Vicente, j[1]. f. a Polaridade No Discurso Do Raizeiro - Identidade E-ou Avaliação

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A POLARIDADE NO DISCURSO DO RAIZEIRO: IDENTIDADE E/OU AVALIAÇÃO? 1 Jones F. Vicente 2 Faculdade Católica Rainha da Paz Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Resumo: Neste trabalho analiso alguns fragmentos do discurso de um raizeiro da Praça da Sé em São Paulo, com objetivo de entender como ele se compromete com os efeitos das garrafadas e raizadas que vende. A linguagem é abordada numa perspectiva sócio-semiótica, partindo de Halliday (2001:26), de que o potencial lingüístico de um indivíduo se interpreta como o meio pelo qual se estabelecem, se desenvolvem e se mantêm as diversas relações sociais em que participa. Assim, as escolhas feitas pelo falante refletem características da constituição da identidade do sujeito. Mas também não reflete uma característica de avaliação? Palavras- chave: modalizadores, identidade, marketing, prática social Abstract: In this paper I analyze some discourse fragments of a raizeiro (a folk herbalist) established on Praça da Sé in São Paulo to understand how he commits himself on the effects of the garrafadas and raizadas (herb remedies) he sells. Language here is seen in a socio-semiotic perspective from Halliday (2001: 26) in that an individual’s linguistic potential is interpreted against the environment where the diverse social relationships in which he/she is involved are established, developed and maintained. According to this, the raizeiro’s linguistic choices would reflect constitutive aspects of his identity as a social subject. But doesn't it also reflect a evaluation characteristic? Keywords: modalizadores, identity, evaluation, Social Practice 1-Introdução “... a modalidade naturaliza uma ideologia” Hodge & Kress (1991:135) O que propomos neste trabalho é analisar a partir do sistema de modalidades da Lingüística Sistêmico-Funcional, como a polaridade no discurso do raizeiro evidencia sua identidade e ainda constitue um lugar de avaliação. Entretanto, ao analisarmos o sistema de modalidade nesse discurso, os dados nos indicam que, ao evidenciar sua identidade, o raizeiro realiza uma avaliação. Segundo EGGINS (2002:275) a modalização expressa a atitude do falante em respeito ao que está dizendo. É a forma que o falante tem para expressar seu juízo em relação à certeza, a probabilidade, a freqüência que algo se dá ou acontece. 1 Pesquisa desenvolvida com auxílio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. 2 Doutorando pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem da PUC-SP.

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Polaridade

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A POLARIDADE NO DISCURSO DO RAIZEIRO: IDENTIDADE E/OU AVALIAÇÃO?1

Jones F. Vicente2

Faculdade Católica Rainha da Paz Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Resumo: Neste trabalho analiso alguns fragmentos do discurso de um raizeiro da Praça da Sé em São Paulo, com objetivo de entender como ele se compromete com os efeitos das garrafadas e raizadas que vende. A linguagem é abordada numa perspectiva sócio-semiótica, partindo de Halliday (2001:26), de que o potencial lingüístico de um indivíduo se interpreta como o meio pelo qual se estabelecem, se desenvolvem e se mantêm as diversas relações sociais em que participa. Assim, as escolhas feitas pelo falante refletem características da constituição da identidade do sujeito. Mas também não reflete uma característica de avaliação? Palavras- chave: modalizadores, identidade, marketing, prática social Abstract: In this paper I analyze some discourse fragments of a raizeiro (a folk herbalist) established on Praça da Sé in São Paulo to understand how he commits himself on the effects of the garrafadas and raizadas (herb remedies) he sells. Language here is seen in a socio-semiotic perspective from Halliday (2001: 26) in that an individual’s linguistic potential is interpreted against the environment where the diverse social relationships in which he/she is involved are established, developed and maintained. According to this, the raizeiro’s linguistic choices would reflect constitutive aspects of his identity as a social subject. But doesn't it also reflect a evaluation characteristic? Keywords: modalizadores, identity, evaluation, Social Practice

1-Introdução

“... a modalidade naturaliza uma ideologia” Hodge & Kress (1991:135)

O que propomos neste trabalho é analisar a partir do sistema de modalidades da

Lingüística Sistêmico-Funcional, como a polaridade no discurso do raizeiro evidencia sua

identidade e ainda constitue um lugar de avaliação. Entretanto, ao analisarmos o sistema de

modalidade nesse discurso, os dados nos indicam que, ao evidenciar sua identidade, o raizeiro

realiza uma avaliação. Segundo EGGINS (2002:275) a modalização expressa a atitude do

falante em respeito ao que está dizendo. É a forma que o falante tem para expressar seu juízo

em relação à certeza, a probabilidade, a freqüência que algo se dá ou acontece.

