepção nova domundo. Eis porque decifro de modo diverso um mundo que vos édesconhecido.

5. Ainda uma vez, é preciso estarem bem de acordo: olho eouvido. O ouvido não está à espreita, nem o olho à escuta.

Ambos partilham das mesmas funções.

O rádio-ouvido é a montagem do "Eu ouço"!

O cine-olho é a montagem do L ÍEu vejo"!

Eis, cidadãos, o que vos ofereço em primeira mão, em lugaida música, da pintura, do teatro, do cinematógrafo e de outras efu-sões castradas.

No caos dos movimentos, o olho apenas entra na vida ao ladodaqueles que correm, fogem, acodem e se empurram.

Um dia de impressões visuais escoou-se, Como recriar as im-pressões desse dia num modo eficaz, num estudo visual? Se forpreciso fotografar sobre a película tudo o que olho viu, será o caos.Se montarmos com uma certa ciência, o que foi fotografado ficará

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• n claro. Se jogarmos fora o supérfulo, ficará ainda melhor.

I I M •leu-mos um resumo organizado das impressões visuais recebidas|*f|n ull io comum.

( ) olho mecânico, a câmera. que se recusa a utilizar o olhol i n i n n i i o como lembrete, tateia no caos dos acontecimentos visuais,iir iMiii i lo-se atrair ou repelir pelos movimentos, buscando o caminhotlf sai próprio movimento ou de sua própria oscilação; z faz expe-linini is de estiramento do tempo, de fragmentação do movimentoMil . no contrário, de absorção do tempo em si mesmo, da deglutiçãollns anos, esquematizando, assim, processos de longa duração inaces-

vi'is ao olho normal. . .

Para ajudar a máquina-olho, existe o piloto-kinok que não ape-is dirige os movimentos do aparelho, como também se entrega a

| cie para vivenciar o espaço. O futuro verá o engenheiro-kinok que,distância, irá dirigir os aparelhos.

Graças a esta ação conjunta do aparelho liberto e aperfeiçoadov do cérebro estratégico do homem que dirige, observa e calcula, aicpresentação das coisas, mesmo as mais banais, revestir-se-á de umfrescor inusitado e, por isso mesmo, digno de interesse.

Quantas pessoas, ávidas de espetáculos, não gastam os fundi-lhos das calças nos teatros!

Elas fogem do cotidíano da "prosa" da vida. E, no entanto,o teatro é quase sempre apenas uma infame falsificação da própriavida, um amontoado sem pé nem cabeça de requebros coreográficos,de música estridente, de artifícios de iluminação, de cenários (quevão de borrões ao construtivismo), tudo isso para encenar, às vezes,um excelente trabalho de um mestre da palavra desfigurado por todaessa parafernália.

Grandes mestres destroem o teatro introspectivo, quebrando asvelhas formas, ditando-lhe novas regras.

Apelam à biomecânica (em si uma excelente ocupação), aocinema (honra e glória a ele), aos literatos (nada errado com eles);is construções (há umas, às vezes, bem felizes), aos automóveis(como não respeitá-los?), ao tiro de fuzil (coisa impressionante e

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perigosa na guerra), mas dísso tudo não saiu nada, nem em detalhenem de uma maneira geral.

Ficou o teaíro, nada além.

Não apenas não é síntese, mas nem mesmo é uma mistunifeita de acordo com as regras.

E não pode deixar de ser diferente.

Nós, os kinoks, adversários resolutos da síntese antes do tér-mino ("só chegaremos à síntese no zénite das realizações"), nós com-preendemos que é inútil misturar migalhas de realizações: a desordeme a faJta de espaço simplesmente matam os bebés. E, em gerai;

A arena é estreitíssima. Entrem, pois, na vida.

É lá que nós trabalhamos, nós, os mestres da visão, organiza-dores da vida visível, armados com o cine-olho presente em todaparte e sempre que necessário. Ê lá que trabalham os mestres daspalavras e dos sons, os virtuoses da montagem da vida audível. Esou eu que tenho a audácia de repassar-lhes em fieira o ouvido me-cânico onipreseníe e o pavilhão, o rádio-íelefone.

