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Victor O. de Faria

Unificador Transiente de Pensamentos Modelo Sete

(e outros contos) Coletânea de Contos de Ficção Científica

1ª edição

Santa Catarina, 2017

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Experimentais

Unificador Transiente de Pensamentos

Modelo Sete..................................................05 O Clube dos Cinco........................................42 Filho do Sol..................................................51 Recomeço; um registro do início do fim.........62

Mundos

65..............Entre por sua própria conta e risco; mas a conta fica 77................................................O Apanhador 84......................................................Evidência 97...........Francis Drake e o Farol de Cassiopeia (ou O menino que sonhou estrelas)

Reflexivos

Não se preocupe.........................................106 Pêndulo......................................................107 O menino e a máquina do tempo.................109 Ciclos..........................................................114

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Unificador Transiente de Pensamentos

Modelo Sete

I. O Fim

A caixa. Um hipercubo de lados infinitos. A expressão máxima da curiosidade humana. O que era, afinal? Os estudiosos a encaravam como um receptáculo de conhecimento proibido, um invólucro contendo a chama original, uma ponte entre mundos distantes. Os mais radicais a veneravam como um instrumento de purificação. E a maioria, alheia aos assuntos cotidianos, simplesmente a ignorava. A verdade é que ninguém sabia o que havia lá dentro. Enterrada há séculos no centro da Terra e descoberta por acaso numa expedição sigilosa, aguardava o dia em que voltaria a ser útil, contendo uma mensagem bastante específica, incompreendida, mas desenhada através das eras. Teria sido melhor deixá-la enterrada...

II. Tempos Modernos

- Assis -

“Mendigos também têm família”, era o que dizia

meu bisavô, ao avistarmos aqueles pobres coitados jogados num canto esquecido de Nova Caxias do Sul. Sua simpatia e grande coração sempre conquistavam os mais jovens. Bons tempos aqueles em que a ajuda ao próximo resumia-se a dar um prato de comida e não um circuito Pulsar TX-3000. Para quem tem

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apenas um pulmão funcionando, conseguir um desses é um achado. Sim, falava de mim. Assis Andrade de Alcântara, nascido alguns anos depois da Massificação, a infame “Guerra dos Chips”. Como cheguei a esse ponto? Bem, eu tinha um trabalho estável. Sou bom com números, mas, devido à quebra das bolsas internacionais, vi-me forçado a abdicar dos sonhos mundanos e a viver, como muitos de nós, nos subúrbios distantes. Virei um Reciclador.

De uns tempos pra cá, meus implantes no tórax começaram a falhar. Por não conseguir produzir tanto quanto a empresa gostaria, fui rebaixado. Não os culpo. Se ainda vivêssemos na capital, onde os medalhões mantêm seus cofres digitais cheios, quem sabe não seria diferente? O Distrito Integrado Nacional tem até um apelido grosseiro, devido às suas iniciais. Pelo menos a China investe em sua nova colônia. Os brasileiros até gostam do progresso tecnológico, ignorando apenas um detalhe: estamos sendo sugados até a última gota.

Na semana anterior, meu pulmão artificial apresentou vazamentos. A aranha de contenção impediu o escape, mas fui obrigado a chamar um retrotaxi, os únicos a transitar pelo subúrbio. São corridas caríssimas, pois seu lucro vem do turismo. Como não podia me mexer muito, ou as válvulas perfurariam a pleura saudável, fiz uma viagem bastante lenta pelas intermináveis avenidas da cidade

antiga, tomada pelos musgos e prédios abandonados. Minha família costumava usar os terrenos altos para plantar espécimes raros de frutas em cachos, e produzir festas anuais em época de colheita. Agora, havia apenas resquícios da estrutura utilizada.

Naquele dia, a chuva ácida voltara com força total. O motorista era bastante simpático, apesar de sua face reconstruída dar-lhe uma aparência austera.

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Enquanto desviávamos à baixa velocidade dos escombros e ruas alagadas, o holograma turístico exibia um panfleto de quatro séculos atrás. “Bem-vindos à Festa da Uva”, dizia a faixa colorida. Nova Caxias do Sul atingira o ápice antes da Massificação. Era uma terra de boa diversidade cultural, apesar dos costumes puramente italianos. Então, o oriente assumiu o controle e tudo mudou.

Felizmente, algumas coisas resistiram ao tempo. Ainda usamos chapéus, casacos de couro e luvas. Mas não dispenso um bom par de óculos térmico. Não sou do tipo atraente, entende? E o inverno é bastante rigoroso. Todavia, dificilmente alguém está livre de modificações, como é o meu caso. Só os que fazem parte da Aliança Livre da América Humanista, os “Naturalistas”, cuja sigla seria o suficiente para começar uma quarta guerra mundial. Quem hoje, em sã consciência, vive sem os chips? Até na comida são dissolvidos, como fonte secundária de vitaminas!

Antes de chegar ao laboratório Alfa, um fornecedor de peças a baixo custo, aproveitei para visitar o bairro onde meus antepassados moravam – pelo preço, só voltaria a fazer outra viagem em cinquenta anos. Queria ver com meus próprios olhos onde viviam. Era um condomínio simples, de quatro blocos desbotados e sem vida, distribuídos sobre um terreno plano. A via interna ainda existia. Parecia um

ambiente agradável. Atualmente, ninguém morava ali, exceto animais modificados geneticamente. Corria o boato de que testavam humanos no processo. O holograma mostrava um antigo rato sem rabo, de nome engraçado. O preá tinha um olho vermelho e quatro patas mecânicas. Era melhor sair dali.

A subida ao centro foi tranquila, apesar do clima sombrio. Quando chovia daquele jeito, o céu se

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iluminava de vermelho e azul, devido ao sobrevoo dos drones policiais. As autoridades permaneciam seguras dentro de um camburão blindado. Complicado era desviar da estática que aqueles veículos produziam ao flutuar. Falha que acabava se tornando um trunfo para os ladrões de dados. Se o chão começasse a estalar, retiravam da rede seus dispositivos e fugiam, deixando as máquinas automáticas em frangalhos.

Os laboratórios Alfa encontravam-se nos últimos andares de um prédio alto, localizado em uma baixada. Segundo o holograma, era o maior edifício da cidade antiga. Seu belo nome, Parque do Sol, trazia de volta a sensação de um tempo onde não havia tantas quinquilharias e sujeira. Ele parou. A tela fosca e gasta abriu um leque de opções. Deixei minha impressão digital. E metade de minhas economias. Dispensei a volta – não teria dinheiro de qualquer forma – e encarei a estrutura à minha frente. Observei desde o térreo até o trigésimo sexto andar, cento e vinte e cinco metros de altura. Fui acometido por uma leve vertigem. Ainda era imponente, apesar da idade e da nova roupagem espalhafatosa. Os musgos, os neons em meia-fase e a extravagante placa recheada de ideogramas, me trouxeram de volta à realidade.

Diferente do entulho eletrônico que emporcalhava as ruas, o salão de entrada era de um brilho quase surreal. Dirigi-me à inteligência que fazia

a triagem. Parecia um grão de arroz gigante, cheio de apêndices. Enquanto ela me examinava de cima a baixo, notei que parte de seu processamento estava direcionado à limpeza do chão. Impessoalidade era o protocolo social do novo século. Por que falar cara a cara, quando se podia enviar uma mensagem de voz à mente do receptor? Infelizmente, o módulo TRANSFER era muito caro. Não adiantava possuir um

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desses e não ter com quem se comunicar. O diagnóstico e o susto vieram em seguida.

Precisava de um transplante, urgente. Só que a urgência deles significava um mês de espera. E as peças de reposição, contrariando as expectativas, permaneciam num patamar acima de minhas possibilidades. Agradeci e deixei o saguão. A chuva não parava. Se voltasse para casa a pé, podia comprar um caixão no caminho. A noite chegou num piscar de olhos. Traços avermelhados ainda escapavam das nuvens carregadas. Lembrei do guia turístico. Havia uma praça ali perto, ou o que sobrara dela. Outros, muito piores do que eu, agonizavam nos cantos, sob o último suspiro de natureza. Estava muito mal para andar ao largo de trovões incessantes. Observei dois olhos curiosos na escuridão. Talvez estivesse pensando na holografia. O nome Parque dos Macaquinhos me veio à mente. Ignorei o vulto e me sentei embaixo do que um dia fora um grande pinheiro.

Foi entre um raio e outro que avistei, pela primeira vez, o Homem do Casaco Bege: um indivíduo alto, esguio, de face encoberta pelas sombras e chapéu retrô. Sua silhueta mesclava-se ao cenário em perfeita harmonia. Segurava um discreto guarda-chuva do século passado – coisas que eu iria entender somente mais tarde. Com receio, notei que ele se aproximava. Encolhi-me, tentando desaparecer na

escuridão. Tinha escolhido um péssimo lugar para passar a noite. Como poderia me defender? Já tinha ouvido falar em tráfico de órgãos, ou pior, ser usado como experimento industrial. GEN7 era um nome sussurrado de quando em quando nas vielas do esquecimento. Tudo o que o sujeito fez foi retirar do bolso uma caixa, do tamanho de sua mão, e uma esquisita embalagem fechada a vácuo. Assim que

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analisei o objeto e virei-me para encarar seus olhos, o desconhecido já se distanciava. Desapareceu, sem deixar qualquer vestígio.

Não pude acreditar no que estava vendo. A embalagem trazia uma ordem nível um, a peça que eu precisava e um convite. Voltei ao prédio imediatamente. O autômato analisou a autorização e liberou minha subida. Seria operado em poucas horas. Quem teria tamanha influência? O convite, impresso em papel holográfico, marcava um curioso ponto de encontro para a próxima segunda-feira: o saguão da Igreja Matriz, sétimo andar.

Se eu iria? Bem, digamos que no momento estava apenas interessado em meu bem-estar. E foi aí que meus problemas começaram.

- Celina -

Dizem que o espelho não costuma mentir. E que é o primeiro a perceber a idade chegando. Era melhor utilizar os chips neurais ou aderir à moda das tiaras sensitivas? As tiaras poderiam me dar um ar mais despojado, mas, como doutora, precisava manter a discrição. Optei por trocar as placas metálicas na região dos lóbulos. Branco nunca saía de moda. Mas os DIALS podiam ser menos chamativos. Andar por aí com dois implantes sensoriais e um fio de metal contornando a cabeça

era bastante incômodo. Pelo menos, os recursos adquiridos compensavam a obrigação de se usar um design desconexo. Não sou hipócrita. Nasci em uma família rica. Apesar de ser gentil a maior parte do tempo, desfruto da minha herança como posso. Celina Consuelo Carmem. Até meu sobrenome vem de fora.

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Coloco uma peruca loira por diversão. Há tempos não ria tanto. Jamais usaria aquele acessório! Prefiro sentir minha pele sob o vento. Não ter cabelos é a maior liberdade que se pode ter. O que estava fazendo mesmo? Ah é, preciso escolher um vestido para o evento de arrecadação de fundos. Droga. Não devia ter bebido tão cedo. O provador me sugere um Órion preto, edição limitada, de enormes ombreiras douradas e argolas na cintura. Vou parecer uma astronauta. Quer saber? As revistas adoram uma extravagância.

Assim que termino de me vestir, entro no saguão particular e tiro de minha bolsa uma pastilha Gengis instantânea, voltando a ficar sóbria. Quanta besteira já não devia ter dito! Mas um fato é inegável: aquela safra de vinho era excelente! O Nissan Magleve me aguarda. Gosto de seu desenho retrofuturista. Confiro minha roupa na superfície espelhada e observo a agenda no vidro. Tenho apenas uma cirurgia. Toco no ouvido direito e digito o recado no braço esquerdo. A inteligência artificial saberá o que fazer.

Chove muito lá fora. Podia contratar um motorista, mas gosto de sentir meus dedos desenhando cada curva. Deixo a garagem subterrânea e pego uma via menos movimentada. Os laboratórios Alfa mereciam uma apresentação melhor. Gostaria de restaurar o parque, mas o jogo político

não deixa. Mesmo assim, já me contento por ter conseguido manter o título com essa globalização desenfreada. O evento não é muito longe. Fica no prédio comercial da família Pratavieira, onde só se fala mandarim. No caminho passo pelas antigas ruas centrais. Há vários desafortunados querendo peças de reposição, chips RX e módulos VR MAX – uma realidade para fugir de outra realidade. Tenho um

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pouco de pena, confesso. Mas se abrisse as portas do laboratório a todos, a falência entraria junto. Já invisto meu dinheiro na área da saúde para manter a consciência limpa. E também num ambicioso projeto de colônia espacial, mas isso não vem ao caso. Então, não me importo de ostentar o que tenho.

Distraída com meus pensamentos, quase provoco um acidente. É obvio que xinguei o retrotaxista. Andam devagar demais, sugando todo o dinheiro possível de seus anfitriões. Ele aponta para a placa em neon, acima da lataria amarela, horrorosa. O letreiro gera algumas baixarias tridimensionais. E eu lhe aponto um dedo. Cuido somente da saúde, não da vida dos outros. Tenho que pedir para a Kobayashi dar uma olhada nesses implantes. Estou ficando nervosa sem motivo. Essa mesma chuva matou a última safra, deve ser isso. Está quase impossível dirigir. Ainda bem que minha adega no interior está bem protegida. Consigo avistar o homem da recepção, de visual grotesco, reciclado, parecendo uma colmeia cheia de abelhas. Se tivesse dinheiro, poderia ter um comprado um simples NEURON. Substituiria toda a carcaça. Tem gente que realmente não sabe o conceito de se vestir bem.

Paro o carro longe dos escombros e permito que ele me ajude a sair. As argolas realmente incomodam. Devia ter escolhido o Júpiter 2001, o vermelho. Agradeço o serviçal e ando até o saguão. A

decoração é péssima. Também pudera. Nesta noite só haverá dois tipos de pessoa: os bêbados que abrem a carteira e as empresas que servem a bebida. E eu fico longe dos dois. Nada mais suave e elegante do que um bom vinho natural. Se possível, do século passado, quando essa cidade ainda era conhecida pela sua excelente produção. Solicito o décimo andar e me olho no espelho mais uma vez. Mesmo sem cabelo, as

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rugas insistem em aparecer. Contudo, ainda sou jovem perto dos empresários. Mal sabem eles que tenho total controle da população. Enquanto não descobrirem a fonte da juventude, a bioengenharia reinará suprema.

Ao avistar o show de luzes e hologramas estonteantes, vejo que cheguei ao lugar certo. Vou direto à mesa do canto. Gosto de observar. Dificilmente se tem uma conversa inteligente depois da meia-noite, o mesmo horário em que começam os lances nos leilões. Certa vez, saí daqui com um esquilo. Comprei apenas porque era bonitinho, e porque prometia reproduzir sons da natureza, enquanto organizava uma lista de tarefas. É, eu tenho um coração mole embaixo dessa casca. Tenho certeza de que todos ocultam o que são. Minha face diz “Sou acessível!”, mas na verdade, preferia estar embaixo dos edredons térmicos, comendo besteira e assistindo à exótica programação nipônica. Bem, está quase na hora da conversa fútil para me pagarem uma bebida. Depois vem a cantada. Então, eu respondo: “Sou sua chefe, sabia?”. A cara que eles fazem é impagável. O misto de surpresa (e raiva) ao descobrirem quem paga seus salários os afasta rapidamente. Não nego. Há dias em que me sinto sozinha. Podia ter comprado um Grey artificial. Mas, além de ser caro, é bizarro demais quando começa a fazer perguntas mais íntimas. Culpa da programação.

O atendente, ou “barman” como dizia minha vó, é o único mais interessante. Esse sabe se vestir. Um belo Tevah HT Neon faz toda a diferença. Nós dois sempre conversamos sobre os bastidores daquele evento. Há pessoas honestas, claro. Entretanto, apesar da doação real, a grande maioria usa o evento como fachada para engenharia reversa, espionagem industrial e tráfico de “Minta”, uma droga de efeito

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entorpecente, de uso hospitalar. Os NEURONs mais avançados possuem antídotos e rejeitam a dose. Mas os reciclados, adquiridos pelas massas, não possuem a trava. A coisa se complicou ainda mais quando um departamento em especial resolveu fechar os olhos. Não dizem que a justiça é cega?

Sou obrigada a participar dessas convenções por contrato. Se um grande nome não aparece, levantam-se suspeitas sobre sua situação. Ou seja, todos vigiam todos. Também estou de olho na concorrência, afinal, meu império não pode ser ameaçado por alguém que produz peças semelhantes, mas de qualidade muito inferior, como a Cinder Farmacêutica. Apenas um item da noite me chama a atenção. Uma verdadeira relíquia: a última colheitadeira intacta do século passado. Talvez não caiba lá em casa, mas posso reservar um andar para isso. Estendo minha mão sobre a tela do bar e aguardo a reação do público. “A esquisita comprou mais um brinquedo inútil”. Com o esquilo foi a mesma coisa. Mas, gente! O dinheiro é meu! Aquilo encerra os lances e os empresários passam a tratar dos verdadeiros negócios, em suas salinhas privadas, com bastante diversão a bordo. Tenho nojo desses canalhas. Se não fossem acionistas...

Vou até a janela panorâmica. E o reflexo incomum atinge minha retina. Um objeto vem em minha direção. A pequena esfera flutua e gira de

forma enlouquecida, como um caleidoscópio. Só dá tempo de virar a mesa e me esconder atrás do vidro grosso. Já a conhecia por meio dos noticiários. Aquilo é uma bomba termal. O objeto explode, deixando um belo estrago no salão. Seu alcance é curto, mas eficiente – dois drones entram pelo buraco e atingem seus alvos com entorpecentes. O prédio soa o alarme de evacuação. Corto meu braço nos estilhaços. Saio

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andando junto aos convidados, mas não sem antes acertar um drone com minhas argolas. O vestido já era.

Somos escoltados até o elevador por duas mulheres, trajadas com um exoesqueleto tático. Os acionistas estavam bem preparados. Se soubesse que teria de enfrentar um ataque terrorista em plena sexta-feira, nem teria saído de casa. Deve ser um daqueles Naturalistas que se utilizam da tecnologia para espalhar o medo. A ironia mandou um abraço. A parte do estrago funciona, mas até agora só tinham me deixado com raiva por destruir um tecido Órion caríssimo. Não houve correria. Além do elevador ser bastante espaçoso, já estavam de sobreaviso. Lá fora, as sirenes indicam que o patrulhamento já toma as devidas providências. Não me importa o que aconteceu, só me interessa chegar em casa. Assim que liberam a passagem, entro no carro. Penso ter visto a sombra de um indivíduo escorado em meu Nissan. Coloco as digitais na carroceria e no volante. Saio voando, literalmente.

Pelo retrovisor posso avistar o agente do caos. Não passa de um pré-adolescente malvestido, sem implantes. Alguém deve tê-lo persuadido a cometer tal ato. Aquilo me deixa angustiada. Era mesmo possível viver sem os chips? Ignoro a divagação retrógrada e volto pela mesma rua. Ligo o piloto automático, pois preciso pensar. A rede chinesa exibe o atentado. Dois

membros da Corporação Kobayashi estão feridos. Naquele jogo de influências, quanto mais alto se aposta, mais alto se paga.

O carro começa a falhar perto do edifício. Algum estilhaço deve ter atingido as células mais sensíveis. Assumo de volta o controle e ativo as rodas, sem sucesso. Desligo e saio, com o vestido todo amarrotado e destruído. Chuto a lataria, com raiva.

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Devo ter acordado as criaturas do parque. Mas não é isso que chama minha atenção. O mesmo vulto anterior aguarda, escorado no outdoor de ramen. É um sujeito de casaco bege e chapéu retrô, um tanto curvilíneo para meu gosto. Sua face permanece escondida entre as abas e sua silhueta se mescla ao cenário de forma intrigante. Segura um discreto guarda-chuva do século passado. Ele se aproxima e oferece ajuda. Não recuso.

Em menos de quinze minutos, as células são consertadas e o carro flutua novamente. Pergunto-lhe como posso agradecer. Ele me entrega uma caixa exótica e um convite, impresso em papel holográfico. Um encontro está marcado para a próxima segunda-feira, à meia-noite, no saguão da Igreja Matriz, sétimo andar. Faz uma mesura e se afasta, desaparecendo aos poucos na madrugada escura. Fico ali, parada, durante vários minutos até entender o que havia acontecido. Entro no carro e dirijo até o estacionamento, subo ao trigésimo quinto andar e jogo a estranha caixa num canto. Há uma mensagem na sala de espera. Querem saber quando devem entregar a colheitadeira. Tinha esquecido completamente!

Releio o convite. Não quero admitir, mas estou curiosa.

- Benjamim -

“Mais um cliente insatisfeito”. Quanto mais

insatisfeito, melhor para os negócios. Espero que entendam. A humanidade nunca está contente. Benjamim Bernard Bezerra fornece a pílula da felicidade, mesmo que temporária. Pena que tenho outros assuntos a tratar, senão poderia ficar o dia inteiro enumerando as vantagens que os distintos

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senhores terão se aceitarem minha proposta. Agora, peço licença. Tenho um encontro marcado para esta manhã. E o clima lá fora não está nada agradável. Minha secretária cuidará do restante...

Gente mesquinha. Se soubessem o quanto estamos ferrados, não ficariam retendo recursos valiosos. A China está começando a esticar seus tentáculos. Daqui a pouco todo o produto interno será oriental. Noventa por cento já é. Felizmente, a linha VR MAX vende como água. Ninguém mais quer viver nesta porcaria de mundo.

