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Vestes: Vestígios de memórias
CYBELLE JANAÍNA FREITAS DE SOUZA LIMA *
HAROLDO GALLO, LD **
As indumentárias podem ser consideradas testemunhas das memórias dos costumes e
expressões da vida ao oferecerem um universo complexo de informações a respeito do
comportamento social, político e estético do passado de uma sociedade. Embora, alguns museus
detenham indumentárias em seus acervos, ainda não está claro quais são os valores embutidos
no indumento que promovem a sua certificação como vetor de memória. Dessa forma,
objetivou-se neste estudo apontar os elementos memoriais atribuídos ao traje que permitem
considerá-lo um patrimônio inserido em um espaço museal. Através da análise da vestimenta
pelo viés memorial, utilizando fontes primárias e secundárias, identificamos evidências
primordiais em algumas vestes do acervo da reserva técnica do Museu da Imigração de São
Paulo que fornecem importantes dados sobre a sua trajetória como cultura material por meio
dos processos (i)migratórios. Portanto, o presente estudo indica o viés da memória como um
componente essencial à valorização do indumento e levanta uma discussão importante sobre o
reconhecimento negligenciado da indumentária como uma possível obra memorial e museal.
Palavras-chave: Indumentárias; vetor de memória; patrimônio.
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(* UNICAMP, mestranda em Artes Visuais, apoio CAPES/CNPQ)
(** UNICAMP, Profº. Drº. Livre Docente do Instituto de Artes)
1. Introdução
Este estudo propõe refletir sobre o processo de patrimonialização da indumentária1 no
Museu da Imigração de São Paulo e aproximar-se dos valores culturais atribuídos às vestes
através de análises e narrativas com caráter de: cultura de moda, museu, patrimônio e memória.
Dessa maneira, tanto podemos perceber a inter-relação entre esses meios, como melhor
vislumbrar os artefatos têxteis patrimonializados em acervos museais e, logo, compreender a
conexão entre memória e cultura de moda.
As indumentárias inseridas em um espaço museal passam por um processo de
transformação de sua função original ao migrar do quesito de objeto de uso para documento
histórico e memorial, isto é, “logo, pode-se afirmar que os objetos que se tornam peças de
museu têm um valor de troca sem terem um valor de uso” (POMIAN, 1984:54). O Museu da
Imigração de São Paulo surge no mesmo espaço da extinta Hospedaria de Imigrantes do Brás
que teve por finalidade, durante 91 anos, recepcionar, hospedar e encaminhar aos postos de
trabalho os imigrantes e migrantes brasileiros que ali chegavam, nessa perspectiva, “o Museu
tem uma condição privilegiada de poder tratar de seu tema em um espaço que por si só suscita
memórias e provoca paralelos entre experiências do passado e do presente” (MONTEIRO;
WALDMAN, 2015).
Em maio de 2014, já com um reposicionamento institucional, o museu é reaberto
como Museu da Imigração e se reafirma como um espaço de preservação da memória
do que foi a Hospedaria de Imigrantes do Brás e das pessoas que por lá passaram, o
que inclui migrantes internacionais e internos, mas também de registro, preservação
e valorização das experiências das pessoas que hoje chegam ao Brasil e,
especialmente, ao estado de São Paulo (WALDMAN; MORALES, 2017).
1 História do vestuário; arte relativa ao vestuário; sistema do vestuário em relação a certas épocas ou povos;
conjunto de roupas que uma pessoa veste; indumento, induto (MICHAELIS).
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O acervo do Museu da Imigração de São Paulo (MI) é constituído “por aproximadamente
12 mil objetos – entre mobiliário, indumentária, iconografia, objetos pessoais e de trabalho,
peças de uso cotidiano, etc.” (WALDMAN, MORALES, 2017).
