Via campesina camponeses no brasil

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VIA CAMPESINA DO BRASIL UM REFERENCIAL PARA O CAMPESINATO NO BRASIL (versão preliminar)

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VIA CAMPESINA DO BRASIL

UM REFERENCIAL PARAO CAMPESINATO NO BRASIL

(versão preliminar)

CURITIBA, MAIO DE 2004

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INDICE

Prefácio.....3

1. Camponeses no capitalismo.....41.1 . Controvérsia central.....41.2 . Controvérsia no Brasil....81.3 . O fim do campesinato? (Bernardo Mançano Fernandes)....12

2. Atualidade do campesinato no Brasil.....142.1. Classificação por critério de oportunidade.....14 2.2. Dados básicos.....20

3. Diversidade do campesinato..... 223.1. Multiplicidade de situações.....223.2. Campesinato paraense (Jean Hebette)....243.3. Os pescadores de pequena escala no Pará (Maria Cristina Maneschy).....323.4. Territorialidades tradicionais e perspectivas de sustentabilidade nos Cerrados

(Carlos Eduardo Mazzetto da Silva).....353.5. O Eldorado do Brasil Central: ambiente, democracia e saberes populares no

Cerrado (Ricardo Ferreira Ribeiro).....48

4. Um novo referencial teórico.....544.1. Modo de ser e de viver: uma utopia camponesa?.....554.2. Uma teoria econômica do campesinato (Francisco Assis Costa)....634.3. Dimensão sociológica e política.....74

4.3.1. Elementos do padrão reprodutivo do campesinato.....74 4.3.2. A importância dos novos referenciais sociais para o campesinato (Horacio

Martins de Carvalho)..... 76 4.4. Dimensão ecológica (Marcos Flávio da Silva Borba).....81 4.5. Dimensão tecnológica e agroecológica..... 86

4.5.1. Mudanças na matriz e nas práticas de produção (Horacio Martins de Carvalho).....87

4.5.2. Transição agroecológica (Silvio Gomes de Almeida e Gabriel Bianconi Fernandes) .....89

5. Literatura citada.....93

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PREFÁCIO

Está-se entrando no século XXI, segundo o calendário hegemônico no mundo ocidental, e os camponeses não dão sinais de que poderão deixar de marcar presença ativa nas formações econômicas e sociais em todas as partes do mundo.

Com maior ou menor relevância econômica, social e política, e se reproduzindo socialmente sob centenas de formas de vida social, os camponeses afirmam e reafirmam seus modos de ser e de viver, marcando diferenças com relação aos estilos de vida dominantes e com as formas de conceber as suas relações sociais de produção e aquelas com a natureza.

Porque estão sempre presentes na história, os camponeses têm sido objeto das mais diversas interpretações teóricas e de um sem número de predições sobre o seu destino. A ampla gama de paixões políticas controversas que desperta o seu modo de ser e de viver nos vários períodos do desenrolar da história moderna até nossos dias, em particular a partir do desenvolvimento do modo de produção capitalista, exige de todos os interessados no seu conhecimento e na sua transformação que se resgate continuadamente os pontos teóricos mais polêmicos com respeito à sua reprodução social.

Enquanto um texto1, entre diversos outros, para estudo e debate no interior da Via Campesina do Brasil – Via, este documento objetiva ressaltar alguns aspectos do debate teórico e da atualidade da questão camponesa no Brasil, de maneira que sirva de motivação para o aprofundamento de estudos sobre a matéria e de subsídio para a formulação de estratégias de médio e longo prazo para as ações da Via de apoio e de desenvolvimento da reprodução social do campesinato no Brasil.

Por esses motivos é que se utilizou o expediente “citações longas” de textos considerados de referência, alguns de caráter teórico outros de estudos empíricos, para que servisse de base de estudo e reflexão e de encaminhamento para as obras originais dos autores citados.

Por outro lado, e como corolário dessa forma de informação sobre conhecimentos gerados, este texto tem como objetivo delimitar, ainda que de maneira preliminar, os marcos conceituais, a atualidade e a diversidade do campesinato no Brasil. Pretende, num esforço continuado, iniciar a construção de um novo referencial teórico para dar conta da reprodução social do campesinato no Brasil.

Este texto adota uma abordagem teórica, conforme apresentado na seção 4, adiante, cuja referência é a releitura contemporânea das teorias de Chayanov acrescidas das dimensões sociológica, política e ecológica em debate na atualidade.

1 Este documento foi organizado por Horacio Martins de Carvalho após as sugestões resultantes de seminário de representantes da Via Campesina do Brasil e técnicos convidados, realizado em Florianópolis nos dias 19 e 20 de abril de 2004.

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1. CAMPONESES NO CAPITALISMO

1.1. Controvérsia central

Há, uma passagem na obra “Marxismo e Agricultura: o Camponês Polonês”, de Jerzy Tepicht (1973), que provoca de imediato a reflexão e estimula o debate sobre a atualidade do campesinato. Tepicht (idem: 17-18) afirma:

“(...) Nós falaremos aqui da economia camponesa como de um modo de produção, este termo sendo tomado num sentido próximo daquele ‘marxiano’2, ou seja, o conjunto coerente e distinto de forças produtivas e relações de produção entre os homens. Se nossa acepção não é senão ‘próxima’ daquela de Marx, é que de fato Marx e seus numerosos discípulos aplicam este termo só ocasionalmente à economia, e por isso (:) é utilizado junto àquele de formação econômica, conjunto que deve conter toda uma estrutura de classe, com uma classe dominante na escala da sociedade global, e toda uma superestrutura, sobretudo política. Ora, o modo de produção camponês, tal como nós o compreendemos aqui, não é gerador de uma formação particular, ele se incrusta numa série de formações, ele se adapta, interioriza a seu modo as leis econômicas de cada uma delas e deixa, ao mesmo tempo, com maior ou menor intensidade, em cada uma delas a sua marca. É aí que reside, na nossa opinião, o segredo da surpreendente longevidade que inspiraram as predições sobre a sua perenidade. A maior parte dos marxistas prediz, ao contrário, o sabemos, uma decomposição rápida (...)

(...) mas seu modo de inserção no capitalismo é particular: inclusive no seu sistema de circulação sangüínea, o mercado, ela [forma de vida social]3 continua a amadurecer, depois a envelhecer como um ser à parte, com seus próprios princípios de existência, que ela transporta mesmo no seio das economias socialistas, tais como elas se apresentam ao menos até aqui. Ela forma no seio destas economias um setor econômico ‘não como os outros’, o que admite explicitamente ou implicitamente os princípios de organização, de trocas intersetoriais, de direção planificada --- a despeito de todas as tendências desta à uniformização.”

A aludida predição dos marxistas, para a decomposição do campesinato, anteriormente referida por Tepicht, pode ser aclarada pelos comentários de Costa (1994: 7-11):

“Marx era particularmente pessimista em relação ao futuro do campesinato no capitalismo. Sua análise, para aí desembocar, supõe que a relação campesinato/capitalismo far-se-ia sob condições particulares estabelecidas tanto no plano da distribuição quanto no plano da troca enquanto instâncias mediadoras distintas da produção e do consumo.”

2 Conforme Tepicht (nota de rodapé 1 à p.17): “nós leremos neste livro (a expressão) ‘marxiano’ (marxien) cada vez que se trata de sublinhar que um pensamento, fórmula ou abordagem é do próprio Marx; ‘marxista’ quando a distinção entre Marx e seus discípulos não nos parece necessária.”3 As anotações entre colchetes que aparecerão daqui em diante são do organizador deste documento.

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“No plano da distribuição, a forma de produzir camponesa caracterizar-se-ia por entregar de graça parte do trabalho excedente por ela produzida para a sociedade (Marx, 1985: 923-924). Tal afirmativa funda-se na constatação de uma especificidade dos camponeses quando comparados aos empresários capitalistas: eles não param de concorrer entre si enquanto o lucro e a renda da terra estão sendo corroídos por preços de mercado sistematicamente abaixo do valor, mantendo-se produtivos mesmo quando o seu rendimento equipara-se apenas ao salário médio de mercado, ou mesmo, se situa abaixo deste (idem: 923) Tal forma de produzir não poderia, assim, absorver os progressos tecnológicos necessários ao enfrentamento das empresas capitalistas, compulsivamente inovadoras na busca concorrencial do lucro (ibidem: 924) (...) No plano da distribuição, pois, estabelece-se uma exploração não localizável, sistêmica (...)”

“(...) No plano da troca, Marx enfatiza a mediação do capital mercantil e usurário como bloqueadora do desenvolvimento técnico dos camponeses (...)”

“As dificuldades das unidades camponeses quanto ao investimento e, portanto, quanto à sua capacidade de permanência, estão relacionadas com o aumento ou diminuição da taxa de lucro do capital mercantil assim como com a maior ou menor deterioração das relações de troca, esta expressa pela relação entre o valor médio de mercado do produto camponês e uma ponderação dos valores médios dos produtos industriais consumidos pelos camponeses4.”

“(...) A teoria de Marx, nesta matéria [problemas do campesinato no capitalismo], poderia ser resumida como segue: acossadas por suas contradições mediante o mercado (concorrência além do limite que permitiria a incorporação na unidade de produção camponesa do sobre-trabalho por ela gerado) e exauridas pelas formas ‘anti-diluvianas’ de capital as estruturas camponesas sucumbiriam inexoravelmente, uma vez que sua produtividade, pela ausência de formação de capital, tenderia a cair continuadamente, ou, na melhor das hipóteses, se estável, tenderia a se confrontar com uma produtividade média crescente para o conjunto da produção (derivada tão somente da cada vez mais presente produção capitalista) aumentando inexoravelmente (relação que mede a desproporção entre produtividade local e nacional) e a exploração (taxa de exploração tendencial maior que zero para um produtor individual) das estruturas camponesas. Sob o capitalismo, a produção camponesa constituiria, destarte, um sistema sem sustentabilidade, economicamente inviável.”

Essas interpretações de Marx sobre o campesinato no capitalismo apoiadas no O Capital (edição do vol. I em 1867) foram pontualmente repensadas pelo próprio Marx em relação à comuna russa em 1881. Em 1881, Marx, em carta a Vera Zasúlich, embatucou (na expressão de Ianni, 1985: 5) quando esta lhe indagou (Zasúlich, in Marx, 1980a) sobre as alternativas do destino da “comuna russa” na via socialista. A resposta de Marx foi:

“(...) Analisando a gênese da produção capitalista digo:

4 Esse parágrafo entre colchetes é uma leitura em prosa, realizada por Horacio Martins de Carvalho, de uma dedução matemática sobre a matéria realizada por Costa (1994:10)

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No fundo do sistema capitalista está, pois, a separação radical entre produtor e meios de produção... a base de toda esta evolução é a expropriação dos camponeses5. Todavia, não se realizou de uma maneira radical senão na Inglaterra...Mas, todos os demais países da Europa ocidental vão pelo mesmo caminho. (O Capital, edição francesa, p. 316

A ‘fatalidade histórica’ deste movimento está, pois, expressamente restrita aos países da Europa ocidental. O por quê desta restrição está indicado nesta passagem do capítulo xxxii:

A propriedade privada, fundada no trabalho pessoal...vai ser suplantada pela propriedade privada capitalista, fundada na exploração do trabalho de outros, no sistema assalariado (op. cit., p. 340).

Neste movimento ocidental se trata, pois, da transformação de uma forma de propriedade privada em outra forma de propriedade privada. Entre os camponeses russos, ao contrário, haveria que transformar sua propriedade comum em propriedade privada.

A análise apresentada no O Capital não dá, pois, razões, nem em prol nem contra da vitalidade da comunidade rural, mas o estudo especial que fiz sobre ela, e cujos materiais fui buscar em fontes originais, me convenceram de que esta comunidade é o ponto de apoio da regeneração social na Rússia, mas para que possa funcionar como tal será preciso eliminar primeiramente as influências deletérias que a acossam por todas as partes e, em seguida, assegurar-lhe as condições normais para um desenvolvimento espontâneo.” Marx e Engels (1980: 60-61).

Para Costa (1994: 6-7) “Uma das questões mais controversas no debate sobre o campesinato no capitalismo refere-se à sua capacidade de permanência. O debate, desde mais de um século, polariza-se nas posições que defendem, de um lado uma incapacidade estrutural das unidades camponesas de internalizarem sobre-trabalho (...) De outro lado vê-se na unidade de produção familiar uma microeconomia particular, responsável por uma propensão especialmente alta aos investimentos e, portanto, alta capacidade estrutural de internalização de inovações.”

“A produção econômica de Marx é a matriz da primeira posição6, enquanto as teorias do russo Chayanov encontram-se na base da segunda (...)”

Costa (1994: 11-12) com relação a Chayanov (1923) comenta: “Ao contrário de Marx, cuja perspectiva parte do sistema econômico para a análise da relação campesinato/capitalismo, e dos que o sucedem insistindo na dominância das mesmas tendências, a teoria chayanoviana do campesinato parte de uma perspectiva microeconômica. Enquanto no primeiro caso se chegava à visualização de unidades produtivas cujo comportamento específico (quando comparado ao comportamento capitalista) levaria a resultados homogêneos (a não internalização do sobre trabalho...), para a perspectiva chayanoviana o caráter específico da unidade camponesa leva a uma economia sem determinações derivadas das grandezas socialmente estabelecidas, seja do 5 As expressões assinaladas em itálico e as entre acentos constam do texto original.6 Posição de Marx comentada sucintamente em parágrafos anteriores.

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lucro seja da renda da terra, seja do salário. Partindo daí, Chayanov formula sua teoria do investimento camponês.”

“Para Chayanov a família é o fundamento da empresa camponesa --- na sua condição de economia sem assalariamento, uma vez que é tanto o ponto de partida quanto o objetivo da sua atividade econômica. Como única fonte de força de trabalho a família é o suposto da produção, cujo objetivo nada mais é [que] o de garantir a própria existência. A unidade camponesa é, pois, a um só tempo unidade de produção e unidade de consumo e encerra, concomitantemente, as funções das esferas de produção e reprodução de tal modo que ‘(...) a família e as relações que dela resultam tem que ser o único elemento organizador da economia sem assalariados’ (Chayanov, 1923: 9) (...) Para a unidade camponesa, pois, não existe uma dimensão econômica que tenha que ser necessariamente atingida e que seja estabelecida por um rendimento socialmente determinado de cada unidade de trabalho aplicada --- como é o caso da empresa capitalista frente ao salário. Aí, a atividade econômica mínima terá que produzir valores pelo”. menos equivalentes ao conjunto dos salários pagos e cada trabalhador trabalhará necessariamente pelo menos até o ponto em que o rendimento das suas atividades cubra o preço de mercado da sua força de trabalho. Para a empresa camponesa, o que existe é um nível de atividade a ser necessariamente atingida que determina com que rendimento cada unidade de trabalho da família tem que contribuir. Em outras palavras: não pertence à realidade da produção camponesa um rendimento por unidade de trabalho que seja determinante, como o é, para a empresa capitalista, o rendimento correspondente ao salário enquanto grandeza socialmente determinada, mas, sim, um rendimento por unidade de trabalho determinado pelas necessidades anuais da família camponesa --- pelo caráter, pois, da empresa camponesa enquanto unidade de consumo.”

É oportuno relembrar a observação de Archetti (1974) sobre a obra de Chayanov. “Esta escola discute, então, a necessidade de construir uma teoria que parta do suposto de que a economia camponesa não é tipicamente capitalista, portanto não se pode determinar objetivamente os custos de produção pela ausência da categoria ‘salários”. Desta maneira, o retorno que obtém o camponês após o final do ano econômico não pode ser conceituado como formando parte de algo que os empresários capitalistas chamam ‘lucro’. O camponês, ao utilizar a força de trabalho de sua família como a dele mesmo, percebe esse ‘excedente’ como uma retribuição ao seu próprio trabalho e não como um ‘lucro’. Esta retribuição aparece corporificada no consumo familiar de bens e serviços.”

“O problema da modernização e tecnificação colocava, portanto, um conjunto de questões que deveriam ser resolvidas construindo uma teoria diferente da teoria da empresa capitalista. É a esta tarefa que Chayanov, a partir de 1911, vai dedicar toda sua obra.” (Archetti, op, cit.: 8)

Wolf comentando o dilema camponês, à luz das idéias de Chayanov, ressalta que “o eterno problema da vida do camponês consiste, portanto, em contrabalançar as exigências do mundo exterior, em relação às necessidades que ele encontra no atendimento às necessidades de seus familiares. Ainda em relação a esse problema o camponês pode seguir duas estratégias diametralmente opostas. A primeira dela é incrementar a produção; a segunda, reduzir o consumo”.

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“Se o camponês escolhe a primeira estratégia, deverá elevar o rendimento do trabalho às suas próprias custas, tendo em vista levantar a produção e o aumento da produtividade, com que entrará no mercado (...) A estratégia que se apresenta como alternativa é a de solucionar o problema básico através da redução do consumo. O camponês pode reduzir seu consumo de calorias restringindo sua alimentação apenas aos alimentos básicos; pode limitar suas compras no mercado ao essencial e, em vez disso, pode confiar tanto quanto possível na capacidade de seu grupo doméstico de produzir tanto os alimentos como os objetos necessários, sem precisar sair dos limites da sua terra (...)”.

“(...) Ao contrário do que dizem os clichês literários, os camponeses não se encontram estáticos, mas em permanente estado dinâmico, movendo-se continuadamente entre dois pólos em busca de uma solução para seu dilema fundamental.”

“A existência de uma vida camponesa não envolve meramente relação entre camponeses e não-camponeses, mas um tipo de adaptação, uma combinação de atitudes e atividades destinadas a sustentar o cultivador em sua luta pela sobrevivência individual e de toda a sua espécie, dentro de uma ordem social que o ameaça de extinção (...)” (Wolf, (1976: 31ss)

“Theodor Shanin (1982 e 1983) detectou nas análises sobre a dinâmica agrária russa pré-revolução, problemas que, segundo ele, são constatados nas análises das presenças camponesas nas sociedades capitalistas em geral. As abordagens inclinar-se-iam a produzir visões reduzidas em dinâmicas necessariamente polares, apresentando as sociedades camponesas ou em dissolução por diferenciações sociais e econômicas produzidas pela penetração capitalista, ou em oposição a tal penetração. A primeira posição seria o resultado de um determinismo econômico e, a segunda, de um determinismo biológico.” (citado por Costa, 2000:101).

As posições teóricas que poderiam configurar um ‘determinismo econômico’ nas relações entre o campesinato e o capitalismo tem sido resultados das leituras particulares sobre o campesinato nas obras clássicas de Marx, Engels, Lenin e Kautsky por seus discípulos e intérpretes.

“Além da redução economicista, Shanin alerta para o que chama de determinismo biológico. E, dado o problema empírico que aborda [dinâmica agrária russa pré-revolução], refere-se basicamente às abordagens lideradas por Chayanov para o caso russo. Contudo, há um outro approach clássico, não obstante mais recente, do poder de determinação da reprodução biológica da população na dinâmica agrária. Refiro-me a Esther Boserup e sua explanação sobre a relação entre intensidade do uso do solo e crescimento populacional.”

“Para Baserup, existiria uma seqüência rígida, uma trajetória de mudanças técnicas difícil de transgredir na agricultura tradicional: ao cultivo de pousio longo, seguir-se-ia uma fase de cultivo com pousio arbustivo, sucedido por cultivo de pousio curto, cultivo anual e, finalmente, cultivos múltiplos (Boserup, 1987:13-28). Tal sucessão seria derivada da tensão gerada pela densidade populacional ---entendida como variável autônoma e incontornável. Tensão indispensável, dado que cada fase configuraria uma forma de uso do solo a exigir

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sempre mais esforço de cada trabalhador para o mesmo resultado em termos reais, embora apresentem pari passu produtividade por área decrescente.”

“As proposições teóricas de Chayanov (1974; Costa 1989 e 1995) fornecem os fundamentos de uma tal generalização, partindo da família e seus fundamentos reprodutivos. A dinâmica demográfica é, aqui, endógena ao fundamento estrutural da realidade agrária baseada no campesinato, constituindo fundamento para ações e decisões, inclusive quanto à inovação. Chayanov, contudo, não propõe a generalização que faz Boserup. Em compensação, muitos dos argumentos desta última sustentam-se tão somente se as hipóteses chayanovianas funcionarem. O que fazem, os dois autores, sob muitos aspectos, complementares.” (Costa, 2000: 112-113)

1.2. Controvérsia no Brasil

Aos fundamentos em debate nessa controvérsia geral sobre o campesinato e o capitalismo foram acrescidos, no Brasil, temas como o campesinato e os modos de produção, os resquícios do colonialismo e do escravagismo no campo, a expansão da fronteira agrícola, a reforma agrária e o papel do Estado na reprodução do campesinato.

É diversa e abundante, para os padrões acadêmicos e culturais dominantes, a literatura que tratou dessas temáticas. Não é pertinente neste texto o resgate dessa literatura ou mesmo a indicação de algumas obras que abrangessem tal temática e as abordagens utilizadas para dar conta dessa complexa tarefa teórica e histórica.

O que se deseja ressaltar, no entanto, é que as leituras históricas da natureza e caráter do campesinato no Brasil foram marcadas, em graus de intensidade distintos, pelo ‘determinismo econômico’, seja no âmbito da explicação teórica e da pesquisa acadêmica, seja no âmbito da ideologia dominante (concepção de mundo). A denominada vertente chayanoviana, ainda que presente em ‘locus’ particulares desses universos científico e ideológico, foi sendo gradativamente relegada a plano secundário pela pujança autoritária das idéias neoliberais, em especial desde meados da década de 80 do século XX.

Ainda que defendendo de maneira relativa a reprodução e a inserção do campesinato na dinâmica da reprodução capitalista, as organizações e movimentos sociais e sindicais de mediação dos seus interesses, sejam localizados, sejam os universais (de classe e corporativos), não dedicaram parte de seus esforços institucionais para um aprofundamento dessa controvérsia sobre o campesinato no capitalismo. De maneira geral, e instigados pelas necessidades imediatas dos camponeses, canalizaram seus esforços para o âmbito da reivindicação e do protesto (Carvalho, 1992 e 2004) perante os governos. Mesmo os esforços políticos e ideológicos, assim como os empíricos, de luta pela terra pouco contribuíram para o aprofundamento dessa controvérsia geral aqui em apreço.

As idéias dominantes que repousavam nas concepções da diferenciação do campesinato tornaram-se as idéias hegemônicas (envolvendo classes dominantes e dominadas). Essas idéias materializaram-se seja na concepção e prática das políticas públicas seja nas palavras de ordem por vezes reinantes nos movimentos e organizações

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sociais e sindicais do campesinato quando defendiam a “inserção competitiva da agricultura da familiar no mercado” (sic).

As próprias dificuldades de enquadramento conceitual das dezenas de formas sociais de reprodução das unidades familiares produtoras e extrativistas autônomas no campo por parte tanto dos organismos governamentais como daqueles de mediação dos interesses dos camponeses são evidências de que novos esforços teóricos e empíricos necessitam ser realizados para se dar conta da atualidade e da diversidade camponesa no Brasil (ver cap. 2 e 3 adiantes).

O referencial teórico hegemônico no Brasil sobre o campesinato tem como uma das origens conceituais (a outra poderá ser identificada como em Mendras, 1959 e 1976) na vertente expressa pelo determinismo econômico anteriormente comentado e que pode ser sintetizado na expressão de Ellis (1988: 234): “(...) camponeses são unidades familiares de produção agrícola caracterizadas pelo engajamento parcial em mercados incompletos...”, postura intelectual bastante distinta daquela assumida por Chayanov (1974), que tem como premissa a centralidade na reprodução da família camponesa. De acordo com (Costa, 2000: 116) “(...) Uma das justificativas do autor para o conceito e resultado que obtém de seu uso explicita o cerne das nossas divergências:

...o caráter parcial da integração no mercado serve para diferenciar os camponeses tanto das empresas capitalistas (baseadas no trabalho assalariado) como de pequenos produtores mercantis que operam em contexto de mercados de fatores e produtos plenamente formados ...(Ellis: 234) e ...no longo prazo, a dominância das relações capitalistas significa o desaparecimento dos camponeses, mas não, necessariamente, o fim das formas familiares de produção agrícola. (op. cit.: 238. Tradução de Costa)”

Ainda conforme Costa (op.cit. :116) “Trata-se de uma diferenciação fraca demais quando se refere a formas capitalistas de produção e forte demais quando se refere a diferenças da própria produção familiar rural. Fraca demais no primeiro caso, porque não expõe a constituição essencial das diferenças a ressaltar; forte demais no segundo caso, porque atribui capacidade distintiva a um fenômeno cuja determinação é, a rigor, traço de igualdade das formas de produção familiar rural.”

“Diferentemente desta, a nossa proposição de centralidade da reprodução na percepção da especificidade camponesa permite diferenciar de fora vigorosa a unidade camponesa de outras estruturas presentes no agrário nas sociedades capitalistas, em particular da empresa capitalista. Empresas capitalistas supõem a centralidade no lucro como fundamento da racionalidade de seus componentes...”

Num outro sentido, a hipótese de que o processo de redução da distinção entre o rural e urbano conduziria a “...um continuum dominado pela cena urbana, como já foi formulado no tocante à realidade européia (Lefebvre, 1972; Duby, 1984; Mendras, 1959; entre outros) e para a realidade brasileira (Graziano da Silva, 1996; Ianni, 1996; entre outros” (conforme Carneiro, 1998: 53) não corresponde à dinâmica de mudanças que se verificam em todo o território brasileiro. “(...) Ainda que os efeitos da expansão da

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‘racionalidade urbana’ sobre o campo, provocada pela generalização da lógica do processo de trabalho e da produção capitalista intensificado pelos mecanismos da globalização não possam, de forma alguma, ser tratados com negligência, é precipitado concluir que tal processo resultaria na dissolução do agrário, e na tendência à transformação unificadora das condições de vida no campo.” (idem, op. cit.:53)

“(...) Em contraposição, tanto à visão dicotômica quanto à do continuum, alguns autores sustentam a necessidade de proceder análises mais específicas do rural, centradas nas relações sociais que se desenvolvem a partir de processos de integração das aldeias à economia global. Nesta visão, esse processo, ao invés de diluir as diferenças pode propiciar o reforço de identidades apoiadas no pertencimento a uma localidade. Essa âncora territorial seria a base sobre a qual a cultura realizaria a interação entre o rural e o urbano de um modo determinado, ou seja, mantendo uma lógica própria que lhe garantiria a manutenção de uma identidade (Chamborredon, 1980 e Rambaud, 1969 e 1981).” (Carneiro, op. cit. 57)

Tanto a visão economicista do campesinato como aquela da inexorabilidade da homogeneização urbana do espaço rural conduzem política e ideologicamente a compreensões que reafirmam a absorção/exclusão social do campesinato pela expansão e consolidação da empresa capitalista no campo.

As expressões agricultura familiar, pequeno produtor rural e pequenos agricultores adquiriram desde o início da década de 90 conotações ideológicas, não porque imprecisas ou insuficientes para dar conta da diversidade de formas sociais de reprodução das unidades de produção/extração centradas na reprodução da vida familiar presentes e em desenvolvimento no país, mas, sobretudo, porque foram disseminadas no interior de um discurso teórico e político que afirmava a diferenciação e fim do campesinato em duas categorias: aquela que seria transformada em empresas capitalistas pelo desenvolvimento das forças produtivas e aquelas que se proletarizariam ou permaneceriam dependentes de apoios sociais das políticas públicas.

A revivificação dos conceitos de camponês e campesinato propõe resgatar e afirmar a perspectiva teórica da reprodução social do campesinato na sociedade capitalista a partir das teses da centralidade da reprodução da família camponesa e da sua especificidade no contexto da formação econômica e social capitalista. Objetiva, deveras, abranger nesses conceitos a totalidade das formas de reprodução das unidades de produção familiar no rural brasileira.

1.3. O fim do campesinato?7

Bernardo Mançano Fernandes

7 Esta seção está constituída por extratos do documento Delimitação Conceitual do Campesinato de Bernardo Mançano Fernandes (2004)

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(...) O processo de formação do campesinato remonta à gênese da história da humanidade. Essa leitura histórica é importante para a compreensão da lógica da persistência do campesinato nos diferentes tipos de sociedades. A existência do campesinato nas sociedades escravocratas, feudal, capitalista e socialista é um referencial para entendermos o sentido dessa perseverança.

A coexistência e a participação do campesinato nesses diferentes tipos de sistemas sócio-políticos e econômicos e a sua constância quando do fim ou crise dessas sociedades demonstram que essa firmeza precisa ser considerada como uma qualidade intrínseca dessa forma de organização social.

Por essa razão, desde o século XIX, surgiram diversas teorias a respeito da existência e das perspectivas do campesinato no capitalismo. O desenvolvimento dessas teorias por meio de pesquisas e debates políticos acirrados constituiu três distintos modelos de interpretação do campesinato ou paradigmas.

De modo objetivo, discutimos esses paradigmas e os denominamos a partir de suas perspectivas para o campesinato. O paradigma do fim do campesinato compreende que este está em vias de extinção. O paradigma do fim do fim do campesinato entende a sua existência a partir de sua resistência. O paradigma da metamorfose do campesinato acredita na sua mudança em agricultor familiar.

Ainda é muito forte o paradigma do fim do campesinato. Esse modelo de interpretação do campesinato tem duas leituras. Uma está baseada na diferenciação gerada pela renda capitalizada da terra que destrói o campesinato, transformando pequena parte em capitalista e grande parte em assalariado. A outra leitura do fim do campesinato acredita simplesmente na inviabilidade da agricultura camponesa perante a supremacia da agricultura capitalista.

O paradigma do fim do fim do campesinato tem uma leitura mais ampla que o anterior. Entende que a destruição do campesinato pela sua diferenciação não determina o seu fim. É fato que o capital ao se apropriar da riqueza produzida pelo trabalho familiar camponês, por meio da renda capitalizada da terra, gera a diferenciação e a destruição do campesinato. Mas, igualmente, é fato que ao capital interessa a continuação desse processo para o seu próprio desenvolvimento. Em diferentes condições, a apropriação da renda capitalizada da terra é mais interessante ao capital do que o assalariamento. Por essa razão, os proprietários de terra e capitalistas oferecem suas terras em arrendamento aos camponeses ou oferecem condições para a produção nas propriedades camponesas.

O arrendamento é uma possibilidade de recriação do campesinato, outra é pela compra da terra e outra é pela ocupação da terra. Essas são as três formas de recriação do campesinato. E assim se desenvolve num constante processo de territorialização de desterritorialização da agricultura camponesa, ou de destruição e recriação do campesinato. O que é compreendido como fim também tem o seu fim na poderosa vantagem que o capital tem sobre a renda capitalizada da terra, gerada pelo trabalho familiar.

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Ainda nesta compreensão, o campesinato é visto como uma importante forma de organização social para o desenvolvimento humano em diferentes escalas geográficas. A produção familiar provoca impactos sócioterritoriais contribuindo para o desenvolvimento regional e contribuindo com a melhoria a qualidade de vida.

O paradigma do fim do fim do campesinato tem duas vertentes. Uma desenvolve ações para o crescimento do número de camponeses por meio de uma política de reforma agrária e pela territorialização da luta pela terra. Outra desenvolve ações para a manutenção do número de camponeses, acreditando que garantir a existência é suficiente.

O paradigma da metamorfose do campesinato surgiu na última década do século XX e é uma espécie de “terceira via” à questão do campesinato. Acredita no fim do campesinato, mas não no fim do trabalho familiar na agricultura. Desse modo utiliza o conceito de agricultor familiar como eufemismo do conceito de camponês. A partir de uma lógica dualista de atrasado e moderno, classifica o camponês como atrasado e o agricultor familiar como moderno. Essa lógica dualista é processual, pois o camponês para ser moderno precisa se metamorfosear em agricultor familiar.

Esse processo de transformação do sujeito camponês em sujeito agricultor familiar sugere também uma mudança ideológica. O camponês metamorfoseado em agricultor familiar perde a sua história de resistência, fruto da sua pertinácia, e se torna um sujeito conformado com o processo de diferenciação que passa a ser um processo natural do capitalismo.