Entro em meu Mercedes Zênite e solicito para que Vanko dirija até as colinas. Vanko é imigrante, um bom rapaz. Pena que é muito dependente dos implantes, mas quem não é? Sou seu principal fornecedor. Afinal, a Kobayashi faz parte de meu inventário. Não sou muito fã de peças chinesas, mas sou obrigado a usar um NEURON para os negócios e duas peças biônicas nas pernas. Já não tenho a mesma saúde de anos atrás. O tempo é a única coisa que nos une.

Sou dado à leitura de grandes clássicos. Enquanto o carro percorre as vielas desmanchadas pelo último grande conflito, vejo projetado em meu polímero de cinquenta polegadas as páginas do livro “A Grande Metáfora Tupiniquim”, uma belíssima prosa poética sobre nosso complexo de colônia e a constante necessidade de nos libertarmos do sistema

para nos apegarmos a outro. A China que o diga. Enquanto ignoro solenemente a poeira e as nuvens sombrias que se aproximam, noto que há um protesto em frente à subida. Devem ser os Naturalistas, bando de desocupados. Um dos manifestantes me reconhece e atira uma pedra contra o vidro. Imbecis. Não sabem que meu carro é blindado? Gritam palavras de ordem e protestam com hologramas infames. Nem se dão

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conta de que a corrupção do sistema são eles, uns coitados. Sinalizo para Vanko acionar a propulsão e derrubar a barricada. Meu cliente não gosta de esperar. Aproveito e jogo um pacote de Minta pela janela.

No caminho deixo pessoas caídas e muitas escoriações. Quem se importa? Mal sabem eles que a Massificação nos ajudou a prosperar. Antes, o Brasil era uma piada. Ainda continua, mas agora é o maior fornecedor de implantes da América Chino-Latina. Vanko não gosta muito de minhas atitudes, contudo, ele sabe quem paga seu salário. Melhor um serviçal mudo do que um herói pobre, não é mesmo? Bem, de volta à leitura.

Não é incomum escurecer à tarde. A mistura de poeira, vento e chuva sempre deixa tudo nebuloso. Ver o Sol é raro, se é que ele ainda existe. O noticiário informa que uma tempestade elétrica se aproxima. São as piores, pois destroem qualquer aparelho com uma simples descarga. Os NEURONs parecem atrair raios com facilidade. Tenho que alocar uma equipe para isso. Não posso ter outro desastre comercial, como os Greys. Pergunto a Vanko quanto falta para chegar e ele me mostra quatro dedos. Mesmo numa Mercedes Zênite, o terreno tortuoso é um desafio. Dizem que, antigamente, cultivavam vinhedos nessa região. A única família que ainda mantém esses costumes, de modo artificial, são os donos do

laboratório Alfa. Nostálgicos. Problemáticos, eu diria. Principalmente a filha. Mas isso não vem ao caso. Hoje podemos comer até capim que os implantes enviarão ao cérebro a informação programada nas sub-rotinas, tornando qualquer porcaria deliciosa. Manipulação dos sentidos foi a chave do sucesso da Corporação Kobayashi. Tenho acesso a várias iguarias, mas faz tempo que não provo algo natural.

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Apesar da leitura interessante, os quarenta minutos passam de forma arrastada. Se estivesse num retrotaxi, com certeza já estaria entediado. O que tem para se ver aqui, nessa região inóspita? Os animais modificados? Não, isso já é tema batido e objeto de uma revolução esmagada. A GEN7 é uma piada. Perderam o ímpeto. Povo hipócrita. Quando os implantes começaram a ser testados em humanos, ninguém reclamou. Um novo mundo se abria diante de seus olhos, enquanto os acionistas inflavam seus bolsos. Fui um deles, é claro. Mas bastou a mídia mostrar uma criança com as costas costuradas e pronto. Sumiram do mapa.

O carro para. Não sei bem o que está acontecendo, mas o ponto de encontro não é aqui. Vanko desce e analisa as células antigravitacionais. Apenas coço minha barba. O garoto sabe o que faz. De repente, vejo uma sombra circular pela névoa. Conheço aquele zumbido. Quando as pequenas luzes se acendem e formam um caleidoscópio, grito para que ele entre no carro. Mas a bomba termal o atinge em cheio. Sangue espirra em minhas janelas. Vanko se joga para dentro e tranca a porta. Seu braço direito está dilacerado. Era uma bomba de baixa potência. Abro um pacote de Minta e dou-lhe o sedativo – sua finalidade real – e baixo completamente o vidro que há entre nós. Outras esferas cercam o veículo. Não sei por quanto tempo a blindagem aguentará. Como

sabiam que eu estaria aqui? A menos que... Merda! Maldita concorrência!

Passo para frente e assumo o controle, enquanto deixo meu serviçal agonizando no banco de trás. Noto que a rua por onde viemos está completamente bloqueada, devido às explosões. Só me resta dirigir até o topo. Ordeno ao computador de bordo que inicie o diagnóstico. Se for possível fazer

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uma cirurgia temporária, vale a pena tentar. Nunca saio de casa sem peças extras. Na minha idade, qualquer infecção é passível de morte. Vanko grita de dor assim que os braços mecânicos o seguram. O ferimento é cicatrizado e mãos metálicas retiram, do fundo do carro, uma proteção adaptada. A peça encobre a região ferida. Viro para trás e abro um sorriso ao ver que funciona. Mais alguns dias e ele pode ser considerado um Biônico, uma classe com seus devidos privilégios – pífios, mas ainda assim, privilégios. A medicação começa a fazer efeito. Não posso fazer mais nada a não ser esganar meu cliente ao encontrá-lo. Retiro da porta uma pistola Taser Himitsu, conhecida como Laçadora, e me preparo.

Estaciono em uma região plana. Observo os primeiros pingos de chuva cair. Em breve, não haverá mais névoa, apenas a tempestade. Confiro se não há qualquer esfera ao meu redor. Meu escudo pessoal deve aguentar um tiro à queima-roupa. O relógio para. Vejo pequenos roedores saírem em disparada. A chuva cai e a escuridão encobre a colina. Então avisto um olho azul cintilante. Presto atenção à silhueta da criatura e vou me aproximando da porta a passos lentos. Entro sem demora. Se tivesse atirado a esmo, seria atacado. Aquilo lembrava um lobo selvagem.

Assim que as nuvens se espalham, e somente a chuva torrencial permanece, avisto um homem de casaco bege afagando a criatura. Um sujeito estranho,

de rosto escondido, com um gosto exótico por guarda-chuvas antigos. Seria o mandante? Saio novamente com a arma em punho. Ele dispensa o lobo, que ilumina o matagal com seu enigmático olho biônico, e levanta os braços. Não parece um Naturalista, tampouco um excêntrico. A dúvida me corrói quando o vejo estender uma das mãos até o bolso. Devo atirar?

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Ele retira uma caixa escura e a estende em minha direção. Parece feita de opala, uma pedra rara encontrada apenas lá fora. Com certeza, o sujeito não é um qualquer. Observo sua face encoberta pelas abas do casacão e me aproximo, pegando a caixa, sem desviar o olhar. Há um convite holográfico. Os últimos raios de Sol pintam sua arte abstrata. Entre um clarão e outro, percebo que o sujeito desaparece. Entro no carro e vejo se as câmeras gravaram tudo. Depois de captar o olho azul da criatura, a imagem apresenta apenas estática. Quem quer que fosse, veio bem preparado. Examino o bilhete. Marca um encontro para a próxima segunda-feira, à meia-noite, no saguão da Igreja Matriz, sétimo andar. A curiosidade me seduz. Desconhecer um possível acionista é algo inédito. Vanko volta dos mortos para me atazanar. Então, percebe o que aconteceu. A droga dispersa seus efeitos. E enche-me de impropérios e palavrões. Já disse que gostava do garoto? Obrigo Vanko a voltar ao seu posto. Ainda tinha de ir a um incômodo evento de arrecadação de fundos, onde caras e bocas estampariam outdoors gigantes, lotados de ideogramas.

Maldita globalização!

III. O Encontro

- Assis -

Não sei se devia estar aqui. Faz muito tempo

que não vou a qualquer denominação, desde que as religiões aderiram ao reino virtual. Este lugar tem uma áurea estranha, típica de museus. A Igreja Matriz foi uma das primeiras fundações da cidade. Naquela época era costume construir estruturas ao nível do chão, algo impensável hoje em dia, com todos

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esses escombros do último grande conflito. Foi depois disso que a reformaram, erigindo sete andares enigmáticos.

Devo estar perdendo a razão para vir ao centro a uma hora dessas. Mas preciso agradecer a quem salvou minha vida. Alguém importante deve pedir algo em troca... Não devia ter aceitado sem pensar. O que o homem não faz por sua vida! Pelo menos não está chovendo. Seria um saco ter que aguentar as faíscas dos microchips. Os novos modelos já vêm com proteção embutida, um modelo que jamais terei. Há alguns trovões ocasionais, mas nada com o que se preocupar.

Encosto-me no parapeito e aprecio à vista. Contrariando as normas de segurança, a igreja contém um terraço completamente aberto e exposto. Por sorte, ainda mantém um para-raios. Enorme, mas eficiente. O relógio da Catedral marca 23h55min... E percebo que não fui o único a aceitar o convite.

Um homem velho e robusto, de terno e gravata, segurando uma bengala MDK, bate as portas de acesso. Sacode o chapéu de camurça e franze o cenho. Busca algum aparelho no bolso interno. Em seguida, uma jovem mulher trajando um discreto vestido de seda aparece. Usa uma peruca de mechas coloridas e uma tiara sensitiva. Impossível não os reconhecer: Benjamim Bernard Bezerra, um dos acionistas mais influentes de Nova Caxias do Sul. E

Celina Consuelo Carmem, dona dos laboratórios Alfa, mais conhecida nos subúrbios como “A Doutora”. De imediato, lançam-me um olhar de repulsa.

O único ninguém sou eu. Confesso que me passa pela cabeça a vontade de pular do parapeito e ver o que acontece. Definitivamente, estou no lugar errado.

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- Celina -

Espero que valha a pena ter vindo a esse lugar decrépito. Não quero estragar outro vestido. Só espero que não tenha nenhum necessitado por aqui. Deixei minha generosidade em casa, para meu próprio bem. Não tem nem onde deixar o carro! Farei uma reclamação formal ao anfitrião... Minha família ia gostar desse lugar. Tem uma aura de coisa antiga. Acho que nunca tinha vindo aqui.

Vejam só, o vitral ainda está intacto. Será que ele me vende por um preço bom? É bem fácil retirá-lo daqui. Basta um laser cirúrgico FUSION e uma tela DX polimérica. Deve ser do período anterior à Massificação. O desenho vale uma fortuna. Não sei como não roubaram ainda – talvez pelo medo de desrespeitar algo sagrado.

Puxa. Sete andares e nenhum elevador! Por sorte trouxe botas magnéticas. Se aplicar uma força nível dois, não precisarei de muito esforço. Quanto às tiaras sensitivas, bem, elas incomodam bastante, me sinto presa em meu próprio corpo, mas não há o que fazer. Só espero que o anfitrião sirva algo decente... Interessante. Fazia tempo que não utilizava escadas em espiral. Exótico, sem dúvida. Os ornamentos são de bom gosto. Preciso comprar este lugar.

Felizmente, a escadaria é baixa. Logo chego às portas do último andar. De mogno! Que bela

surpresa. Madeira nativa ainda existe? São pesadas, mas fáceis de abrir. Espero que entremos direto ao assunto. Se ele vier com um papinho diferente, caio fora no mesmo instante.

Ao abrir a porta, me deparo com Benjamim, o poderoso desprezível que vive se infiltrando em meus negócios. Ninguém merece... Estou caindo fora. Mas aquele ao fundo eu não conheço. Não me diga que o

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anfitrião é um daqueles benfeitores? Era só o que me faltava. Mais uma noite horrível. Pelo menos, dessa vez, não vim de Órion.

- Benjamim -

Irônico. O mesmo homem que salvou um velho, o faz subir sete andares. Se não fosse pela curiosidade e pelo tino comercial, jamais viria até este maldito lugar. Mas preciso saber com o que exatamente ele trabalha. Podemos iniciar uma parceria. Vejo Vanko sorrindo ao me ver sofrendo com a falta de fôlego. O jovem ainda guarda rancor. Mal sabe ele o que pode fazer com um braço biônico; até erguer meu carro, se é que já não tentou.

A juventude de hoje está perdida mesmo. Não sabem o que querem. Primeiro, queriam uma revolução. Ela veio. Deixou mortos pelo caminho, é claro, mas atingimos o ápice de nossa sociedade em pouco tempo. Bem, pelo menos o meu ápice. Quanto à camada social mais baixa, não me importo muito. Afinal, precisamos de compradores dependentes. É um ciclo maravilhoso. O que mais poderia querer? Se a escória dos Naturalistas desaparecesse, quem sabe... Um pouco de saúde seria bom. Que se dane! Posso comprar um RETCON e transferir minha consciência para ele, assim que o protótipo estiver pronto. Aliás, a Kobayashi já devia ter concluído o

primeiro relatório. Tenho que me lembrar de cortar seus salários; um pequeno incentivo.

A arte daqui é interessante, mas não vejo muito propósito. A eterna batalha dos anjos. A velha disputa pelo poder. Nesse conflito celeste, quem tem mais influência vence. Aprendam com o velho Bezerra. “Numa guerra, só vence o lado que vende as armas”. É melhor parar com essas divagações e empurrar

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essa porcaria de porta. Vamos ver. Acho que mais dez por cento de força é suficiente. Meus ossos aguentam a pressão.

Não sabia que estaríamos ao ar livre. Mas quem é esse? Esse pobre coitado deve ter errado o caminho de casa. Droga! Deixei a Minta no veículo. Oportunidade desperdiçada. A porta range novamente. Mais alguém veio se juntar a nós. É ela. A problemática. A bonitinha esquizofrênica. “A Doutora”. Espero que o anfitrião não me faça esperar. Tenho mais o que fazer.

IV. O Casaco Bege

- Cassiopeia -

Sou uma mulher. E essa não será a única surpresa da noite. Meu nome oficial é um apelido carinhoso dado por meus amigos de infância – vivia com a cabeça em outros mundos, sempre distante, o que explica a escolha. Minha vida anterior não passa de um borrão. Só me lembro de ter nascido no ano em que a Massificação ganhou este nome. Não sei o que houve com meus pais e prefiro não saber, pois nasci em meio a um conflito. Considero-me órfã a vida inteira. Fui adotada por uma instituição que dizia tratar das mazelas da humanidade. Só que esse “tratamento” não era nada convencional.

Meu casaco é apenas um disfarce. Ele serve para encobrir a realidade. Quanto às abas que escondem meu rosto... Bem, elas fazem parte de mim. São extensões cartilaginosas que servem para um propósito bastante específico, assim como as escamas em minhas costas, escondidas sob a pele. Infelizmente, ou felizmente para alguns, sou um experimento bem-sucedido. Por sorte, não mexeram

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no restante. Tenho um corpo bastante normal, mas alérgico a tecidos sintéticos. Não posso usar nada além de casacos antigos. Daí vem meu gosto por essas coisas. Meu guarda-chuva é adaptado às minhas necessidades e resiste bem à chuva ácida.

Foi numa noite de lua cheia, há muito tempo, que descobri no que havia me transformado. Acordei assustada, com dores pelo corpo e uma incomoda sensação de estar de cabeça para baixo. Apesar de possuir certa liberdade, as câmeras da instalação gravaram os resultados para pesquisa futura. No dia seguinte, a matriarca mostrou-me o vídeo e explicou minha condição: ganhara novas habilidades e, por consequência, um novo instinto. Disse que eu era “o futuro”. Fiquei empolgada num primeiro instante. Mas com o passar dos dias, semanas e meses, o espelho começou a mostrar outra coisa: uma anomalia em forma de mulher, e não o contrário.

Enfim, não lembro se me alistei para esse experimento ou fui obrigada a fazê-lo. Essa dúvida me persegue há anos. No entanto, possuo ótimos reflexos e uma inteligência acima da média, suficiente para construir dispositivos que me auxiliam e me protegem, como a camuflagem eletrônica.

As coisas mudaram depois que descobri a existência das tais caixas, já adulta. A GEN7, lar de geneticistas, e minha antiga casa, tentou acobertar a informação mais importante. Minha curiosidade não

tinha limites. Talvez esperassem que eu resolvesse a estranha equação. Só não esperavam que meu dispositivo de “invisibilidade” já estivesse pronto. Àquela altura, já sabia exatamente o que faziam ali. Preparei as malas, vesti meu casaco preferido e criei uma distração eficaz. Como era a primeira de muitos, acabei assimilando a sequência das portas de cada nova seção. Libertei uma série de animais

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modificados, aqueles com partes biônicas, e os deixei correr livremente pelo subsolo da mansão. Enquanto a confusão se desenrolava, acionei a camuflagem eletrônica e entrei no laboratório principal. Passei despercebida pelos brutamontes que guardavam a porta de acesso. Ficaram assustados quando as portas se abriram, mas nada fizeram. O que tinham de músculo faltava-lhes de cérebro. Somente perceberam o erro quando as quatro caixas desapareceram misteriosamente, como num passe de mágica.

Na fuga, em troca de chips de emoções e algumas holografias “proibidas”, algo bastante comum onde vivia, consegui a informação que precisava. Arranjar um satélite portátil fora relativamente fácil. Sem registro e sem família, vim parar neste país, nesta cidade. Agora pensam que me escondo nas grandes metrópoles. Melhor assim. Foi por meio das caixas que descobri um sinal misterioso, vindo não sei de onde. Suponho que essa tecnologia não seja daqui. E tenho certeza quando digo que algo está vindo. Sonho com isso todos os dias...

A hora se aproxima. Espero ter feito uma boa escolha. Não são os melhores representantes, mas são os mais influentes. Os Naturalistas compreenderam meu dilema. Espero que essas pessoas também.

Abro a porta calmamente. Coloco-me à sombra do para-raios, próxima ao parapeito. Observo a saída

de emergência. Há uma quinta pessoa à espreita, fora do cronograma, controlando um drone de coleta de dados. Começo minha apresentação.

V. O que o drone viu

Assim que a porta rangeu pela quarta vez, os

convidados se entreolharam e cruzaram os braços, em

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posição de defesa. A figura que todos haviam encontrado parecia mais à vontade. Vestia seu conhecido casaco bege e evitava a qualquer custo mostrar a face. Preferiu manter-se nas sombras. Uma voz feminina, um tanto rouca, surpreendeu a todos.

— Peço desculpas pelo atraso. Benjamim foi o primeiro a se impor. — Certo. Tive que cancelar um excelente jantar

de negócios. O que tem pra mim? A figura saiu das sombras e abaixou as abas do

casacão, revelando parte de sua verdadeira forma. Assis descruzou os braços. Uma mulher modificada? Já tinha ouvido boatos sobre aquilo, mas vendo de perto era bizarro demais. Benjamim deu uma gargalhada e quase se engasgou. Tossiu como um tuberculoso. Retirou um charuto do bolso. Celina, igualmente surpresa, compreendeu o cenário: a engenharia genética dava novos passos rumo ao transhumanismo. No entanto, apesar de sua aparência exótica, era uma mulher de traços atraentes. Inveja não definia bem o que ela havia sentido.

— Meu nome é Cassiopeia. Vendo que ninguém se atrevia a interrompê-la,

continuou. — Não quero estender nosso encontro, pois é

perigoso demais para mim. Os três receberam caixas feitas de um material semelhante ao ônix, opala, ou o

que quer que seja. Se tentaram abri-la, como espero que tenha feito, notaram que é praticamente impossível alcançar este objetivo. Com a tecnologia de suas empresas, e a linguagem universal, talvez seja possível desvendar o mistério. Por isso, preciso de sua ajuda.

Assis, que ouvia tudo atentamente, tomou a palavra.

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— Moça... Primeiro quero lhe agradecer, e muito, pelo que fez por mim dias atrás. Mas, não entendo onde eu possa me encaixar nesse seu plano obscuro.

Cassiopeia analisou Assis brevemente. E voltou-se para o drone, logo atrás da figura. Desviou os olhos e continuou.

— Você não era bom com números? Tenho observado vocês há um bom tempo. Conheço seus históricos.

E calculou uma trajetória invisível. Ao ouvir isso, Benjamim sacou uma Laçadora escondida e apontou. Guardou o charuto.

— Se você me conhece, sabe do que sou capaz. Desembucha. O que tem nas caixas?

Ela não respondeu. Celina encostou em seu braço.

— Ei! Nós ainda não sabemos nada sobre ela. “Conhecimento é poder”, lembra? – Interrompeu.

— Quem você acha que é para me impedir? – Retrucou Benjamim.

— Homens... Não entendem nada de sutileza. Acompanhe meu raciocínio. As tais caixas devem conter alguma espécie de tecnologia experimental, senão já teríamos conseguido abri-las, não é mesmo? Eu mesma tentei várias vezes, sem utilizar aparelhos mais complexos. No entanto, o que não consigo entender, é por que ela escolheu três pessoas tão

“distintas”, para não dizer outra coisa. – Celina olhou para Assis.

O silêncio se fez presente. A chuva ácida voltou a cair. Cassiopeia fechou o casaco, abriu seu guarda-chuva vintage e olhou o relógio. Corrigiu os demais.

— Quatro pessoas, na verdade. Mas eu sabia que reunir os quatro aqui em cima só me traria problemas. Vocês três tem uma ideologia parecida.

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Bem, pelo menos dois de vocês. Aliás, vocês acham que essa tecnologia veio de onde?

Assis, inocentemente, a encarou. Seus olhos verdes falavam mais alto que as palavras. Cassiopeia prosseguiu.

