Victor Turner -planos de classificação ritual

download Victor Turner -planos de classificação ritual

of 58

Transcript of Victor Turner -planos de classificação ritual

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    1/58

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    2/58

    Coleo Antropologia 7

    Orientao de: Roberto Augusto da Matta e Luiz de Castro Faria

    Ficha catalogrfica

    Turner, Victor W.

    O Processo Ritual: estrutura e anti-estrutura:

    Traduo de Nancy Campi de Castro.

    Petrpolis, Vozes, 1974. 245p. ilust. 21cm (Antropologia, 7).

    Do original ingls: The Ritual Process.

    1. Ritos e cerimnias.

    2. Ritos e cerimniaZmbia.

    3. Ndembu (tribo agricana)Aspectos antropolgiocs.

    4. EtnologiaZambia. I.

    Ttulo. II. Srie.1969 by Victor W. Turner

    First publiched 1969 By ldine Publichin Company

    Titulo do original ingls: The Ritual Process1974

    Da traduo portuguesa

    Editora Vozes Ltda.

    25.600 Petrpolis, RJ,

    Brasil

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    3/58

    Introduo Edio Brasileira

    DESDE SUA PUBLICAO EM 1969, O PROCESSO RITUALteve quatro reimpresses nos Estados Unidos e foi publicado ou est emvias de ser lanado em italiano, francs, japons, em edies britnicas eesta brasileira.Estou lisonjeado pelo facto de o livro vir a pblico em lngua

    portuguesa devido s substanciais contribuies etnogrficas e teorticas

    que vm sendo dadas pelos antroplogos brasileiros no estudo dos campo-neses e ndios do seu pas.

    Apesar de O Processo Ritual ter sido escrito para antroplogos, pa-rece ter chamado a ateno dos historiadores, psiclogos, crticos literrios,liturgos e historiadores das religies. possvel que a sua nfase sobre asociedade como processo vital em que episdios marcados por considera-es scio-estruturais foram seguidos de fases caracterizadas por anti-es-trutura social (liminaridade e"communtas") provou ser mais fcil a esses

    especialistas do que a orientao dada pelas tradicionais escolas de So-ciologia que persistem em equiparar o social com o scio-estrutural. Li-minaridade a passagem entre "status" e estado cultural que foram cognos-citivamente definidos e logicamente articulados. Passagens liminares e "li-minares" (pessoas em passagem) no esto aqui nem l, so um grauintermedirio. Tais fases e pessoas podem ser muito criativas em sua li-

    bertao dos controles estruturais, ou podem ser consideradas perigosasdop onto de vista da manuteno da lei e da ordem.

    A "communitas" um relacionamento no-estruturado que muitasvezes se desenvolve entre liminares. um relacionamento entre indivduosconcretos, histricos, idiossincrsicos. Esses indivduos no esto segmen-tados em funes e "status" mas encaram-se como seres humanos totais. Adinmica empregada no relacionamento contnuo entre estrutura social eanti-estrutura social a fonte de todas as instituies e problemas culturais.Arte, jogo, desporto, especulao e experimentao filosfica e cientfica,medram nos interins reflexivos entre as posies bem definidas e os dom-

    5

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    4/58

    nios das estruturas sociais e sistemas culturais. Poder-se-ia dizer que noclculo do scio-cultural, a"communitas" e a liminaridade representam oszeros e os mnus sem os quais no possvel a um grupo social computarou avaliar sua situao atual ou seu porvir num futuro calculvel.

    A dialtica estrutura/anti-estrutura , na minha opinio, um universalcultural que no deve ser identificado com a relao entre cultura e natu-reza, ponto importante do pensamento de Claude Lvi-Strauss, enquanto a"communitas" um relacionamento entre seres humanos plenamente rcio-nais cuja emancipao temporria de normas scio-estruturais assunto deescolha consciente, a liminaridade muitas vezes, ela prpria, um artefacto(ou "menteato") de aocultural.

    O drama da estrutura e anti-estrutura termina no palco da cultura.Este facto me animou a passar do estudo das culturas tribais para as que

    possuam grandes tradies no campo das letras. As pessoas da floresta, dodeserto e da tundra reagem aos mesmos processos como as pessoas dascidades, das cortes e dos mercados. As revolues e reformas podem serestudadas empregando-se a mesma terminologia que se usa para o estudodos produtos (outputs) culturais das grandes e estveis civilizaes.

    O Processo Ritual uma tentativa de compreender algo desse pro-cesso social total de interao e interdependncia, bem como das disjun-

    es, s vezes frutuosas, entre acontecimentos ordenados donde se originao pensamento independente.

    VICTOR TURNERChicago,

    maio de 1974

    6

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    5/58

    Introduo

    LEWIS HENRY MORGAN FEZ PARTE DA UNIVERSIDADEDE ROCHESTER desde a poca em que foi fundada. Ao morrer, legou Universidade manuscritos, biblioteca e recursos para a instituio de umaFaculdade para moas. Excepto uma ala a que foi dado o nome dele, e que

    pertence ao actual edifcio da Residncia Feminina, a sua figura ficou semum marco comemorativo na Universidade, at que as Conferncias "Lewis

    Henry Morgan" tiveram incio. Estas Preleces devem-se a uma feliz com-binao de circunstncias.

    Em 1961, as famlias de Joseph R. e Joseph C. Wilson fizeram umadoao Universidade, para ser utilizada parcialmente na promoo dascincias sociais. O Professor Bernard S. Cohn, poca Chefe do Departa-mento de Antropologia e de Sociologia, sugeriu que a criao das Confe-rncias fosse uma homenagem oportuna a um grande antroplogo, e repre-sentaria adequado uso para parte da doao. Tinha ele o apoio e a assistn-

    cia do Director (mais tarde, Reitor) Mc Crea Hazlett, do Diretor ArnoldRavn e do Diretor Adjunto R. J. Kaufmann. Os detalhes relativos s Con-ferncias foram elaborados pelo Professor Cohn e demais membros de seuDepartamento.

    As "Conferncias Morgan" foram planeadas, inicialmente, para cons-titurem trs sries anuais, em 1963, 1964 e 1965, a serem continuadas seas circunstncias assim o permitissem. Julgou-se conveniente, no princpio,que cada srie tratasse de um aspecto particularmente significativo da obra

    de Morgan. Assim sendo, as Conferncias do Professor Meyer Fortes, em1963,versaram sobre parentesco; o Professor Fred Eggan dedicou atenoao ndio americano e o Professor Robert M. Adams examinou uma faceta

    particular do desenvolvimento da civilizao, concentrando-se na socieda-de urbana. As Conferncias do Professor Eggan e as do Professor Adamsforam publicadas em1966; as do Professor Fortes devem ser publicadas em1969.

    7

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    6/58

    As Conferncias do Professor Turner consideraram reas no abor-dadas extensamente por Morgan, e, nesta reviso, levou a explorao almdo que tinha feito primitivamente.

    Assim procedendo, isto , apresentando ao mesmo tempo a pesquisaacabada e sugestivas investigaes, o Professor Turner apreendeu comxito o esprito do modo de enfoque de Morgan, esprito que as "Confern-cias Morgan" tm por finalidade perpetuar. Como aconteceu, na verdade,tambm em anos anteriores, a visita do Professor Turner propiciou muitasocasies para trocas informais de ideias com diversos expoentes da Con-gregao e com estudantes.

    Todos aqueles que participaram nelas, lembrar-se-o com agrado dacontribuio do Professor Turner para a vida do Departamento, enquantodurou a sua estadia na Universidade. As suas conferncias originais, emque este livro se baseia, foram pronunciadas na Universidade de Rochester,de 5 a 14 de abril de 1966.

    ALFRED HARRlSDepartamento de Antropologia Universidade de Rochester

    8

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    7/58

    Prefcio

    OS CONFERENCISTAS MORGAN, EM NMERO SEMPRECRESCENTE, devem, sem dvida, sentir-se entusiasmados, quando selembrarem dos dias passados na Universidade de Rochester, em que, foramregiamente recebidos pelo Professor e pela Senhora Alfred Harris, alm deseus hospitaleiros colegas, mas tambm interpelados e (algumas vezes) de-

    fendidos por um grupo de perspicazes estudantes, dotados daquela viva-cidade que seria de esperar ver neles em um dia primaveril.

    Sinto-me profundamente agradecido a ambos, estudantes e professo-res, por muitas valiosas sugestes, que incorporei neste livro. Inclu trs dasquatro "Conferncias Morgan" formando os trs primeiros captulos do li-vro. Em lugar da outra conferncia, mais adequada a uma monografia sobreo simbolismo do ritual de caa ndembo, que tenho em preparao, acres-centei dois captulos.

    Referem-se primordialmente s naes de "liminaridade" e de "com-munitas", levantadas no Captulo III deste livro. O livro divide-se em duas

    partes principais. A primeira trata principalmente da estrutura simblica doritual ndembo e dos aspectos semnticos daquela estrutura; a segunda, co-meando mais ou menos na metade do terceiro captulo, procura exploraralgumas das particularidades sociais, mais que as simblicas, da fase limi-nar do ritual.

    Foi dada particular ateno a uma modalidade "extra - estrutural, ou"meta" - estrutural do inter-relacionamento social, que denomino "commu-nitas". Alm disso, exploro associaes que, foram acentuadas fora da an-tropologia na literatura, na filosofia poltica e na prtica de religiescomplexas, "universalistas"entre "communitas", marginalidade estruturale inferioridade estrutural.

    Sou grato ao falecido Professor Allan Holrnberg, ento Chefe do De-partamento de Antropologia, em Cornell, por ter reduzido a minha cargadocente enquanto escrevia as Conferncias Morgan, e ao meu amigo

    9

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    8/58

    Bernd Lambert por se haver encarregado de vrias das minhas aulasdurante esse perodo.

    A reviso das "Conferncias Morgan" e a redaco dos novos cap-tulos foram realizadas quando eu era membro da Sociedade de Humani-dades, na Universidade de Cornell. Gostaria de agradecer ao Professor MaxBlack, Director e dirigentes da Sociedade, pela oportunidade a mim con-cedida, libertando-me do ensino e das tarefas administrativas, a fim de que

    pudesse desenvolver as linhas de pensamento iniciadas na ltima "Confe-rncia Morgan".

