Viagens de Bras. à URSS
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Texto integrante dos Anais do XX Encontro Regional de História: História e Liberdade. ANPUH/SP – UNESP-Franca. 06 a 10 de setembro de 2010. Cd-Rom.
RELATOS DE VIAGEM DE COMUNISTAS À URSS: A CONFIRMAÇÃO DE
UMA UTOPIA.
Raquel Mundim Tôrres
Universidade Estadual de Campinas
Este artigo é fruto de uma das conclusões expostas na pesquisa desenvolvida em
minha monografia de bacharelado no curso de graduação de História da Unicamp1, onde
analisei os relatos de viagem de intelectuais comunistas brasileiros que estiveram na
URSS após a Segunda Guerra Mundial, tendo como foco principal as narrativas de
Graciliano Ramos, Jorge Amado e Caio Prado Junior 2. O estopim inicial surgira de um
questionamento: como os comunistas brasileiros, principalmente os considerados como
“intelectuais”, que clamavam por uma sociedade mais igualitária e justa para os
trabalhadores, posicionando-se contra o regime ditatorial imposto por Getúlio Vargas no
Estado Novo, tinham como símbolo de paz e prosperidade e como um ideal a ser
alcançado, um país que estava imerso um país que estava imerso em um sistema de
repressão, imposto por Stálin?
Ao tomar conhecimento da utilização da imagem da URSS pelo movimento
comunista como a referência exemplar de uma sociedade socialista3, uma verdadeira
“vitrine da utopia realizada”4 exposta pela imprensa comunista internacional, e da
desconfiança de comunistas a respeito de informações propagadas pela imprensa
burguesa, a questão direcionou-se para aqueles que possuíam o privilégio de entrar em
contato direto com este sonho realizado, o que tornou os relatos de viagem a principal
fonte de pesquisa a ser estudada, pois suscitavam diversas questões: o que conheciam
durante a viagem? Quais eram suas expectativas? Tinham eles contato com os
1 A pesquisa foi orientada pelo Prof. Dr. Cláudio Henrique de Moraes Batalha, intitulada: “A Imagem da
União Soviética nos relatos de viagem de intelectuais comunistas: confirmação de um paraíso ou
desilusão de uma utopia?”. 2 São eles, respectivamente: Viagem (Checoslováquia – URSS), 1952, O Mundo da Paz: União Soviética
e democracias populares, 1951, e O Mundo do Socialismo, 1962. As datas referem-se ao ano da primeira
edição. 3 FERREIRA, Jorge. Prisioneiros do Mito: cultura e imaginário político dos comunistas no Brasil (1930
– 1956). Niterói: EdUFF, 2002. Ferreira afirma que o imaginário do “novo mundo”, a URSS, de forma
alguma pode ser confundido com um “real” deformado ou como algo ilusório. Seria, isso sim, “... uma
tentativa de atribuir sentido, dar organização, racionalidade e lógica à própria existência” dos comunistas.
p. 203. 4 REIS FILHO, Aarão. A revolução faltou ao encontro: os comunistas no Brasil. São Paulo: Brasiliense,
1989, p. 94.
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problemas da sociedade soviética? A viagem alterou suas opiniões? Qual foi a imagem
da União Soviética produzida em seus relatos?
No Brasil, os relatos de viagem à URSS publicados em livro surgiram na década
de 1930, porém, as viagens de militantes brasileiros comunistas só passaram a ocorrer
com maior freqüência após a Segunda Guerra, uma vez que as vitórias do Exército
Vermelho Soviético diante do Exército Alemão exerceram seu máximo fascínio sobre o
imaginário político dos comunistas. Dessa forma, as imagens positivas da URSS
fizeram com que centenas de pessoas se aproximassem dos partidos comunistas no
mundo inteiro, o que tornou o número de viagens à URSS muito maior.