—Estrelas! Algum tempo atrás decodifiquei uma mensagem escondida nos satélites indianos. E antes que perguntem, tenho meus métodos... Em breve, “alguém” virá. Tenho certeza. E esse “alguém” pode ser bastante hostil. As caixas contêm a resposta. Mas não posso decidir o futuro da humanidade sozinha. É um fardo pesado demais para mim. Trata-se de uma escolha. Podemos unir nosso conhecimento e recursos para nos prepararmos, ou deixar que o destino nos atinja sem dó.

— Os Naturalistas também ganharam uma? – Indagou Benjamim.

— É claro! O velho suspirou. Cassiopeia decidiu encerrar

a reunião ali, de uma forma um tanto inusitada. — Mais uma coisa, senhor Benjamim Bernard

Bezerra ... Não ouse apontar essa coisa para mim, novamente.

E estendeu os braços, pulando do parapeito. O susto foi grande. Mesmo na escuridão chuvosa foi possível ouvir o som característico do bater de asas – uma sinfonia horrível, como se ossos e músculos tivessem crescido em velocidade espantosa. Um grito

ecoou pela estrutura. Em segundos, pingos de chuva tornaram-se torrentes de água. Um corpo semimorto foi jogado aos pés dos convidados, com um enorme rasgo na garganta e um aparelho nas mãos – o capanga de Benjamim não tivera se quer uma chance. O drone estava em pedaços, mas ainda gravava o encontro. Celina não aguentou. Vomitou ali mesmo. Assis virou de costas e hiperventilou. Benjamim

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sorriu e não pôde evitar o sarcasmo, mesmo perdendo um recurso valioso.

— Estou começando a gostar dessa aberração!

VI. Veredito

- Assis -

Depois daquele dia, cada um voltou para sua casa, levando consigo o artefato e um desafio: entender as misteriosas “caixas da discórdia”. Confesso que fiquei bastante curioso com a história de Cassiopeia, mas pareceu – e não fui o único a perceber isso – que estávamos apenas sendo usados por uma empresa estrangeira.

Todavia, ainda mantenho contato com ela. Recebo vários chips interessantes, devido à parceria. Diferente dos outros, resolvi seguir em frente. A dita “linguagem universal”, a matemática, sempre foi meu ponto fraco. Tenho me esforçado em aplicar conceitos aritméticos ao objeto, mas sem nenhum resultado até agora. Nem a simulação no VR MAX parece trazer algum ar de novidade. Sinceramente, ela pode estar enganada. A caixa realmente tem um aspecto intrigante, mas poderia ser restos de um meteorito; sua forma esculpida pelo próprio atrito com a atmosfera ou pela GEN7, já que ela alega desconhecer seu passado. Até tentei usar uma tiara sensitiva, mas

só pude sentir calafrios e ser alvo de insônia e sonhos esquisitos. Tem algo de muito estranho em tudo isso, mas, ao mesmo tempo, familiar. Já é um começo. Como alguns minerais da crosta terrestre, a caixa possui magnetismo.

É complicado trabalhar normalmente e esconder tamanho segredo. No dia seguinte ao meu retorno, tive a visita de uma menina esperta que

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gostava de conversar. Peralta como era, perguntou-me o que uma pedra de mármore fazia em cima da geladeira. Ela me obrigou a inventar uma desculpa. Um “experimento” parecia satisfazer sua curiosidade. A mãe veio buscá-la em seguida. Metade de seu rosto estava encoberto por placas metálicas. Ela se desculpou. Apenas acenei em resposta.

Como a vida daquela menina seria diferente se tivesse acesso a mais recursos... Mas, do jeito que a situação andava, já havia perdido as esperanças. Quem sabe o pai dela não era alguém importante? Cassiopeia pedia o impossível: unir quatro classes distintas, orgulhosas por definição. Se mal conseguiam me olhar naquele dia, o que dizer de trabalhar juntos?

- Celina -

Até que a “caixa do mistério” fez um belo par com a colheitadeira! Vou deixá-la neste andar. Essa porcaria me custou uma semana de sono. Na primeira noite, tinha deixado o artefato em meu quarto. Parecia me chamar de hora em hora. Tive pesadelos horríveis. Foi com indignação que retirei três equipes de seus postos e acompanhei o estudo minucioso. Nem a tomografia holográfica servia para distinguir o que havia lá dentro. A tela mostrava apenas um borrão abstrato. Depois disso tentei

lasers, ferramentas cirúrgicas e até as pás da colheitadeira, num acesso de fúria. A maldita permanece intacta! Nenhum arranhão. Nenhum!

Na verdade, depois daquilo tudo, me interessei pelos projetos da desconhecida GEN7. Vendo o que fizeram à Cassiopeia, parecia um campo promissor. Claro, aplicando um tratamento estético diferenciado. Jamais transformaria as pessoas em morcegos-

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humanos, uma bela ideia para os quadrinhos de baixa cultura.

Aquela empresa parece realizar negócios altamente obscuros. Deviam estar na última festa. Bem, já lamentei demais. O caso é que nenhum dos dois entrou em contato após aquele dia. Benjamim, prefiro que nem me ligue. Quanto ao outro indivíduo, não sei o que pensar. Acho que simpatizei com seu jeito reservado, de poucas palavras. Um pouco assustado demais, mas se eu vivesse no subúrbio, seria igual. Acho que ele fez uma cirurgia no Alfa, semanas atrás. Será que ele já descobriu alguma coisa? Não acho que ele baterá em minha porta.

Tudo bem. Ainda posso salvar as pessoas com meu trabalho. “Para quem deseja salvar o mundo, comece ao seu redor”. Hum... Belo slogan para uma nova campanha. Isso se aqueles metidos da Kobayashi não vierem com seus pictogramas e bonequinhos estilizados. Ok. Terminei. Uma bela contenção de vidro para uma caixa misteriosa, sob um pedestal de gesso, em escultura moderna. Espero que ninguém critique a criatura dos meus pesadelos, cheia de tentáculos, garras pontiagudas, com uma enorme boca de perfuratriz e corpo esponjoso. Tenho arrepios só de lembrar. Antes fora, como uma bela obra de arte, do que dentro, em meu subconsciente.

Agora, vamos ver. Onde coloquei o prontuário?

- Benjamim -

Aqueles dois estão achando que vou compartilhar o que descobri. Ledo engano. Meu contato tem ferramentas especiais para esse tipo de coisa. Espero que Vanko já tenha preparado o carro. Estou realmente curioso. Se o mineral interno for uma gema valiosa, melhor ainda. Depois de abrir a

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minha, comprarei as caixas restantes. Duvido que resistam às minhas ofertas. A doutora será um pouco mais difícil, mas todos têm seu preço. Quem sabe eu não invista naquele projeto absurdo de colônia geoestacionária...

Resolvo ir com um escudo pessoal e dois implantes de força, pois meu contato é um tanto perigoso. O Mercedes não vai servir dessa vez. Penso em ir com minha camionete Vector Xiongshi. O bairro é um pouco distante, localizado numa região deserta e sem vida, afinal, é para lá que todos vão algum dia: A Zona do Cemitério. Denominação perfeita. Tenho que tomar cuidado.

Viajar ao amanhecer é mais fácil. As ruas estão desertas e os raios de Sol criam desenhos incríveis na poeira. Faz tempo que não vejo um céu azul. Vi o último quando tinha doze anos. Nessa ocasião ganhei meu primeiro canivete Laser R20 GZ. Apontava direto para qualquer coisa, tentando extrair algum pedaço. Certa vez, o cachorro da família entrou na frente... Digamos que, a partir dali, compreendi do que somos feitos. Agora o horizonte me traz essa mancha amarelada e turva, cheia de lembranças.

Acabamos de passar pela famosa Casa de Pedra. Ainda pretendo descobrir que material utilizaram para que durasse tanto tempo. Deve ser algum trabalho dos extintos ecopunks. A subida, a partir daqui, é bastante íngreme. Iremos até o outro

lado do centro, região antigamente movimentada, agora relegada ao esquecimento.

Tomo o cuidado de deixar O Grande Irmão ligado, minha central de informações. Preciso avisar-lhes que estou chegando ou um lança-foguetes nos dará as boas-vindas. Vanko começa a entrar no território proibido quando homens armados aparecem nas esquinas, de dois em dois. Espero que tenham

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recebido a mensagem, senão faremos parte do cenário. Digito dez por cento nos vidros, o suficiente para me reconhecerem. Gritam uns aos outros, parecendo um bando de Neandertais que não sabem utilizar os chips em suas têmporas.

Paramos o carro próximo à entrada do covil dos mortos. Não sou o único a ter um gosto excêntrico. Aviso a todos que Vanko é meu segurança particular. Todos olham seu braço biônico, capaz de dividi-los ao meio com apenas um soco. De forma involuntária, se afastam. Puxo a maleta e sigo para a caverna subterrânea, abaixo dos primeiros túmulos. Aqui, as autoridades não têm vez.

Meu contato não gosta de perder tempo. Assim que recebe o aviso de nossa chegada, já prepara os aparatos de extração. Largo a maleta na mesa e iniciamos um diálogo fútil. Afinal, o contato é meu pai. Ainda vivo, apesar da velhice. Enquanto eu controlo a alta sociedade, ele controla a baixa. Uma parceria e tanto. Conseguiu montar um império com a extração de minerais do núcleo ferroso. Os mesmos que utiliza nesta broca HNT4 GLD.

Aciono os óculos escuros. O laser, forte o suficiente para chegar à China e contornar o planeta, é disparado. Lá fora todos veem um clarão. A caixa sofre um pequeníssimo corte. O corpo, agora gelatinoso devido ao extremo calor, regenera-se em segundos. Incrível! Se pudéssemos utilizar aquele

material, teríamos uma nova era de exoesqueletos imbatíveis, um exército praticamente imortal.

Nem preciso abrir a boca. Ele me olha. Eu confirmo. Recolho o pedaço quase microscópico e o coloco num recipiente de vidro. Despeço-me, com a promessa de partilhar os futuros dividendos. Quem precisa salvar o mundo se pode vê-lo se autodestruir e enriquecer no processo?

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VII. O Início

- Assis -

Já faz um ano que não vejo aqueles dois. Celina deixou os laboratórios Alfa nas mãos do barman, vejam só, e foi morar no exterior em busca de inspiração para sua arte. Exterior mesmo, no primeiro projeto de colônia geoestacionária habitável, ainda em construção. Transformar sonhos em estruturas bizarras virou seu novo objetivo. Os boatos sobre sua esquizofrenia eram verdadeiros. E Benjamim enlouqueceu de vez, entrando para a carreira militar depois de velho, criando verdadeiros exércitos imortais com tecnologia experimental. O continente indiano foi o primeiro a testar seus protótipos. Depois da devastadora “Guerra Autômata”, voltamos ao início dos tempos. Estamos regredindo.

E eu aqui, imbecil, tentando desvendar fórmulas inconsistentes. Só tenho uma certeza: vai acontecer a qualquer momento. Cassiopeia tem vindo aqui todos os dias, pois a caixa começou a brilhar em tons de verde, desde o mês passado. A mídia já começou a noticiar tempestades na região costeira e a empresa em que trabalho emitiu um alerta. Recebi algumas provisões. São poucas, mas não posso reclamar. Pelo menos se lembraram de nós, do

subúrbio. O que tenho feito nesses dias é comparar o tempo entre os picos de luz e a reação do artefato, além de anotar o período em que aparecem. A frequência vem diminuindo com o passar das horas. Parece um chamado...

Hoje, Cassiopeia está aqui novamente. Gosto de sua companhia. Apesar de sua aparência um tanto informal, rapidamente me acostumei aos seus

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trejeitos. Devo ser bizarro aos seus olhos, afinal, não são todos que possuem um pulmão mecânico exposto. Não acho que tenhamos qualquer futuro juntos, pois, por enquanto, somos apenas bons amigos.

Um trovão interrompe nossa conversa matinal. Faíscas incômodas percorrem meus sensores e o ar se enche de estática. A eletricidade falha. Cassiopeia também sente um formigamento incomum. Se não fosse por aquela tiara em torno de sua testa, diria que ela simpatizava com os Naturalistas. Todos os aparelhos, incluindo minha TRON 1982 HDX, queimam sem explicação. Seis meses de trabalho jogados fora! A caixa passa a emitir uma singela luz vermelha. Encaramo-nos por alguns segundos. Está acontecendo!

Retiro o objeto da contenção e o levo para fora. A forte ventania cessa. O outdoor chinês mostra a previsão do tempo. Nuvens sombrias encobrem toda a cidade, todo o país – tempestades elétricas não são incomuns, mas essa traz um clarão bizarro em seu interior.

Vários pequenos acidentes ocorrem em um curto período. Ouço o ranger dos veículos. As células de antigravidade perdem força. O outdoor holográfico se desliga. As luzes neon vão se apagando, em toda a extensão da avenida, uma por uma. Entreolhamo-nos. O horizonte apresenta uma coloração pétrea.

Uma rajada de um azul puro, cintilante, cega todos os curiosos e transeuntes. Um pulso eletromagnético? Começo a tossir. Todos os aparelhos, incluindo os suportes de vida, deixam de funcionar. O pânico toma as ruas.

Caio no chão, deixando a caixa seguir sozinha o seu destino, como se puxada por uma força maior. Ela não para até chegar a um ponto distante.

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Cassiopeia abaixa-se e me acomoda em seus braços. Meu pulmão artificial para. Respiro com dificuldade. Ela tenta pedir ajuda, mas naquela situação o instinto de sobrevivência dos vizinhos, vulgo egoísmo, impera. Tudo bem, só preciso respirar com calma...

Sentado e praticamente sem acesso ao mundo interconectado, como todos os outros, observo a bendita caixa se abrir. Uma descarga de matéria vermelha sobe ao céu, sugando toda a energia concentrada no solo e parte do próprio manto terrestre, levando casas e carros no processo, mas sem causar mal algum aos seres vivos. Curioso. No horizonte, dentro do edifício Parque do Sol, a luz irradiada quebra os vidros panorâmicos. Não há vestígios da terceira caixa, nem da quarta. O verde natural dos olhos de Cassiopeia me traz a calma que preciso. O bloqueio inconsciente desaparece, e só o percebemos agora, munidos de uma total compreensão dos eventos. Quem estaria enviando aquelas informações aos nossos cérebros, de forma direta? As nuvens revelam a verdade inevitável: a época da colheita chegou.

Um monstruoso asteroide sem forma, denso e maciço, traz à tona um terror antigo, o maior medo de nossos ancestrais. A escuridão primordial encobre Nova Caxias do Sul, espalhando uma noite sem estrelas, sem sombras, sem fôlego. Como uma mortalha estendida sobre um caixão. “A melhor forma

de se viajar no espaço profundo”; penso, em delírio. Em seu interior de bioluminescência, a atmosfera arde...

Admito. Cassiopeia estava certa. Aquele era um evento que reuniria todos os povos da terra, de toda classe, cor ou posição social. No exato momento em que presenciávamos uma cidadela paradisíaca adentrar os céus, diante de nossos próprios olhos, o

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pensamento coletivo, livre das amarras tecnológicas, gritava em desespero. Um grito surdo. Meu último suspiro.

- Celina -

A vista daqui de cima é incrível! Valeu todo o investimento! E olha que está saindo bem caro. É a primeira vez que posso ver o astro-rei em toda a sua plenitude. Mas a decoração podia ser mais viva. Esses tons pastel quebram todo o clima. Pelo menos, servem um bom champanhe. Acho que poderia viver aqui para sempre, longe de toda aquela poluição, sujeira, e principalmente, das corporações. Afinal, a uma altura de quatrocentos quilômetros, “máscaras de personalidade” não são mais itens necessários. Até porque são poucos os sonhadores que se arriscam a construir algo fora da bolha. Só teria que dar um jeito nesse aspecto quadrado e cafona das coisas. Pelo menos o salão panorâmico foi uma ideia excelente.

Meu Saturno V5, um vestido prata com células de energia, recarrega de forma veloz a essa altura. Só os chips incomodam um pouco devido à pressurização. Mas dor de cabeça se cura com um bom vinho. Os acionistas têm que pensar nisso no futuro. Não vou trazer toda aquela tralha aqui pra cima. Só minha arte – pense num busto contra a luz, cheio de canos atravessando o crânio, descendo pelos

ombros, num visual dreadlock, invasivo, assim como os primeiros implantes. Um resgate ao passado, eu diria, quando ainda se utilizavam métodos primitivos. “Invasão” é um bom título para uma estátua retrofuturista.

Um aviso interrompe meus devaneios criativos. As luzes vermelhas se acendem. Podiam ser roxas, com um toque sutil de amarelo. Um aviso

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desagradável se projeta em minha retina. Algo se aproxima da estação. Como assim? Só havia um Lexus N100 em toda a Terra! E estava dentro de nosso hangar! As janelas externas se fecham. Por serem lentas, é possível avistar uma massa corpórea criar uma gigantesca sombra no interior do complexo. Hologramas de segurança informam a localização dos pods de emergência. Eu mereço! Infelizmente, vou poder voltar somente em um mês. Largo a taça e sigo as listras neon. Não sei porque os outros correm. Não é nada chique.

Olho para trás e percebo o motivo do pânico. O anel externo é completamente encoberto por uma enorme pinça retrátil, retornando em seguida ao buraco de onde saiu: uma montanha flutuante, cheia de horrendas patinhas e tentáculos, com castelos de pedra em seu interior. Acho que bebi demais. Procuro o Lexus pelos corredores. Jamais usarei uma caixa desengonçada. O Saturno V5 consegue ser ainda mais caro do que um Órion. No caminho, vejo um pai sozinho segurando a filha nos braços, encolhido num canto. Quem mandou trazer a família?

Mas as lembranças de infância me fazem parar. A menina teve a oportunidade única de ver a joia do espaço, com seus próprios olhos, sem hologramas. Se eu tivesse essa mesma chance, quem sabe não teria sido uma pessoa melhor. Droga! Justo agora! Puxo o braço do homem apavorado e indico o último hangar,

onde não havia procurado. Ali está o veículo! A porta se abre e os empurro para dentro. O material do vestido rasga ao ficar preso no vão.

Os sistemas começam a lacrar a sala. Não há mais tempo. Agora somos só eu e minha arte póstuma. Espero que a mocinha nos traga um futuro melhor. Vendo a criatura dos meus pesadelos atravessando os módulos num balé desconcertante,

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lembro-me da infame caixa misteriosa, deixada sozinha, no interior do edifício. Então era assim que eles se comunicavam? Mas os sonhos eram tão grotescos! Como poderia saber?

Enquanto o filme de minha vida passa em meus olhos, por meio dos chips, aprecio uma última vez a pérola do sistema solar, antes que os escudos se fechem. Sozinha e sem qualquer esperança de retorno, só me resta uma coisa a fazer: abrir a última ampola de Cabernet Sauvignon. C'est la vie...

- Benjamim -

Encaro minhas tropas. O “bilionário excêntrico que só sabe criar negócios escusos”, como diz a mídia, está de pé, em frente ao melhor contingente militar de todos os tempos. Esboço um sorriso. O único que pode fazer isso na atual situação – enquanto os intelectuais fritavam seus cérebros, empenhei-me no que a humanidade faz de melhor: gerar conflitos. Somos bons nisso.

E agora, vendo finalmente a grande oportunidade chegar, já posso abrir mão de uma singela relíquia. Encaro a pedra invasora e acendo meu charuto Gurkha Black Dragon, edição limitada. “No meio do caminho tinha uma pedra”, não é o que dizia a literatura antiga?

Cabe a mim, Benjamim Bernard Bezerra,

chutá-la.

(Nota: texto originalmente escrito para uma antologia “Cyberpunk”, revisado por Claudia Roberta Angst, da comunidade Entre Contos – #gratidão #recomendo).

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O Clube dos Cinco

II – Paradigmas

Sexta-feira, nove da manhã. Smiljan, Croácia… …E aqui estamos. Ainda chove lá fora. Insisto

em remoer os últimos eventos. “Estamos no limiar de um novo tempo”, é o que

dizem os jornais sobre a mesa. Jamais entenderei

como funcionam as fantasias daquele homem, mas o que presenciei, embora não possa revelar detalhes, mudará para sempre nossa sociedade. Isso é ruim? Não sei dizer.

Pelo menos Irene ainda me faz companhia. Gosto dela. E ela sabe disso. No entanto, eu, Charles Mozart, agraciado com a descoberta do segredo mais obscuro de nosso tempo, estou bêbado… E falo, neste exato momento, com você, meu amigo imaginário. Não houve solução, como já lhe disse. Esteja ciente!

Não importa. Vou continuar escrevendo. Afinal, a moral e os bons costumes sofrerão mudanças irremediáveis.

E pensar que tudo começou com uma simples investigação… Já havia lhe mostrado minhas anotações?

III – O caso Anna Franz

Segunda-feira, oito da manhã. Quatro dias atrás. Mozart & Friedrich Co. Smiljan, Croácia…

A luz solar incidia sobre as ranhuras prateadas do isqueiro importado, revelando detalhes escondidos na superfície do estimado presente, cuja função era me servir de peso para papel. Naquela manhã em particular, havia espalhado diversos documentos, aparentemente inúteis, sobre a mesa. Se me livrasse

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da papelada sem atenção, poderia comprometer casos menores.

Minha secretária bateu à porta. Um novo cliente aguardava. Agradeci e pedi que o deixasse entrar. Não costumava julgar as pessoas antes de analisar os fatos, mas, por influência de escritores contemporâneos, o fiz. O homem tinha porte atlético, boa postura, chapéu de marca conhecida e chamativos olhos verdes.