    O estilo de pensamento, brilhante embora sbrio, do Professor Black,sua subtileza, afabilidade e simpatia foram ddivas desse ano de trabalho.Em acrscimo, e de maneira muito especial, foi sob os auspcios da Socie-dade que pude realizar um seminrio interdisciplinar com estudantes detodos os nveis de aprendizagem e professores de diversos departamentos,no qual considermos muitos dos problemas de "limiares, transies elimites" no ritual, no mito, na literatura, na poltica, e em ideias e prticasutpicas.

    Algumas das concluses do seminrio influenciaram os dois ltimoscaptulos do livro; outras produziro frutos mais tarde. Dirijo os meus mais

    calorosos agradecimentos a todos os membros do seminrio, por suas con-tribuies crticas e criadoras.

    Pela dedicada e especializada ajuda de secretaria, durante as vriasfases do empreendimento, gostaria de agradecer a Carolyn Pfohl, a Mi-chaeline Culver e a Helen Matt, da administrao do Departamento de An-tropologia, e a Olga Vranae e Betty Tamminen, da Sociedade de Huma-nidades. Como sempre, o apoio e a assistncia de minha mulher foram de-cisivos, no papel de redactora e incentivadora.

    VICTOR W. TURNERMaio de 1968.

    10

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    9/58

    Sumrio

    Introduo Edio Brasileira, 5

    Introduo, 7

    Prefcio, 9

    1.

    PLANOS DE CLASSIFICAO EM UM RITUAL DA VIDA EDA MORTE,13

    2. OS PARADOXOS DA GEMELARIDADE NO RITUAL NDEMBO,61

    3. LIMINARIDADE E COMMUNITAS, 1164. . A COMMUNITAS, MODELO E PROCESSO, 1605. HUMANIDADE E HIERARQUIA, A LIMINARIDADE DA ELE-

    VAO E DAREVERSO DE STATUS, 201

    6. Bibliografia, 246

    11

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    10/58

    12

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    11/58

    1

    Planos de Classificao num Ritual da Vida e da Morte

    MORGAN E A RELIGIO

    DEVO DIZER EM PRIMEIRO LUGAR QUE PARA MIM, BEMcomo para muitos outros, Lewis Henry Morgan foi um dos guias dos meusdias de estudante. Tudo aquilo que escreveu trazia a marca de um espritoapaixonado e cristalino.

    Porm, aceitando o encargo de proferir as "Conferncias Morgan"para o ano de 1966, senti-me imediatamente cnscio de uma profunda des-vantagem, que poderia parecer mesmo paralisante. Morgan, ainda que ti-vesse registado fielmente muitas cerimnias religiosas, tinha acentuadaaverso a dar ao estudo da religio a mesma penetrante ateno que devo-tou ao parentesco e poltica.

    No entanto, as crenas e prticas religiosas constituam o assuntoprincipal de minhas palestras.

    Duas citaes salientam especialmente a atitude de Morgan.

    A primeira retirada de sua fecunda obra clssica Ancient Socie-

    ty (1877): "O desenvolvimento das ideias religiosas est cercado por tointrnsecas dificuldades que poder vir a no receber nunca uma explicao

    plenamente satisfatria. A religio ocupa-se to extensamente com a natu-reza imaginativa e emocional, por conseguinte com aqueles elementos in-certos do conhecimento, que todas as religies primitivas so grotescas e,at certo ponto, ininteligveis" (p. 5).

    A segunda consiste em uma passagem pertencente ao estudo eruditosobre a religio de "Handsorne Lake", de autoria de Merle H. Deardorff

    13

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    12/58

    (1951).

    A referncia, feita por Morgan, sobre o evangelho sincrtico de"Handsome Lake", no livro League of the Ho-de-no-sau-nee or Iroquois,

    baseou-se num conjunto de anotaes feitas pelo jovem Ely Parker (um n-dio sneca que, mais tarde, se tornou secretrio militar do general UlyssesS. Grant), representando textos e traduo dos relatos do neto de GoodMessage, de Handsorne Lake, em Tonawanda.

    Segundo palavras de Deardorff, "Morgan seguiu fielmente as anota-es de Ely, relatando aquilo que Jimmy Johnson, neto do profeta, disse,mas, desviou-se largamente dos comentrios de Ely sobre a narrativa e oacompanhamento do cerimonial" (p.98. Veja-se tambm William Fenton,1941, p. 151-157).

    A correspondncia entre Morgan e Parker mostra que se Morgan ti-vesse dado ouvidos mais cuidadosamente a Ely, poderia ter evitado a crti-ca geral sobre o seu "League", feita pelo ndio Sneca, quando o leu: "Noh nada realmente errado no que ele diz, mas tambm no o certo. Na rea-lidade, ele no entende daquilo sobre o que est falando". Vejamos, ento,o que o ndio Sneca "na realidade" quer dizer com essas extraordinriasobservaes, que parecem ser dirigidas ao trabalho de Morgan sobre os as-

    pectos religiosos, mais do que os polticos, da cultura do povo iroqus.

    Para mim, os comentrios de Sneca referem-se desconfiana deMorgan sobre o "imaginativo e o emocional", sua relutncia em admitirque a religio tem um importante aspecto racional, e sua crena em, quetudo quanto aparece como "grotesco" conscincia "evoluda" de um sbiodo sculo XIX deve ser, ipso facto, em grande parte "ininteligvel".

    Tambm denunciam nele uma relutncia declarada, talvez podendoser considerada como incapacidade, para fazer aquela explorao emptica

    da vida religiosa dos iroqueses, o que seria uma tentativa para apreender emostrar aquilo que Charles Hockett chamou de "viso interior" de umacultura alheia. Tal procedimento teria podido tornar compreensveis muitos

    1 Sneca: parte do povo ndio iroqus, habitante da regio a oeste de NovaIorque. Nota do tradutor.

    14

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    13/58

    dos componentes e inter-reIaes aparentemente bizarros dessa cultura.Sem dvida, Morgan poderia ter meditado com benfico resultado nas pala-vras de Bachofen (1960), dirigidas a ele numa carta: Os estudiosos ale-mes propem fazer com que a Antiguidade seja inteligvel, medindo-a de

    acordo com as concepes populares da poca actual. Eles s vem a simesmos nas criaes do passado.

    Penetrar at estrutura de uma mentalidade diferente da nossa umatarefa rdua" (p. 136). A respeito desta nota, o Professor Evans-Pritchard(1965 b) comentou recentemente que ", fora de dvida, uma tarefa rdua,especialmente quando estamos lidando com assuntos difceis, como a ma-gia primitiva e a religio, nos quais demasiado fcil, ao traduzir as conce-

    pes dos povos mais simples para as nossas prprias, transplantar nossopensamento para o deles" (p. 109).

    Gostaria de acrescentar, a ttulo de condio neste ponto, que, emmatria de religio, assim como de arte, no h povos "mais simples", hsomente povos com tecnologias mais simples do que as nossas.

    A vida "imaginativa" e "emocional" do homem sempre, e em qual-quer parte do mundo, rica e complexa. Faz parte de minha incumbnciaexactamente mostrar quanto pode ser rico e complexo o simbolismo dos ri-tos tribais.

    Tambm no inteiramente correcto falar da "estrutura de uma men-talidade diferente da nossa". No se trata de estruturas cognoscitivas dife-rentes, mas de uma idntica estrutura cognoscitiva, articulando experin-cias culturais muito diversas.

    Com o desenvolvimento da psicologia profunda clnica, por um lado,e do campo de trabalho profissional em antropologia, por outro, muitos

    produtos daquilo que Morgan chamou "natureza imaginativa e emocional"

    comearam a ser olhados com respeito e ateno, sendo pesquisados comrigor cientfico.

    Freuden encontrou nas fantasias dos neurticos, nas ambiguidadesdas imagens onricas, no humor e no trocadilho, nas enigmticas expres-ses orais dos psicticos, indicaes sobre a estrutura da psique normal.Lvi-Strauss,em seus estudos sobre os mitos e rituais das sociedades pr-le-

    15

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    14/58

    tradas captou, assim afirma ele, na estrutura intelectual subjacente dessassociedades propriedades similares quelas encontradas nos sistemas de de-terminados filsofos modernos.

    Muitos outros estudiosos e cientistas, da mais impecvel estirpe ra-cionalista, desde a poca de Morgan, acharam que valia a pena dedicar d-cadas inteiras da sua vida profissional ao estudo da religio.

    Basta citar apenas Tylor, Robertson-Smith, Frazer e Herbert Spencer;Durkheim, Mauss, Lvy-Bruhl, Hubert e Herz ; van Gennep, Wundt e MaxWeber, para confirmar o que digo. Trabalhadores de campo em antropo-logia, incluindo Boas e Lowie, Malinowski e Radcliffe-Brown, Griaulle eDieterlen, e um grande nmero de seus coetneos e sucessores, trabalharamintensamente na rea do ritual pr-letrado, fazendo observaes meticulo-sas e exactas sobre centenas de actos, e registando com dedicada atenotextos vernculos de mitos e preces, tomados de especialistas em religio.

    A maioria desses pensadores tomou a si a implcita posio teolgicade tentar explicar, ou invalidar por meio de explicaes, os fenmenos reli-giosos, considerando-os produto de causas psicolgicas ou sociolgicas dosmais diversos, e at conflituantes, tipos, negando-lhes qualquer origem so-

    bre-humana; mas ningum negou a extrema importncia das crenas e pr-ticas religiosas para a manuteno e a transformao radical das estruturas

    humanas, tanto sociais quanto psquicas.

    Talvez o leitor se sinta aliviado com a declarao de que no tenho ainteno de penetrar na arena teolgica, mas esforar- me-ei, tanto quanto

    possvel, em limitar-me a uma pesquisa emprica de aspectos da religio e,de modo particular, em descobrir algumas das propriedades do ritual afri-cano.

    Mais exactamente, tentarei, com temor e tremor, devido minha alta

    estima por sua grande erudio e reputao em nossa disciplina, opor-meao ocasional desafio de Morgan posteridade, e demonstrar que os moder-nos antroplogos, trabalhando com os melhores instrumentos conceptuaislegados a eles, podem agora tornar inteligveis muitos dos enigmticosfenmenos religiosos nas sociedades pr-letradas.