Com base nisso, meu principal objeto de pesquisa foram os relatos de viagem
dos principais intelectuais comunistas brasileiros: O Mundo da Paz (1951), de Jorge
Amado, Viagem, de Graciliano Ramos (1962) e O Mundo do Socialismo (1962), de
Caio Prado Junior. Todas as viagens analisadas foram, portanto, realizadas após a
Segunda Guerra Mundial, já no contexto da Guerra Fria, na época em que a União
Soviética exercia um grande fascínio sobre o Brasil, justamente o momento em que
mais ocorreram viagens de brasileiros para a URSS.
Embora cada imagem construída por tais autores seja única, contendo suas
especificidades, a análise de tais relatos de viagem permitiu, dentre outros aspectos, a
confirmação de que todos eles construíram boas impressões acerca da sociedade
soviética. Embora Graciliano Ramos tenha se mostrado o viajante mais crítico em
relação aos demais, acarretando na proibição do Partido Comunista da publicação de
seu relato, Heloísa Ramos, sua esposa, afirmou em sua entrevista à Federação das
Mulheres que ele parecia renovado após seu retorno, chegando mesmo a afirmar que
antes de sua morte, morreu seu pessimismo e seu “velho derrotismo”.5 Seu relato de
fato impressiona por suas desconfianças em relação à hospitalidade soviética, porém,
não deixa de cumprir o seu papel ao exaltar a sociedade soviética não deixa de cumprir
com o papel de exaltar a sociedade soviética em detrimento ao mundo capitalista em
que tais autores inserem o Brasil.
Esta constatação chamou a atenção para a comparação de tais relatos de viagem
com as utopias renascentistas, uma vez que estas também se configuram pela construção
5 FEDERAÇÃO DAS MULHERES, FEDERAÇÃO DAS MULHERES DO BRASIL. Atravessando as
Fronteiras da U.R.S.S. (Entrevistas) Rio de Janeiro : Vitória, 1954, p.100.
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de uma sociedade perfeita aos olhares de seus autores, como o objetivo de levantar
críticas em relação à sociedade dos séculos XVI e XVII em que viviam. É o que
proponho realizar aqui, tendo como ponto de partida três utopias clássicas
renascentistas: Utopia, de Thomas More, sendo esta a primeira que deu origem ao
gênero, A Cidade do Sol, de Tommaso Campanella e Nova Atlântida, de Francis Bacon.
A semelhança entre tais fontes não é por acaso, uma vez que tais utopias se
inspiram diretamente na literatura de viagens da época, marcada, principalmente, pelas
grandes navegações. Em As Utopias ou A Felicidade Imaginada, Jerzi Szacki (1972,
p.31) afirma que as utopias clássicas podem ser classificadas como utopias de lugar,
uma vez que, além da própria etimologia da palavra já indicar um lugar que não existe,
tais utopias se baseiam na descrição de um lugar novo, apresentando seus costumes e
seus princípios. Ele percebe uma ligação íntima e multilateral entre a utopia espacial
clássica e a literatura de viagens da época, pois ambas possuem o mesmo espírito
fascinado pela novidade, observado a partir de comparações com a sociedade de seus
autores, além da convicção de que “tudo é possível nesse mundo”, o que remete à
dúvidas quanto à naturalidade das relações sociais em que viviam. Não havia, diz ele,
uma distinção nítida, como encontramos hoje, entre a literatura fantástica e a literatura
de viagens. (SZACKI, 1972, p.32)
O caráter multilateral de tais fontes é devido ao fato de que, assim como a
literatura de viagem dos séculos XVI e XVII possui um cunho fantasioso e imaginário,
expostos, por exemplo, em descrições de animais fantasiosos e na antecipação de
encontros com monstros, o caráter descritivo e informativo presentes nas utopias de
renascimento são atribuídos à influência de livros e diários de bordos de viajantes, como
Quatro viagens ao longo do Mundo, de Américo Vespúcio, uma das principais
influências de Thomas More.
