Vicente Higino Neto Hermenêutica jurídica cosmopolita sob a … · mas a da ética, da...
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Vicente Higino Neto
Hermenutica jurdica cosmopolita sob a perspectiva arendtiana-zagrebelskiana
DISSERTAO DE MESTRADO
PS-GRADUAO EM DIREITO Mestrado em Direito Econmico e Social
Curitiba, fevereiro de 2007 CCJS - CENTRO DE CINCIAS JURDICAS E SOCIAIS
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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATLICA DO PARANA
Vicente Higino Neto
Hermenutica jurdica cosmopolita sob a perspectiva arendtiana-zagrebelskiana
Dissertao de Mestrado
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Direito como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Direito Econmico e Social.
Orientadora: Prof. Doutora Claudia Maria Barbosa
Curitiba Fevereiro de 2007
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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATLICA DO PARANA
Vicente Higino Neto
Hermenutica jurdica cosmopolita sob a perspectiva arendtiana-zagrebelskiana
Dissertao apresentada como requisito par-cial para obteno do grau de Mestre pelo Programa de Ps-graduao em Direito da PUCPR. Aprovada pela Comisso Examina-dora abaixo assinada.
Prof. Doutora Claudia Maria Barbosa Orientadora
Programa de Ps-graduao em Direito Econmico e Social - PUCPR
Prof. Doutor Menelick de Carvalho Netto UFMG
Prof. Doutora Flvia Cristina Piovesan PUCSP
Prof. Doutora Katya Kozicki Programa de Ps-graduao em
Direito Econmico e Social - PUCPR
Curitiba, fevereiro de 2007
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Todos os direitos reservados. proibida a reproduo to-tal ou parcial do trabalho sem autorizao da universi-dade, do autor e do orientador.
Vicente Higino Neto
Graduou-se em Direito na FDC (Faculdade de Direito de Curitiba) em 1994. Especialista em Direito Constitucional pela ABDCONST (Academia Brasileira de Direito Constitucional) e em Direito Privado, Direito Tributrio, Direito Processual Civil e Direito Contemporneo pelo IBEJ (Instituto Brasileiro de Estudos Jurdicos). advogado desde o ano de 1996.
Ficha Catalogrfica
Higino Neto, Vicente H634h Hermenutica jurdica cosmopolita sob a perspectiva arendtiana- 2006 zagrebelskiana / Vicente Higino Neto ; orientadora, Claudia Maria Barbosa. - 2006. 297 f. ; 30 cm
Dissertao (mestrado) Pontifcia Universidade Catlica do Paran, Curitiba, 2006
Inclui bibliografia
1. Hermenutica (Direito). 2. Direito constitucional. 3. Arendt, Hannah. 4. Zagrebelski, Gustavo. 5. Direitos civis. 6. Juzo. I. Barbosa, Claudia Maria. II. Pontifcia Universidade Catlica do Paran. Programa de Ps-Graduao em Direito. III. Ttulo.
Doris - 4. ed. 340.326 341.22
342.115
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Agradecimentos
A idia desta obra foi concebida durante o curso de especializao em direito
constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional no ano de 2004,
em Curitiba, sob a orientao da Professora Claudia Maria Barbosa, j l estudada
sob a perspectiva do Constitucionalismo.
Ao longo da realizao dos crditos do mestrado no ano de 2005, a Professora
Katya Kozicki, trabalhando a perspectiva arendtiana, nos contagiou com a riqueza
do pensamento de Hannah Arendt, assim como o Prof. Daniel Omar Perez, com
os conceitos de cosmopolitismo e hospitalidade, e a comeamos a pensar se a
hermenutica jurdica sob tal perspectiva se mostraria relevante, havendo o con-
vencimento de tal assertiva.
Ao longo do amadurecimento da idia, as sugestes de Katya Kozicki e Daniel
Omar Perez foram fundamentais para que o projeto fosse levado adiante, ficando
aqui meu profundo agradecimento a eles.
Meu maior agradecimento minha orientadora, a Professora Claudia Maria Bar-
bosa, pela pacincia em indicar-me os excessos e as incoerncias do trabalho,
liberdade que me concedeu ao decidir sobre o contedo do trabalho e sua sabe-
doria em apontar caminhos.
Agradecimento especial h de ser feito Professora Flvia Piovesan, pela enorme
contribuio de suas idias, presentes de forma marcante nesse trabalho, e tambm
por acreditar que o dilogo entre o direito constitucional e o direito internacional
h de ser aprofundado para que o processo hermenutico reste enriquecido.
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Eva e Isabel, trabalhadoras incansveis do programa de mestrado e doutorado
da Pontifcia Universidade Catlica do Paran, minha enorme gratido pela asses-
soria e apoio logstico sem o qual a concluso do mestrado se tornaria impossvel.
Aos mestrandos dos anos de 2005 e 2006, o meu muito obrigado, pois foi com
eles que as idias amadureceram e por meio dos acirrados debates que o projeto
foi ganhando corpo.
Agradeo especialmente Pontifcia Universidade Catlica do Paran pela bolsa
de estudos concedida sem a qual as dificuldades seriam muito maiores.
Agradeo tambm ao Tribunal de Contas do Estado do Paran, por me conceder
licena especial para escrever o presente trabalho, tempo valioso e sem o qual o
trabalho dificilmente seria desenvolvido na perspectiva em que aqui o foi.
Impossvel, por fim, deixar de agradecer ao que h de mais precioso em nossas
vidas: nossa famlia. Assim, meu especial pedido de desculpas e agradecimentos
mil ho de ser dados Mrcia, minha mulher, e meus filhos Jamile, Jean e Vini-
cius, por privar-lhes de muitas horas que poderamos ter compartilhado juntos.
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Resumo
Higino Neto, Vicente; Barbosa, Claudia Maria. Hermenutica jurdica cosmopolita sob a perspectiva arendtiana-zagrebelskiana. Curitiba, 2007. 293 p. Dissertao de Mestrado Programa de Ps-graduao em Direito Econmico e Social, Pontifcia Universidade Catlica do Paran.
Hermenutica jurdica cosmopolita tem por objetivo pensar na possibilidade
de uma hermenutica jurdica mais plena de sentido, a partir do conceito de men-
talidade alargada (do pr-se no lugar do outro a partir da sensao de dor ou das
conseqncias por ele suportadas), dos conceitos interdependentes de cosmopoli-
tismo (terra como morada comum) e hospitalidade (no a da tolerncia, caritativa,
mas a da tica, da amabilidade, sem exigncias, sem imposies), dos conceitos
de juzo reflexionante (como decidir por meio de particulares) e de validade
exemplar (o exemplo como modelo de julgamento), da ductibilidade do direito no
sculo XXI, da potencializao da hermenutica por intermdio do acoplamento
entre direito constitucional e direito internacional, a partir de um marco jurdico
principiolgico e de uma teoria constitucional centrada nos direitos fundamentais.
Cinco categorias ou vnculos constituem o esteio desse projeto: a) que sujeito se
quer construir: um sujeito replicante, entificado, coisificado ou um sujeito
ontolgico, que busca pelos sentidos das coisas; b) os conceitos de cosmo-
politismo e hospitalidade; c) o debate entre universalistas e relativistas; d) o re-
gresso do poltico e e) a relao entre o poltico e o jurdico. A ao, o pensa-
mento e o juzo exercidos num espao plural (comunicvel) que garanta o retorno
do senso comum e da opinio so as categorias capazes de construir a verdade e
servir de guia naqueles momentos em que parecem inexistir solues ou
parmetros para a compreenso-construo-aplicao-concretizao da norma
jurdica, percurso este que levou valorizao da tpica e da retrica e a destacar
a categoria da validade exemplar. A partir de uma abordagem zettica, verificou-
se que possvel ampliar-se as condies do saber por meio da
interdisciplinaridade com outras reas de conhecimento, permitindo-se interpretar
as regras e os princpios jurdicos j construdos ou construir novas regras e
princpios sob ngulos mais iluminados, mais radiantes, capazes de erigir vises
de mundo onde a tica e a responsabilidade impeam o surgimento e a instalao
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da banalidade do mal. Exige do aplicador do direito uma tomada de posio
crtica que v alm da dogmtica jurdica tradicional (subsuno) e crtica (regras
e princpios), incorporando a hermenutica filosfica, que no aceita as normas
jurdicas postas sem question-las, sem coloc-las sob o crivo do dilogo, do
discurso, das opinies, do senso comum, da linguagem, do poder, da dominao,
reconhecendo na hermenutica filosfica a possibilidade de desocultar, desvelar
novos sentidos para o que se faz e permita uma reflexo da ao humana de uma
forma muito mais transparente; de uma forma que permita se inicie algo novo; que
se criem mundos melhores que os at aqui construdos. A hermenutica aqui
defendida uma hermenutica que busca ampliar sentidos, uma hermenutica
preocupada em encontrar critrios adequados para os reais problemas humanos.
Palavras-chave
Hermenutica; constitucional; direitos fundamentais; regresso do poltico;
cosmopolitismo; hospitalidade; mentalidade alargada; juzo reflexionante; vali-
dade exemplar; ductibilidade.
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Abstract
Higino Neto, Vicente; Barbosa, Claudia Maria (Advisor). Cosmopolitan juridical hermeneutics under the arendtian-zagrebelskian perspective. Curitiba, 2007. 293 p. MSc. Dissertation Programa de Ps-graduao em Direito Econmico e Social, Pontifcia Universidade Catlica do Paran.