Especificamente, o acervo de indumentárias do MI surgiu a partir da doação de familiares
dos (i)migrantes e, hoje, constitui-se de 670 itens que estão divididos em: vestes, roupas íntimas,
meias, luvas, bolsas, sapatos e chapéus, tanto infantil, quanto adulto. Os artefatos doados são
considerados como registros de vida, história e memória, assim como, formadores da identidade
das famílias (i)migrantes no estado de São Paulo. Um ponto interessante a destacar sobre a
atenção dada pelo MI ao acervo de indumentárias é devido “a importância dessas peças para a
compreensão da coleção como um todo e o reconhecimento da importância das marcas de uso
e seu valor afetivo” (MUSEU DA IMIGRAÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO). Por esse
motivo, o MI considera a salvaguarda e os procedimentos técnicos de preservação e
conservação imprescindíveis para a perpetuação desses objetos.
O acervo é considerado como a reunião de uma série de coleções: a museológica, a
bibliográfica, a de história oral e a própria memória institucional. Todos esses
grupos têm histórias de constituição diferentes, mas todos eles carregam em comum
o fato de se constituírem como um grande repertório cultural sobre as distintas
interpretações do fenômeno (i)migratório (MONTEIRO; WALDMAN, 2015).
As vestes fornecem subsídios importantes no que se refere às informações sobre um dos
aspectos mais simbólicos da cultura material, os quais são: o modo de se vestir, de acordo com
a cultura nacional, e a forma como as roupas permeiam a vida individual e coletiva. Nesse
sentido, a história e a memória, também, “tecem” as roupas inseridas no acervo de
indumentárias do Museu da Imigração pelo fato desses artefatos apresentarem características
pertinentes ao processo (i)migratório.
2. Museu, Moda e Memória
Os primeiros museus surgiram a partir de coleções particulares ou de coleções de objetos
valiosos de famílias que os colecionavam não apenas porque as peças eram incutidas com o
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valor familiar, mas também por seu valor social e político, pois quanto mais bens possuíssem e
mais preciosos fosse, maior seria o status da família ou pessoa, assim, distinguindo-a das
demais. No século XVIII, surge a ideia de Patrimônio Nacional em meio às revoluções
burguesas, na qual as coleções particulares ganham tal dimensão, ou seja, determinada coleção
perde o valor de agregação de status para uso privado e passa a ser “objeto de arte” para
apreciação coletiva. Dessa forma, os museus nascem no século XIX com a missão de tornar
suas coleções, ou parte de seus acervos, algo visível que transmita informações por meio de
objetos e pertences e que, assim, possam: contar a sua história; representar determinados
períodos e ressaltar comportamentos e saberes relevantes à cultura da sociedade local e nacional
(NOROGRANDO, 2011). Portanto, os acervos museais permitem o acesso à memória de
diferentes épocas, grupos e movimentos sociais. Comunicar, investigar, documentar e preservar
são funções essenciais dos museus ao trabalhar a herança cultural do Brasil, conforme descreve
o Plano Nacional Setorial de Museus – 2010/2020 (IBRAM).
A coleção de indumentárias do MI originou-se a partir da doação de familiares de
imigrantes. O ato de doar uma veste é uma forma de perpetuar não apenas o objeto, mas, bem
como, de quem a usou. Essa prática de doação ao museu se assemelha ao que ocorria em meados
do século XV quando as roupas eram deixadas em testamento, no qual quem as herdavam
estaria obtendo mais do que um bem material, mas a memória de quem as confiou. Segundo
Stallybrass “as roupas têm uma vida própria: elas são presenças materiais e, ao mesmo tempo,
servem de códigos para outras presenças materiais e imateriais” (STALLYBRASS, 2008:21-
22). Ainda de acordo com o autor,
Numa sociedade da roupa, pois, a roupa é tanto uma moeda quanto um meio de
incorporação. À medida em que muda de mãos, ela prende as pessoas em redes de
obrigações. O poder particular da roupa para efetivar essas redes está estreitamente
associado a dois aspectos quase contraditórios da sua materialidade: sua capacidade
para ser permeada e transformada, tanto pelo fabricante quanto por quem a veste e
sua capacidade para durar no tempo. A roupa tende, pois, a estar poderosamente
associada com a memória ou, para dizer de forma mais forte, a roupa é um tipo de
memória. Quando a pessoa está ausente, ou morre, a roupa absorve sua presença
ausente” (STALLYBRASS, 2008:13-14).