Esboçou um sorriso cortês assim que entregou o casaco à Irene. Ela retribuiu-lhe com um olhar tímido ao avistar a aliança de compromisso em sua mão esquerda. Mexeu nos cabelos cacheados e fechou a porta. Intuitiva, como sempre. Suas inúmeras qualidades tornavam-na indispensável.

Estendi a mão esquerda e aguardei. Como esperado, houve certo receio de sua parte. Era destro, ou escondia algum remorso inconsciente. Ofereci-lhe um chá e o direcionei à poltrona em frente à mesa de mogno. Metade das histórias ouvidas eram basicamente abstrações. Mas, na parte que realmente interessava, percebi um caso interessante, um desvio de comportamento incomum. Dizia que sua futura esposa, Anna Franz, costumava sumir nos finais de tarde e voltar logo à noitinha, com sorrisos disfarçados. Precisava saber se não havia nada de controverso em seus passeios vespertinos, pois se casariam em breve.

Na verdade, com experiência de mais de vinte anos no ramo, suspeitava que ele, debaixo da camada de sobriedade, gostasse desse fato. Seu sorriso amarelo denunciava leve satisfação. Irene também percebeu que havia algo ali e como ela não costumava se enganar, aceitei o caso. Talvez, mais pela curiosidade do que pelo dinheiro.

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IV – Boatos

Terça-feira, dez da manhã. Três dias atrás. Praça central de Smiljan, Croácia…

O céu estava limpo, um estranho dia frio, sem neve. Meu primeiro passo foi observar. Sentei-me no banco mais próximo às mesas de xadrez, onde homens importantes e senhores de idade discutiam frivolidades como marcas de bebida, táticas no carteado e intermináveis regras de críquete. Abri o jornal, de forma despretensiosa. Notícias sobre a feira de ciências estampavam a capa.

Depois de alguns minutos de puro tédio, ouvi algo realmente interessante. Um dos mais jovens mencionou que sua esposa apresentava manias estranhas, como sair de casa à tarde e voltar somente ao crepúsculo. O que veio a seguir foi uma típica piadinha sobre o que iria perder senão lhe desse mais espaço. Isso não me interessava, mas a saída vespertina se assemelhava ao caso em questão.

Fechei o jornal. Cumprimentei a todos com apenas um aceno e entrei na jogada. Depois de perder alguns dólares, de forma proposital, indaguei sobre o destino das respectivas madames.

“Vão assistir as peripécias daquele inventor metido a mágico”, respondeu o mais novo. Já tinha visto os panfletos sobre experiências científicas expostas ao público, bem como a aparente

teatralidade com que aquele homem divulgava suas descobertas. Mas o motivo permanecia obscuro. Por que as mulheres teriam mais interesse na ciência do que os homens? Teria de assistir ao evento de título curioso.

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V – Chuva de Raios

Terça-feira, três da tarde. Galpão de experiências de Nikolai Tesla…

Pessoas bem vestidas e maquinário fantástico passavam a impressão de uma galeria futurista. Presenciei uma sucessão de itens bizarros e um estudo completo sobre o que ele chamava de “eletricidade”. Fiquei impressionado com algumas coisas, mas duvidei de sua relevância. Afinal, para quê serviria um sapo dissecado que mexia as pernas depois de morto?

Ao voltar minha atenção para o corredor, avistei Anna Franz contemplando dezenas de aparelhos rústicos, sem demonstrar curiosidade. Deduzi que ela já estivera ali outras vezes. Discretamente, segui a moça distraída com os próprios pensamentos. O “circo científico” ocupava um espaço considerável.

Passaram-se trinta minutos quando, sem aviso, o famoso e excêntrico homem conduziu os convidados ao interior do galpão, onde havia uma enorme esfera cheia de anéis, coberta por lençóis de tecido fino. Ao retirar a proteção, o monstro tomou forma: engrenagens, fios, conectores e antenas formavam uma escultura gigante em homenagem a um deus antigo. Anna Franz, a uma distância segura, parecia prever o que viria a seguir.

Assim que o gênio impetuoso ligou a máquina, e se sentou calmamente em sua cadeira, pude sentir a comoção geral… E calafrios. As moedas que carregava no bolso vibraram. Retirei o relógio do colete e observei feixes azulados percorrendo os ponteiros. Quando levantei a cabeça e tentei me recompor, percebi o motivo de tantos murmúrios acalorados.

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A esfera emitia raios de um azul intenso, enigmático, profano e sedutor. O futuro despia-se à minha frente, sem temer os olhos incrédulos que o observavam pela primeira vez. Algumas pessoas corriam em desespero, enquanto o visionário lia, tranquilamente, um livro, ao lado de sua maior criação. Teria aberto as portas do submundo?

Em meio ao estado catatônico geral, pude perceber que Anna Franz e outras mulheres admiravam, de forma serena, a máquina dos pesadelos. Quando, finalmente, desligaram a chave-mestra, recuperei os sentidos. Meus cabelos ainda estalavam de forma assustadora.

Os que não haviam fugido parabenizaram o inventor pela grandiosa descoberta, mesmo que não a compreendessem por inteiro. Tive de sentar um pouco até conseguir assimilar tudo. Nesse meio tempo notei que, homens distintos, acompanhados por várias damas da alta sociedade, assinavam uma espécie de contrato. Que experiências nefastas estariam planejando? Anna foi a última a assinar.

Ajeitei meu cabelo, conferi se o relógio ainda funcionava e saí. Estranhamente, sentia-me bem disposto, apesar de trêmulo. Não havia nada demais no comportamento das mulheres, pelo menos naquele dia. O que mais me intrigava era o contrato. Sigilo, talvez? A resposta não demorou a aparecer, sob a forma de uma bela jovem de olhos azuis e vestimenta

discreta. Anna Franz entregou-me o contrato de confidencialidade e aguardou minha assinatura, em silêncio.

Não cheguei a ler as entrelinhas. Foi com espanto que a ouvi sussurrar, de forma quase inaudível, que precisava de meus serviços…

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VI – O caso Peter Bram

Quarta-feira, oito da manhã. Dois dias atrás. Mozart & Friedrich Co. Smiljan, Croácia…

Irene recebeu a convidada de modo costumeiro, divagando sobre as artes abstratas que compunham a decoração, como se a conhecesse há algum tempo.

Ao entrar no escritório, Anna foi direto ao ponto, ao contrário dos demais clientes. Suspeitava que seu noivo a estivesse traindo. Aquela informação me colocava em uma situação extremamente delicada. Disse que, certo dia, sua melhor amiga havia faltado à terapia e avistado Peter Bram saindo de lugares duvidosos – foi então que resolvi não revelar que também estava trabalhando para seu futuro marido.

Apesar do treinamento psicológico, precisei me esforçar para focar os pensamentos no que realmente era importante. A palavra “terapia” ressoava de forma alternada. Quando a indaguei sobre o assunto, seu comportamento mudou. O porte altivo e confiante deu lugar à vergonha e timidez. Calou-se.

Não entrei em detalhes. Dei-lhe a certeza de que a empresa mantinha todas as informações sob total sigilo. Afinal, essa era a essência de meu trabalho. Antes de partir, sussurrou uma palavra, comportamento recorrente em sua personalidade, e fechou a porta, acenando para Irene.

VII – O caso Tesla

Naquela mesma manhã, após descer ao pátio e

reorganizar as ideias, avistei uma conhecida de Anna – Clara. Tranquila e contente apreciava o belo conjunto de árvores centenárias entre os prédios.

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Caminhava por ali todas as manhãs. Parecia bem mais serena do que o de costume.

As horas foram passando, e com elas, casais, crianças e autoridades. As mulheres cochichavam segredos. Os homens, sérios, pareciam não compreender nada, o que era algo bem comum.

Clara passou na minha frente. Precisava de respostas, por isso improvisei. Segui a moça discretamente, um amadorismo necessário. Ainda fazia muito frio, mas ela vestia apenas um casaco simples. Cumprimentei alguns amigos pelo caminho, pois, devido ao sigilo, acreditavam serem os únicos a me conhecer.

Pensei ter visto Peter Bram à porta de um bar. Sua mão esquerda tremia. Era ele mesmo. Pelo visto, sentia os efeitos de quem tem problemas com álcool. Voltaria a esse caso depois. Continuei, antes que perdesse o rastro de minha suspeita.

Não demorou muito para chegar à rua que levava ao galpão de Tesla. O local me causava arrepios, ainda mais depois da última experiência. Ela entrou por uma porta desconhecida, aos fundos, provavelmente reservada apenas a pessoas importantes. Ao me aproximar, percebi que duas senhoras conferiam identidades. Um clube secreto, talvez.

O terraço do prédio vizinho não era nem um pouco convidativo, mas de lá obteria o melhor ângulo

do quadro geral, mesmo que congelasse no processo. Aguardei até que a noitinha desse o ar da graça e subi pelas escadas de emergência. A manutenção das estruturas era bastante precária. Através dos enormes vãos do telhado pude entrever o que acontecia no interior do tal clube. Esperava ver Anna Franz por lá, mas quando Irene apareceu, fiquei confuso.

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O gênio promissor, acompanhado por apenas dois ajudantes (um deles com aparência de médico), trouxe uma espécie de cama sobre rodas. Logo havia seis delas, dispostas em círculo. Presenciei, horrorizado, seis senhoritas amarradas pelos braços, um emaranhado de fios saindo dos artefatos e chaves ligadas diretamente a um diapasão gigante. Vestiam roupas simples, típicas de hospitais.

Pensei em pedir ajuda, mas a curiosidade mórbida e a adrenalina invadiram-me, travando qualquer movimento. Diante de olhares curiosos, a máquina foi ligada. Emitia ondas semelhantes à esfera anterior, mas em escala muito menor. Os corpos tremiam. Temi por Irene.

No entanto, após breve momento aterrorizante, eternizado em meu subconsciente, notei seis expressões confusas, com inigualáveis e incompreensíveis sensações de satisfação. Mais ainda, de completo êxtase… O que era aquilo, afinal? Anna era a próxima. Caminhou em direção à aparelhagem, devagar, envergonhada. Lembrei-me da expressão utilizada por ela: “terapia”.

Desviei o olhar e sentei no terraço frio e úmido, escorando as costas na proteção de tijolos. O principal motivo dos comportamentos estranhos daquela semana estava agora a doze metros abaixo de mim. O contrato de confidencialidade servia para isso.

Precisava juntar as peças.

I – Paradigmas

Sexta-feira, oito da manhã. Smiljan, Croácia… Como poderia perguntar à Irene o que ela fazia

lá, sem informar que a estava vigiando? Ela se submeteria a um vergonhoso interrogatório pessoal? E o contrato de confidencialidade? Se acusasse o

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gênio indomável sem provas, perderia a agência em virtude de calúnia. Também não poderia denunciar o clube secreto sob pena de desmoralizar a cidade inteira, destruindo casamentos no processo. O que dizer de Peter Bram? Como informar-lhe o que Anna fazia, sem comprometer sua integridade? E como dizer a ela que seu noivo era alcoólatra, sem revelar onde o encontrei?

O sussurro de Anna finalmente fazia sentido… “Eletrochoque”.

Um dia, ainda haveria estudos sobre aquela terapia incomum, quase imoral. Desconfiava que, mentes brilhantes, com o tempo, viessem a criar aparelhos de mesma intensidade, portáteis, repletos de outras funcionalidades.

Não poderia resolver meus três casos mais promissores. E ainda havia Irene. O que faria a seguir? Cinco segredos… O clube de dissimulação mútua estava oficialmente aberto. A garrafa incolor sobre os livros superiores, de aspecto rude e barato, presente de um tio distante, clamava para ser aberta…

(Nota: texto originalmente escrito para uma antologia “Teslapunk”, revisado por Claudia Roberta Angst, da comunidade Entre Contos – #gratidão #recomendo).

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Filho do Sol

Era uma mãe dedicada… Mas agora, segurando

uma tesoura banhada em sangue de outrem, já não sabia quem era.

Yosef Hamashia, perplexo com as manchas que se multiplicavam em seu traje branco, imaculado, articulou apenas duas palavras antes de abraçar a morte, ensaiando um mórbido sorriso. Miriam largou o objeto sobre a mesa, derrubando a exótica Flor de Lótus – sua planta preferida. Não contendo a fúria que consumia suas entranhas, gritou. Fitou mais uma vez o berçário de luz. Precisava ter certeza. As células solares ainda banhavam o pequeno ser. Passou o braço no rosto e enxugou as lágrimas, vermelhas de sangue.

Lá estava ele. Tão pequeno. Tão frágil. Tão… Queimado. Aquilo não era mais seu filho. Não podia ser.

***

Do alto de planícies verdejantes, ao lado de um oceano límpido e puro, encontrava-se o resultado do projeto mais ambicioso da humanidade: o Platô Solar, uma megalópole produtora de energia limpa, autossustentável. Seus arranha-céus, construídos de forma que a floresta nativa os atravessasse, constituíam apenas uma parte do equilíbrio natural. As pontes aéreas e ruas transversais acompanhavam o movimento de seus espécimes mais antigos, criando um visual único e distinto; uma nova forma de expressão artística. Sua principal fonte de energia provinha do astro-rei, o que a tornava um imenso ponto brilhante no horizonte.

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Embora as corporações estivessem cedendo espaço aos conglomerados, onde a hierarquia horizontal melhorava a distribuição de recursos, algumas empresas ainda se sobressaíam, como era o caso da Regen Solartech Inc., liderada por Heilel Ben-Shahar.

No entanto, Yosef Hamashia, patriarca da família, de gênio forte e conhecido por suas excentricidades, ainda comandava. Sua barba comprida e aspecto arcaico davam-lhe uma aparência decrépita. Corria o boato de que o velho estaria realizando experiências com seus próprios filhos. O objetivo? Completar a fórmula da equação humana.

I.

Miriam cambaleou até a sacada. Os jardins suspensos, que até um tempo atrás lhe causavam admiração, agora lhe traziam apenas asco. O cheiro de plantas nativas invadia seus sentidos sem permissão. Olhou para baixo. Estava no centésimo andar. Se pulasse, talvez caísse sobre as velas dos drones de segurança. O prédio ao lado, abandonado e consumido por uma floresta natural, não parecia nada convidativo.

Por um momento, teve pena de si mesma, e ficou pensando se a esfera de luz e calor se importava com alguma coisa. Cuspiu, torcendo para que o astro-

rei se sentisse ofendido. Sem forças, encostou as costas nos cipós e deslizou até o chão. Abraçou os joelhos. O que tinha feito?

Precisava de mais uma dose de solarina. Vasculhou os bolsos e retirou um pequeno frasco transparente, contendo um líquido amarelo, brilhante. A combinação de vitamina D, aliada a um poderoso energético natural, causava um torpor

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intenso – uma droga sintética sem grandes efeitos colaterais, exceto desorientação, mas que trazia vários problemas ao conglomerado.

Sacudiu o objeto e bateu com força na coxa esquerda. A pequeníssima agulha microscópica fez seu serviço. Balançou o pescoço. Passou as mãos nas longas mechas amarelas de seu cabelo encaracolado. Admirou sua própria negritude. Sorriu. Gemeu. Gargalhou. E então não sentiu mais nada.

Do bolso de seu traje térmico, já não tão branco quanto gostaria, retirou uma tela fina e correu os dedos trêmulos sobre o noticiário.

O Instituto Fraunhoffer prevê para hoje tempo aberto, sem nuvens, com bastante luz direta na região oeste do Platô Solar. Haverá múltiplas auroras na longitude sul, pois uma tempestade elétrica…

Pinçou a previsão do tempo e a jogou fora. Novas informações surgiram.

O conglomerado livre Regen Solartech Inc., comandado pelo empresário Heilel Ben-Shahar, filho adotivo do famoso geneticista Yosef Hamashia, continua sua impopular pesquisa sobre células-tronco auto-regenerativas, movidas por um mecanismo nanotecnológico, batizado precocemente de “fórmula da eternidade”. O composto experimental, testado anteriormente em cobaias, vem produzindo resultados satisfatórios, segundo assessores de imprensa do próprio geneticista.

No entanto, o conglomerado vem sendo alvo de duras críticas por parte de seus acionistas, devido ao crescente boato de que a empresa estaria utilizando cobaias humanas, oriundas de contratos ilícitos com famílias consumidoras da conhecida droga solarina.

Após o apontamento inicial realizado pelo jornal científico “The Sun”, Heilel Ben-Shahar emitiu uma nota esclarecedora, informando que fará todo o

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possível para desfazer os efeitos negativos desta pesquisa impopular e antiética, arquitetada principalmente por seu progenitor. Na mesma nota ainda informou que pretende fortalecer as relações com a população, continuando a gerar tecnologia limpa, com foco na eco sustentabilidade. As ações…

Jogou o aparelho nas folhas de trepadeira. O artefato se espatifou, deixando para trás verdades, mentiras e cristais de quartzo. Levantou-se num salto ao perceber que dois elevadores panorâmicos subiam. O zunido baixo a confundiu. Pensou ter ouvido um choro.

Voltou ao escritório. Pulou o corpo estirado ao chão, desviando o olhar. Se aproximou novamente do berçário. Era seu filho! Seu! E de mais ninguém! A luz quente ainda banhava sua pele escura. Pareceu mexer os bracinhos. Com a solarina ainda dispersando efeitos em sua corrente sanguínea, não sabia se aquilo era real. Queria segurá-lo. Confortá-lo. Dizer-lhe que havia alguém o esperando ali fora. Ao ouvir um choro mais forte, não se conteve. Arrancou a enorme tela da parede, um dos itens mais caros daquela decoração, e a jogou sobre a cápsula maternal. Um ato desesperado, mas em vão.

A parede deslizou suavemente, revelando três cidadãos distintos: um homem alto, forte, trajando um colete branco sem mangas e duas mulheres jovens, de roupa social igualmente branca,

ostentando uma longa faixa amarela dos ombros aos pés, responsável por capturar a luz natural e convertê-la em energia para suas lentes cibernéticas. Não se surpreenderam ao ver o corpo, pois o sistema já os havia alertado sobre o ocorrido. O homem retirou do braço mecânico uma pequena cápsula de um líquido viscoso cinza e o injetou no braço de Miriam, que não revidou. Sua energia vital se esvaiu

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em segundos. Caiu, de frente para o corpo. Os olhos do falecido a fitaram. A equipe registrou seu chip e retiraram Yosef da sala.

“M… eu… Fi… lho”, murmurou a mãe, esforçando-se vigorosamente para recuperar o controle e ouvir o que diziam. “A coitada está viciada em solarina”, exclamou a mais velha. “Quem diria que a própria esposa o mataria”. O homem se interpôs. “Não estou surpreso. Dizem por aí que ele fazia experiências com seus próprios filhos. E esse – apontou – não deve ser o primeiro. O velho tinha uns costumes bizarros”. Encararam a enorme estátua de uma gárgula, no canto da sacada, esculpida em mármore antigo, segurando uma lança e um escudo. O silêncio foi a resposta mais sensata.

Esposa? Não se lembrava daquela informação. Na verdade, não se lembrava de quase nada antes de chegar ali. “Ela vai passar um bom tempo na Inatividade”, ouviu, claramente.

Emitiram uma ordem simples. Uma sombra disforme se abaixou ao sair do segundo elevador. Os painéis solares, cuidadosamente alinhados em seus braços, indicavam sua natureza. Seus inexpressivos olhos artificiais percorreram a sala. Suas feições não demonstraram qualquer emoção, apesar de sua aparente forma humanoide. Segurou Miriam delicadamente.

A aparelhagem foi desconectada. O homem

deslizou a mão sobre um painel cheio de listras e arrastou o vermelho carmesim até o amarelo opaco. A cúpula superior se recolheu, estendendo um tapete de boas-vindas ao astro-rei.

Assim que entraram no elevador, ouviram um choro.

Um clarão irradiou suas faces. Miriam se contorceu, recuperando parte da coordenação motora.

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Os diminutos espelhos de quartzo, fragmentos de sua explosão emocional, refletiram um bebê forte e sadio em cada um de seus milhares de pedacinhos – a cápsula do berçário finalmente se abria. A mais nova se aproximou. Retirou as fortes amarras, afastou as agulhas e desconectou o capacete neurocirúrgico. Acomodou-o em seus braços.

Lá estava ele. Seu filho. Completamente saudável. Perfeito. Com uma auréola acima da cabeça, uma visão sublime que durou poucos segundos. Os outros a teriam visto?

“Qual o nome dele?”, perguntou a moça. “A mãe deve saber”, disse o outro.

Miriam não fez questão de enxugar as lágrimas. Finalmente compreendia as últimas palavras de seu falecido marido. Quando pudesse, enfim, se mover, já sabia que nome daria “à luz do mundo”.

II.

Yeshua Hamashia andava sobre as águas do Platô Solar. Buscava uma rara Flor de Lótus, espécie preferida de sua mãe. Tornara-se um homem bonito, alto, moreno, agraciado com profundos olhos verdes. Era bastante cauteloso, mas conseguia manter a simplicidade ao conversar. A maioria o conhecia pelo sobrenome, e isso trazia apenas solidão.

Era um filho dedicado… Mas agora, tendo uma mãe presa, diagnosticada com um distúrbio agressivo de personalidade e mantida sob tratamento, tinha de se contentar com seu irmão. Quase não se viam, mas quando isso acontecia, geralmente o encontro acabava em pequenas discussões sobre direitos, deveres e privilégios. Já não sabia quem era.