The cosmopolitan juridical hermeneutics has for objective to think in the
possibility of a fuller of sense juridical hermeneutics, starting from the concept of
enlarged mentality (of putting yourself in the place of the other starting from the
pain sensation or the consequences supported by him), of the interdependent
concepts of cosmopolitism (earth as common home) and hospitality (not the one
of the tolerance, charitable, but the one of the ethics, of the kindness, without
demands, without impositions), of the concepts of reflexive judgement (how to
decide through matters) and of exemplary validity (the example as judgement
model), of the ductibility of the right in the XXI century, of the hermeneutics
potencialization through the joining between the constitutional right and the
international right, starting from a principle juridical mark and a constitutional
theory centered in the fundamental rights. Five categories or bonds constitute the
shore of this project: a) the subject that we want to build: a replicant subject or an
ontological subject, that looks for the senses of the things; b) the cosmopolitism
and hospitality concepts; c) the debate between universalists and relativists; d) the
return of the political; and, e) the relationship between the political and the
juridical. The action, the thought and the judgement exercised in a plural space
(communicable) that guarantees the return of the common sense and of the
opinion are the categories capable to build the truth and to guide us on those
moments in that it seems to inexist solutions or parameters for the understanding-
construction-application-materialization of the juridical norm, whose course took
to the topic and the rhetoric valorization and to detach the category of the
exemplary validity. Starting from a zetetic approach, it was verified that it is
possible to enlarge the conditions of the knowledge through the interdisciplinarity
with other knowledge areas, allowing to interpret the juridical rules and principles
already built or to build new rules and principles under more illuminated, more
radiant angles capable to build world visions in those the ethics and the
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responsibility prevent the appearance and the installation of the banality of the
evil. It demands from the applicator of the right a socket of critical position that
goes besides the traditional (subsumption) and critical (rules and principles)
juridical dogmatic, incorporating the philosophical hermeneutics, that does not
accept the juridical norms presented without questioning them, without putting
them under the sieve of the dialogue, of the speech, of the opinions, of the
common sense, of the language, of the power, of the dominance, recognizing in
the philosophical hermeneutics the possibility to reveal new senses for what we
are doing, allowing us to see ourselves and our actions in a much more transparent
way; in a way that allows we begin something new, that better worlds are created,
worlds better than the ones built until then. The hermeneutics, that is defended in
this paper, is an hermeneutics that looks for enlarging senses, an hermeneutics
concerned in finding appropriate criteria for the real human problems.
Keywords
Hermeneutics; constitutional; fundamental rights; return of the political;
cosmopolitism; hospitality; enlarged mentality; reflexive judgement; exemplary
validity; ductibility.
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Sumrio
1. Introduo 13
1.1. O problema 13
1.2. Pressupostos 13
2. Categorias possibilitadoras de uma hermenutica jurdica cos-
mopolita
23
2.1. Cosmopolitismo e hospitalidade 23
2.2. Universalismo e relativismo: por um cosmopolitismo dctil ou
de confluncia
32
2.3. O poltico 33
2.3.1. O poltico em Hannah Arendt 34
2.3.2. O poltico em Carl Schmitt 40
2.3.3. O poltico e seu regresso em Chantal Mouffe 49
2.3.4. O poltico e o jurdico em Dworkin 60
3. O pensamento de Hannah Arendt e sua importncia para a her-
menutica jurdica
67
3.1. Uma breve mirada ao pensamento arendtiano: rumo ao juzo
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reflexivo 67
3.2. O pensar, o querer e o julgar 77
3.3. O pensar 79
3.4. O que nos faz pensar 81
3.5. A ao 82
3.6. O juzo reflexivo e a mentalidade alargada: como julgar a partir
da relao entre o geral e o particular
90
3.7. Conexo entre pensamento e juzo 102
3.8. O retorno do senso comum: o espao da palavra e da ao 105
3.9. Poltica, opinio e verdade 107
4. O pensamento de Gustavo Zagrebelski e o constitucionalismo do
sculo XXI
111
4.1. O pensamento de Gustavo Zagrebelski 111
4.2. Constituio e poltica em Zagrebelski 117
4.3. O constitucionalismo e a ductibilidade do direito em Zagrebelski 120
4.4. A teoria contempornea do constitucionalismo de Zagrebelski:
por uma constituio plural
122
4.5. Caractersticas do direito constitucional atual 129
4.6. Do Estado de Direito ao Estado Constitucional 132
4.7. Direitos e lei 137
4.8. Justia e lei 141
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4.9. A normatividade do direito: normas-princpio e normas-regra 143
4.10. A interpretao jurdica 149
5. Hermenutica jurdica contempornea: panorama 154
5.1. Evoluo do direito e a crise da hermenutica tradicional 158
5.2. Jusnaturalismo, positivismo e ps-positivismo: o constituciona-
lismo e a interpretao principiolgica
163
5.3. Situando a dogmtica crtica e a zettica 171
5.4. A norma jurdica, linguagem e a virada lingstica 177
5.5. A interpretao sistmica 184
5.6. A tpica e a retrica 193
5.7. Hermenutica compreenso: a incindibilidade entre
interpretao-construo, aplicao e concretizao da norma jur-
dica
198
5.8. Texto e interpretao 213
5.9. A tarefa terica e prtica da hermenutica e os problemas da
razo prtica
216
5.10. Retrica, hermenutica e crtica da ideologia 219
6. Hermenutica jurdica cosmopolita: dilogo necessrio entre
direito internacional e direito interno, mediado pelos direitos
fundamentais
222
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6.1. Direito internacional, constitucionalismo e direitos humanos 222
6.2. O processo de internacionalizao dos direitos humanos e o
dilogo entre o direito interno e o direito internacional
228
6.3. A Constituio Brasileira de 1988 e a institucionalizao dos
direitos e garantias fundamentais
230
6.4. Tcnicas hermenuticas, constitucionalismo e direitos funda-
mentais
234
6.4.1. Teorias dos direitos fundamentais como mtodo para uma
hermenutica jurdica cosmopolita
235
6.4.2. Direitos fundamentais no constitucionalismo global e tcnicas
hermenuticas
241
6.4.3. A interpretao dos direitos fundamentais no estado social de
direito
246
7. Concluso A compreenso-construo-aplicao-concretizao
de uma norma jurdica mais plena de sentido
249
7.1. Condies de possibilidade de uma hermenutica jurdica cos-
mopolita
250
7.2. Sntese do pensamento de Hannah Arendt e sua relevncia
para o processo hermenutico
259
7.3. O juzo reflexionante: como decidir a partir de particulares 263
7.4. Zagrebelski e o constitucionalismo do sculo XXI e as relaes
-
com o pensamento de Hannah Arendt 269
7.5. A hermenutica jurdica contempornea 276
7.6. Uma hermenutica jurdica ampliada a partir da unio entre
direito interno e internacional
279
7.7. Consideraes finais: a compreenso como processo incindvel
de interpretao-construo-aplicao-concretizao de normas
jurdicas mais plenas de sentido
280
8. Referncias bibliogrficas 286
-
1
Introduo
1.1.
O problema
A hermenutica jurdica cosmopolita, utilizando-se dos conceitos de men-
talidade alargada (age sempre sob a mxima por meio da qual esse contrato origi-
nal pode ser atualizado numa lei geral), de hospitalidade e cosmopolitismo, do
juzo reflexionante (em que medida poderei continuar a viver em paz comigo
mesmo aps ter cometido certos atos?), da validade exemplar, da ductibilidade do
direito no sculo XXI e da possvel potencializao entre direito constitucional e
direito internacional, em um marco jurdico principiolgico que conceba a norma
jurdica aplicada como auto-implicao entre norma jurdica (princpios e regras)
e realidade (caso concreto) pode ser um caminho adequado para o processo de
interpretao-construo-aplicao-concretizao das normas jurdicas?
1.2.
Pressupostos
Repensar o cosmopolitismo sob a perspectiva do direito constitucional e
internacional constitui-se em tarefa inadivel, em razo dos efeitos da globaliza-
o financeira, poltica, cultural, tecnolgica e cientfica, a exemplo do que j
ocorre na Unio Europia, processos que encurtam distncias e fazem antever que
num tempo no muito distante poder-se- ter efetivamente uma morada comum: a
terra.
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O presente trabalho tem o objetivo de trazer a debate as condies de pos-
sibilidade de uma hermenutica jurdica cosmopolita, por meio dos conceitos de
cosmopolitismo, hospitalidade, universalismo e relativismo, do poltico, e foi con-
cebido como trabalho de base para avanar-se no desenvolvimento de posteriores
trabalhos de pesquisa.
Essa possvel anteviso, sob a perspectiva da hermenutica jurdica, exige
que as normas jurdicas e os processos hermenuticos sejam mais plenos de sen-
tido, impondo a necessidade de compreender-se (interpretar-construir-aplicar-con-
cretizar) um novo complexo normativo oriundo da fuso do direito constitucional
e do direito internacional, que propicie maior efetividade/concretizao das nor-
mas jurdicas sem descurar-se do possvel, do contingente, da realidade de cada
pas.
Este trabalho mostra-se coerente com a perspectiva do programa do mes-
trado e doutorado da Pontifcia Universidade Catlica do Paran, calcada na sus-
tentabilidade e no ambientalismo, onde a tica e a responsabilidade para com o
presente e com as futuras geraes marca e conforma a interpretao-construo-
aplicao-concretizao das normas jurdicas.
Adota-se a democracia radical de Chantal Mouffe e no a regra da demo-
cracia liberal da maioria, concebendo-se que somos sempre sujeitos mltiplos e
contraditrios, habitantes de uma diversidade de comunidades (na verdade, tantas
quantas as relaes sociais em que participamos e as posies de sujeito que elas
definem), construdos por uma variedade de discursos e precria e temporaria-
mente cerzidos na interseco dessas posies de sujeito. Esse um dos principais
aportes tericos para se conceber uma nova forma de individualidade, verdadei-
ramente plural e democrtica.
Assim, por meio do dilogo entre o direito interno (constitucional) e o di-
reito internacional, buscar-se- enriquecer o processo de interpretao de normas
jurdicas num mundo que se globaliza em vrias dimenses.
A hermenutica jurdica cosmopolita exige uma mentalidade alargada
(Kant), pois nunca o convvio entre diferentes esteve to em evidncia. Nunca a
interculturalidade, a economia, a cincia e a tecnologia estiveram tanto em con-
tato, permitindo o nascimento do novo. Ao mesmo tempo em que se tem o medo
do deserto, tem-se a possibilidade bastante concreta de um mundo melhor.
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Assim, a perspectiva do poltico na concepo arendtiana princpio guia
do presente trabalho - ir enriquecer a hermenutica jurdica integrando o direito
constitucional e o direito internacional por meio da gramtica dos direitos funda-
mentais.
O primeiro aspecto que o leitor poderia deduzir seria que essa concepo
universalista. No essa concepo a que chega com a perspectiva arendtiana-
zagrebelskiana.
O regresso do poltico na abordagem arendtiana, schmittiana, mouffiana e
dworkiana, juntamente com os conceitos de cosmopolitismo, hospitalidade e do
debate entre universalismo e relativismo, foram fundamentais para o presente es-
tudo, podendo sintetizar-se como condies de possibilidade em que uma herme-
nutica jurdica cosmopolita poder operar.