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“Museus são instituições de memórias e de representação do passado e do presente e
que, a partir de suas coleções, recriam significados a todo momento” (WALDMAN,
MORALES, 2017). Partindo dessa premissa, a memória presente nos objetos do acervo de
indumentárias do MI possibilita a lembrança e/ou o reconhecimento de um tempo pretérito
desse legado. Perniola destaca que “o objetivo da memória não consiste em fazer-nos sorver
aquilo que aconteceu, transportando-nos para uma época e para momentos passados, mas
consiste, precisamente ao contrário, em deixar que o passado encontre espaço e acolhimento no
presente” (PERNIOLA, 1993:125). Interessantemente, a memória é como um espelho onde
podemos nos ver e reconhecer as nossas próprias características através de reflexões. Ainda
para Perniola,
vale ressaltar que há um movimento circular no tempo da memória, pois ela sai do
presente, vai ao passado e retorna ao presente, propiciando uma revisão da vida. O
que ela faz emergir ou silenciar é a experiência individual e esta é única de cada ser,
ainda que o que se apresenta seja uma produção coletiva de um tempo ou lugar
(PERNIOLA, 1993:125).
No caso das vestes investigadas no acervo do MI, ao cruzar os dados primários (fichas
catalográficas e documentos curatoriais) com os dados secundários (referências bibliográficas)
encontramos registros memoriais que narram a trajetória não apenas do (i)migrante, mas
também, do próprio objeto. Para Nora, os objetos são memórias de comportamentos e
manifestações do cotidiano que podem caracterizar hábitos de consumo em distintos períodos
do passado (NORA, 1993), portanto, ao analisar as vestes do acervo de indumentárias do MI é
possível perceber o entrelaçamento entre museu, moda e memória, pois podemos perceber a
importância desta conexão e a possibilidade da interpretação de seu relato histórico.
3. Vestígios de memórias nas vestes do Museu da Imigração do estado de São Paulo
O espaço museal do MI é, por excelência, um local repleto de lembranças. O mesmo local
que manteve a Hospedaria do Brás e que hospedou, temporariamente, os imigrantes que ali
chegaram, agora, em caráter museal hospeda, permanentemente, os seus pertences. As vestes
doadas pelos familiares dos imigrantes que um dia passaram pela hospedaria não só contam
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histórias, mas também, testemunham a experiência cultural do processo de (i)migração através
do viés histórico e memorial. A diferença entre a história e a memória é que enquanto a
historicidade remonta o passado, o aspecto memorial o revivencia.
A história é reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais.
A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história,
uma representação do passado [...] instala a lembrança no sagrado, a história
liberta, e a torna sempre prosaica. [...] A memória se enraíza no concreto, no espaço,
no gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga às continuidades temporais, às
evoluções e às relações das coisas. A memória é um absoluto e a história só conhece
o relativo (NORA, 1993:09).
Para essa investigação foi adotada a metodologia do historiador de arte Jules Prown que
preconiza a análise de objetos tendo como norte três estágios: descrição, dedução e especulação,
no qual o primeiro passo debruça-se sobre a descrição das características físicas do objeto
(descrição), o segundo passo interpreta a interação entre o objeto e o observador (dedução) e o
terceiro passo estrutura hipóteses e perguntas que levam às evidências externas a partir do
objeto (especulação) (PROWN, 1982:7). As vestes analisadas apresentam aspectos, como:
origem, cronologia, material e modelagem que exaltam diversas características culturais,
quanto à época de uso e o tipo de confecção destacando, consequentemente, os códigos de
costumes e de comportamento do período pertinente ao artefato.
Vestido de Noiva
De acordo com a ficha catalográfica do Museu da Imigração de São Paulo, o traje nupcial,
composto por vestido, tiara e véu, apresenta como características as seguintes informações
abaixo. Infelizmente, pelos documentos institucionais do MI, esse traje não possui referências
sobre origem, cronologia do objeto e dados do doador.