Não é, portanto mera coincidência se a idade de ouro da utopia
corresponde e segue a história dos grandes descobrimentos marítimos. Cada
relato de viagem, embelecido pela imaginação, atuou como um impacto
cultural limitado, provocando uma comparação, um posto em dúvida dos
valores da sociedade contemporânea. São os navegantes que descobrem a
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ilha da Utopia, a Cidade do Sol de Campanella, a maçaria de Hatlib, a Nova
Atlântida de Francis Bacon (...)” 6
Não é o propósito aqui, no entanto, fazer comparações entre os relatos de viagem
à URSS do século XX com os relatos do século XVI e XVII, uma vez que os objetivos
dos viajantes das literaturas de viagem dos tempos modernos se distinguem
bruscamente daqueles aqui trabalhados, haja vista que a maioria deles eram
missionários devotos de seu reino, que adotavam como vocação única o transplante das
instituições religiosas e sociais européias para as terras “selvagens”, embora tenham
contribuído para a idéia de que as formas de existência humana são diversas, como
aponta também Szacki (1972, p.31).
Diferentemente dos relatos das grandes navegações, os relatos à URSS
apresentam características únicas, dentre elas, um forte cunho político envolvido. De
acordo com Brigitte Studer, apesar de tais relatos de viagem procederem de diversas
tradições, dentre elas os próprios relatos de peregrinações do velho mundo europeu às
Américas, ou os relatos de viagens de estudos científicos ou culturais do século XIX,
eles são também a formação de uma tradição nova, específica do século XX, que
elabora progressivamente o seu próprio sistema de referências, as suas regras narrativas
e os seus códigos.7 Uma característica padrão de tais relatos seria, por exemplo, a
apelação do autor pelo valor verídico de sua narrativa, algo que, de fato, foi percebido
nos relatos de viagem brasileiros pesquisados.
Especificando as características dos “relatos – reportagem” – categoria em que
se pode classificar também os relatos aqui apresentados - estudados em sua pesquisa
também sobre narrativas ao mundo soviético, Ângela Kershaw indica que seus
narradores são de primeira pessoa, e têm como objetivo apresentarem as transformações
políticas e sociais derivadas do regime, observadas pela sua experiência pessoal. Os
textos são ainda cronológicos, baseados em notas tomadas durante a viagem. Eles se
iniciam com uma descrição da jornada e com um texto informativo sobre a URSS. Seus
narradores demonstram uma determinação de observar se o que eles ouvem falar sobre
o país é verdade. Há explicações sobre por que o autor escolheu ir, seus
6 SERVIER, Jean. Apud. ABRANSON, Pierre-Luc. Las utopias sociales en América Llatina en el siglo
XIX. México: FCE, 1999, p.17. Tradução minha.
7 STUDER B. “Le voyage en U.R.S.S. et son "´retour’”, Le movement Social 2003/4, n°205, p.3. URL :
http://www.cairn.info/revue-le-mouvement-social-2003-4-page-3.htm Acessado em: 19/05/2009. p.8.
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comprometimentos políticos ou a ausência deles. Relatam então a chegada, o que
fizeram, o que viram, quem conheceram, sempre fazendo pontuações a respeito do
“sistema”, o qual é sempre comparado com a situação de seus países de origem.8
Nos três relatos de viagem estudados pôde-se observar tais características – o
relato de Caio Prado Junior, distingue-se um pouco, por apresentar formato ensaísto – .
Algumas delas também se encontram presentes nas utopias clássicas, dentre elas, o
caráter de testemunho, em que a personagem conta a história como se realmente tivesse
conhecido a cidade utópica. A principal semelhança, porém, é o fato das utopias
também apresentarem idéias e opiniões que denunciam a discordância com a realidade
em que os autores vivem, sendo formas de criticar e propor novas alternativas para a
realidade européia dos séculos XVI e XVII.
Thomas Mores é o utopista que constrói a ligação mais firme entre os dois
mundos, uma vez que descreve o velho mundo europeu no Livro I, através do diálogo
travado entre ele, Rafael Hitlodeu e Pedro Gil, denunciando a realidade injusta da
Inglaterra, para então descrever o novo mundo representado pela utopia, um lugar
inexistente, que se constrói a partir do encontro de dois mundos, a Europa e a América,
uma vez que a ilha de Utopia foi fundada por um conquistador estrangeiro, o rei Utopus,
que se apoderou do local, construiu a ilha, e estabeleceu as leis.