Esses conceitos-chave foram desenvolvidos no captulo 2 e podem ser sin-
tetizados como uma nova forma de ver o mundo, uma forma em que se ultrapasse
a barreira, os limites da tolerncia, para se avanar rumo a uma viso de mundo
em que uma morada comum s uma morada boa se forem responsveis uns para
com os outros, se no se transformar o sofrimento do outro em algo banal.
Cabe destacar que o poltico a caracterstica que marca o pensamento de
Hannah Arendt e se mostra extremamente til para a interpretao das normas
constitucionais, primeiramente porque no Brasil qualquer juiz exerce jurisdio
constitucional e em segundo lugar porque o mtodo de interpretao das normas
de direito constitucional e de direito internacional eminentemente principiol-
gico, mostrando-se incindvel o poltico do jurdico.
Pensa-se na hermenutica jurdica cosmopolita no como uma miragem,
mas como algo realizvel, factvel, a partir da dico dos arts. 4 e 5, pargrafos
1 a 4, da Constituio da Repblica Federativa do Brasil, norma aberta que per-
mite um dilogo profcuo entre o direito brasileiro e o direito internacional, enri-
quecendo o processo de interpretao do direito.
Importante tambm destacar que um trabalho que objetiva a busca de sen-
tidos implica numa abordagem diferenciada da tradicional. Essa abordagem ou
enfoque foi a zettica, conforme examinada no captulo 5, seo 3.
Relevante registrar que Hannah Arendt defensora do contingente, do sin-
gular e sua preocupao central est em apontar solues ou modos de pensar que
dem conta do que se vive, da realidade.
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Essa perspectiva foi fundamental para se pensar nos mtodos interpretati-
vos que melhor se adequam ao modo de pensar contingente: o juzo reflexionante
e a validade exemplar, como abordado no captulo 3.
Em sntese, hermenutica jurdica cosmopolita foi gestada a partir da se-
guinte cadeia de pensamento: o pice do desenvolvimento da aplicao das nor-
mas jurdicas est na concepo de que as normas jurdicas so compostas de
princpios e regras, estas aplicadas segundo o critrio de validade (valem ou no
valem, aplicando-se, em caso de conflito, as regras relativas s antinomias entre
normas) e os princpios, consoante o critrio da ponderao, sem conceber-se uma
hierarquia entre eles, sendo sempre o caso concreto que dir qual princpio ter
preferncia.
No entanto, os princpios, dada sua abertura, carecem de um discurso mais
aprofundado que busque por sentidos ou critrios que permita decidir e julgar
diante da inexistncia de parmetros confiveis ou razoavelmente debatidos e va-
lidados pela comunidade jurdica. Ou, numa linguagem streckiana: exige-se se d
nome s coisas, pois os princpios no so entidades metafsicas prontas que se
alcanam para dar sentido interpretao; no esto soltos no mundo sem refe-
rencial s coisas. Tal concepo implica superar a dicotomia sujeito-objeto evi-
denciando a incindibilidade entre eles.
Esses princpios, numa perspectiva cosmopolita (atos da fala e jogos de
linguagem), ho de ser mutveis e concretizveis de forma diferenciada, visto
incidirem de forma diferenciada em cada sociedade.
Ao trabalhar a perspectiva arendtiana, inevitavelmente passa-se por Kant
por meio da leitura da prpria Hannah Arendt, mas no o Kant universal, da razo
pura e da razo prtica, e sim o Kant da crtica do juzo.
Hannah Arendt e Kant, no plano filosfico, foram dois pensadores que pe-
diram uma lei internacional, contudo rejeitaram um Super-Estado, um governo ou
uma repblica mundial. Zagrebelski, no plano do direito e da interpretao, um
pensador preocupado com a sociedade plural e com a importncia do agir poltico
(comunitrio).
Pensou-se assim numa hermenutica jurdica cosmopolita como possibili-
dade de construo de uma ponte que ligue o direito constitucional ao direito in-
ternacional, mediado pela idia de cosmopolitismo e hospitalidade, oferecendo ao
aplicador do direito uma dimenso mais ampla para a aplicao do direito, dimen-
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so esta que inclusive se embasa na ampliao do conceito de dogmtica para
abarcar o conceito de cincia prtica, auto-implicao entre caso concreto e norma
jurdica.
Vislumbrou-se essa possibilidade a partir dos avanos que o constitucio-
nalismo e o direito internacional tm vivenciado nos ltimos 10 anos alados
condio de normas jurdicas auto-aplicveis, por meio dos princpios constitu-
cionais, da mitigao do conceito de soberania, na ampliao das normas de di-
reito internacional que internalizam no direito interno sem a necessidade de nor-
mas ratificadoras, na transformao do papel do Estado, enfim, em vrios sinais
que j apontam pela possibilidade da ampliao do processo hermenutico jur-
dico, exigindo dos juristas uma abertura de horizontes no desempenho cotidiano
do seu labor.
Os direitos fundamentais e seu regime jurdico fazem a mediao discur-
siva entre o direito interno e o internacional.
O sistema brasileiro um sistema aberto, plural, que recepciona os direitos
humanos e fundamentais numa dimenso sempre crescente, com um vetor sempre
positivo, o que no impede seu exame de compatibilidade ou de limites com ou-
tros direitos quando da soluo de casos concretos.
A dupla perspectiva tambm se justifica porque ambos esto preocupados
com as situaes concretas que afligem a humanidade, no pensamento como jul-
gar, no espao pblico, na ao e no discurso, na dimenso democrtica e plura-
lista.
Gustavo Zagrebelski vem defendendo a ductibilidade do direito no sculo
XXI, tratando no s de hermenutica jurdica, mas do direito num conceito mais
amplo que assinala perspectivas promissoras para um novo modo de aplicar o
direito que supera a perspectiva positivista.
Hannah Arendt, por sua vez, est preocupada com o retorno do espao da
argumentao e do discurso, da opinio, do resgate da fundamental relao entre
verdade e opinio, relao esta que passou a ser crtica aps a morte de Scrates,
destacando que, a partir de ento, at nossos dias, passou-se a privilegiar-se a
busca por um tipo parcial de verdade que somente aceito se seguir um mtodo,
resultando da a ocultao da dimenso mais ampla de verdade que abarque a
complexidade da vida humana em que as opinies e sua relao com a verdade
voltem a ter valor de destaque.
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Pela concepo zagrebelskiana, a norma jurdica aplicvel deve originar-se
da auto-implicao entre caso concreto e norma jurdica (princpios e regras)
tendo relevantes conseqncias para a Teoria da Constituio e para uma herme-
nutica jurdica cosmopolita, porque dessa perspectiva possvel pensar-se que
no h uma Teoria Geral da Constituio, aplicvel a todos os povos, mas tantas
teorias constitucionais quantas sejam as realidades de cada povo.
Justificam-se as perspectivas arendtiana-zagrebelskiana visto que ambos
os autores sempre estiveram preocupados com as situaes concretas das pessoas
e sempre acreditaram na possibilidade da construo de um mundo melhor, ele-
vando o pensamento (a busca pelos sentidos) para transformar a realidade.
O presente trabalho foi desenvolvido a partir do pensamento filosfico
arendtiano e da concepo do direito de Zagrebelski, numa vertente preponderan-
temente jurdico-constitucional.
No pretende ser um trabalho filosfico, mas apropriar-se do pensamento
de Hannah Arendt e de Zagrebelski naquilo que pode contribuir para o desenvol-
vimento de uma compreenso do fenmeno jurdico hermenutico como processo
unitrio em que interpretar-construir-aplicar-concretizar a norma jurdica faz
parte de um momento nico, de um processo incindvel, j que impossvel sepa-
rar-se a pr-compreenso do intrprete quando da soluo dos casos concretos.
Utiliza-se assim o pensamento e as obras de Hannah Arendt como pressu-
posto para a aplicao responsvel do direito, da necessidade do jurista buscar
sempre resultados melhores para o seu labor e ao mesmo tempo no se desgarrar
das conseqncias de seu agir no mundo jurdico; da tomada de conscincia de
que dependendo do tipo de deciso que tomar estar gerando nefastas conseqn-
cias para a presente e futuras geraes.
Quando se imagina uma hermenutica jurdica cosmopolita, imagina-se a
possibilidade de um agir transformador do operador do direito; um situar-se ques-
tionador do porqu da excluso (material, comunicativa, participativa, democr-
tica, cidad) em que a comunidade planetria, apesar de tanta tcnica ainda pa-
dece.
Por meio da perspectiva zagrebelskiana, inexiste cindibilidade entre dog-
mtica e cincia jurdica. O direito passa a ser concebido por Zagrebelski de uma
forma mais ampla, mais aberta: como cincia prtica. Isso permite transpor obst-
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culos defendidos pelo positivismo jurdico sobre os quais no cabe ao jurista in-
dagar as razes da lei ou as razes que levaram o legislador a elabor-la como tal.
Essa ampliao da forma de compreender o fenmeno jurdico
(interpretao-construo-aplicao-concretizao) se d por inmeros vieses ou
pela constatao prtica de que inmeros conceitos ou dogmas do Estado liberal
do direito vm sofrendo abalos irrecuperveis, como os conceitos de soberania, de
Estado, de lei, de justia, de direitos, de poder.
A perspectiva que aqui se adotou relevante, pois no se tem conheci-
mento de obra que tenha feito essa ponte entre direito interno e internacional no
plano da interpretao jurdica e tenha pensado numa hermenutica cosmopolita,
especialmente diante de situaes-limite em que aparentemente no h bases se-
guras para decidir, conforme se destacou nas sees 2 a 8, do captulo 3 ao se
tratar da ao, do pensamento e do juzo reflexionante.
A perspectiva cosmopolita no pode resultar numa escolha radical de um
mtodo ou de uma tcnica, uma vez que o que se busca compreender os fenme-
nos jurdicos, dar nome s coisas e no a busca de mtodos que, regra geral, so
aporticos por j definirem de antemo o resultado. Isso, no entanto, no implica
na denegao do mtodo: o relevante no abrir mo do processo hermenutico,
da compreenso, do direito de questionar, de buscar por respostas adequadas, par-
tilhadas, legtimas, verdadeiras no real sentido do termo verdade.
Decidiu-se pelo mtodo dialgico, privilegiando-se novos tipos de racio-
nalidade, em que a opinio, os jogos de linguagem, o discurso, o dilogo, o senso
comum voltaram a ser vivificados.