    16

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    15/58

    ESTUDOS DOS RITOS DA FRICA CENTRAL

    Comecemos pelo atento exame de alguns rituais executados pelopovo em cujo meio fiz um trabalho de campo durante dois anos e meio, opovo ndembo, do noroeste de Zmbia.

    Tal como os iroqueses de Morgan, o povo ndembo matrilinear, ecombina a agricultura de enxada com a caa, qual atribuem alto valor ri-tual. O povo ndembo pertence a um grande conglomerado de culturas dafrica Central e Ocidental, que associam considervel habilidade na escul-tura em madeira e nas artes plsticas a um complicado desenvolvimento dosimbolismo ritual.

    Muitos desses povos tm ritos complexos de iniciao, com longosperodos de recluso na floresta, para treino de novios em costumes eso-tricos, frequentemente associado presena de danarinos mascarados,que retratam espritos dos ancestrais ou deidades. Os ndembos, juntamente

    com seus vizinhos do norte e do oeste, os lundas de Katanga, os luvales,oschokwes e os luchazis, do grande importncia ao ritual; os seus vizinhosdo leste, os kaondes, os lambas e os ilas, embora pratiquem muitos rituais,

    parecem ter menos variedades distintas de ritos, um simbolismo menosexuberante, e no possuem cerimnias de circunciso dos meninos.

    As suas diversas prticas religiosas so menos estreitamente unidasumas s outras. Quando iniciei o trabalho de campo entre os ndembos, tra-

    balhei dentro da tradio estabelecida por meus predecessores, na utili-

    zao do Instituto Rhodes-Livingstone para Pesquisa Sociolgica, locali-zado em Lusaka, capital administrativa da Rodsia do Norte (atual Zmbia).

    Este era o mais antigo instituto de pesquisa estabelecido na fricabritnica, fundado em 1938, destinado a ser um centro onde o problema doestabelecimento de relaes permanentes e satisfatrias entre nativos e no-

    17

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    16/58

    nativos devia constituir objeto de especial estudo. Sob a direo de GodfreyWilson e de Max Gluckman, e, mais tarde, de Elizabeth Colson e de ClydeMitchell, os pesquisadores do Instituto fizeram estudos de campo sobre ossistemas polticos e jurdicos tribais, sobre relaes de casamento e de fa-

    mlia, aspectos da urbanizao e migraes de trabalho, estrutura compara-da das aldeias e sistemas ecolgicos e econmicos tribais.

    Realizaram tambm boa quantidade de trabalho no traado de mapase classificaram todas as tribos da regio que era, na poca, a Rodsia do

    Norte em seis grupos, classificao feita de acordo com os seus sistemas dedescendncia.

    Conforme Lucy Mair (1960) indicou, a contribuio do InstitutoRhodes-Livingstone para o delineamento de planos de aco, tal como a deoutros Institutos de Pesquisa na frica inglesa, no se reduz prescrioda aco apropriada a situaes especficas, mas principalmente anlisede situaes, realizada de maneira tal que os seus autores pudessem vermais claramente as foras com as quais estavam lidando (p. 89-106). Entreessas foras, o ritual tinha uma propriedade muito baixa, no tempo emque comecei o trabalho de campo.

    Realmente, o interesse pelo ritual nunca foi grande entre os pesquisa-dores do Instituto Rhodes-Livingstone. O Professor Raymond Apthorpe

    (1961) assinalou que, das noventa e nove publicaes do Instituto, at -quela poca, que tratavam de vrios aspectos da vida africana durante osltimos trinta ou mais anos, s trs tiveram por assunto o ritual (p. IX).

    Mesmo agora, cinco anos mais tarde, das trinta e uma publicaes doRhodes-Livingstone - curtas monografias sobre aspectos da vida das tribosda frica Central - somente quatro se ocupavam principalmente com o ri-tual, sendo duas delas de nossa autoria.

    Evidentemente, a atitude de Morgan em relao s religies primi-tivas ainda persiste em muitas reas. No entanto, o primeiro director doInstituto, Godfrey Wilson, demonstrou profundo interesse pelo estudo doritual africano. Sua mulher Mnica Wilson (1954), com quem fez intensas

    pesquisas de campo sobre a religio do povo nyakyusa, da Tanznia, e quepublicou notveis estudos sobre rituais, escreveu a propsito: Os rituaisrevelam os valores no seu nvel mais profundo... os homens expressam noritual aquilo que os toca mais intensamente e, sendo a forma de expressoconvencional e obrigatria, os valores do grupo que so revelados.

    18

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    17/58

    Vejo no estudo dos ritos a chave para se compreender a constituioessencial das sociedades humanas" (p. 241).

    Se o ponto de vista de Wilson correcto, como acredito que seja, o

    estudo dos ritos tribais figuraria certamente no esprito da aspirao inicialdo Instituto, que era estudar... o problema do estabelecimento de relaespermanentes satisfatrias entre nativos e no-nativos, porque relaes sa-tisfatrias dependem de uma profunda compreenso mtua.

    Em contraste, o estudo da religio tem sido importante no trabalhodos Institutos de Pesquisa situados na frica Oriental e Ocidental especial-mente no perodo anterior conquista da independncia poltica e logoaps a obteno desta. Nas cincias sociais, em geral, acredito, est-se di-fundindo o reconhecimento de que as crenas e prticas religiosas so algomais que grotescas reflexes ou expresses de relacionamentos econ-micos, polticos e sociais.

    Antes, esto chegando a ser consideradas como decisivos indciospara a compreenso do pensamento e do sentimento das pessoas sobreaquelas relaes, e sobre os ambientes naturais e sociais em que operam.

    O TRABALHO DE CAMPO PRELIMINAR

    SOBRE O RITUAL NDEMBO

    Tenho-me detido nesta "ausncia de musicalidade religiosa" (para fa-zer uso da expresso que Max Weber aplicou a si mesmo, bastante injus-tificadamente) dos cientistas sociais da minha gerao a respeito dos estu-dos religiosos, principalmente para sublinhar a relutncia que senti, no in-cio, ao coligir dados sobre os ritos.

    Nos primeiros nove meses de trabaIho de campo, acumulei conside-rveis quantidades de dados sobre parentesco, estrutura da aldeia, casa-mento e divrcio, oramentos individuais e familiares, poltica tribal e dealdeia, e sobre o ciclo da agricultura.

    Preenchi os meus cadernos de anotaes com genealogias; tracei asplantas das choas da povoao e recolhi material de recenseamento; va-gueei pelos arredores para conseguir termos de parentesco raros e descui-dados.

    19

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    18/58

    Sentia-me, no entanto, insatisfeito, como se estivesse sempre do ladode fora olhando para dentro, mesmo quando passei a fazer uso do vernculosem nenhuma dificuldade. Isto porque percebia constantemente o batuquedos tambores do ritual na vizinhana do meu acampamento, e as pessoas

    que conhecia despediam-se frequentemente de mim para passar dias assis-tindo a ritos de nomenclatura extica, tais como Nkula, Wubwang'ue Wubinda.

    Finalmente, fui forado a reconhecer que, se de facto pretendia co-nhecer o que significava at mesmo um mero segmento da cultura ndembo,teria de vencer os meus prprios preconceitos contra o ritual e comear ainvestig-Io.

    verdade que j no incio da minha estadia entre os ndembos tinhasido convidado por eles para assistir s frequentes realizaes dos ritos de

    puberdade das moas (Nkang'a), e tentara descrever o que havia visto coma exactido possvel. Mas uma coisa observar as pessoas executando ges-tos estilizados e cantando canes enigmticas que fazem parte da prticados rituais, e outra tentar alcanar a adequada compreenso do que osmovimentos e as palavras significam para elas.

    Para obter esclarecimentos recorri inicialmente Agenda Distrital,uma compilao de apontamentos feitos ao acaso pelos oficiais da Admi-

    nistrao da Colnia sobre factos e costumes que lhes pareceram interes-santes.

    L encontrei breves relatos sobre a crena dos ndembos num DeusSupremo, em espritos ancestrais e sobre diferentes espcies de ritos.

    Alguns eram relatos de cerimnias realmente. assistidas, mas a maio-ria deles era baseada em informaes de empregados do governo local, taiscomo mensageiros e funcionrios de origem ndembo.

    Eles, entretanto, dificilmente forneciam explicaes satisfatrios so-bre os longos e complicados ritos referentes puberdade que tinha visto,embora me tenham dado algumas informaes preliminares relativas a ou-tras espcies, de ritos que eu ainda no tinha visto.

    O meu prximo passo foi conseguir uma srie de entrevistas com umchefe chamado Ikelenge, excepcionalmente bem dotado e que possua umslido conhecimento da lngua inglesa.

    20

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    19/58

    O chefe Ikelenge logo entendeu o que eu queria e deu-me um inven-trio dos nomes mais importantes de rituais ndembos, com um breve relatosobre as principais caractersticas de cada um deles.

    Logo descobri que os ndembos no se ressentiam, absolutamente,com o interesse de um estrangeiro pelo seu sistema ritual, estavam per-feitamente preparados para admitir a presena nas suas celebraes dequalquer pessoa que tratasse as crenas deles com o devido respeito.

    Pouco tempo depois o chefe Ikelenge convidou-me a assistir exe-cuo de um ritual pertencente ao culto dos caadores com armas de fogo,Wuyang'a. Durante essa execuo compreendi que ao menos um conjuntode actividades econmicas, a saber, a caa, dificilmente seria entendidosem a aquisio do idioma ritual pertinente caa.

    A acumulao dos smbolos, simultaneamente indicativos do poderde caar e da virilidade, deu-me tambm a entender vrias caractersticasda organizao social ndembo, especialmente a acentuao da importnciados elos contemporneos entre os parentes masculinos numa sociedade ma-trilinear, cuja continuidade estrutural era feita atravs das mulheres.

    No quero deter-me agora no problema da ritualizao do papel dossexos, mas apenas salientar que certas regularidades observadas na anlise

    dos dados numricos, tais como genealogias da aldeia, recenseamentos eregistos sobre a sucesso nos cargos e na herana de propriedades, s setornavam plenamente inteligveis luz de valores encarnados se expressosem smbolos nas cerimnias rituais.