Os limites dos espaços políticos de ação do então moderno agricultor familiar fecham-se nas dimensões da diferenciação gerada na produção da renda capitalizada da terra. A sua existência, portanto, está condicionada dentro das condições geradas pelo capital. Logo as suas perspectivas estão limitadas às seguintes condições: agricultor familiar consolidado; agricultor familiar intermediário e agricultor familiar periférico. Da condição de periférico à condição de consolidado formam-se os espaços políticos de sua existência. Esse seria o seu universo possível.

Nessa lógica não cabem os sem-terra, porque não se discute a exclusão. Discutem-se apenas os incluídos no espaço do processo de diferenciação. Nesse sentido, esse paradigma possui uma interface com a vertente do paradigma do fim do fim do campesinato que se preocupa apenas com a manutenção do campesinato.

Essa leitura é marcada por uma importante diferença entre o paradigma da metamorfose do campesinato dos outros paradigmas. Os paradigmas do fim do campesinato e do fim do fim do campesinato têm como fundamento a questão agrária. O paradigma da metamorfose do campesinato tem como fundamento o capitalismo agrário.

O debate a respeito da questão agrária tem se desenvolvido a partir do princípio da superação. Essa condição implica na luta contra o capital e na perspectiva de construção de experiências para a transformação da sociedade. O debate a respeito do capitalismo agrário tem se desenvolvido a partir do princípio da conservação das condições existentes da sociedade capitalista (...)

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(...) Afora o princípio conservador do paradigma da metamorfose do campesinato, destacam-se os limites de sua lógica dualista. Por não conseguir explicar a persistência do campesinato, a sua existência e atualidade e nem suas perspectivas, procura transformá-lo por meio do esvaziamento de sua história. O camponês fica com o passado e o agricultor familiar com o futuro (...)

2. ATUALIDADE DO CAMPESINATO NO BRASIL

2.1. Classificação por critérios de oportunidade8

As classificações vigentes e hegemônicas para identificar a “agricultura familiar” são imprecisas e insuficientes para darem conta da diversidade das formas encontradas pelas famílias que “tendo acesso à terra e aos recursos naturais que esta suporta, resolvem seus problemas reprodutivos a partir da produção rural --- extrativista, agrícola e não agrícola e pesqueira e de parcela dos povos indígenas9 --- desenvolvida de tal modo que não se diferencia o universo dos que decidem sobre a alocação do trabalho, dos que sobrevivem com o resultado dessa alocação” (Costa, 2000: 114), e que aqui são denominadas genericamente de camponesas.

A essa delimitação conceitual do campesinato pode-se acrescentar outros matizes fundamentais. Hebette (2004: 2) afirma que “o modo de vida que, neste ensaio, será chamado camponês, e as populações que dele vivem, também chamadas camponesas, se oferecem ao nosso olhar mediante algumas características fundamentais. Os camponeses são produtores livres de dependência pessoal direta – são ‘autônomos’; sua sobrevivência de homens livres lhes impõe laços de solidariedade cuja quebra ou enfraquecimento ameaçam seu modo de vida; esses laços mais primários são os de parentesco e de vizinhança que os levam a procurar se agrupar em ‘comunidade’; a busca de sua permanência e reprodução numa mesma ‘terra’ (ou no mesmo ‘terroir’, como se diz em francês), traduzidos como apego à terra, é a marca do sucesso de seu modo de vida e a fonte de seu cuidado com seu ambiente: a migração para ele é uma fatalidade, a expulsão, uma degradação inaceitável.” [grifos no original]

As delimitações conceituais e empíricas da “agricultura familiar”, no nível da formulação das políticas públicas dos organismos de governo, têm sido bastante influenciadas pelas concepções teóricas de caráter acentuadamente economicista. Essas opções, indiretamente, facilitam o exercício de práticas governamentais que aderem à perspectiva de estímulo à diferenciação do campesinato e de ajuste funcional de se desenvolvimento á dinâmica do mercado. Constituiu-se, assim, um processo de delimitação empírica do campesinato onde algumas das classificações foram estabelecidas a partir de situações conjunturais. A esse processo denominou-se aqui de processo classificatório de oportunidade.

8 As informações constantes deste item são extraídas de Moreira (2003).9 Complemento acrescentado por Horacio Martins de Carvalho à conceituação original de Costa.

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Por exemplo, no Plano Safra 2003/2004 se calculou que 4,1 milhões de estabelecimentos seriam considerados como de “agricultura familiar”. Essa cifra acompanha de perto as cifras do Censo Agropecuário do IBGE 1995/96 que permitiu enquadrar 4,139 milhões de estabelecimentos como de “agricultura familiar” (Tab. 1, adiante), abrangendo 85,2% do total de estabelecimento do país. Deste total 49,7% (2,055 milhões de estabelecimentos familiares) encontra-se no Nordeste brasileiro.

Tabela 1Brasil. Agricultura familiar. Número de estabelecimentos e percentagem da área por região do país.

Região/País n° estabel. Área %Nordeste 2.055.157 31,6%Centro-Oeste 162.062 12,7%Norte 380.895 20,3%Sudeste 633.620 17,4%Sul 907.635 18,0%Brasil 4.139.369 100,0%

Fonte: Censo Agropecuário 1995/96FAO/INCRA

As classificações adotadas pela Secretaria de Agricultura Familiar – SAF do Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA são exemplos do processo classificatório de oportunidade no qual parcelas da população rural supostamente consideradas “agricultores familiares” são enquadradas sem que necessariamente se dê conta diversidade das formas sociais de reprodução dos camponeses do país.

Conforme Moreira (2003: 13-17) “a produção teórica e conceitual do governo federal iniciou-se a partir de 1996 e sustentou a elaboração de um programa de âmbito nacional que é o PRONAF. Esta produção deveu-se a cooperações com organismos internacionais como a Food Agriculture Organization – FAO, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA10. Segundo o Ministério do Desenvolvimento Agrário (2000:13), o debate sobre os conceitos e a importância relativa da ‘agricultura familiar’ também é intenso, produzindo inúmeras concepções, interpretações e propostas, oriundas das diferentes entidades representativas dos ‘pequenos agricultores’, dos intelectuais que estudam a área rural e dos técnicos governamentais encarregados de elaborar as políticas para o setor rural brasileiro.”

10 O Projeto BRA/98/012 “Agricultura Familiar no Contexto do Desenvolvimento Local Sustentável” constituiu-se em um destes projetos de cooperação do PRONAF, coordenado pela então Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR). O INCRA por sua vez estabeleceu convênio - Projetos de Cooperação Técnica – com a FAO entre 1996 e 1999. Esta cooperação FAO/INCRA realizou estudos baseados na metodologia de sistemas agrários desenvolvidos pela escola francesa de estudos agrários. Para o Convênio FAO/INCRA estes estudos “(...) vem permitindo uma melhor compreensão da lógica e dinâmica das unidades familiares e dos assentamentos, assim como dos sistemas de produção por eles adotados nas diversas regiões do país.” (FAO/INCRA, 1999)

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“Documento Referencial editado pelo PRONAF discorre sobre o dito ‘bi-modelism’ da agricultura brasileira, isto é, a existência de dois modelos gerais. Para o PRONAF ‘(...) pode-se intervir objetivamente na estrutura da agricultura brasileira considerando dois modelos gerais: o modelo da agricultura patronal e o modelo da agricultura familiar.’ (PRONAF, 1999: 4)”

“Referindo-se às características da agricultura brasileira os documentos FAO/INCRA sugerem características diferenciadas para cada um dos modelos, como mostra o Quadro 1.”

“Ao diferenciar os tipos ou ‘modalidades’ no interior dos dois modelos FAO/INCRA, identificaram-se seis modalidades, sendo três para a agricultura patronal: agribusiness, agricultura patronal de base empresarial e agricultura patronal de base fundiária, e três para a agricultura familiar: agricultura familiar consolidada, agricultura familiar de transição e agricultura familiar periférica, como pode ser observado no Quadro 2.”

“Ao caracterizar as modalidades, FAO/INCRA utiliza indicadores11 tais como: parâmetros empresariais, gestão empresarial, padrão empresarial, capital, integração ao mercado, acessibilidade à tecnologia e às políticas públicas, viabilização econômica, integração produtiva à economia nacional.”

“A SAF, para delimitar o ‘universo familiar’12, usou informações disponíveis no Censo Agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, propondo-se a definir um ‘novo retrato da agricultura familiar’. Segundo o Censo Agropecuário 1995/96 - IBGE, existiam no Brasil 4.859.864 estabelecimentos rurais ocupando uma área de 353,6 milhões de hectares, sendo que os estabelecimentos familiares ocupavam 30,2 % desta área, a despeito de representar 85,2% do total dos estabelecimentos rurais brasileiros (Tab. 2). De outro lado, a categoria agricultura patronal ocupava 67,9% da área total e representava apenas 11,4% dos estabelecimentos rurais. A quantidade de estabelecimentos na categoria familiar era 7,5 vezes maior que o número da categoria patronal. A quantidade de terras ocupadas pela categoria patronal era mais que o dobro (2,3 vezes) das ocupadas pela agricultura familiar.”

Quadro 1. Características dos Modelos Patronal e Familiar

Modelo Patronal Modelo Familiarcompleta separação entre gestão e trabalho e gestão intimamente

11 Por exemplo: agribusiness: sua gestão é conduzida em moldes empresariais; agricultura patronal de base fundiária: o capital principal é a terra, a gestão do empreendimento não atende parâmetros empresariais; agricultura familiar consolidada: integrada ao mercado, a maioria funciona em padrões empresariais.12Como a SAF caracterizou o “O universo familiar”? “... foi caracterizado pelos estabelecimentos que atendiam simultaneamente, às seguintes condições: a) a direção dos trabalhos do estabelecimento era exercida pelo produtor; b) o trabalho familiar era superior ao trabalho contratado”. Adicionalmente, foi elaborada uma área máxima regional como limite superior para a área total dos estabelecimentos familiares”. (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO, 2000:18)

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trabalho relacionadosorganização centralizada direção do processo produtivo assegurada

diretamente pelo agricultor e sua famíliaênfase na especialização ênfase na diversificaçãoênfase em práticas agrícolas

padronizáveisênfase na durabilidade dos recursos e na qualidade de vida

trabalho assalariado predominante trabalho assalariado complementartecnologias dirigidas à eliminação de decisões “de terreno” e “de momento”

decisões imediatas, adequadas ao alto grau de imprevisibilidade no processo produtivo

Fonte: PRONAF (1996)

Tab. 2. Brasil – Estabelecimentos Totais e Área Total por Categorias Familiar e Patronal, 2000.

Categorias EstabelecimentosTotal

% Estab. s/ total

Área Total(mil ha)

Área Total%

Familiar 4.139.369 85,2 107.768 30,5patronal 554.501 11,4 240.042 67,9Outros (*) 165.994 3,4 5.801 1,6Total 4.859.864 100,0 353.611 100,0

Fonte: Censo Agropecuário 1995/1996 – IBGE. Adaptado de Novo Retrato da Agricultura Familiar – O Brasil Redescoberto / MDA/ SNAF.2000

(*) Instituições religiosas, entidades públicas e não identificados.

Tab. 3 Agricultores familiares – Percentual dos estabelecimentos, segundo a condição do produtor.

Região Proprietário Arrendatário Parceiro Ocupante

Nordeste 65 6,9 8,4 19,3Centro-Oeste 89,8 3,4 1,3 5,6Norte 84,6 0,7 1,4 13,2Sudeste 85,7 4,1 5,2 5,0Sul 80,8 6,4 6,0 6,7Brasil 74,6 5,7 6,4 13,3

Fonte dos dados: Censo Agropecuário 1995/96 – IBGE. Adaptado de NovoRetrato da Familiar no Brasil/ SNAF-MDA.2000.

Quadro 2. Os dois modelos de agricultura no Brasil : suas modalidades e características

Modelo Modalidades Características

Agricultura Patronal

a) Agribusiness Integração vertical das atividades no agro-industrial.

Agroindústria com gestão empresarial

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b) Agricultura patronal de base empresarial

Uso intensivo de tecnologias, alta produtividade, gestão empresarial.

c) Agricultura patronal de base fundiária

Latifúndio, gestão não empresarial, agropecuária extensiva e nem sempre produtiva, tendo a terra como capital principal.

Agricultura Familiar

a) Agricultura familiar Consolidada

Integração ao mercado, acesso a inovações tecnológicas e políticas públicas, maioria funcionando em padrões empresariais.

b) Agricultura familiar de Transição

Acesso parcial à tecnologia e ao mercado, sem acesso à maioria das políticas e programas governamentais, não consolidados como empresas.

Amplo potencial para a viabilização econômica

c) Agricultura familiar Periférica

Inadequação em termos de infra-estrutura, dependente de programas de reforma agrária, crédito, pesquisa, assistência técnica e extensão rural e comercialização.

Fonte: PRONAF (1996)

“Do Censo Agropecuário 1995/96 podem-se extrair três informações (...) A primeira: a condição dos agricultores em relação ao uso da terra; a segunda: a estrutura fundiária; e a terceira: o pessoal ocupado. De acordo com a SNAF, ‘a situação dos agricultores familiares, segundo a condição de uso da terra demonstra que 74,6% são proprietários, 5,7% são arrendatários, 6,4% são parceiros e 13,3% são ocupantes’ (Tab. 3)”.

“Para a SNAF, os dados do Censo Agropecuário 1995/1996 demonstram que não é apenas a propriedade da terra o único elemento a ser considerado para o que chama de ‘reestruturação fundiária no Brasil’ (BRASIL, 2000:26). Também deve ser verificado o tamanho das propriedades dos agricultores familiares. ‘(...) muitos possuem menos de 5 ha, o que, na maioria dos casos, inviabiliza sua sustentabilidade econômica (...)’. De fato, o Censo Agropecuário revelou que, no Brasil, 94,55% dos estabelecimentos no modelo de agricultura familiar têm menos de 100 ha de terra. 39,8% das propriedades dos agricultores familiares têm menos de 5 ha, como pode ser visto na Tabela 4. Este índice chega a 58,8% na região Nordeste.”

Tab. 4 Agricultores Familiares – Percentagem de estabelecimentos segundo grupos de área total

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Região Menos de 5 ha

5 a 20 ha 20 a 50 ha 50 a 100 ha 100a 150MR13

Nordeste 58,8 21,9 11,0 4,8 3,4Centro-Oeste 8,7 20,5 27,3 18,8 24,6Norte 21,3 20,8 22,5 17,9 17,4Sudeste 25,5 35,6 22,7 9,9 6,3Sul 20,0 47,9 23,2 5,9 2,9Brasil 39,8 30,0 17,1 7,6 5,9

Fonte: Censo Agropecuário 1995/96 – IBGE. Adaptado de Novo Retrato da Agricultura Familiar no Brasil/ SNAF-MDA.2000.

O critério tamanho do estabelecimento ou o de imóvel rural, a renda familiar e o estabelecimento segundo a condição do produtor, como exemplos, não são nem necessários nem suficientes para darem conta da diversidade de situações (formas sociais de reprodução da família) daquelas famílias que se enquadrariam sob o conceito de camponês. Por exemplo, as quebradeiras de coco babaçu que extraem o coco de babaçuais “livres”, mas que se encontram em terras privadas, ou os varzeiros (como exemplos aqueles das várzeas da bacia hidrográfica do rio Amazonas) que exercitam o extrativismo pesqueiro e florestal, a agricultura ocasional (nas vazantes dos rios) e produzem artesanatos, e não tem, um e outro (quebradeiras de coco e varzeiros), como referência nem a posse nem o domínio da terra e cujos rendimentos são de difícil identificação formal, são camponeses e não são contemplados pelas estatísticas oficiais.

“De acordo com os dados do Censo Demográfico de 2000, cinco milhões de famílias rurais vivem com menos de dois salários mínimos mensais – cifra esta que, com pequenas variações, é encontrada em todas as regiões do país. (Tabela 5)” (Proposta de PNRA, 2003: 6).

Apesar da informação estratificada (Tab. 5) seria difícil se afirmar que os camponeses seriam aquelas famílias residentes em domicílios permanentes na zona rural que se encontram nos estratos de até 5 salários de rendimento mensal nominal, considerando-se que há número relevante de camponeses com rendimento nominal mensal muito superior a 5 salários mínimos.

Tabela 5 – Brasil - Famílias residentes em domicílios permanentes na zona rural por classe de rendimento familiar, rendimento nominal médio mensal e valor nominal mediano mensal.

Classe de rendimento nominal mensal em salários

mínimos

Nº de famílias

%Participação acumulada

Renda média

Renda Mediana

13 15MR: 15 vezes o Módulo Regional

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Total Rural 7.890.548 100,00 429,44 250,00

Até ½ 970.836 12,30 12,30 3,41 0,00Mais de ¼ a ½ 331.535 4,20 16,50 55,28 50,00Mais de ½ a 1 1.653.419 20,95 37,45 131,62 150,00Mais de 1 a 2 2.021.284 25.61 63,06 248,22 250,00Mais de 2 a 3 1.022.719 12,96 76,02 387,41 391,00Mais de 3 a 5 976.858 12,38 88,40 585,05 581,00Mais de 5 a 10 628.877 8,00 96,40 1.032,23 1.000,00Mais de 10 a 15 135.709 1,70 98,10 1.849,32 1.831,00Mais de 15 a 20 58.737 0,75 98,85 2.637,41 2.600,00Mais de 10 a 30 43.341 0,55 99,40 3.672,97 3.600,00Mais de 30 47.234 0,60 100,00 10.023,87 6.500,00

Fonte dos dados: Censo Demográfico 2000/IBGE.Fonte da tabela: Proposta de Plano Nacional de Reforma Agrária, Brasília, outubro de 2003.

2.2. Os dados básicos

“(...) O Brasil dispõe de duas categorias para cadastramento e censo de terras, quais sejam: estabelecimento ou unidade de exploração, que é adotada pelos censos agropecuários do IBGE, e imóvel rural ou unidade de domínio, que é adotada pelo cadastro do INCRA, para fins tributários. Todas as estatísticas que configuram a estrutura agrária atém-se a estas e somente a estas categorias. As terras indígenas, em decorrência da figura da tutela, são registradas no Serviço do Patrimônio da União. As terras das comunidades remanescentes de quilombo, também recuperadas pela Constituição Federal de 1988, através do Art. 68 do ADCT, devem ser convertidas, pela titulação definitiva, em imóveis rurais. Claúsulas de inalienabilidade, domínio coletivo e costumes e uso comum dos recursos juntamente com fatores étnicos, tem levantado questões para uma visão tributarista que só vê a terra como mercadoria passível de taxação, menosprezando dimensões simbólicas. Em suma, uma nova concepção de” cadastramento se impõe, rompendo com a insuficiência das categorias censitárias instituídas e levando em consideração as realidades localizadas e a especificidade dos diferentes processos de territorialização.

Sem haver ruptura explícita com tais categorias assiste-se a tentativas várias de cadastramento parcial como apregoa a Portaria n.06 de 1o. de março de 2004 da Fundação Cultural Palmares, que institui o Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades de Quilombo, nomeando-as sob as denominações seguintes: ‘terras de preto, mocambos, comunidades negras, quilombos’ dentre outras denominações (Almeida, 1989).

Ora, a própria necessidade de um cadastro aparte releva uma insuficiência das duas categorias classificatórias, ao mesmo tempo em que confirma e chama a atenção para uma diversidade de categorias de uso na vida social que demandam reconhecimento formal. Aliás, desde 1985, há uma tensão dentro dos órgãos fundiários oficiais para o reconhecimento de situações de ocupação e uso comum da terra, ditadas por “tradição e costumes”, por práticas de autonomia produtiva - erigidas a partir da desagregação das plantations (algodoeira, açucareira, cafeeira) e das empresas mineradoras - e por

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mobilizações sociais para afirmação étnica e de direitos elementares. Um eufemismo criado no INCRA em 1985-86 dizia respeito a “ocupações especiais”, no Cadastro de Glebas, onde se incluíam nos documentos de justificativa, as chamadas terras de preto, terras de santo, terras de índio, os fundos de pasto e os faxinais dentre outros.

O advento destas práticas e a pressão pelo seu reconhecimento têm aumentado desde 1988, sobretudo na região amazônica, com o surgimento de múltiplas formas associativas agrupadas por diferentes critérios tais como: raízes locais profundas, fatores político-organizativos, autodefinições coletivas, consciência ambiental e elementos de identidade. A estas formas associativas expressas pelos novos movimentos sociais, que objetivam os sujeitos em existência coletiva (Conselho Nacional dos Seringueiros, Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, Coordenação Nacional de Articulação das comunidades negras rurais quilombolas, Movimento dos Fundos de Pasto...) correspondem territorialidades específicas onde realizam sua maneira de ser e sua reprodução física e social.” (Almeida, 2004: 2)

O tamanho da área do imóvel é um critério impreciso e insuficiente, tendo em vista que parte substancial dos camponeses não possue o domínio do imóvel. Se definirmos, à guisa de hipótese, que são camponesas aquelas famílias que possuem o domínio e ou a posse de imóveis com área abaixo de 50 hectares, como se enquadrariam os agroextrativistas do látex da borracha que demandam como mínimo três “colocações” que abrangem área sempre muito superior a essa? E aqueles varzeiros de certas regiões do rio Amazonas que em função do regime de vazantes e cheias e do formato da calha do rio demandam até 200 hectares de terras para darem conta de exercerem uma das suas atividades que é plantar na vazante?

Como exemplo pode-se citar a constatação de Hebette (op. cit.: 14) com relação ao Estado do Pará: “Quantos são, finalmente, embora aproximativamente, os estabelecimentos camponeses do Pará? Aceitando que, no caso do Pará, o critério de área inferior a 200ha seja válido para circunscrever o campesinato; o número de estabelecimentos seria de 193.453, ou seja 93,7% do total dos estabelecimentos paraenses, cobrindo 7.162.289 ha, ou seja 31,8% do total da área desses estabelecimentos.”

A desigual distribuição do acesso à terra no país demonstrada pa estrutura fundiária, ainda que injusta, não informa se os proprietários de imóveis menores do que 50 hectares são camponeses ou não. Mesmo quando se constata, como a citação adiante, que a maior parte das famílias que habitam no campo e situam-se abaixo da linha da pobreza poderiam ser consideradas como camponesas, pois o fato de residirem no campo não as identifica como camponesas segundo a conceituação aqui empregada. Por exemplo, os assalariados permanentes e os temporários não são camponeses, a não ser que acumulem essas duas práticas sociais: camponês e ocasionalmente venda da força de trabalho.

“A estrutura fundiária brasileira caracteriza-se pela elevada concentração da propriedade da terra. Esta característica dá origem a relações econômicas, sociais, políticas e culturais cristalizadas em uma estrutura agrária inibidora do desenvolvimento, entendido este como: crescimento econômico, justiça social e extensão da cidadania democrática à população do campo. (Tabela 6)”

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“Essa estrutura agrária, herança de 500 anos de história, gera pobreza, desigualdade e exclusão no meio rural. Não obstante a modernização da agricultura brasileira nestes últimos 30 anos e o bom desempenho desse setor, tanto na conformação do PIB brasileiro quanto na balança comercial, a maior parte das famílias que habitam no campo situa-se abaixo da linha de pobreza.” (Proposta de PNRA, 2003: 5).

Tabela 6. – Estrutura Fundiária Brasileira - 2003Estratos de área

totalimóveis

% dos imóveis

área total % de área área média

Até 10 há 1.338.711 31,6 7.616.113 1,8 5,7De 10 a 25 há 1.102.999 26,0 18.985.869 4,5 17,2De 25 a 50 há 684.237 16,1 24.141.638 5,7 35,3

De 50 a 100 há 485.482 11,5 33.630.240 8,0 69,3De 100 a 500 há 482.677 11,4 100.216.200 23,8 207,6

De 500 a 1000 há 75.158 1,8 52.191.003 12,4 694,4De 1000 a 2000 ha 36.859 0,9 50.932.790 12,1 1.381,8

Mais de 2000 há 32.264 0,8 132.631.509 31,6 4.110,8 Total 4.238.421 100 420.345.382 100 99,2

Fonte dos dados: Cadastro do Incra – situação em agosto de 2003 Fonte da tabela: Proposta de Plano Nacional de Reforma Agrária, Brasília, outubro de 2003.

Se utilizarmos a categoria imóvel para delimitarmos empiricamente os camponeses seria impossível utilizar o estrato menos de 200 has, conforme sugerida por Hebette. Se adotarmos como limite máximo o estrato menos de 100 has teríamos um total de 3,6 milhões de imóveis supostamente ce camponeses, ou seja, 85,2 % do total dos imóveis. Segundo o Censo Agropecuário de 95/96 seriam estabelecimentos familiares um total de 4,14 milhões de estabelecimentos ocupando uma de 85,2% da área total de estabelecimentos do país. O MDA/SAF para o Plano de Safra 2003/2004 considera 4,1 milhões de “agricultores familiares”. Há, portanto, insuficiência empírica na quantificação do que aqui se denomina de campesinato.

3. Diversidade do campesinato

3.1. Multiplicidade de situações

Um total de 64,6% dos estabelecimentos considerados como “agricultura familiar” se localiza nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Nessas regiões, por diversos fatores históricos da sua formação, há uma grande diversidade de formas sociais de reprodução do campesinato.

Referindo-se a essa diversidade no Pará, Hebette (2004: 12-13), arrola as seguintes denominações ou autodenominações regionais: lavradores, agricultores, camponeses, ribeirinhos, varzeiros, quilombolas, extratores, posseiros, colonos, assentados, atingidos por barragem, catadores de babaçu, castanheiros, seringueiros, pescadores, catadores de caranguejos e catadores de siris. Outra denominações ou auto-denominações poderiam ser arroladas como quilombolas, quebradeiras de coco babaçu, fundos de pastos...

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Com relação aos pescadores artesanais, Maneschy (2003: 1) ressalta: “Os pescadores, pescadores-lavradores, ribeirinhos, lavradores e extrativistas no Pará e, por extensão, na Amazônia, partilham uma origem histórica comum que remonta à colonização e ao processo de desestruturação das populações indígenas, sua conversão no “índio genérico”, destribalizado, formador das populações rurais amazônicas.”

Almeida (2004: 3-4) ao analisar os novos padrões de relação política no campo e na cidade ressalta: “A nova estratégia do discurso dos movimentos sociais no campo, ao designar os sujeitos da ação, não aparece atrelada à conotação política que em décadas passadas estava associada principalmente ao termo camponês. Politiza-se aqueles termos e denominações de uso local. Seu uso cotidiano e difuso coaduna com a politização das realidades localizadas, isto é, os agentes sociais se erigem em sujeitos da ação ao adotarem como designação coletiva as denominações pelas quais se autodefinem e são representados na vida cotidiana (...) Tal multiplicidade de categorias cinde, portanto, com o monopólio político do significado dos termos camponês e trabalhador rural, que até então eram utilizados com prevalência por partidos políticos, pelo movimento sindical centralizado na CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) e pelas entidades confessionais (CPT, CIMI, ACR). Tal ruptura ocorre sem destituir o atributo político daquelas categorias de mobilização. As novas denominações que designam os movimentos e que espelham um conjunto de práticas organizativas, traduz transformações políticas mais profundas na capacidade de mobilização destes grupos face ao poder do Estado e em defesa de seus territórios (...)” (grifos no original)

“Em virtude disto é que se pode dizer que mais que uma estratégia de discurso tem-se o advento de categorias que se afirmam através de uma existência coletiva, politizando não apenas as nomeações da vida cotidiana, mas também práticas rotineiras no uso da terra. A complexidade de elementos identitários, próprios de autodenominações afirmativas de culturas e símbolos, que fazem da etnia um tipo organizacional (BARTH: 1969), foi trazida para o campo das relações políticas, verificando-se uma ruptura profunda com a atitude colonialista homogeneizante, que historicamente apagou diferenças étnicas e a diversidade cultural, diluindo-as em classificações que enfatizavam a subordinação dos “nativos”, “selvagens” e ágrafos ao conhecimento erudito do colonizador.”

“Não obstante diferentes planos de ação e de organização e de relações distintas com os aparelhos de poder, tais unidade de mobilização podem ser interpretadas como potencialmente tendendo a se constituir em forças sociais. Nesta ordem elas não representam apenas simples respostas a problemas localizados. Suas práticas alteram padrões tradicionais de relação política com os centros de poder e com as instâncias de legitimação, possibilitando a emergência de lideranças que prescindem dos que detém o poder local. Destaque-se, neste particular, que mesmo distantes da pretensão de serem movimentos para a tomada do poder político logram generalizar o localismo das reivindicações e mediante estas práticas de mobilização aumentam seu poder de barganha face ao governo e ao estado, deslocando os ‘mediadores tradicionais’ (grandes proprietários de terras, comerciantes de produtos extrativos-seringalistas, donos de castanhais e babaçuais). Deriva daí a ampliação das pautas reivindicatórias e a”. multiplicação das instâncias de interlocução dos movimentos sociais com os aparatos político-

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administrativos, sobretudo com os responsáveis pelas políticas agrárias e ambientais (já que não se pode dizer que exista uma política étnica bem delineada).”

Tudo leva a crer que parte significativa dessas categorias sociais, sejam elas autodenominadas sejam denominadas pelo outro, esteja de certa maneira contempladas sob nas estatísticas que identificam os estabelecimentos rurais. Isso não significa que essa diversidade de categorias sociais passíveis de serem envoltas pela expressão camponês.

Para evidenciar a complexidade dessa diversidade se apresenta a seguir alguns extratos de textos resultantes de estudos sobre o campesinato nas regiões Norte e Centro-Oeste do país.

3.2. O Campesinato Paraense14

Jean Hebette

Observações metodológicas preliminares

As reflexões sobre o campesinato constantes deste texto sofrem de evidentes limitações que requerem uma informação sobre as suas fontes e seus procedimentos analíticos.

Estas reflexões são baseadas em duas fontes principais e desiguais: por um lado, as fontes oficiais, principalmente as mais acessíveis e mais extensivas ao universo geográfico abordado – o Pará - e, por outro lado, as que resultam de minhas observações pessoais de muitos anos no Pará e na Amazônia em geral, que se dividem entre trabalho de pesquisa (a maior parte publicada em livros e revistas) e observações ocasionais acumuladas sem o mesmo rigor instrumental. Estes conhecimentos têm graus diversificados de precisão, uma vez que trabalhei, sobretudo, no sudeste paraense e na Bragantina paraense.

São conhecidas as limitações das informações, mesmo as das fontes mais úteis e de maior confiabilidade geral, como as do IBGE e, em certos casos, as do INCRA. Não precisa estender-se sobre estas limitações. Convém, entretanto, chamar a atenção sobre o uso feito das estatísticas do IBGE para falar do campesinato, uma categoria conceitual fundamental para este estudo, mas que é desconhecida do IBGE.

Em que nicho, ou em que gruta das tabelas, dos gráficos e dos mapas do IBGE se esconde o campesinato? Algumas tabelas do último Censo agropecuário – o de 1995-1996 – oferecem condições de cruzamento entre variáveis, como as categorias de condição do produtor, de grupo de atividade econômica e grupos de área total ou específica (colheita...), de tipo de produto, destino da produção. Um teste de cruzamento entre essas variáveis me levou a privilegiar, para circunscrever a categoria camponesa, a variável “área total do estabelecimento”, escolhendo como mais representativas do campesinato as áreas abaixo de 200 hectares. É para essas áreas que convergem, no caso do Pará, outras variáveis que conhecemos como mais típicas do campesinato paraense, tais como: importância das lavouras temporárias, uso limitado de insumos externos aos lotes, ausência de 14 O texto desta seção é constituído pela Primeira Parte do documento O Campesinato Paraense do estudo Agriculturas Camponesas Paraenses, elaborado por Jean Hebette (2004).

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equipamentos agrícolas ou outros utilitários como veículos, nível baixo da comercialização dos produtos.

Quem são os camponeses?

O modo de vida que, neste ensaio, será chamado camponês, e as populações que dele vivem, também chamadas camponesas, se oferecem ao nosso olhar mediante algumas características fundamentais. Os camponeses são produtores livres de dependência pessoal direta – são “autônomos”; sua sobrevivência de homens livres lhes impõe laços de solidariedade cuja quebra ou enfraquecimento ameaçam seu modo de vida; esses laços mais primários são os de parentesco e de vizinhança que os levam a procurar se agrupar em “comunidade”; a busca de sua permanência e reprodução numa mesma “terra” (ou no mesmo “terroir”, como se diz em francês), traduzidas como apego à terra, é a marca do sucesso de seu modo de vida e a fonte de seu cuidado com seu ambiente: A migração para ele é uma fatalidade, a expulsão, uma degradação inaceitável.