Segundo Eugênio Imaz, intérpretes alemães chegaram a dizer que a Utopia de
More era a expressão de um imperialismo nascente9, pois propunha a ocupação de terras
não cultivadas, o uso de mercenários no exército, a investida em países aliados e
amigos, uma política protetora e defensiva dos utopianos, etc., denotando sua profunda
ligação com os acontecimentos da época. Temos a impressão também de que a utopia
de More, em relação à de Campanella e à de Bacon, está mais preocupada com o
moralismo e com as virtudes da sociedade do que com os seus avanços científicos,
apesar de estes não deixarem de existirem na obra. “A infância e a juventude são
orientadas pelos sacerdotes, que se preocupam tanto ou mais em ensinar-lhes a virtude e
os bons costumes como a ciência.”10
8 KERSHAW, Angela. “French and British Female Intellectuals and the Soviet Union. The Journey to the
USSR, 1929 – 1942”, E-rea, 4.2 | 2006, [En ligne], mis en ligne le 15 octobre 2006, p.64. 9 ÍMAZ, Eugênio. “Topia e Utopia” in: Utopias Del Renascimento. México: Fondo de Cultura
Econômica, 1987.p. 21., p.23. 10
MORE, Thomas. A Utopia. São Paulo: Martín Claret, 2005, p.106.
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Tais distinções e características específicas de cada obra também são constantes
nos relatos à URSS. Torna-se clara, por exemplo, a preocupação de Jorge Amado e
Graciliano Ramos pela questão dos direitos à cultura e à educação, algo que pode ser
compreendido tanto pela profissão de escritor quanto pelos locais mais visitados por
eles: escolas, museus, teatros e casas ou palácios de cultura. Ao visitarem bibliotecas,
ambos mostram preocupação semelhante ao procurarem saber a freqüência de leitura
nas bibliotecas visitadas: Graciliano Ramos nota, por exemplo, que na biblioteca da
fábrica de meias, doze pessoas leram um exemplar de Dom Quixote em 195211
, e Jorge
Amado mostra-se admirado ao notar que cinco exemplares de seu próprio romance São
Jorge dos Ilhéus, estavam, no momento, retirados pelos trabalhadores da fábrica
Calibre.12
Jorge Amado aponta para o fato de que na União Soviética a cultura passou a ser
propriedade de todos, enquanto que a grande massa brasileira permanecia ainda
analfabeta.13
A visita às diversas bibliotecas e o acesso a dados exacerbados é tamanha
que fazem Graciliano Ramos ironizar sobre o assunto e supor que não há analfabetos no
país:
Para que tanta letra? Afinal, essa fartura de impressos torna-se
monótona, tem aparência de mania. Abafamos. Não acharemos
neste país um analfabeto? Saudades da nossa terra simples, onde
os analfabetos engordam, proliferam, sobem, mandam na graça
de Deus. Felizmente há no parque de cultura restaurantes e
bilhares. Ainda podemos jogar uma partida, beber uma cerveja.
A ditadura horrível não nos proíbe essas necessidades cristãs.14
Enquanto que os soviéticos de Graciliano Ramos e Jorge Amado vivem para as
questões da cultura, os soviéticos de Caio Prado Júnior vivem para as questões da
política. Em seu primeiro relato ainda na década de 1939, Caio Prado remete-se à uma
discussão “acalorada” que teve o prazer de presenciar em um trem que o levou à
Leningrado, chegando mesmo a afirmar que “A política é na União Soviética uma
11
RAMOS, Graciliano. Viagem (Checoslováquia – URSS). Rio de Janeiro: José Olímpio Editora, 1954,
p.112. 12
AMADO, Jorge. O Mundo da Paz. Rio de Janeiro : Vitória, 1951. 13
Idem, p.76. 14
RAMOS, Graciliano, Op.cit, p.93.