1 Pesquisa desenvolvida com auxílio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. 2 Doutorando pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem da PUC-SP.

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Então, o falante se faz significar pelas e nas escolhas que faz na linguagem, onde a

presença ou a ausência de determinadas possibilidades de escolhas significa. No caso do

raizeiro, é necessário investigar se na organização do seu discurso, pelas escolhas que faz, há

o compromisso de fazer-crer, ou seja, se essas escolhas são persuasivas e como se organizam.

Segundo Kress & Hodge (1981:05), a linguagem tem um papel vital na 'construção

social de realidade'. A linguagem cria um mundo mais estável e coerente em relação ao que

nós vemos ou do que acontece em nossa consciência. A linguagem é uma percepção e uma

avaliação constante entre o mundo real e o mundo socialmente construído, ou seja, línguas

são sistemas de categorias e regras baseadas em princípios fundamentais e suposições sobre o

mundo, e o sistema de modalidade evidencia a responsabilidade do falante sobre sua

mensagem, considerando o seu contexto e papel social.

Para Halliday (2001:25), uma sociedade não consiste de participantes e sim de

relações, e, são essas relações que definem os papeis sociais, ou seja, ser membro de uma

sociedade significa desempenhar um papel social, e a língua é a condição necessária para isso.

São esses princípios teóricos que norteiam a concepção de língua adotada neste trabalho. O

corpus está constituído pela transcrição de uma entrevista com um raizeiro que trabalha na

Praça da Sé em São Paulo há vinte e cinco anos. Doravante o denominarei raizeiro SP.

2-Escolhas Lingüísticas: Identidade e/ou Avaliação?

As pessoas fazem escolhas sobre o modelo e a estrutura de

suas orações que resultam em escolhas sobre o significado (e

a construção) de identidades sociais, relações sociais e

conhecimento e crença.

Fairclough (2001:104)

As escolhas lingüísticas feitas pelo falante apresentam algumas regularidades, que

refletem aspectos específicos de seu meio, dependendo do tipo ou do objetivo do seu discurso.

Essas escolhas relativamente estáveis denotam um território semântico peculiar de uma

comunidade lingüística em condições de interação. Segundo Halliday (2001:148), a

linguagem se estrutura para construir simultaneamente três classes diferentes de significados,

experienciais, interpessoais e textuais. São os modos de significações presentes em toda

utilização da linguagem em todo contexto social.

A linguagem segundo a Gramática Sistêmico-Funcional de Halliday, é constituída de

sistemas ligados em redes mapeadas por escolhas obrigatórias e opcionais de unidades

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lingüísticas. A necessidade de escolher uma unidade, dentre um leque de opções, é

obrigatória, mas o tipo de escolha feita por um falante é opcional e relativa a fatores

psicológicos e sociais, portanto, refletem características da constituição da identidade do

sujeito. Assim, o que chamamos ou acreditamos ser então a verdade é que constitui a

identidade, que por sua vez, está ligada às crenças do falante, e, no caso proposto aqui, essas

crenças se apresentam como um processo de avaliação do raizeiro em seu discurso.

Segundo Bakhtin (1992:109-113), a linguagem é uma forma de interação, pois, mais

que possibilitar transmissão de informações e mensagens de um emissor a um receptor, ela

atua como um lugar de interação de interlocução humana. Através da linguagem, o falante

pratica ações que não conseguiria realizar a não ser falando; com ela, o falante age sobre o

ouvinte, constituindo compromissos e vínculos que não pré-existiam à fala.

Para Bakhtin a verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema

abstrato de formas lingüísticas, mas pelo fenômeno social da interação verbal. Assim, a

linguagem é de natureza social, e, portanto, ideológica, não existindo fora do contexto social.

É o produto da interação de indivíduos socialmente organizados. Nessa concepção, a

linguagem verbal exerce uma função fundamental, pois ela é determinada, tanto pelo fato de

que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui o produto

da interação do locutor e do ouvinte.

Segundo Halliday (2001:34), a linguagem tem que interpretar toda nossa experiência,

reduzindo os fenômenos infinitamente variados do mundo ao nosso redor, e também tem que

expressar nossa participação, como falantes, na situação de discurso; os papeis que

assumimos e que impomos aos outros; nossos desejos, nossos sentimentos, nossas atitudes e

nossos valores.