No Brasil, a palavra camponês desapareceu do léxico oficial; cheira o atraso do homem do campo. Desapareceu também do dicionário de muitos cientistas da agronomia e até das ciências sociais, pois o conhecimento do homem do campo postula do estudioso um trabalho persistente de campo. Lhe é preferida a expressão vaga e homogeneizadora de “agricultor familiar” cuja fácil identificação se reduz a algumas variáveis quantitativas de números de trabalhadores, familiares e exteriores à ela, e de quantidade de meses de trabalho externos ao grupo doméstico (ver a brilhante crítica de Delma Passanha). Esta opção metodológica adotada nas esferas oficiais facilita, evidentemente, a utilização da estatística graças a seu poder de homogeneização redutora de uma categoria social muito complexa e diversificada.

A raiz desta diversidade tem suas explicações, que, obviamente, não se encontram apenas nas predisposições e nas práticas das famílias que vamos analisar. Elas exigem a recomposição da história, das políticas públicas e, acima de tudo, na Amazônia, dessa complexa teia de relações entre as diversas categorias de exploradores da terra, que está embutida na história e nas políticas públicas. Estes aspectos serão examinados brevemente numa primeira parte deste trabalho; a secunda parte será dedicada ao exame de três situações típicas do Estado do Pará: o Oeste, o Sudeste, a Bragantina. [A segunda parte do estudo de Hebette não está aqui incluída].

O contexto contraditório do nascimento do campesinato paraense: um pouco de história

O campesinato sobrevive no Brasil em proporções e densidade muito diversificadas segundo as regiões e segundo suas modalidades. A referência ao campesinato sempre foi a referência à Europa continental Ocidental; é lá que os governos foram buscar os colonos quando findou o regime escravagista; estes se fixaram sobretudo no Sul e no Centro-Sul do país, regiões mais próximas da Europa em termos ambientais, onde deram origem a um campesinato original. Daqui em diante, o “tipo ideal brasileiro” do campesinato se tornou o

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campesinato do Sul e Centro-Sul. É esta referência que orientou todas as políticas públicas brasileiras para o campesinato --- quando houve!, inclusive as políticas recentes de colonização. O Norte ficou o refúgio dos camponeses atrasados, os “caboclos”.

Na Amazônia, quando o Estado do Maranhão e Grão-Pará era ainda distinto do Estado do Brasil, o progressista Marquês de Pombal, tentou criar também um campesinato. Nos idos de 1750, tentou aculturar como agricultores livres no Amapá e no Nordeste paraense colonos expulsos da praça forte de Mazagão, no Marrocos. Não teve êxito.

Na verdade o primeiro campesinato totalmente livre que surgiu e se manteve no Pará, foi formado pelos quilombolas que fugiram da escravidão, aos quais se juntaram, mais tarde, os rebeldes cabanos que escaparam do massacre pelas tropas legalistas do Império. Esperaram até o fim do século XX para ter algum reconhecimento público de sua identidade e de seu direito à terra duramente conquistada.

Vieram em Santarém homens do campo derrotados no sul do Estados Unidos na Guerra de Secessão. Nas proximidades de Belém, em Benevides, vieram alguns migrantes franceses denominados canadinos. Não persistiram e não formaram campesinato.

Foi uma grave seca que assolou todos os trópicos do mundo nos anos 1870, inclusive os sertões do Nordeste brasileiro, que arrancou de suas terras e do domínio de seus donos, levas de migrantes nordestinos que procuraram sua sobrevivência na Amazônia, região imune, por suas águas, ao flagelo. Muitos deles foram se escravizar no duro serviço dos seringais. Outros ficaram nas cercanias das cidades de Belém, penetrando para o leste do Pará, acompanhando uma ferrovia que progredia penosa e vagarosamente nas matas bragantinas. Estes foram os que criaram no Pará um primeiro campesinato denso, articulado, e de certa maneira próspero, considerando-se as outras categorias de trabalhadores. Um dado de importância fundamental para a constituição de um campesinato efetivamente autônomo na Bragantina, foi a alocação aos colonos de lotes de terra claramente delimitados pelo governo e de tamanho adequado a um tipo de exploração familiar (média de 30 ha).

A falta de delimitação oficial das terras camponesas nas áreas ribeirinhas da rede fluvial Amazônica manteve, muitas vezes, na dependência social dos grandes proprietários, as famílias que, por tradição secular ou por presença mais recente, moravam nas regiões banhadas pelo rio Amazonas e seus afluentes. As famílias donas de grandes fazendas, residentes no seu domínio rural ou na cidade ou ainda alternativamente num e na outra, donas também, geralmente de cargos políticos, de cartório, ou de comércio e de transporte exerciam e continuam exercendo sobre essas famílias camponesas diversas formas de pressão, de obrigações e de dominação.

As vias e as condições de transporte e de comunicação são de extrema importância para as populações rurais; geralmente, estas distâncias aumentam ou diminuem conforme a densidade da população. O fato de a colonização da Bragantina ter avançado ao ritmo da implantação de um ferrovia pública dos anos de 1880 a 1920, assim como o módulo de 30 ha para as terras das colônias, contribuiu bastante para a constituição de um campesinato relativamente denso, organizado em torno das estações do trem que se tornaram

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progressivamente centros de comércio e de serviços. A condição de serviço público da ferrovia, por outro lado, preservou as populações de uma dependência paternalista dos donos de empresas privadas. As populações ribeirinhas dos rios organizadas após a escravidão e reforçadas pela volta àquelas regiões dos seringueiros, não se beneficiaram das mesmas vantagens e permaneceram mais tempo na dependência dos grandes donos de terra.

Mas diferente foi o impacto sobre o campo das vias de comunicação quando deixaram de ser locais, ou simplesmente regionais. Foi o que aconteceu a partir do momento em que a indústria brasileira, aproveitando o parêntese da Segunda Guerra mundial, penetrou no ramo da construção automobilística que se ampliou nos anos de 1970 e 1980. Este interesse pela construção e/ou montagem de caminhões, carros e ônibus acompanhou-se necessariamente do desenvolvimento da rede rodoviária de dimensões nacionais. O Pará foi inicialmente afetado pela nova política de transporte com a construção da rodovia conhecida como Belém-Brasília que, nos anos de 1950 e 1960, penetrando nas bandas nordestinas do Estado, passou a interligar as duas capitais com fluxos de veículos crescentes à medida que a rodovia estava completando a sua infra-estrutura física e de serviços. Ela foi acompanhada pela implantação de um novo latifúndio madeireiro e pecuário mais dinâmico, empresarial e impessoal, que contrastava com o latifúndio paternalista dos tempos passados. Enquanto este novo latifúndio estava irrigado de generosos incentivos fiscais, o campesinato recebia apenas uma minguada assistência técnica. Marcou o início do enfraquecimento da colonização bragantina.

A implantação da rodovia Transamazônica no sentido leste-oeste nos anos 1970 teve, também, impacto profundo no Sudeste paraense, mas ela apresentava características diferentes. Primeiro, os objetivos básicos dessa implantação: tratava-se de povoar uma imensa parte do país de densidade populacional ínfima para despovoar outra parte – a do Nordeste – cujas densidades aumentavam o caráter potencialmente explosivo das contradições agrárias. Trazia no seu bojo o modelo rural supostamente integrador de atividades agropecuárias empresariais e camponesas, de desenvolvimento empresarial eficiente de latifúndios improdutivos concedidos pelo governo no Sul do Pará nos anos de 1950, e de um programa de colonização agrícola oficial.

O governo não contava com o potencial organizativo dos pequenos produtores que, desprezando os planos governamentais de organização colonizadora, procuravam sua autonomia, fugindo do cativeiro da terra no Nordeste. O projeto de colonização ao longo da Transamazônica envolvia a transferência, do domínio estadual para a jurisdição federal, das terras cortadas pela rodovia, com a conseqüência da montagem de um novo organismo governamental representando a União nas terras de colonização: uma forma autoritária de intervenção federal que retirava do governo estadual a competência em termos de infra-estrutura, educação, saúde, assistência técnica, crédito nas áreas de colonização, criando uma superpotência prepotente, o INCRA. Este autoritarismo, casado com uma prepotência que excluía o diálogo, estimulou a formação de um tipo de organização sindical particularmente forte respondendo à imposição pela imposição até que se chegasse a um princípio de diálogo.

Esta força sindicalista estava também estruturando-se no meio às populações tradicionais do Oeste Paraense, mais precisamente no raio de ação da cidade de Santarém,

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alastrando-se ao longo da Transamazônica e nos municípios do Baixo Amazonas. A influência do movimento sindical no Sudeste paraense foi determinante na construção de um “novo campesinato”.

Entretanto, este campesinato regional em formação, desprovido de um apoio competente dos governos estaduais e federal, sofria uma tremenda pressão dos novos latifundiários, estes apoiados pelo grande e médio capital, ele mesmo apoiado pelo estado. Hoje, salta aos olhos a estratégia tenaz de ocupação da Amazônia tanto denunciada, sem sucesso, pelos estudiosos da Amazônia, pesquisadores e jornalistas, desde 1970. Ela pode ser esquematizada, no Pará da maneira seguinte:

ocupação militar graças aos programas de infra-estrutura e de ocupação camponesa; ocupação empresarial de grande monta (mineração, indústria siderúrgica,

hidrelétrica...); penetração das matas pelos madeireiros e fazendeiros, na seguinte seqüência:

1º: desmatamento e pecuária extensiva (aliança madeireiras/pecuaristas) ao longo das grandes rodovias (Belém-Brasília, Transamazônica, PA 70 e 150), inclusive graças à mão de obra rural vinda do Nordeste brasileiro;

2º: desenvolvimento de uma pecuária moderna, principalmente no Sul e Sudeste paraenses;

3º: introdução da soja, principalmente ao longo do traçado da rodovia Cuibá-Santarém (fase atual).

Estas estratégias repousam numa visão de médio e longo prazo e têm uma grande coerência interna tipicamente capitalista. Ela se sintetizava no projeto do Grande Carajás, o Carajazão, de Delfim Netto, que, já em 1980, previa “800 mil hectares de soja plantados” e, isto, “apesar da inexistência de resultados definitivos que possam fundamentar a introdução da cultura” (boletim Relatório reservado, de novembro de 1980). A Embrapa encarregar-se-ia de adaptar a soja aos ecossistemas amazônicos ‘transgenicados’ e a miséria rural encarregar-se-ia de fornecer uma mão-de-obra semi-escrava para a realização dos planos ‘delfinicos’.

Neste quadro megalomânico e desumano, conseguiu-se nascer e se organizar o que já chamei “um novo campesinato paraense” (Sudeste paraense e transamazônico de terra firme) e começar a se organizar um campesinato de tradição ribeirinho-varzeira de matiz ambiental (ao longo do rio Amazonas): dois tipos originais de campesinato brasileiro totalmente desconhecidos fora da região.

O Pará camponês e seu entorno

Segundo o Censo de 2000, o Estado do Pará mede 1.227.530 km2; a população, em 2000, se elevava a apenas 6.192.307 habitantes, representando uma densidade populacional muito abaixo da dos Estados mais ao sul (5 hab/km2) - número este geralmente interpretado como negativo e como sinal de subdesenvolvimento. A presença e o modo de vida das populações indígenas e do campesinato testemunham que não é bem assim.

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Esta população paraense está distribuída de uma maneira desigual: 33% dela reside na região metropolitana de Belém, área considerada pelo IBGE como quase totalmente “urbana”; além desta área metropolitana, somente três cidades têm mais de 100.000 habitantes (Santarém, Castanhal e Marabá). A população designada pelo IBGE como ”rural”, por sua vez, representa 33,5% do total paraense. Onde estão os outros 33%? No “campo” e em sedes de municípios indevidamente chamadas “urbanos”, mas que são na realidade pequenos centros rurais de serviços (de 20 a 50.000 habitantes, entre os quais muitos agricultores).

A área dos estabelecimentos agropecuários calculada pelo Censo Agropecuário de 1995-96 era de 22.520.229 ha (18,35% do Estado), sendo que a área dos 193.453 estabelecimentos de menos de 200 ha somava 7.162.291 há (32% deste total), enquanto 158 estabelecimentos de mais de 10.000 ou mais ha cobriam, na época do censo, 5.369.196 ha, ou seja, 23,8% da área total dos estabelecimentos! E o resto do espaço estadual? Ele se dividia entre “reservas” de diferente natureza (mineração, remansos de barragens para hidrelétricas, áreas de titulação irregular etc,) num total de 40 milhões de hectares. Além destas áreas inacessíveis à população em geral, há áreas acessíveis para uma população reduzida devido às normas de conservação, notadamente as florestas nacionais, os parques nacionais, as reservas extrativas e as reservas biológicas que soma um total 46,53 milhões de hectares. As terras indígenas somam um total, no Estado do Pará, de 27, 67 milhões de hectares. Como terras de uso restrito (áreas da aeronáutica e outras) tem-se 31,4 milhões de hectares.

O espaço camponês paraense

O que representava, em 2000, o campesinato no conjunto desta população paraense?

O Censo demográfico não nos informa a este respeito, e nem em relação às populações indígenas. Com certeza, ela população camponesa não se mede pela população rural, porque, primeiro, nem toda a população rural é camponesa, e, segundo, há muitos camponeses recenseados como “urbanos” nas cidades do interior. Deve-se, portanto, utilizar outras referências que o trabalho de campo permite identificar, cruzando diversas “variáveis”; entre elas, por exemplo, a dimensão da terra do estabelecimento, o tipo de produtos, as tecnologias usadas, os equipamentos disponíveis. Cada uma destas variáveis devendo ser considerada dentro do contexto sóciocultural e tecnológico da região e inter-relacionadas, nenhuma delas sendo significativa isoladamente.

O teste pragmático de representatividade da identidade camponesa experimentado, no contexto paraense e com base em dados disponíveis, resultou na escolha da variável tamanho da terra como a mais satisfatória – não em si, mas dentro do contexto paraense e em confronto com a nossa experiência de campo.

Esta informação, infelizmente, só é disponível no último Censo Agropecuário, defasado em quase 10 anos, o que é muito, considerando-se o dinamismo demográfico da região Norte, cuja população cresceu, de 1960 a 2000, a uma taxa anual de 2,86% (de longe a maior de todas as regiões do país), sendo a taxa de crescimento “urbano” de 4,82%, bem mais ainda do que a taxa das outras regiões, enquanto a população rural baixava de 0,62%,

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de longe, a menor de todas as regiões) (IBGE, 2000, p. 31). Além desta limitação, deve-se levar ainda em conta a imprecisão e a confiabilidade limitada de alguns dados dos censos, particularmente em contexto amazônico. Apesar destas restrições, são os dados daquele censo que nos foi possível utilizar.

A grande tendência da evolução da agropecuária camponesa paraense

O Censo Agropecuário dá uma idéia aproximativa da tendência de crescimento em termos de estabelecimentos e de pessoas na agropecuária do Estado. Para efeito de comparação foram adotados como início do período os anos de 1960 que caracterizam a abertura da fronteira amazônica, e como final do período o ano de 1995, ano do último Censo Agropecuário.

Como dito acima, o Censo de 1995-96 registrou uma área de 22.520. 229 ha (18,35% do Estado) pertencentes a 206.404 estabelecimentos agropecuários, incluindo lavouras, pastagens, florestas, pesca e áreas não utilizadas.

A Tabela 7 mostra a evolução do número de estabelecimentos daqui em diante considerados representativos do campesinato e a Tabela 8, a evolução das áreas daqueles estabelecimentos, com seus respectivos percentuais em relação ao total da agropecuária paraense.

Essas tabelas mostram que, ao longo do período, o número relativo (%) de estabelecimentos aqui considerados camponeses se manteve no nível de 92-93% do total, e o volume da área em torno de 31-33%, confirmando a enorme concentração da terra.

O número de estabelecimentos camponeses aumentou muito menos do que os das outras categorias, pelo menos se incluir na comparação um grande número de estabelecimentos sem declaração no Censo de 1960; pode-se, inclusive, conjeturar que estes estabelecimentos omitidos eram precisamente os maiores.

Tabela 7 . Evolução do número de estabelecimentos agropecuários por grupos de área total dos estabelecimentos. Pará 1960-1996

Área (ha)

1 9 6 0 1 9 9 6∆% (b/a)Nº de

estab. (a)

%Nº de estab.

(b)%

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< 1010 a < 100100 a < 200Subtota l

200 a < 10.00010.000 e maisSubtotal

Sem declaração

Total

34.77039.040 3.05476.864

3.306 333.339

2.977

83.180

41,8046,933,67

92,41

3,980,03 4,01

3.58

100%

64.838104.435 24.180193.453

12.584 16212.746

205

206.404

31.4150.6011.7293,72

6,100,086.18

0,10

100%

86167692152

280391282

-94

148%

Fonte: IBGE. Censo Agropecuário 1995-1997. Pará. Tabela 1

Tabela 8. Evolução da Área dos Estabelecimentos Agropecuários por Grupos de área total dos estabelecimentos. Pará 1960-1996

Área (ha)

1 9 6 0 1 9 9 6 ∆% (b/a)Nº estab.

(a) %Nº estab.

(b) %

<1010 a < 100100 a < 200 Subtotal

200 a < 10.000

10.000 e maisSubtotal

Total

131.2941.215.059 415.3411,761.694

2.542.902

948.6763.491.578

5.253.272

2,50 23,13 7,90 33,53

48,41

18,0666,47

100%

210.4174.117.7452.834.1297.162.291

9.988.743

5.369.196 15.357.939

22.520.230

0,9318,2812,58 31,78

44,36

23,84 68,20

100%

60229582 307

293

566 340

324

No que se refere ao campesinato, aumentou muito o número de estabelecimentos na faixa entre 100 e menos na faixa de 200 hectares, o que se deve, pode-se acreditar, ao módulo de 100 hectares fixado inicialmente pelo INCRA na época da colonização oficial. Está faixa representa os 12% de camponeses, mas dotados de terra. Em sentido contrário, os minifúndios tenderam a declinar. O forte do campesinato e sua maior tendência ao crescimento estão, entretanto, na faixa intermediária de 10 a menos de 100 hectares.

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Quantos são, finalmente, embora aproximativamente, os estabelecimentos camponeses do Pará?

Aceitando que, no caso do Pará, o critério de área inferior a 200 ha seja válido para circunscrever o campesinato; o número de estabelecimentos seria de 193.453, ou seja, 93,7% do total dos estabelecimentos paraenses, cobrindo 7.162.289 ha, ou seja 31,8% do total da área desses estabelecimentos.

3.3. Os pescadores de pequena escala no Pará15

Maria Cristina Maneschy

“O Estado do Pará tem grande parcela de sua população vivendo no meio rural ou dele dependendo para obter seus meios de vida. Parte significativa dos que residem nas pequenas e médias cidades do Estado trabalha no campo, de maneira exclusiva ou parcial. Neste Estado, como aliás na região como um todo, as águas ocupam lugar de destaque e, nesse contexto, a pesca sobressai como atividade produtiva. Com seus dois segmentos - artesanal e industrial, conforme a terminologia oficial – o Pará é o maior produtor de pescado do país, tendo suplantado o Estado de Santa Catarina, tradicional pólo pesqueiro do Brasil.

Os pescadores artesanais que, em sua maioria, são pescadores de pequena escala, podem ser considerados como parte do campesinato, por compartilharem um conjunto de características com os camponeses de base agrícola. Ademais, as categorias ‘pescadores’ e ‘agricultores’ não raramente se confundem, embora menos hoje do que em um passado não muito distante. Os mesmos produtores que exercem a pesca, podem exercer a agricultura ou, ainda, diversos tipos de extrativismo. Nesses casos, a identificação profissional com a pesca ou a agricultura - feita por exemplo para inscrição no sindicato e para requisitar direitos vinculados ao estatuto profissional – pode ocorrer por fatores diversos, como o tempo de dedicação a uma ou outra, ou o seu grau de contribuição para o orçamento doméstico. Há que se considerar, também, que por vezes a participação das famílias nas atividades em terra e nas águas obedecerá a um padrão de divisão do trabalho por sexo e por idade. Assim, conforme o lugar, podem-se encontrar famílias em que os homens pescam e as mulheres trabalham regularmente na roça, podendo praticar pesca de beira e realizar tarefas complementares à pesca dos parentes. Em outros casos, os homens podem pescar e trabalhar na terra e as mulheres na terra e no beneficiamento de mariscos.

Há, portanto, muitas situações em que pescadores e agricultores se confundem. Mas há, também, uma grande proporção de pescadores, dedicando-se integralmente às lides pesqueiras, o que é comum nas cidades portuárias. De todo modo, a despeito da importância da pesca nesta região, importância econômica e social, vale ainda lembrar que não se trata de uma região de “grande tradição” pesqueira, como ocorre em certos países costeiros, capaz de conformar padrões culturais absolutamente distintos entre as 15 Esta seção é constituída por extratos do documento Diversidade camponesa: os pescadores de pequena escala no Estado do Pará, de Maria Cristina Maneschy (2003).

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comunidades de pesca, notadamente as marítimas, e as comunidades terrestres. Os pescadores, pescadores-lavradores, ribeirinhos, lavradores e extrativistas no Pará e, por extensão, na Amazônia, partilham uma origem histórica comum que remonta à colonização e ao processo de desestruturação das populações indígenas, sua conversão no “índio genérico”, destribalizado, formador das populações rurais amazônicas.

Evidentemente, a partir de meados do século XX, com as políticas de crescimento econômico e de ‘integração’ regional por meio dos grandes eixos rodoviários, a ocupação das terras firmes distantes dos cursos dos grandes rios provocou mudanças no perfil demográfico e cultural. Assim como levas de migrantes assentados ao longo das rodovias especializaram-se nas atividades agrícolas, também levas de antigos pescadores-lavradores dirigiram-se para cidades e se especializaram na pesca.

Os pescadores artesanais ou de pequena escala, exclusivos ou não, são aqui considerados como parte do campesinato, como já referido, pois partilham características - e, também, problemas para sua reprodução social – com os camponeses de base agrícola. Dentre essas características destaca-se a condição de produtores autônomos, a importância da família na produção, que pode se dar na composição das unidades de trabalho – tripulações – ou na realização de tarefas pré e pós-captura, quando as mulheres ou filhas de pescadores ocupam-se do conserto ou confecção de instrumentos de pesca (notadamente as redes) e beneficiam o produto trazido pelos parentes. A proximidade de interesses de ambas as categorias evidencia-se no fato de que participam de mobilizações em conjunto, como é o caso dos Gritos da Terra, quando pressionam por políticas de apoio, reconhecimento e direitos.” (Mareschy, 2003: 1-2)

“(...) A despeito da importância indiscutível do setor pesqueiro na região, do ponto de vista econômico e social permanece a grande carência de estudos sistemáticos sobre suas características básicas, formas de organização e problemas vivenciados dia a dia pelos pescadores e pelas comunidades pesqueiras em geral. A falta de estatísticas sobre o contingente humano envolvido tem sido observada em vários estudos, não somente no Pará, como em outras regiões do país, como analisou Diegues (1995). A ausência de dados ou políticas setoriais consistentes são expressões do lugar secundário com que a atividade ainda é vista na região.

Os pescadores exploram diversos ambientes. O Estado do Pará oferece possibilidades de pesca marítima, costeira (nas praias, nas águas ao largo, sobre bancos de areia, nas baías...), fluvial (ao longo dos rios, cabeceiras ou foz de rios e igarapés), pesca lacustre (com destaque para os lagos do Baixo Amazonas, da ilha de Marajó e o lago de Tucuruí) e, ainda, nos manguezais da costa. Os que executam pescarias móveis podem efetuar grandes deslocamentos, chegando mesmo aos estados vizinhos. Os deslocamentos podem estar se modificando tanto por fatores ambientais quanto pela escassez decorrente de acentuada pressão sobre os estoques e a ausência de medidas sistemáticas de manejo pesqueiro, obrigando os pescadores a procurar pesqueiros (locais de pesca) mais distantes.

Há, portanto, modalidades bastante diferentes de pesca no Estado, que requerem disponibilidade de meios de trabalho, de tempo e de mão-de-obra, muito diferentes. No que diz respeito a medidas concretas de apoio à categoria, tais diferenças devem ser levadas em

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conta. De acordo com o dirigente de uma associação de pescadores no município de Porto de Moz, em entrevista no ano de 2000, as especificidades locais devem ser consideradas inclusive nas pesquisas aplicadas.

“... Tocantins é diferente do Xingu, diferente do Tapajós, do Amazonas, do Salgado [zona costeira]; então, seria [preciso] insistir nessas pesquisas por região, certo, pra poder ter um crescimento de conhecimento, porque cada região tem o seu conhecimento, tem a sua cultura, tem o seu jeito de trabalhar. Então, aí vai ser difícil traçar uma política única, por exemplo, que é feita para o Salgado, que dá certo, mas no Baixo Amazonas não dá. Se foi um política lá no Tocantins, lá tem um sistema diferente do Xingu. Então é isso que eu falo da questão de uma política assim voltada (...) Com relação ao estudo eu me refiro que o governo tem os seus órgãos de pesquisa, então é necessário liberar mais recursos para os órgãos de pesquisas, pra poderem fazer essas pesquisas aqui na região”. 16 (Mareschy, op. cit.: 6-7)

“(...) Uma categoria de pescadores numericamente importante no litoral é composta pelos “tiradores” de caranguejos, que atuam nos exuberantes manguezais da área.17 É uma categoria cuja formação é relativamente recente, pois decorreu do incentivo à comercialização trazido pelas estradas, a partir dos anos 1970. Há indícios de que ela vem crescendo numericamente. SILVA (2004) observou um acréscimo no número de pessoas nessa atividade nos últimos cinco anos, que teria ocorrido pela “falha” (diminuição) de peixes de maior valor comercial na região costeira.

Os tiradores estão inseridos na categoria mais ampla de pescadores, mas apresentam particularidades. O grau em que dependem da “tiração” como fonte de renda varia conforme o local. Em pesquisa de campo em 1990 no município de São Caetano de Odivelas sobre os tiradores de caranguejos, MANESCHY (1993) verificou grande número deles atuando somente nessa atividade, sobretudo no caso dos residentes na cidade. Eles entremeavam a tiração eventualmente com a pesca em rios ou com serviços (por exemplo, capinação de ruas). Já no caso de povoados, era mais comum encontrar tiradores que eram também agricultores.” (Maneschy, p. cit.: 16)

3.4. Territorialidades tradicionais e perspectivas de sustentabilidade nos cerrados18

Carlos Eduardo Mazzeto da Silva

16 Sr. Pedro Maciel, então presidente da Associação de Pescadores Artesanais de Porto de Moz (ASPA). Entrevista concedida a Ana Laíde Barbosa, coordenadora regional do Conselho Pastoral de Pescadores.17 Ainda que não se trate de determinismo ambiental, compreender a presença desses trabalhadores implica considerar a grande extensão dos manguezais ao longo da costa paraense e dos estados vizinhos: “A costa brasileira possui uma das maiores áreas contínuas de manguezal do mundo, em torno de 1,38 milhões de hectares, cuja vegetação apresenta sua maior exuberância nas latitudes próximas à linha do Equador, no litoral amazônico...”. Fonte: FERNANDES, M. E. B. (org.) Os manguezais da costa norte brasileira. Maranhão, Fundação Rio Bacanga, 2003. (Prefácio) No Pará, os manguezais ocupam 4.500 km2 (conforme PAIVA, 1981, apud SUDEPE, 1988), correspondendo a cerca de 1/5 dos manguezais do país.18 Esta seção é constituída pela Parte II – Territórios tradicionais e a perspectiva da sustentabilidade dos cerrados, do documento Conhecimento Local e Sustentabilidade: lugares e saberes das ruralidades não-modernas dos cerrados, de Carlos Eduardo Mazzeto da Silva (2002).

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Introdução

Os Cerrados se constituem no segundo maior bioma brasileiro após a Floresta Amazônica, ocupando praticamente um quarto do território brasileiro (Figura I) - equivalente, por exemplo, à área da Europa ocidental -, presente em 13 unidades federativas do Brasil19, e abrigando um rico patrimônio de recursos naturais renováveis adaptados às duras condições climáticas, edáficas e hídricas que determinam sua própria existência. Mesmo se identificando na denominação internacional de savanas, os Cerrados são uma formação única no mundo, só presente em nosso território.

A dimensão da biodiversidade dos Cerrados ainda não está completamente conhecida. Estimativas apontam para a existência de mais de 6.000 espécies só de árvores. Dias (1996) ressalta no universo vegetal dos Cerrados, 14 grupos de plantas úteis: forrageiras, madeireiras, alimentícias, condimentares, têxteis, corticeiras, taníferas, com exudatos no tronco, produtoras de óleo, medicinais, ornamentais, empregadas no artesanato, apícolas e aparentadas de cultivos comerciais.

As estimativas sobre a diversidade de espécies animais se encontra no quadro 3.

Quadro 3 – Estimativa de número de espécies de répteis, anfíbios, mamíferos e aves do Cerrado

Tipo de animal Número de espéciesRépteis (Cerrado) 180Répteis (Pantanal) 113Anfíbios (Cerrado) 113Aves (Cerrado) 837Mamíferos (Cerrado) 195Mamíferos (Pantanal) 132

Fonte: WWF, 2000 a partir de dados de Marinho Filho, 1998 e Cardoso, 1998.

Quadro I4 - Distribuição espacial primitiva dos diferentes tipos de ecossistemas da região dos CerradosTipo de ecossistema Área estimada

(1000 há) %

cerrados (estrito senso) 108.000 53,0campos de cerrado 23.600 11,6

Cerradões 16.900 8,3

19 Bahia (oeste e Chapada Diamantina), Ceará (enclaves nas Chapadas Araripe e Ibiapaba), Distrito Federal, Goiás, Maranhão (sul e leste), Mato Grosso (sul), Mato Grosso do Sul, Minas Gerais (centro-oeste, noroeste, parte do norte e nordeste e Serra do Espinhaço), Pará (enclaves no sudeste), Piauí (sudoeste e norte), Rondônia (área centro-leste), São Paulo (enclaves no centro-leste) e Tocantins (exceto extremo norte).

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campo úmido/pantanal 11.200 5,5matas de galeria 10.200 5,0

matas de interflúvio 10.200 5,0Carrascos 8.200 4,0

campo rupestre 5.100 2,5campo litólico 5.100 2,5vereda e brejo 5.100 2,5

Fonte: Dias, 1996

Essa grande biodiversidade se reflete também nas diferentes fisionomias que se abrigam sob o que chamamos de Cerrados. Na descrição de Dias:

“A região dos cerrados constitui-se num grande mosaico de paisagens naturais dominado por diferentes fisionomias de savanas estacionais sobre solos profundos e bem drenados das chapadas (os Cerrados), ocupando mais de 2/3 das terras, que são recortadas por estreitos corredores de florestas mesofíticas perenifólias ao longo dos rios (as matas de galeria) ladeados por savanas hiperestacionais de encosta (os campos úmidos) ou substituídos por brejos permanentes (as veredas). Esse padrão é interrompido por encraves de outras tipologias vegetais: savanas estacionais de altitude (os campos rupestres), savanas estacionais em solos rasos (os campos litólicos), florestas xeromórficas semidecíduas (os cerradões), florestas mesofíticas dos afloramentos calcários (as matas secas), florestas mesofíticas de planalto (as matas de interflúvio), savanas hiperestacionais aluviais com murunduns (os pantanais), florestas baixas xeromórficas decíduas em solos arenosos (os carrascos), além dos ambientes diferenciados associados às cavernas, lajedos, cachoeiras e lagoas” (Dias, 1996:17).

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Essas diferentes formações se distribuem pelo bioma, segundo Dias (a partir de dados de Azevedo e Adamoli), de acordo com o Quadro 4.

Calcula-se hoje que cerca de dois terços das espécies presentes no planeta vivem nos trópicos (Dias, opus cit): metade no Novo Mundo (região neotropical) e metade no Velho Mundo. Cerca de metade da biota neotropical ocorre em território brasileiro, o que faz do Brasil o país detentor da maior parcela da biodiversidade mundial: cerca de 17% do total!