O mtodo dialgico trabalhado sob a abordagem zettica permite um dis-
curso interdisciplinar com elementos fundamentais da teoria da constituio e da
teoria jurdica, como a soberania, o poder, a fora, a violncia, o poder do dis-
curso, da argumentao, da persuaso, da verdade como o experiencivel no
mundo das aparncias, tcnicas extremamente teis ao processo comunicativo. O
resgate dessas tcnicas, aliadas ao constitucionalismo e s normas de direito inter-
nacional produz bons frutos para a aplicao do direito.
O vis sobre o qual se trabalha no o universalista, pois tanto Arendt
quanto Zagrebelski esto preocupados com o caso concreto, com o singular, com
o contingente referido a uma pr-compreenso. Assim, a incindibilidade entre
caso concreto e norma jurdica (circulo hermenutico) que permite solucionar
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adequadamente os problemas, soluo que Arendt foi buscar em Kant por meio
dos juzos reflexionantes e da validade exemplar.
A partir do conceito de poltico, desenvolvido por Arendt, Schmitt,
Mouffe e Dworkin, evidenciou-se que o poltico uma das categorias
fundamentais a ser desenvolvida numa sociedade cosmopolita, visto que por meio
dele se instaura o discurso e o dilogo entre as diferentes culturas e no qual todas
elas ficaro enriquecidas ao dialogarem, restando, tal qual no rio de Herclito, que
a sociedade humana, ao realizar o mergulho intercultural, construa perspectivas
vivenciais sempre mais dignificantes.
Desenvolveram-se as condies de possibilidade de uma hermenutica ju-
rdica cosmopolita, a partir da confrontao entre hermenutica e as condies do
saber; adentrando-se em conceitos arendtianos fundamentais como pensamento,
ao, juzo; relao esta que consistiu na principal crtica de Hannah Arendt a
Heidegger, em que este teria esquecido do mundo (de nossas relaes humanas,
da pluralidade do agir humano) e se encastelado em seu prprio pensamento.
Do debate de idias sobre o poltico entre Arendt, Schmitt, Mouffe e
Dworkin, a dimenso agonstica1 do poltico de Chantal Mouffe se mostrou extre-
mamente promissora para a hermenutica jurdica, apresentando tambm de ex-
trema importncia o vnculo entre o poltico e o jurdico na concepo dworkiana,
especialmente para a hermenutica constitucional, objeto de nossa preocupao no
presente trabalho.
Examinou-se a hermenutica jurdica contempornea para destacar que a
dogmtica tradicional j concluiu que o positivismo assentado no modelo da sub-
suno j no suficiente para dar conta da complexidade da sociedade globali-
zada do sculo XXI, e que necessita de um modelo zettico que restar enrique-
cido pelos saberes de outras reas, como a antropologia, a psicanlise, a psicolo-
gia, a lingstica, a filosofia, etc.
Discutiram-se os conceitos de cosmopolitismo e hospitalidade e se rela-
cionou o pensamento de Hannah Arendt e Gustavo Zagrebelski, concluindo seja
por meio dos conceitos de pensamento e juzo, seja como norma jurdica aplicada
oriunda da auto-implicao entre norma jurdica (regras e princpios) e realidade,
que o intrprete tem que compreender-construir-aplicar o direito unindo
1 Como livre, sadio e democrtico embate de idias.
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21
pensamento (busca pelos sentidos) e juzo (relao dessa busca com o mundo fe-
nomnico), em que os efeitos dessas decises sejam conseqentes para a presente
e para as futuras geraes2.
Abordou-se no captulo 3 o pensamento de Hannah Arendt e sua impor-
tncia para a hermenutica jurdica, em que se destacam as categorias da banali-
dade do mal, da ao, do pensamento e do juzo reflexionante, base para a ao e
o julgamento.
No captulo 4, por meio do pensamento de Gustavo Zagrebelski, verifica-
ram-se novas leituras em todos os temas relevantes para o processo hermenutico,
como o direito constitucional atual, o processo evolutivo do Estado de direito para
o Estado Constitucional, a relao entre direitos e lei, a relao entre direitos de
liberdade e direitos de justia, a normatividade do direito e a interpretao do di-
reito.
No captulo 5, traou-se um panorama atual da hermenutica jurdica,
podendo o processo hermenutico ser classificado em trs dimenses ou modelos
operativos: a) dogmtica jurdica clssica ou tradicional, estruturada sob o modelo
da subsuno; b) a dogmtica jurdica crtica, que concebe o sistema normativo
como um sistema aberto de regras e princpios, reconhecendo plena normatividade
aos princpios (plano da validade para as regras e do peso ou ponderao para os
princpios) e c) a hermenutica filosfica, cuja misso principal a busca pela
verdade e no por mtodos, ampliando a interdisciplinariedade entre os vrios
ramos do saber, enriquecendo ou tornando mais sofisticado o processo de aplica-
o das normas jurdicas, que passam a ganhar maior legitimidade a partir da efe-
tiva participao da comunidade de intrpretes-aplicadores-construtores da norma.
No captulo 6, descreveu-se como o direito constitucional brasileiro um
direito que j reclama dos intrpretes uma dimenso hermenutica mais ampla,
atravs da integrao de normas de direito constitucional e internacional, a partir
da leitura dos art. 4, 5 e seus pargrafos e do efeito irradiante da gramtica dos
2 Pensamento e juzo (ou ao), na perspectiva arendtiana e norma jurdica (princpios e regras) e realidade, na perspectiva zagrebelskiana do direito. A perspectiva zagrebelskiana tem um impacto significativo na teoria constitucional, resultando na impossibilidade de pensar-se uma teoria geral da constituio, mas uma teoria constitucional capaz de dar conta da realidade de cada povo, ou seja, a normatividade principiolgica buscar sempre uma elevao de nvel do processo hermenutico-jurdico, exigindo do operador do direito a compreenso-construo-aplicao de uma norma jurdica sempre melhor elaborada, fundamentada, sem descurar da realidade, da capacidade de efetivamente coloc-la em prtica.
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direitos fundamentais sobre esse ordenamento cosmopolita, destacando-se os m-
todos ou tcnicas hermenuticas atualmente utilizados.
O trabalho hermenutico jurdico que aqui se desenvolveu, partiu de uma
determinada realidade: a jurisdio constitucional brasileira, marcadamente a par-
tir da teoria constitucional brasileira de 1988, em que a Constituio, ao adotar
uma concepo jurdica principiolgica e erigir os direitos fundamentais como
ncleo essencial ou ncleo irradiante para todas as normas jurdicas constitucio-
nais, abriu possibilidades hermenuticas relevantssimas, realizando uma virada
copernicana na maneira de compreender-construir-aplicar o direito.
O trabalho, em sntese, procurou compreender como possvel uma her-
menutica jurdica cosmopolita que prime pela busca da verdade (verdades cons-
trudas) a partir dos juzos reflexionantes e da validade exemplar arendtiano-kan-
tianos e dos conceitos de cosmopolitismo e hospitalidade com vistas a encontrar
novas possibilidades hermenuticas, a partir de uma perspectiva existencialista, do
caso concreto que exige uma soluo (uma norma) adequada, legtima.
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2
Categorias possibilitadoras de uma hermenutica jurdica
cosmopolita
2.1.
Cosmopolitismo e hospitalidade3
Cosmopolitismo e hospitalidade so conceitos interdependentes sem os
quais no possvel pensar-se em paz perptua; estgio em que a humanidade
alcanaria um nvel de convivncia desejvel, mesmo com conflitos, mas conflito
concebido como o sadio embate de idias, solucionvel por regras democrticas
radicais (Chantal Mouffe), consoante examinado na seo 6 do presente captulo.
Importante destacar que Lafer concebe os direitos de primeira gerao
como direitos-garantia, de cunho individualista; os de segunda gerao os
direitos de crdito, de feio social e os de terceira gerao, como os de
titularidade coletiva.4
Lafer, a partir da experincia totalitria das pessoas descartveis -
displaced persons - destaca a concluso de Arendt de que a cidadania o direito
a ter direitos, pois a igualdade em dignidade e direitos no um dado, mas um
construdo da convivncia coletiva que requer o acesso ao espao pblico.5
Para Lafer, a partir da obra as origens do totalitarismo, Arendt in-
fluenciou o direito norte-americano, o direito constitucional democrtico e as
Convenes Internacionais de Direitos Humanos, em que a nacionalidade passou
a ser considerada pelo direito internacional pblico contemporneo como um
3 Deve-se ao Prof. Daniel Omar Perez, professor do Programa de Mestrado em Direito Econmico e Social da Pontifcia Universidade Catlica do Paran, a inspirao para se trabalhar os conceitos de cosmopolitismo e hospitalidade, atravs do dilogo entre Kant e Derrida, categorias relevantes para o presente trabalho. 4 LAFER, 1988, p. 21. 5 Ibid., p. 22.
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24
direito humano fundamental, sendo inaceitvel a privao da cidadania como
sano.6
Observa ele que a Suprema Corte dos Estados Unidos da Amrica acatou
esse pensamento concluindo que destituir algum de sua cidadania o mesmo que
expuls-lo do mundo, tornando-o suprfluo e descartvel.7
Afirma tambm que os princpios da hospitalidade universal e confiana
recproca, de inspirao kantiana, um princpio de jus cogens de ordem
internacional8.
Destaca ainda que para Arendt, a questo da obedincia lei no se
resolve pela fora, mas pela opinio e pelo nmero daqueles que compartilham o
curso comum de ao expresso no comando legal. A pergunta primeira no
porque se obedece lei, mas por que se apia a lei, obedece-se-a.9
Lafer concebe a Constituio como um construdo convencional no qual a
contingncia do consenso, cuja autoridade deriva do ato de fundao, uma
virtude, j que a verdade da lei repousa na conveno criadora de uma
comunidade poltica que enseja a gramtica da ao e a sintaxe do poder. Assim, a
preservao das condies para a gramtica da ao e a sintaxe do poder so
condies para a obedincia lei.10
O direito cosmopolita nessa perspectiva considera o indivduo como
membro de uma sociedade de dimenso mundial.11
A realizao do direito cosmopolita, consoante Nour, resta ameaada
enquanto no se permitir a alteridade, pela excluso da maior parte da populao
do planeta de se apresentar como sujeito poltico. 12
6 Ibid., 1988, p.22. 7 Ibid., p. 22. 8 Ibid., p. 23. 9 Ibid., p.25. 10 Ibid., p. 26. 11 NOUR, 2004, p. 168 passim. Destaca Nour que tal idia foi reconstruda a partir de 1990 como orientao para uma poltica cosmopolita dos direitos humanos. Conforme Nour, Kant define o direito como o conjunto das condies pelas quais o arbtrio de um pode concordar com o arbtrio do outro segundo uma lei universal da liberdade. Denuncia Kant, no entanto, segundo NOUR, que a manipulao dos direitos humanos que determinados Estados esto fazendo, implica numa moralizao autodestrutiva da poltica, por tomarem um conceito universal para se identificar com ele contra o adversrio, reivindicando para si a paz, a justia, o progresso e a civilizao, mas ao mesmo tempo negando-os ao inimigo. 12 Ibid., p. 175.