Isto sãoas cine-atualidadesas rádio-atuaíidades

Eu prometo obter por todos os meios um desfile dos kinoks naPraça Vermelha no dia em que os futuristas editarem o primeironúmero das rádio-atualidades montadas.

Não se trata de atuaíidades "Pathé" ou ''Gaumont" (atualida-des jornalísticas), nem mesmo da Kinopravda (atuaíidades políticas),mas de verdadeiras atuaíidades Kinoks, de um mergulho vertiginosode acontecimentos visuais decifrados pela câmera, pedaços de ener-gia autêntica (distingo esta da do teatro) reunidos nos intervalosnuma soma cumuíadora.

Esta estrutura da obra cinematográfica permite desenvolverqualquer tema, seja ele cómico, trágico, de trucagem ou de outraordem.

Tudo está nessa ou naquela justaposição de situações visuais.Tudo está nos intervalos.

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A extraordinária leveza da montagem permite introduzir ncMM. i '1'M.juisa quaisquer motivos políticos, económicos ou outros.

'11'A'tjiicntemente, doravante não serão mais necessários dramas psi-i'i iln^icos ou policiais no cinema, doravante não haverá mais neces-

,ul i? de montagens teatrais fotografadas sobre película.

Doravante não mais se adaptará Dosíoíevski ou Nat Pinkertonh i i i i . i o cinema.

Tudo está compreendido na nova concepção das atuaíidades.

Entram decididamente no imbróglio da vida.

l . o cine-olho que contesta a representação visual do mundoji l i i i lu pelo clho humano e que propõe seu próprio "eu vejo" e

2. o kinok-montador que organiza os minutos da estrutura da'vida, vista pela primeira vez desse modo.

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2.2.3.

NASCIMENTO DO CINE-OLHO (1924)

Isso começou muito cedo. Com a redação de vários romancesfantásticos (A mão de ferro, Revolta no México). Com breves en-saios (A caça à baleia, A pesca). Com poemas (Macha). Comepigramas e poesias satíricas (Pourichkévitch, A jovem de sardas).

Em seguida, transformou-se em paixão pela montagem de notasestenográficas, de gravações de gramofones; em interesse particularpeJo problema da possibilidade de gravar sons documentais. Emtentativas de registrar por meio de palavras e letras o ruído de umacascata, os sons de uma serraria, etc,

E eis que, num dia de primavera, em J 918, eu volto da estação,Guardo ainda no ouvido os suspiros, o barulho do trem que seafasta. . . alguém que faz juras . . . um beijo. . . alguém que excla-ma . . . Riso, apito, vozes, sinos, respiração ofegante da locomoti-va, .. Murmúrios, apelos, adeuses. . . Enquanto caminho, penso:é preciso que eu acabe de aprontar um aparelho que não descreva,mas, sim, inscreva, fotografe esses sons. Caso contrário, impossívelorganizá-los, montá-los. Eles fogem como foge o tempo. Uma câ-mera, talvez? Inscrever o que foi visto. . . Organizar um universo

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n n > » «penas audível, mas visível. Quem sabe não estará nisso a

T; nesse momento que eu encontro Mikh. Koltsov,1 que mec fazer cinema.

Assim, no n.° 7 da Rua Maly Gneznikovski, começa meu tra-i . . i l l i < na revista Kinonéàélia. Não foi mais do que um primeironpiL-i idizado. Longe de ser o que eu desejo. Pois o olho do micros-inpio penetra onde não penetra o olho da minha câmera. Pois onlhn do telescópio alcança universos longínquos, inacessíveis ao meunllm nu. O que fazer com a câmera0 Qual o seu papel na ofen-, i v , i que lanço contra o mundo visível?

Eu penso no "Cine-Olho' . Ele nasce como um olho célebre.( n i n o consequência, a ideia do "Cine-Olho" se expande:

"Cine-Olho" como cine-análise"Cine-Olho" como "teoria dos intervalos''"Cine-Olho" como teoria da relatividade na tela, etc. . . .

Ficam abolidas as 16 imagens-segundo habituais. Tornam-sedoravante procedimentos comuns de filmagens, lado a lado com alomada de cena rápida e de animação, a tomada de cena com câ-nicra móvel, e outros procedimentos.