“Pela sua extensão territorial (25% do país), pela sua posição central (que propicia compartilhar espécies com quatro outras regiões), pela sua diversidade de tipologias vegetais (que abrigam cerca de 11 biotas distintas), e por conter trechos importantes das três maiores bacias hidrográficas brasileiras e sul-americanas, a região do cerrado potencialmente abriga

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aproximadamente um terço da biota brasileira, ou seja, cerca de 5% da fauna mundial.” (Dias, 1996: 20).

Este patrimônio biológico vem sendo rapidamente erradicado para dar lugar à ampliação da fronteira agrícola brasileira, com base num modelo de extensas monoculturas: grãos, cana, eucalipto, braquiarias, frutas, etc. Alguns autores afirmam que os Cerrados estão mais ameaçados que a Floresta Amazônica. Aliás, o processo de ampliação dessa fronteira sobre os Cerrados, teve como desculpa a proteção da Amazônia. Esse pensamento é ilustrado por depoimentos de cientistas, políticos, empresários e administradores, a começar, contraditoriamente, pelo mais renomado estudioso da ecologia dos Cerrados, Mário Guimarães Ferri:

“ ... os ecossistemas do Cerrado são, sem dúvida, menos frágeis que os da Amazônia. Melhor, pois, começar a exploração agropecuária no Cerrado. Enquanto isso, podem-se desenvolver pesquisas que nos ensinem como utilizar de modo racional a Amazônia, sem que ela venha a sofrer os mesmos riscos de hoje. Assim, poderemos usufruir de suas riquezas e ao mesmo tempo preservar, para as gerações futuras, esse inestimável patrimônio que nos legou a Natureza” (Ferri, 1979: 55).

Ribeiro registra a mesma lógica na fala de Paulo Afonso Romano, presidente da CAMPO, em 1985 - empresa binacional (Brasil-Japão) responsável, na época, pela coordenação de um dos programas de desenvolvimento do Cerrado:

“Prossegue a ocupação da Região Amazônica, porém em solos selecionados, pois ainda persistem condições precárias de infra-estrutura, riscos ecológicos e escasso conhecimento científico e tecnológico para ampla utilização dos recursos amazônicos. O bom senso de atrair maior atenção para os cerrados, enquanto se amadurece a solução amazônica, deve ser considerado como uma histórica correção de rumos na busca de novas regiões agrícolas” (Romano, 1985, citado por Ribeiro, 1997a: 4).

O processo de ocupação dos cerrados pelas monoculturas, não atingiu apenas a biodiversidade vegetal e animal, mas também a diversidade etno-cultural. Não foram “lugares vazios” que cederam espaço para as monoculturas. Comunidades indígenas e camponesas (negras e mestiças) habitavam e habitam vários lugares deste vasto espaço. Vale ressaltar que em 1960 – ano de inauguração de Brasília –, havia já na região dos Cerrados cerca de 11 milhões de habitantes, sendo 64% de desse total (7 milhões habitantes) constituído de população rural (Brito, 1980: 275).

As ocupações pré-modernas dos Cerrados e seus saberes

Estudos arqueológicos registram a mais antiga ocupação no cerrado há cerca de 11.000 anos, ligada ao que esses estudiosos chamam de tradição Itaparica (Barbosa, e

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Nascimento, 1993): povos caçadores e coletores que se aproveitavam da diversidade de ecossistemas e espécies úteis que o cerrado oferecia. A tradição Itaparica teve seu clímax ao redor de 10.000 A.P. e parece ter terminado bruscamente a partir de 8.500 A. P. “quando se iniciou uma nova tendência para a especialização à caça de animais de pequeno porte e à coleta de moluscos” (Barbosa e Nascimento, 1993: 168). Esta tradição, juntamente com outras duas (Una e Aratu/Sapucaí), está associada aos grupos indígenas do grupo lingüístico Macro Gê, herdeiros de uma longa tradição de povos primitivos habitantes dos Cerrados (Ribeiro, 1997a). Segundo ainda Ribeiro, os principais povos indígenas que habitaram os Cerrados mineiros se distribuem em três famílias deste tronco lingüístico: Bororo, Cariri e Jê (línguas Akuen e Kayapó).

A riqueza do conhecimento desses povos no manejo dos ecossistemas é

exemplarmente ilustrada pela pesquisa realizada por Darrel Posey e Anthony Anderson com os Kayapó no sul do Pará – região de transição entre os Cerrados e a Floresta Amazônica. Esses pesquisadores registraram na aldeia de Gorotire, roças com alto nível de agrobiodiversidade - média de 58 espécies de plantas por roça. Identificaram, por exemplo, 17 variedades de mandioca e 33 de batata-doce, inhame e taioba que se distribuíam no espaço, de acordo com pequenas variações microclimáticas. Observaram que o modo como os índios alteram a estrutura das roças ao longo do tempo parece seguir um modelo que se baseia na própria sucessão natural dos tipos de vegetação: das espécies de baixo porte e vida curta, até as espécies florestais de grande porte (hoje esse método é chamado de agroflorestação). Eles distinguem e nomeiam os tipos diferentes de cerrados: desde os campos limpos (kapôt kein) até os cerradões (kapôt kumernx). Nos campos de cerrado próximos à aldeia Gorotire aparecem “ilhas” (apêtê) de vegetação lenhosa (nos cerrados, em geral a vegetação lenhosa aparece dispersa). Os pesquisadores registraram e inventariaram 120 espécies em um desses campos de cerrado “adensados”, sendo 90 delas plantadas. Os usos eram diversos como: medicinal, atrativo para caça, alimento, lenha, adubo, sombra, etc. Os pesquisadores procuraram demonstrar que, ao contrário do que os cientistas vinham afirmando até então, o fogo não era a única forma de manejo praticada em áreas de cerrado por grupos indígenas. Os Kayapó tem papel ativo na formação de ilhas de vegetação no cerrado, formação essa que engloba vários processos e etapas: preparação de pilhas de adubo composto com material vegetal, maceração do material após seu apodrecimento, escolha de local com alguma depressão para colocar o adubo (às vezes misturado com pedaços de ninho de formiga – mrum kudjá – para que não haja ataque de cupins aos plantios), plantio das primeiras espécies na estação seca (junho a novembro). Os Kayapó reconhecem vários tipos de apêtê conforme o tamanho, a configuração e a composição que apresentam. Reconhecem ainda várias zonas ecológicas nos apêtê maiores, relacionadas com a maior ou menor incidência da luz solar. A pesquisa detectou ainda a forma de uso do fogo nos campos cerrados que apresenta uma série de sutilezas relacionadas à observação, por exemplo, da época em que os botões florais dos pequizeiros já estão desenvolvidos e à proteção dos apêtê com aceiros. Ela revelou ainda que os Kaiapó têm profunda influência sobre a estrutura e a composição dos cerrados que cercam a aldeia de Gorotire. Os autores afirmam ainda:

“Há indícios de antigas aldeias Kayapó espalhadas por toda imensa área entre os rios Araguaia e Tapajós, e é provável que outros povos – como os Xavante, Canela, Gavião, Xifrin e Apinajé – tenham praticado formas

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semelhantes de manejo em áreas de cerrado, aumentando assim a influência indígena nesse ambiente...... Tal constatação nos leva a uma conclusão: muitos dos ecossistemas tropicais até agora considerados ‘naturais’ podem ter sido, de fato, profundamente moldados por populações indígenas” (Anderson e Posey, 1987: 50)

Os Kraô, outro povo do tronco Macro-Gê, tem tido seu conhecimento tradicional sobre o cerrado pesquisado. Este povo vive hoje numa reserva de 350.000 ha no estado de Tocantins. Levantamento recente, realizado por um grupo de pesquisadores da UNIFESF (Universidade Federal de São Paulo), identificou 138 plantas medicinais utilizadas pelos Kraô. De acordo com matéria publicada na Folha de São Paulo, em 13/08/02, o estudo, iniciado em 1999, estava sendo considerado modelo por contemplar o pagamento de royalties ao povo indígena. Entretanto, ele foi paralisado em 2001, pela dificuldade de definir quem poderia atuar como representante legal dos índios e pela existência de um conflito legal entre o funcionário da FUNAI e a equipe de pesquisadores. O episódio demonstra o potencial de conflito que permeia hoje a questão da biodiversidade, propulsora de um confronto entre o conhecimento tradicional e os chamados direitos de propriedade intelectual.

Camponeses: os herdeiros dos saberes

O conhecimento dos povos indígenas do tronco Macro-Gê se transmitiu, em grande parte, para a “sociedade sertaneja” que se alojou nos cerrados. Ribeiro (1997b) realizou uma pesquisa sobe o relato dos viajantes pelo sertão mineiro20 na primeira metade do século XIX e afirma ao final de seu texto:

“Esses estudos arqueológicos apontam assim, uma linha de transmissão de traços culturais entre antigas populações do Cerrado e os povos indígenas ali encontrados pelos portugueses, principalmente no que se refere ao uso dos recursos naturais daquele bioma. Nesse processo, não só se adaptaram àquele meio ambiente, como também aturam sobre ele transformando-o através de diversas técnicas de manejo. Conforme procurei ressaltar, parte desse patrimônio cultural foi incorporado pelos sertanejos, sucessores daqueles povos indígenas na área do Cerrado.” (Ribeiro, 1997b)

Esse patrimônio, apontado por Ribeiro, foi absorvido, de uma forma ou de outra, pelos atores dos dois principais modelos de ocupação do sertão: o latifúndio do gado e as comunidades camponesas. Estas últimas, em função da necessidade e de uma relação menos mercantil com os cerrados (sistemas baseados na subsistência), conseguiram manter e talvez ampliar o conhecimento indígena de uso de plantas e animais do Cerrado, conservando e, ao mesmo tempo recriando, as práticas extrativistas oriundas dos povos indígenas.

20 O sertão, marcante na obra de Guimarães Rosa, não tem uma definição precisa, estando relacionado à noção de “interior”, “desconhecido”, “pouco habitado”, “locais distantes”. O sertão mineiro inclui predominante áreas de cerrado, mas também porções de caatinga e as transições entre um e outro presentes na região norte de Minas (Ribeiro, 1997b).

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Esse fato é corroborado por diversos estudos recentes, como a dissertação de mestrado de Flávia Maria Galizoni (2.000) no alto Jequitinhonha, região particular dos cerrados mineiros, onde as chapadas se encontram com as serras do Complexo do Espinhaço e com o vale profundo do rio Jequitinhonha, gerando um mosaico de paisagens, meticulosamente exploradas pelas populações locais há cerca de 200 anos. Na primeira parte deste estudo, a autora descreve a relação das comunidades camponesas locais com a natureza, a lógica de uso dos recursos naturais e as normas e códigos de regulação e distribuição desses recursos. Os lavradores distinguem 3 tipos de ambiente básicos da região: cultura, catinga e campo. Essa estratificação determina e orienta a lógica espaço-temporal de apropriação da natureza. A cultura é o terreno fresco, localizado próximo aos cursos d’água (fundo de vale) ou nas grotas, ideais para o cultivo de mantimentos. Estão relacionados a uma determinada cobertura vegetal nativa de mata onde predominam espécies que denotam a fertilidade do terreno. As catingas geralmente se localizam nas cabeceiras dos córregos e nas vertentes, se constituem numa terra de fertilidade intermediária, onde são cultivadas lavouras mais rústicas como mandioca e abacaxi. Já o campo ou carrasco é o ambiente do cerrado mais típico, localizado nas partes mais altas da paisagem (chapadas e serras). São exploradas principalmente para solta do gado em comum e para o extrativismo de madeira, lenha, frutas e plantas medicinais.

As terras de cultura são manejadas com base na estratégia da roça de coivara e do pousio para recomposição da fertilidade. Essas terras são escassas na região o que exige uma atenção especial a elas e uma distribuição cuidadosa desse recurso precioso.

“A disposição do recurso fertilidade coloca para as famílias de lavradores um problema fundamental, que diz respeito ao estoque de terras disponíveis para a lavoura: as roças são feitas em sua maioria nas terras de cultura, mas esta é escassa. A forma pela qual as famílias resolveram esta questão foi conhecer, discriminar e usar; construíram comunitariamente técnicas de classificação intrinsecamente ligadas ao uso. Criadas a partir da escassez de um recurso – terra de cultura – são sistemas de produção maiores que uma resposta à escassez; são sistemas que incluem toda uma ordenação de uso do ambiente.” (Galizoni, 2.000: 11)

As roças são sempre um arranjo combinado de diversas espécies – milho, feijões, abóbora, guandu, quiabo, algodão. As roças de cana e mandioca são combinadas com outras apenas no plantio, permanecendo solteiras após a colheita das culturas plantadas entre as ruas que ordenam o seu plantio. As áreas em pousio recebem usos não agrícolas – coleta, caça, pastagens e reserva de recursos naturais.

“Na técnica de lavoura desenvolvida pelas famílias do alto Jequitinhonha, a manutenção da vegetação nativa é muito importante: a natureza é elemento constitutivo da roça. As famílias necessitam sempre de áreas com vegetação e cobertura vegetal para iniciar um novo ciclo de plantio. Por isso, é necessário deixar as áreas de lavoura enfaixinar por um período, descansar as terras do plantio para criar vegetação e, através deste processo, recuperar parcialmente sua fertilidade. O sistema de agricultura no alto Jequitinhonha é composto por um movimento pendular, onde numa extremidade localiza-se a natureza e no outro a lavoura. Tal qual um tabuleiro de xadrez assimétrico, o espaço nas

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comunidades rurais do alto Jequitinhonha é esquadrinhado, alternando mato e roça, lavoura, criação e extração.” (Galizoni, 2.000: 19)

A atividade de extrair recursos naturais da natureza é designada muito propriamente pelos lavradores locais como recursagem. Ela significa mais do que uma coleta aleatória, representa uma extração ordenada pressupõe um recurso ofertado pela natureza, mas adquirido pela intervenção humana. É um potencial da natureza recursado pelo conhecimento sistematizado e conjunto de técnicas da família, que está embasado numa classificação e discriminação do meio, passada de geração a geração. Um levantamento local, registrou 43 espécies só de frutas e palmitos coletados pelas famílias para alimentação, a maioria dos campos e chapadas. A riqueza da biodiversidade desse ambiente é ilustrado pela fala um agricultora local: “A gente passa o dia todo na chapada sem levar nada para alimentar, só com fruta do mato”. (Margarida, comunidade de Alegre in Galizoni, 2.000: 21). As frutas são usadas não só in natura para alimentação humana, mas também para produzir óleo comestível, fazer doces e compotas. A caça de animais e aves provê, com uma certa freqüência, as famílias de carne. Uma grande quantidade de plantas fornece sementes, casca e folhas para remédios e ungüentos. Além disso, a autora ressalta outros produtos da recursagem.

“Da natureza se retira toda a matéria-prima necessária para construir as casas, barros para fazer telhas, outros para fazer adobes (tijolo cru secado ao sol), argila tabatinga para pintura da casa, os fogões e fornos, madeira para travamento do telhado, para portas, janelas e para fabricar os móveis. Cordas são feitas de casca de embira, jacás e cestos são feitos de taquara e cangalhas de madeira. Há uma enormidade de ofertas que a natureza propicia par ao uso das famílias”. (Galizoni, 2.000: 21)

Ao contrário de uma exploração aleatória e desordenada, a autora argumenta que as comunidades rurais do alto Jequitinhonha desenvolveram normas de exploração desses recursos, que constituem formas de gestão comunitária das ofertas da natureza, baseados em critérios de sustentabilidade, mesmo que esse termo não faça parte do vocabulário local.

“As áreas de extração são regidas por códigos que combinam a necessidade das famílias e comunidades com o recurso em questão. Aqueles tidos como “renováveis”, os capins nativos e leguminosas para o gado, as plantas medicinais, frutos, lenha e caça são explorados comunitariamente, e o limite é o tanto de extração que a área comporta sem pressionar em demasia os recursos. Qualquer membro da comunidade – e só dela – pode caçar ou colher. Assim, cada família e grupo de vizinhança estabelece sua área de extração e coleta, que se torna muito rígida quando esses recursos escasseiam.” (Galizoni: 2.000: 22)

Assim, a regulação da extração e exploração dos recursos naturais tem esferas familiares e comunitárias e a propriedade familiar não veda o uso comunitário. Há uma mediação, portanto, entre propriedade e uso e entre terra e recurso ambiental. A primeira pode ser apropriada de forma individual, mas o segundo não. Nas trocas estabelecidas entre famílias e comunidades com a natureza, os dons cuja existência e reprodução não decorrem da intervenção humana, não podem ser apropriados de forma exclusivamente privativa; podem, isto sim, ser usados de forma privada.

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Já a dissertação de mestrado de Dayrell (1998) versa sobre o uso da biodiversidade

pelos geraizeiros do norte de Minas, moradores antigos dos vales encravados nas chapadas dos “topos do Espinhaço”, que dividem as bacias do São Francisco e do Jequitinhonha. Nessa região21, os cerrados se tocam com a caatinga, presente na vertente oeste do Espinhaço, bacia do São Francisco. O contraste de ambientes e de culturas fez com que o povo da caatinga (catingueiros) chamasse os agricultores da chapada (gerais) de geraizeiros. São duas identidades vizinhas, caracterizadas por territorialidades específicas, forjadas no processo de co-evolução entre o meio sócio-cultural e o meio natural.

O estudo de Dayrell constatou na práxis dos geraizeiros, estratégias que articulam roças e quintais diversificados nos vales, com extrativismo e solta do gado nas chapadas.

De 4 unidades produtivas pesquisadas com mais detalhe, o autor registrou:

quintais com até 26 espécies e até 73 variedades cultivadas; uma horta com 54 espécies e 67 variedades cultivadas; roças com até 6 espécies e 15 variedades; 13 variedades de cana numa só unidade produtiva; um total de 23 variedades de mandioca nas 4 unidades produtivas; extrativismo de até 78 espécies nativas do cerrado.

O saber dos geraizeiros no manejo dos recursos naturais é sintetizado na seguinte passagem da dissertação:

“Os agroecossistemas pesquisados têm em comum a produção baseada na maximização do aproveitamento dos recursos locais, das potencialidades das distintas unidades da paisagem e das especificidades dos agroambientes22. Desde as construções das habitações, das instalações agrícolas, equipamentos e instrumentos de trabalho até os utensílios domésticos, a maioria são fabricados ou construídos localmente. O barro, a madeira, os frutos (cabaça, por exemplo), as folhas, os cipós, são usados em profusão e com muita maestria”. (Dayrell, 1998 :134)

Na análise econômica realizada nas 4 unidades, a contribuição do extrativismo na produção bruta anual variou entre 23 a 42%!. Vale salientar que as comunidades pesquisadas enfrentam, desde a década de 70, o fechamento das áreas comuns de solta e extrativismo, provocado pela sua ocupação por firmas “reflorestadoras”, que tomaram as chapadas, consideradas terras devolutas e cedidas legalmente pela Ruralminas, órgão do governo de Minas Gerais, responsável na época, pelo destino e titulação dessas áreas. Dayrell afirma que os geraizeiros se constituem numa identidade de resistência em confronto com a modernidade – o confronto entre envolvimento local e desenvolvimento exógeno, entre o povo tradicional do lugar e os modernos de fora.

21 O estudo foi feito no município de Riacho dos Machados.22 O estudo mostra que os geraizeiros realizam uma estratificação dos ambientes, a partir de fatores como posição no relevo, tipo de solo, vegetação e usos possíveis. O autor registrou os seguintes ambientes: vazante, brejo, tabuleiro, chapada, carrasco, espigão e beira de lagoa.

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“Em Riacho dos Machados, o processo de modernização da agricultura foi orientado para atender o pólo guzeiro do estado de Minas Gerais, fornecendo o carvão vegetal demandado pelo setor sierúrgico.... Nas regiões de gerais, as conseqüências deste processo para os geraizeiros que não foram expulsos de imediato, foi a crescente desarticulação de suas estratégias produtivas, assentadas no aproveitamento das potencialidades dos distintos agroambientes onde a biodiversidade agrícola e da flora nativa cumpriam um papel fundamental. Esta desestruturação, percebida com clareza pelo conjunto dos geraizeiros entrevistados..... Nas regiões de gerais, o desmatamento generalizado da vegetação nativa e a implantação das monoculturas de eucalipto nas chapadas encurralaram os camponeses nas encostas e brejos remanescentes. Com os brejos secos, impedidos no acesso às áreas “de solta”, com a perda de inúmeras variedades tradicionais de milho e feijão, substituídas pelas variedades melhoradas ou híbridas (menos adaptadas aos estresses ambientais dos gerais), estes agricultores tiveram que reorientar suas estratégias produtivas, intensificando a cultura da mandioca ou da cana. O cultivo e o pastoreio mais intensivo de suas terras provocou um rápido processo de degradação dos solos e da vegetação nativa. Em substituição à criação de gado, os camponeses incrementaram a criação de aves e passaram a coletar mais intensivamente os frutos nativos das áreas dos cerrados remanescentes. A inviabilização dos seus agroecossistemas obrigou-os a conciliarem com o trabalho fora, seja como assalariados permanentes ou trabalhadores temporários. O empobrecimento foi visível e muitos se sujeitaram a receber cestas básicas distribuídas pelo governo federal, o que lhes acrescentava apenas um mínimo na dieta alimentar.

Nas regiões em que os agricultores resistiram ao cercamento de suas terras e à implantação no entorno de projetos de reflorestamento, mesmo não tendo acesso às políticas sociais, ou incorporando apenas parcialmente os pacotes tecnológicos da agricultura dita moderna, estes conseguiram um nível de produção suficiente para garantir a sua reprodução social. Mais ainda, ao manterem suas estratégias produtivas tradicionais, garantiram, subsidiariamente, a preservação do entorno ambiental, com alterações pouco significativas na dinâmica e no funcionamento dos ecossistemas.” (Dayrell, 1998: 145 e 147)

A pressão dos sistemas modernos sobre os sistemas camponeses é comum nos cerrados. Ela se configura num novo ordenamento fundiário e territorial: a modernidade ocupa as chapadas, transforma as terras comuns em privadas, confina os camponeses nos vales, erradica a biodiversidade, base do extrativismo, fecha o espaço da “solta” do gado. Seus sistemas ainda causam desequilíbrios hidrológicos que se manifestam de diversas formas: assoreamento das veredas e pequenos córregos; secamento de nascentes, brejos, lagoas e diminuição da vazão dos cursos d’água em função do abaixamento do lençol freático causado pela implantação de culturas de alto consumo hídrico (como o eucalipto) e pela utilização de irrigação com pivôs centrais, que faz a inversão do ciclo hidrológico natural: tira enormes quantidades de água dos lençóis subterrâneos e dos cursos d’água para levá-la às unidades mais altas da paisagem (chapadas) que antes cumpriam a função de

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áreas de recarga e que agora, ocupadas com as monoculturas irrigadas, se transformam em áreas de alto consumo hídrico, esgotadoras deste recurso.

O desprezo pelos camponeses e por seus saberes é uma das marcas do desenvolvimento nos cerrados. A fala de dois pesquisadores no V Simpósio sobre o Cerrado no final da década de 70 ilustra este fato:

“Nas regiões tropicais de solos pobres os sistemas mais conhecidos de utilização dos recursos naturais são o extrativismo e a agricultura itinerante. Esses sistemas, em geral, apenas produzem para as necessidades mínimas do agricultor e sua família. Não podem, por isso, contribuir para o desenvolvimento de uma região. A ocupação das novas áreas da Amazônia e do Cerrado deve ser feita com o propósito de contribuir para melhorar as condições de vida das populações rurais. Dentro deste princípio, não nos deve interessar o extrativismo, a agricultura itinerante nem qualquer outra modalidade de agricultura de baixa rentabilidade. Para se promover o desenvolvimento econômico de uma região com base na utilização da terra, a agricultura tem forçosamente de se orientar para a produção comercial de colheitas com boa aceitação nos mercados (Mosher, 1970). Como já disse anteriormente (Alvim, 1978), a única ‘vantagem aparente’ da agricultura de subsistência ou de baixa renda é a de esconder a pobreza no interior do país e reduzir o crescimento das favelas.” (Alvim e Silva, 1980: 155)

Essa pérola identifica o pensamento moderno/desenvolvimentista - no auge da euforia de sua ocupação dos cerrados - que, de fora do lugar, possui o conhecimento técnico sobre o que é melhor para o povo do lugar. Infelizmente, não conseguiu descobrir ainda como reduzir o crescimento das favelas – um mistério insondável para a racionalidade do desenvolvimento modernizante.

Também constatei este conflito entre sistemas modernos e camponeses em duas

comunidades do vale do Riachão23 que estudei na minha dissertação de mestrado (Mazzetto, 1999). Ali também, a monocultura do eucalipto contorna as comunidades camponesas e 8 pivôs centrais sugam as águas das cabeceiras do rio, que já não corre mais na estação seca, deixando as comunidades desabastecidas. O caso já foi até capa da revista Globo Rural (dezembro de 1998) que retratou o conflito na matéria “O Pivô da Discórdia”. O caso simboliza também o fracasso do poder regulador do estado, que, com todo o aparato da nova legislação de recursos hídricos, não foi capaz até hoje de resolver a questão, o que só é possível com a paralisação ou redução substantiva da irrigação24.

O estudo abrangeu 22 unidades produtivas com tamanho entre 3,0 e 62,0 ha (média de 28,5 ha). Nesse lugar, o povo, apesar de se perceber no Gerais, se identifica como sertanejo; não há o convívio contrastante com os catingueiros. Os camponeses identificam

23 O Riachão é um rio da bacia do São Francisco que no seu curso divide 4 municípios do norte de Minas: Montes Claros, Coração de Jesus, Mirabela e Brasília de Minas. A área da minha pesquisa se localiza no município de Coração de Jesus, margem direita do médio-Riachão.24 O poder nesse caso cabe ao IGAM (Instituto Mineiro de Gestão das Águas, órgão da secretaria estadual de meio ambiente) e ao COPAM (Conselho de Política Ambiental de Minas Gerais).

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4 ambientes básicos na sua região, muito relacionados ao tipo de terra: brejo/vazante, terra de cultura (encostas férteis), terra de pedra ou “malhada” e cerrado (terra de areia). O cerrado típico (última categoria) ocupa 53% da área das propriedades pesquisadas e é utilizado para o pastejo do gado (pasto plantado ou natural) e para o extrativismo. Foram citadas 54 espécies nativas utilizadas para diversos fins pela população, sendo a maioria delas oriunda dessa unidade da paisagem. Os pastos naturais ocupam 34% da área das propriedades, o que quer dizer que a maior parte dos cerrados nativos está conservado na sua fisionomia básica, convivendo com o gado e com o extrativismo25. E os pastos plantados conservam uma quantidade significativa de árvores, estratégia adotada inclusive, para enfrentar o tempo cada vez mais seco.

“Tem pequizeiro demais nessa manga26 ... Tem muito arvoredo e é proibido derrubar ... Num pode raleá muito não ... Se ficar descoberto morre e se deixar muito arvoredo morre também” (S. Bento)

“Porque hoje até o pasto jamais conserva sem a madeira, aí acaba” (S. Belarmino)

“Debaixo dos pau, o capim conserva mais” (genro de Manoel Preto)“Povo de primeiro, falava que tinha de derrubá tudo ... hoje com a falta

de chuva que tá, tem que ter a sombra, apesar que o capim ainda ficá meio ralo mesmo lá, mas conserva bastante” (S. Belarmino)

O confinamento nos vales aqui também é visível, o que leva a uma super-exploração das encostas e das vazantes. O escasseamento e contaminação das águas são evidências fortemente sentidas pela população local. Na verdade todo o ambiente vem se tornando mais seco: os brejos vem secando a cada ano, os pastos plantados têm vida útil bem menor que no passado, as roças a cada ano correm mais risco de perda por deficiência hídrica. Diversas falas camponesas ressaltam o problema da água e sua importância para suas vidas:

“Água tinha é pra chapada aí, correndo aí ó a seca inteirinhazinha ... eu conheci uma zona aí que na seca, agosto, setembro, era rio correndo na chapada direto ó ... hoje mal-mal nos corguinho, assim mesmo poco ... Então essa terra não pode sê muito forte não, num tem jeito” (S. Manoel Preto)

“Brejo ninguém plantava, porque tava tudo cheio d’água, virava lagoa ... o rio que é o rio dá numa altura em dia vai pra cortá, outra hora corta” (S. Manoel Preto)

“O que puxa mais é aquele pivô moço. Puxa água do rio, toca na chapada, moiando esse mundo aí. Num tem jeito ué ... Aquela água que eles puxa ela pra lá, ela num volta pro rio mais ... Só se tirasse do São Francisco. Agora, desse riozinho pequeno?” (S. Manoel Preto)

“Na roça era brejado até quase a seca toda ... Chovia seis meses sem pará ... Fim de era ... As água encurtô ... Era marcado: 6 meses de água e 6 de

25 “Mais saúde pro gado é o pasto natural ... Pasto plantado não agarante igual o natural” (S. Bento). “A chapada pra criá, nessas época que os pastos seca, ela é melhor do que a cultura, por conta que produz o ramo né. Então o gado vai vivendo cuo ramo até chovê pro capim crecê. Uma chuvinha tá tudo brotado, cê vai na cultura tá tudo pelado” (S. José Soares)

26 Manga é o nome local dado às áreas de pasto formado.

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seca ... Os arvoredo ajuda a umidade ... Onde limpa tudo vai secando ... Onde pertence o meu, eu não estraguei; tirei só o mato baixo” (S. Bento)

“Antes plantava arroz no brejo e limpava, a água corria direto” (S. Isaac) “Antigamente passava a seca, ele tava mais ou menos aquele normal,

hoje na seca ele vai lá no meio do barranco prá baixo27” (S. Belarmino)

Entretanto, o apego à terra e ao lugar permanece:

“Eu moro aqui é no cerrado ... Eu acho que é melhó que morá na cidade. Ih, se o povo meu fô embora, se fô pra mi carregá eu num vô não. Aqui a gente fica muito mais tranquilo, num tem aquele barulhão, num tem aquele aperto que tem na cidade num tem né, a gente fica tranqüilo aí, então eu gosto daqui” (S. José Martinho)

Algumas falas às vezes, principalmente dos mais velhos, lembram as fábulas e filosofias da obra de Guimarães Rosa e são carregadas de sábias análises do seu mundo:

“Terreno de cultura é do mastigo” (S. Bento)“O que produz perde, o que planta não tem valô” (S. Manoel Batista)“Pequeno tem medo de trabaiá cum banco” (genro de Manoel Preto)“Sertão pra mim eu acho que é o mundo. Qualquer lugar que a pessoa

estiver é o Sertão” (S. José Soares)“Onde tem o erro é obrigado a falá ... O trem é danado. É cumum diz: é

um pensá e dois sabê, tem de dividi, tudo é dividido ... O meu modo de pensá, o que tô dizendo eu acho que tá certo, e muitas vezes não tá, mas tem uns pedaço que tá ... A explicação já é maió” (S. Bento)

As definições de Gerais trazem à tona o conflito entre o passado e o presente, a fartura e a escassez, o comum e o privado. A definição de D. Ermínia chega a impressionar, pela sensibilidade e precisão com que detecta o caráter de terra e recurso comum, espaço compartilhado, que está associado ao Gerais.

“Trata Gerais por causa do movimento, porque é pôco, o movimento é muito pôco. O Gerais é muito fraco... O Gerais é forte, o que é fraco é o povo; tem muita gente fraca aqui dentro desse broco. Tem vontade de fazê as coisa e num pode fazê porque num tem ajuda, as ajuda é muito devagá” (S. Bento).

“Antes não tinha divisão, era comum... Acho que essa palavra Gerais nasceu desse comum, dessa terra comum... Até que essa palavra Gerais é na boca dos antigos ... veio dessa terra comum ... não existe mais a terra comum” (nora de S. Isaac).

“O Gerais é mesmo o lugar do Cerrado. Lá é mata (angico, pau d’arco), terra boa, terra de colonião... Do boqueirão de Santa Rosa pra lá num tem um pé de piquizeiro” (S. Belarmino).

“Gerais e Cerrado se torna um assunto só” (S. Salvador).

27 BBO falava aqui do Riachão

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“Gerais é porque a planta nasce lá no mato, no meio da mata, então dá o fruto lá, ninguém planta, ninguém limpa e dá lá, então diz que é Gerais... Só colhe e come ... Qualquer um pode colher; todo mundo vai na manga do outro colhe pequi, colhe coco, colhe manga, vai na chapada e colhe coquinho; se achar um tatu lá também pegado no meio do Gerais, pega ele, leva pra casa e come” (D. Ermínia).