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25
Assim como Kant,13 Arendt acredita, apesar das rupturas do pensamento,
num grau supremo de humanidade, na busca de uma constituio poltica sempre
mais perfeita.
Por meio de suas nove proposies, Kant evidencia essa crena, centrada
no uso da razo que deve acompanhar a espcie humana, no antagonismo como a
insocivel sociabilidade dos homens, num progressivo iluminar-se, na
possibilidade de uma sociedade civil que administre universalmente o direito.
Concebe ainda a histria da espcie humana como a realizao de um plano
oculto na natureza para estabelecer uma constituio poltica, concluindo pela
possibilidade de uma perfeita unio civil entre a espcie humana.14
Por sua vez, Terra,15 retratando crticas de Arantes,16 observa que Kant
teria insistido no progresso das instituies polticas, mas ignorara outros aspectos
como a tcnica. Retrata tambm crtica de Philonenko17, para quem o problema do
progresso tcnico no era fundamental para Kant e tudo se passaria como se no
houvesse um horizonte essencial. Kant, no teria tido a capacidade de avaliar os
espantosos sucessos tcnicos que j estavam em gestao em seu tempo.
Nour enfatiza que a paz perptua de Kant um projeto filosfico em que
os Estados republicanos conviveriam sem guerras com outras repblicas,
destacando que Kant utilizava o vocbulo Repblica para designar os regimes
hoje denominados democrticos. 18
Os seis artigos preliminares kantianos constituiriam os pressupostos para a
conquista e manuteno da paz perptua: a) a impossibilidade de uma reserva
secreta com vistas a uma guerra futura como condio de validade de um acordo
de paz; b) a impossibilidade de aquisio de um Estado por outro, por herana,
troca, compra ou doao; c) a abolio dos exrcitos permanentes; d) a
impossibilidade de conexo entre dbito nacional e assuntos externos do Estado;
e) no interveno na Constituio e Governo de outro Estado; f) no permisso
de atos de hostilidade que tornem impossvel a mtua confiana em uma poca de
paz futura.
13 KANT, 2003, p. 1. 14 Ibid., p. 17 et. seq. 15 TERRA, 2003, p. 66. 16 ARANTES, 1977, p. 57. 17 PHILONENKO, 1982, p. 55. 18 NOUR, 2004, prefcio.
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26
Nos artigos definitivos, Kant concebe a Constituio Civil de todos os
Estados como uma Constituio necessariamente Republicana (democrtica), na
qual onde o direito das naes seja baseado em uma Federao de Estados Livres
e os Direitos Cosmopolitas regidos pelas condies da Hospitalidade Universal.
So seguidos de dois suplementos: um sobre a Garantia da Paz Perptua
e outro como o Artigo Secreto da Paz Perptua, em que os intelectuais deveriam
ser consultados pelos Estados armados para a guerra.
Destaca Nour a crtica kantiana de que o discurso das naes civilizadas se
referia eufemisticamente conquista de outros povos como um suposto direito de
visita, mas que o efetivo objetivo era a reduo do outro nulidade, tomando
seus habitantes por nada. 19
Perez, ao tratar da hospitalidade em geral, utiliza as consideraes de
Levinas e Derrida para introduzir o conceito kantiano na problemtica do
estrangeiro.20
Mostra tambm o significado moral e jurdico da hospitalidade kantiana,
iniciando por conceituar hospitalidade como o ato de acolher, de receber um
hspede em casa; de hospedar aquele que no da nossa famlia, alm de afirmar
que est implcito no conceito uma lgica da amabilidade.21
Considera ainda que da correlao da questo dos estrangeiros com o
Estado de Direito, uma atitude gentil, hospitaleira predispe ou deveria predispor
aos Estados republicanos, s democracias, a acolher o estrangeiro, o outro.22
Indaga ele, no entanto, com base na leitura que Derrida faz dos dilogos
platnicos (Apologia de Scrates, em especial): como pedir a hospitalidade se se
sujeita a uma primeira violncia ao se obrigar o estrangeiro a pedi-la numa lngua
que no a sua; numa lngua que a do dono da casa, do hospedeiro, do rei,
senhor, do poder, da nao, do Estado, do pai, etc.?23
Pondera tambm se se deveria exigir do estrangeiro que nos compre-
endesse; que falasse nossa lngua; que fosse de boa famlia; que tivesse um nome,
um estatuto social, um visto, para s assim acolh-lo; o gesto de gentileza deveria
comear por uma inquisio?: quem voc? qual a sua documentao? quanto
19 Ibid., p. 57. 20 PEREZ, 2005. 21 Ibid., p. 1. 22 Ibid., p. 1 23 Ibid., p. 1.
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27
dinheiro voc tem? ou melhor, o outro seria outro quando responde a tudo o que
eu tambm respondo? ou isso no representa to-somente o acolhimento de mim
mesmo, apagando o outro sob as figuras da moral, da poltica ou do direito?24
Todavia essa abertura total comporta riscos. Como saber se no estou
acolhendo um parasita, um criminoso? Em resumo: a hospitalidade deve ser
incondicional? tem limites? deve-se correr riscos? Aqui est a grande diferena
entre Derrid, Levinas e Kant, conforme se ver a seguir.
Ao analisar a hospitalidade em Levinas, Perez defende que preciso correr
esse risco, pois se deve servir ao outro sem perguntar seu nome porque o outro
que nos constitui. Sou responsvel por ele porque ele me constitui, exsurgindo a
idia de responsabilidade incondicional, independentemente de qualquer culpa
pela situao do outro.25
Tambm com base em Derrida, Perez conclui que a hospitalidade deve ser
incondicional, dizendo que ela no um convite em que o outro obrigado a se
adaptar s minhas leis, minha linguagem, tradio, memria, etc., mas aberta a
algum que no esperado ou convidado, um estranho, totalmente outro.26
Examina a hospitalidade kantiana, que pede documentao, tem limites,
mas est inserida dentro de uma reflexo maior:
por um lado, no mbito da legislao da liberdade interna e do respeito ao imperativo categrico (devo tratar bem aos meus convidados para ter um modo de vida virtuoso) e do dever de afabilidade (metafsica dos costumes de 1797); por outro, no mbito da legislao da liberdade externa e do respeito lei jur-dica.27
Destaca tambm que no plano jurdico, Kant defende o direito de algum
estar em algum lugar e cuidar de sua prpria vida. Todos tm o direito posse
comum da superfcie da terra (paz perptua e metafsica dos costumes), do que
resulta que o dever de hospitalidade se justifica porque o planeta redondo, o que
exige que vivamos juntos, que toleremos a mtua presena mantendo uma
determinada distncia.28
24 Ibid., p. 2. 25 Ibid., p. 2 26 Ibid., p. 2. 27 Ibid., p. 4. 28 Ibid., p. 6 passim.
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28
Todos, assim, tm o direito de no receber um trato hostil por ter chegado
de outro territrio; o direito de se apresentar em sociedade e a entabular
intercmbios, comrcios, circulao, etc.
Essa hospitalidade kantiana a condio necessria para que se estabelea
a paz perptua, a paz entre Estados e povos, pensando j aqui Kant numa
Constituio Cosmopolita, ligando, portanto, hospitalidade e cosmopolitismo.
Observa Perez que Kant parte da concepo de que, em estado de natureza,
os homens esto em guerra, posteriormente se organizaram numa constituio
civil (produto e condio das capacidades naturais do homem, passando por uma
relao legal entre Estados e desembocando numa Federao, ou estado de
cidadania mundial ou cosmopolita).29
Todavia, como conceber um Estado cosmopolita? quais seriam suas bases?
Kant vai responder que a partir da insocivel sociabilidade dos indivduos e dos
povos e no por amor. Por meio do espanto chegar-se-ia a tal resultado. Do
espanto surge a razo e a providncia, a primeira fruto da capacidade humana de
escolher as melhores alternativas para sobreviver, evitando-se a guerra e
escolhendo-se a paz, e atravs da providncia, porque o homem no garante o
prprio progresso.30
A repblica para Kant o estgio intermedirio para o cosmopolitismo e
esse no se alcana sem que sejamos hospitaleiros.31
Kant, contudo, no ignorava que nada de hospitaleiro havia no com-
portamento dos Estados civilizados que deturpavam o direito de visita e
desejavam de fato a conquista, atitude que ele critica, pois fomentadora da
guerra e no da paz.32
Conclui Kant, segundo Perez, que por uma razo prtica (garantia dos
direitos dos homens como cidados do mundo), faz sentido o termo hospitalidade;
que o direito de cidadania mundial no uma fantasia, mas um complemento
necessrio do cdigo no escrito do direito poltico das gentes, favorecendo a paz
perptua e no a uma idia de filantropia.33
29 Ibid., p. 7. 30 Ibid., p. 7. 31 Ibid., p. 8. 32 Ibid., p. 9. 33 Ibid., p. 9.
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29
Desse modo, conclui-se com Perez que para Kant, o conceito de hos-
pitalidade est inserido dentro do conceito de razo prtica, implicando uma
relao moral (respeito lei moral) e jurdico-poltica com o outro (caminho para
a paz).
O estrangeiro, conseqentemente, para Kant um cidado do mundo,
independentemente de qual seja sua origem territorial; dever ser tratado como
pessoa, como fim em si mesmo. A lngua da hospitalidade a da razo prtica e o
agir um agir racionalmente motivado.
So conceitos contraditrios afabilidade e colonialismo, diplomtico e
invasor, atitudes contrrias ao cosmopolitismo e hospitalidade.34
Do exame da hospitalidade e do cosmopolitismo em Kant, poderia surgir
a idia de que Kant concebe a necessidade de um Estado Total Mundial. Observa
Perez que Kant no defende essa idia e sim acordos ou mbitos de discusso dos
quais os Estados possam se retirar livremente, acordos estes que no so
aleatrios, mas visam a uma finalidade.