Número de tombo: MI-00394, Descrição: Vestido de noiva em tecido e renda na cor
creme, bordado com lantejoulas e pedrarias. Véu em tule. Tiara de lantejoulas e
pedrarias. Anágua em tule e cetim na cor branca; Dimensões: 341x160 (vestido),
226x27 (véu), 7x13x16 (tiara), 45x93 (anágua) (ACERVO DO MUSEU DA
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IMIGRAÇÃO DE SÃO PAULO – SECRETARIA DA CULTURA E ECONOMIA
CRIATIVA DO ESTADO DE SÃO PAULO).
Figura 1: Vestido de Noiva
Fonte: Acervo do Museu da Imigração de São Paulo/ Fotografia: Marcio Robson Julião
Figura 2: Véu do vestido de noiva com a inscrição “Pratiado”
Fonte: Acervo do Museu da Imigração de São Paulo/ Fotografia: Marcio Robson Julião
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Figura 3: Tiara do vestido de noiva
Fonte: Acervo do Museu da Imigração de São Paulo/ Fotografia: Marcio Robson Julião
Ao observarmos esse traje nupcial podemos perceber a carga emocional que está
representado em sua imagem, pois, além da mudança geográfica ocasionada pelo processo de
imigração, esse vestido nupcial sugere mais uma transição na vida da mulher que o usou. Vale
ressaltar a inscrição “Pratiado” em uma fita anexada ao véu. Ao olharmos para essas imagens
fazemos perguntas. O casamento teria se realizado no Brasil ou o traje nupcial teria vindo à
nova pátria juntamente com os pertences da dona como uma espécie de lembrança de um
momento memorável? A única certeza que temos é que o ato de doar este traje nupcial ao acervo
do MI possibilita um registro não apenas memorial, mas também, biográfico do indivíduo e,
logo, do objeto.
O objeto biográfico é uma testemunha significativa da vida de alguém e, no espaço
do museu, pode assumir os mais variados sentidos. O modo de expor o objeto
biográfico depende da configuração que se quer dar à biografia daquele que era dono
desse objeto, o qual lhe deu utilidade, sentimentos e sentidos [...] Afinal, o museu não
se define simplesmente como lugar de guardar e expor artefatos. Antes de tudo, o que
acontece no espaço museológico é a metamorfose de objetos, em simbiose com o
poder da memória de a memória do poder, nas suas mais variadas manifestações
(RAMOS, 2004:114).
Traje Nupcial: Camisola e calçola
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Segundo a ficha catalográfica do MI, as seguintes peças fazem parte de um traje nupcial
que é composto por uma camisola e uma calçola que apresentam como qualidades:
Número de Tombo: MI-00418; Descrição: Camisola longa em tecido de algodão na
cor branca com rendas e fitas na cor branca. (Segundo o Acervcys é um traje
nupcial); cronologia do objeto: 1912 (Informação do Processo de Doação);
Dimensão: 125x90 Origem: São Miguel - Açores – Portugal. Doador: Carlos João
Pereira de Melo (ACERVO DO MUSEU DA IMIGRAÇÃO DE SÃO PAULO –
SECRETARIA DA CULTURA E ECONOMIA CRIATIVA DO ESTADO DE SÃO
PAULO).
Figura 4: Camisola Nupcial
Fonte: Acervo do Museu da Imigração de São Paulo/ Fotografia: Marcio Robson Julião
Número de Tombo: MI00000_001 99; Descrição: Calçola = Peça em tecido de
algodão, com entremeios e barrados de renda, provida de tiras para amarrar nas
laterais da cintura (Segundo o Acervcys é um traje nupcial); cronologia do objeto:
1912 (Informação do Processo de Doação), Dimensão: 56x78; Origem: São Miguel
- Açores – Portugal. Doador: Carlos João Pereira de Melo (ACERVO DO MUSEU
DA IMIGRAÇÃO DE SÃO PAULO – SECRETARIA DA CULTURA E
ECONOMIA CRIATIVA DO ESTADO DE SÃO PAULO).