3.4. O Eldorado do Brasil Central: Ambiente, Democracia e Saberes Populares no Cerrado28

Ricardo Ferreira Ribeiro

As estratégias de reprodução social das populações tradicionais do Brasil Central

Em torno dessas fazendas de gado, se constituiu uma economia camponesa, baseada na agricultura, cuja produção de milho, feijão, arroz e mandioca teve, em geral, uma expressão mais local e, no máximo, regional. As únicas lavouras que, envolvendo, muitas vezes, proprietários maiores, em alguns momentos, tiveram uma significação econômica maior foram o algodão e a cana-de-açúcar. Essa se destinava a produção da rapadura e da cachaça, que em certas áreas do Sertão possuíam importância no comércio extra-regional. O algodão foi fiado e tecido artesanalmente em algumas partes, mas, também, foi exportado em rama para atender a demanda das fábricas européias, no começo do século XIX e, mais tarde, esteve associado às primeiras iniciativas de industrialização na região.

Menos visível, o mundo camponês podia possuir, em algumas regiões, maior ou menor significação e independência econômica, social e política em relação ao domínio dos grandes proprietários. Essa população composta por brancos pobres e, sobretudo, mestiços e negros livres, era mais autônoma, quando ocupava pequenas áreas nos espaços indefinidos entre as fazendas, ou em torno do núcleos de mineração, que liberavam mão-de-obra com o declínio dessa atividade. Muitas comunidades camponesas também se formaram pelas sucessivas divisões das fazendas entre várias gerações de herdeiros, fracionando a terra em médias e pequenas glebas, especialmente, quando diminuía a disponibilidade de terras livres.

Vivendo dentro das fazendas, trabalhando como parceiros e até como vaqueiros, em uma relação de subordinação e de reciprocidade, passada, de ambos os lados, de pai para filho, alguns conseguiam, por doação ou compra, adquirir sua própria terra. Os vaqueiros podiam formar um pequeno rebanho, como observava o naturalista mineiro José Viera Couto, em 1801: em “todo o sertão, pagam os donos das fazendas, de 4 cabeças, uma aos chamados Amos, que são aqueles que administram a mesma fazenda, andam continuamente

28 Esta seção foi constituída por dois capítulos intitulados As estratégias de reprodução social das populações tradicionais do Brasil Central e A trajetória recente das populações tradicionais do cerrado do documento O Eldorado do Brasil Central: Ambiente, Democracia e Saberes Populares do Cerrado, de Ricardo Ferreira Ribeiro (2001).

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no campo, vigiam o gado dos bichos ferozes e cuidam em tudo que diz respeito às criações” (Couto, 1905: p. 118).

Essa população, junto com os remanescentes indígenas e quilombolas, algumas vezes, vivendo hoje em condições semelhantes aos camponeses dos sertões do Brasil Central, é herdeira do patrimônio cultural construído ao longo de toda a trajetória humana de convivência com o Cerrado, delineada até aqui.

Uma pesquisa de campo, realizada pelo autor, dentro do seu Projeto de Tese de Doutorado29, junto a essas populações tradicionais, em quatro regiões deste bioma no Estado de Minas Gerais (Alto Jequitinhonha, Norte, Noroeste e Alto Paranaíba), permite esboçar, em linhas gerais, alguns aspectos desse patrimônio cultural sertanejo em sua relação com o meio ambiente no qual ele se insere. Há, sem dúvida, particularidades locais em cada uma das comunidades ou regiões pesquisadas, no entanto, buscou-se aspectos comuns entre elas, muitos deles partilhados por essas populações presentes em outros estados da região do Cerrado, às quais o autor teve acesso através de visitas, ou por meio de outros estudos.

O primeiro aspecto a destacar é a importância da agricultura para populações constituídas, sobretudo, por camponeses, pois dessa atividade retiram grande parte de sua alimentação e parcela significativa de sua renda monetária. A policultura é sua característica básica e inclui além de roças com vários produtos já citados, também o cultivo de hortaliças e frutíferas, geralmente, nas proximidades da moradia. Em termos ambientais, tanto a casa, como esse conjunto de a atividades desenvolvidas nas suas proximidades, incluindo a criação de pequenos animais (principalmente, suínos e aves), assim como, as lavouras, estão situadas nas áreas chamadas de “terra de cultura”.

Esse ambiente corresponde às formações florestais inseridas no Cerrado, especialmente aquelas próximas dos cursos d’água, onde tais atividades se beneficiam tanto da disponibilidade deste recurso, quanto da fertilidade natural do solo. Aí praticam técnicas agrícolas indígenas, como a chamada “roça de toco”, consistindo na derrubada da mata, queima e coivara, sem a destoca, ou o uso de arado, no preparo do solo. Depois de três a quatro anos de cultivo, inicia-se o período de pousio, com a retomada da área pela vegetação nativa. Este varia de acordo com a disponibilidade de áreas de “terra de cultura” acessíveis a uma família nuclear, ou a um conjunto delas, conforme o tipo de posse/propriedade que estabelecem entre si. Assim, pode-se iniciar um novo roçado a partir de uma “capoeira fina”, três, quatro anos depois; ou, até mesmo, em uma área semelhante a uma “mata virgem”, após mais de quinze anos de “descanso”.

A criação de bovinos, por outro lado, não se restringe a este ambiente, mas combina o seu manejo por vários deles, em diferentes períodos do ano. Os pastos da “terra de cultura”, formados pelo desmatamento sucessivo, ou pelo plantio de gramíneas, não resistem ao final do período da seca, quando o gado busca as áreas de campo e cerrado. 29 Título do Projeto: Sertão Mineiro e Cerrado : história ambiental e etnoecologia - usos, manejos, conhecimentos e representações simbólicas na história das relações entre os grupos sociais tradicionais e o bioma do Brasil Central, projeto de pesquisa apoiado pelo Programa “Natureza e Sociedade” do Fundo Mundial para a Natureza - WWF.

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Estas brotam já com as primeiras chuvas, enquanto aqueles pastos são preservados para se recuperarem e estarem verdes com o avanço da estação das águas e no início da seca.

As poucas cabeças de gado além de contribuir com a alimentação com o fornecimento de leite, usado também na geração de renda com a fabricação de queijo e requeijão, se configura em uma espécie de reserva de valor. Em momentos de “precisão”, como em casos de doença, ou de necessidade de recursos monetários para a aquisição de bens, ele é facilmente convertido em dinheiro para tais despesas. Quando estas são menores, ou a família mais pobre, podem ser vendidos pequenos animais (porcos, aves, cabras, etc), ou estoques de produtos agrícolas armazenados, especialmente, aqueles beneficiados pelas pequenas fábricas rurais, como farinha, rapadura e cachaça.

Embora, a agricultura e a pecuária sejam dois importantes pilares nas estratégias de reprodução dessas populações tradicionais do Brasil Central, são complementadas por diversas atividades. Algumas tão generalizadas quanto essas, outras mais específicas para certas comunidades ou regiões, porém, várias delas são tão ou mais significativas, inclusive em termos de geração de renda monetária.

Entre as mais comumente realizadas estão as que complementam a alimentação através do uso de recursos naturais, obtidos pela caça, pesca e coleta, algumas vezes se utilizando de técnicas empregadas, pelos menos, desde o período pré-colonial pelos povos indígenas da região. A pesca e, particularmente, a caça são importantes fontes de proteína animal, nem sempre disponível, na alimentação cotidiana, através do consumo de carne de pequenos animais ou de bovinos. A pesquisa de campo revelou, ainda que com aceitações variadas, o consumo de carne de 34 animais silvestres, incluindo mamíferos, aves e répteis. Também foram identificados dez diferentes tipos de abelhas produtoras de mel, alguns desses consumidos com finalidades medicinais.

A extração de palmitos e de frutos de várias espécies do Cerrado, especialmente nos ambientes savânicos e campestres, também tem um papel importante na alimentação sertaneja. Além de sua importância nutricional e calórica, grande parte desses frutos nativos ocorre no período em que os produtos de origem agrícola armazenados já estão no final, permitindo completar a alimentação até a nova colheita. Um levantamento bibliográfico e a pesquisa de campo realizada pelo autor apontam a existência de 65 espécies nativas do Cerrado que fornecem frutos para os sertanejos.

As mesmas fontes revelaram a disponibilidade de mais de 170 espécies com uso

medicinal, sendo especialmente encontradas nos ambientes savânicos e campestres. Tal recurso é muito importante, mesmo nos dias de hoje, pelas dificuldades de acesso aos serviços e a aquisição de remédios da medicina oficial. A esta se soma, algumas vezes, o descrédito em relação à sua eficácia, principalmente, entre as pessoas mais velhas já acostumadas aos “remédios do mato” e outras práticas terapêuticas da medicina popular.

Grande parte dos materiais de construção empregados também são retirados diretamente da natureza, aí incluídos vários tipos de argila e pedra, bem como, 130 espécies vegetais fornecedoras de madeira para várias finalidades. Tem-se ainda 32 empregadas na obtenção de fibras para cobertura de moradias, confecção de balaios, cestas, peneiras e

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diferentes peças de artesanato, e para outros fins. Para extração de óleo, com uso alimentício, aproveitamento na fabricação de sabões, etc, ocorrem 29 espécies; 24 são usadas para tingir tecidos de algodão ou lã e 20 possuem tanino, substância importante para o trabalho de curtir couros.

Grande parte dessa atividade extrativista tem como objetivo o consumo pelas próprias famílias e, apenas em alguns casos, tem fins comerciais. Entre estes podemos apontar, excepcionalmente, a venda de madeira, ou plantas medicinais, já a comercialização de palmitos (em particular a do coqueiro gueroba) e, especialmente, de frutos, entre eles se destacando o pequi, o buriti, a panam, o coquinho azedo, o baru e outros, é muito mais comum e envolve toda uma cadeia mercantil.

Historicamente, alguns recursos naturais do Cerrado foram explorados comercialmente, como por exemplo a exportação de couros de veado já no período colonial, ou, mais recentemente, a extração de óleo de coco de macaúba e babuçu. De forma ainda mais destacada, temos a borracha de mangabeira e maniçoba, produzida em Minas Gerais e Goiás, tendo como centro de negócios a cidade mineira de Januaria. Esta atividade teve seu grande surto nas primeiras décadas do século XX, quando o mesmo produto era também largamente extraído da seringueira na Amazônia.

Atualmente, algumas comunidades ainda retiram parte expressiva de sua renda do garimpo de diamantes, ouro e cristal, em regiões específicas, onde essa tradição remonta ao período colonial. Outras atividades extrativistas, eminentemente comerciais, porém de data mais recente, são a produção de carvão e a coleta de flores e frutos secos com fins ornamentais, assim como, o uso de diferentes recursos naturais para a confecção de variados tipos artesanato.

Além dessas várias atividades de exploração de recursos naturais, essa população também se dedica a distintas formas de trabalho para terceiros. Entre elas se destacando: a prestação de serviço para vizinhos, a parceria, as funções de vaqueiro, o trabalho assalariado nas fazendas e empresas da região e a migração sazonal em busca de emprego temporário no campo, ou nas cidades até de outros estados.

Essas diversas atividades (agricultura, pecuária, extrativismo, trabalho para terceiros, etc) se combinam dentro das estratégias próprias de cada comunidade, ou até de cada família, tendo-se em vista as necessidades destas, a possibilidade acesso aos recursos naturais demandados, a disponibilidade de mão-de-obra familiar, ou de vizinhos e o encadeamento de cada uma no calendário anual de atividades.

Assim, dedicam-se à pecuária e, em certa medida, também à caça, durante todo o ano, embora haja as horas, os dias e mesmo certos períodos de maior atenção. A agricultura e a coleta de frutas nativas ocupam o sertanejo mais na estação das chuvas. Enquanto a fabricação de farinha, rapadura e cachaça, o artesanato, o garimpo, a coleta de flores e frutos secos, a extração de madeira, ou a produção de carvão, o trabalho nas olarias, a pesca, etc são atividades mais características do período estiagem.

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Cada atividade pode ser parte de uma divisão do trabalho entre as família da comunidade, por faixa etária, ou, especialmente, por sexo, onde o trabalho feminino se concentra na moradia e seus arredores. Embora, ao observador externo aparente uma uniformidade nas atividades desenvolvidas pelas famílias e pessoas de uma mesma comunidade, um olhar mais atento evidencia uma especialização em certos tipos de trabalho, colocada pela herança da atividade, condição financeira, habilidade pessoal, etc.

A trajetória recente das populações tradicionais do cerrado

A valorização e o consumo crescente de bens industriais vem alterando não só essa especialização, como várias atividades acima mencionadas, pois contribui para a diminuição da demanda por certos recursos naturais substituídos por aqueles bens. Por outro lado, aumenta a demanda por outros, cuja oferta no mercado permite a obtenção de renda monetária para a compra dessas novas “necessidades”. Contribuem, assim, para a degradação de ambientes onde eles ocorrem, ou para a ameaça de extinção de certas espécies de valor comercial.

O acesso aos recursos naturais, no entanto, tem sido um dos principais fatores das transformações recentes nas relações entre as populações tradicionais do Brasil Central e o Cerrado. É importante destacar que essas mudanças se dão dentro de um processo de mais longo prazo, onde vários daqueles recursos vem sendo apropriados por alguns poucos, em geral, em detrimento daquelas populações. Porém, principalmente, nos últimos trinta anos, tais transformações se generalizaram e se aprofundaram, resultando em perdas significativas para suas estratégias tradicionais de reprodução social.

Embora variando o momento em que se deu de uma região para outra, conforme foi constatado pela minha pesquisa de campo, uma das mudanças preliminares foram as restrições impostas à criação de pequenos animais (suínos, caprinos e ovinos). Tradicionalmente, as roças deviam ser cercadas e esses animais, bem como, o gado bovino e eqüino, criados soltos, com livre acesso a diferentes ambientes, onde pudessem pastar. Os fazendeiros, em geral, possuindo roças maiores, resolveram suspender o “pé da cerca”, ou seja, alteraram essa regra, exigindo que as lavouras fossem protegidas apenas contra as criações de grande porte. Desta forma, diminuíam os custos com a confecção de cercas, que precisavam ser reformadas ou mudadas a medida que as lavouras iam se mudando no sistema de agricultura itinerante, já apresentado. Assim, quem tivesse pequenos animais passava a ter que mantê-los presos em cercados de “pé baixo”. A nova “lei” dificultava essa atividade para os camponeses, seus principais criadores, pois grande parte da sua alimentação não poderia mais ser obtida pastando na vegetação nativa, mas devia ser suprida pelo proprietário, aumentando o seu custo de produção.

Muitas vezes, essa transformação ocorreu paralelamente ao aparecimento do arame em substituição ao uso da madeira ou de pedras na confecção de cercas, pois quando essas são feitas “contra” pequenos animais consomem muito mais do que os três ou quatro fios empregados para proteger as roças contra bois ou animais de montaria.

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A difusão do uso do arame também contribuiu para uma transformação ainda maior no que se refere à apropriação dos recursos naturais do Cerrado: o fim da “solta”, “larga” ou “largueza”. Essas expressões de variação regional indicam as áreas de uso comum para a criação do gado, onde predominavam a vegetação de tipo savânico e campestre. Se apenas as áreas em torno das moradias, as lavouras e alguns pastos plantados eram cercados, o resto se constituía em áreas abertas, indivisas, onde os vizinhos podiam soltar suas criações, tirar madeira, caçar, coletar frutos e plantas medicinais, etc. A propriedade sobre o gado não era assegurada pela sua contenção nos limites da fazenda, mas pela marca do dono feita na orelha ou, principalmente, a ferro quente no seu couro.

Mesmo a documentação das terras era pouco precisa em termos dos seus limites nesses ambientes não usados para fins agrícolas. A medida que as terras iam se valorizando com a intensificação da pecuária, foram sendo realizadas “medições” com a finalidade de “retificar” os limites de cada propriedade e, em seguida, o seu perímetro ia sendo cercado. Tal processo foi imprensando os camponeses, pois não dispunham de recursos financeiros para contratar agrimensores ou advogados, nem força política para se impor aos fazendeiros. Mesmo que não houvesse questionamentos sobre os limites de suas terras, com o fim da solta, ele perdia a possibilidade de manter um rebanho um pouco maior, pois teria que restringir o número de suas cabeças àquele compatível com a área de sua propriedade.

Em algumas, esse processo é anterior, em outras, a “solta” ainda sobrevive de forma residual até hoje, mas, em todas as regiões pesquisadas, a partir dos anos 1970, essa apropriação de áreas de uso comum se evidencia. Essa “coincidência” histórica se deve à implantação de programas de desenvolvimento do Cerrado, promovidos pela Ditadura Militar como uma estratégia de expansão da fronteira agrícola. Financiados, principalmente, pelo capital japonês, esses programas se enquadravam numa política mais ampla de modernização da agricultura voltada para a exportação de grãos e para o fornecimento de insumos para a indústria nacional. Paulo Afonso Romano, presidente da CAMPO, empresa binacional (Brasil-Japão) responsável pela coordenação de um desses programas, resume bem o discurso oficial que fundamentou a sua implantação:

A intensa utilização das áreas agrícolas no Sul e Sudeste, chegando a situações de completa saturação, leva o País à necessidade de busca de áreas novas, (...) a acentuada euforia com a Amazônia na segunda metade da década de 60 e início da década de 70, fez os brasileiros imaginarem ser ali, e de pronto, o novo celeiro. Talvez o ufanismo predominante (...) tenha levado à extrapolação da busca de um objetivo geopolítico - a integração nacional da Amazônia - com um objetivo econômico: o de produzir alimentos. O engano foi detectado.Prossegue a ocupação da Região Amazônica, porém em polos selecionados, pois ainda persistem condições precárias de infra-estrutura, riscos ecológicos e escasso conhecimento científico e tecnológico para ampla utilização dos recursos amazônicos. O bom senso de atrair maior atenção para os cerrados, enquanto se amadurece a solução amazônica, deve ser considerado como uma histórica correção de rumos na busca de novas regiões agrícolas (ROMANO, 1985: p. 155/156).

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Desta forma, o Cerrado e a Amazônia eram vistos como vazios econômicos a serem melhor explorados, no entanto, aquele possuía algumas vantagens que favoreceriam a sua ocupação mais rápida. No Cerrado, a questão ambiental não aparecia do ponto de vista político interno e externo, de forma tão polêmica quanto a repercussão que ganhava a destruição da Floresta Amazônica. Com suas árvores pequenas e tortas, ele não apresentava aos olhos da opinião pública, o mesmo efeito grandioso da imensidão verde daquela floresta. No entanto, o mais importante estava em outra vantagem do Cerrado, que apesar de ter problemas de fertilidade do solo, já possuía, naquele momento, conhecimento científico e tecnológico visto como suficiente para torna-lo produtivo e economicamente viável. Vantagem que se somava à sua localização e infra-estrutura disponível, capazes de oferecer melhores condições de produção, bem como, favoreciam o seu escoamento para os grandes centros urbanos e os mercados internacionais.

A partir do início dos anos 70, o Eldorado do Brasil Central é redescoberto: o Estado implementou diversos programas de desenvolvimento do Cerrado, baseados em um uso intensivo de tecnologia e capital e no preço baixo das terras, favoráveis à mecanização e que compensavam os investimentos destinados à correção do solo. Em pouco tempo, o Cerrado adquiriu grande importância na produção agrícola brasileira: contribuindo com 25,4 % da soja, 16% do milho, 13,2 % do arroz de sequeiro e 8,3 % do café (Shiki, 1995). Esses projetos de desenvolvimento tiveram como pólo irradiador o oeste de Minas, se espalhando gradativamente, até os dias atuais, para os outros Estados incluídos na área deste bioma (...)

4. UM NOVO REFERENCIAL TEÓRICO

O campesinato está presente na sociedade brasileira com o seu modo de ser e de viver. Foi, em 2003, o responsável por 40% do PIB agrícola e por 74% dos empregos rurais, segundo o Ministério de Desenvolvimento Agrário – MDA, ainda que essa categoria “emprego” seja inadequada para revelar o número de pessoas envolvidas como camponeses.

Segundo as estatísticas formais e oficiais, imprecisas, inadequadas e subestimadas para o caso em apreço, há 4,1 milhões de famílias que seriam consideradas como “agricultura familiar”, com todos os equívocos pressupostos nessa forma de classificação. Se considerarmos que o público potencial de reforma agrária seria, segundo o Índice de Aspiração por Terra (Projeção em 2003), de 2,2 milhões de famílias, segundo a Proposta do PNRA (2003: 21), seria possível se considerar, por aproximação, que o campesinato no Brasil está constituído por aproximadamente 6 milhões de famílias. Isso significa, de maneira subestimada, 27 milhões de pessoas ou 16 % da população brasileira. Mas, sem dúvida alguma, esses números são inadequados e insuficientes para darem conta do dimensionamento do campesinato no Brasil.

As estatísticas nacionais assim como as políticas públicas são determinadas, ao menos na sua maior parte, pela conceituação teórica que induz à noção de agricultura familiar. A conceituação hegemônica ensejou que parte substantiva dos camponeses esteja, por exemplo, alijada de acessos a políticas públicas porque ideologicamente são

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considerados como “inviáveis economicamente” segundo os critérios políticos que avaliam seu potencial de se transformarem em empresas capitalistas.

Definir um novo referencial explicativo do campesinato que seja teoricamente fundamentado e socialmente pertinente é a pretensão deste capítulo.

Essa definição inicia-se pela seção 4.2. Uma teoria econômica do campesinato, a partir da qual ocorrerá um desdobramento, tendo como base a categoria econômica padrão reprodutivo, nas dimensões sócio-antropológica e política (seção 4.3), ecológica (seção 4.4) e tecnológica e agroecológica (seção 4.5).

A compreensão de que o campesinato é uma classe social que apresenta um modo de ser e viver específicos, ainda que tenha permeado todo este documento, é estabelecido no item 4.1, a seguir.

4.1. Modo de ser e de viver: uma utopia camponesa?30

As idéias expostas por Octávio Ianni (1985) no texto A Utopia Camponesa foram posteriormente alteradas sob a sua compreensão da globalização neoliberal (Ianni, 1996). No entanto, as teses por ele levantadas em 1985 continuam, para nós, pertinentes. O seu texto A Utopia Camponesa é uma síntese amorosa de (ilusão ou utopia) em relação ao campesinato. É esse o motivo da incorporação neste documento de extratos desse seu texto.

Nesta seção, todos os parágrafos a seguir são do texto original A Utopia Camponesa, não tendo sido contempladas as questões apresentadas pelos debatedores e pelo público durante a palestra da qual resultou o texto em apreço.

“(...) autores freqüentemente afirmaram que o campesinato é uma categoria pouco politizada, pré-política, há um certo primitivismo político nas lutas dos camponeses. E, classicamente, como se sabe, se atribui a condição de “povos sem história”, de grupos e nacionalidades que não têm viabilidade histórica, em certas situações. Mais do que isso, freqüentemente, se afirma o campesinato como sendo contra-revolucionário, devido ao caráter das suas reivindicações...”

“Eu vou tentar sintetizar a minha idéia neste trabalho: é fazer uma proposta sobre o que poderia ser a utopia camponesa. Isto é, em lugar de pensar o camponês como classe, em lugar de pensar o camponês por suas reivindicações econômicas, em lugar de pensar se o camponês tem ou não viabilidade histórica, eu quero propor para o nosso debate, para trocar idéias, que o que há nas lutas camponesas que permitiria chegarmos à idéia de uma utopia camponesa e de como essa utopia têm a ver com a História, têm a ver com a sociedade nacional. E, então, o elemento utópico que em lugar de ser uma constatação,

30 Esta seção é constituída de extratos do texto A Utopia Camponesa de Octávio Ianni (1985). O nome do autor não é citado no corpo do texto porque não houve oportunidade de consultá-lo antes do seu falecimento em 4 de abril de 2004, ainda que ele tenha autorizado a reprodução do texto integral para uso pela base popular do Movimento de Pequenos Agricultores - MPA, por telefone, em conversa com Horacio Martins de Carvalho em 22 de março de 2004.

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através da qual nós vamos descartar o campesinato como uma categoria histórica, o elemento utópico, a meu ver, pode ser uma dimensão através da qual é possível resgatar o campesinato enquanto história. Não têm maiores pretensões do que esta, fazer um jogo com as leituras que nós fazemos, com os debates que nós fazemos.”

“Então, a minha proposta inicial é de que o campesinato está presente na História, bastante. E, a rigor, se pode dizer que ele esta fortemente presente nas revoluções. Eu diria para sintetizar que o campesinato esta presente nas duas revoluções fundamentais da história da sociedade burguesa: na revolução burguesa e na revolução socialista. Às vezes, de uma maneira direta, imediata, como uma das forças sociais preponderantes, às vezes, como uma força entre outras, não necessariamente a principal ou a preponderante, às vezes, como uma categoria que aparece na preparação da revolução. Todos sabemos que a Revolução Francesa tem muito a ver com as lutas dos camponeses do século XVIII. Isto é, as lutas dos camponeses faziam parte de uma crise do Estado Absolutista e da ordem semi-feudal que predominava, na época, ainda e que entra como um ingrediente fundamental na revolução. (Sem deixar de lembrar que o campesinato esta presente na revolução, o campesinato conquista na revolução alguns direitos e continua na história, às vezes, mudando o significado da sua atuação).”

“Pode-se dizer, portanto, que o campesinato está presente duas vezes na história, de uma maneira notável. Na revolução burguesa, na medida em que ele está lutando para preservar as suas terras ou para conquistar terras, isto é, para redefinir a sua situação em face das transformações da sociedade. O que ocorre com a revolução burguesa é uma revolução agrária que transforma as propriedades em propriedades privadas, há uma monopolização da terra, uma história muito conhecida e, então, os camponeses sejam posseiros, sejam aqueles que vivem em terras comunais ou terras de Igreja, o que seja, eles são levados a lutar pela preservação das terras ou pela conquista das terras. Junto com isso, entram os dízimos e outras reivindicações. Mas junto com isso entra também o problema de lutar pela não-proletarização, isto é, resistindo à proletarização. Na verdade, a revolução burguesa é uma revolução que provoca uma revolução agrária em alguma dimensão. É essa revolução agrária que tem a ver com a produção de mercadorias, com a proletarização, com a transformação da terra em propriedade privada é uma revolução que atinge diretamente o campesinato e o campesinato reage contra certas injunções da revolução francesa. E é isso que muitas vezes leva historiadores e cientistas sociais a ver no campesinato uma categoria conservadora, reacionária, contra-revolucionaria.”

“Num segundo momento, o campesinato entra na revolução socialista. Ele está presente em praticamente todas as revoluções socialistas e a sua luta continua sendo para conquistar ou preservar terras, implicando outra vez em preservar ou garantir condições de produção e apropriação, continuidade de um certo tipo de apropriação, a continuidade de um certo tipo de organização comunitária de trabalho. Mesmo nos casos em que o campesinato realiza, até explicitamente, uma aliança com outras categorias sociais, como o proletariado, por exemplo, na verdade, ele está preocupado era preservar ou em recriar certas condições de vida e de trabalho. E nisso existe o germe da utopia camponesa. E essa utopia camponesa, que tem sido tratada de várias maneiras, e freqüentemente de uma maneira negativa - isso está em Hobsbawn, está em autores brasileiros, está num debate sobre classe operária, partido político, movimento social - esta utopia pode ser um elemento

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dinâmico da história e não um elemento” conservador ou reacionário ou contra-revolucionário.”

“Agora, por que o campesinato entra na revolução socialista, a despeito de ele não estar preocupado com o socialismo, com a conquista do Estado? Porque a revolução burguesa não resolveu a questão agrária, não resolveu a questão camponesa. Em geral, nos países em que a revolução socialista conta com a participação do campesinato, nesses países o que ocorreu é que a revolução burguesa ocorrida nesse caso não conseguiu definir ou redefinir a situação agrária de modo a equacionar satisfatoriamente o campesinato segundo certas reivindicações.”

“Não há dúvida de que o campesinato está presente na revolução soviética, na revolução chinesa, está presente em varias revoluções de cunho socialista. Até dá para dizer aqui e repor o problema clássico: --- não que a revolução socialista se realize em países agrários ou em países atrasados, e que a revolução socialista parece que se realiza em condições talvez um pouco mais imediatas nos países onde a revolução burguesa não consegue resolver alguns dos problemas que poderiam ser resolvidos pela burguesia e um deles, a própria questão camponesa.”

“Refletindo sobre isso, eu fiz umas anotações que eu vou ler para vocês e que de certo modo sintetizam uns parágrafos.”

“Na medida em que a revolução burguesa não provoca maiores transformações no mundo agrário, (ela) preserva ou recria um campesinato descontente. Aí está uma condição básica da força social que ele pode representar, isto é, ele (campesinato) se posiciona contra uma situação que não resolve as suas condições e essa luta camponesa contra a maneira pela qual a revolução burguesa encaminhou o problema agrário, essa luta acaba tendo significação local, regional ou nacional. Nesse sentido, diria Barrington Moore (1966: 480), é que ‘os camponeses têm fornecido a dinamite para por abaixo o velho edifício’. Nos países predominantemente agrários, o que pode significar que a revolução burguesa adquiriu aí determinado caráter, nesses países, ‘sem as revoltas camponesas o radicalismo urbano não tem sido, afinal, capaz de realizar transformações sociais revolucionarias” (Skocpol, 1984: 113). Isto é, em certos casos, a presença camponesa fundamental, como na revolução soviética. ‘Se a questão agrária, diz Trotsky (1967: 62), herança da barbárie, da antiga história russa, tivesse sido resolvida pela burguesia, caso pudesse ter recebido uma solução, o proletariado russo não teria, jamais, conseguido subir ao poder em 1917’. É claro que uma tese discutível, mas é uma tese muito forte. Quer dizer, o caráter da revolução burguesa na Rússia Tzarista foi tal que o campesinato não teve algumas das suas reivindicações resolvidas e, então, ele se transforma numa espécie de aliado natural das outras categorias sociais, em especial do proletariado.”

“No século XX, aos poucos, descobrem-se as dimensões revolucionárias dos movimentos sociais que ocorrem no campo. Isso aconteceu na China e, então, vem uma colocação famosa do Mao Tse-tung (1977: 24-25) que de 1927, de uma enquete que ele fez no meio agrário, onde ele diz, fazendo uma polêmica com os soviéticos e também com os chineses que tinham outras posições: ‘É preciso retificar imediatamente todos os comentários contra o movimento camponês e corrigir, o quanto antes, as medidas erradas

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que as autoridades revolucionárias tomavam em relação a ele. Somente assim se pode contribuir de algum modo para o futuro da revolução, pois o atual ascenso do movimento camponês é um acontecimento grandioso. Muito em breve, centenas de milhões de camponeses, a partir das províncias do Centro, do Sul e do Norte da China, vão se levantar como uma tempestade, como um furacão de extraordinária violência, que nenhuma força, por mais poderosa, poderá deter. Vencerão todos os obstáculos e avançarão rapidamente pelo caminho da libertação. Todos os imperialismos, caudilhos militares, funcionários corruptos, tiranos locais e shenshi perversos serão sepultados. Todos os partidos e grupos revolucionários, todos os camaradas revolucionários serão posto à prova perante os camponeses e terão de decidir se os aceitam ou rejeitam’. No Vietnam, o campesinato está presente. Ho Chi Minh (1975: 75) lembra: ‘Para o sucesso da resistência e da reconstrução nacional, para obter efetivamente a independência e a unidade nacionais, é absolutamente necessário apoiarmo-nos no campesinato’. Em vários momentos, em várias situações o campesinato se torna uma força social importante, revolucionária, no contexto do movimento que.provoca a transição para o socialismo.”

“No caso da Nicarágua, isso também á evidente. O Jaime Wheelock Roman (1980: 61), falando sobre a revolução da Nicarágua, lembra que ‘A insurreição de uma massa popular integrada por milhares e milhares de camponeses, pequenos produtores, médios produtores, pequenos comerciantes, pequenos artesãos, ou seja, uma República Popular, uma República de povo humilde’, em que o campesinato tem um papel muito importante, seja por sua participação direta, seja por sua presença no cenário da sociedade nacional. É claro que se podem discutir esses casos, assim como se podem agregar outros exemplos. Mas eu acho que á válido colocar aqui - reiterando a proposta - de que como a burguesia não resolve nem a questão agrária, nem a questão nacional, isto é, a maneira pela qual os vários grupos sociais se representam na sociedade no Estado nacional, o campesinato se constitui numa força social básica, tanto para reformar como para revolucionar a pirâmide social, como fala Hobsbawn.”