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Heilel Ben-Shahar estampava os noticiários locais. O grande embaixador da energia limpa, transformando antigos loteamentos industriais em imensos parques tecnológicos, merecia destaque. Chegara a afirmar categoricamente a descontinuidade do programa “fórmula da eternidade”, pesquisa que dera a benção (não divulgada) ao seu irmão mais novo, Yeshua. Todavia, isso ainda o incomodava. Afinal, a fórmula não havia sido testada em adultos…

Quando Yeshua finalmente encontrou a exótica flor, plantada de forma incorreta, percebeu o motivo que levava sua mãe a gostar tanto delas. Infelizmente, parecia que alguém simplesmente a havia jogado ali, sem qualquer cuidado. Retirou um retângulo do bolso, o estendeu sobre a planta e aguardou a transformação. Ao longe, pontes transversais desenhavam um curioso infinito. Meditou por um tempo. A Flor de Lótus, finalmente envolvida por um vidro transparente, ganharia uma nova casa.

Rejeitou a carona do Chrysler Solarmatic e partiu, andando. Um de seus passatempos favoritos era apreciar a natureza tomando seu lugar de direito, encobrindo até o mais alto dos arranha-céus.

Pouco mais de uma hora depois, voltava ao prédio onde sua mãe era mantida sob observação. Do elevador vislumbrou a grande praça central do Platô Solar, exuberante em sua flora e singela em sua construção retrofuturista. Agradecia seu irmão por ter

deixado sua mãe por perto, no nonagésimo andar, mesmo após o incidente. A Inatividade, um enorme andar psiquiátrico, visava resgatar o espírito de convivência nos indivíduos errantes.

O vigia se empertigou ao avistar Yeshua saindo do elevador. Dificilmente encontravam os filhos de Hamashia pelo complexo. Entrou com um código

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simples, baseado em harmonia de cores e contraste, e estendeu o braço.

Yeshua encontrou logo o bloco pretendido. A Guardiã já o conhecia muito bem. Ensaiou um contato visual. As diretivas de humanização tornavam mais amigável o convívio com inteligências artificiais. Ao entrar na redoma designada à Miriam e lacrar a imensa porta branca, caminhou lentamente até o jardim botânico, onde raios de Sol batiam por frestas calculadas de maneira engenhosa. Sua mãe preparava a terra do pequeno zigurate com as próprias mãos – o contato pessoal era mais eficaz, além de prazeroso.

Ao avistá-lo, sorriu. Pensou em abraçá-lo, mas foi impedida por um leve espasmo. Todo dia Yeshua presenciava a mesma cena, consternado. Sua mãe costumava esquecer das coisas, devido aos traumas sofridos. Entretanto, devia sua vida a ela.

Colocou a Flor de Lótus no chão, ajeitando suas pétalas. O vermelho rosado coloriu aqueles olhos tristes. Não havia mais lágrimas. Apenas gratidão. Yeshua passou a mão em sua face. O cheiro repousante daquela espécie reconfortava. Fecharam os olhos e inspiraram, lenta e profundamente. Sorveram o líquido trazido pelo servo mecânico.

E foi a última coisa que fizeram juntos.

III.

Heilel Ben-Shahar jamais admitiria, mas sentia

falta de sua mãe adotiva. Era um irmão dedicado… Mas agora,

segurando uma cápsula de solarina em suas mãos, já não sabia quem era. Talvez, um deus.

Criava vida onde não existia, fornecia energia solar e tecnologia limpa a todos, controlava a estrela

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vizinha ao seu bel prazer, dispunha de uma infinidade de servos leais, bem como mordomos mecânicos, e possuía uma vista privilegiada. Além disso, sentava no lugar mais alto de Platô Solar, no centésimo andar do arranha-céu da família Hamashia, sendo agraciado com uma visão sublime. O que mais um deus poderia querer?

A maldita eternidade. Uma resposta que não encontraria num frasco vazio de solarina. Seu pai estava errado. A busca pela equação completa traria apenas desequilíbrio. Se todos soubessem que a fórmula da eternidade funcionava, o caos se instauraria de forma imediata. Quantas famílias se reuniriam às portas da Regen, implorando que aplicassem o composto em seus filhos recém-nascidos? Formariam uma nova doutrina, o mesmo caminho que levara seus antepassados à destruição. Não! Não deixaria isso acontecer. Yeshua não podia ser imortal.

Cerrou o punho. A tela holográfica tremeluziu, exibindo o resultado da pesquisa recém-concluída.

Na literatura clássica de muitas culturas asiáticas, a Flor de Lótus simboliza elegância, beleza, perfeição, pureza e graça, sendo frequentemente associada aos atributos femininos ideais. Embora ainda não se consiga explicar sua fascinante característica de repelir micro-organismos e partículas de pó, sabe-se que estas plantas possuem o efeito de narcótico, causando um sono pacífico e amnésia a quem as ingerir. Em alta concentração torna-se letal.

O que um deus faria? Traria a reconciliação, mesmo que isso custasse a vida de seu primogênito.

E, por uma vontade maior, assim se deu… Envergonhado pelas terríveis lembranças,

largou o frasco vazio dentro do vaso de flores e saiu, concentrado. A bela Flor de Lótus o encarou, como se

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pudesse fazê-lo pagar pelos seus pecados. “A vida de um em troca da vida de muitos”. Onde havia lido aquela expressão? Recolheu o blazer e passou a mão nos controles da parede, de cima para baixo.

O amarelo opaco trocou gradualmente de cor, até assumir um tom carmesim, obscuro. Fora da janela, a gárgula, envolta em espinhos, parecia sorrir. Suas mãos, banhadas em vermelho na escuridão, tremiam.

De forma bizarra, sua face se contorceu. Desgrenhou os cabelos, deixando livres os implantes em suas têmporas. Arqueou os ombros. Digitou uma senha. A protuberância mecânica e dourada, “presente” de seu pai, agora solta e pendendo de seu cóccix, teclou o andar desejado: subsolo.

Contemplou, com certo prazer, os últimos raios de Sol. Novamente via-se livre das amarras mundanas.

Sorriu ao ver o tubo amarelo gigante, uma ode ao “portador da luz”. Ali, despia-se de sua falsa máscara de bom moço e revestia-se de seu verdadeiro eu. Ali, onde o Sol não batia e ninguém o julgava por seus atos, era a lança e o escudo, o Alfa e o Ômega, o Princípio…

… E o Fim. O maquinário estremeceu. A “fórmula da eternidade”, injetada aos poucos em seu próprio corpo, finalmente produzia efeitos. Seu sangue ferveu. A pele queimou. As protuberâncias

foram recobertas por uma fina camada de tecidos e músculos. Rosnou de dor. Vociferou. A aceleração repentina deu-lhe um ar grotesco, desfigurado. Suas mãos socaram o reflexo escarlate, disforme. Ali, onde a escuridão reinava, não havia espelhos. Derrubou os protótipos.

O corpo de Yeshua, pendurado numa coluna, deu seu provável último suspiro. “Obrigado, irmão.

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Seu sacrifício trouxe a ordem e o equilíbrio ao nosso mundo”, disse a voz gutural de Heilel. O prédio inteiro apresentou rachaduras, do distante centésimo andar até o subsolo, sendo abalado por um tremor indistinto. Drones caíram, autômatos enlouqueceram, inteligências artificiais se desligaram e comportas, tanto acima quanto abaixo, se abriram.

Aquele dia seria bastante produtivo.

Epílogo

Sem os principais cabeças por trás da Regen Solartech Inc., a empresa se dissolveu, tornando-se parte do conglomerado oficial e apenas mais uma engrenagem do grande relógio solar. Curiosamente, a droga solarina desapareceu assim que este fato se consumou.

Entretanto, três dias após o fatídico evento que passou a ser conhecido como “A Atividade”, empresários afirmaram ter visto uma sombra semelhante à Yeshua Hamashia no último andar do arranha-céu da Regen, ao lado de uma gárgula com a cabeça destruída, sendo usada como tapete para seus pés. Parecia portar asas mecânicas, de um brilho intenso que lembrava ouro.

Naquela mesma semana, astrônomos registraram uma mancha escura na superfície do Sol. Algo havia sido jogado no astro-rei com uma

velocidade incrível. Heilel Ben-Shahar nunca mais foi visto desde

então.

(Nota: texto originalmente escrito para o desafio “X-Punk” da comunidade Entre Contos, com a temática “Solarpunk”).

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Recomeço; um registro do início do Fim

Não se preocupe. Tudo, um dia, havia de

chegar a este ponto. Só não esperava me unir ao cosmos desta forma. Mas deixo-lhe um consolo: em cada raio de sol, em cada brilho invadindo seu quarto, em cada novo jardim prometido, lá estarei. Nunca esqueça disso!

Adeus! Sempre te amarei, mesmo que, no final,

me transforme em poeira de estrelas… ALERTA DE COLISÃO! ALERTA! O alarme soou novamente. Vou ignorá-lo, mas

está na hora. No entanto, antes de partir, gostaria de deixar-lhe um registro dos acontecimentos. Quando as ondas de rádio atingirem o planeta, conte aos meus futuros netos o que descobrimos. Diga-lhes que seu avô era um homem de fé.

Encontramos na Nebulosa do Caranguejo algo além da compreensão. As forças gravitacionais envolvidas eram (e são) incalculáveis. Tomamos as devidas precauções. Mas a mente humana é pequena demais para os mistérios do universo. Não prevíamos aquilo. Ainda estou perplexo e tentando manter a cabeça no lugar.

Não sei como este relato chegará a você. Fragmentado, talvez. Devido a isso, utilizando o restante de minha sanidade, resolvi enviá-lo em pequenos parágrafos. Não se preocupe. Você entenderá.

Chegamos à orla interior, mesmo com os avisos persistentes. O quadrante inteiro está cercado por nuvens, de formas variadas. Nosso veículo começa a apresentar rachaduras. Quanto à tripulação… Permanecem vagando entre dois extremos psicológicos: pavor e admiração. Os dados nos dizem que existem vários tipos de gases ao nosso redor,

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como carbono, nitrogênio, oxigênio e um que não consegui identificar. Então…

Estou em meio a devaneios sem sentido, como se o próprio tempo não existisse. Algo persiste em afetar minha percepção. Essas leituras estão mesmo corretas? O que estamos fazendo?

Espere! Meu bom Deus, como não havia percebido? A luz… O enxofre!

Devo estar sofrendo algum tipo de alucinação. Veja! Um brilho etéreo percorre a tela! O indescritível e colossal horizonte pisca para mim. Uma onda massiva acaba de se formar. O vento estelar sopra e arrasta consigo uma escuridão pulsante, um elemento literalmente vivo, quase…

… VERMELHO… ALERTA VERMELHO! ATENÇÃO! FALHA NA ESTRUTURA DORSAL. A INTEGRIDADE DA TRIPULAÇÃO ESTÁ COMPROMETIDA!

Desculpe. Tudo isso ultrapassa o limite do inacreditável, do inconcebível. Estou fazendo associações desconexas, mas incrivelmente familiares. O que diziam os textos sagrados? Uma criatura celestial seria aprisionada em local semelhante – um abismo – no fim dos tempos. E estamos a mais de seis mil anos-luz da Terra. Relatividade!

Está acontecendo! Preciso me acalmar. Foco! O capitão insiste.

Devemos cumprir nosso objetivo, a qualquer custo: registrar o conhecimento perdido de eras passadas. Se você pudesse ver! As ondas, o mar! Uma pérola de trinta quilômetros no meio do oceano – uma estrela de nêutrons! E, em seu interior…

***

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(Naquele instante, os motores pararam. A fusão cessou. Foram puxados para dentro do quadrante inexplorado, como se pouco a pouco uma mão invisível os estivesse arrastando em agonia para o interior da nebulosa. Uma formação de nome tão comum, para um evento de tal magnitude. A última transmissão do único ser humano ainda lúcido voltou a ser enviada, através das fronteiras desconhecidas do espaço).

***

O que somos nós? Um mísero filamento de

carbono perante o vazio do vácuo? Um grão de areia no agitado mar de forças desconhecidas? Sei apenas o que sou – um homem em busca do conhecimento que pulsa nas entranhas do universo. E tive o privilégio de ser agraciado com uma revelação.

O que lhe aguarda, valerá uma vida. Acredite! Infelizmente, não a verei novamente. Talvez

nunca mais. Deixo este estranho relato para que saiba que, onde você estiver, estarei olhando… Mesmo que das profundezas de uma nebulosa. Difícil de acreditar, não é mesmo?

Explicarei, em seu devido tempo. MENSAGEM SENDO TRANSMITIDA.

Fim do início do registro um; Recomeço

(Nota: texto originalmente escrito para o desafio “Fim do Mundo” da comunidade Entre Contos, sob o experimento de um palíndromo – leia os parágrafos de baixo para cima e contemple uma nova história).

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M

Entre por sua própria conta e risco;

mas a conta fica

I. O Passado

Dan ignorou o letreiro, ajeitou a Pulsar no cinto, recostou-se à mesa do bar e apontou sobre os ombros do autômato.

— Eu quero aquela! A figura alta, desajeitada, portando um cinto

com três armas e vestindo trajes de cowboy, aguardou. Sacudiu a areia do chapéu sem se importar com o chão. As lentes artificiais zuniram, realizando cálculos precisos.

— O senhor deseja a garrafa lacrada? — Com certeza! — Lamento informá-lo, senhor, mas é um item

decorativo. Está ali desde que o Espelunca Espacial abriu, há mais de um século. Devo protegê-la a todo custo.

— Isso explica as faíscas em suas juntas. — Correto, senhor. Dan não gostava de ser contrariado, ainda

mais por um maquinário antigo. Virou-se, jogando

um punhado de amendoins na boca. Reptilianos jogavam cartas, octópodes se embebedavam e as algas do imenso aquário, hipnotizadas pelo neon, realizavam mitose. Nojento; mas inofensivas. O elemento mais perigoso se encontrava ao fundo, envolto em escuridão – Dan reconheceria aquelas botas antigravitacionais em qualquer lugar. O caçador de recompensas cochilava. Tinha de sair com a

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relíquia antes que o caos se instaurasse. Retirou a Pulsar do cinto e apontou para o autômato. Um azul cintilante irradiou sua face.

— Sabe o que é isso, companheiro? — Não, senhor. — É a Pulsar, minha segunda melhor amiga

neste e em qualquer universo. Sabe o que ela faz? — Não, senhor. — Nem eu. Sabe por quê? Nunca precisei usá-

la. – Mentiu. — Mas garanto que, com um nome desses, o estrago será a menor de suas preocupações. Agora me passa aquela garrafa, vai.

Dan encostou o dedo no gatilho. A luminosidade atraiu olhares indesejados. Prestou atenção ao tilintar característico de botas magnéticas, seguido por um som bastante conhecido – o engatilhar de uma espingarda térmica. O caçador havia acordado.

— Quer saber? Que se dane! Pulou sobre o desajeitado autômato e

arremessou um punhado de garrafas baratas nos reptilianos. Foi o estopim para a troca de acusações entre as espécies. Os lagartos sacaram suas pistolas arcaicas e começaram a atirar – somente os saurianos perguntavam primeiro. Os octópodes saíram do estado de torpor, proporcionado pela especiaria da casa, e pularam sobre os indivíduos. Dan aproveitou a confusão e agarrou a garrafa antiga, de um líquido

cintilante, surpreendendo a lata velha que o encarava sem reação. Por um breve momento, sentiu pena.

— Você quer uma aventura de verdade, amigo? — Depende. — Vem comigo! Vou te tirar dessa pocilga. O autômato pareceu chateado, mas se

interessou pela proposta. Dan retirou do bolso uma pequena esfera negra e a jogou próximo à entrada.

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— Assim que ver um clarão, corre! Uma forte ventania abriu as portas

do Espelunca Espacial, no exato momento em que um sol em miniatura explodia em cores exuberantes. Uma majestosa carruagem os aguardava.

— O que é isso? — É Viranda. Minha primeira e melhor amiga

neste e em qualquer universo. A nave tecnorgânica, de três vértices e grandes

veias pulsantes, flutuava a poucos metros do chão. A enorme esfera em seu interior, uma pérola do oceano espacial, só se abria a um toque específico. Dan retirou a luva e encostou os dedos na estrutura líquida. A esfera vibrou como um diapasão. Uma voz feminina se fez ouvir.

— OLÁ, QUERIDO. ENCONTROU O QUE PROCURAVA?

Lá dentro, o caçador desviava de tiros, cadeiras, garrafas e líquidos estranhos projetados por apêndices.

— Encontrei, mas precisamos sair daqui! — QUEM É ESSE? — Um novo amigo. Abre logo! — SÓ SE PEDIR COM JEITO. — Anda! — NÃO SOU SUA ESCRAVA. SOU SUA

ESPOSA. Os olhos do autômato o encararam, numa

expressão de dúvida. — É uma longa história. Envolve um planeta

desconhecido, uma rainha, sua filha, um cara que tocou onde não devia... Fica pra outra hora… Por favor, Viranda!

— AGORA SIM! A esfera se dividiu. O caçador se desvencilhou

dos octópodes e segurou um lagarto pelo pescoço. A

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ventania não o intimidou. Jogou o pobre réptil no solo batido e acompanhou a trajetória do veículo. Dan, apreciando o que o destino lhe reservava, jogou-se na confortável poltrona gelatinosa, materializada assim que a esfera se fechou.

— Ufa! Essa era a última! — O senhor não vai abrir? Viranda se adiantou. — ELE NUNCA ABRE, APENAS COLECIONA.

UMA OBSESSÃO, EU DIRIA. — Correção! Um legado. Dan analisou os quatro braços do autômato,

danificados pela ação do tempo. — Você precisa de um nome. — Preciso voltar. — Não seja tolo. O seu dever é proteger a

garrafa, certo? Enquanto a garrafa estiver comigo, você deverá manter-se por perto. Não é lógico? Agora, vamos ver… que tal “Bloody Mary”?

— VOCÊ VAI MESMO NOMEAR UM SERVIÇAL COM NOME DE VODKA?

— E daí? Ele pode ser o que quiser, até uma dançarina vitruviana. Agora, seja boazinha. – Cutucou seu novo amigo. – Daqui temos uma visão privilegiada. Abra a panorâmica, por favor.

Viranda possuía a velocidade de um cruzador. Já se encontravam em pleno espaço profundo, quando Dan lhe fez o pedido.

A parede branca se desfez, revelando um enorme tapete de estrelas radiantes. Logo abaixo, a atmosfera arenosa do planeta sem nome os encarava com seriedade. Acima, a nebulosa Nirvana banhava o interior de seus olhos com cores infindáveis. Uma visão sublime que o autômato buscava há anos, sem sucesso. Sentiu-se atraído pelo forte impulso de transgressão.

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— Impressionante, não acha? — Sim, senhor. — Chega desses formalismos. Me chame de

“chapa”. — Chapa? — Claro, meu chapa! Deu-lhe um tapinha nas costas. — QUERIDO… O painel escureceu de repente. Uma nave de

guerra militar, semelhante a um enorme tridente enferrujado, eclipsou a visão.

— Merda! Podemos desviar? — NÃO. EU LHE AVISEI ANTES: A

GRAVIDADE NESTE PLANETA É MUITO MAIS FORTE. MAS VOCÊ É TEIMOSO!

— “Eu lhe avisei, eu lhe avisei”… Criatura irritante.

— EU OUVI, HEIN! — Então? — TEMOS DE VOLTAR. — Ah, claro, sem problemas. Pra onde eu

acabei de tirar sarro com a cara dos reptilianos, octópodes e algas. Nem vão se importar. Aliás, as algas não. Devem estar hipnotizadas até agora…

— É A ÚNICA SAÍDA, DOCINHO. Bloody Mary levantou um dos braços, pedindo

a palavra. Dan fez uma cara de paisagem. Vendo que não houve contradição, prosseguiu.

— Se me permitem uma sugestão… O bar foi construído em cima de um Bunker. Pode ser um bom esconderijo.

— De que tamanho é? — Cabe uma nave inteira. — Serve. — NÃO ESTOU A FIM. — Como assim?

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— A AREIA VAI ESTRAGAR MINHA PELE. JÁ FIQUEI TODA ARRANHADA SÓ DE BUSCAR VOCÊ NAQUELE FIM DE MUNDO.

— Eu mereço… Se o caçador começar a atirar, não vai ser pior?

— TALVEZ. Dan respirou fundo. — Querida, se você fizer o que sugerimos,

prometo que – dependendo do resultado – lhe dou aquele banho de óleo que tanto gosta.

— PROMETE? — Claro! Bloody Mary interveio. — Isso não seria uma conversa imprópria, em

minha presença? Foi interrompido pelo aumento repentino de

velocidade. Estavam em queda. O “rosto” da nave perfurou a atmosfera, deixando para trás monstruosas células cancerígenas. A esfoliação lhe caia bem. Dan, além da cara de enjoo, mal conseguia tampar a boca. Cartilagens se materializaram ao seu redor. Estavam bem protegidos.

Logo atrás, o ameaçador tridente os acompanhava. As nuvens de tempestade se encarregariam de ocultá-los. Deram um rasante sobre inúmeras construções piramidais, erguidas há milhares de anos por um povo antigo. O velho bar se encontrava logo adiante, com um visual despojado e

retrofuturista, cheio de peças mecânicas espalhadas como ornamentos, destoando completamente do cenário ancestral.

A parada foi tão repentina que Dan não conseguiu mais se segurar. A inércia ainda atuava. Bloody Mary não perdeu a chance de constatar o óbvio.

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— Agora compreendo porque o senhor não bebe.

A nave permaneceu flutuando a poucos metros do local. No quesito velocidade, ninguém batia os tecnorgânicos. Desceram. Dan escorou-se na porta. Um pedaço de vidro passou rente à sua orelha direita. A briga ainda continuava, aparentemente, sem nenhum motivo.