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verdadeira obsessão”15
, enfatizando o interesse público de todos pelo regime. Os relatos,
portanto, podem ser considerados como propagandas dos direitos, deveres e valores que
seus autores ansiavam perante o contexto brasileiro em que se encontravam.
Da mesma forma, os anseios dos autores das utopias e seus contextos diversos
também marcam as diferenças de cada utopia. Tommaso Campanella (1568-1639),
escritor dominicano e italiano, esbanja em sua utopia os problemas da época da
Reforma e da Contra-Reforma. Como afirma Carlos Berriel, o início da Idade Moderna
é marcada pela hostilidade da Igreja frente às descobertas científicas dos séculos XVI e
XVII. Religioso, mas ao mesmo cultivador da ciência, a obra de Campanella visa a
reconstrução do poder da Igreja, criticando a reforma tridentina e advogando por uma
completa revisão dos pressupostos contrareformísticos, ou seja, tenta conciliar a fé a
razão através da recondução da ciência para dentro da Igreja.16
Isso fica claro na Cidade do Sol de Campanella, a começar pelo nome que
condiz com a revolução feita por Nicolau Copérnico (1473-1543), responsável pelo
desenvolvimento da teoria heliocêntrica do sistema solar. Sua cidade é literalmente um
monumento à ciência, em especial à astrologia, por apresentar tantos elementos
simbólicos, como as sete muralhas, devido aos sete planetas, e as quatro portas,
representando os quatro pontos cardeais, além do nome da autoridade principal, tanto no
espiritual como no temporal, na pessoa do Sol.
Sua cidade não abandona a religião, e estabelece a existência de deus contra o
ateísmo. O divino, porém, é impresso na natureza A fé é voltada para um Deus criador,
revelado pela natureza e captado pela razão. Sua utopia é, portanto, uma tentativa de
união entre a razão científica e a fé. Campanella, portanto, se assemelha mais ao caráter
científico da utopia de Francis Bacon, que em Nova Atlântida (1627) já exalta uma
sociedade de produção científica fundada no conhecimento empírico, organizada
enciclopedicamente e sempre voltada para os benefícios práticos.
Bacon, um autor de contexto um pouco mais distante da época das grandes
navegações, já situa sua utopia em alguma ilha do Pacífico, explicando que o povo
americano, devido a um dilúvio que destruiu antigas civilizações da América, é jovem e
15
PRADO JUNIOR, Caio, U.R.S.S: Um novo mundo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1934,
p.14. 16
BERRIEL, Carlos Eduardo O. “Campanella, a imaginação utópica a serviço do cesaropapismo”. Texto
apresentado no II Congresso Internacional de Estudos Utópicos da revista Morus – Utopia e
Renascimento – Universidade Estadual de Campinas, SP. Junho de 2009.
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ingênio, sendo menos engenhosos do que outros povos. – o que já se mostra como um
resultado das informações que chegavam aos europeus através dos relatos de viagem.
O que fica exaltado na Utopia de Bacon, porém, são de fato os avanços da
ciência, exemplificados no vasto conhecimento e invenções dos funcionários da Casa do
Rei Salomão. Certas descrições são impressionantes por denotarem objetos ainda não
inventados na época de Bacom como geradores que imitam a energia do sol (energia
nuclear), ou como a energia que emana de calores de estrumes, denunciando que os
princípios científicos de geração de energia já eram conhecidos antes de sua elaboração.
A utopia é a mais científica das três, no entanto, o povo continua cristão, cheio de
“compaixão e humanidade”, denunciando os valores e princípios de seus autores em
seus respectivos contextos.
Thomas More e Tommaso Campanella indicam em suas utopias o
estabelecimento de uma comunidade de bens coletivos: todos na comunidade devem
trabalhar, pois o trabalho é a garantia do bem social e da igualdade, e não do lucro.