“Essa colocação nos permite repor a questão inicial. Afinal, o que querem os camponeses? O que está em questão? O campesinato não quer o poder. O campesinato não está propondo a conquista do Estado nacional. Esse é um problema de interesse que não é fácil resolver. Eu não tenho uma resposta, mas como é que se explica que o campesinato tem uma presença tão forte, a despeito de não estar direta e explicitamente lutando pela conquista do poder. E aqui cabe colocar a pergunta mais ou menos elementar: afinal, que são os camponeses? Os camponeses não são uma categoria econômica. E é ilusório dizer que os camponeses podem ser uma categoria econômica e política ou podem ser uma categoria política e, então, o assunto está resolvido, porque são uma categoria política e passam a ser uma força revolucionária. O que é uma velha controvérsia. Muitos de nós estamos, às vezes ... o Dezoito Brumário, porque lá Marx diz que o campesinato é como batata num saco, quer dizer, há situações nas quais o campesinato não chega a se articular politicamente. Ele é uma realidade econômica, mas não é uma classe política, porque não se assumiu, não se organizou. No entanto, esse campesinato que parece ser disperso, atomizado, que está vivendo as suas condições de vida e trabalho, esse campesinato é um fermento da história, é um ingrediente das lutas sociais. As suas lutas, as suas reivindicações entram no movimento da história. Então, se coloca o problema de que o campesinato, além de serem pequenos produtores, sitiantes, posseiros, colonos ou o que

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seja, além de lutarem pela terra, além de quererem a posse e uso da terra e uma certa apropriação do produto do trabalho, o campesinato representa um modo de vida, um modo de organizar a vida, uma cultura, uma visão da realidade, ele representa uma comunidade31. E é o fato de que o campesinato constitui um modo de ser, uma comunidade, uma cultura, toda uma visão do trabalho, do produto do trabalho e da divisão do produto do trabalho é que faz do campesinato uma força relevante. Isto é, é que coloca o campesinato como uma categoria que mostra para a sociedade não simplesmente uma participação política, uma força, mas também um modo de ser. Aponta e reaponta continuamente uma outra forma de organizar a vida.”

“Eu relembro para vocês o famoso diálogo de Marx com a Vera Zasúlich que tem sido registrado de várias maneiras, mas que põe um problema fundamental. É que Marx acaba embatucando diante da carta de Vera Zasúlich, porque ela põe a hipótese de que o campesinato na sua comunidade poderia ser resgatado ou preservado numa ordem social diferente que não a burguesa. Marx que, em 1850/60, talvez teria dito que não, não têm saída, o campesinato está condenado, vai ser desbaratado pela revolução burguesa e pelo capitalismo, ele, nesse então, resolve pensar um pouco e diz, de fato, esse campesinato pode ser preservado. Eu registro assim esse fato:”

“Não foi por acaso que Marx embatucou quando Vera Zasúlich lhe perguntou, em 1881, se havia possibilidade de que a comuna rural russa se desenvolvesse na via socialista; ou se, ao contrário, estava destinada a perecer com o desenvolvimento do capitalismo na Rússia. Esse é um dos momentos mais intrigantes e bonitos da biografia intelectual de Marx. Escreveu vários rascunhos, buscando uma resposta que fosse também uma reflexão sobre as condições do desenvolvimento do capitalismo, e socialismo, naquele país. Naturalmente procurou informar-se melhor sobre o que estava o ocorrendo ali, nos anos recentes e em todo o século dezenove. Reconhecia que a expropriação do campesinato acompanhava o desenvolvimento capitalista na Inglaterra, França e outros paises. Mas julgou que esse não precisava ser o mesmo caminho na Rússia. Em certo passo da versão da carta que, afinal, enviou à sua correspondente, dizia: ‘Convenci-me de que esta comuna é o ponto de apoio da regeneração social na Rússia, mas”. para que possa funcionar como tal será preciso eliminar primeiramente as influências deletérias que a acossam por todos os lados e, em seguida, assegurar-lhe as condições normais para um desenvolvimento espontâneo’ (Marx, K. e Engels, F., 1980).”

“Ou seja, ele põe a possibilidade de que a comunidade camponesa russa possa ser preservada na outra ordem social, reconhecendo, como não poderia deixar de ser, que ela estava sendo desbaratada pela expansão do capitalismo. Eu acho que estas intuições de Marx põem o problema da utopia camponesa. Isto é, o modo de ser camponês e a luta do camponês por este modo de ser, que tem sido tratado por muitos intelectuais e políticos como sendo uma forma utópica, pretérita, condenada, sem história e que, portanto, não têm porque ser conservada, essa comunidade pode ser uma metáfora do futuro, pode ser uma proposta, uma indicação. Não que vá ser preservada nessa condição, é claro. Seria ridículo imaginar que fosse ser preservada na mesma situação, mas que poderia se reintegrar numa ordem social nacional, naturalmente organizada com base na propriedade socialista, e, 31 Nota de HMC: ver o sentido dado por Octávio Ianni nas respostas às questões dos debatedores a partir da p. 9 deste documento.

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então, essa comunidade em lugar de parecer anacrônica, passava a ser uma forma válida para a organização da vida e do trabalho.”

“Eu vejo, portanto, que essa correspondência de Marx repõe o problema de que o campesinato não é simplesmente uma categoria econômica ou simplesmente uma categoria política ou política-econômica. O campesinato, na verdade, pode ser visto como uma proposta que, ao mesmo tempo, pode ser vista como uma proposta que é, ao mesmo tempo, social e cultural. E que o camponês, devido a sua longa história, devido a sedimentação de suas formas de vida e trabalho, devido ao desenvolvimento de sua língua ou dialeto, às vezes, religião, língua ou dialeto, freqüentemente tradições, histórias, façanhas, etc..., o campesinato tem um patrimônio cultural e uma forma de organizar a produção e a reprodução, a distribuição do produto do trabalho que podem ser sugestões sobre a maneira pela qual a sociedade no futuro poderia se organizar.”

“Na verdade, o movimento social camponês não se propõe à conquista do poder estatal, à organização da sociedade nacional, à hegemonia camponesa. Essas, talvez, sejam as tarefas do partido, pode ser a tarefa da classe operária associada com outras categorias sociais, inclusive o camponês. Mas isso não elimina nem reduz o significado revolucionário das muitas lutas que esse movimento camponês realiza. Em essência, o seu caráter radical está no obstáculo que representa à expansão do capitalismo, na afirmação do valor de uso sobre o valor de troca, sobre a mercadoria, enquanto tal, sobre o trabalho alienado, na resistência da transformação da terra em monopólio, na afirmação de um modo de vida e trabalho que tem evidentemente uma conotação comunitária. Uma organização em que a participação do todo é de outro tipo e em que a distribuição do produto material e espiritual é de outro tipo.”

“E, nesse sentido, há na comunidade32 camponesa ou nas formas camponesas de viver e trabalhar uma sugestão ou uma metáfora do que poderia ser o modo futuro de organizar a sociedade. E eu vejo nisso uma das forças, senão a força do movimento camponês. Eu vejo nisso que é a utopia camponesa a importância do campesinato como história.”

“A luta do campesinato constitui um obstáculo ao desenvolvimento da ordem burguesa. Ao lutar pela terra e pela posse da terra e pelo uso da terra e o produto do seu trabalho a seu modo, ele está se pondo como um obstáculo à ordem burguesa. E, nesse sentido, eu diria que essa luta freqüentemente adquire conotação revolucionária, por duas razões: por uma lado, o camponês resiste à proletarização no campo e na cidade e isto é contrário ao funcionamento do mercado da força de trabalho, aos fluxos e refluxos do exército industrial de reserva, à subordinação real do trabalho ao capital. Por outro lado, a

32 “(...) Sobre comunidade, vocês me permitam fazer uma co1ocação, a comunidade foi uma noção que está sendo divulgada em duas acepções mais freqüentes: uma a da Igreja que pensa uma comunidade de ovelhas, caricaturando, e outra é a do positivismo que esta na sociologia e na antropologia norte-americanas. E, então, vocês têm razão. Afinal, de que comunidade nós estamos falando? Eu não estou falando de comunidade empírica, positivista, nem muito menos de ovelhas. Eu estou pensando na comunidade, na acepção clássica do termo. E a acepção clássica e a que está em Rousseau, no Contrato Social. Está em Tönnies, está em vários autores de diferentes contextos e nas entrelinhas de alguns textos de Marx, por exemplo nas Formações Pré-Capitalistas.” (Ianni, 1985: 14)

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luta pela terra impede ou dificulta a monopolização da terra pelo capital, a sua transformação em propriedade mercantil, o desenvolvimento extensivo e intensivo do capitalismo na agricultura. Nessas duas perspectivas, o movimento camponês adquire dimensão nacional e põe em causa os interesses prevalecentes no Governo, no Estado.”

“Um dos componentes estruturais da ordem burguesa é a burguesia agrária. A burguesia agrária é freqüentemente um dos elementos do bloco do poder. A indústria agrícola. A produção de valor na agricultura. Na medida em que esse elemento da ordem burguesa que é o agrário, que é a terra, que é a produção de valor, de lucro, de mais-valia se vê bloqueado em seu funcionamento e expansão, nessa medida coloca-se em pauta um problema sério para a classe dominante, para a ordem burguesa, para o bloco de poder. E nesse nível que é constitutivo do mercado, da produção capitalista, da produção de valor é que a luta do camponês é adversa à ordem burguesa.”

“Mas o movimento camponês não se limita à luta pela terra. Mesmo quando é essa a reivindicação principal, ele compreende outros ingredientes: a cultura, a religião, a língua ou dialeto, a raça ou etnia entram na formação e desenvolvimento das suas reivindicações e lutas. Mais do que isso. Pode-se dizer que a luta pela terra é sempre e ao mesmo tempo uma luta pela preservação, conquista ou reconquista de um modo de ser e de trabalho. Todo um conjunto de valores culturais entra em linha de conta como componente do modo de ser e viver do campesinato.”

“Por que o campesinato da Nicarágua entrou na revolução sandinista? Por que tinha uma proposta socialista? Por que tinha uma proposta anti-norte-americana ou, até se pode dizer, anti-somozista? Poderia ter um pouco, mas, na verdade, era um campesinato lascado secularmente como índio e como mestiço e que queria reafirmar a sua indianidade, a sua mestiçagem, com a sua cultura, o seu modo de ser. E esse campesinato, que têm também reivindicações econômicas, entra na luta revolucionária. Quer dizer, são várias as razões que estão metidas, embutidas na maneira pela qual se organiza o movimento social.”

“Acontece que toda opressão econômica é também opressão cultural e social, além de política. A terra não é um fato da natureza, mas é um produto material e espiritual do trabalho humano. As relações do camponês com a terra compreendem um intercâmbio social complexo que implica a cultura. Jamais se limita à produção de gêneros alimentícios, elementos de artesania, matérias-primas para a satisfação das necessidades - alimento, etc. Muito mais do que isso, a relação do camponês com a terra põe em causa também a sua vida espiritual. A noite e o dia, a chuva e o sol, a estação de plantio e a da colheita, o trabalho de alguns e o mutirão, a festa e o canto, a estória e a lenda, a façanha e a inventiva, a mentira camponesa, o humorismo camponês, são muitas as dimensões sociais e culturais que se criam e recriam na relação do camponês com a sua terra, com o seu lugar.”

“Muitas vezes, é na cultura camponesa que se encontra alguns elementos fundamentais da sua capacidade de luta. A sua língua ou dialeto, religião, valores culturais, histórias, produções musicais, literárias e outras entram na composição das suas condições de vida e trabalho. Expressam a sua visão do mundo. Na luta pela terra pode haver conotações culturais importantes, decisivas, sem as quais seria impossível compreender a força das suas reivindicações econômicas e políticas.”

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“A comunidade camponesa é o universo social, econômico, político e cultural que expressa e funda o modo ser do camponês, a singularidade do seu movimento social. E é precisamente aí que está a sua força. O caráter revolucionário desse movimento social não advém de um posicionamento explícito, frontal, contra o latifúndio, fazenda, plantação, empresa, mercado, dinheiro, capital, governo, rei, rainha, general, patriarca, presidente, supremo, estado. O seu caráter revolucionário está na afirmação e reafirmação da comunidade, da comunidade como uma totalidade social, política, econômica e cultural. A sua radicalidade está na desesperada defesa das suas condições de vida e trabalho. ‘Os camponeses levantam-se em armas para corrigir males. Mas as injustiças contra as quais se rebelam não são, por sua vez, manifestações locais de grandes perturbações sociais. Por isso a rebelião converte-se logo em revolução e os movimentos de massas transformam a estrutura social como um todo. A própria sociedade converte-se em campo de batalha e, quando a guerra termina, a sociedade estará mudada; e, com ela, os camponeses. Assim, a função do campesinato é essencialmente trágica: seus esforços para eliminar o pesado presente somente desembocam em um futuro mais amplo e incerto. Não obstante, ainda que trágico, está pleno de esperança’ (Wolf, 1972: 409). Há uma recôndita dialética comunidade-sociedade no movimento dessa história. “Em geral, as revoltas camponesas não se dirigem contra uma classe, mas contra uma sociedade de classes. Por isso o desespero, do qual surge a crueldade, sempre marcou de forma particular as revoltas camponesas. Não é o ‘fanático’ que se revolta para defender a sua propriedade, como tendemos a crer. É, sobretudo, a revolta do “profano e do ‘bárbaro’ contra o ‘sagrado’ e a ‘civilização’ do ‘capital’ (Vergopoulos, 1980: 223).”

“O movimento social camponês nega a ordem burguesa, as forças do mercado, as tendências predominantes das relações capitalistas de produção. Em geral, a radicalidade desse movimento está em que implica em outro arranjo da vida e trabalho. Em sua prática, padrões, valores, ideais, ele se opõe aos princípios do mercado, ao predomínio da mercadoria, lucro, mais-valia. Sempre compreende um arranjo das relações sociais no qual se reduz, ou dissipa, a expropriação, o desemprego, a miséria, a alienação.”

“A comunidade camponesa pode ser utopia construída pela invenção do passado. Pode ser a quimera de algo impossível no presente conformado pela ordem burguesa. Uma fantasia alheia às leis e determinações que governam as forças produtivas e as relações de produção no capitalismo. Mas pode ser uma fabulação do futuro. Para a maioria dos que são inconformados com o presente, que não concordam com a ordem burguesa, a utopia da comunidade é uma das possibilidades do futuro. Dentre as utopias criadas pela crítica da sociedade burguesa, coloca-se a da comunidade, uma ordem social transparente. Esse é, provavelmente, o significado maior do protesto desesperado e trágico do movimento social camponês.”

4.2. Uma teoria econômica do campesinato33

33 Esta seção está constituída por extrato do texto Camponeses e Especificidade Camponesa (texto simplificado para divulgação popular) de Francisco Assis Costa (2004). O texto integral e original de referência consta da obra de Costa, Francisco Assis (2.000). Formação Agropecuária da Amazônia. Os desafios do desenvolvimento sustentável. Belém, NAEA.

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Francisco Assis Costa

Centralidade reprodutiva

Entendo por camponesas aquelas famílias que, tendo acesso à terra e aos recursos naturais que esta suporta, resolvem seus problemas reprodutivos a partir da produção rural — extrativa, agrícola e não-agrícola — desenvolvida de tal modo que não se diferencia o universo dos que decidem sobre a alocação do trabalho, dos que sobrevivem com o resultado dessa alocação.

Tal noção herda de Chayanov a ênfase na centralidade das necessidades reprodutivas da família no processo decisório da “empresa camponesa”, que, assim, constitui uma unidade — reforce-se, indissociável — entre esfera de produção e esfera de consumo.

Nossa proposição distancia-se da conceituação de Frank Ellis (1988), para quem “... camponeses são unidades familiares de produção agrícola caracterizadas pelo engajamento parcial em mercados incompletos...” (Ellis, op. cit. :234). Tal distinção34, por não se assentar em qualquer aspecto de natureza, mas se ancorar em características presentes em formas de existência da produção familiar rural produz tanto equiparações quanto diferenças indevidas. Uma das justificativas do autor para o conceito e o resultado que obtém de seu uso explicita o cerne das nossas divergências:

“... [o caráter parcial da integração no mercado] serve para diferenciar os camponeses tanto das empresas capitalistas (baseadas no trabalho assalariado) como de pequenos produtores mercantis que operam em contexto de mercados de fatores e produtos plenamente formados... (op. cit.: 234) [e]... no longo prazo, a dominância das relações capitalistas significa o desaparecimento dos camponeses mas não, necessariamente, o fim de formas familiares de produção agrícola. (op. cit.:238. Tradução do autor)”.

Trata-se de uma diferenciação fraca demais, quando se refere a formas capitalistas de produção, e forte demais, quando se refere a diferenças da própria produção familiar rural. Fraca demais no primeiro caso, porque não expõe a constituição essencial das diferenças a ressaltar; forte demais no segundo caso, porque atribui capacidade distintiva a um fenômeno, cuja determinação é, a rigor, traço de igualdade das formas de produção familiar rural.

Diferentemente desta, a nossa proposição de centralidade da reprodução na percepção da especificidade camponesa permite diferenciar de forma vigorosa a unidade camponesa de outras estruturas presentes no agrário das sociedades capitalistas, em particular da empresa capitalista. Empresas capitalistas supõem a centralidade do lucro

34 Esse critério básico de diferenciação e a forma enunciada por Frank EIlis vêm sendo acionados intensamente nas discussões atuais sobre a agricultura familiar no Brasil em particular por Abramovay (1992: 115 - 131). Para uma crítica ver Carneiro (1998b).

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como fundamento da racionalidade decisória de seus componentes. Tal centralidade é bem encaminhada por Marx:

“A circulação do dinheiro como capital... tem sua finalidade em si mesma, pois a expansão do valor só existe nesse movimento continuamente renovado. Por isso, o movimento do capital não tem limites. [Aristóteles: existe uma segunda arte de adquirir, que se chama preferentemente e com acerto de crematística, segundo a qual parece não haver limites à riqueza e às apropriações...]. Como representante consciente desse movimento, o possuidor do dinheiro torna-se capitalista... O conteúdo objetivo da circulação em causa — a expansão do valor — é sua finalidade subjetiva. Enquanto a apropriação crescente da riqueza abstrata for o único motivo que determina suas operações funcionará ele como capitalista, ou como capital personificado, dotado de vontade e consciência... Tampouco o lucro isolado, mas o interminável processo de obter lucro... (Marx, 1978:171-72)”.

Distinguindo estruturas que se centram na reprodução, de estruturas que se centram no lucro, nossa argumento não exclui o lucro da realidade camponesa. Longe disso. A hipótese é que, nessa realidade as expectativas em relação às necessidades e condições reprodutivas vêm primeiro: se forem atendidas, mesmo que expectativas de lucro se frustrem reiteradamente, a unidade produtiva camponesa continua em funcionamento e muito provavelmente não alterará, “só” por isso, sua rotina. Do mesmo modo, não se exclui a busca da formação de elementos de capital — a acumulação de meios de produção —como traço da realidade camponesa. Entende-se, isto sim, que tais processos se subordinam, também, às condições e necessidades reprodutivas. De modo que, ao contrário dos empreendimentos que acumulam para maximizar lucro, a unidade camponesa acumula para tornar mais eficiente à reprodução.

O fenômeno da vinculação parcial ao mercado não é tratado, assim, por nós, como um traço distintivo que se manifestaria apenas em condição de tradicionalidade — quando o produtor familiar rural seria (estritamente) camponês —, sumindo de modo irreversível nos processos que produzem o agricultor familiar, pois a integração do produto do trabalho camponês ao mercado “... nem sempre é, mas sempre poderá vir a ser parcial” (Costa, 1995), uma vez que essa possibilidade deriva de uma capacidade da produção familiar rural e é, por isso, um componente de sua natureza enquanto economia centrada na reprodução. Essa característica pode manifestar-se a qualquer momento, em qualquer uma das suas formas. Nesse sentido, o produtor especializado, inserido 100% no mercado, não corporifica, a priori, o resultado de um processo já concluído de extermínio dos camponeses — sujeitos sociais da produção familiar rural. Ele pode ser, antes, uma forma de sua permanência35.

35 Tepicht trata de forma ambígua tais questões. Por um lado, entende a inserção parcial dos camponeses no mercado corno um distintivo estrutural quando os diferencia dos artesãos: “No que se refere às estruturas, salientamos que somente parte da produção do camponês é comercializável, enquanto que aquela do artesão não tem outro fim que o mercado” (Tepicht. 1973:18) (tradução literal por HMC). Em outro momento, seguindo Mendras, a inserção parcial tem o propósito de diferenciar o camponês tanto dos produtores familiares cuja produção é completamente comercializável, quanto dos produtores categorizados como de subsistência (conf. Tepicht, op. cit.: 18 e 27).

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Ademais, nada, absolutamente nada incompatibiliza estruturalmente o uso da capacidade de inserção parcial nos mercados com a disponibilidade de informações plenas de seus mecanismos e conjunturas, tanto no que se refere a fatores, inclusive ao trabalho, quanto a produtos. A rigor, tal conhecimento, nos níveis mais avançados, potencializados pelos desenvolvimentos atuais e em perspectiva da informática e da comunicação, pode permitir uma gestão moderna, uma redefinição do papel da alternatividade36 em relação ao mercado que as estruturas camponesas podem desfrutar.

Por fim, distanciamo-nos, aqui, da teleologia contida no trato, por tais abordagens, das diferenças observáveis no mundo rural: estas somem sem rastro, levando consigo todo seu conteúdo social e histórico, “... numa homogeneização que reduziria a distinção entre rural e urbano a um continuum dominado pela cena urbana...” (Carneiro, 1998:53). O obscurecimento daí resultante dificulta a compreensão da questão de fundo em toda a problemática: o sentido que a diversidade estrutural e cultural que conforma a realidade agrária tem assumido no passado, e poderá assumir no futuro para a eficiência da reprodução do todo social, para a construção de uma sociedade melhor.

Complexidade da economia camponesa

As unidades de produção camponesas são estruturas distintas dos empreendimentos capitalistas porque centradas na reprodução dos seus trabalhadores diretos. Todavia, enfatize-se que elas reproduzem sua especificidade na realidade social do capitalismo, dado que, aqui como alhures, campesinato supõe mercado.

Na unidade produtiva familiar agrícola tende a prevalecer uma racionalidade fortemente orientada pela fusão entre esfera de produção e esfera de consumo e, a isso associado, pelo balanço das necessidades (histórica e culturalmente determinadas) em relação à disponibilidade interna de capacidade de trabalho – seja este direto ou gerencial - do grupo familiar. Tal proposição, que dispõe de longa tradição na discussão sobre dinâmica agrícola a partir dos trabalhos seminais de Chayanov/Tschayanov (1923) e Tepicht (1973), ganha particular interesse para o escopo desse artigo, pois oferece um modelo alternativo para descrever dinâmicas de inovação.

Costa (1995, 1998, 1989) leva esta possibilidade bem longe e, assumindo as conseqüências lógicas e teóricas da “centralidade da razão reprodutiva”, que atribui a esta tradição, formula um modelo baseado em três premissas:

Primeira premissa

A unidade produtiva camponesa tende a ser regulada em seu tamanho e em sua capacidade de mudar pela capacidade de trabalho que possui enquanto família. Sendo tal capacidade Ht, este montante tenderá a ser um limite, tanto para garantir a reprodução, como para empreender inovações. Essa premissa não é incompatível com a recorrência da 36 Ver a discussão sobre a alternatividade em Garcia Jr. (1983). Para grupos camponeses amazônicos ver Costa (1997b e 2000).

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contratação de força de trabalho externo à família, que sempre se constata empiricamente em universos camponeses. Estabelece, em relação a isso, que tais contratações tem desdobramentos sobre a extensão e intensidade do uso da capacidade de trabalho própria à família – tanto nas suas alocações diretas, quanto na gestão do processo produtivo37 – sendo, portanto, limitadas por essa capacidade interna.

Segunda premissa

As forças que emergem das tensões contrárias – umas originadas das necessidades reprodutivas, que impulsionam ao trabalho, e outras provindas das tensões associadas ao próprio exercício do trabalho, que apelam ao lazer38 – estabelecem, pela experiência pessoal dos componentes da família e sua vivência cultural, um padrão reprodutivo.

O que chamamos aqui padrão reprodutivo envolve certa configuração da distribuição do trabalho por um conjunto de atividades, cujos resultados entram direta ou indiretamente no processo produtivo — na forma de meios de produção — ou reprodutivo — na forma de meios de consumo. É, pois, um padrão de produção associado a um padrão de consumo produtivo — isto é, que se faz como necessidade estrita do processo de trabalho — e reprodutivo —inerente às necessidades de manutenção do grupo familiar e seus fundamentos de trabalho.

O padrão reprodutivo constitui-se, portanto, de um hábito de consumo familiar ajustado a uma rotina de trabalho entendidos – isto é, subjetivamente avaliados – como adequados. Esse padrão reprodutivo cria um ponto de acomodação a um nível de aplicação de trabalho que anotamos como He.

He é necessariamente menor ou igual a Ht (capacidade de trabalho potencial total que possui a família), e tem dois componentes:

um equivale aos bens diretamente consumidos pela família (Hv) resultantes do hábito de consumo familiar;

e outro que equivale ao que Tepicht (1973) chamou de consumo produtivo da família, quer dizer, à necessidade de manutenção dos meios de produção aplicados (Hc) decorrentes da rotina de trabalho.

Então, He = Hv + Hc, sendo que He será sempre menor ou igual a Ht.

37 Pesquisas recentes têm considerado a importância do trabalho de gestão na unidade familiar. Hufman e Evenson (2001:131) referem-se como segue à questão (nos EUA): “Compared to 50 or 100 years ago, today’s farmers spend relatively more in planning, analyzing, and managing their farm business and less in field labor and livestock care”. Sobre a tensão que o trabalho de gestão produz na unidade familiar na agricultura e sobre a relação que apresentam com a contratação de trabalhadores de fora do estabelecimento os resultados das pesquisas baseadas em abordagens por multi-critérios (multi-criteria approach) são esclarecedores: entre seis critérios apresentados para avaliar preferências reveladas no comportamento dos agricultores, a minimização das dificuldades de administração apresentou-se como o de maior regularidade e peso, seguido da minimização de trabalho contratado (Sumpsi, Amador, Romero, 1996: 64-71). 38 Ou substanciam uma aversão à penosidade do trabalho. Alguns autores acham que essa é a característica mais marcante da racionalidade camponesa. Ellis (1988: 102-119) entende, até, que a teorização de Chayanov dá conta apenas de um “drudgery-averse peasant”.

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He é denominado de orçamento de reprodução (da unidade de produção camponesa).

Terceira premissa

As relações com os demais setores, que se fazem por múltiplas mediações, algumas imediatas outras mediatas, estabelecem as condições de realização de He, ou seja do orçamento de reprodução. Assim, em decorrência dessas relações com outros setores, ou do envolvimento da família camponesa com a sociedade envolvente, He realiza-se por Hr.

Hr é o dispêndio efetivo de trabalho dos membros da família, de modo que Hr é diferente, sendo, tendencialmente, maior ou igual a He e, necessariamente, menor ou igual a Ht. Trabalha-se, de fato, na unidade camponesa, em algum ponto entre o ponto de acomodação e o máximo de trabalho de que se poderia dispor.

Pelo que já se mencionou na primeira premissa sobre a possibilidade de contratação de força de trabalho externa, todavia, o trabalho total aplicado à produção poderá ser maior que Ht.

O que estabelece a diferença entre Hr e He são as condições de permuta entre o trabalho despendido pelos membros da família, mediado pelas condições próprias da unidade produtiva, e o trabalho desenvolvido em outros ramos e setores produtivos, bem como em outras esferas do sistema econômico, entre os quais se destaca a esfera da circulação de mercadorias como a mais evidente39.

A unidade de produção familiar seria, pois, um sistema, cujas necessidades reprodutivas organizam-se atendendo a dois conjuntos de forças e a uma restrição fundamental. Atende às forças que estabelecem He (bens diretamente consumidos pela família e necessidade de manutenção dos meios de produção aplicados) e às que estabelecem Hr (dispêndio efetivo de trabalho dos membros da família).

As primeiras forças que estabelecem He atuam como centro de gravidade e atrator de Hr, agindo de tal modo que Hr (tenda a) He; as segundas atuam dispersando Hr em

39 He (lembre-se, a reprodução) da unidade camponesa realiza-se, assim, mediada pela “filtragem” que as condições sociais (isto é, do todo econômico e social) imediatas (m e u) e mediatas (, e ) fazem do trabalho concretamente aplicado pelos seus membros. Aqui se cumprem os parâmetros da determinação social das condições de reprodução de cada unidade camponesa em particular.

, sendo h ou eficiência da reprodução (1)

e

(2)

para m representando a taxa de lucro das mediações mercantis, , a relação de preços entre os produtos vendidos e os produtos comprados, e , a relação entre a produtividade média da indústria e a produtividade média da produção agrícola em questão e, finalmente, u, a proporção da produção que é por ela auto-consumida.

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relação a He, de forma que Hr (tenda a) Ht, este último constituindo a restrição básica do sistema. Por outra parte, as condições que determinam Hr introjetam na unidade camponesa as tendências e instabilidades do sistema envolvente.

Daí três considerações necessárias:

Primeira consideração

Quanto mais próximo Hr esteja de He, mais eficientemente funciona o sistema, de sorte que a relação

He — = h, onde Hr

h é a mais importante medida de eficiência do sistema unidade camponesa, a que chamamos de eficiência reprodutiva — grandeza que necessariamente varia entre 0 e 1 e expressa, observando-se pela ótica microeconômica, a capacidade do sistema de internalizar, reter em seu proveito, o trabalho por ele próprio despendido (ver Costa, 1995).

Segunda consideração

A eficiência reprodutiva não é, como a gravidade na física e o valor em economia, imediatamente dada a perceber aos indivíduos que participam do sistema. Dito de outro modo trata-se também aqui de fenômeno só sensorial ou intuitivamente perceptível pelos indivíduos através de seu efeito, a tensão reprodutiva. Trata-se de uma grandeza que expressa a tensão resultante do crescimento do volume de esforço físico (Hr) para posição de consumo constante (He), ou de deterioração dessa posição de consumo relativamente a Hr.

Terceira consideração

As condições que determinam Hr produzem um estado de incerteza — pois às incertezas da natureza somam-se as incertezas do sistema envolvente, cuja prevenção exige, da unidade camponesa, o controle da variância da sua eficiência reprodutiva no tempo. Não basta, numa sucessão de anos, que h (medida da eficiência reprodutiva) seja, em média, muito elevado. É necessário que ele não oscile a ponto de por em risco a reprodução em qualquer ano.

Indicadores empíricos e fortes argumentos teóricos indicam ser a relação de preços entre agricultura e indústria, por razões estruturais, tendencialmente desfavoráveis à agricultura; a produtividade média de mercado dos produtos camponeses tende a crescer no tempo, mas em velocidade inferior à produtividade da indústria. A primeira dessas tendências leva a um questionamento contínuo da relação entre produtividade física da produção local e dos mercados mais amplos em que se insere (nacional, mundial), e a segunda, ao crescimento da relação entre a produtividade na indústria e na agricultura.

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Tais tendências constituem forças que redefinem continuamente as condições reprodutivas das unidades camponesas, produzindo uma deterioração sistemática da sua eficiência reprodutiva (h) e manifestando-se conjuntural e localmente por oscilações bem drásticas. A prevenção de variações exige que as unidades camponesas controlem a variância da sua eficiência reprodutiva no tempo. Por isso, a diversificação é um componente inerente à perspectiva de eficiência reprodutiva — tornando-se um dos traços de natureza (nem sempre manifesto) da economia camponesa.

Eficiência, tensão reprodutiva e propensão ao investimento

A dinâmica inovativa do sistema resulta fundamentalmente da motivação de seus membros em despender o trabalho extraordinário que se faz necessário e da disponibilidade efetiva (quer dizer, objetiva) de trabalho para tanto — esta determinada pelas condições sociais de sua reprodução.