O pensamento de Perez est inserido no contexto da sociedade con-
tempornea, pois cada vez mais ntida a aproximao entre os povos, ao mesmo
tempo em que surgem movimentos de xenofobia (Frana, Alemanha, Estados
Unidos, etc.). que vem o estrangeiro como um invasor que quer tomar o seu
espao, comer o seu po, desestabilizar sua segurana.
A idia de hospitalidade kantiana mostra-se mais factvel com a realidade
contempornea do mundo ocidental, haja vista o incremento crescente dos pactos
e tratados internacionais, especialmente dos que tratam de direitos humanos e
direitos fundamentais, apesar dos movimentos xenfobos mencionados.
Cita Borradori a crena kantiana na razo e em seu poder transformador,
que cresce a partir do momento em que o indivduo percebe a si mesmo como
parte de uma comunidade. Destaca que Kant j pensara num Estado ou numa
comunidade universal em que todos os membros estivessem habilitados a se
apresentar diante da sociedade dos outros, porque tm direito posse comunal da
superfcie da terra. Alcanada uma comunidade desse tipo, uma violao de
direitos em uma parcela do mundo seria sentida em toda parte; s assim seria
possvel sustentar-se o avano contnuo em direo a uma paz perptua.35
34 Ibid., p. 10. 35 BORRADORI, 2004, p. 12.
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30
Assinala a autora que enquanto Habermas defende uma noo de
patriotismo constitucional, baseado na livre adeso Constituio por cada
cidado, Derrida, por outro lado, destaca o desafio do existir nas fronteiras de
mltiplos territrios (judasmo e cristianismo, judasmo e islamismo, Europa e
frica, Frana continental e suas colnias, etc.), no descartando, porm, que as
instituies republicanas e a participao democrtica que tambm devem ser
concebidos como construo e no como valores absolutos - tm se esforado
para a construo de um universalismo em sua infinita busca por justia.36
O pensamento desses dois autores tem notas distintivas bem marcantes,
apesar de compartilharem um compromisso com o iluminismo, conforme
Borradori37: Habermas acredita no projeto inacabado da modernidade; segue com
Kant e a crena em princpios universais.
Derrida, por outro lado, enfatiza que o projeto iluminista e o conjunto de
padres que impe beneficiam uns e prejudicam outros, sendo necessrio
demarcar fronteiras e uma dessas principais fronteiras consiste na tica e na
poltica, que ele denomina de responsabilidade com a alteridade e com a
diferena, o que est alm das fronteiras da descrio, do excludo e do
silencioso.38
Essa responsabilidade com a alteridade e com a diferena examinada
como tolerncia ou como hospitalidade, sendo conceitos opostos, em que a
hospitalidade traduz a obrigao nica que cada um tem para o outro enquanto a
tolerncia mais uma forma de caridade e traduz um gesto paternalista no qual o
outro no aceito como um parceiro igual, que comporta limites em que a partir
desse limite no seria mais lcito ou decente mais nada pedir (e.g. acolhimento de
estrangeiros, imigrantes, etc.). Habermas, consoante Borradori acolhe tal
concepo tanto nos campos tico como legal, oriundos da prpria concepo de
democracia constitucional em que se forma o consenso racional.39
A hospitalidade, por ser turno, de acordo com Derrida, pura e in-
condicional e (...) se abre ou est aberta para algum que no esperado nem
convidado, para quem quer que chegue como um visitante absolutamente
36 Ibid., p. 22 passim. 37 Ibid., p. 27. 38 Ibid., p. 27 39 Ibid., p. 29.
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31
estranho, como um recm-chegado, no identificvel e imprevisvel, em suma, um
totalmente outro.40
Habermas, indagado inmeras vezes se sua teoria da ao comunicativa
no foi colocada em xeque depois de 11 de setembro, conclui que nas sociedades
ocidentais, pacficas e prsperas, h uma violncia estrutural representada pela
desigualdade social desproporcionada, pela discriminao degradante, pelo
empobrecimento e marginalizao, mas que ao mesmo tempo a prxis de nossa
vida cotidiana repousa sobre convices fundamentais comuns, verdades culturais
auto-evidentes e expectativas recprocas. Por onde ento passaria o caminho da
transformao? Responde que pela mudana de mentalidade que deveria ocorrer
sobretudo pela melhoria das condies de vida, papel que o poder inibidor das
relaes internacionais no est ainda em condies de realizar porque a lei tem
um papel fraco.41
Dessa forma, Habermas defende a necessidade da domesticao poltica
do capitalismo irrefreado, de um reequilbrio das disparidades na dinmica do
desenvolvimento econmico, para que regies e continentes inteiros no
continuem privados de bens bsicos e continuem miserveis, sob pena de
intratabilidade da devastadora estratificao da sociedade mundial.
Acredita Habermas que nos encontramos em um processo de transio da
lei internacional clssica para um Estado de cidadania mundial ou Estado
constitucional, citando o papel das Naes Unidas, o Tribunal de Haia, o caso
Milosevic, o caso Pinochet, a Corte Criminal Internacional e inmeras situaes
interventivas concretas que demonstram esse processo de transio.42
Destaca, entretanto, que a organizao mundial no passa de um tigre de
papel, que depende da boa vontade das grandes potncias em colaborar. H,
assim, uma discrepncia entre o que deveria e o que poderia ser feito, entre a
justia e o poder, lanando uma luz negativa sobre a credibilidade da ONU, bem
como sobre a prtica das intervenes no-autorizadas.
Para a concepo habermasiana, a passagem da lei internacional clssica
para uma nova ordem cosmopolita se operacionaliza por meio do
republicanismo e do patriotismo constitucional em que a lealdade
40 Ibid., p. 28. 41 Ibid., p. 28 42 Ibid., p. 51.
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32
Constituio atestaria a participao consensual de todos os cidados e a lealdade
a uma idia de direitos universais, condio necessria para a coexistncia dos
seres humanos43.
Para Habermas, a instituio da Corte Internacional criminal e a superao
do princpio da no-interveno nos afazeres domsticos constituem a primeira
estao da linha cosmopolita, adotando assim a posio kantiana de que somente
Estados republicanos constitucionais poderiam inaugurar uma nova ordem
cosmopolita em que cada nao poderia exigir das outras a adoo de uma
constituio civil semelhante na qual, por meio de uma federao de povos, os
direitos de cada um pudessem ser assegurados.44
2.2.
Universalismo e relativismo: por um cosmopolitismo dctil ou de
confluncia
O debate entre universalistas e contextualistas ocupa o centro das reflexes
filosficas atuais. Destaca Chantal Mouffe que tanto ela como Michel Walzer e
Richard Rorty entendem que a democracia liberal deve renunciar ao seu clamor
por universalidade: o que importante fornecer uma pluralidade de respostas
legtimas questo sobre o que um sociedade poltica justa, ao contrrio de
autores como Dworkin, Rawls e Habermas que afirmam que o objetivo da teoria
poltica estabelecer verdades universais, vlidas para todos e que no so
dependentes do contexto; no h um ponto de vista que possa estar situado fora
das prticas sociais e instituies de uma cultura particular e a partir de onde
juzos universais e contextualmente independentes possam ser produzidos.45
Para o aporte contextualista ou relativista, as instituies liberais devem
ser vistas como definidoras de um possvel jogo de linguagem, entre tantos
outros possveis.
43 Ibid., p. 64. 44 Ibid., p. 66. 45 MOUFFE, 2004, p. 381 et. seq.
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33
O que se exige para a democracia um conjunto de prticas e movimentos
pragmticos que objetivem convencer as pessoas a ampliar seu grau de
comprometimento com os outros e construir uma sociedade mais inclusiva.
Mouffe, com base em Wittgeinstein, observa que para haver acordos em
opinies acordos sobre formas de vida, que por sua vez exigiria acordos em
julgamentos - preciso haver primeiro acordos quanto linguagem utilizada;
somente a partir dessas premissas a sociedade poderia existir antes de um
conjunto de procedimentos funcionar (contraponto a Habermas evidenciando que
procedimentos somente existem como um conjunto complexo de prticas).46
Os argumentos, segundo Mouffe47, no so estabelecidos em significados
(Meinungen), mas em formas de vida (Lebensform), fuso de vozes tornada
possvel por formas comuns de vida e no Einverstand produto da razo, como
quer Habermas.
As consideraes de Wittgeinstein, observa Mouffe, implica em fortalecer
uma pluralidade de formas de cidadania democrtica (com a apario de lutas
entre adversrios: lutas legtimas pluralismo agonista e no entre inimigos) e
criar instituies que tornariam possvel seguir regras democrticas de diferentes
formas.48
2.3.
O poltico
O poltico a categoria fundamental para uma hermenutica jurdica
cosmopolita. Arendt, Carl Schmitt e Chantal Mouffe so pensadores que
radicalizaram a dimenso poltica da ao humana, vindo contemporaneamente
Niklas Luhmann, Dworkin, Streck e outros a evidenciar a relevncia do
acoplamento entre o jurdico e o poltico, especialmente quando se busca dar
concretude a uma hermenutica jurdica no marco jurdico da jurisdio
constitucional.
46 Ibid., p. 385. 47 Ibid., p. 387. 48 Ibid., p. 389.
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34
Dessa maneira, examina-se a partir das sees seguintes o poltico na
persepctiva desses pensadores, iniciando-se por Hannah Arendt.
2.3.1.
O poltico em Hannah Arendt
Extrai-se do pensamento de Arendt uma categoria central: o poltico49. O
sentido da poltica a liberdade50.
Textualmente afirma: a poltica organiza, de antemo, as diversidades
absolutas de acordo com uma igualdade relativa e em contrapartida s diferenas
relativas.51
No h poltica no homem, afirma ela, mas no intra-espao, na relao
entre eles.52
O pensamento poltico baseia-se, assim, na capacidade humana de
formao de opinio.53
Arendt est em busca de resposta seguinte pergunta: tem a poltica hoje
algum sentido? Tenta respond-la, baseada no fato de que a poltica, o agir plural
e a liberdade esto comprometidos no mundo moderno porque a fora substituiu o
poder, corrompendo o poltico.
Por conseqncia, a perda da coisa poltica a perda da liberdade.