    Havia limites, contudo, para o auxlio que o chefe Iklenge estava ca-pacitado a oferecer-me. Em primeiro lugar, a sua posio e os mltiplospapis inerentes a ela impediam-no de deixar a aldeia principal por muitotempo e as suas relaes com a misso local, de importncia poltica para

    ele, eram excessivamente delicadas, numa situao em que os mexericosespalhavam as novidades com toda a rapidez, no lhe permitindo o luxo deassistir a muitas cerimnias pags.

    Alm disso, a minha prpria pesquisa estava a transformar-se rapida-mente numa investigao micro-sociolgica do processo evolutivo da vidada aldeia.

    21

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    20/58

    Mudei o meu acampamento da capital do chefe para um conglome-rado de aldeos comuns.

    Ali, com o passar do tempo, a minha famlia veio a ser aceite mais ou

    menos como uma parte da comunidade local, e, com os olhos abertos para aimportncia do ritual na vida dos ndembos, minha mulher e eu comemosa perceber muitos aspectos da cultura ndembo que tinham sido previamenteinvisveis para ns por causa de nossos antolhos tericos.

    Como disse Nadel, os factos mudam com as teorias, e novos factosproduzem teorias novas. Foi mais ou menos nessa poca que li algumasobservaes no segundo artigo publicado pelo Instituto Rhodes-Livings-tone, The Study of African Society, escrito por Godfrey e Monica Wilson(1939), no sentido de que, em muitas sociedades africanas onde o ritual ainda um assunto de importncia, h um certo nmero de especialistas reli-giosos aptos a interpret-lo.

    Mais tarde, Monica Wilson (1957) escreveria que "qualquer anliseque no se baseasse em alguma traduo dos smbolos usados pelo povodaquela cultura estaria exposta a suspeitas" (p. 6). Comecei, ento, a pro-curar especialistas em ritual ndembo, para gravar textos interpretativosfornecidos por eles sobre ritos que pude observar.

    A nossa liberdade de acesso s execues e exegese foi, sem d-vida, ajudada pelo facto de que, tal como acontece com a maior parte dosantroplogos em trabalho de campo, distribuamos remdios, enfaixvamosferimentos, e, no caso da minha mulher (que filha de mdico e mais cora-

    josa nestes assuntos do que eu), injectvamos soro em pessoas mordidaspor cobras.

    Uma vez que muito dos cultos rituais dos ndembos so realizados emfavor de doentes, e j que os remdios europeus so vistos como possuindo

    uma eficcia mstica da mesma qualidade que os daquele povo, porm, comuma potncia maior, os especialistas em curas comearam a olhar-nos co-mo colegas e a acolher com satisfao a nossa presena nas suas activi-dades.

    Lembro-me de ter lido nas Missionary Travels do Dr. Livingstoneque ele fazia questo de consultar os curadores locais sobre a condio dos

    pacientes e com isto contribuiu para o bom relacionamento com uma parteinfluente da populao da frica Central.

    22

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    21/58

    Seguimos o seu exemplo, e isto pode ter sido uma das razes pelasquais nos foi permitido assistir s fases esotricas de vrios ritos e obter oque o inqurito-cruzado sugeria como sendo interpretaes razoavelmentedignas de confiana de muitos dos smbolos empregados nos rituais.

    Ao dizer "dignas de confiana" quero dar a entender naturalmenteque as interpretaes eram, em conjunto, reciprocamente consistentes. Po-der-se-ia, de facto, dizer que essas interpretaes constituem a hermenuti-ca padronizada da cultura ndembo, e no de associaes livres ou opiniesexcntricas de indivduos. Tambm recolhemos interpretaes de ndembosque no eram especialistas em rituais, ou, pelo menos, no eram especia-listas no ritual directamente em exame.

    A maioria dos ndembos, tanto homens quanto mulheres, eram mem-bros de, pelo menos, uma associao de culto e dificilmente se encontravauma pessoa mais velha que no fosse um "expert" no conhecimento secretode mais de um culto.

    Deste modo, construmos gradualmente um corpo de dados de obser-vao e de comentrios interpretativos que, ao ser submetido anlise, co-meou a mostrar certas regularidades, das quais foi possvel extrair umaestrutura, expressa num conjunto de padres.

    Mais adiante consideraremos algumas das caractersticas desses pa-dres.

    Durante todo esse tempo, nunca pedimos que um ritual fosse reali-zado exclusivamente para nosso proveito antropolgico; no somos favo-rveis a semelhante representao teatral artificial. Mas no havia carnciade representaes espontneas.

    Uma das nossas maiores dificuldades era frequentemente decidir, em

    determinado dia, a qual de duas ou mais execues assistiramos. medidaque nos tornvamos cada vez mais parte do cenrio da aldeia descobrimosque com grande frequncia as decises de executar o ritual estavam rela-cionados com crises na vida social das aldeias.

    Escrevi alhures, com mincias, sobre a dinmica social das cerim-nias rituais, e no pretendo fazer mais do que uma meno passageira a elasnestas conferncias.

    23

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    22/58

    Aqui lembrarei apenas que, entre os ndembos, existe uma conexoestreita entre conflito social e ritual, nos nveis de aldeia e "vizinhana"(termo que emprego para designar agrupamentos descontnuos de aldeias),e que a multiplicidade de situaes de conflito est correlacionada com u-

    ma alta frequncia de execues rituais.

    ISOMA

    O meu principal objetivo neste captulo explorar a semntica dossmbolos rituais no Isoma, um ritual dos ndembos, e construir, a partir dedados exegticos e de observao, um modelo da estrutura semntica dessesimbolismo.

    Primeiramente, preciso prestar muita ateno ao modo pelo qual osndembos explicam os seus prprios smbolos. O meu procedimento consis-tir em comear pelos aspectos particulares e chegar generalizao, dandoconhecimento ao leitor de cada passo ao longo do caminho percorrido. Ireiagora examinar de perto uma espcie de ritual que observei em trs oca-sies e para o qual tenho uma quantidade considervel de material inter-

    pretativo.

    Espero a indulgncia do leitor para o facto de ter que mencionar umgrande nmero de termos vernaculares ndembos, porque uma importante

    parte da explicao dos smbolos dada pelos ndembos baseia-se no estudode etimologias de folk .

    A significao de um dado smbolo muitas vezes, embora de modoalgum invariavelmente, derivada pelos ndembos do nome a ele atribudocuja acepo remonta a alguma palavra primitiva, ou timo, muitas vezesum verbo. Os estudiosos mostraram que em outras sociedades bantos este

    frequentemente um processo de estabelecer uma etimologia fictcia, depen-dente da similaridade do som mais que da derivao a partir de uma origemcomum.

    No obstante, para o prprio povo o processo constitui parte da "ex-plicao" de um smbolo ritual; e aqui estamos empenhados em descobrir"a viso interior ndembo", o modo como os ndembos sentem o seu prprioritual e o que pensam a respeito dele.

    24

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    23/58

    Razes para a realizao do ritual Isoma

    O Isoma (ou Tubwiza) pertence a uma classe (muchidi) de rituaisassim conhecidos pelos ndembos e identificados como "rituais das mu-lheres", ou "rituais de procriao", sendo uma subclasse dos "rituais dosespritos dos ancestrais, ou "sombras", termo que tomo emprestado a

    Monica Wilson. A palavra ndembo usada para designar "ritual" chidika,que tambm significa "um compromisso especial" ou "uma obrigao".

    Isto relaciona-se com a ideia de que o indivduo tem a obrigao devenerar as sombras dos ancestrais, porque, como dizem os ndembos, "noforam elas que deram luz ou geraram vocs?". Os rituais a que me refiroso, de facto, executados porque pessoas ou grupos incorporados deixaramde satisfazer essa obrigao.

    Seja por sua prpria culpa ou como representante de um grupo deparentes, acredita-se que uma pessoa foi "apanhada" por uma sombra,como dizem os ndembos, e atormentada por uma desgraa, julgada apro-

    priada ao sexo a que pertence e ao seu papel social. A infelicidade adequa-da s mulheres consiste em alguma forma de interferncia na capacidade dereproduo da vtima. Em carcter ideal, uma mulher que viva em paz comos seus companheiros e se lembre dos parentes mortos dever casar-se e serme de "crianas espertas encantadoras" (traduo de uma expressondembo).

    25

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    24/58

    Mas uma mulher que seja rixenta ou membro de um grupo divididopor brigas eque, simultaneamente "esqueceu a sombra [da me morta, daav materna ou de qualquer outra ancestral matrilinear morta] no fgado[ou, como diramos ns, no'corao']" corre o perigo de ter o seu poder pro-

    criativo (Lusemu ) "amarrado"(kukasila) pela sombra ofendida.

    Os ndembos, que praticam a descendncia matrilinear combinadacom o casamento virilocal, vivem em aldeias pequenas e mveis. O efeitodesse arranjo que as mulheres, atravs de quem as crianas herdam afiliao primria de linhagem e residncia, passam muito tempo do seuciclo reprodutivo nas aldeias dos maridos e no nas dos parentes matri-lineares.

    No h regra fixa, como existe, por exemplo, entre os habitantes ma-trilineares das ilhas Trobriand, segundo a qual os filhos das mulheres quevivem sob essa forma de casamento devem ir residir nas aldeias dos irmos.de suas mes e de outros parentes maternos, ao atingirem a adolescncia.

    Como consequncia disto, cada casamento fecundo transforma-se,entre os ndembos, numa arena de luta surda entre o marido de uma mulhere os irmos dela, e os irmos da me da esposa, em relao filiao resi-dencial.

    Havendo tambm um estreito lao entre uma mulher e os seus filhos,isto significa habitualmente que, depois de um perodo curto ou longo, amulher acompanhar os filhos sua aldeia de filiao matrilinear.

    Os meus dados numricos sobre o divrcio entre os ndembos indi-cam que esses ndices so os mais altos dentre todas as sociedades matri-lineares da Africa Central, para as quais existem dados quantitativos dignosde confiana, e todas tm altos ndices de divrcio. J que com o divrcioas mulheres voltam aos seus parentes maternos - e a fortiori aos filhos que

    residem entre esses parentes - num sentido real a continuidade da aldeia,atravs das mulheres, depende da descontinuidade marital.

    Mas, enquanto uma mulher est residindo com marido e com os fi-lhos pequenos, cumprindo, assim, a norma desejada de que a mulher deveagradar ao marido, ele no est cumprindo outra norma igualmente dese-

    jada, a de que deveria contribuir com filhos para se tornarem simultanea-mente membros da sua aldeia matrilinear.