Como os operadores modais expressam o julgamento do falante sobre as

probabilidades, ou as obrigações, envolvidas no que ele está dizendo. Uma proposição pode

se tornar objeto de discussão ao ser apresentada como provável ou não, desejável ou não, e,

sua relevância se dá pelo contexto social do falante. Segundo Thompson (1990: 150), “o

contexto social envolve dimensões espaço-temporais constituintes de ações e interações. O

tempo e o espaço determinam que certas ações e modos de interação sejam mais adequados e

possíveis que outros”.

Para Halliday (1994:82), a Polaridade é uma característica concomitante essencial do

Finito, pois é a escolha entre positivo e negativo. Para algo ser objeto de discussão, precisa ser

especificado em termos de polaridade: ou ele é assim, ou não é assim. Então, além de

expressar tempo primário ou modalidade, o elemento Finito também realiza a feição da

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polaridade. Cada um dos operadores aparece tanto na forma positiva quanto na negativa.

Para possibilitar uma melhor análise, preparei o quadro 01 abaixo com base na Fig.

10-13 de Halliday (1994:357) e Fig.4.18 de Thompson (1997:59). O objetivo ao criar o

quadro abaixo é enfatizar a polaridade em relação ao discurso do raizeiro SP.

Modalização Modulação tipo 'indicativo' tipo 'imperativo'

probabilidade É habitualidade obrigação faça! inclinação

certamente

provavelmente

possivelmente

Deve ser

será

pode ser

Sempre

normalmente

às vezes

exigido

suposto

permitido

tem que fazer

fará

pode fazer

determinado

interessado

desejado

Não é

Positiva

Polaridade

Negativa

não faça

Quadro 01

Como já vimos acima, o sistema de modalidade evidencia a responsabilidade do falante

sobre sua mensagem. O que nos levará a entender que, pelos exemplos abaixo, a assertividade

presente no discurso do raizeiro SP ao descrever o vendedor de ervas usando polaridades

negativas é uma forma de identificar e avaliar quem é de fato um raizeiro. Dessa forma, o

raizeiro SP explicita uma dicotomia entre raizeiro e vendedor de ervas medicinais. É uma

dicotomia que está ligada às crenças desse raizeiro, e, essas crenças se apresentam como um

processo de avaliação do raizeiro em seu discurso. Para entendermos como a identidade do

raizeiro é evidenciada, apresentarei a seguir um recorte da entrevista que fiz com o raizeiro

SP. Vejamos:

Fragmento do discurso do raizeiro SP.

� “... muito vendedor de erva existe ... agora raizeiros é muito pouco ... tem raizeiros aí que se você perguntá pra que serve uma pranta difici ele não sabe te expricá porque ele num tem cunhecimento ... ele sabe comprá e sabe vendê ... agora não sabe a autoridade ... não sabe cumé qui usa ... a quantidade qui deve usá ... então isso aí é que é o importante no raizeiro ...não é pegá e vendê ... ce vê assim ... ele não sabe cumé que usa ... não sabe cume qui toma ... então pra ele ta perdido ...então a pessoa tem que sabê ... pra que ela serve ... a utulidade ... a quantidade que usa pra fazê o chá ... e o modo de tumá ... isso é muito importante ...”

� “olha ... raizeiro mesmo profissional ... aqui se tivé uns ...dez ou vinte é muito... muito ... agora ... vendedores de erva deve ter uns mil ... qui não tem cunhecimento ... pra que serve só ... sabe vendê... pra quem ... não tem cunhecimento é perigoso porque ele pode vendê uma pranta errada e a pessoa tumá e fazê mal ... e se tomá uma quantidade exagerada ela faz mal

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também ... tem que tomá uma dosage certa ... se tomá uma dosage alta ...num é água pra ...pra matá a sede isso aí tem que ter autoridade ... é uma chícara de chá é uma colher de sopa ...tem que ter as quantidade pra tomá ... e tem pessoas que não ensina as pessoa a fazê isso ...”

� “...tem pessoas que não conhece ... a pranta ...e ele procura sabê pra que ela serve ... cume que usa ...a quantidade de ... coloca pra fazê o chá ...a o modo de fazê o chá porque ..a a pranta é muito importante o modo de fazê o chá ...ce chega lá faz o chá toma num serve ai ... o a a pranta num presta ...não tem utilidade ...não tem utilidade porque ... porque o cara vendeu errado ...ele não sabe o que ele vendeu pra que serve ... ...então a a coisa tem que ser certa ... ce tem que vender a coisa certa ...se não vender a coisa certa ... aí não resolve o pobrema e quem compra fica dizendo que a erva não presta ...não funciona ...”