Destaca, todavia, que no mundo moderno no est em jogo somente a liberdade,
mas a continuidade da existncia da humanidade e de toda a vida orgnica na terra
dada a potencialidade de extermnio total da humanidade com o arsenal atmico
armazenado. Assim, indaga: que liberdade se tem diante da ameaa de morte
instantnea de toda a humanidade? A poltica, o agir e conversar esto ameaados
de ser riscados da face da terra. Questiona Arendt da convenincia ou
inconvenincia dos meios pblicos de fora, j que a fora que deveria proteger a
49 ARENDT, 2004a. 50 Ibid., p. 176. 51 Ibid., p. 24. 52 Ibid., p. 23. 53 Ibid., p. 30.
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vida ou a liberdade tornaram-se to terrivelmente poderosas que ameaam tanto a
liberdade quanto a prpria vida.54
A poltica perpassa toda a obra de Hannah Arendt porque por meio da
poltica, do interagir humano, do dilogo e do discurso, do convvio e opinies, da
pluralidade humana que se constri e se cuida do mundo. Um mundo sem poltica
um mundo suprfluo, um mundo sem cuidado, um mundo onde no se pensa nos
destinos da humanidade.
Por todas as obras de Arendt se extrai uma idia central: seu amor-mundi,
a preocupao com o mundo e a sobrevivncia dos homens neste mundo,
destacando que o mundo moderno nos ameaa de ser coisa e no algum.
essa idia central que nos motiva a seguir seus passos para apontar a possibilidade
de uma hermenutica jurdica cosmopolita; na possibilidade de uma hermenutica
jurdica mais cheia de sentido.
O poltico em Arendt, vivenciado pela pluralidade humana, constri e
cuida do mundo, por meio da liberdade, do interagir humano, do dilogo, do
discurso, do convvio de opinies, da igualdade.
O agir entre os homens cria uma rede de relaes que desencadeia novas
relaes, que sobreviver a eles prprios.
Para Arendt, s h mundo por meio do convvio humano, do agir em
conjunto dos homens, do conversar entre si, surgindo desse processo o poder e
no a fora, a qual vinculada violncia, relao entre dominador e dominado.
Arendt afirma que quanto mais pontos de vista houver num povo, a partir
dos quais possa ser avistado o mesmo mundo, habitado do mesmo modo por todos
e estando diante dos olhos de todos, do mesmo modo, mais importante e mais
aberta para o mundo ser a nao.55
Precisa-se assim enxergar o mundo por vrias perspectivas, pois s h
mundo onde a pluralidade do gnero humano seja mais que simples multiplicao
da espcie.
Ao pensar no sentido da poltica, Arendt afirma que na poltica h a
necessidade de diferenciar objetivo, meta e sentido.56
54 Ibid., p. 77 et. seq. 55 Ibid., p. 109. 56 Ibid., p. 127.
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36
O sentido de uma coisa est contido nela mesma; o sentido de uma
atividade existe enquanto dura essa atividade. O objetivo, por sua vez, comea a
aparecer quando a atividade que o produziu chega ao seu fim, assim como se
finaliza a fabricao de um objeto. As metas, por outro lado, produzem os
parmetros pelos quais julga-se o que se faz. A meta deve limitar os objetivos e os
meios e isolar o agir contra um perigo de excesso inerente a este.57
Salienta tambm que o agir conveniente se tornou sem objetivo quando os
meios de fora foram disponibilizados ao agir poltico. Dessa forma, sem objetivo
e sem meta, qual o sentido da poltica?58
Denuncia ainda que se substituiu o poltico pela fora, pela violncia, a
partir da capacidade moderna de extermnio total e, com isso, a fora tomou o
espao do poltico-pblico.59
O poder de convencimento, o conflito agonal, democrtico-radical, tal
como o defende Chantal Mouffe, realizado de forma franca e transparente, o que
marca o pensamento de Arendt.
Arendt faz acirradas crticas a Marx afirmando que foi justamente pelos
conceitos de dominador e dominado, aes que se davam no mbito privado, da
casa, que Marx foi construir sua teoria da expropriao e sua ditadura do
proletariado.60
Para ela, Marx o grande responsvel pela superfluidade do homem
moderno, visto que com os conceitos de dominador e dominado, trabalho e
produo, morreu a coisa poltica e o homem se tornou suprfluo.61
Arendt tem grande admirao pela doxa62 e pela maiutica (o mtodo de
perguntas e respostas) e visa resgat-la, demonstrando que foi a partir da tragdia
da morte de Scrates que a fora persuasiva foi relegada a segundo plano.
57 Ibid., p. 127. 58 Ibid., p. 130. 59 Arendt destaca em praticamente todas as suas obras que com a energia nuclear disponvel no mundo, parece no haver mais sentido se falar em guerra, pois a possibilidade de extermnio total da humanidade hoje uma realidade. Como a deciso sobre a potencialidade de tal catstrofe est fora de controle da maioria dos Estados, o cosmopolitismo e o poltico possvel, tanto no sentido mouffiano quanto no arendtiano, aquele que se acredita na capacidade da argumentao, do dilogo, do discurso, no senso comum, no carter produtivo da relao entre adversrios, entre pessoas que dividem um espao simblico, sendo este que d sentido especfica forma da poltica democrtica. 60 Id., 2003b, p. 13 passim. 61 Ibid., p. 43 et. seq.
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37
A resoluo da questo social condio fundamental para a fundao da
liberdade, consistindo a a denncia de Arendt sobre o fracasso da Revoluo
Francesa63.
Arendt resgata o conceito grego de poltica, em que o homem deveria ter
suas necessidades bsicas supridas para com elas no mais se preocupar e, a partir
da, partir para a polis, para o estar entre iguais, para discutir e resolver seus
problemas.
Ela afirma que o espao livre da coisa poltica no mundo grego se
apresentava como uma ilha em que o princpio da fora e da coao eram
eliminados das relaes humanas, pois todos, nesse mbito, eram considerados
livres e iguais64.
Importante, porm, observar que a famlia e as relaes da polis com
outras unidades polticas continuavam sujeitas ao princpio da coao e ao direito
do mais forte65.
Arendt afirma que, com a criao da Organizao das Naes Unidas
ONU, todas as relaes inter-estatais devem ser consideradas como relaes entre
livres e iguais, deixando-se a tal organizao o papel de dirimir eventuais
controvrsias66.
No se concebia a desigualdade nesse dilogo entre iguais. Era o poder de
convencimento, o conflito agonal, democrtico, realizado em praa pblica que
decidia os destinos da polis. O nico campo em que no havia igualdade e havia
dominao era no lar, na relao familiar e na relao com os escravos.
Arendt faz esse resgate da coisa poltica na polis, bem como do conceito
pr-poltico de dominao que se dava no ambiente familiar para afirmar que foi
justamente aqui no conceito de dominador e dominado que Marx foi construir sua
teoria da expropriao, da ditadura do proletariado.
Dessa forma, o enxergar o mundo por meio de uma mesma lente, de uma
mesma perspectiva, resultar no fim do mundo no sentido poltico. Logo, s h
62 Opinio ou crena, cf. LALANDE, 1999, p. 1252. Tambm para ABBAGNANO, 2003, p. 294: doxologia ou praticologia, como o nome dado por Leibniz para certas formas de expresso que se coadunam com o uso popular ou corrente, ainda que no rigorosamente exatos. 63 ARENDT, 2004a, p. 229. 64 Ibid., p. 104. 65 Ibid., p. 104. 66 Ibid., p. 104.
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38
mundo onde a pluralidade do gnero humano seja mais que a simples
multiplicao da espcie.67
Observa Arendt que para os romanos, na guerra, o inimigo deveria ser
poupado e mantido vivo, pois isso aumentava a cidade, abrangendo esse
estrangeiro numa nova aliana. Enriqueciam-se culturalmente a si prprios com
tal processo, mesmo que tal aliana, tal pacto, no se desse entre iguais.68
Constata tambm que o aumento dos meios de fora e extermnio se deram
tanto em razo das invenes tcnicas como ao fato de o espao pblico ter se
tornado um lugar de fora, da resultando que o progresso tcnico se tornou o
progresso das possibilidades de extermnio. Dessa maneira, o poder, ao invs de
surgir do agir comum humano, no espao pblico, ocorreu num espao dominado
pela fora, surgindo a iluso de que poder e fora sejam a mesma coisa.69
Adverte Arendt que da unio da fora - fenmeno do indivduo ou de uma
minoria ao poder fenmeno que se origina do agir plural surge um aumento
monstruoso do potencial de fora, que aumenta e se desenvolve s custas do
poder.70
Observa que a fora e a necessidade,71 que eram fenmenos fronteirios e
marginais da coisa poltica, foram guindadas ao centro do agir poltico e com isso
passou a fora a ser meio para atingir-se o objetivo mais elevado: a conservao e
instituio da vida. Assim, adverte, o mbito poltico passa a ameaar aquilo para
o qual ele se justificava.72
Baseando-se em Kant, afirma tambm que a liberdade consiste na
espontaneidade, no fato de cada homem ser capaz de iniciar uma srie nova de
aes por si mesmo, em que a liberdade de agir equivale a estabelecer um incio e
comear alguma coisa.73
Destaca o extraordinrio significado poltico do poder comear algo
novo, pois as formas de dominao totalitria no se contentam em por fim ao
livre externar da opinio, mas objetivaram especialmente a por fim
espontaneidade do homem em todas as reas. Essa privao da espontaneidade, a 67 Ibid., p. 109. 68 Ibid., p. 118. 69 Ibid., p. 79. 70 Ibid., p. 79. 71 A fora era necessria apenas para proteger; e o sustento da vida era uma condio pr-poltica de acesso vida (Ibid., p. 83). 72 Ibid., p. 83. 73 Ibid., p. 57 et. seq.
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privao do direito de comear algo novo, implica em que o curso do mundo
passa a ser determinado e previsto de maneira determinstica.74
Afirmando que at hoje apenas poucas grandes pocas conheceram a
coisa poltica, destaca ainda que a coisa poltica no uma necessidade absoluta
como a fome ou o amor, iniciando-se somente a partir do trmino do reino das
necessidades materiais e da fora fsica.75
O grande problema que
o verdadeiro novo e assustador desse empreendimento no a negao da liberdade ou a afirmao que a liberdade no boa nem necessria para o homem, e sim a concepo segundo a qual a liberdade dos homens precisa ser sacrificada para o desenvolvimento histrico, cujo processo s pode ser impedido pelo homem quando este age e se move em liberdade.76
Destaca Arendt a confuso que o mundo moderno fez ligando igualdade ao
conceito de justia e no de liberdade. Isonomia, destaca ela, no significa que
todos so iguais perante a lei nem que a lei seja igual para todos, mas que todos
tm o direito atividade poltica, direito de falar77, que se dava por meio da
conversa mtua.78
A poltica o instrumento que impede a obstruo liberdade, baseando-
se na pluralidade humana, sendo sua funo a de organizar e regular o convvio
entre diferentes. A poltica no surge no homem, mas entre os homens79.