— Há outra entrada? — Somente pelos fundos. — Ok, então. Mas antes que Dan pudesse sacar seu pequeno

revólver plasmático, sentiu os pelos do braço ouriçar. O rugido colossal de uma besta estremeceu até o reptiliano mais valente, que não largava sua trinca de ouro por nada. Bloody Mary não parecia surpreso.

Uma imensa tartaruga mecânica, carregando o bar em suas costas, surgiu sob seus pés. Apoiaram-se nas protuberâncias. As formações naturais mais pareciam torres de controle, surgindo de ambos os lados. O tremor durou tempo suficiente para que os baderneiros entendessem que deviam ter deixado o bar há muito tempo. A poeira abaixou. Após alguns minutos de histeria coletiva, Dan pôde finalmente compreender o que era aquilo tudo.

— Com mil cracas espaciais! Porra, Blood Mary! Você podia ter avisado que o maldito BUNKER era um ser VIVO!

— Autômato, na verdade. — Como vamos entrar nessa coisa? — Eu disse. Pelos fundos. — Pelos f… Ok, então. No primeiro passo do gigante, perderam o

equilíbrio. Assim que se levantaram, puderam acompanhar a aterrisagem seca e abrupta do tridente espacial de seu perseguidor. As três pontas da nave

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fincaram o chão, atravessando inúmeras camadas da crosta desnuda da tartaruga mecânica. Como a nave não se desmanchava? Dan ajeitou o cinto (Aquela tecnologia, afinal, valeria a pena).

Foram derrubados novamente pelo moroso passo da criatura. Dan imediatamente reconheceu a silhueta atrás da misteriosa sombra de casaco marrom, pele escamosa e botas antigravitacionais… Era Viranda, atravessada pela nave inimiga, em três partes cuidadosamente escolhidas. Blood Mary parecia nervoso.

Dan pôs-se de pé. Franziu o cenho, apertou os olhos e cuspiu no chão. Sacou a Pulsar em um único movimento e mirou a face alheia.

— Ei! Sabe o que é isso, companheiro? O caçador não se moveu. Continuou. — É a Pulsar, minha segunda melhor amiga

neste e em qualquer universo. Sabe o que ela faz? A luminosidade o fez recuar, de forma

involuntária. Bloddy Mary se afastou, enquanto ouvia o mesmo discurso. Agora era pra valer.

— Nunca precisei usá-la. Mas garanto que, com um nome desses, o estrago será a menor de suas preocupações...

Dan, furioso e seguro de si, apertou o gatilho.

II. O Futuro

Há cem anos-luz dali, em seu planeta natal, um homem decidido finalmente colocava a última peça sobre um enorme esquife de gelo, num memorial reservado aos seus familiares e amigos, junto às outras centenas de relíquias engarrafadas. Adentrou a câmara funerária uma última vez.

— Pai… Finalmente recuperei o que era seu.

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Antes de lacrar o túmulo, devido a corrente de ar, um polímero semitransparente caiu do bolso do falecido. Dan leu a escrita precisa e sorriu.

— “Mas a conta fica…”.

III. O Presente

“O prato frio é uma vingança que se come quente”, dizia a máxima estelar…

Bloody Mary estava absorto. Não sabia por quanto tempo estivera ali, parado, olhando para a porta do Espelunca Espacial. Mas assim que uma figura alta, desajeitada, portando um cinto com três armas e vestindo trajes de cowboy entrou, soube, naquele instante, o que aconteceria a seguir. Não entendia como. Apenas sabia. Dejavú mecânico era novidade por aquelas bandas.

Dan ignorou o letreiro, ajeitou a Pulsar no cinto, recostou-se à mesa do bar e apontou sobre os ombros do autômato.

— Eu quero aquela! Ainda em dúvida, tentando refazer seus

últimos passos, o autômato agarrou a garrafa laranja, de um líquido cintilante, e a entregou nas mãos alheias, sem cerimônia.

— Obrigado! Geralmente preciso ameaçar antes. Como posso chamá-lo?

— Bloody Mary.

— Gostei do nome. Nos vemos por aí! Largou o chapéu e foi embora, deixando uma

pequena pepita de ouro em cima do balcão. Bloody Mary a pegou, passou pelos reptilianos que recém iniciavam a canastra definitiva e se dirigiu aos fundos, onde uma sombra distante cochilava. Chutou seus pés.

— Aqui está seu pagamento.

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O homem levantou o chapéu, ajeitou a máscara e abriu a válvula de oxigênio. Uma leve gargalhada escapou pelas grades do inalador. Sorveu o uísque em um único gole.

— Ele enganou você direitinho, não foi? Bloody Mary ficou paralisado. Sua mente

procurava entender o que acontecia. O caçador de recompensas puxou uma cadeira e lhe ofereceu assento.

— Deixa eu desenhar pra você. De quem você acha que ele tirou essa pepita?

— Não sei. — De mim! E como se isso não bastasse, ainda

teve a coragem de roubar minha nave. Ele usou a Pulsar, não foi?

— Como você sabe? — A Pulsar, meu ingênuo anfitrião, tem o poder

de alterar o espaço-tempo. Só pude confirmar isso tarde demais. O problema é que o deslocamento de energia causa amnésia temporária a quem for exposto ao seu raio de ação. – Aguardou a expressão de dúvida. Continuou. — Sim, o tempo é rebobinado. Somente o portador não sofre as consequências. O tempo volta, mas os efeitos colaterais permanecem.

— Então, o tempo voltou? — Você é surdo? Tem sorte de ainda estar

inteiro… O trabuco realmente funciona! Até agora só tinha ouvido boatos e teorias malucas. – Ajeitou o

aparato e coçou o nariz. — Droga de máscara regenerativa!

— Pensando bem, a culpa é sua. Você matou a “esposa” dele!

— Ah, isso é verdade. Chame de “incentivo”. Ele deve ter rebobinado os acontecimentos até o início desta manhã. Você ficou parado ali, durante horas, fazendo inveja à mobília. Tive que me virar com seu

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estoque de emergência. – Coçou o queixo. — Aquela maldita rajada me deixou neste estado lamentável. Nem meu rosto eu sinto mais! Escute o que lhe digo! Os humanos são uma raça bastante perigosa.

— Mas ele não parecia uma má pessoa. — É disso que estou falando! Não percebe? Ele

o usou! Onde está a relíquia da casa? Afinal, qual era seu verdadeiro interesse naquele sujeito?

A conversa morreu ali. Um curto-circuito nas letras externas enfumaçou o hall de entrada, fato ignorado por todos, exceto as algas. Ficaram durante vários minutos apreciando o vazio contemplativo. O caçador entornou a garrafa, ignorando as queimaduras. Fez um brinde.

— Aos meus amigos imbecis, mas, principalmente, à minha falta de sorte!

Pelo menos ainda tinha a pepita de ouro. Bloody Mary foi o primeiro a quebrar a monotonia.

— Como é possível estar casado com uma nave?

— Ah, meu amigo. Prefiro não saber a parte prática. Isso é bizarro demais, até pra mim.

Logo ao lado, um reptiliano completou o jogo e comemorou cuspindo… na mesa errada. O líquido gosmento caiu sobre a garrafa, provocando uma reação química. O caçador se levantou, agarrou o cuspidor pelo pescoço e o lançou sobre os octópodes. Os reptilianos sacaram suas armas e uma nova

confusão teve início; a terceira do dia. Bloody Mary se afastou. Se pudesse suspirar, o

teria feito. Desviou de algumas balas, de uma cadeira quebrada e de duas algas roxas, voltando ao seu posto, onde podia lavar os copos em paz e manter o caixa em dia. Afinal, mesmo que poucos soubessem, ele próprio era o dono daquela pocilga. Fazia-se de sonso apenas para garantir seu meio de vida, e

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porventura, ganhar respeito. Vislumbrar o espaço sideral e quase tocar Nirvana compensava o esforço. Aquela teria sido uma boa chance de deixar tudo para trás. Mas quem cuidaria de sua pobre tartaruga?

Recolheu o chapéu deixado sobre o balcão e o encaixou perfeitamente sobre a cabeça. Por hora, estava satisfeito. Se bem que, com todos aqueles enfeites e penduricalhos, ao olhar-se no único espelho inteiro, parecia algo mais – uma dançarina vitruviana.

Lá fora, o slogan em neon brilhava, anunciando o fim de mais uma semana atribulada nas terras áridas do fim do mundo, iluminando, de forma plena, a verdadeira e inegável relíquia de tempos imemoriais – seu velho e aconchegante bar. (Nota: texto originalmente escrito em um breve momento de insanidade).

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O Apanhador

— Azul, lilás, vermelho, laranja, amarelo. O que

são esses cristais, Isalla? — São presentes do pai dela, Janilla. — Ele não foi sorteado há três anos? — Foi. — O coitado nem sabe que ela faleceu. Quantos

anos Lailla faria hoje?

— Sete… A radiação aumentou muito no último triênio.

— Vai colocar os cristais no túmulo? — Claro que não! Conheço uma pessoa que

paga bem por eles. — Que cruel! — Cruel é vivermos embaixo da terra, que nem

mortos-vivos. — Falando nisso, tenho ouvido boatos sobre

monstros na superfície. — Tenho medo é dos monstros daqui debaixo

mesmo. — Tá rabugenta hoje, hein! — Desculpe. Lailla era como uma filha pra

mim. O subtrem já chegou. Vamos? — Sabe, ainda acho que um dia descobriremos

o motivo… — Pare de tagarelar e suba logo! Ou quer ir a

pé até o Sepulcro? — Lá em cima? Nos prédios? Nem pensar.

***

— “Gravar”. Lailla, minha filha, onde quer que eu esteja,

saiba que amo você.

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Infelizmente, não vou poder vê-la crescer. Mas não quero que culpe os outros por isso. Aliás, ninguém tem culpa por vivermos embaixo da terra, sob uma redoma que mal comporta cem mil pessoas. Quando estiver maior, entenderá que, para manter uma colônia subterrânea ativa e funcional, sacrifícios se fazem necessários. Muitos contarão mentiras sobre a superfície. Outros, lendas. Mas ela existe, eu garanto. E ainda vamos encontrá-la.

Agora é a minha vez. Sabe como funciona? A cada três anos um habitante é sorteado para dar prosseguimento à escavação, pois a máquina disponível comporta apenas uma pessoa. Não sabemos o que nos levou a viver aqui embaixo, mas este ciclo continuará até que alguém chegue à superfície. Seu pai precisa cumprir essa importante missão. Não se preocupe. Registrarei tudo. Por que tão pouco tempo? Nenhuma pessoa dura mais de três anos fora da colônia.

— Droga! Não posso dizer isso a uma criança de cinco anos. “Apagar as últimas duas frases.” “Sim, tenho certeza.”. Ainda é cedo para ela entender como enterramos nossos mortos, bem acima de nós. Teria pesadelos pelo resto da vida. “Gravar”.

Aqui, onde estou, há cristais coloridos semelhantes à caixa materna onde você nasceu. São enormes. Um deles, azul-anil, emite uma luz tão singela que chega a vibrar. Cortei um pedaço. À

minha frente há uma galeria vulcânica. Tem cheiro de terra molhada. Espero que a máquina consiga atravessar sem problemas – a coisa parece um tatu, com rodas dentadas e uma broca gigante. Você já deve ter brincado com um deles. Existe um monte aqui embaixo. Mas vou enviar um desenho que fiz, junto ao arquivo, para garantir. A imagem não é tão boa; culpa do maquinário antigo...

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Filha; é muito solitário aqui. Acho que estou perdendo a razão. Já faz mais de doze meses que estou cavando, sem parar. Seu pai anda falando sozinho, sabe? A ideia de fazer um registro veio somente agora, nesse último mês. Sinto como se estivesse falando diretamente com você, enquanto se aninha em meus braços. Se eu não entregar pessoalmente, alguém vai. Eu…

— Máquina maldita! O que foi agora? Ah, emperrou por causa dos filhos de Shakespeare? Caveiras imundas. Quanta gente morreu aqui? Ei, vocês estão atrapalhando meu serviço!

A máquina emperrou. Aliás, ela já fez isso várias vezes. Parece de propósito, só para me irritar. O calor que faz aqui dentro me deixa impaciente. Ah, os cristais mudaram de cor. Agora são vermelhos! É estranho, mas tenho a sensação de que já subi bastante. Meus antecessores foram longe. Falando nisso, quero que respeite sua tia Isalla, até eu voltar. Se sentir minha falta, basta olhar para cima. Estarei pensando em você...

Descobri uma coisa. Um poço de lava! Sim, é perigoso, mas estou longe. O rio corre verticalmente. Acho que ele nasce na superfície. Posso sentir! Tem uma galeria ao lado, mas ainda não entrei lá. Embaixo há rochas esculpidas pelo calor. Aqui há um cheiro engraçado, agridoce, mas não sei o que é. Vou mandar outro desenho, enquanto faço um intervalo.

— Mas que droga é essa? O teto da galeria está cheio de… Crianças? Como podem existir esqueletos de famílias tão acima de nossas cabeças? Trinta na horizontal. Trinta e três na vertical. Mais nove. São novecentos e noventa e nove mortos! Você sabe o que aconteceu, Shakespeare? Não? Caveira inútil. Peço perdão senhoras e senhores, mas vou ter de estragar seu sono eterno.

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Sabe, o almoço não é ruim, mas ando um pouco enjoado de cereais. Encontrei algo interessante. Os mais antigos cumpriam um ritual exótico quando seus parentes mais próximos deitavam em sono profundo. Como essas pessoas não acordavam mais, era providenciado um espaço de descanso. Uma volta às origens. Todos nós faremos isso algum dia. Mas ainda está longe, muito longe, para você. Achei importante registrar a descoberta.

Também encontrei um buraco onde a máquina não passa. A parede é tão dura que a broca não consegue perfurar. Estou com medo de entrar ali com as ferramentas nesse estado. As rochas formam uma espécie de escada em espiral. Talvez possa subir. Mas é estranho. É como se tivessem perfurado de cima para baixo. Ah! Peguei mais quatro cristais para você, bem coloridos. Com o anterior são cinco. Sua idade! Seu presente de aniversário... Desculpe! Era para ser surpresa!

Há um brilho indistinto na parte superior. É um buraco, sem dúvida. Mas para onde leva? Achei uma flor lilás no meio do caminho. Tem cheiro de jasmim. Você ia gostar. Cinco pétalas magistralmente abertas. Uma planta simples, porém, muito bonita. A terra onde estou deve ser fértil, devido ao calor. Vulcões também são máquinas de escavar.

— Lá vou eu. Se vou mesmo morrer em dois anos, que pelo menos consiga descobrir alguma coisa interessante.

Encontrei cipós. Sabe aquelas coisas que insistem em rastejar pelo solo, de forma bastante lenta? Vai encontrá-los por aí, tenho certeza. A parte final é bastante estreita, mas acho que consigo passar.

— Essas escadas não parecem naturais. Ei, tem plantas se mexendo! Vou ter que prender o gravador

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nas costas. Lamento, Shakespeare. Você é um peso morto, literalmente. Não devia fazer piada numa hora dessas, mas que se dane. Adeus!

Estou perto do objetivo. O que vou descrever agora não fará muito sentido, mas quando crescer, talvez encontre alguma explicação. Estou diante de uma escotilha. Seu avô falava muito nelas. Serviam para trancar portas, deixando em segurança quem estivesse dentro. Está bastante danificada. Aquela luz que mencionei vem daqui. Pode ser a superfície. Vou desemperrá-la, assim que terminar esse trecho. Não sei o que vou encontrar. Independente do que possa acontecer, fico feliz que esteja me ouvindo. Daria tudo para estar ao seu lado mais uma vez. Eu te amo, filha.

— Saco! São plantas carnívoras. É só girar aqui… Agora empurrar. Coragem, homem! Inspire. Expire. Três… Dois… Um…

(…) Lailla, se ainda estiver ouvindo, por favor, pare.

Eu lamento. Se alguém estiver com você, passe o gravador para essa pessoa. Não se preocupe. Seus cristais, como prometi, estão bem guardados. Vou deixar um faixa em branco para que o responsável possa assumir daqui em diante, ok?

(…) Irei supor que não estou mais falando com

minha filha de cinco anos. Fui claro? Pois bem, para começar, a superfície é

vermelha. Não vermelha de flores ou de nossa luz noturna. Vermelha de sangue. Sim, você ouviu bem. Há centenas, ou melhor, milhares, de corpos lá fora.

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Uma névoa sombria encobre o horizonte. É impossível ver algo além das montanhas – o habitat acima da escotilha era minúsculo. Meu avô estava certo. Foram feitas para nos proteger.

Em meio à fumaça que encobria o cemitério a céu aberto, avistei uma coisa. Era um cipó gigante ou, devo estar delirando… Não confio mais em meus sentidos. Posso estar dizendo bobagens, mas eram tentáculos! Fiz um desenho.

Voltei imediatamente, assim que os vi. Pensando melhor, vejo que nossos valores se

inverteram de alguma forma, com o passar das eras. Vivemos embaixo da terra, enquanto a superfície é nossa sepultura.

— Isso não é bom. Vai causar pânico. Melhor apagar. Pense! Estamos seguros aqui embaixo. Lailla está segura. O que mais um pai poderia querer? Só de poder ver aquele sorriso mais uma vez, valerá a pena. “Apagar as últimas seis faixas.” “Sim, tenho certeza.”. “Repetir a última faixa”.

…Independente do que possa acontecer, fico feliz que esteja me ouvindo. Daria tudo para estar ao seu lado mais uma vez. Eu te amo, filha.

— Ótimo. Agora, como vou descer daqui? É só… Argh! Que gosma é essa? Ah, droga! Não, não, não, não! A gravadora não! Ai, minhas costas, filho duma… Malditas rochas pontudas! O rio de lava! Não, por favor, não! Lailla! Laillaaaaaaaa! A gravação…

***

“Daria tudo para estar ao seu lado mais uma

vez. D@ria tud0 pa4a e$tar a0 s3u !Ado. Dari@ t#do. Da41a.”

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***

— Completamente derretida! O que fiz para

merecer isso? O quê? O que fizeram caveiras ancestrais? Sei o que o solo lá fora significa! Eu sei! Droga. Preciso me acalmar. Lailla! Você não pode me ouvir, mas estou alegre em saber que alguém virá e lhe entregará os cristais. Coloquei seu nome neles. Sabe de uma coisa? Serei o primeiro a ser enterrado não acima, mas abaixo da superfície, como devia ser. Feliz aniversário! (Nota: texto originalmente escrito para o desafio “Cemitérios” da comunidade Entre Contos, baseado somente em diálogos – não há um narrador onisciente).

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Evidência

No ano 2916, cinco tripulantes à bordo da nau

capitânia Maelstrom desapareceram. A última mensagem, transmitida da Nebulosa do Haltere, no Braço de Órion, trazia apenas uma frase, suficiente para causar uma intrigante divisão na sociedade científica…

I.

Cores primárias preenchiam o horizonte. O azul profundo, berço de matéria primordial, abraçava a escuridão, quebrando a monotonia sem fim do vazio desconhecido. O amarelo vibrante delineava as nuvens de formação estelar, imbuindo os elementos naturais de matéria escura. O vermelho carmesim, de escala imensurável, produzia em seu interior um calor tão abrasador que, em poucos milênios, transformaria os protoplanetas em futuros sóis…

Dalet, dia 42, 2916 A.E., manhã… Maesltron não era confortável. Tinha espaço

suficiente para cinco pessoas, uma sala de reuniões, uma cabine de controle e dormitórios independentes, construídos nas extremidades do habitat convencional. Seu projeto priorizava a eficiência dos motores de propulsão, resultando num desenho retilíneo, sóbrio e cansativo. As estruturas retráteis, que comportavam a vela solar, davam-lhe a aparência de um coleóptero mutante.

Nila Shakti foi acordada por um som agudo, persistente e quase inaudível. Acabara de receber uma transmissão. Bocejou e a ouviu, sem dar muita importância aos dizeres confusos. Aquele zunido não era raro, mas incomodava. Ter uma cefaleia espacial não estava em seus planos. Como astrobióloga-chefe,

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precisava estar atenta a qualquer alteração, apesar do aparente marasmo da “manta de dez mil anos”. Sacudiu a cabeça e ignorou os sintomas, caminhando lentamente até a ponte de comando.

— Como vão as coisas, “padre”? Algum milagre enquanto estive descansando? – Nila não resistiu à piada.

— Sim. E está bem na sua frente. – Ironizou Gabriel Levi. – Apesar do seu aparente descaso, notei um comportamento estranho nos sistemas hoje de manhã.

— Isso explica a dor de cabeça. — Se você parasse um instante para apreciar a

visão de nossos primórdios, quem sabe fosse agraciada com maior paz de espírito…

— Não sou religiosa como você. Se algo se mover lá fora, me avise.

— Tenho fé. Não religião. Deixou-o falando sozinho, antes que a

convencesse. Era um excelente mecânico, apesar de não ter sido sua primeira escolha. Quem poderia imaginar que um estudioso de filosofias humanas e metafísica marciana era o projetista de boa parte do esqueleto da nave? Tinha de lidar com isso. Atravessou o extenso corredor retilíneo, chegando ao círculo interno. Prosseguiu até o dormitório do meio, onde sua superior, e melhor amiga de infância, descansava. O sistema de comunicação digital

piscava em laranja. “Disponível” era o que a tela dizia. Tocou.

— Olga? Não houve resposta. Tentou novamente. — Olga Yurievna? É Nila Shakti. Posso entrar? Gabriel estava certo. Os sistemas estavam se

comportando de maneira irregular. Entrou com o código de acesso, conhecido somente por ela. Tinham

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intimidade suficiente para trocar as senhas entre si, um fato conhecido por todos, apesar da discrição de seus companheiros os impedirem de realizar qualquer comentário a respeito. A escotilha se abriu, permitindo a passagem. Olga olhava pela janela, distante, com os olhos fixos em um único ponto, hipnotizada pela escuridão sem fim.