Todas essas utopias estão em estado de felicidade social, ou seja, são estáticas e
a-históricas, pois não passam mais por transformações, como se fossem o estágio final e
mais avançado que a humanidade poderia chegar, continuando a evoluir apenas na
ciência, mas não mais em suas instituições e costumes. Elas seriam iguais, portanto, à
sociedade em regime comunista, ponto que o socialismo almejava atingir.
A essencial semelhança entre tais fontes de diferentes épocas, e o que as destoa
dos relatos de viagem das grandes navegações, é a crítica à estrutura e à ordem social
vigente da sociedade de seus autores, a partir do enaltecimento e descrição de um
sistema que, aos seus olhos, lhes parece mais correto, justo, e humano. Em relação às
utopias, percebe-se isso mais explicitamente em Campanella e More, uma vez que
ambos descrevem uma comunidade de bens coletivos, onde tudo está em comum: casas,
leitos, filhos – no caso de Campanella, até as mulheres – o que nos remete aos ideais do
comunismo para a sociedade soviética, enaltecidos pelos comunistas brasileiros.
Além disso, tanto em Cidade do Sol quanto em Amaurota (capital de Utopia), os
costumes e comportamentos são padronizados, baseados nas virtudes que todos os
cidadãos devem seguir. Todos, sem exceção, trabalham, pois o trabalho é extremamente
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enaltecido para garantir o bem social e a igualdade, e não o lucro, uma vez que não
existe dinheiro em nenhuma das cidades.
Este seria o objetivo da sociedade socialista soviética, onde, segundo os viajantes
que a conhecem, todos aprendem a trabalhar para o bem coletivo e a enaltecer o
trabalho como função que engrandece o homem. Caio Prado Júnior ressalta que o
socialismo presente na URSS e nos demais países socialistas é um regime de transição
entre o capitalismo e o comunismo, sendo este último o lugar onde a igualdade entre os
seres poderá se constituir de fato.
Apesar de ainda existir desigualdades econômicas, todos eles exaltam as
igualdades sociais já conseguidas pelo socialismo, como o fato, por exemplo, de que
qualquer um tem condições de ir aos teatros, e da educação ser disponível a todos.
Chegam inclusive a afirmar que as classes sociais já não mais existem na URSS, onde
ninguém mais nasce capitalista ou trabalhador, patrão ou empregado, justamente porque
ninguém mais pode ser dono dos meios de produção, que são controlados pelo Estado.
As utopias e as suas idéias de sociedade coletiva e igualdade social a todos
seriam, de certa maneira, o fim da sociedade soviética. Além disso, uma característica
em comum das utopias clássicas é que elas são estáticas, ou seja, a-históricas, pois não
passam por transformações, como se fossem o estágio final e o mais avançado que a
humanidade pode chegar, passando a evoluir apenas na ciência, mas não mais em suas
instituições e costumes.
Este foi um dos aspectos que me fizeram afirmar que a imagem da União
Soviética construída nos relatos de viagem de intelectuais comunistas brasileiros não foi
nem uma desilusão de uma utopia, nem a confirmação de um paraíso já estabelecido –
pois a URSS em si não é ainda uma utopia na vista de seus viajantes - , mas sim a
confirmação da própria utopia dos criadores de tal imagem, uma vez que eles procuram
passar, através de seus relatos, todos os seus valores, princípios e aspirações que crêem
que sejam fundamentais para a construção de uma sociedade igualitária.
Sczacki, ao dialogar sobre a definição do que é ser utopista, afirma que o utopista
não aceita o mundo que encontra, não se satisfaz com as possibilidades atualmente
existentes, e, por isso, antecipa e projeta. Ainda segundo ele, a utopia vem como uma
necessidade de escolha, pois a visão do mundo utopista é inevitavelmente dualista. A
utopia, para ele, tem um ideal definido, pois estabelece uma relação de oposição e de
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rompimento da continuidade. “É utopista todo aquele que deseja substituir uma
realidade absolutamente má por uma absolutamente boa.” (1972, p.14).