� “pra quem não é raizeiro ...pra quem não entende ...pra o vendedor ...quer dizer o cara que compra a erva ele vende a erva ...ele não sabe a autoridade ...pra que serve ... não se interessa em pegar um livro ...vê pra que a pranta serve ...ou o quanto usa pra faze um chá ...quantas veis toma ... a quantidade quer dizer isso é muito importante pra pessoa que quer ... trabalhar no ramo ...... o meu interesse é eu sabê pra que serve ...então quer dizer é diferente ... a pessoa que não conhece a pranta ... e não se interessa ... e prática ele não tem ...nem um livro ...ce vê nem isso eles tem interesse ...e o interesse dele é vendê ...ce chega aí ele quer vendê é ... então quer dizer que esses cara não é um ... um raizeiro ...eles são vendedores de erva ... é diferente da gente que se interessa pela pelas pranta ...”

� “... a erva ela não tem química ...ela é natural ...e... o remédio da farmácia ... ele cura uma

coisa e ele rebenta outra porque ele tem química ...pessoa começa tomar um antibiótico muito forte ...cê pode analisá isso logo-logo ce vê a pessoa com dor de estômogo ... com azia ...com queimação ...aquilo é provocado pelo remédio forte que ele tomo ... o estômogo num guenta e se estora ...ele vai ter que tomá outro medicamento...”

Como dissemos acima, a dicotomia raizeiro x vendedor de ervas medicinais está

ligada às crenças do raizeiro SP, ou seja, tanto a polaridade negativa quanto a polaridade

positiva representam sua opinião. Portanto, podemos dizer que se trata também de uma

representação metafórica.

Segundo Halliday (1994:355-356), não é sempre possível dizer exatamente o que é e o

que não é uma representação metafórica de uma modalidade. Mas os falantes têm inúmeras

formas de expressar suas opiniões, ou seja, são inúmeras formas que fazem significar 'eu

acredito'. Como a modalidade refere-se a área do significado que está entre o sim e o não, a

base intermediária entre a polaridade positiva e negativa. O significado dependerá mais

especificamente da função de fala da oração que está subjacente.

Assim, embasado em Halliday (1994:360), os dados analisados a seguir são metáforas de

modalidades, pois determinam ' como eu vejo isto' com valores como: eu estou seguro, eu

penso, eu não acredito, eu duvido. Vejamos os exemplos abaixo a partir dos recortes

apresentados acima. Os exemplos estão organizados conforme o Concordance do Wordsmith

Tools, versão 4.

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� Discurso do raizeiro SP.

N Concordance

50 ...ce ta com pobrema de esgotamento ...então a a coisa tem que ser certa ... ce tem que vender

a coisa certa ...se não vender a coisa certa ...

51 nho de arruda ... guiné ... é alicrin usa ... ela benze você e depois fala o ce tem que fazer esse

banho com esta erva aqui ... ce procura esta erva verde ... e

52 ... não sabe cume qui toma ... então pra ele ta perdido ...então a pessoa tem que sabê ... pra

que ela serve ... a utulidade ... a quantidade que usa pra

53 ela é retirada ... ela não pode ser seca no sol ... disponível no sol ... ela tem que ser seca na

sombra ...cê tirá e colocá num local que tenha ... uma cober

54 pode ... fazê mal ... e se tomá uma quantidade exagerada ela faz mal também ... tem que tomá

uma dosage certa ... se tomá uma dosage alta ... ah num ... faz um

55 num ... faz um chá e toma um copo ...num é água pra ...pra matá a sede isso aí tem que ter

autoridade ... é uma chícara de chá é uma colher de sopa ...tem que

56 a tem que perguntá cadê ... as veis acontece que o cara vem comprar ...ai ce vê

57 ...tem que ter as quantidade pra tomá ...não pra fazê chá e toma de copo cheio ...

58 reto i ...a ...a diabete dele é cento e dez cento e vinte ... e a diabete dele tem que tomá remédio

diaramente todo dia ..