— Olga? Mas um cadáver jamais responderia…

II.

Um grito surdo ecoou pelos corredores. Seiji

Hiroshi, logo ao lado, deixou seu dormitório às pressas.

Encontrou Nila, ajoelhada e trêmula, escorada na aba circular da porta fechada. Aproximou-se devagar e a segurou pelos ombros. Era o único psicólogo a bordo.

— Acalme-se, Nila! – disse com autoridade. — Seus olhos estavam sangrando! Eu vi…Tenho de voltar lá! Olhou pela escotilha de relance e se

surpreendeu. Imediatamente colocou o capacete reserva, artefatos encontrados nos vãos de entrada.

— Esqueça! Precisamos isolar aquela área! — Pode ser alguma espécie de contágio? –

indagou, se recompondo por um instante. – Mas eu já

estive em contato com ela! — Por que acha que estou vestido assim? Seiji apontava para o capacete brilhante. — Então, vou ficar em isolamento? — Até eu falar com a doutora Ária… Sim. –

Segurou suas mãos com as luvas. — Olhe nos meus olhos, Nila. Recomponha-se. O que uma astrobióloga renomada faria?

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Baixou a cabeça e permitiu que Seiji a trancasse temporariamente em seu dormitório, embora não fosse isso o que realmente a incomodava. O sonho distante de duas universitárias, muito mais que amigas de infância, jamais se realizaria…

Vestiu o uniforme completo e correu até a ponte de comando. Ária conversava de forma descontraída com Gabriel. Seiji apareceu de repente, com uma expressão preocupante. Estavam acostumados ao seu jeito mais sério, mas sabiam quando algo o incomodava. Mordia o lábio inferior, enquanto buscava respostas no vazio. Os dois se entreolharam. Ária franziu o cenho e se apressou.

— O que houve? — Um problemão. – Disse Seiji, retirando o

capacete. — Alguma falha em suportes vitais? — Não, Ária. Essa é sua especialidade. Quero

que os dois venham comigo. Gabriel deixou os controles sob supervisão da

inteligência artificial. Apressaram-se em vestir os trajes recomendados. O deslocamento pelos corredores era fácil. Difícil era não esbarrarem uns nos outros devido ao pequeno diâmetro da câmara de acesso. O dormitório de Olga ficava em um dos braços do curioso pentagrama, fato que sempre lhe causara calafrios.

— Cuidado. – Sussurrou, como se isso fizesse

diferença. Seiji ajustou o brilho dos vidros. Meneou a

cabeça. Ária fez menção de levar a mão à boca ao presenciar o corpo estirado sobre a cama, mas foi impedida pelo traje. Gabriel não pareceu muito abalado. De tanto ridicularizarem sua profissão e convicções, havia se tornado uma pessoa misteriosa,

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que não demonstrava sentimentos tão facilmente. A única que conseguia tirá-lo do sério era Nila Shakti.

— A nave não foi neutralizada? – indagou Gabriel.

— Está sugerindo que isso foi obra de um vírus? – retrucou Seiji.

— Talvez. — Não sobreviveria a uma viagem dessa

magnitude. – Respondeu Ária, segura de si. — O que sugere, doutora? – Seiji suava naquele

traje desconfortável. — No caminho você mencionou que ela olhava

as estrelas distantes, como se estivesse hipnotizada por alguma coisa?

— Ou alguém… – Completou Gabriel. O olharam com certa desconfiança. Prosseguiu,

sem jeito. — Me refiro à falha dessa manhã. O sistema

capturou alguma coisa, tenho certeza. – Gabriel ignorou os muxoxos. – Mandei rodar uma pesquisa.

— Quero passar no dormitório de Nila antes de tomar qualquer providência. – Encerrou Seiji.

— Ela reclamou de dor de cabeça uma hora atrás. Mas os sistemas estavam em ordem! – Gabriel atestou.

Andaram até o outro braço do módulo. Apesar de seu treinamento militar, sabiam que a situação atual não era das melhores. Estavam a anos-luz da

estação orbital mais próxima. Seiji ativou o viva-voz. Um ruído ensurdecedor, quase uma mensagem cifrada, invadiu o ambiente, os desorientando por alguns segundos. Felizmente, a transmissão cessou em seguida.

— Mas o que foi isso? – gritou Ária. — Não sei! Ative a câmara de segurança! –

disse Seiji.

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— Nila não está bem! – apontou Gabriel. Havia um corpo em pé, de capacete colocado,

olhando um ponto fixo e luminoso através da escotilha.

— Droga! Está se espalhando! Abaixe os escudos! – ordenou Seiji, que possuía a patente mais alta entre os três.

— Acha que o problema está lá fora? Mas vai ativar os alarmes! – interpelou Gabriel.

— Agora! – exclamou Ária. Gabriel retomou o controle da nave acessando

a pequena tela embutida em sua manga. Iniciou o selamento externo. Pouco a pouco os escudos abaixaram, escondendo a deslumbrante e exótica Nebulosa de Haltere em segundos, que encerrou o espetáculo com um impressionante eclipse artificial. A escuridão os abraçou. As luzes de emergência, efêmeras, falhavam em tornar a atmosfera mais confortável.

Assim que Nila caminhou até a porta e apresentou os mesmos sintomas de Olga, Seiji impediu seu acesso externo. Era possível avistar apenas dois pontos vermelhos dentro daquele capacete escuro. Escutaram um último murmúrio.

— Es… ta… rei… com… vo… cês… O corpo caiu ao chão, sem vida, com um olhar

fixo em Gabriel.

III. Voltaram-se para ele, que ficou tão

impressionando quanto seus superiores. As luzes intermitentes atordoavam os sentidos.

— A pesquisa! – lembrou de repente. Ainda perplexos com a morte repentina de dois

membros da tripulação, não entenderam como aquilo

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poderia ajudá-los, mas precisavam de respostas. Estavam ali com o mesmo objetivo, apesar de suas claras diferenças culturais. Correram em silêncio até a ponte de comando, atravessando os enfadonhos corredores retilíneos, preenchidos com esferas dançantes. A tela maior exibia um aviso confuso. Gabriel fez um gesto para o lado. Várias linhas horizontais surgiram.

— Vejam! Aqui foi hoje, há algumas horas. As linhas apresentavam picos sinuosos, que

duravam milésimos de segundos. — Certo. – Ária suspirou. – Então o principal

sintoma é a dor de cabeça, além do estado catatônico. Essa flutuação de energia pode ocasionar a cefaleia, mas não o restante…

— Que envolveu olhar, de modo fixo, um ponto qualquer no horizonte. – Completou o psicólogo, mantendo a calma. — Mas que ponto? Gabriel, quero que… Ah…

Seiji Hiroshi levou as mãos à cabeça e retirou o capacete. Ária o segurou. Sem qualquer alteração brusca, seu nariz começou a sangrar. Olhou para Gabriel e se esforçou em articular de forma compressível as palavras que saíam rasgadas, sem controle.

— Es… ta… rei… com… vo… cês… até… o… fim…

Ária gritou para que jogasse a adrenalina,

bolsa de emergência colocada embaixo dos painéis, e aplicou o medicamento. Mas já era tarde demais. Os olhos de Seiji, perdidos no infinito, indicavam que já havia deixado aquele mundo há muito tempo.

— Merda! – olhou com fúria para Gabriel. — O que está acontecendo, afinal? — Eu não sei! Preciso me concentrar! O

selamento exterior não fez diferença alguma. Vou

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revogar a ordem. Dê um jeito de contatar a estação orbital…

— Estamos longe demais! — Se eu deixar os canais abertos, quem sabe

eu consiga… Assim que os escudos subiram, o esplendor

glorioso das nuvens primordiais encheu de vida o interior da Maesltron, de forma irônica. Gabriel, apesar de tudo, sentia uma inexplicável sensação reconfortante ao vislumbrar aquele horizonte ancestral. Um sorriso de satisfação escapou sem querer, mas não sem motivo. Como podia ele, um simples mortal, ter o privilégio de ser agraciado com aquela visão? Agradeceu em silêncio o incentivo dos pais, antes de falecerem.

Ária se aproximou. Já estava sem capacete. Seu olhar aterrorizado o deixou sem ação. Percebeu que os ouvidos da amiga sangravam. Ela segurou seu rosto de modo firme, mas gentil. Exclamou, em uma voz suave e compreensível.

— Gabriel. Estarei com vocês, até o fim. Petrificou. A última vez que ouvira aquela frase

segurava em seus braços a única lembrança de uma família desfeita pela guerra – uma relíquia em polímero transparente, de tempos imemoriais. Apenas aquele registro humano, tão antigo quanto suas origens, o havia consolado. Alguém estava utilizando memórias afetivas para se comunicar.

Contrariando os resultados anteriores, Ária apenas desmaiou, caindo aos seus pés. Apesar de certas desavenças, conseguiam se entender como ninguém. Colocou seu corpo sobre a poltrona e ajeitou seu cabelo…

Retirou o próprio capacete. Observou por um bom tempo a luminosidade que escapava lentamente da deslumbrante paleta de cores primárias. Sentiu

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uma leve dor de cabeça, sem mais efeitos. Gritou em direção à luz intensa, irradiada do interior da Nebulosa de Haltere.

— Quem é você? O que quer de mim? Suas palavras gravitaram pela ponte de

comando sem receberem resposta. No entanto, ele não precisava. A pergunta fora retórica, caso Ária ainda pudesse ouvir. O que não era mais possível. A médica partira definitivamente. Todos se foram, restando apenas uma pessoa. Um sorriso frio pôde ser visto nos lábios do mecânico.

A Messier 27 brilhava em um azul assombroso. O fulgor anil, envolto pelo negro azeviche do espaço, dava a nebulosa uma aparência de túnel. Um túnel celestial. Gabriel fixou os olhos na manta luminosa. Seus pensamentos viajaram. Correram sobre os trilhos do cosmo para muito longe dali. Mil anos luz. Transportaram-se para a Terra, planeta que ele, com incontáveis anos, pulando de buraco de minhoca em buraco de minhoca, jamais conhecera, a não ser pelas histórias dissertadas por seu avô, e lidas em escritos antigos digitalizados.

Imaginou-se no mar. Banhando-se nas águas salgadas e espumosas que iam e vinham trazendo com elas o barulho peculiar das ondas. Som que nunca ouvira de verdade, apenas fantasiara diversas vezes. Para ele, o mar era a expressão mais concreta do divino. Nunca o ter visto fazia com que o oceano

fosse mais misterioso que o vazio estelar, onde se acostumara desde muito novo a percorrer…

Gabriel havia nascido em Fobos, a grande lua de Marte, na primeira estação espacial terráquea, habitada há quase seiscentos anos. O “padre” fazia parte da quinta geração de crianças que vieram ao mundo naquela estação. Meninos que desde cedo eram preparados para viagens espaciais – Fobos

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concebia astronautas. Perdera a família na Primeira Guerra entre Luas. Habitantes de Fobos e moradores de Deimos lutaram para ver quem deteria o controle absoluto sobre Marte. Fobos sagrou-se vencedora…

Levantou a vista, saindo de seu devaneio, e percebeu uma tênue mudança de cor, seguida de pequenas vibrações, no halo que circundava a nuvem de matéria interestelar. Um estrondo agudo e denso, quase palpável, singrou pelo monótono corredor do “besouro metálico”. Não estava louco, algo extraordinário tentava estabelecer contato.

— Eu sei quem é você! — Gabriel Levi exclamou. Seus olhos faiscavam.

Ele tinha certeza que era de lá, do centro da nebulosa onde existia uma estrela anã branca, a origem das estranhas mensagens sonoras. Algo inefável pretendia se mostrar. Sua fé incorruptível fazia-o acreditar que estava diante do Ser a quem sempre confiara as palavras mais fervorosas, os melhores e piores momentos. Da luz que se acendia em tudo que tem vida.

Ajoelhou-se. Foi tomado por um intenso sentimento de ternura, como o abraço apertado de um filho. Lembrou-se de sua família… e do seu pequeno Jacob. Lágrimas escorreram pelo seu rosto febril.

— Gabriel, estarei com vocês até o fim. — Aquelas eram as mesmas palavras que ele

ouvia em suas orações noturnas. Só poderia ser um sinal de que o que fizera era em prol de um propósito muito maior. A ponta de arrependimento que rondava sua consciência se desfez. Sentiu-se orgulhoso.

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IV. Após o falecimento da família, o jovem Gabriel

Levi, já um estudioso de metafísica marciana, aprofundou-se ainda mais nas leituras sagradas, tornando-se um homem de fé inabalável. Acreditando piamente, apesar de tudo negar ao contrário, que o universo era controlado pelo sopro divino. A evidência definitiva não tardaria em chegar. “Ninguém mais zombaria de sua fé”, pensou, animado.

Até então, Ele só havia se manifestado através de conversas em sua própria mente. Conversas que o orientavam como fazer para que todos, enfim, acreditassem. E Gabriel cumpriu objetivamente tudo que fora sussurrado em seu ouvido. Sua tarefa estava prestes a ser concluída.

A reunião em volta da mesa para as refeições era prática obrigatória. O longo confinamento estimulava conflitos de convivência. O agrupamento compulsório durante as refeições era uma forma de sanar qualquer desavença mais duradoura. Toda a rotina era acompanhada atentamente por Seiji Hiroshi, o psicólogo da equipe. Um sorteio entre eles, no início da missão, fez com que a cada dia um membro da equipe ficasse responsável pelo preparo dos alimentos e arrumação da mesa, tornando o local, e o ato em si, o mais aconchegante e agradável possível.

Na manhã do dia quarenta e dois, Gabriel Levi, o “padre”, encarregado do café da manhã, estava pronto. Enquanto os astronautas ainda se encontravam nos dormitórios, preparou o desjejum. Contudo, aquele café da manhã seria especial – era a última refeição de todos os tripulantes. Retirou do bolso de seu traje espacial um pequeno frasco de vidro contendo pó de calcanita marciana. Mineral

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mortalmente tóxico, encontrado facilmente no solo de Marte, solúvel em água, inodoro e insípido, que misturado a qualquer alimento desidratado causava, após alguns minutos, cefaleia, entorpecimento catatônico, derrame ocular, epistaxe e morte.

Assim, desta maneira, Gabriel envenenou toda a tripulação da nau capitânia Maelstrom. O rápido efeito da toxina impediria qualquer tipo de exame, possibilitando o triunfo do envenenador.

Nenhum deles estranhou o fato de que o único a não se servir naquele dia fora Gabriel. Todos já estavam bastante acostumados com os estranhos hábitos do “padre”, que só se alimentava depois que já tivessem se retirado do refeitório…

Agora, decidido, caminhava em direção ao painel de controle da Maelstrom, a passos lentos. Assim que tocou a tela, fez sua última transmissão para o controle da missão, na estação terráquea em Fobos. “Encontramos o Criador!”, exclamou, de forma inexpressiva.

Vestiu o traje de atividade externa e andou até cada um de seus companheiros. Acomodou-os em seus respectivos dormitórios. Seu corpo tremia. Percorreu o longo e monótono corredor, dirigindo-se à escotilha de saída. Antes de abri-la, contemplou mais uma vez a nuvem brilhante da magnífica Nebulosa de Haltere. Era para lá que ele iria. Lá estava a resposta. O início. O fim. O recomeço. Renasceria ao lado Dele.

Abriu a grande escotilha, sem se preocupar em vedá-la novamente, e se jogou na imensidão do infinito.

Gabriel flutuou no espaço, como se boiasse nas densas águas do mar. Fechou os olhos e pôde ouvir nitidamente o barulho das ondas. Sorriu, em êxtase completo.

— Pai Todo Poderoso… Estou indo ao seu encontro.

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(Nota: texto originalmente escrito para o desafio “Duplas” da comunidade Entre Contos, que consistia em continuar o texto de outro autor, escolhido às escuras. A construção inicial, do capítulo um até metade do capítulo três, é minha. O restante foi concluído com maestria pelo amigo Jowilton Amaral – #gratidão).

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Francis Drake e o Farol de Cassiopeia

(ou O menino que sonhou estrelas)

Francis Drake VIII, vulgo “Braço de Ferro” –

pirata espacial por profissão, aristocrata por diversão – ajustava a lente angular de seu tapa-olho biônico. A nuvem brilhante, áurea, hipnótica, construída por mãos não humanas, continha um maquinário ancestral ainda ativo em seu interior. O Farol de Cassiopeia estava finalmente ao seu alcance. Repousou o braço mecânico sobre o leme e pôs-se a refletir. Há quanto tempo o lendário tesouro permanecia escondido nas entranhas da escuridão? Coçou a barba espessa. Estufou o peito e gritou.

***

— Mãe? Abriu os olhos. O teto branco, salpicado de

manchas escuras, provoca-lhe náuseas. Ergueu o braço direito e observou o fio opaco, quase marrom, saindo da finíssima agulha presa ao seu punho, terminando em uma estranha árvore cujos frutos eram invólucros transparentes. Respirou fundo. O ardume e o amargor na boca fizeram-no sentir uma ânsia incontrolável. Apertou os olhos. Era apenas um suporte. Manter a concentração com todo aquele sedativo não era fácil. Tentou virar para lado esquerdo. Foi impedido por uma forte fisgada na região torácica. Tossiu. Próximo à cama, logo ao lado, havia um botijão de vidro contendo um líquido de tonalidade escura. Acompanhou o trajeto do bocal até a saída. O cano longo, de aparência estranha, fazia uma curva. A cada respiração prolongada, frágeis bolhas subiam e desciam em seu interior.

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— Sim, filho. Estou aqui. – A mãe agarrou suas mãos. — Como se sente?

Levantou o cobertor. Pôde finalmente identificar a origem do incômodo. Abaixo do conjunto de esparadrapos bem presos ao seu peito, um tubo, exatamente igual ao que tinha visto, percorria um longo caminho até o chão. Ao testar seus movimentos, tossiu outra vez. O líquido se moveu mais rápido.

— Calma. Você tem que se mexer bem devagarzinho…

Com muito esforço empurrou o corpo para frente. Lutou para manter aquela posição, enquanto ajeitava o encosto da cama hospitalar. Um vulto branco surgiu, percorrendo o quarto em alta velocidade, como um fantasma. A ilusão só se desfez quando fechou os olhos e passou a escutar o que diziam.

— Está tudo bem, doutor? — A criança teve um colapso no pulmão. Ainda

é cedo para se dizer. Gostaria de falar com a senhora lá fora, se possível.

A mãe se aproximou da cama. — Fique com seu pai, ok? Só vou ali fora

rapidinho e já volto. Estava enjoado. Aquele quarto era mesmo

abafado ou as janelas estavam fechadas? Tentou esticar o braço, mas a dor o fez desistir. Tossiu mais uma vez. O estalar de uma gota o distraiu. Sempre

pensou que estar conectado a fios seria mais parecido aos filmes que ele e seu pai costumavam assistir nos canais de ciência. A realidade era bem diferente.

— E aí, campeão! Como se sente? – indagou o pai, sentado na beira da cama.

— Ruim… — Você está na CTI. Vai se recuperar logo.

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Preocupado, o pai verificou os níveis de soro. Vendo sua aparente tristeza por sentir-se um monstro acorrentado por eletrodos, tentou animá-lo contando uma história, como sempre fazia antes de dormir. Por ser um ávido leitor de ficção da era dourada, criava seus próprios enredos, misturando conceitos e adaptando aventuras.

— Já ouviu aquela do lendário tesouro perdido de Cassiopeia?

Vendo a resposta negativa, sorriu. Aquilo o ajudaria a se distrair.

***

— Atenção, marujos! Aquele ponto luminoso é

nosso destino final! – Girou uma chave no leme. — Içar velas solares! Ligar o reator de fusão! Aos seus postos!

O encouraçado imponente deslizou suave pelo caminho pavimentado de matéria escura. Em apenas uma hora chegariam ao farol, marcado no mapa holográfico com um desenho bastante significativo: uma esfera de raios desintegrava a embarcação – bastante poético. Um aviso para permanecerem longe.

Francis retirou um livro do bolso, relíquia de tempos imemoriais, e passou a recitá-lo. Naqueles tempos de crise, compartilhar conhecimento era essencial. Ao contrário do líder da esquadra inimiga, preferia uma tripulação culta que lhe desse vantagem nos negócios. Folheou o pequeno livro.

— “Escreve, se puderes, coisas que sejam tão improváveis como um sonho, tão absurdas como a lua de mel de um gafanhoto e tão verdadeiras como o simples coração de uma criança”… — Hum. Esse é bom. Ernest Hemingw…

Foi interrompido pelo aviso nada discreto da tela panorâmica. Os destroços à sua frente tornaram-se

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visíveis em pouco tempo. Guardou o livro. Esticou o braço mecânico e testou as articulações. Encaixou os dedos nas aberturas laterais do painel. Seus subordinados aguardaram.

— Iniciar manobras evasivas! Uma enorme carcaça de um modelo antigo,

comercial, raspou o mastro sobre suas cabeças, colidindo com o campo de força. Reconheceu a bandeira, uma desavença antiga.

A distração custou-lhe alguns arranhões. Não foi possível desviar das partículas menores. Um pedaço da proa alheia riscou a lateral do grande Pelican. O impacto, sentido nos deques inferiores, veio acompanhado de um som estridente. Francis não se deu por vencido. Enviou um comando pelas frágeis conexões e lutou ferozmente contra as peças restantes – um enxame de abelhas com ferrões de aço.