    26

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    25/58

    interessante notar que so as sombras de parentes nuninos ma-trilineares diretos - as mes dos indivduos ou avs maternas - as sombrasencarregadas de afligir as mulheres com distrbios reprodutivos, o que con-duz a esterilidade temporria. A maior parte dessas vtimas est residindo

    com os maridos, quando os vaticnios decidem que foram apanhadas pelainfertilidade ocasionada pelas sombras matrilineares.

    Elas foram apanhadas, assim dizem os ndembos, porque "se esque-ceram" daquelas sombras que no s so suas ascendentes directas, mastambm as progenitoras imediatas dos seus parentes maternos, que formamo grupo central de membros das aldeias, que no so as de seus maridos.Os ritos de cura, incluindo o Isoma, tm como uma das suas funes sociais,de "obrig-las a lembrarem-se" dessas sombras que so os ndulos estru-turais de uma linhagem matrilinear residente no local.

    A esterilidade que essas sombras acarretam considerada temporria,podendo ser afastada com a execuo dos ritos apropriados. Quando a mu-lher se lembra da sombra que a aflige e, assim, do seu dever bsico de fide-lidade aos seus parentes matrilineares, a interdio sobre a sua fertilidadecessar. Poder continuar vivendo com o marido, mas com uma vvidaconscincia a respeito do lugar onde se situa a lealdade fundamental dela edos seus filhos.

    A crise produzida por esta contradio entre as normas soluciona-sepor meio de rituais ricos em simbolismo e frteis em significado.

    A forma processual

    O ritual Isoma participa, juntamente com outros cultos de mulheres,de um mesmo perfil diacrnico ou forma processual. Em cada um deles,uma mulher sofre de perturbaes ginecolgicas. Em tal caso ou o marido

    ou um parente matrilinear do sexo masculino procura um adivinho, quequalifica precisamente o tipo de aflio em que a sombra, como dizem osndembos, "saiu da sepultura para apanh-la".

    Dependendo do tipo de aflio, o marido ou o parente masculinoserve-se de um mdico (chimbuki), que "conhece os remdios" e os proce-dimentos rituais correctos para aplacar sombra atormentadora, a fim deque actue como mestre de cerimnias no procedimento a ser realizado.

    27

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    26/58

    Este mdico, ento, convoca outros mdicos para ajud-la. Elespodem ser mulheres que j passaram por situao idntica no mesmo tipode ritual e assim ganharam acesso ao culto de cura, os homens ligados de

    perto por parentesco matrilinear, ou por afinidade a uma paciente anterior.

    Os pacientes (ayeji) podem ser considerados como "candidatos" qualidade de membros do culto, e os mdicos como seus "peritos".

    Acredita-se que as sombras atormentadoras (akishi) tenham sidoantigos peritos. A associao ao culto, deste modo, corta transversalmente aaldeia e a linhagem, colocando temporariamente em operao o que podeser chamado "uma comunidade de sofrimento", ou melhor, de "antigos so-fredores" do mesmo tipo de aflio que agora atinge a candidata doente.

    A associao num culto como o Isoma entrecorta at mesmo asfronteiras da tribo, porque membros de tribos cultural e linguisticamenteaparentadas como os luvales, chokwes e luchazis, tm autorizao decomparecer aos ritos Isoma dos ndembos, na qualidade de peritos e, comotal, de cumprir tarefas rituais.

    O perito "mais velho" (mukulumpi), ou "maior (weneni) geralmen-te um homem, mesmo para os cultos de mulheres, como o Isoma, pois, co-mo acontece na maioria das sociedades matrilineares, enquanto a colocao

    social obtida atravs das mulheres, a autoridade fica nas mos dos ho-mens.

    Os cultos das mulheres tm a trplice estrutura diacrnica com que otrabaIho de Van Gennep nos familiarizou.

    A primeira fase, chamada Ilembi, separa a candidata do mundo profano; asegunda, chamada Kunkunka (literalmente, "na cabana de capim"), parcial-mente aparta-a da vida secular; enquanto a terceira, chamada Ku-tumbuka uma dana festiva para celebrar o afastamento da interdio da sombra ea volta da candidata vida normal.

    No Isoma, isto assinalado quando a candidata d luz uma crianae chega a cri-la at ao estgio dos primeiros passos.

    28

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    27/58

    A exegese nativa dos smbolos

    O que foi dito o bastante a respeito dos amplos cenrios sociais eculturais do Isoma. Se quisermos penetrar agora na estrutura interna dasideias contidas neste ritual, temos de compreender como os ndembos inter-

    pretam os seus smbolos.

    O meu mtodo , assim, necessariamente o inverso daquele de in-meros estudiosos que comeam por extrair a cosmologia que frequente-mente se expressa em termos de ciclos mitolgicos e, ento, passam a ex-

    plicar rituais especficos como exemplos ou expresses de "modelos estru-turais" que encontraram nos mitos.

    Os ndembos, porm, possuem muito poucos mitos, e narrativas cos-molgicas ou cosmognicas. , consequentemente, necessrio comear pe-la outra extremidade, com os blocos bsicos da construo, as "molculas"do ritual. A estas chamarei "smbolos" e por enquanto evitarei envolver-meno longo debate sobre a diferena entre os conceitos de smbolo, signo, esinal.

    J que esta aproximao preliminar parte de uma perspectiva "de

    dentro", faamos antes do mais um exame dos costumes dos ndembos. Nocontexto ritual ndembo, quase todo o objecto usado, todo o gesto realizado,todo o canto ou prece, toda a unidade de espao e de tempo representa, porconvico, alguma coisa diferente de si mesmo. mais do que parece ser e,frequentemente, muito mais.

    Os ndembos tm noo da funo simblica ou expressiva dos ele-mentosrituais. Um elemento ritual, ou unidade, chamado chijikijilu. Lite-ralmente esta palavra significa "ponto de referncia", ou "marca". O seu

    timo ku-jikijila, "marcar uma pista", fazendo uma marca numa rvorecom uma machadinha ou quebrando um de seus galhos. Este termo extra-ido originariamente do vocabulrio tcnico da caa, profisso fortementeenvolvida por prticas e crenas rituais.

    Chijikijilu tambm significa uma "baliza", uma destacada caracteres-tica da paisagem, tal como um formigueiro, que separa as hortas de umhomem ou o domnio de um chefe do de outro.

    29

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    28/58

    O termo tem assim dois significados principais:

    1) como marca de caador, representa um elemento de ligao entreum territrio conhecido e outro, desconhecido, pois atravs de uma srie

    dessas marcas que o caador encontra o caminho de volta da mata estranhapara a aldeia que lhe familiar;

    2) tanto como "marca" e quanto como "baliza" transmite a noo dealgo estruturado e ordenado, opondo-se ao no estrutura do catico. J porisso seu uso ritual metafrico: liga o mundo conhecido dos fenmenossensoriais perceptveis com o reino desconhecido einvisvel das sombras.

    Torna inteligvel o que misterioso, e, tambm, perigoso. Umchijikijilu tem, alm disso e simultaneamente, um componente conhecido eum desconhecido. At certo ponto pode ser explicado, e h princpios deexplicao disposio dos ndembos. Tem um nome (ijina) e uma aparn-cia (chimwekeshu), e ambos so utilizados como pontos de partida para aexegese (chakulumbwishu).

    O nome "Isoma"

    Para comear, o prprio nome Isoma tem um valor simblico. Osmeus informantes derivam-no de ku-sotnoka, "escorregar do lugar ou fixar".

    Esta designao tem mltipla referncia.

    Em primeiro lugar, refere-se condio especfica que os ritos tmpor finalidade dissipar. Uma mulher "apanhada no Isoma " , muito frequen-temente, uma mulher que teve uma srie de gestaes malogradas ou abor-tos. Julgam que a criana nascitura "escorregou", antes que chegasse a suahora de nascer.

    Em segundo lugar, ku-somoka significa "abandonar o grupo a que o

    indivduo pertence", talvez tambm com a mesma implicao de prematuri-dade. Este tema parece, estar relacionado noo de "esquecimento" dasligaes matrilineares de uma pessoa. Discutindo a significao da palavraIsoma, diversos informantes mencionaram o termo lufwisha, como indica-tivo da condio da paciente. Lufwisha um nome abstrato, derivado deku-jwisha, por sua vez derivado de ku-fwaisha "morrer".

    Kuiwisha tem ao mesmo tempo um sentido genrico e um especfico.Genericamente, significa "perder parentes por morte",especificamente,

    "perder filhos". 30

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    29/58

    O nome lufwisha significa tanto "dar nascimento a uma crianamorta" quanto "morte constante de crianas". Disse-me um informante: Sesete crianas morrem, uma depois da outra, isto lufwisha".

    Isoma , por conseguinte, a manifestao de uma sombra que faz amulher dar luz uma criana morta ou leva morte uma srie de crianas.

    A mscara Mvweng'i".

    A sombra que emergiu no Isoma manifesta-se tambm de outros mo-dos. Julga-se que aparece nos sonhos da paciente, vestida como um dos se-res mascarados que participam dos ritos de circunciso dos meninos(Mukanda).

    As mulheres acreditam que estes seres mascarados, conhecidos comomakishi (no singular, ikishi), sejam sombra de antigos ancestrais. O que conhecido como Mvweng'i usa um saiote de fibra (nkambi) como os novi-

    os durante o seu retiro depois da circunciso e uma indumentria consis-tindo em muitos cordes feitos de tecido de casca de rvores. Carrega umasineta de caa (mpwambu) usada pelos caadores para se manterem emcontacto uns com os outros na mata densa ou para chamar os ces.

    conhecido como "av" (nkaka), aparece depois que as feridas dacircunciso cicatrizaram e grandemente temido pelas mulheres. Se umamulher toca no Mvweng'i, acredita-se que abortar.

    Um canto tradicionalmente entoado quando este ikishi aparece pelaprimeira vez perto da cabana onde os novios, esto reclusos na mata diz oseguinte:

    Kako nkaka eyo nkaka eyo nkaka yetu nenzi, eyo eyo, nkaka yetu,mwanta:"Av, av, nosso av chegou, nosso av; o chefe; "mbwemboyembwemboye yawume-e" a glande do pnis, a glande est seca, mwang'uwatutemba mbwemboye yawumi uma disperso dos espritos tulemba, aglande est seca".