59 ai embora ...então a pranta pra ela sê aproveitada e ela tê ... sussesso ... ce tem que colocá a

pranta num caneco ... fervê a água quente ... jogá em cima e a

60 z um chá daquele deu certo pra ele mas não vai dar pra você ... quer dizer você tem que

tomar a coisa certa ... ce vê ipê roxo ce vai vendo muito ipê roxo aqui

Nos exemplos apresentados acima vemos que as formas de modalidade subjetivas

explícitas e objetivas implícitas são estritamente metafóricas, e, segundo Halliday

(1994:363.), podem ser analisadas como metáforas de modalidade, pois, todas representam a

posição do falante, tanto na validade da asserção, quanto nos acertos e erros da proposição.

São formas diferentes de alegar a certeza ou necessidade objetiva para algo que, na verdade, é

uma questão de opinião. A maioria dos ‘ jogos que as pessoas praticam’ diariamente no

conflito interpessoal envolve metáforas.

Segundo Eggins, (2002:272-298), o falante pode manifestar abertamente que o que o

que está expressando é seu ponto de vista sobre o que está em discussão, nesse caso, o falante

explicita uma assertividade em relação à venda e o uso das ervas medicinais. Entretanto, ele

também poderia optar por não assumir diretamente o juízo de valor, o que pode ser realizado

de forma objetiva como: é possível, é provável, certamente. A modalização realizada dessa

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forma implica uma metáfora gramatical, pois se trata, segundo Eggins, de uma pseudo-

oração, ou seja, significa dar a entender como: é isso que penso, na minha opinião, pelo que

vejo.

Então, com os exemplos acima, vimos que, o que está sendo realizado no discurso do

raizeiro é uma modalização de alta probabilidade de como deve ser um raizeiro. São

informações sobre as exigências e atributos que um vendedor de raizadas tem que ter para ser

de fato um raizeiro, bem como as obrigações que o usuário tem que fazer para que as raizadas

tenham o efeito desejado.

Podemos ainda observar os exemplos acima a partir do sistema de Transitividade. Como

a modalização “tem que” está relacionada com os processos:

� Materiais : “vender a coisa certa / fazer esse banho / tomá uma dosage certa / tomá

remédio diaramente / colocá a pranta num caneco ... fervê a água ... jogá em cima /

tomar a coisa certa / ser seca na sombra ”

� Mentais: “sabê ... pra que ela serve ... a utulidade ... a quantidade / ter autoridade /

ter as quantidade”. Segundo Halliday (1994: 118) são do tipo COGNIÇÃO (pensar,

saber, entender etc.). Se entendermos que esses processos são atributos necessários

tanto para o raizeiro quanto para o usuário das raizadas, são também: Processos

Relacionais atributivos. (temos a elipse do processo para a “utilidade” e “a

quantidade).

� Verbais: como falar e querer dizer. “perguntá cadê”

Podemos por fim, entender que o raizeiro SP estabelece condições a partir das

modalizações daquilo que ele pensa e acredita que deve ser um raizeiro. Segundo Halliday

(1994:356), os falantes têm inúmeras formas de expressar suas opiniões, portanto, o

significado dependerá mais especificamente da função de fala da oração.

Segundo Hodge & Kress (1991: 122-135), 'verdade' e 'realidade' são categorias. Um

ponto de vista que marca a posição social do falante. É um ponto de vista que não só redeclara

uma ideologia, como também dá através da modalidade, um marcador de realidade que molda

a própria história. Ou seja, a ideologia é construída em um esquema de modalidade, e o

esquema de modalidade naturaliza uma ideologia.

O falante em seu discurso seleciona palavras não só de acordo com o sistema sintático

da língua que utiliza como também seleciona palavras dentro de um campo semântico que lhe

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é peculiar, ou seja, o discurso do sujeito reflete, mesmo num contexto imediato, o papel que

este representa na sociedade lingüística a que pertence.

Segundo Halliday, o falante faz seleções simultâneas, seja qual for o uso que esteja

fazendo da língua, ou seja, cada discurso, no seu processo de estruturação, acarreta

determinados efeitos, pois a escolha é exercida em função deles, e, sua interpretação se sujeita

a toda sorte de variações.

Para Fairclough (2001; p.104), os discursos não apenas refletem ou representam

entidades e relações sociais, eles as constroem ou as constituem, ou seja, o raizeiro se faz

significar pelo uso freqüente de polaridades ao se referir ao “não-raizeiro”, que é denominado

no discurso do raizeiro SP como “vendedor de ervas”. Vejamos o quadro 02 a seguir:

Avaliação e Identidade

Polaridades Positivas Polaridades Negativas

Raizeiro Não-Raizeiro(vendedor de ervas)

05 x sabe … comprá ... vendê... a autoridade ...pra que ela

serve ... a utulidade ...a quantidade

que usa ... e o modo de tumá ...