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Figura 5: Calçola Nupcial
Fonte: Acervo do Museu da Imigração de São Paulo/ Fotografia: Marcio Robson Julião
As imagens dessa camisola e calçola fazem parte de um traje nupcial de origem
portuguesa e datado do ano de 1912. Ao analisarmos essas vestes, podemos visualizar tanto o
tecido e suas intervenções estéticas, quanto ao uso da renda, como o entrelaçamento memorial
em suas tramas históricas, pois uma mulher de descendência portuguesa teve a sua primeira
noite de núpcias com esses trajes, ou seja, uma mulher teve um “rito de passagem” em sua vida
ao assumir um compromisso com outro alguém e, assim, a possibilidade de gerar a sua própria
família. É inegável a importância dessas vestes pelos vestígios de lembranças do passado ainda
tão presentes. De acordo com Rousso, a importância da memória “é garantir a continuidade do
tempo e permitir resistir à alteridade, ao ‘tempo que muda’, as rupturas que são o destino de
toda vida humana; em suma, ela constitui – eis uma banalidade – um elemento essencial da
identidade, da percepção de si e dos outros” (ROUSSO, 1998:94-95).
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Traje de Batismo
Na imagem abaixo temos a apresentação de um traje de batismo com as seguintes
informações:
Número de Tombo: MI - 01184; Descrição: vestido de batizado em crepe de seda na
tonalidade branca, manga longa com fecho em botão de pressão em metal, fecho nas
costas com quatro botões de pressão em metal na parte superior e quatro nomes
bordados na parte interna da saia, apresenta detalhes em renda na mesma tonalidade
na gola, punhos e barrado, cintura com bordado casa de abelha e detalhes de flores
de cetim intercaladas com nervuras na parte inferior da saia. Outras inscrições:
“Gianfranco Alessandra Giorgio Gabriella”; cronologia do objeto: 1920; dimensão:
138X72 AxL (cm) e origem: Portugal (ACERVO DO MUSEU DA IMIGRAÇÃO DE
SÃO PAULO – SECRETARIA DA CULTURA E ECONOMIA CRIATIVA DO
ESTADO DE SÃO PAULO).
Figura 6: Traje de Batismo
Fonte: Acervo do Museu da Imigração de São Paulo/ Fotografia: Marcio Robson Julião
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Figura 7: Nomes bordados na parte interna do traje de Batismo
Fonte: Acervo do Museu da Imigração de São Paulo/Fotografia: Marcio Robson Julião
Em um primeiro olhar é possível analisar o aspecto físico do vestido, mas ao olharmos,
novamente, constatamos a aura memorial tecida em sua trama, principalmente, pelo fato de
existirem quatro nomes bordados (Gianfranco, Alessandra, Giorgio e Gabriella) na parte interna
da saia. Possivelmente, uma criança imigrante (ou várias da mesma família) usaram em terras
brasileiras uma veste com características de sua terra natal como uma espécie de associação à
nação de seus familiares. Hoje, o vestido musealizado reapresenta duplamente essa memória,
ou seja, de quem o usou no passado, como de quem, atualmente, está associado a esse tempo
de outrora, pois, essa memória passa a corresponder a uma identidade coletiva. “As questões
sobre a memória coletiva se conectam no presente às relacionadas à patrimonialização. Há um
intenso debate em curso e este nos remete à construção de instituintes de memória que procuram
sua aceitação por conjuntos sociais mais amplos” (PAIVA, 2014:159). As funções históricas e
memoriais permitem uma análise profunda dos artefatos têxteis. Esta investigação é permeada
por observações e reflexões que revelam não apenas diretamente o sujeito, mas a sociedade que
pertence, indiretamente, ao artefato. Para Benarush “a proposta do estudo das roupas como
cultura material assemelha-se ao estudo arqueológico, no qual se busca entender o costume e a
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cultura de determinados povos a partir dos artefatos criados e consumidos por eles, valorizando
sua história” (BENARUSH, 2012:116).