Por "Cine-Olho" entenda-se "o que o olho não vê".como o microscópio e o telescópio do tempocomo o negativo do tempocomo a possibilidade de ver sem fronteiras ou distâncias,como o comando à distância de um aparelho de tomadas decenacomo o tele-olhocomo o raio-olhocomo "a vida de improviso", etc., etc.Todas essas diferentes definições completavam-se mutuamente,

pois o "Cine-Olho" subentendia:todos os meios cinematográficostodas as invenções cinematográficas

1 Mikhail Koitsov: conhecido escritor, jornalista, redator-chefe da Re-vista Ogoniok. Após a Revolução, trabalhou no cinema como diretor dasAtualidades Cinematográficas, e como crítico para o Pravda.

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todos os processos e métodos.

tudo o que podia servir para descobrir e mostrar a verdade.

Não o "Cine-Olho" pelo "Cine-Olho", mas a verdade, graciuaos meios e possibilidades do "Cíne-Olho", isto é, o Cine-Verdade,

Não a tomada de improviso "pela tomada de improviso", muipara mostrar as pessoas sem máscara, sem maquilagem, fixá-las nomomento em que não estão representando, ler seus pensamentos des-nudados pela câmera.

"Cine-Olho": possibilidade de tornar visível o invisível, de ilu-minar a escuridão, de desmascarar o que está mascarado, de trans-formar o que é encenado em não encenado, de fazer da mentira averdade.

"Cine-Olho", fusão de ciência e de atualídades cinematográfi-cas, para que lutemos pela decifração comunista do mundo; tentativade mostrar a verdade na tela pelo Cine-Verdade.

2 .2 .4 .EXTRATO DO ABC DOS KINOKS (1929)

262

ra

Montar significa organizar os pedaços filmados (as ima-gens) num filme, "escrever" o filme por meio das imagens filmadas.e não, escolher pedaços de filme para fazer "cenas" (desvio teatral)ou pedaços filmados para construir legendas (desvio literário).

Todo filme do "Cine-Olho" está em montagem desde o mo-mento em que se escolhe o tema até a edição definitiva do material,isto é, ele é montagem durante todo o processo de sua fabricação.

Nesta montagem ininterrupta, podemos distinguir três fases:

Primeira fase. A montagem é o inventário de todos os dadosdocumentais que tenham alguma relação, direta ou não, com o tematratado (seja sob forma de manuscritos, objetos, trechos filmados,fotografias, recortes de jornal, livros, etc.). Em seguida a esta mon-tagem — inventário por meio da seleção e reunião dos dados maisimportantes — o plano temático se cristaliza, se revela, "se monta".

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Segunda fase. A montagem é o resumo das observações I c l i mpelo olho humano sobre o assunto tratado (montagem das propila*observações, ou melhor, montagem das informações fornecidas |n'lincine-explcradores). O plano de filmagem: resultado da selcvin yda triagem das observações do olho humano. Efetuando esta M l i >cão, o autor leva em consideração tanto as diretrizes do plano i n i u ltico quanto as características particulares da "máquina- olho", i d i"cine-oího".

Terceira fase. Montagem central. Resumo das observa;; no iinscritas na película pelo "cine-olho". Cálculo cifrado dos grupn*de montagem. Associação (adição, subtração, multiplicação, divi-são e colocação entre parênteses) dos trechos filmados do mesmotipo. Permuta incessante desses pedaços-imagens até que todos se-jam coíocados numa ordem rítmica em que os encadeamentos desentido coincidam com os encadeamentos visuais. Como resultadofinal de todas essas junções, deslocamentos, cortes, obtemos um;iespécie de equação visual, uma espécie de fórmula visual. Esta fór-mula, esta equação, obtida a partir da montagem geral dos cine-documentos registrados sobre película, é o filme cem por cento, oextraio, o concentrado de "eu vejo", o "cine-eu vejo".

O "Cine-Olho'' é:

eu monto quando escolho um tema (ao escolher um dentre osmilhares de temas possíveis),

eu monto quando faço observações para o meu tema (realizara escolha útil dentre as mil observações sobre o tema).

eu monto quando estabeleço a ordem de sucessão do materialfilmado sobre o tema (fixar-se, entre as mil associações de imagempossíveis, sobre a mais racional, levando em conta tanto as proprie-dades dos documentos filmados, quanto os imperativos do tema atratar).