A motivação da família para investir, na tradição chayanoviana da qual compartilha-mos, está diretamente associada à distância relativa de Hr (volume de trabalho realmente despendido) em relação a He (valor das necessidades reprodutivas). Para Chayanov tal motivação seria suficientemente descrita pela relação (Hr-He)/He. Entendemos, todavia, que se tem que ter presente que a disponibilidade objetiva de energia para tanto é dada, por sua vez, pela relação (Ht-Hr)/Ht — isto é, pela disponibilidade de trabalho potencialmente aplicável na inovação40 como uma proporção de Ht (uma medida do grau de liberdade do sistema em relação às condições de determinação de Hr).

Da relação entre a tensão e a decorrente disposição para mudança e as condições objetivas para tal — é dizer, da relação entre os graus de tensão, o estoque de meios de produção (entre os quais se destaca a terra), de técnicas e saberes acessíveis, além dos níveis de disponibilidade de trabalho extraordinário para proceder à mudança —, resulta o investimento efetivo. Tal esforço, contudo, será sempre um processo de atualização de um possível, ou seja, de materialização de uma possibilidade futura.

Assumimos, a partir daí, que as condições para que existam investimentos numa unidade camponesa são:

o nível de tensão determinado pelas macrocondições da reprodução da unidade familiar, estas últimas expressas na eficiência reprodutiva;

a expectativa, por parte dos membros da família, de que a tensão reprodutiva no futuro será maior que a atual, se não houver uma ação de mudança;

a expectativa de que as alternativas que se colocam para a mudança levarão a uma tensão reprodutiva menor no futuro;

a avaliação de que o esforço necessário para a mudança não se coloca em nenhum momento acima de imax

41 quer dizer, do máximo de trabalho capaz de ser

40 Essa mobilização de trabalho pode ser ex-ante (para formar a poupança necessária) ou expost (para honrar endividamento resultante) da inovação, ou corresponder, ela própria, à formação de meios de produção naquilo que Tepicht (1973) chamou de “auto-consumo produtivo”. 41 (imax)) é taxa de investimento máximo para recuperar a eficiência reprodutiva (h).

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arregimentado pela família para o processo de mudança, sem comprometer as necessidades de reprodução simples.

Uma leitura das possibilidades futuras das mudanças atuais só é possível através da renda. O cálculo da renda é a fresta de observação das possibilidades da mudança. Ele orienta as expectativas que fazem parte do processo de mudança. E, precisamente por isso, ele:

co-orienta decisivamente a forma do investimento e amplia ou deprime os efeitos associados à eficiência e tensão reprodutiva.

É distinta da visão neoclássica a forma como compreendemos as variáveis de renda e rentabilidade dos fatores de produção. Primeiro, a tradição neoclássica compreende ser a rentabilidade dos fatores suficiente para análises de eficiência e viabilidade de qualquer sistema econômico. Segundo, avalia a eficiência de estruturas e atividades pela remuneração dos fatores envolvidos --- no caso da agricultura, em particular do trabalho e da terra (Binswanger, Elgin, 1989; Binswanger, Deiniger, Feder 1995).

A remuneração média (e marginal) da unidade de trabalho (dia, hora) e da terra (hectare) indicaria o grau de eficiência de uma certa função de produção (de um sistema de produção) em relação a outro e das respectivas escalas de produção. Assim, só é possível estabelecer distinções de tamanho entre as diversas estruturas presentes no setor. Tal perspectiva apresenta, por isso, um forte viés tecnocrático, observando a realidade por uma racionalidade que lhe é exterior e estranha. Ademais, a hipótese de otimização de critérios intertemporais que a fundamenta atribui-lhe uma dimensão teleológica que exige, segundo aponta acertadamente Aubin (1997; 148), pressupostos altamente improváveis no mundo real, tais como: a) a presença de atores investidos da função de controle das variáveis fiduciárias; b) o conhecimento dos critérios a serem otimizados; c) antecipações do futuro que a impossibilidade de experimentação com sistemas econômicos proíbe; e, finalmente, d) que a decisão crucial, supostamente otimizada, fosse tomada nesse instante inicial.

Para nós o tratamento adequado da economia camponesa exige a consideração de sua racionalidade específica, mediante a qual se atribui ao cálculo da renda papel central, porém coadjuvante, enquanto base de processos de monitoramento reflexivo na perseguição de estratégias de eficiência reprodutiva; tais processos incluem a consideração, sob certas circunstâncias, de que se alcançará um estágio superior de eficiência com um sistema que proporcionará maior remuneração por unidade de trabalho que compõe a força de trabalho da unidade familiar, em um dado ciclo reprodutivo.

É que a “empresa camponesa”, diferentemente da empresa capitalista, não se relaciona com o trabalhador apenas como portador de uma jornada de trabalho, que se renova a cada contrato --- ou deixa de existir por um ato unilateral de vontade. Aqui, o trabalhador é, por inteiro, seu componente e sua potência de trabalho.

A tensão reprodutiva, num dado momento, as expectativas de sua evolução no tempo e a capacidade interna de arregimentação de trabalho condicionam a disposição para investir, a propensão a mudar com vistas à eficientização das condições reprodutivas.

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Além do mais, seguindo Lipton (1982a), reivindicamos que uma análise econômica de estruturas camponesas não pode prescindir de uma verificação de sua estabilidade reprodutiva42. Nesse sentido, indicamos que a sustentabilidade econômica - isto é, a capacidade de permanência no longo prazo —de um padrão reprodutivo pode ser avaliada pela relação entre sua eficiência reprodutiva e seu grau de estabilidade.

A estabilidade de um padrão reprodutivo requer, em última instância, diversidade. Na economia camponesa, a diversidade total que fundamenta a estabilidade de um padrão reprodutivo resulta de dois tipos de diversidade: diversidade de produtos e diversidade de usos — mais amplamente, destinações — desses produtos.

A diversidade de produtos amortece impactos — derivados de irregularidades da natureza, do mercado ou da política econômica —ocorridos em cada um deles, permitindo dinâmicas compensatórias interprodutos, que resultam na elevação da estabilidade do padrão. A diversidade de destinações tem a ver, em primeiro lugar, com a capacidade que têm os produtos de alternar-se, sem prejuízos significativos, entre o mercado e o autoconsumo — a isso os antropólogos têm chamado de alternatividade (conf. Garcia Jr., 1983); em segundo lugar, com a capacidade que têm os produtos de penetrarem diversos mercados, de circular em diversos circuitos. Em ambos os casos, com a amplitude das possibilidades, amplia-se também a base da estabilidade. A diversidade de produtos é facilmente avaliada por um índice qualquer de concentração (por ex. o Gini): quanto menos produtos, mais concentrado, (menos diverso) o fundamento do padrão reprodutivo em questão, que, por isso, menos estável, etc.

A forma do investimento resulta do fato de que o esforço de mudança orienta-se, sempre, para a elevação do rendimento da família (o que equivaleria à elevação do rendimento médio de cada unidade de trabalhador-equivalente).

A propensão ao investimento i (proporção do tempo de trabalho extraordinário que o conjunto dos membros da família provavelmente se disporá a alocar para formar elementos de capital, em relação ao tempo total de trabalho potencialmente utilizável) é uma função da tensão reprodutiva (o inverso da eficiência reprodutiva h) e percorre uma trajetória parabólica: seu valor tende a zero quando h tende a 1 (eficiência máxima e ponto de acomodação) ou a (em que todo trabalho disponível só permite o atendimento da reprodução simples).

A forma parabólica da “função investimento” (gráfico adiante) camponês traz consigo de imediato uma importante conseqüência lógica: há taxas idênticas de investimento provável para níveis de eficiência e, portanto, graus de tensão simétricos. Quando essa simetria tende a zero, a propensão a investir tende ao máximo. A implicação teórica disso é que, assumida a centralidade da reprodução, a racionalidade atribuível a essa

42 São inúmeros os trabalhos empíricos que demonstram as muitas decisões camponesas que são tomadas objetivando estabilidade, em muitos casos em detrimento da própria rentabilidade do trabalho. Na literatura especializada, por conta da recorrência desse comportamento, vários autores têm tratado o camponês como um agente caracteristicamente averso ao risco (ver, para mais detalhes, Costa, 2000, capítulo II.4).

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reprodução pode explicar uma igualmente baixa disposição para investir em situações muito favoráveis (em que h tende a 1, seu valor máximo) — ou avaliadas favoravelmente, de modo a não haver razões subjetivas para mudar — ou muito desfavoráveis, em que a condição objetiva básica para inovar, a disponibilidade de trabalho extra, tende a zero. A mesma racionalidade pode explicar, pois, tanto disposições modernas de constante inovação, quanto tradicionais de acomodação e resistência à mudança.

Fonte: Desenvolvimento do Autor

E as unidades camponesas respondem a tais condições em dinâmicas adaptativas, associadas a uma maior ou menor disposição para o investimento (na forma como aqui foi conceituado, de dispêndio de trabalho extra), cuja efetivação resulta em novos arranjos técnicos com maior ou menor capacidade de restauração dos níveis de eficiência reprodutiva.

Na função de investimento, as seqüências de taxas que se formam, numa sucessão de anos, como resultado de uma mudança inicial de eficiência reprodutiva, seguem padrões bem claros. Tais padrões são, além do mais, fortemente diferenciados em função da posição inicial do movimento que alterou a eficiência reprodutiva.

Se as mudanças na medida de eficiência reprodutiva (h) realizam-se em condições de elevada eficiência reprodutiva, então a seqüência de propensões ao investimento será sempre decrescente e tenderá a um ponto constante. Esse ponto constante, essa propensão que se repete é também determinada (...) Ela depende, assim, da intensidade da deterioração das condições de rentabilidade e produtividade que determinam a eficiência reprodutiva e da competência das inovações utilizadas na recomposição dessa mesma eficiência.

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Se o ponto de partida estiver em posição de baixa eficiência reprodutiva (i*)43, nesse caso, se transformará numa barreira. Fazendo-se o investimento abaixo do valor por ele determinado, a seqüência de taxas subseqüentes far-se-á rapidamente em direção zero. Se, entretanto, situar-se o investimento acima disso, cria-se uma seqüência positiva de taxas que se sucederão continuamente, crescentes até atingir imax,depois decrescente até atingir o i* próximo do ponto de acomodação, quando, então, se torna constante.

Tais constatações têm três implicações teóricas de maior importância:

Primeira implicação

Permitem a hipótese de que, em relação às propensões e à capacidade de mudar, as unidades camponesas apresentam três padrões de comportamento, correspondentes a três conjuntos de situações quanto à eficiência reprodutiva e quanto ao padrão reprodutivo (...) Chamamos esses “níveis satisfatórios” de campo de vigência de um padrão reprodutivo. A rigor, um padrão reprodutivo seria um He (um orçamento de reprodução) e seu campo de vigência.

Segunda implicação

Um padrão reprodutivo entra em crise sempre que i* se mostrar sistematicamente maior que imax. É que, em tais condições, os esforços exeqüíveis para a mudança tornam-se incapazes de repor o sistema nos níveis de eficiência que configuram a vigência do padrão reprodutivo. Nesse quadro, realiza-se uma dinâmica viciosa — taxas cada vez menores de h — que tendencialmente leva o sistema ao seu limite máximo de esforço, em que Hr (dispêndio efetivo de trabalho dos membros da família) tende a se igualar a Ht (capacidade total potencial de trabalho da família). Nessa região tem-se o estado de crise do sistema.

Terceiro: a saída de um estado de crise encontra uma barreira dada por i*. Ao contrário do estado de vigência do padrão reprodutivo, seu estado de crise exige saltos: grandes esforços de mudança de uma só vez ou grandes mudanças nas variáveis que determinam h. Se i* é maior do que imax a unidade produtiva não tem como sair da crise com seus próprios meios. Ela aprofunda a crise pela degradação (redução) de He e tendencialmente fracassa. Se, contudo, ela logra um salto (um i maior do que i*), cria-se uma virtuosidade nas taxas de propensão à mudança, crescendo essa disposição até o ponto de imax. Tem-se, nesse intervalo, um estado de excitamento do sistema que pode levar a esforços crescentes de mudanças e inovações. A partir de imax, essa disposição amaina, acomodando-se em seguida no ponto i* — já em um novo campo de vigência de um novo padrão de reprodução. No estado de crise do padrão reprodutivo, pois, as mudanças não podem ser acomodatícias — elas têm que ser mais ou menos radicais. E o período de excitamento que se segue a esse salto pode permitir os ajustes e complementos necessários para consolidar o salto inovativo enquanto base de um novo padrão de reprodução (com um novo — maior — He e um campo de vigência menor).

43 (i*) é a relação entre a taxa tendencial de desgaste da eficiência reprodutiva (h) e a capacidade do investimento feito no ano anterior para recuperar h.

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4.3. Dimensão sociológica e política

4.3.1. Elementos do padrão reprodutivo do campesinato

O padrão reprodutivo referido na seção anterior (4.2.) foi considerado como “... constitui[ndo]-se... de um hábito de consumo familiar ajustado a uma rotina de trabalho entendidos – isto é, subjetivamente avaliados – como adequados....”

O hábito de consumo familiar é determinado por fatores internos e externos à família. Os internos poderiam ser denominados como aquelas preferências subjetivas e objetivas que os membros da família foram adquirindo nos processos de socialização secundária no cotidiano de suas vidas. Essas socializações determinadas pelo parentesco, vizinhança e a cultural local, entre outros, se expressam nas vontades e práticas de consumir bens e serviços necessários (ou assim considerados) à sua reprodução como pessoas e famílias. Os externos são estabelecidos pela “moda” induzida pelos meios de comunicação de massa.

Conforme Carvalho (2002: 27-28) “(...) As famílias que constituem os pequenos agricultores familiares, os agroextrativistas e os pescadores artesanais, com diversos graus de diferenças entre as diversas regiões do país, adotaram uma matriz de consumo, amplo senso, tipicamente urbano. Isso quer dizer, por exemplo, que os itens que compõe a dieta alimentar dessa população rural obedecem àqueles valores de consumo induzidos pelos meios de comunicação de massa, em especial a televisão. São determinados pela moda de consumo das classes médias urbanas. Assim, a denominada produção para autoconsumo, em particular os itens de consumo alimentar como as olerícolas, as proteínas de origem animal e os carboidratos, são adquiridos em supermercados urbanos, nas cantinas dos distritos rurais ou nos mercados das cooperativas e ou associações de produtores.”

“Para que essa prática de consumo possa ser exercida plenamente é necessário que essas famílias obtenham rendimentos monetários compatíveis com os gastos mensais e ou anuais efetuados com tais despesas, sejam elas com alimentos, vestuários, móveis, transporte próprio, etc. O mesmo raciocínio poderia ser aplicado no processo de aquisição dos insumos para a produção e ou extrativismo. Entretanto, em decorrência da crise de realização dos produtos por eles produzidos no processo de trocas comerciais, esses produtores não obtêm ganhos (logo, dinheiro) suficientes para arcar com a totalidade desses tipos de gastos.”

“Os gastos com o consumo de alimentos têm representado uma parcela importante no orçamento de manutenção da família. Os consumidores urbanos não têm possibilidades de produzir os itens que compõem a sua dieta alimentar seja em função das circunstâncias em que se realizam os seus modos de vida como o tipo da moradia sem terreno disponível para a produção agropecuária, seja pela falta de conhecimento de como produzi-los. Essa limitação não se apresenta, ao menos parcialmente, ao pequeno agricultor familiar. Os gastos com alimentos adquiridos no mercado poderiam ser evitados ou reduzidos se parcela desses itens fosse produzida internamente na unidade de produção familiar.”

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“Esse consumo de alimentos adquiridos nos mercados é um dos componentes importantes para explicar a crise de identidade dos pequenos agricultores familiares. Na maioria dos casos as famílias que adquirem alimentos nos mercados varejistas sentem-se melhor (status perante os demais) (ver Baudrillard, 1995) ao exibirem entre seus familiares, vizinhos e mesmo os estranhos que lhes visitam as mercadorias que são veiculadas pela propaganda na televisão. Têm, de certo modo, “vergonha” de comerem ou utilizarem as “coisas da roça”. Assim, não mais plantam verduras, legumes ou árvores frutíferas, nem beneficiam seus produtos; não criam animais, como opção consciente para o autoconsumo, como aqueles que produzam leite (gado bovino, cabras ou ovelhas), nem o beneficiam seja para estocar seja para a venda nos mercados; não fazem a manteiga, pois, preferem as margarinas; não se abastecem das proteínas de origem animal produzidas no sítio como as aves, suínos ou peixes, nem beneficiam as carnes na forma de embutidos, de defumados ou de carnes salgadas; naquelas regiões apropriadas não mais produzem o trigo, daí decorrendo que não mais fazem o pão caseiro e outros alimentos com esse produto; o milho é produzido apenas para a venda; a farmácia viva é relegada a favor dos medicamentos de origem industrial... Enfim, os produtos e subprodutos cultivados, extraídos ou criados na unidade de produção que tradicionalmente poderiam abastecer a mesa da família deixaram de ser produzidos ou extraídos.”

O outro componente, dialeticamente interligado com os hábitos de consumo familiar no âmbito do conceito de padrão reprodutivo, é aquele denominado rotinas de trabalho, as quais podem ser agrupados no que se denomina de matriz de produção e tecnológica.

Essa ou essas matrizes são conseqüência do modo de apropriação da natureza (seção 4.4, adiante) que é determinada pela cultura local e pela correlação de forças políticas no nível mais geral da sociedade global.

A matriz tecnológica dominante tem sido induzida pela pressão das grandes empresas multinacionais de insumos (nela incluída as sementes híbridas e as transgênicas) através das políticas públicas agrícolas (pesquisa agropecuária, crédito rural e assistência técnica), pela pressão na compra dos produtos agrícolas por outro grupo de empresas multinacionais relacionadas economicamente com aquelas dos insumos, e pelos valores hegemônicos aceitos como naturais pelas classes dominantes e veiculados pelos meios de comunicação de massa para toda a população. Entre esses valores estão presentes o consumismo, a pseudomodernidade tecnológica através do modo de apropriação da natureza capital-intensivo, a competitividade pelo ganhar mais sem escrúpulos e a ridicularização intencional do camponês como sinônimo do atraso.

A dimensão sociológica e a política sugerem caminhos para a superação dos valores, comportamentos pessoais e familiares e hábitos de trabalho impostos pelas classes dominantes para o conjunto da sociedade e, nela, para a deterioração pela negação continuada dos modos de viver e ser do camponês.

Como superação está-se compreendendo a afirmação da diversidade e da equanimidade através da convivência amorosa e crítica entre os diferentes, não no nível da produção capitalista, mas num mundo que se deseja renovado e mais igualitário.

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4.3.2. A importância de novos referenciais sociais para o campesinato44

Horacio Martins de Carvalho

(...) A tese aqui defendida é de que na maioria das regiões do país, para os pequenos agricultores familiares, as famílias agroextrativistas e as de pescadores artesanais, permanecer no campo (no litoral ou em ilhas fluviais ou lacustres, para parcelas dos pescadores artesanais) é melhor do que vivenciar as incertezas da cidade, tendo em vista o alto nível de desemprego e subemprego nela existente e a baixa qualificação, relativa à demanda industrial, do comércio e dos serviços, da força de trabalho da população rural mais pobre. Entretanto, não seria permanecer no campo subalternos aos ajustes econômicos, políticos e ideológicos que as classes dominantes e seus intelectuais orgânicos impõem. Mas, sim, permanecer no campo realizando mudanças nem sempre fáceis, mas factíveis de serem concretizadas na unidade de produção e no comportamento das famílias, que lhes permitam não somente melhorar a qualidade de vida e a do trabalho como desenvolver a consciência crítica para encontrarem caminhos para superarem as causas estruturais da opressão capitalista.

Para tanto, como pressuposto, seria necessário que essas famílias readquirissem novas esperanças e vislumbrassem uma nova utopia. Seria fundamental, então, que a reafirmação da identidade social camponesa (e a do extrativista e a dos povos indígenas) fosse revivificada não pela volta à comunidade camponesa utópica pré-capitalista, mas segundo outros referenciais sociais capazes de constituírem uma ou várias identidades comunitárias de resistência ativa à exclusão social e de superação do modelo econômico e social vigente. Seria necessário que os novos referenciais sociais desse campesinato renovado, e inserido de maneira diferente da atual na economia capitalista, lhes permitissem desenvolver níveis mais complexos de consciência para que esta não comece nem acabe na vizinhança (Martins, 1973: 28-29) (...).

Apoiando-me em categorias adotadas por Castells (1999: 22 ss), eu poderia afirmar que os pequenos agricultores familiares desenvolveram um processo de construção de identidade social legitimadora45. A dependência desses produtores rurais das políticas públicas compensatórias, das mediações sociais de representação clientelistas como a grande parte dos sindicatos de trabalhadores rurais, dos políticos profissionais e das organizações não governamentais, aliada à ausência de um projeto histórico para a reinserção social dessa fração de classe (pequenos agricultores familiares) (Carvalho, 1992 e 1993) no contexto da sociedade brasileira, impossibilita-os política e ideologicamente de resistirem à exploração econômica, à dominação política e à subalternidade ideológica exercida pelas classes dominantes.

44 Esta seção foi constituída de extratos do documento de Carvalho, Horacio Martins (2002). Comunidades de Resistência e de Superação. Curitiba, fevereiro, impresso 48 p.45 Identidade legitimadora: introduzida pelas instituições dominantes da sociedade no intuito de expandir e racionalizar sua dominação em relação aos atores sociais (...) Castells (op.cit, 24).

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Sabe-se, todavia, que parcelas dos pequenos agricultores familiares e dos trabalhadores rurais sem terra (arrendatários não capitalistas, parceiros, foreiros, extrativistas sem terra e assalariados rurais) tem consciência crítica da sua condição de pequenos agricultores familiares numa sociedade capitalista e da exploração econômica e da dominação política em que se encontram historicamente submetidos. Respondem, de longa data, a esses processos de subalternidade estrutural seja com as lutas de massa pela reforma agrária e pela democratização das políticas públicas como pela construção de alternativas políticas e sociais para a superação do atual modelo econômico privilegiador dos interesses das classes dominantes do país.

No entanto, apesar das iniciativas objetivas localizadas em vários Estados do país e das diretrizes de ação do MST e do MPA para a adoção de novos referenciais de produção que tornem os pequenos agricultores familiares menos vulneráveis à exploração econômica pelos grandes grupos econômicos nacionais e estrangeiros, ainda não se constituiu um processo social de massa que proporcionasse aos pequenos agricultores familiares a reafirmação renovada da sua identidade social a partir de um projeto de transformação da estrutura social brasileira. Construiu-se, isto sim, através desses movimentos sociais, identidades sociais de resistência. Conseguiu-se, de certa forma, superar a identidade social (identidade legitimadora) que legitimava a dominação. Porém, ainda não se alcançou a formação de uma identidade de projeto46.

Essas parcelas dos pequenos agricultores familiares e dos trabalhadores rurais sem terra que não aceitam os processos de exploração econômica e de dominação política construíram, de certa forma, uma identidade destinada à resistência. (...) Ela dá origem a formas de resistência coletiva diante de uma opressão que, do contrário, não seria suportável, em geral com base em identidades que, aparentemente, foram definidas com clareza pela história, geografia ou biologia, facilitando assim a “essencialização” dos limites da resistência... são... manifestações do que denomino exclusão dos que excluem pelos excluídos, ou seja, a construção de uma identidade defensiva nos termos das instituições/ideologias dominantes, revertendo o julgamento de valores e, ao mesmo tempo, reforçando os limites da resistência (Castells, op. cit: 25).

A construção de identidades sociais de resistência não propicia, ela em si, a produção de sujeitos. Entretanto, elas poderão permitir, ao reverterem o julgamento de valores, que se construam identidades de projeto. É a construção desta identidade que produz sujeitos. Sujeitos não são indivíduos, mesmo considerando que são constituídos a partir de indivíduos. São o ator social coletivo pelo qual indivíduos atingem o significado holístico em sua experiência. Neste caso, a construção da identidade consiste em um projeto de vida diferente, talvez com base em uma identidade oprimida, porém, expandindo-se no sentido de transformação da sociedade como prolongamento desse projeto de identidade (...) (Castells, op. cit.: 26).

46 Considera-se a construção de identidade de projeto quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda a estrutura social (...) Castells (op. cit.: 24).

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A Comunidade de Resistência e de Superação – CRS ao incrementar mudanças nos comportamentos das famílias, nos processos de trabalho e na concepção de mundo dos pequenos agricultores familiares propiciará condições econômicas, políticas e ideológicas não apenas para que as identidades de resistência ativa se afirmem, mas, sobretudo, para que haja um tempo social que facilite a emergência de consciência crítica ativa que se expressa em identidades de projeto.

Permanecer na terra como pequeno agricultor familiar, a partir das mudanças que aqui serão sugeridas, é um ato social de resistência. (...) a “identidade destinada à resistência” leva a formação de comunas, ou comunidades, segundo Etzioni (Castells, op. cit: 25).

Não me refiro aqui à noção de comunidade, e das identidades nela pressupostas em diferentes planos sociais da vida das pessoas, regida pelas relações de parentesco e ou de vizinhança, aonde as interações sociais face a face na vida cotidiana permite identificar hábitos de vida geradores de tipificações e institucionalizações necessárias para o estabelecimento de padrões sociais comuns de comportamento social (ver Carvalho, 1999 c), mas àquela noção surgida a partir das sociedades em rede, nas sociedades globais, tais como as comunidades formadas a partir das identidades como as das feministas, dos ambientalistas, dos mulçumanos, dos negros e sua negritude, dos povos indígenas, etc.

Um novo mundo está tomando forma neste fim de milênio. Originou-se mais ou menos no fim dos anos 60 e meados da década de 70 na coincidência histórica de três processos “independentes”: revolução da tecnologia da informação; crise econômica do capitalismo e do estatismo e a conseqüente reestruturação de ambos; apogeu de movimentos sociais culturais, tais como libertarismo, direitos humanos, feminismo e ambientalismo. A interação entre esses processos e as reações por eles desencadeadas fizeram surgir uma nova estrutura social dominante, a sociedade em rede: uma nova economia, a economia informacional/global; e uma nova cultura, a cultura da virtualidade real. A lógica inserida nessa economia, nessa sociedade e nessa cultura está subjacente à ação e às instituições sociais em um mundo interdependente (Castells, 1999 a: 412)

Ao mesmo tempo em que as instituições das classes dominantes articularam-se em rede mundial, as classes subalternas em todo o mundo iniciaram um processo similar, mas contrário ao primeiro, de articulação em rede de oposição à opressão capitalista globalizada. As manifestações havidas contra as reuniões anuais dos capitalistas em Davos, Suíça47, pelo movimento social anti-globalização do capitalismo é a expressão mais eloqüente das mobilizações em rede a partir da construção de identidades de resistência.

Aceito, para fins da proposta da CRS, a hipótese formulada por Castells (1999:28) de que a constituição de sujeitos, no cerne do processo de transformação social, toma um rumo diverso do conhecido durante a modernidade dos primeiros tempos e em seu período tardio, ou seja, sujeitos, se e quando construídos, não são mais formados com base em sociedades civis que estão em processo de desintegração, mas sim como um

47 Essa reunião realizou-se em 2002 em Nova York, EUA.

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prolongamento da resistência comunal [grifo no original]. Enquanto na modernidade a identidade do projeto fora constituída a partir da sociedade civil (como, por exemplo, no socialismo, com base no movimento trabalhista), na sociedade em rede, a identidade de projeto, se é que se pode desenvolver, origina-se a partir da resistência comunal. É esse o significado real da nova primazia da política de identidade na sociedade em rede.

A sociedade civil, enquanto espaço de poder aonde os interesses individuais se consolidam a partir da sua compatibilização (ou não) com os interesses sociais coletivos, ou seja, aonde se entrecruzam interesses privados com aqueles públicos, é em geral um espaço mediado pela lei vigente e, em decorrência, pelo Estado, enquanto responsável histórico pela garantia dos interesses coletivos ou públicos. Entretanto, como a ideologia das classes dominantes é a ideologia dominante para todas as classes sociais, em função dos processos de persuasão e de cooptação exercidos pelas vias institucionais da sociedade civil como a educação na família, a religião, a escola, os meios de comunicação de massa, o direito, as instituições governamentais, as forças armadas, as artes, entre tantas outras mediações, aquelas parcelas da população que negam essa direção intelectual e moral das classes dominantes, enquanto classe dirigente e pretensamente hegemônica, negam também, dialeticamente, essa sociedade civil existente. Ao negarem o Estado de classe em presença negam a própria relação entre a velha sociedade civil com esse Estado velho. Ensaiam, assim, construir novos espaços de relação entre o privado e o público, portanto, nova sociedade civil.

Esse processo de construção de uma nova sociedade civil (que nasce pela negação e superação da velha sociedade civil) esta se dando através de novas relações sociais a partir de identidades sociais de resistência ativa, no âmbito da sociedade em rede.

As mudanças que adiante serão [estão sendo] propostas, ainda que se refiram a mudanças que deverão ocorrer nas matrizes de consumo, de produção e na de concepção de mundo dos pequenos agricultores familiares, serão pautadas por motivações e por aspirações que terão como substrato subjetivo identidades sociais de resistência ativa no âmbito de comunidades construídas por relações sociais entre pessoas e instituições. Essa comunidade de resistência e superação fomentará, inclusive pelas alianças possíveis e necessárias a serem estabelecidas a emergência de novos espaços da sociedade civil.

Ao mesmo tempo em que se ensejam alterações nas relações sociedade civil e Estado, reformulando as instituições da sociedade civil, se estará proporcionando emancipações sociais continuadas (Carvalho, 2.001) dos pequenos agricultores familiares ao romperem as suas dependências perante o grande capital monopolista, o Estado e as mediações políticas tradicionais como os sindicatos e os partidos (...)

(...) A pequena agricultura familiar em todos os países capitalistas do mundo, consideradas as diferenças e particularidades que elas apresentam em função da sua grande diversidade, encontra-se em processo social de transformação em que a seletividade (permanecerão muito poucos) e a exclusão social (abandono da terra e êxodo rural) são determinados pelos interesses do grande capital oligopolista internacional. Naqueles países em que os governos ainda mantêm subsídios seletivos para a pequena agricultura familiar, em função da sua geopolítica e da manutenção de uma harmonia social sob o controle das

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classes dominantes, a pequena agricultura familiar ainda persiste. Porém, as pressões internacionais contra os subsídios à pequena agricultura familiar e para reduzir ou eliminar as barreiras alfandegárias à importação de alimentos que concorram com aqueles considerados como da segurança alimentar nacional já conduzem os pequenos agricultores familiares em todo o mundo capitalista a construírem identidades de resistência a nível mundial.

A sociedade em rede já está estabelecida no âmbito dos movimentos sociais populares de massa no campo (ver Carvalho, 2.001) como o MST, o MPA e o Movimento Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais – MNMTR (...) O que determina a sociedade em rede é a identidade de resistência (e de superação) contra a opressão capitalista que se estabelece entre esses produtores rurais ao considerarem as mudanças na estrutura do consumo familiar, na matriz de produção e tecnológica e na matriz cultural como uma proposta comum entre eles.

Essa teia de aceitação de padrões comuns de comportamento reafirma e ou constrói identidades sociais entre pequenos agricultores familiares de qualquer local do mundo, seja dentro do Brasil seja em outras regiões e ou países. As três mudanças propostas adiante, quando aceitas, constroem, no ato de implanta-las, o caminho da identidade social de resistência ativa desejada. Muitos pequenos agricultores familiares em todo o mundo já estão praticando essas mudanças. E já há entre eles identidade social.

As articulações intranacionais e internacionais já são intensas. A Via Campesina e o Fórum Social Mundial, entre tantos outros, já evidenciam que as sociedades em rede, similares e alternativas àquelas impostas pelo capital monopolista internacional, estão em construção e em ação. A Via Campesina poderá, no meu entender, ser considerada, amplo senso, como uma Comunidade de Resistência e de Superação pela identidade social de resistência que está construindo entre seus membros.

As mudanças necessárias para que os pequenos agricultores familiares possam resistir à opressão capitalista, ainda que inseridos na sociedade capitalista, tem como valor subjacente a valorização da pessoa humana e do meio ambiente.

Ainda que se almeje, como produtores rurais, a geração de renda familiar capaz de garantir qualidade de vida cada vez melhor, em face dos padrões internacionais do bem viver, e, portanto, renda essa que seja suficiente para dar conta da aquisição dos itens de consumo necessários à reprodução dos meios de vida e de trabalho não produzidos na unidade de produção, isso não significará que a retenção de um excedente dê-se conforme os valores da ideologia da classe dominante (...)