07 x não sabe ... expricá ... a autoridade ...cumé qui usa ...cume qui toma

03 x não tem cunhecimento 0 2 x não conhece ... não entende 0 2 x não se interessa 01 x... não tem .. um livro 01 x ...não se interessa em pegar um livro

Total 05

Total 16

Quadro 02

Como vimos acima, o sistema de modalidade carrega a avaliação do falante sobre a

verdade de sua mensagem, ou ainda, apresenta o comprometimento e a responsabilidade sobre

esta mensagem emitindo juízo de valor, neste caso, sobre quem é raizeiro e quem é somente

vendedor de ervas.

Então, a identidade do raizeiro SP é construída no sistema de modalidade, pelas

escolhas assertivas que faz ao falar sobre o trabalho de quem ele julga não ser um raizeiro.

São asserções com polaridade negativa sobre o vendedor de ervas. A identidade do raizeiro é,

portanto, construída pela diferença, ou ainda, pela oposição. O contrário das polaridades que

avaliam negativamente um vendedor de ervas medicinais constitui a identidade do raizeiro

SP.

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3 Considerações:

O raizeiro SP ao descrever o não-raizeiro também se descreve. Ao falar sobre seu

trabalho, apresenta o não-raizeiro como “somente vendedor de ervas”. A polaridade no

discurso do raizeiro SP assevera a identidade do que vem a ser um raizeiro muito mais a partir

da polaridade negativa “não”, ou seja, o que um raizeiro não pode ser ou não pode fazer.

Segundo (Halliday & Hasan, 1989:4), a língua é entendida primeiramente como um aspecto

particular da experiência humana que está diretamente relacionado à estrutura social, um

conjunto de sistemas que são expressões de significados de como as pessoas usam a língua.

As proposições analisadas até aqui não só declaram as condições que legitimam o

raizeiro como tal, como também declaram condições para o usuário das raizadas. Então, os

efeitos positivos ou negativos das raizadas estão condicionados à legitimidade de quem tem o

papel de raizeiro, e, às obrigações do usuário. Assim, ser reconhecido como raizeiro significa

ter poder junto à sociedade para exercer esse papel. Segundo Hodge e Kress (1991:123), a

Modalidade explicita relações de poder no sistema social. A Modalidade é, por conseguinte,

um dos indicadores de luta política.

Por fim, o que apresentamos sobre o discurso do raizeiro SP pode ser compreendido

pelo que diz Moita Lopes (1998:306), o que somos, nossas identidades sociais, são

construídas através de nossas práticas discursivas com o outro: “as pessoas têm suas

identidades construídas de acordo com o modo através do qual se vinculam a um discurso - no

seu próprio e nos discursos dos outros. É, portanto, a presença do outro com o qual estamos

engajados no discurso (tanto no modo oral quanto no modo escrito) que, em última análise,

molda o que dizemos, e, portanto, como nos percebemos à luz do que o outro significa para

nós: o indivíduo torna-se consciente de si mesmo no processo de tornar-se consciente dos

outros”.

4-Referências Bibliográficas

BAKHTIN, M. (V.N. VOLOCHÍNOV). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992.

EGGINS, S. Introducción a la lingüística sistêmica. traducción, prólogo y glosario de F. Alcântara. Logroño: Universidad de La Rioja, 2002.

FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Brasília: Editora UNB, 2001.

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1

HALLIDAY, M.A.K., El lenguaje como semiotica social – la interpretacion social del lenguaje y del significado, México: Fondo de Cultura Economica, 2001. _____, An introduction to functional grammar. 2. ed. London: Edward Arnold, 1994. HALLIDAY, M. A. K. & HASAN, R. Language, context, and text: aspects of language in a

social-semiotic perspective. Oxford: Oxford University Press, 1989. HODGE, R. e KRESS, G. Social semiotics. Cambridge: Polity Press, 1991. KRESS, Gunther and HODGE, Robert. Language as Ideology, London: Routledge & Kegan Paul Ltd, 1981. KRESS, G. Linguistic Processes in Sociocultural Practices. Oxford: OUP, 1989. LOPES L.P. Moita, Discursos de identidade em sala de leitura de L1: a construção da

diferença - Lingua (gem) e identidade. São Paulo: Mercado de Letras, 1998. THOMPSON Geoff, Introducing functional grammar, Second impression, Arnold: London, 1997. THOMPSON, J.B. Ideology and modern culture. Cambridge: Polity Press, 1990.