A escolha do "Cine-Olho" exige que o filme seja construídosobre os "intervalos", isto é, sobre o movimento entre as imagens.Sobre a correlação visual das imagens, umas em relação às outras.Sobre a transição de um impulso visual ao seguinte.

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i" unire as imagens ("intervalo" visual, correlação• M H i i ' 1 ' n s ) é (para o "Cine-Olho") uma unidade complexa.

• . M I ! , i pela soma de diferentes correlações, sendo que asin

n . p i r l i i ^ ã o dos planos (grandes, pequenos, etc.),

t-lação dos enquadramentos,i . « indução dos movimentos no interior das imagens,

l ' " i idação das luzes, sombras,rniTclação das velocidades de filmagem,

( u n i base nessa ou naquela associação de correlações, o autor• • m i n . i : I ) a ordem da alternância, a ordem de sequência do

. M I ! l i lmado ; 2) o comprimento de cada alternância (em me-I l i i « l . íslo é, o tempo de projeção, o tempo de visão, de cada ima-

f i l m a d a separadamente. De mais a mais, paralelamente aoiiMito entre as imagens ("intervalo"), deve-se considerar, entre

dum. imagens consecutivas, a relação visual de cada imagem em1'i iHiailar com todas as outras que participam da "batalha da mon-Uiy.cm" desde o início.

Encontrar o "itinerário" mais racional para o olho do especta-M u i dentre todas essas interaçoes, atrações e repulsões interimagens;i < • < luzir toda esta infinidade de "intervalos" (movimentos entre asimagens) à simples equação visual, à fórmula visual que melhori xpresse o tema essencial do filme, eis a tarefa mais difícil e capitalque se apresenta ao autor-montador.

Esta "teoria dos intervalos" havia sido apresentada pelos Kinoksna variação do manifesto "Nós" redigida em 1919.

A realização do Décimo primeiro ano (1928) e, principalmen-te, do Homem com a câmera (1929) é a ilustração mais eloquenteda tese dos intervalos defendida pelo "Cine-Olho".

IV. O "RÁDIO-OLHO"

Em suas primeiras declarações sobre o cinema sonoro, o cine-ma do futuro, que ainda nem tinha sido inventado, os "Kinoks"

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(atualmente, os "Rarioks") definiram assim seu itinerário: do "CincOlho'1 ao "Rádio-Olho", isto é, ao ''Cine-Olho" audível e radiofónico,

Meu aríigo intitulado "Kinopravda e Radiopravda", publicadohá alguns anos no Pravda, já dizia que o liRádio-Olho" anularia ;idistância entre as pessoas, permitiria aos trabalhadores de todo omundo não apenas se verem, mas ouvirem-se mutuamente.

A declaração dos Kinoks constituiu, à época, objeto de vivarepercussão na imprensa. Logo depois, entretanto, deixou-se dea!ribuir-lhe importância, pois acreditava-se que isso se referia a umfuturo longínquo.

Os "Kinoks" não se limitavam apenas a lutar por um cinemanão encenado. Elas se preparavam simultaneamente para receber,decididos, a passagem prevista para um trabalho no campo do"Rádio-OIho", o do cinema sonoro não encenado.

Em A sexta parte do mundo (1926), os textos já são substituí-dos por uma expressão rédio-tema sob forma de contraponto. Odécimo primeiro ano (1928) foi construído como um filme visível eaudível, ou seja, um filme montado para ser visto e também ouvido.O homem com a câmera (1929) foi construído da mesma maneira,isto é, na mesma linha: do "Cine-OIho" ao "Rádio-OIho".

As realizações práticas e teóricas dos Kinoks (ao contrário docinematógrafo encenado, pego de surpresa) definiram nossas possi-bilidades técnicas e esperam há muito tempo pela base técnica retar-datária (em relação ao "Cine-OIho") do cinema e da televisãosonoros.

As últimas invenções técnicas realizadas nesse campo entregamnas mãos dos partidários e trabalhadores do cine-registro documentalsonoro uma arma poderosa na luta por um Outubro não encenado.

Tradução de MARCELLE PITHON

2.3.

Jean Epstein

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