    31

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    30/58

    A cantiga representa para os ndembos uma concentrao do podermasculino, porque nkaka tambm significa "um possuidor de escravos", eum "chefe" possui muitos escravos. A secagem de glande um smbolo daaquisio de um auspicioso "status" masculino de adulto e uma das finali-

    dades dos ritos de circunciso

    Mukanda, porque a glande de um menino no circuncidado con-siderada hmida e podre e portanto de mau agouro, dentro do prepcio. Osespritos tulemba, exorcizados e aplacados em outro tipo de ritual, fazem ascrianas adoecerem e definharem. Mvweng'i expulsa-os dos meninos.Acredita-se que as cordas do seu traje sirvam para "amarrar" (kukasila) afertilidade feminina.

    Em resumo, ele o smbolo da masculinidade amadurecida na suamais pura expresso - e seus atributos de caa acentuam mais isto - e, comotal, perigoso para as mulheres no seu papel mais feminino, o de me. Ora, na figura de Mvweng'i que a sombra aparece vtima. Mas aqui h certaambiguidade de exegese.

    Alguns informantes dizem que a sombra se identifica com oMvweng'i, outros, que a sombra (mukishi) e o mascarado (ikishi) operamem conjunto. Os ltimos dizem que a sombra desperta o Mvweng'i e atrai oseu auxlio para afligir a vtima.

    interessante notar que a sombra sempre o esprito de uma parentamorta, enquanto o Mvweng'i como a masculinidade personificada. Essemotivo que estabelece a ligao do distrbio reprodutivo com a identifica-o de uma mulher a um tipo de masculinidade, encontrado em outros

    pontos do ritual ndembo.

    Ele foi mencionado por mim em conexo com os ritos de cura deperturbaes menstruais, em The Forest of Symbols (1967): "Por que,

    ento, a paciente identificada com derramadores de sangue, do sexo mas-culino?

    O campo (social) desses objectos simblicos e os elementos docomportamento sugerem que os ndembos sentem que a mulher, perdendo osangue menstrual e no podendo gerar crianas, est altamente renunciandoao papel que dela se espera como mulher casada e madura.

    32

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    31/58

    Ela est se comportando como um assassino masculino (ou seja, umcaador, ou homicida) e no como uma nutridora feminina" (p. 42.

    Para uma anlise mais completa dos ritos curativos Nkula, veja-se

    Turner, 1968, p. 54-87). A situao no Isoma no diferente.

    Deve-se notar que nesses cultos a vtima frequentemente identificadaem vrios episdios e simbolismos, com a sombra que a atormenta, podem-do-se legitimamente afirmar que est sendo perseguida por uma parte ouaspecto de si mesma, projectada na sombra.

    Assim, segundo o pensamento ndembo, uma vtima curada no Isomatornar-se- ela prpria uma sombra atormentadora depois da morte, e comotal se identificar com o poder masculino Mvweng'i, ou ficar estreitamentereunida a ele.

    Mas seria, todavia, errneo considerar as crenas do Isoma apenascomo expresso do "protesto masculino". Esta atitude inconsciente pode

    bem ser mais importante nos ritos Nkula, do que no Isoma.

    A tenso estrutural entre descendncia matrilinear e o casamentovirilocal parece dominar o idioma ritual do Isoma. porque a mulher seaproximou demasiadamente do "lado masculino" do casamento que as suas

    parentas maternas mortas lhe enfraqueceram a fertilidade.

    A correcta relao que deveria existir entre descendncia a afinidadefoi perturbada; o casamento veio a sobrepujar a matrilinhagem. A mulherfoi chamuscada pelos perigosos fogos da sacralidade masculina.

    Uso esta metfora porque os prprios ndembos a empregam: se asmulheres vem as chamas da cabana de recluso dos meninos quando esta queimada depois do ritual da circunciso, crena que elas ficaro lis-

    tadas como se fossem atingidas pelas chamas ou tomaro a aparncia dazebra (ng'ala), podero apanhar lepra ou, noutros casos, enlouquecero outornar-se-o abobalhadas.

    O Processo...Ec) 28772

    33

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    32/58

    As finalidades do Isoma

    Entre as finalidades implcitas do Isoma incluem-se a restaurao dacorrecta relao entre matrilinearidade e casamento, a reconstruo das

    relaes conjugais entre mulher e marido e, finalmente, a fertilidade da mu-lher, por conseguinte do casamento e da linhagem.

    Conforme os ndembos explicam, a finalidade explcita dos ritos estem dissipar os efeitos daquilo que chamam chisaku. Em sentido lato,chisaku indica "infortnio ou doena, devidos ao descontentamento dassombras ancestrais ou quebra de um tabu". Mais especificamente, indicatambm uma maldio proferida por uma pessoa viva para aular umasombra, podendo incluir remdios especialmente feitos para causar danos aum inimigo.

    No caso do Isoma , o chisaku de qualidade especial. Acredita-se queum parente matrilinear da vtima tenha ido at a nascente (kasulu) de umriacho situado na vizinhana da aldeia de seus parentes maternos, e l tenharogado uma praga (kumushing'ana) contra ela. O efeito desta praga "despertar" (ku-tonisha) uma sombra que tenha sido outrora membro doculto Isoma.

    Como disse um informante (e traduzo literalmente): "No Isoma eles

    degolam um galo vermelho. Isto representa o chiscku, ou a desgraa emvirtude da qual as pessoas morrem e deve, ento, desaparecer (chisakuchafwang'a antu,chifumi). O chisaku morte, que no deve acontecer pa-ciente; doena (musong'u), que no deve vir para ela; sofrimento (ku-kabakana ), e este sofrimento vem do rancor (chitela) de um feiticeiro(muloji).

    Uma pessoa que amaldioa outra com a morte tem um chisaku . Othisaku proferido junto fonte de um rio. Se uma pessoa passa por l e

    pisa nela (ku-dyata) ou cruza por sobre ela (ku-badylkay), a m sorte(malwa) ou o insucesso (kuhalwa) a acompanharo em qualquer lugar paraonde for.

    Adquiriu-a naquele lugar, na fonte do riacho, e deve ser tratada (ku-uka) l. A sombra do Isotna surgiu como resultado desta praga, e vem sob aforma doMvweng'i".

    34

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    33/58

    Como o leitor pode notar, h em tudo isto um forte aspecto defeitiaria. Diferentemente de outros tipos de mulheres, o Isoma no executado apenas para aplacar uma nica sombra, mas destina-se tambm aexorcizar influncias msticas malignas que emanam no s dos vivos

    como dos mortos.

    Existe aqui uma terrvel combinao de feitio, sombra e lkishiMvweng'i, que se deve enfrentar. Os ritos abrangem referncias simblicas atodas essas influncias. significativo que um parente matrelinear sejaconsiderado a causa precipitadora da doena, o estimulador dessas duassries de seres ancestrais, um prximo, outro remoto, o Mvweng'i e asombra feminina.

    tambm significativo que os ritos sejam realizados, sempre quepossvel, perto da aldeia habitada pelos parentes matrilineares da vtima.Alm disso, ela fica parcialmente reclusa depois nesta aldeia por um tempoconsidervel, e o marido deve residir com ela em carter uxorilocal duranteaquele perodo.

    Parece haver lguma ambiguidade nos relatos dos meus informantessobre a interpretao da praga desencadeadora. Acredita-se que esta cheiraa feitiaria e, em consequncia, "m", mas ao mesmo tempo a maldio

    pode ser parcialmente justificada pelo esquecimento por parte da vtima das

    suas ligaes matrilineares tanto passadas como presentes. Os ritos emparte tm a finalidade de efectuar uma reconciliao entre as partes emjogo, visveis e invisveis, embora tambm contenham episdios de exor-cismo.

    A PREPARAO DO LOCAL SAGRADO

    Julgamos suficiente o que foi dito sobre as estruturas sociais e ascrenas principais subjacentes ao Isoma.

    Passemos agora aos ritos propriamente ditos e consideremos as inter-pretaes dos smbolos na ordem em que ocorrem.

    Estasinterpretaes ampliaro a nossa imagem da estrutura da crena,pois os ndembos que, como j disse, tm notavelmente poucos ritos, com-pensam esta escassez pela riqueza de uma detalhada exegese. No h ata-lhos, atravs do mito e da cosmologia, para se chegar estrutura - nosentido de Lvi-Strauss - da religio ndembo.

    35

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    34/58

    Temos de proceder esmiuadamente e pouco a pouco, de "marca" a"marca", de "baliza" a "baliza", se quisermos seguir adequadamente o mo-do nativo de pensar. Somente quando o caminho simblico do desconheci-do para o conhecido estiver completo que poderemos olhar para trs e

    compreender a sua forma final.

    Como acontece com todos os ritos dos ndembos, o modelo de proce-dimento em cada caso especfico estabelecido pelo adivinho originaria-mente consultado sobre a molstia da vtima. ele quem declara que a mu-lher perdeu uma srie de filhos por aborto ou morte na infncia, infortniosresumidos no termo luiwisha. ele quem decreta que os ritos devemcomear no buraco ou na toca de um rato gigante (chituba) ou de um ta-mandu (mfuji).

    Por que faz ele esta prescrio um tanto estranha? Os ndembos ex-plicam-na da seguinte maneira: ambos esses animais tapam as suas tocasdepois de escav-Ias. Cada um deles um smbolo (chijikijilu) para a mani-festao da sombra do [soma, que escondeu a fertilidade (lusemu) damulher. Os peritos do mdico devem abrir a entrada bloqueada da toca e,assim, devolver-lhe, simbolicamente, a fertilidade e tambm torn-la capa-citada para criar bem os seus filhos.

    O adivinho decide em cada caso qual dessas espcies animais escon-

    deu a fertilidade. A toca deve ficar prxima fonte do riacho onde foi ro-gada a praga. O pronunciamento de uma maldio comumente acompa-nhado pelo enterro de "remdios", em geral comprimidos (ku- panda), den-tro de um pequeno chifre de antlope.

    Baseado no conhecimento de outros ritos dos ndembos, suspeito for-temente que esses remdios so escondidos perto da nascente do rio. A tocado animal estabelece o ponto referencial de orientao para a estrutura es-

    pacial do lugar sagrado.