A definição é consistente com o contexto em que se encontram os viajantes
comunistas, em plena Guerra Fria. É importante frisar, porém, que o que se coloca como
utopia é a imagem construída pelos intelectuais comunistas em relação à URSS, e não o
sistema em si ou qualquer teoria. Szacki, sendo escritor polonês e adepto ao
comunismo, considera que não se pode aplicar o título de utopia ao comunismo de
Marx, uma vez que o marxismo concentraria-se no problema do caminho que levaria à
nova sociedade, ou seja, os comunistas acreditam na história, os utopistas não. No
entanto, ele também lembra que Marx apresenta uma visão constante da boa sociedade,
exigindo uma confrontação dela com o estado das coisas atuais, e o abandono da
tentação reformista (1972, p.17), e que houve marxistas que insistiram na necessidade
de uma negação constante da realidade em nome do ideal comunista, inclinando-se
justamente em direção à utopia, mas parecendo a Szacki que, sem eles, o movimento
teria sido impossível.
É por isso que muitos afirmam que um relato de viagem diz muito mais sobre
quem observa, do que o que é observado. A partir do momento em que os viajantes
comunistas materializam a perfeição encontrada na União Soviética, se colocando
contrários ao sistema político e social vigente de suas próprias sociedades, suas
narrativas tornam-se utópicas, pois expõem as especulações e anseios de seus autores.
Szacki acredita que as utopias podem ser consideradas como experimentos científicos,
por exemplo, a utopia de More poderia ser lida como uma resposta à pergunta: “como
seria a sociedade caso não existisse a propriedade privada?” (1972, p.11).
Nesse caso, no entanto, creio que a diferença é que as utopias seriam na verdade
hipóteses, enquanto que os relatos de viagem poderiam ser considerados como
experiências realizadas, uma vez que seus autores se atribuem do fator verídico de suas
viagens para a constatação do que afirmam em seus relatos. Esta constatação,
estranhamente, nos passa a impressão de que os viajantes comunistas seriam até mais
utópicos do que os próprios utopistas, uma vez que estes se limitam ao campo da ficção.
Bibliografia
Relatos de Viagem:
Texto integrante dos Anais do XX Encontro Regional de História: História e Liberdade. ANPUH/SP – UNESP-Franca. 06 a 10 de setembro de 2010. Cd-Rom.
AMADO, Jorge. O Mundo da Paz.Rio de Janeiro : Vitória, 1951.
FEDERAÇÃO DAS MULHERES DO BRASIL. Atravessando as Fronteiras da
U.R.S.S. (Entrevistas) Rio de Janeiro : Vitória, 1954.
PRADO JUNIOR, Caio. O Mundo do Socialismo. São Paulo: Brasiliense, 1967.
___________________. U.R.S.S: Um novo mundo. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1934.
RAMOS, Graciliano. Viagem (Checoslováquia – URSS). Rio de Janeiro: José Olímpio
Editora, 1954.
Utopias:
MORE, Thomas. A Utopia. São Paulo: Martín Claret, 2005. Trad. Pietro Nassetti.
CAMPANELLA, Tommaso. A Cidade do Sol. São Paulo: Ícone, 2002. Trad. Fernando
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BACON, Francis. Nova Atlântida. Lisboa: Minerva, 1976.
Fontes secundárias:
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México: FCE, 1999.
BERRIEL, Carlos Eduardo O. “Campanella, a imaginação utópica a serviço do
cesaropapismo”. Texto apresentado no II Congresso Internacional de Estudos
Utópicos da revista Morus – Utopia e Renascimento – Universidade Estadual de
Campinas, SP. Junho de 2009.
FERREIRA, Jorge. Prisioneiros do Mito: cultura e imaginário político dos comunistas
no Brasil (1930 – 1956). Niterói: EdUFF, 2002.
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Fontes eletrônicas:
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page-3.htm Acessado em: 19/05/2009.
Texto integrante dos Anais do XX Encontro Regional de História: História e Liberdade. ANPUH/SP – UNESP-Franca. 06 a 10 de setembro de 2010. Cd-Rom.
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