Num espaço no qual, memórias cristalizadas possam dar lugar a novas percepções e
releituras sobre o passado de maneira dinâmica, plural e contínua; lugares de
memória que induzam os sujeitos à experiência do antimonumento de Gerz, ou seja:
a encontrarem em si próprios os elos de pertencimento pretéritos de sua identidade e
vivido; espaços que discutam o passado de maneira a tornar o presente mais vivo e
liberto; lugares que apontem também para o sentido positivo da reelaboração
constante da memória e quiçá seu esquecimento (PAIVA, 2014:167).
Vale salientar que as vestes analisadas não possuem uma relação direta entre si, porém a
licença poética presente na ficha catalográfica do MI, possibilitou aproximá-las para uma
narrativa de vida, ou seja, de casamento e família. Para Waldman e Morales “os objetos
possuem biografias – apropriações e trajetórias que se relacionam com as dinâmicas sociais de
seu tempo e espaço” (WALDMAN, MORALES, 2017).
Considerações Finais
Esse estudo buscou, por meio de uma investigação museológica, identificar as relações
existentes entre museu, moda e memória através do processo de análise dos artefatos têxteis do
acervo de indumentárias do Museu da Imigração de São Paulo e assim, ressaltar informações e
afirmações de aspectos históricos, culturais e sociais.
Dessa forma, percebeu-se a importância do estudo da indumentária como um indicador
preciso de uma época, a partir de sua trama memorial, e logo, os seus usos, costumes e
mudanças, na possibilidade de reviver o período representado através dos elementos desse
memorável documento histórico que é a roupa. A roupa para Barthes “não é apenas um objeto
de um fenômeno efêmero que é a moda, mas ela resiste aos corpos, os corpos vêm e vão e elas
sobrevivem. A roupa veste o seu próprio “eu”, usando o corpo em sua forma mais pura e por
uma espécie de tautologia remete ao próprio vestuário” (BARTHES, 1979:245).
As vestes presentes no acervo de indumentárias do MI são documentos e testemunhas
memoráveis, assim sendo, a gestão do Museu da Imigração assegura “que o valor dessa coleção
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ultrapassa o histórico e reconhece, nas diversas marcas físicas, seus valores afetivo e de uso de
seus itens” (MUSEU DA IMIGRAÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO) e destaca que a
missão do MI é “promover o conhecimento e a reflexão sobre as migrações humanas, numa
perspectiva que privilegie a preservação, comunicação e expressão do patrimônio cultural das
várias nacionalidades e etnias que contribuem para a diversidade da formação social brasileira”
(MONTEIRO; WALDMAN, 2015).
A indumentária musealizada constitui, deste modo, o elemento de vinculação afetiva
emuladora de apropriação e pertencimento, sem os quais a preservação cultural seria uma ação
vazia e inútil. Trata-se, também, de uma relação afetiva sim, mas, similarmente, de saberes e
fazeres que partem “de um local para o outro” pelo processo de deslocamento das populações,
e que, consequentemente, insere-se na dimensão do global com a transferência de significados
em sua extensão geográfica, constituindo, assim, novas identidades. Revisitá-los é, então,
restabelecer laços de cultura e origem, bem como resgatar à memória presente os elementos de
um passado nem sempre vivido por quem dele se apropria e, logo, da raiz que vincula as
comunidades atuais àquelas de sua origem. Portanto, os processos (i)migratórios “migram” a
narrativa de suas próprias histórias e memórias às vestes inseridas no espaço museal.
Assim sendo, o presente estudo, por intermédio da análise de algumas vestes do acervo
da reserva técnica do Museu da Imigração de São Paulo, ressalta o atributo da memória como
um significativo agente de valorização da indumentária através do coerente trabalho do MI
junto a essa coleção, como também, busca chamar a atenção da sociedade e de outros espaços
museais sobre a importância da formação e conservação dos acervos de indumentárias, nem
sempre vistos com os devidos cuidados e especificidades que requerem.
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