    Os ritos aqui discutidos so os "ritos de separao" conhecidos comoku-lembeka ou ilembi, termo ndembo materialmente correlacionado com osmodos de utilizao dos remdios ou com os recipientes destes, de empre-go destacado em algumas espcies de cultos de mulheres, e etimologica-mente com ku-lemba,"suplicar, pedir perdo, ou ficar arrependido".

    A noo de propiciao muito importante neles, porque os mdicosesto em parte implorando, em favor da paciente junto s sombras e soutras entidades preter-humanas, a devoluo da maternidade.

    36

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    35/58

    Em todos os ritos ilembis, um dos primeiros passos compete aos pe-ritos do mdico praticar, guiados pelo mais velho, ou "mestre de cerim-nias", consiste em ir floresta para recolher os remdios que serviro maistarde no tratamento da paciente. Este episdio conhecido como ku-

    lang'ula ou ku-hukula yitumbu.

    No Isoma, antes de ser dado este passo, o marido da paciente, se forcasada, constri para uso dela uma pequena choa redonda de capim, parao perodo de recluso subsquente, fora do anel formado pela dzia ou pou-co mais de cabanas que constituem uma aldeia ndembo.

    Tal cabana (nkunka) feita tambm para as moas submetidas recluso depois dos ritos da puberdade, e a choa do Isoma explicitamen-

    te comparada a essa. A paciente como uma novia. Da mesma forma co-mo uma novia na puberdade "cresce" at se tornar mulher, de acordo como modo de pensar dos ndembos, assim tambm a candidata do Isoma devercrescer de novo para se tornar uma mulher frtil.

    Tudo aquilo que foi destrudo pela praga tem de ser outra vez refeito,embora no exactamente do mesmo modo, pois, as crises da vida so ir-reversveis. Existe analogia, mas no rplica. Um galo vermelho fornecido

    pelo marido e uma franga branca fornecida pelos parentes matrilineares dapaciente so, ento, recolhidos pelos peritos, que se dirigem para determi-nada fonte do riacho onde a adivinhao previamente tenha indicado que amaldio foi feita.

    Examinam cuidadosamente o terreno, procura de sinais da toca deum rato gigante ou da toca de um tamandu. Quando a encontram, o peritomais velho dirige-se ao animal da seguinte maneira: "Rato gigante (ou ta-mandu), se voc que mata crianas, devolva agora a fertilidade mulher

    para que ela possa criar bem os filhos". Neste ponto o animal parece repre-sentar toda a "troika" (2) das foras atormentadoras - o feiticeiro, a sombra,e o ikishi.

    (2) Troika: palavra russa, significando: 1. veculo russo puxado por trscavalos emparelhados; 2. grupo de trs pessoas, ou de trs coisas,intimamente relacionadas. Nota do tradutor.

    37

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    36/58

    A tarefa seguinte consiste em amarrar dois molhos de capim, umsobre a entrada vedada da toca, o outro mais ou menos a um metro e vintecentmetros sobre o tnel feito pelo animal. A terra abaixo deles removidacom uma enxada e o perito mais velho e seu principal assistente masculino

    comeam a cavar ali buracos profundos "conhecidos como makela (nosingular ikela), termo reservado para cavidades que servem a finalidadesmgico-religiosas.

    Depois, duas fogueiras so acesas a uma distncia de cerca de trsmetros dos buracos, mais prximas do segundo que do primeiro. Diz-se queuma fogueira est situada "do lado direito" (isto , olhando-se da toca doanimal para a cavidade nova) e reservada para o uso dos peritos do sexomasculino; o outro, situado "do lado esquerdo", para as mulheres.

    O especialista mais velho coloca ento um pedao de cabaa que-brada perto da primeira cavidade na entrada da toca, e os peritos do sexofeminino, guiados pela me da paciente, caso seja ela prpria conhecedora,colocam na cabaa algumas pores de razes comestveis trazidas de suasroas, inclusive rizomas de mandioca e tubrculos de batata-doce.

    No idioma ritual, representam "o corpo" (mujimba) da paciente. si-gnificativo que sejam fornecidas por mulheres, principalmente por mu-lheres da matrilinhagem da paciente.

    Depois que o perito mais velho e seu mais importante assistente mas-culinoiniciaram a escavao, passam as enxadas para outros conhecedoresmasculinos, que continuam a escavar os buracos, at que atinjam a pro-fundidade de um metro e vinte a um metro e oitenta centmetros. A entradada toca conhecida como "o buraco do rato gigante" (ou "tamandu"), aoutra, como "o buraco novo". O animal conhecido como "feiticeiro"(muloji) e diz-se que a entrada da toca "quente" (-tata). O outro buraco chamado ku- fomwisha, ou ku-fomona, palavras que significam, respecti-

    vamente, "acalmar" e"domesticar".

    Quando atingem a profundidade apropriada, os peritos comeam acavar um em direo ao outro, at se encontrarem a meio caminho, tendocompletado um tnel (ikela dakuhanuka). Este deve ser bastante largo paraque uma pessoa possa passar por ele. Outros peritos quebram ou curvamgalhos de rvores, formando um grande crculo ao redor do cenrio inteiroda actividade do ritual para criar um espao sagrado, que rapidamentecompleta a estrutura.

    38

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    37/58

    Cingir algo numa forma circular um tema persistente do ritualndembo. geralmente acompanhado pelo processo de fazer uma clareira(mukombela) com enxada. Deste modo, um pequeno reino de ordem cria-do no meio disforme da floresta. O crculo conhecido como chipang'u,

    termo que tambm usado para a cerca construda ao redor da residnciado chefe e da sua choa dos remdios.

    A COLECTA DOS REMDIOS

    Enquanto os conhecedores mais moos preparam o local sagrado, operito mais velho e o seu assistente principal vo floresta vizinha procu-ra de remdios. Estes so recolhidos de diferentes espcies de rvores, cadauma das quais tem um valor simblico derivado dos atributos e finalidadesdo Isoma.

    Na maioria dos rituais dos ndemhos h considervel coerncia nosgrupos de remdios usados nas diferentes execues da mesma espcie deritual, mas nos ritos Isoma a que assisti havia grande variao de umarealizao para outra.

    A primeira rvore da qual so tiradas algumas partes para remdio(yitumbu) sempre chamada ishikenu, e junto dela que se faz a invoca-o, seja sombra atormentadora, seja a prpria espcie de rvore, cujo

    poder (ng'ovu) diz-se que "acordado" (kutona) pelas palavras a ele diri-gidas. Numa execuo a que assisti, o perito mais velho foi at uma rvorekapwipu (Swartzia madagascariensis), utilizada pela resistncia da madeira.

    A resistncia representa a sade e o vigor (wukolu) desejados para a

    paciente. O indivduo competente mais velho limpou a base da rvore daservas daninhas com a enxada do ritual, colocou em seguida os pedaos dostubrculos comestveis, representando o corpo da paciente, no espao limpo(mukombela) e falou o seguinte: "Quando esta mulher esteve grvida antes,seus lbios, olhos, palmas das mos e solas dos ps ficaram amarelos [umsinal de anemia]. Agora ela est grvida de novo. Desta vez, faa com queela fique forte, a fim de que possa dar luz uma criana viva, que cresasaudvel".

    39

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    38/58

    O mdico, em seguida, cortou com a sua machadinha clnica pedaosda casca de uma outra rvore da mesma espcie, e colocou-os na sua ca-

    baa quebrada. Depois disto, prosseguiu cortando pedaos de cascas dedezesseis espcies de rvores. (3)

    Uma discusso do significado de cada uma dessas rvores tomariamuito tempo. E suficiente dizer que muitos ndembos podem atribuir aelas no somente uma nica significao mas, em alguns casos (comomusoli, museng'u e mukombukombu), vrias conotaes a uma s espcie.

    Algumas destas so usadas em muitos e diversos tipos de rituais e naprtica do herbolrio (onde, contudo, diferentes tipos de ligaes associa-tivas so utilizadas, desde as empregadas no ritual, na dependncia mais dogosto ou do cheiro do que das propriedades naturais e da etimologia).

    Algumas (por exemplo, kapwipu, mubang'a) so usadas porque tmmadeira rija (de onde, "fortalecimento"), outras (por exemplo, mucha,musafwa, mufung'u, museng'u, musoli e mubulu), porque so rvores frut-feras, representando a inteno do ritual de fazer com que a paciente sejafrtil ainda uma vez. Mas todas partilham da importante propriedade ritualde que delas no se pode tirar cordes de casca, por isto "amarraria" a fer-tilidade da paciente.

    Neste sentido, devem ser todas consideradas como remdios contra-Mvweng'i, pois, como recordar o leitor, a indumentria dele feita de cor-des de casca, o que fatal para a procriao nas mulheres. No possoabster-me, contudo, de mencionar com mais detalhes um conjunto menorde remdios Isoma referentes a outra cerimnia, porque a interpretao queos nativos lhe do lana luz sobre muitas das ideias subjacentes a esse ritual.

    No presente caso os mdicos foram em primeiro lugar a uma rvore chi-kang'anjamba ou chikoli (Strychnos spinosa). Eles a descrevem como omukulumpi, "o mais velho" ou "o mais antigo" dos remdios.

    (3) Mubang'a (Afrormosia angolensis), mulumbulurnbu, mucha (Parinarimobola), musesi wehata (Erythrophloeum africanum), musesi wezenzela(Burkea africana), mosafwa, rnuungu (Anissophyllea fruticulosa ou

    boehmii), katawubwang'u, musoli (Vangueriopss Iancflora ), kayiza(Strychnos stuhlmannii), wunjimbi museng'u (Ochna pulchra), wupembi,muleng'u (Uapacaspeses), mukombukombu (tricalysia angolensis). emubulu.

    40

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    39/58

    Depois de invocar os seus poderes, tomam uma poro de uma dasrazes e algumas folhas. Chikang' anjamba significa "o elefante fracassa"(em arranc-la) por causa de sua resistncia e dureza. O outro nome,chikoli, derivam-no de kukota, "ser forte, saudvel ou firme", designao

    que est de acordo com sua extrema resistncia e durabilidade. Esta mesmarvore fornece remdio para os ritos de circunciso, acreditando-se conferiraos novios excepcional virilidade.