Estavam muito perto do tesouro para desistirem, mesmo que o escudo do Pelican começasse a falhar. A embarcação, capaz de perfurar linhas inimigas e atravessar atmosferas mais densas, possuía clara vantagem tirando o fato ocorrido. A diferença era que ali, em território desconhecido, qualquer deslize seria fatal. Talvez não conseguissem se desvencilhar dos pequenos meteoritos. Contudo, mesmo com todo aquele lixo espacial, a pequena lua – onde o Farol de Cassiopeia fora construído – mostrava-se imponente, ousada, desafiadora… Mortal. Pensamentos sombrios, como corvos em busca de vítimas, atormentaram-lhe.

O encouraçado rejeitou a conexão assim que o horizonte emitiu feixes de uma luz ancestral; fantasmagórica, perturbadora.

Francis fechou os olhos. Um portal dimensional retangular se materializou.

***

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O médico entrou, seguido pela jovem senhora. O semblante denunciava a gravidade da situação.

— Depois eu continuo, filho. Vou ali falar com o doutor e já volto. Certo?

Assentiu. O tempo realmente passava mais rápido quando as asas da imaginação tomavam forma. Ajeitou as pernas. Só então percebeu que não vestia nada por baixo. Quem o havia colocado na cama? O que haviam visto? Respirou fundo. A sensação ruim não desapareceu. Odiava hospitais. E quem não odiava?

O chamado da natureza interrompeu seus devaneios. Arrastou uma perna para fora. Ao puxar a outra, notou que o tubo se moveu, roçando em seu peito. Aquilo dava-lhe calafrios. Era mais difícil do que imaginava. Fez uma careta ao esticar-se todo. Onde estavam os chinelos?

— Filho! Era só ter pedido! – Exclamou a mãe. O pai acompanhou o restante da conversa.

Carregar o suporte e o botijão era algo bastante incômodo.

— Como estava dizendo, seu filho está num estado crítico de recuperação. Mas, felizmente, tudo correu bem. Foi necessário retirar um pequeno pedaço do pulmão direito, devido ao enfisema bolhoso.

— Ele vai voltar a ter uma vida normal? – Os olhos do pai fitaram os do médico.

— A cirurgia resolve a maior parte dos problemas, principalmente quando o caso é espontâneo. Contudo, recomendo fazer um exame de rotina a cada ano, para garantir a estabilidade. É uma doença mais comum do que se imagina… Ele não poderá mergulhar ou fazer qualquer outro exercício que exija força física além do normal.

— Nem andar de bicicleta?

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— Exercícios aeróbicos são bons. Mas levantar peso ou se exceder nessas atividades, não.

— Puxa… Ele gostava tanto de basquete. – Disse, desapontado.

— Recomendo atividades mais intelectuais. Ele gosta de ler?

— Muito. O pai passou a mão na testa cheia de suor.

Apertou a mão do médico e agradeceu. O que diria a seu filho? Que poderia esquecer a carreira nos esportes, principalmente aquáticos? Jamais diria tal coisa. Era triste ver aquela criança presa a fios e tubos, arrastando um roupão, enquanto tentava diminuir a dor dando passos curtos. Pelo menos tudo correra bem. Jamais esqueceria sua face de terror e pânico ao perceber que a leve pontada no peito era muito mais do que uma simples falta de ar. Se dependesse dele, apagaria da memória de seu filho aquelas horas terríveis.

— Tudo certo, campeão? — Não. A mãe ficou me olhando. Riu. Ajudou a colocá-lo de volta no leito. Seus

olhos estavam fixos no tubo. Ninguém ousaria tropeçar nele, mas fez questão de se certificar.

— Tive uma ideia. Que tal escrevermos juntos uma história? Poderíamos colocar no papel tudo o que inventarmos. E quem sabe, depois de uma revisão, imprimir numa gráfica. Não seria legal?

— É. Se não pudesse tornar-se um grande jogador

de basquete, que virasse um escritor. No entanto, quanto a isso, somente seu filho poderia decidir.

Sentou ao seu lado, enquanto a mãe preparava o lanche da tarde.

— O que acha de escrevermos uma frase de efeito no primeiro parágrafo? – Continuou o pai.

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— Mas você nem terminou a história ainda… — Eu sei. Vamos escrevê-la juntos. — Coloca aquela… – Seu filho desenhou uma

engrenagem no ar. — Você andou lendo minha coleção antiga; não

foi? Pegou a folha em cima da escrivaninha.

Mordeu o lábio inferior ao ver a extensa lista de medicamentos dos próximos meses. Respirou fundo. Virou-a do avesso e escreveu atrás, sorrindo de forma sincera, apesar de saber que os próximos anos não seriam nada fáceis. Escreveu a sugestão.

“A imaginação move as engrenagens do futuro…”.

***

Os portões do desconhecido se abriram. Uma

borboleta translúcida deu-lhe as boas-vindas. Não enxergava nada além do campo hiperbóreo. Era a luz do Farol de Cassiopeia. Levou a mão ao rosto. Encobriu a intensa emissão da exótica estrutura colossal. Estava só. A superfície era firme e rochosa. Assim que a luz trocou de posição, pôde avistar os restos mortais de seu encouraçado. Pedaços de uma vida desfeita em segundos.

Para seu alívio, não havia ninguém a bordo. Aonde teriam ido? Girou em seus próprios pés. Havia um prédio em ruinas dentro da cratera à sua frente. Parecia uma versão menor do mecanismo primordial, imperfeitamente humano. Não restaram dúvidas.

Subiu um pequeno morro, desceu outro, subiu mais um. Parou em frente à porta. Observou os desenhos. Havia entalhes na madeira de três metros de altura. Procurou o puxador, mas acabou encontrando várias assinaturas conhecidas, recém-

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riscadas na madeira tratada. Era sua tripulação! Sem qualquer receio, empurrou a porta.

Uma imensa biblioteca milenar, uma Hiperbórea grega, nocauteou seus sentidos. Desviou o olhar. Seus companheiros sorviam uma bebida áurea enquanto sorriam e cantavam em cima das mesas distribuídas pelo museu, ou, como descobriu mais tarde, uma taverna disfarçada de casarão mal-assombrado.

Aquele era o tesouro de que tanto falavam? Quantos morreram para encobrir a verdade? Esperava um rio de pedras preciosas, uma cascata de ouro dezoito quilates ou uma vila de esmeraldas. Mas o que havia ali? Uma Alexandria milenar?

Roubou a caneca do homem que lhe dava um tapinha nas costas e sorveu o líquido de uma vez só.

Ergueu os braços e desceu a escadaria. Foi ovacionado e aplaudido como nunca. Atrás das estantes recheadas de livros havia uma quantidade infinita de barris dourados – preciosas bebidas de embarcações que amargaram o mesmo fim. Passou a comemorar, afinal, o entusiasmo era contagiante.

Todavia, o pensamento mais provável e lógico se fazia presente e o atormentava. Nunca mais sairiam dali! Tornar-se-iam os novos guardiões do Farol de Cassiopeia, assim como os esqueletos do andar superior (agarrados ao seu mais precioso tesouro) fizeram um dia.

Sentou-se na mesa maior. Ajeitou a caveira ao seu lado e retirou o livro de suas mãos. Ignorou o título e passou a ler em voz alta o primeiro parágrafo, afinal, naqueles tempos de crise, compartilhar conhecimento era essencial.

— “A imaginação move as engrenagens do futuro… A imagem produz o sonho. A ação projeta a humanidade. E o movimento acende estrelas onde antes havia apenas solidão.”.

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Quem poderia ter escrito palavras tão sábias? Recorreu aos autores. E se surpreendeu ao

descobrir que, pela primeira vez, sua jornada chegava ao fim. Havia encontrado o bem mais precioso da galáxia…

Os escritos de seus antepassados. Sua própria história.

(Nota: texto escrito em um dia melancólico e levemente depressivo. Algumas partes são autobiográficas).

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R

Não se preocupe

Hospital psiquiátrico, 1914. Ele, seu pai –

internado. Ela, filha – muda. Ouvia tudo o que a mente senil, perturbada por assombrações, dizia. Sua

mãe a abandonara quando pequena. Restava apenas o carinho do pai, que em todas as conversas, se autoproclamava um viajante do tempo. Quando isso acontecia, ela sinalizava aos enfermeiros e beijava sua testa, com olhos marejados. “Foi por você”, ele balbuciava… Lá fora, os jornais estampavam o improvável resgate de um arquiduque austríaco, como se isso pudesse alterar a história. Seria possível? Olhou ao redor. E voltou a vender flores, iluminando vidas que jamais ouviriam seus lamentos. (Nota: texto originalmente escrito para o desafio “Micro Contos” da comunidade Entre Contos, um dos meus preferidos, pois mistura viagem no tempo, realidade histórica alternativa e cotidiano em pouquíssimas linhas).

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Pêndulo

O relógio de bolso, deixado como herança por

seu avô e parado a mais de um século, pedia conserto. Com cautela abriu o invólucro de vidro e apreciou por um instante os cristais de quartzo. Delicadamente assentou os dedos sobre a engrenagem de corda e a girou. As luzes da exótica relojoaria antiga se apagaram.

Dirigiu-se à porta. Abriu a pequena janela. Não havia luz no quarteirão inteiro, apenas um silêncio perturbador. Olhou para cima. Os pontos brancos, distribuídos de forma homogênea na manta noturna, causavam admiração. Há quanto tempo não via um céu tão estrelado?

Saiu. Não havia ninguém. Improvisou um banco de tijolos e cruzou os braços. Lembrou-se das aulas de seu falecido avô. O “velho” tinha gosto pelas engrenagens que moviam o mundo, uma definição curiosa, mas cheia de sentido. Se o Sol era o motor, a Terra era o pêndulo. Contemplou o céu mais uma vez. Onde estava o Cruzeiro do Sul? Órion era mais fácil de encontrar.

Coçou a cabeça. Aquelas constelações pareciam diferentes. Entrou. Todos os relógios, incluindo os mais exóticos, permaneciam parados. Olhou para o pulso. Não querendo acreditar na hipótese fantasiosa que se formulava, voltou ao objeto deixado sobre o balcão.

Assim que o pino de corda foi retirado, todas as luzes se acenderam. Seu relógio voltou a funcionar. Os sussurros da noite e a aglomeração de pessoas o deixaram aliviado. “Engrenagens que movem o mundo”… Deu uma gargalhada. Estava trabalhando demais. Recolheu o casaco e trancou a relojoaria. Seu avô ia gostar daquela história…

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Ou não, caso olhasse para cima e percebesse que, de repente, as estrelas conhecidas haviam desaparecido. (Nota: texto originalmente escrito para o jornal cultural da cidade de Araranguá/SC).

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O Menino e a Máquina do Tempo

A camiseta vermelha com furos, a bermuda

amarela rasgada e os chinelos gastos, sem perder o barulho característico, não incomodavam sua insólita amiga, a lixeira, fonte inesgotável de tesouros escondidos. Localizada em um beco esquecido, ao lado de um prédio onde pessoas importantes se reuniam, fornecia proteção, alimento e quinquilharias

dignas de um museu. Naquele mesmo lugar, numa manhã

ensolarada, o garoto maltrapilho de doze anos foi acordado por um som metálico. Acostumado ao seu manto de invisibilidade ignorou quem havia jogado fora o objeto de som engraçado. O estranho vulto desapareceu assim como surgiu.

Descruzou os braços, ergueu a cabeça e se espreguiçou. Abriu a tampa. Revirou algumas sacolas inúteis, movimento que se arrependeria depois, pois as melhores sobras estavam em cima, e encostou sua mão no objeto frio e quadrado. Com cuidado puxou. Pulou de volta ao chão.

Já tinha visto aquilo nas propagandas escandalosas do centro, mas ter uma delas em mãos era completamente diferente. Analisou o botão circular superior e apertou. A tela escura, rachada e um pouco suja, voltou à vida após muito tempo. Por curiosidade mórbida, segurou o objeto próximo aos olhos. Apertou o botão lateral. O clarão o assustou.

Como num passe de mágica, a imagem do beco e de sua amiga inanimada ficaram gravadas para sempre na tela irregular. O sorriso infantil e deslumbrado foi interrompido pela aproximação de um policial.

— O que está fazendo, menino? Roubou isso de quem?

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— Não roubei nada, tio. Tava no lixo. — Me deixa ver isso aí. Arrancou o objeto de suas mãos. — É uma máquina fotográfica bem antiga,

apesar de usar um chip. Observou por um tempo aqueles olhos sofridos,

curiosos e ao mesmo tempo amedrontados. Um lampejo de consciência e humanidade surgiu em seu inconsciente (por algum motivo obscuro). Coçou a cabeça e devolveu a máquina ao garoto. Suspirou.

— Aproveite. A bateria não vai durar muito tempo.

— Obrigado, tio. — Você deve se dirigir aos adultos com a

palavra “senhor”. Nada de “tio”. Seus pais não lhe ensinaram isso?

— Não tenho pais… Senhor. Morreram cedo. — Bem… Dessa vez deixo passar. Mas vou ficar

de olho em você! O menino apontou para o guarda e disparou o

flash em sua direção. A imagem da farda azul, do quepe bem arrumado e da pomba rajada que voou até o grandioso ipê amarelo, eternizou-se no antigo aparelho. A mão alheia encobria seu próprio rosto.

— Ei! — É para lembrar quem me deu a máquina do

tempo. — Máquina do tempo?

— É. As coisas não ficam presas aqui nessa tela? Posso olhar quando quiser e lembrar o momento.

— Crianças… O policial balançou a cabeça e voltou à sua

ronda matinal. O menino segurou cuidadosamente seu tesouro e pôs-se a meditar. O que mais ele

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poderia prender em sua máquina, tornando as lembranças congeladas no tempo?

Andou alguns metros até a esquina. Olhou para o outro lado e avistou a calçada que terminava no centro. Um cachorro de três cores diferentes permanecia sentado, hipnotizado pelos espetos giratórios da máquina de alumínio, fonte mágica de alimento fácil. Como ele conseguia ganhar uma fatia sem pedir? No seu caso, a resposta era sempre “não”.

Levantou a câmera e percebeu que encostá-la no rosto era perda de tempo. Bastava olhar no visor. Apertou o botão de disparo e contemplou um Picasso contemporâneo na tela rachada. Seguiu caminho. Andou por entre pessoas apressadas, que insistiam em esbarrar em seus ombros, como se ele não existisse, e parou próximo ao centro. Não muito longe dali, um ciclista dava voltas ao redor do pequeno jardim florido. Parecia uma boa cena.

Preparou-se novamente. Algo piscou. O pequeno risco indicava o quanto faltava para a bateria acabar. A imagem borrada ficou um tanto engraçada, semelhante aos rabiscos que havia deixado nas paredes do beco, no dia em que restos de aquarela foram parar em suas pequenas mãos. As varetas e os círculos formavam uma bicicleta, de qualquer forma. Riu sozinho. O dono da banca, ao longe, observava a cena. Gritou.

— Ei, moleque! Roubou isso de quem?

— Não roubei, tio… Senhor. Achei no lixo. — Tá. Tá. Mas some daqui antes que você

espante minha freguesia. Acostumado a ser expulso dos lugares,

guardou a máquina no bolso e correu até a praça. A água da fonte estava bem fresquinha. Observou quando as pombas se aproximaram. Do outro lado havia um jovem casal, experimentando sorvetes de

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cores diferentes. Havia um azul e um violeta, recheados de balinhas coloridas. Sorriam abraçados, debaixo da árvore centenária. Um bem-te-vi de peito amarelo sentou na extremidade do banco. Aquele era um momento perfeito. Teve de chegar mais perto, pois o visor não ajudava em nada. Registrou a cena, antes que o mandassem ir embora.

Estava bastante satisfeito com suas proezas quando algo irradiante e magnífico chamou sua atenção. A câmera apitou de forma enlouquecida.

A criatura era bastante arisca. O colibri, de fantástica penugem multicor, um arco-íris vivo, o encarava. Pé por pé foi se aproximando. A pequena ave se distanciava, lentamente. Mas não desistiu. Seguiu de perto a beleza natural, de forma cautelosa. Precisava tirar a foto antes que a bateria finalmente acabasse. Por sorte (ou por outro motivo obscuro), ninguém o havia espantado.

Depois de vários passos, sem prestar atenção onde estava indo, achou o ângulo perfeito. As coisas mais simples e mais belas da vida permaneceriam eternizadas em forma digital. Ajoelhou e apertou o botão…

Sua última foto. O colibri levantou voo, levando consigo a

serenidade, esperança e sonhos do menino que um dia encontrara, por acaso, a felicidade nas pequenas coisas.

Mas que agora, contrariando suas próprias expectativas, jazia estirado no meio da rua pavimentada. O motorista bêbado, apavorado, havia fugido.

Os transeuntes e curiosos se aproximaram. O casal derrubou o sorvete no chão, o dono da banca correu em direção à praça, o ciclista chamou os bombeiros e o cachorro uivou – uma lamúria

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condescendente. Logo em seguida, o policial do quarteirão reapareceu, reunindo, assim, os indivíduos escolhidos pela criança. A câmera, próximo à calçada, deu seu último apito…

Uma figura esguia, vestida de preto, recolheu a máquina antes que alguém a pegasse. Seu trabalho era difícil, mas procurava fazê-lo da melhor forma possível. Retirou o chip de memória e o colocou em sua própria câmera – a era digital exigia que todos estivessem sempre atualizados, e isto, ironicamente, a incluía.

Observou cada imagem registrada por aquele aparelho. O menino estava certo. As lembranças ficavam presas às imagens. Tão belas; tão simples. Uma máquina do tempo.

Maldita época em que todos registravam suas ações! Não conseguiria esquecer tudo aquilo tão cedo, o que era essencial em seu trabalho. Colocou um novo chip na câmera velha e a jogou no lixo da praça, à espera de outro escolhido.

Atravessou a rua e se sentou, largando a enorme foice invisível no chão. Quantas crianças mais ela teria de levar? Os adultos eram tão mais fáceis! Guardaria aquelas lembranças através do espaço e do tempo.

Pela primeira vez, cansada de seus deveres após muitos séculos, a Morte chorou.

(Nota: texto experimental, escrito em outro dia melancólico).

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Ciclos

Gotas escorriam pela janela da sala, enquanto

a pequenina sonhava com um universo de perguntas. A bola de pelos ronronou em seu colo.

— Pai, por que o céu tá chorando? — É a chuva. O ciclo da vida. — Chorar faz parte do ciclo da vida? Surpreso, calou-se. O que diria a ela, sabendo

que quando crescesse, enfrentaria inúmeras dificuldades?

— Filha, certa vez, um famoso poeta disse: “Os tristes acham que o vento geme; os alegres acham que ele canta”.

Não sabia se aquela resposta a deixaria satisfeita, mas, pelo menos, ganharia tempo até elaborar uma explicação melhor. Continuou a ajeitar a mesa. Esquecia, no entanto, que a nova geração raciocinava de forma muito mais rápida.

Não demorou nem cinco minutos. — Então, quando dá temporal, é o vento

cantando na chuva? Sorriu. — Sabe, tem um filme antigo com esse nome.

Podemos assistir um dia desses… Colocou os pratos. — Acho que descobri – disse ela, de repente. — O que? — O céu tá triste com as pessoas. Elas mais

gemem do que cantam. Não falou mais nada. A abraçou e

permaneceram juntos, em silêncio, observando os tímidos raios de Sol surgirem entre as nuvens sombrias. As flores lá fora voltaram à vida.

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A natureza sempre dava um jeito. Por que ele não? Estava na hora de seguir adiante. Retomou o assunto.

— Sim. Chorar faz parte do ciclo da vida… Sua mãe está lá fora, em algum lugar, recebendo a mesma chuva.

— Cantando ou gemendo? — Apenas… Descansando. O horizonte brilhou com o orvalho recém

despejado. A gata pulou sobre seus ombros e começaram a brincar – três sombras de diversos tamanhos dentro de uma pequena casa colorida, aconchegante, sob a luz límpida de um céu azul.

Um universo de respostas. (Nota: para encerrar, um texto mais emotivo, escrito em um dia chuvoso).

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B

Biografia

Victor Oliveira de Faria está em sua versão 3.4,

é natural de Caxias do Sul, e atualmente reside na região de Santa Catarina. Há mais de dez anos

escreve e publica seus textos em sites de literatura, como o Recanto das Letras e Entre Contos, sob pseudônimo.

Mensalmente envia micro contos para o jornal cultural de Araranguá e já teve uma noveleta registrada na 2ª edição da revista digital Trasgo. Recentemente teve a oportunidade de participar da 4ª Antologia Devaneios Improváveis, também do site literário Entre Contos.

Suas principais influências vêm de autores consagrados da ficção científica, sendo entusiasta do gênero. Se tivesse o poder de quebrar as barreiras da quarta dimensão, seria arqueólogo, astrônomo, astronauta, escritor e violinista. Ao mesmo tempo.

Contato com o autor: [email protected] (e-mail)

@victorfaria2012 (twitter) paradoxotemporal.wordpress.com (blog)

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Unificador Transiente de Pensamentos Modelo Sete

(e outros contos) Coletânea de Contos de Ficção Científica

Esta quarta coletânea traz a atmosfera cyberpunk e suas variantes, com corajosas incursões no estilo teslapunk e no relativamente novo solarpunk, sem esquecer, é claro, de ambientações clássicas, além de situações insólitas com pitadas de bom humor. Para encerrar, micro contos no estilo “slice of life”.

Doze contos de autoria própria dividos em três temas (experimentais, mundos, reflexivos) contendo não apenas ficção, mas também questionamentos acerca do universo, seja ele macro ou micro.

Boa viagem!