4.4. Dimensão ecológica48

Marcos Flávio da Silva Borba

48 Esta seção está constituída por extratos do texto Produção Camponesa de Marcos Flávio da Silva Borba (2004).

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“As relações sociais de produção e as técnicas produtivas não são suficientes para sustentar a defesa de uma economia camponesa. É fundamental a inclusão de uma dimensão ecológica. Não significa negar as relações econômicas que obviamente a ·economia camponesa  as mantém, ainda que em condições desfavoráveis já que ·na grande maioria está inserida numa disputa pelos mesmos espaços de ·comercialização do modelo industrial de produção /circulação /comercialização /consumo. Neste aspecto significa a necessidade de organizar novos espaços de comercialização. Mas, sobretudo significa a importância de privilegiar as relações ecológicas presentes nas diferentes estratégias camponesas encontradas no Brasil como diferenciais competitivos para os produtos da economia camponesa. Penso que é fundamental analisar as formas de produção camponesa (no plural porque são diversas, próprias de cada lugar de cada interação sócioambiental) justamente em função de suas relações com os ecossistemas através”. das suas culturas, de suas formas de organização.”

Características da produção camponesa

A produção camponesa se caracteriza, segundo Toledo (1993), por:

alto grau de auto-suficiência; predomínio do trabalho da família com mínimo uso de inputs externos (força

animal e humana mais que combustíveis fósseis como fonte de energia); produção combinada de valores de uso e mercadorias (isso sem orientação ao lucro

e sim a reprodução da unidade doméstica); serem geralmente pequenos proprietários de terra e que, ainda que a agricultura seja

a principal atividade da família, a subsistência está baseada numa diversidade de práticas (coleta, cuidado dos animais, artesanato, caça, pesca e trabalhos fora da exploração a tempo parcial, estacionais ou intermitentes).

Do ponto de vista da ecológica podemos encontrar na produção camponesa:

alta eficiência energética dos sistemas tradicionais ao não incorporarem integralmente a modernização da agricultura, ainda que tenham adotado fragmentos dos pacotes tecnológicos mediante processos de desconstrução/reconstrução das tecnologias;

normas de produção geradoras de poucas externalidades negativas (contaminação ambiental, erosão da biodiversidade, destruição dos recursos naturais, exclusão social etc) e de externalidades positivas de alto interesse da sociedade (preservação dos recursos naturais, da diversidade cultural, da diversidade biológica e genética, das paisagens, do conhecimento tradicional, etc), além de produtoras de produtos alimentícios e matérias primas de elevada qualidade;

qualidade não só de produtos, mas fundamentalmente de processos. Aqui o conceito de qualidade deveria ser tratado como construção social (subjetivo, portanto) e não como algo objetivo determinado por padrões convencionais (cor, forma, embalagem, publicidade etc, isto é, baseada na máxima “o cliente sempre tem razão”).

Modo de apropriação da natureza

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Toledo et al. (1998) propõem um enfoque ecológico da historia, ou seja, busca entendê-la através das mudanças ocorridas nas relações entre sociedade e natureza.

O autor começa por situar as sociedades a partir de seu metabolismo com a natureza, através do qual aquelas produzem e reproduzem suas condições materiais de existência. Algo que os seres humanos realizam através do processo social do trabalho (labor), ou seja, o conjunto de ações através das quais os seres humanos, independente de sua situação no espaço (formação social) e no tempo (momento histórico), se apropriam, produzem, circulam, transformam, consomem e excretam, produtos materiais, energia, água, provenientes do mundo natural. Assim, os seres humanos organizados em sociedade incorporam partes da natureza, socializam a natureza, ao mesmo tempo em que reforçam seus laços com a natureza num ato de naturalização da sociedade. Portanto, ao fazerem isso, sociedade e natureza se determinam reciprocamente, pois, a forma em que os seres humanos se organizam em sociedade determina a forma em que eles transformam a natureza, a qual por sua vez afeta a maneira como as sociedades se configuram (princípio eco-sociológico).

Ao nos aproximarmo-nos dessa relação através desse principio de coevolução percebe-se que a sociedade afeta a natureza por duas vias: ao apropriar-se dos elementos naturais (recursos naturais e serviços ambientais) e ao excretar resíduos da natureza já socializados. Por outro lado, a natureza assume sentido social ao realizar duas funções: ao prover a sociedade de energia endosomática (nutrição) e energia exosomática (materiais, energia e serviços) e ao reciclar e absorver os resíduos.

Como bem demonstraram Gadgil e Guha (1993), a transformação das sociedades tradicionais em industriais ou modernas pressupõe uma mudança significativa quanto a realização de tal metabolismo, pois o que antes era realizado por todos os membros, nas sociedades industriais (hierarquizada e socialmente diferenciada) passa a ser realizado por apenas uma parte da sociedade.

Para Toledo é possível distinguir, desde o ponto de vista ecológico, dois setores que se definem pelo rol que jogam durante o metabolismo geral que tem lugar entre a sociedade humana e a natureza: o rural ou primário e o urbano e/ou industrial. Segundo o autor isso nos leva a visualizar a sociedade em sua relação material com a natureza, como um organismo cuja periferia estaria constituída por uma membrana rural cujas células (unidades de produção) estariam encarregadas de extrair diretamente elementos da porção externa a dito organismo (ecossistemas) e de uma porção interna (sociedade) cujo rol consiste em transformar os bens que a porção rural proporciona. Toledo chama a atenção para o fato de que no mundo contemporâneo, onde os circuitos econômicos, culturais e de informação estão cada vez mais integrados, cada sociedade apresenta uma diferente configuração de seus setores natural, rural e urbano-industrial e um diferente e particular arranjo dos processos básicos que conformam o metabolismo geral entre estes. Assim que cada sociedade se articula e afeta a natureza de diversas maneiras e com diferentes graus de intensidade, mas sempre gerando uma realidade ecológico-social onde os fenômenos de caráter natural e os de estirpe social e humano se determinam mutuamente.

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Toledo situa o conceito de metabolismo derivado de uma visão ecológica-social, como quase equivalente ao conceito de produção empregado por Marx, ressaltando que tal termo, apesar de que conota uma idéia de caráter holístico, foi recorrentemente reduzido a sua mera expressão economicista. Quer dizer, o conceito além de econômico também o seria ecológico, social, político e sócio-psicológico (Wolf, 1982 apud Toledo, 1998: 15). Por isso, continua Toledo, o termo de apropriação vem representar, em certo modo, uma fração do processo geral da produção, visto que se refere ao momento (concreto, particular e específico) em que os seres humanos se articulam com a natureza através do trabalho, ou em outro sentido, a apropriação conforma a dimensão propriamente ecológica deste processo geral de produção. O termo apropriação, portanto, se refere ao ato pelo qual os humanos fazem transitar um fragmento de matéria (ou energia) desde o espaço natural até o espaço social.

(...) Toledo incide sobre o caráter multifacético ou multidimensional do fenômeno de apropriação da natureza. E o faz para ressaltar que uma análise completa ou integral, quer dizer eco-sociológico, do fenômeno só é possível a partir de uma abordagem multidisciplinar, pois uma aproximação a tal fenômeno implica pelo menos sete dimensões diferentes (Toledo et al. 1998:19-20):

1. a quantidade e qualidade dos recursos e serviços oferecidos pelo ecossistema que uma unidade de apropriação/ produção P se apropria;

2. a dinâmica da população que conforma P;3. o significado dos intercâmbios materiais que se estabelecem entre P e os

ecossistemas e entre aquela e os mercados (análise econômica); 4. o caráter e implicações do conjunto de tecnologias que P aplica durante as

apropriação;5. o conjunto de conhecimentos (corpus) que os membros de P põem em jogo durante

o ato de apropriação;6. a cosmovisão (cosmos) que como um conjunto de crenças rege os comportamentos

de quem formam parte de P, 7. o conjunto de instituições (econômicas, políticas e culturais) dentro das que P se

move: formas de propriedade e de acesso aos recursos naturais (estruturas agrárias), instituições familiares, religiosas e educativas, organismos creditícios, tipos de mercado, instituições governamentais, etc.

(..) Do ponto de vista histórico, a apropriação tem tido diferentes arranjos em função das relações estabelecidas entre as sociedades humanas e seus ecossistemas. Toledo et al. (1998: 24-25) afirma que se trata de configurações básicas, de caráter qualitativo, determinadas por três critérios fundamentais: 1) o grau de transformação dos ecossistemas apropriados; 2) a fonte de energia empregada para realizar a apropriação; e 3) o tipo de manipulação que os seres humanos efetuam sobre a estrutura, os componentes e a dinâmica dos ecossistemas. Em função disso os autores propõem três formas principais de apropriação da natureza ao longo da história: o modo extrativo (sociedades nômades de caçadores e recoletores); o modo camponês ou agrário, que surge com a agricultura e a domesticação dos animais, com algumas inovações ao longo dos tempos como os moinhos de vento e máquinas hidráulicas, (chegando assim até nossos dias); e o modo agro-industrial ou moderno fruto das revoluções industrial e científica iniciadas no século XVIII.

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(...) Um conjunto de características que operariam como atributos podem ser utilizados para diferenciar os modos historicamente determinados de apropriação da natureza que prevalecem no mundo contemporâneo. São eles:

o tipo de energia utilizada durante a apropriação; a escala das atividades produtivas; o grau de auto-suficiência da unidade produtiva rural; seu nível de força de trabalho; o grau de diversidade (eco-geográfica, produtiva, biológica, genética) mantida

durante a produção; seu nível de produtividade ecológica ou energética; seu nível de produtividade do trabalho; o tipo de conhecimentos empregados durante a apropriação / produção; e a visão do mundo (natural e social) que prevalece como causa invisível da

racionalidade produtiva.

(...) Trata-se do desenvolvimento endógeno, mas não autárquico, ou seja, aquele “desenvolvimento local produzido principalmente por impulsos locais e fundado em grande parte sobre recursos locais” (Picchi, 1994), mas sem pensar em isolamento total. Isto é o desenvolvimento endógeno inclui a determinação local das opções, um controle local sobre o processo e a retenção dos benefícios deste desenvolvimento no local, baseado principalmente, mas não exclusivamente, sobre os recursos localmente disponíveis, “pode revitalizar e dar uma nova dinâmica aos recursos locais, que de outra forma poderiam tornar-se supérfluos” (van der Ploeg e Saccomandi, 1995).

Nessa perspectiva se trata de promover novos arranjos entre os elementos conhecidos, incorporando elementos previamente desconhecidos (como as inovações tecnológicas, por exemplo); num constante processo de re-criação de coerência entre os recursos naturais e humanos buscando novos arranjos socioeconômicos do mundo rural (Remmers, 2000b); criando modernidades alternativas. Com isso se rompe a idéia de apatia do mundo rural tradicional, já que pressupõe uma continua renovação. Com a diferença que tal renovação não se constitui em fases evolutivas, nem tampouco se constrói sobre a base de intervenções meramente exógenas assentadas em idéias a priori sobre o que é o desenvolvimento. Pois propomos com este fim, a valorização de aspectos que até então estiveram fora do observável pela ciência; apoiado num processo que recobra o protagonismo dos atores sociais implicados, que assim deixariam de ser meros recipientes ignorantes e passivos do conhecimento superior ou simplesmente objeto do conhecimento científico.

Um desenvolvimento que, como bem define Sevilla Guzmán (op cit: 36), está baseado no descobrimento e na sistematização, análise e potenciação dos elementos de resistência locais frente ao processo de modernização, para, através deles, desenhar, de forma participativa, estratégias de desenvolvimento definidas a partir da própria identidade local do etnoecosistema concreto em que se inserem. Mais que tudo uma estratégia de localização do desenvolvimento.

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Em palavras de Remmers (1998:11), [localização é] um processo que não significa só a produção e o consumo de recursos num contexto espacial reduzido, ainda que possa significa-lo. Sobretudo é um ‘processo social em que as pessoas progressivamente percebem que tem um maior controle sobre a direção de suas vidas, num esforço para expressar e fazer valer, dentro de um contexto global e articulando-se com ele, a peculiar qualidade de seu lugar de vida, tanto na sua vertente de recursos naturais e humanos como na vertente de controle do processo de desenvolvimento’. Um processo que pode reverter e modificar o processo de globalização. Ou, como muito bem define Sevilla Guzmán (2001: 41), o endógeno não pode ser visualizado como algo estático e que refaz o externo. Ao contrário, o endógeno ‘digere’ o que vem desde fora, mediante a adaptação a sua lógica etnoecológica e sóciocultural de funcionamento. Ou seja, o externo se incorpora ao endógeno quando tal assimilação respeita a identidade local e, como parte dela, a auto-definição de qualidade de vida. Somente quando o externo não agride as identidades locais é que se produz tal assimilação. Ou seja, enquanto a produção de alimentos orientada ao mercado global e através de tecnologias exógenas, está cada vez mais desconectada dos princípios ecológicos, tratamos de aproveitar as características próprias de um modo de apropriação da natureza considerado tradicional, com sua história, seus conhecimentos e sua cultura; e a partir disso construir um modelo original de desenvolvimento, baseado numa racionalidade ambiental por cima da econômica-instrumental que caracterizou até então as formas predominantes de intervenção desenvolvimentista (Borba, 2002)

Portanto, o desenvolvimento proposto está assentado em estratégias levadas a cabo na interface do local e o global, do tradicional e o moderno. Trata-se de contrariar a visão hegemônica pela qual estes âmbitos são contraditórios e, portanto, o local deve-se integrar incondicionalmente ao global (economia e cultura) como necessidade sine qua non para a sobrevivência e a tradição deveria ser substituída pela modernidade como ruptura das barreiras para o desenvolvimento. Nesta visão o local e a tradição são vinculados a passado, atraso, trabalho, indígenas e camponeses, subdesenvolvimento, etc.; enquanto o global e a modernidade estão associados à desenvolvimento, capital, mercado, tecnologia, futuro, etc. Trata-se então de modelos alternativos de desenvolvimento de forma tal que as ações são desenhadas num processo social onde as populações locais reconhecem o valor de seu lugar. Ou seja, reconhecem que, através da potenciação do acervo cognitivo, cultural, social, político e meioambiental (Remmers, 1998), o local pode contrapor-se ao global, baseado em estratégias definidas pelas relações sócioambientais (modos locais de apropriação da natureza). Portanto, a primeira característica do outro desenvolvimento - um desenvolvimento construído de forma participativa e a partir das características sócioculturais e ecológicas locais (Borba, 2002) - é que este parte do local para logo tomar o desenvolvimento como conceito qualitativo, recuperando assim algo da orientação as necessidades básicas dos 70 com um foco na auto-suficiência  alimentar, energética, tecnológica, econômica, etc.

O outro desenvolvimento busca a sustentabilidade e atribui sua consecução as estratégias localmente conduzidas (manejo e preservação da diversidade, equidade, equilíbrio produtivo, estabilidade da paisagem, justiça econômica, etc.). O outro desenvolvimento reclama outras racionalidades: parte da racionalidade camponesa local harmonizada por uma racionalidade ambiental das intervenções externas; o outro desenvolvimento está fundamentado num processo de localização que tem sua

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contrapartida em processos alternativos ou contra-hegemônicos de globalização, onde as relações local-global são mediadas por um  processo de construção social da qualidade que usa a estrutura matricial do consumo. Ou seja, a qualidade influenciada pelo contexto sóciocultural e ecológico onde ocorre a produção e por diferentes atores que interpretam, representam e regulam a qualidade (Carbajo et al., 2002).

4.5. Dimensão tecnológica e agroecologia

A superação das tendências de consumo alimentar (seção 4.3, anterior) e de modelo tecnológico induzidos pelos valores e disseminação de comportamentos pela classe dominantes do país sobre a prática de vida da maior parte do campesinato proporcionará às famílias camponeses maiores graus de flexibilidade e adaptabilidade para darem conta da tensão reprodutiva (seção 4.2, anterior) que faz parte da dinâmica de convivência e incorporação crítica das tecnologias exógenas (seção 4.3 anterior) e da relação com os mercados.

Para que um processo de transição da situação atual de dependência e de subalternidade do campesinato aos valores econômicos e sociais dominantes se requererá não apenas uma nova compreensão teórica do campesinato, mas a proposição de modelos de produção e tecnológicos que facilitem, ao mesmo tempo, um novo modo de apropriação da natureza e um outro perfil do hábito de consumo familiar de bens e serviço não diretamente relacionados com o processo de trabalho ou com as rotinas de trabalho.

Silva (2002) sugere que “A abordagem agroecológica propõe mudanças profundas nos sistemas e nas formas de produção. Na base dessa mudança está a filosofia de se produzir de acordo com as leis e as dinâmicas que regem os ecossistemas – uma produção com e não contra a Natureza. Propõe, portanto, novas formas de apropriação dos recursos naturais que devem se materializar em estratégias e tecnologias condizentes com a filosofia-base. Entretanto, três fatores fundamentais devem ser contemplados nessa problemática:

a equidade enquanto um indicador fundamental da sustentabilidade dos agroecossistemas;

a diversidade e a compatibilidade cultural como base de construção de agroecossistemas biodiversificados e includentes e de uma pedagogia de troca de saberes;

a relação entre território disponível e capacidade de suporte dos ecossistemas e a organização espacial/territorial necessária ao desenvolvimento de sistemas agroecológicos de produção (...)”

4.5.1. Mudanças na matriz e nas práticas de produção49

49 Esta seção foi constituída de extratos do documento de Carvalho, Horacio Martins (2002). Comunidades de Resistência e de Superação. Curitiba, fevereiro, impresso 48 p.

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Horacio Martins de Carvalho

(...) A ruptura com essa dependência (do campesinato) perante os grandes grupos econômicos transnacionais exigirá mudanças em profundidade da matriz de produção adotada desde o início da década de 70. Mantida a mesma lógica do modelo dominante, ou seja, uma agropecuária capital-intensiva como a imposta pela agricultura industrializada, será muito difícil escapar da tendência dominante à monocultura, em especial de grãos, e à sujeição ao capital multinacional.

Uma nova matriz de produção, com a conseqüente matriz tecnológica, necessita ser implantada para que os pequenos agricultores familiares possam resistir ativamente à opressão do capital. Essa nova matriz de produção deverá atender a alguns critérios já anteriormente estabelecidos, tais como:

substituição da importação de insumos para a produção; diversificação das atividades de cultivos, criações e extrativistas (quando

pertinentes); redefinição das relações de convivência com o ambiente; geração de produtos do trabalho e de processos de trabalho saudáveis, sejam em

relação à natureza, seja em relação ao consumidor.

A substituição gradativa e parcial da importação de insumos para a produção exigirá, como exemplos, a produção interna de insumos como sementes varietais nativas, fertilizantes orgânicos, práticas de manejo de pragas e doenças. O mesmo é sugerido para a criação de animais. Essa substituição de importações implicará a adoção de uma nova matriz de produção e, por decorrência, de tecnologias que proporcionem uma relação mais equilibrada com o ambiente: a denominada agricultura, criação e extrativismo ecológicos.

Os extrativistas, em particular os pescadores artesanais, necessitarão agregar valor aos seus produtos, em especial pelo beneficiamento do pescado, para livrarem-se das sujeições a que estão submetidos pelos compradores que lhes adquirem os produtos por preço vil em função dos processos de dívidas crônicas em que mantém os pescadores artesanais pelo fornecimento (venda) monopolista de gelo, apetrechos de pesca, motores, barcos e insumos para a manutenção que vai desde a comida até a reforma dos barcos.

A mudança proposta significa o abandono, por parte dos pequenos agricultores familiares da denominada agricultura industrializada apregoada pelo neoliberalismo e pela globalização econômica. Pressuporá, para as famílias agroextrativistas e de pescadores artesanais o desenvolvimento da capacidade de beneficiamento dos seus produtos e a criação de mercados solidários que os livrem dos cativeiros em que se encontram.

A matriz de produção proposta para os pequenos agricultores familiares, ao se caracterizar como uma agricultura ecológica, deverá atender aos seguintes objetivos (Casado, 2.000: 65-66):

Produzir alimentos de alta qualidade nutricional em quantidades suficientes; Trabalhar com os sistemas naturais mais do que pretender domina-los;

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Fomentar e potencializar os ciclos biológicos dentro da unidade de produção, implicando os microorganismos, flora e fauna edáficas, plantas e animais;

Manter e incrementar, no longo prazo, a fertilidade dos solos; Usar, até onde seja possível, os recursos renováveis em sistemas agrícolas

localmente organizados; Trabalhar, no possível, um sistema fechado, com especial atenção à matéria

orgânica e os elementos nutritivos; Dar as condições de via aos animais de criação que lhes permitam desenvolver

todos aqueles aspectos de seu comportamento inato; Evitar todas as formas de poluição que possam resultar das técnicas agrícolas; Manter a diversidade genética do sistema agrícola e seus arredores, incluindo a

proteção plantas e do habitat silvestre; Permitir aos produtores retornos econômicos adequados e satisfação pelo

trabalho, incluindo um ambiente de trabalho seguro; Considerar o amplo impacto que gera, a níveis social e ecológico, um

determinado sistema de exploração agrícola.

A esses objetivos posso acrescentar o de manter corredores de matas entre reservas florestais nativas para garantir a migração de animais silvestres terrestres.

Essa matriz de produção deverá constituir, em médio prazo, sistemas agropecuários e extrativistas com uma autonomia crescente perante os grandes grupos econômicos multinacionais. Porém, esses sistemas agropecuários e extrativistas deverão estar, obviamente, inseridos nos mercados capitalistas do país e do exterior.

As mudanças na matriz de produção permitirão, pela produção interna dos insumos necessários como sementes, mudas e sêmem, fertilizantes orgânicos, produtos para o controle de pragas e doenças, produtos farmacêuticos de origem local, etc., ou seja, pela substituição da importação de insumos:

importante redução nos gastos com a compra de insumos que, aliado á redução de gastos com a produção de alimentos para o auto-consumo, permitirá a superação do endividamento crônico;

dispensar ou não mais depender do crédito rural de custeio (e a médio prazo do de investimento);

redução ou eliminação da dependência perante as grandes empresas nacionais e ou multinacionais de insumos;

a produção interna (autonomia) de sementes, de mudas e do sêmem; produção de alimentos ecologicamente saudáveis; nova relação com os mercados em função da variedade e da qualidade dos

produtos “in natura” ou beneficiados oferecidos; nova relação com o meio ambiente em decorrência de uma matriz de produção

ecologicamente sustentável.

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4.5.2. Transição agroecológica50

Silvio Gomes de AlmeidaGabriel Bianconi Fernandes

Economia familiar: modo de produção e modo de vida

Os sistemas agrícolas familiares encerram um conjunto de características e uma multiplicidade de funções que conferem a suas atividades econômicas um caráter multifacético e, ao mesmo tempo, fortemente interconectado. Deste ponto de vista, esses sistemas têm princípios e práticas de gestão semelhantes aos da agroecologia. O manejo ecológico dos agroecossistemas não nega esses princípios e essas práticas; ao contrário, introduz novos elementos que fortalecem sua capacidade de produção e de reprodução econômica, social, técnica e ambiental. As principais características e funções econômicas cumpridas pelos sistemas familiares são as seguintes:

A agricultura familiar é um sistema econômico no qual se imbricam sub-sistemas de produção de bens e serviços voltados para o mercado, para o consumo da família e para reciclagens internas ao próprio sistema, gerando diferentes formas e fontes de renda e complementaridades técnico-econômicas;

A diversificação de atividades é um dos componentes centrais das estratégias de produção e reprodução, sobretudo através da associação entre policultivo, agro-extrativismo e criações, distribuídos de forma equilibrada no espaço e no tempo. Ao mesmo tempo em que provê as diferentes necessidades produtivas e de consumo, a diversificação possibilita otimizar o uso da mão de obra familiar, do espaço e dos recursos naturais e econômicos disponíveis, garantindo também maior flexibilidade na gestão do sistema, tanto para resistir a conjunturas adversas como para potencializar condições favoráveis;

A par de ser uma unidade territorial e técnico-econômica de produção e consumo, a agricultura familiar constitui igualmente uma unidade de relações organizadas em torno a valores, referências culturais, conhecimentos e projetos sociais, que são da mesma forma parte integrante de suas estratégias reprodutivas;

Enraizados num meio físico conhecido e sob controle, os sistemas familiares mantêm uma relação positiva com o território, o que se expressa, sobretudo, na capacidade de valorizar e mobilizar as potencialidades próprias aos ecossistemas naturais e ao meio social em que estão inseridos, inscrevendo essas potencialidades como componentes estruturais de suas estratégias de reprodução econômica;

Contrariamente aos critérios de produtividade do empresário capitalista que visa à maximização em curto prazo do lucro por unidade de capital investido em

50 Esta seção foi constituída com extratos do documento de Almeida, Silvio Gomes e Fernandes, Gabriel Bianconi (2003). Monitoramento econômica da transição agroecológica: estudo de caso de uma propriedade familiar no Centro-sul do Paraná. Rio de Janeiro, AS-PTA, novembro.

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atividades particulares, a sustentabilidade econômica da agricultura familiar se orienta para a otimização em longo prazo da renda total gerada no conjunto do sistema;

A agricultura familiar é portadora de grande eficácia coletiva no campo econômico. Através de uma vasta multiplicidade de atividades agrícolas e não-agrícolas sobre um território definido, ela provê um conjunto de serviços ambientais e contribuições ao desenvolvimento local, que configuram um bem público de elevado valor agregado ecológico, social e econômico como, por exemplo, ao promover a preservação e uso sustentado dos recursos da diversidade biológica e ao favorecer a circulação e o efeito multiplicador em escala local das rendas geradas na comunidade. (Almeida e Peterson: 2001)

As características e funções produtivas e reprodutivas acima expostas são parte constitutiva da economia das unidades familiares e, como tal, se incorporam aos processos de gestão dos recursos socialmente disponíveis voltados para a produção de riquezas. A economia nos sistemas familiares responde assim a uma função estruturalmente inserida em todo um contexto social e ecológico no qual os sistemas produtivos encontram-se instalados. Sendo irredutível a uma racionalidade produtiva voltada exclusivamente para a geração de riqueza material monetarizada nos mercados, a agricultura familiar é, ao mesmo tempo e inseparavelmente, um modo de produção econômica e um modo de vida. É na combinação desses modos que se estrutura a lógica econômica dos sistemas familiares e onde se interconectam as dimensões econômica, social, ambiental, cultural e valorativa.

Organizada em torno a essa racionalidade, e tendo seu funcionamento e suas perspectivas de sustentabilidade vinculados à capacidade de integração funcional dessas dimensões, a economia familiar estabelece relações radicalmente diferentes daquelas mantidas pelas empresas agrícolas capitalistas entre produção e consumo; uso dos recursos e lucro; tecnologia e meio ambiente; ocupação econômica e remuneração; riqueza e dinheiro; seres humanos e natureza; produção e reprodução; mercado e renda; produtividade e eficiência; quantidade e qualidade; gestão e trabalho; entre cooperação e competição, dentre outras. (Santos, 2002)

Essas diferenças remetem a valores, conceitos e práticas que fundamentam relações sociais, estratégias e decisões produtivas peculiares e que evidenciam grande coerência interna. Trata-se, na verdade, de um sistema de organização econômica cuja apreensão analítica demanda a formulação de uma estrutura conceitual e metodológica ajustada e inteiramente nova. Este é seguramente um dos principais desafios colocados a uma economia ecológica preocupada simultaneamente com o avanço do conhecimento e a construção de um novo paradigma de desenvolvimento sustentável do mundo rural.

Economia x ecologia

Tendo por fundamento a mesma matriz teórica reducionista e fragmentária que inspirou, no campo técnico-agronômico, a emergência do modelo de desenvolvimento rural moto-químico-mecanizado da “revolução verde”, os procedimentos correntes da economia

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têm se mostrado insuficientes ou simplesmente inadequados para apreender de um ponto de vista holístico a estrutura e o desempenho econômicos dos sistemas produtivos familiares.

Esses procedimentos (como a relação benefício-custo) não incorporam elementos essenciais da sustentabilidade dessas economias, como a existência de variáveis não quantificáveis, a integração de parâmetros biofísicos e agronômicos com processos econômicos, os efeitos em cadeia e as propriedades emergentes das inovações agroecológicas, dentre outros. Esse distanciamento analítico entre a teoria econômica convencional e a realidade da agricultura familiar decorre, pelo menos, de três de seus fundamentos basilares, justificando plenamente o ponto de vista de F. Capra, segundo o qual o pensamento econômico contemporâneo é substancial e inerentemente anti-ecológico (Masera e outros, 2000):

Contrariamente à agricultura familiar ecológica, cuja sustentabilidade incorpora estruturalmente a busca da harmonização entre as atividades técnico-econômicas e a qualidade do meio natural, o pensamento econômico contemporâneo tem demonstrado crônica incapacidade de considerar a dimensão econômica inserida no contexto dos ecossistemas e, por extensão, das relações sociais.

A economia convencional desconhece os conceitos de limites naturais, de capacidade de suporte dos ecossistemas e de equilíbrio ecológico. Os recursos naturais têm na função de produção o caráter meramente instrumental de estoque de insumos passíveis de mobilização por capital e trabalho. Nesse enfoque mecanicista está implícita a idéia de que os fatores de produção (capital, trabalho e recursos naturais) podem ser perfeitamente substituídos entre si, o que significa que qualquer limite imposto pela natureza à atividade econômica poderá ser indefinidamente superado pelo avanço científico e tecnológico, através de novas combinações de capital e trabalho científico.

Um outro limitante da economia convencional para o estudo da sustentabilidade dos sistemas agrícolas familiares diz respeito ao conceito de valor, e se expressa na existência nas atividades econômicas de variáveis quantificáveis e não-quantificáveis, bens tangíveis e intangíveis, recursos monetários e não-monetários, dentre outras aparentes oposições que se encontram, no entanto, inextricavelmente combinadas nas estratégias econômicas da agricultura familiar.

Nos modelos convencionais os únicos valores considerados são aqueles que podem ser quantificados e expressos em preços estabelecidos em termos monetários nos mercados. Tudo o mais são externalidades que não fazem parte dos procedimentos do cálculo econômico. Esse enfoque restritivo retira da teoria econômica e dos instrumentos do cálculo a capacidade de identificar, analisar e atribuir valor a aspectos qualitativos que são fundamentais para o entendimento das dimensões ecológicas, sociais, ambientais e culturais da atividade econômica. (Capra, 1982)

Ao desconsiderar o contexto ecológico-social e as dimensões não-quantitativas da atividade econômica, os conceitos e procedimentos da teoria econômica convencional mostram-se inteiramente inadequados para rastrear, explicar e

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computar os custos da decomposição social e da degradação ambiental do mundo rural promovidos pela “revolução verde”. Da mesma forma, eles são incapazes de identificar e atribuir valor aos serviços ambientais prestados pelos agricultores no manejo equilibrado dos ecossistemas.

Essa limitação restringe irremediavelmente qualquer esforço de análise comparativa consistente da sustentabilidade entre diferentes sistemas e modelos produtivos agrícolas. Ao mesmo tempo, ela adverte para a necessidade de interpelar, do ponto de vista ecológico, conceitos correntes da análise econômica como eficiência, produtividade, lucro – e mesmo o conceito central de riqueza – referidos a atividades econômicas produtoras de lucros privados e de altos custos públicos e prejuízos sociais e ambientais quase sempre irreversíveis.

Sustentabilidade e comparatividade

A metodologia sistematizada pela AS-PTA para fundamentar a avaliação de impactos econômicos das inovações sobre os agrosistemas em transição para a agroecologia estruturou-se em torno do conceito de sustentabilidade. Es estudos desenvolvidos apreendem esse conceito como referido aos processos de gestão dos agroecossistemas orientados para a criação de uma dinâmica sinérgica entre eficiência econômica, equilíbrio ecológico e equidade social, de forma a conferir aos sistemas produtivos a capacidade de prover no curto, médio e longo prazo:

a manutenção das condições ecológicas da produção e da produtividade agrícola; o mínimo de impactos adversos ao meio natural; um retorno adequado às famílias; a otimização da produção com um mínimo de insumos externos; o atendimento das necessidades sociais e culturais das famílias e das comunidades; a satisfação das necessidades humanas em alimento e renda (...)

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