Arendt compara a capacidade humana de agir, de tomar iniciativas, de
impor um novo comeo, de recomear, de comear uma cadeia espon-
taneamente, de fazer algo diferente, capacidade maravilhosa e misteriosa de
fazer milagres. Enquanto estiverem presentes estas condies, os homens sero
capazes de fazer o improvvel, o incalculvel. O milagre da liberdade, observa,
est nessa capacidade de poder comear.80
O livre agir arendtiano o agir em pblico, sendo o pblico o espao
original do poltico.81
74 Ibid., p. 57 et. seq. 75 Ibid., p. 50. 76 Ibid., p. 51. 77 Arendt destaca que para a tragdia grega e seu drama o falar consistia em espcie de ao. Ver tambm AUSTIN, 1990. 78 ARENDT, op. cit., p. 49. 79 Ibid., p. 8. 80 Ibid., p. 9 passim. 81 Ibid., p. 11.
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40
Por dependerem uns dos outros, h a necessidade de um provimento da
vida relativo a todos, sem o qual no seria possvel justamente o convvio. Assim,
a tarefa da poltica a garantia da vida no sentido mais amplo possvel,
permitindo aos indivduos a busca da paz e da tranqilidade, objetivos estes que
somente podem ser conquistados por meio do Estado, visto que ele que impede
a guerra de todos contra todos.82
2.3.2.
O poltico em Carl Schmitt
Carl Schmitt foi um dos grandes pensadores que se debruou sobre o
exame do poltico, destacando, tal qual Hannah Arendt e Chantal Mouffe, seu
carter inerradicvel.
Schmitt foi intelectual crtico, assumindo a tarefa de analisar, sem piedade,
os momentos fracos de uma ordem constitucional.
Ao tratar do conceito de poltico, destaca o esvaziamento do sentido do
poltico pela falta de um espao autnomo de deciso sobre os critrios do agir
poltico, observando que a legitimidade poltica na sociedade da democracia de
massa no se baseia mais em convices de valores principais, mas nica e
exclusivamente na legalidade formal do procedimento.83
A importncia do pensamento de Schmitt sobre o poltico a manuteno
do lugar do poltico na poca moderna, na poca do crescimento do
parlamentarismo democrtico, ao qual Schmitt se ops com insistncia.84
O ncleo da teoria de Schmitt a sua concepo de soberania e, por
conseqncia, a recuperao da rea do poltico dentro das comunidades
modernas, cujas caractersticas consistiram no debate sem fim, forma de
desresponsabilizao dos agentes polticos frente s necessidades de deciso
concreta.85
Formula tambm juzo devastador sobre o mero formalismo da democracia
moderna na sua forma parlamentar, em que o parlamentarismo democrtico
82 Ibid., p. 45 et. seq. 83 SCHMITT, 1992, p. 26. 84 Ibid., p. 10. 85 Ibid., p. 10.
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41
substitui a deciso poltica pela exclusiva valorizao da maioria quantitativa de
votos.86
Observa ainda que o parlamentarismo perdeu seu fundamento e cre-
dibilidade no momento em que a livre discusso pblica entre cidados in-
dependentes arruinou-se pelo compromisso ttico dos partidos, fazendo de-
saparecer o ser pblico no processo de deciso poltica, dando lugar s ne-
gociaes e comisses fechadas.87
A perverso do parlamentarismo teria cortado os laos com os princpios
constitutivos das idias liberais da tradio com o ser pblico da deciso e com a
disputa racional de opinies polticas: a situao do parlamentarismo hoje to
precria devido ao fato de o desenvolvimento da moderna democracia de massas
ter feito da discusso pblico-racional uma mera formalidade e, em sendo assim,
o parlamentarismo (mero formalismo da deciso poltica) poderia ser falsificado
por qualquer outro tipo de deciso formalmente legitimada.88
A questo da democracia e do parlamentarismo teria de ser radicalmente
diferenciada devido oposio entre os princpios nelas vigentes: a democracia,
baseada na idia de homogeneidade do povo e o parlamentarismo, na contradio
dos interesses particulares entre as camadas da sociedade.89
Schmitt se centrou nos processos scio-polticos que condicionam e at
aceleram a dissoluo da homogeneidade poltica do povo em camadas contrrias
umas s outras, gerando inimigos pblicos no sentido romano de hostes.90
Perdeu-se o espao autnomo do poltico na democracia parlamentar
representativa dos tempos modernos pela falta de normas fundamentadoras
capazes de justificar o ato soberano de criao da ordem.91
Para Schmitt, a idia do poltico foi deformada pelo esprito do liberalismo
convertendo a vida pblica em espetculo e reduzindo o espao poltico a mero
divertimento.92
Sublinhou a necessidade de reconquistar para o agir poltico a sua rea e os
seus princpios fundamentadores, capazes de serem eficazes de modo originrio e
86 Ibid., p. 11. 87 Ibid., p. 12. 88 Ibid., p. 12. 89 Ibid., p. 12. 90 Ibid., p. 12. 91 Ibid., p. 21 et. seq. 92 Ibid., p. 24.
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42
sem contrapartida s diferentes reas autnomas do agir humano (moral, esttico,
econmico).93
A tendncia objetiva do liberalismo escamotear a argumentao
fundamentadora do poltico, favorecendo a neutralizao da vida poltica, em que
resulta na denncia de meras estruturas formais do poltico, sem valores ltimos,
tampouco capacidade de se opor usurpao do poder pelas camadas da
sociedade civil. A privatizao do espao do poltico, o estigma do sistema
parlamentar-democrtico, desembocaria em um generalizado neutralismo
espiritual que, por sua vez, resulta em uma sociedade presa magia de uma
tecnologia aparentemente neutra, perdendo qualquer noo de res pblica.94
A descoberta maior de Schmitt, segundo Flickinger, foi a descoberta de
um abismo, de um momento constitutivo do poltico, sem que este seja deduzvel
de argumentos da prpria razo poltica. Assim, abrem-se dois caminhos: ou se
ignora o momento no fundamental pela rede conceitual do poltico,
proporcionando-se o caminho para o surgimento de mitos destrutivos e no
legitimveis ou procura-se princpios de deciso sobre valores ltimos do agir
humano, aos quais os critrios do agir poltico deveriam ser submissos.95
Pela substituio dos critrios polticos pelos da racionalidade econmico-
capitalista, a sociedade liberal burguesa perdeu a possibilidade de refletir sobre
um lugar autnomo do poltico.
Ao relacionar o estatal e o poltico, Schmitt afirma que Estado um estado
(Zustand) peculiar de um povo, o Estado que fornece a medida em caso de deciso
e que diante de muitos status individuais e coletivos pensveis, o status pura e
simplesmente. Afirma que status e povo adquirem seu sentido por meio do marco
caracterstico do poltico, tornando-se incomprensveis sem o correto
entendimento do poltico. Surge o Estado como algo poltico e o poltico como
algo estatal, crculo que no se desfaz.96
Porm, no se pode realizar a equivalncia estatal=poltico, j que na
medida em que Estado e sociedade se interpenetram, todos os assuntos at ento
polticos tornam-se sociais e vice-versa e todos os assuntos at ento apenas
sociais tornam-se estatais. reas neutras como religio, cultura, economia,
93 Ibid., p. 24. 94 Ibid., p. 24. 95 Ibid., p. 25. 96 Ibid., p. 43.
-
43
educao deixam de ser neutras no sentido de no-estatal e no-poltico. Tudo
ao menos potencialmente poltico e a referncia ao Estado j no mais consegue
fundamentar um marco distintivo especfico do poltico.97
Para Schmitt, a democracia deve abolir todas as distines, todas as
despolitizaes tpicas do sculo XIX e ao apagar a oposio Estado Sociedade
(poltico oposto ao social) tambm far desaparecer as contraposies e
separaes que correspondem situao do sculo XIX, qual seja, oposio de
religioso, cultural, econmico, jurdico, cientfico, etc. como oposto de poltico.98
Tem-se aqui a concepo de Estado total que nada mais reconhece como
absolutamente apoltico e que exige a abolio das despolitizaes do sculo XIX
e liquida o axioma da economia livre em relao ao Estado (no poltica) e do
Estado livre em relao economia.99
Uma das categorias principais da tese Schmttiana a relao amigo-
inimigo, que se manifesta ou por meio da guerra ou da revoluo (no mbito
interno relativizado diante da existncia da unidade poltica do Estado).
A diferenciao entre amigo e inimigo para Schmitt, tem o sentido de
designar o grau de intensidade extrema de uma ligao ou separao, de uma
associao ou dissociao. Pode ser terica ou prtica e subsistir sem a
necessidade do emprego de distines morais, estticas, econmicas ou outras. O
inimigo poltico no precisa ser moralmente mal ou esteticamente feio; no tem
que surgir como concorrente econmico, podendo haver conflitos com ele.100
Os conceitos de amigo e inimigo devem ser tomados no sentido
existencial, concreto. Observa Schmitt que o liberalismo reduziu o inimigo a um
concorrente na perspectiva da economia e a um oponente de discusses na
perspectiva do esprito. O inimigo, afirma, no o concorrente ou adversrio,
tampouco o adversrio particular que se odeia por sentimentos de antipatia, mas
um conjunto de homens combatente e que se contrape a um conjunto semelhante.
Inimigo (hostis) apenas o inimigo pblico, pois tudo que se refere a esse
conjunto de homens, especialmente a um povo inteiro torna-se pblico.101
97 Ibid., p. 47. 98 Ibid., p. 47. 99 Ibid., p. 48 et. seq. 100 Ibid., p. 53 et. seq. 101 Ibid., p. 54 et. seq.
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44
Observa que o antagonismo poltico a mais intensa e extrema con-
traposio e qualquer antagonismo concreto tanto mais poltico quanto mais se
aproximar do ponto extremo, do agrupamento amigo-inimigo.
A ttulo de exemplo, afirma Schmitt que s existe uma poltica social a
partir do momento em que uma classe politicamente considervel apresente suas
reivindicaes sociais; a assistncia social de que se beneficiavam antigamente
os pobres e miserveis no era considerada como problema social e nem tinha este
nome e s havia uma poltica religiosa na qual a Igreja se apresentava como um
adversrio poltico considervel.102
Palavras como Estado, repblica, sociedade, classe, soberania, Estado de
Direito,