    No Isoma o seu uso acentua a conexo entre estes ritos e os Mukanda,os ritos de circunciso, embora seja tambm um remdio especfico contraa fraqueza e em muitos casos a anemia - da paciente. A comparao dosremdios predominantes nessas duas intervenes mostra que o mesmo

    princpio, ou ideia, pode ser expresso em diferentes smbolos.

    O remdio predominante da primeira interveno, kapwipu, tam-bm uma rvore robusta, da qual frequentemente tirado o ramo bipartidoque forma o elemento central dos santurios erigidos s sombras dos caa-dores, considerados como "homens viris e rijos". Estas rvores dos san-turios, quando se lhes tiram as cascas, so excepcionalmente resistentes aco das trrnitas e de outros insectos.

    O cozimento das folhas e da casca da kapwipu tambm usado comoafrodisaco.O segundo remdio colhido nesta operao revela outro tema

    do ritual ndembo, o de representar o estado no auspicioso da paciente. arvore mulendi que tem uma superfcie muito escorregadia, fazendo ostrepadores escorregarem com facilidade (ku-selumuka) e cair.

    Do mesmo modo, os filhos da paciente tiveram a tendncia a "escor-regar" prematuramente. Mas o "polimento" (kusenena) dessa rvore tambmtem valor teraputico e este lado de sua significao importante noutrosritos e tratamentos, porque o seu uso faz com que a "doena" (musong'u)escorregue da paciente.

    , de facto, comum que os smbolos dos ndembos, em todos os n-veis de simbolismo, expressem simultaneamente um estado auspicioso eoutro no-auspicioso.

    Por exemplo, o prprio nome Isoma, significando "escorregar", re-presenta ao mesmo tempo o estado indesejvel da paciente e o ritual para ocurar. Aqui encontramos outro princpio ritual, expresso pelo termondembo ku-solola, "fazer aparecer, ou revelar".

    41

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    40/58

    Aquilo que se torna sensorialmente perceptvel na forma de umsmbolo (chijikilu) passa a ser, desse modo, acessvel aco propositadada sociedade, operando atravs dos seus especialistas religiosos.

    o "oculto" (chamusweka) que "perigoso" ou "nocivo" (chafwana).Assim, dizer o nome de um estado no-auspicioso j meio caminho para aremover. Corporificar a aco invisvel de feiticeiros e sombras num sm-

    bolo visvel ou tangvel um grande passo no sentido de remedi-la. Istono est muito longe da prtica do moderno psicanalista.

    Quando algo apreendido pelo esprito, quando se torna um objectocapaz de ser pensado, pode ser enfrentado e dominado.

    interessante notar que o prprio princpio da revelao est corpo-rificado num smbolo medicinal ndembo, usado no Isoma . a rvore mu-soli (cujo nome deriva, segundo os informantes, de ku-solola) da qual sotiradas tambm as folhas e pedaos da casca. Ela largamente usada no ri-tual ndembo, estando o seu nome ligado s suas propriedades naturais. Pro-duz grande quantidade de pequenos frutos, que caem no cho e atraem parafora do esconderijo vrias espcies de animais comestveis que podem,ento, ser mortos pelo caador. Ela, literalmente, "faz com que eles apare-am". Nos de caa, o seu emprego como remdio destina-se a fazer osanimais aparecerem (ku-soiola anyama) ao, at ento, infeliz caador. Nos

    cultos relativos s mulheres, usada para "fazer as crianas aparecerem"(ku solola anyana) a uma mulher estril.

    Como em tantos outros casos, h na semntica deste smbolo a unioda ecologia e do intelecto, cujo resultado a materializao de umaideia.Voltemos colecta de remdios.

    Os mdicos em serulda colectam razes e folhas de uma rvorechikwata (Zizyphus mucronata), espcie em cujo significado teraputico a

    etimologia ainda uma vez se combina com as cactersticas naturais, achikwata tem "fortes espinhos" que "pegam" (ku-kwata) ou agarram quem

    passa junto dela.

    Diz-se que representa tanto o "vigor" quanto, por seus espinhos, capaz de "cortar a enfernidade".

    4 Veja-se tambm Turner, 1967, p. 325-326.

    42

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    41/58

    Eu poderia, se o tempo permitisse, estender-me sobre o tema ritualde "pegar" ou "agarrar", expresso em muitos smbolos. Invade a linguagemdo simbolismo da caa, como era de esperar, mas tambm exemplificadona frase "pegar uma criana" (ku-kwata mwana), que significa darnasci-

    mento".

    Mas passarei espcie medicinal seguinte, da qual, so tiradas por-es, a musong'a-song'a (Ximenia caffra), tambm uma rvore de madeiradura, proporcionando, assim, sade e fortalecimento, igualmente derivada

    por etimologia popular de ku-song'a, "vir a dar fruto, ou criar frutos", termometaforicamente aplicado a dar nascimento a crianas, tal como acontececom a ku-song'anyana.

    A rvore muchotuhotu (Canthium venosum) usada como remdio"por causa de seu nome". Os ndembos derivam-no de ku-hotomoka, "cairde repente", como um ramo ou fruto. O estado no-auspicioso, espera-se,cessar repentinamente aps a aplicao dela. A seguir, o remdio tiradoda rvore mutunda, nome derivado de ku-tunda, significando "ser mais altado que as que esto em volta".

    No Isoma, ela representa o bom crescimento de um embrio no tero e odesenvolvimento exuberante e contnuo da criana da em diante. Mupa-

    pala (Anthocleista species) o nome da espcie medicinal seguinte e uma

    vez mais temos a representao do estado no-auspicioso da paciente. Osndembos derivam o seu nome de kupapang'ila, que significa "perambularconfusamente", sem que a pessoa saiba onde est.

    Um informante explica-o do seguinte modo: "Uma mulher vai, deum lado para outro, sem ter filhos. No deve fazer isto. por esta razoque talhamos o remdio mupapala".

    Por trs dessa ideia e da ideia de "escorregar" est a noo de que

    bom e apropriado que as coisas se fixem no lugar adequado e as pessoasfaam o que lhes conveniente fazer na sua fase da vida e segundo sua

    posio na sociedade.

    Noutra representao do Isoma , o remdio principal, ou smbolodominante, no foi uma rvore de espcie particular, mas qualquer rvorecujas razes estivessem totalmente expostas vista.

    43

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    42/58

    Tal rvore chamada wuvumbu, derivada do verbo ku-vumbuka,significando "estar desenterrado e sair do esconderijo", como, por exemplo,um animal caado. Assim, um informante esboou o significado dela di-zendo o seguinte: "Usamos a rvore wuvumbu para trazer qualquer coisa

    superfcie. Do mesmo modo, tudo no Isoma deve ser claro" (-lumbuluka).Trata-se de outra variante do tema da "revelao".

    Os remdios frios ou quentesAbertura da Morte e da Vida

    s vezes, uma poro de madeira retirada de uma rvore podrecada. Esta, mais uma vez, representa musong'u da paciente ou seu estadode doena, de tormento.

    Equipados com esse arsenal de remdios revigorantes, fecundado-

    res, reveladores, clarificantes, doadores de sade e fixadores, alguns dosquais, alm disso, representam a espcie de padecimento da paciente, os

    peritos voltam ao lugar sagrado, onde o tratamento ser feito. Completamagora os preparativos que conferem quele espao consagrado a sua estru-tura visvel. As folhas e os fragmentos de casca medicinais so triturados

    por uma especialista do sexo feminino num almofariz destinado ao preparode refeies. So, em seguida, molhados com gua e o remdio liquefeito dividido em duas pores. Uma delas colocada num grande e grosso

    pedao de casca (ifunvu), ou dentro de um caco de loua de barro (chizanda),

    sendo ento aquecida no fogo aceso exactamente do lado de fora do buracocavado atravs da entrada da toca da ratazana gigante ou do tamandu. Aoutra poro derramada fria dentro de um izawu, termo que se referetanto a um vaso de barro quanto a uma gamela para remdio, ou dentro deuma cabaa quebrada, sendo esta colocada perto da "nova cavidade" (veja-se a Figura 1).

    44

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    43/58

    FIGURA 1. Isoma: a cena do ritual. O casal a ser tratado senta-se na cavi-dade quente de um tnel, representando a passagem da morte para a vida.Um mdico cuida do fogo medicinal situado atrs do casal. Uma cabea deremdios frios est colocada em frente da cavidade fria, podendo-se ver aentrada do tnel. Os mdicos esperam a os pacientes surgirem.

    45

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    44/58

    Segundo um informante, as cavidades representam "sepulturas"(tulung'a) e poder procriativo (lusemu), por outras palavras, tmulo e tero,O mesmo informante continua: A ikela (cavidade) do calor a iketa damorte. A ikela fria vida. A ikela da ratazana a ikela da desgraa ou ran-

    cor (chisaku). A ikela nova a ikela do fazer bem (kuhandisha) ou da cura.

    Uma ikela localiza-se na nascente de um riacho ou perto dela; repre-senta lusetnu, a capacidade de procriar. A nova ikela deve soprar para lon-ge da paciente (muyeji). Desta maneira as coisas ruins a abandonaro. Ocrculo de rvores quebradas um chipang'u. [Este um termo commltiplos significados que representa (1) um cercado; (2) um cercado ritual;(3) um ptio cercado, ao redor da morada do chefe e da cabana dosremdios; (4) um crculo ao redor, da lua].

    A mulher com lufwisha [isto , que perdeu trs ou quatro crianasnatimortas ou por mortalidade infantil] deve entrar no buraco da vida e pas-sar atravs do tnel para o buraco da morte. O mdico mais importante as-

    perge-a com o remdio frio, enquanto o seu assistente a borrifa com oremdio quente".

    46

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    45/58

    Comeamos agora a ver o desenvolvimento de uma srie inteira declassificaes, simbolizadas em orientaes espaciais e em diferentes tiposde objetos.

    Elas so organizadas num Conjunto que Lvi-Strauss bem poderiachamar "discriminaes binrias".

    Mas, antes de analisarmos o padro, mais algumas variveis devemser introduzidas no sistema.

    Nas sesses a que assisti, o marido da paciente entrava na ikela "fria"com ela, permanecendo no "lado direito", mais prximo da fogueira dos

    homens, enquanto ela ficava esquerda.

    Ento, depois de ter sido aspergida com remdio frio e quente, elaera a primeira a entrar no tnel de conexo, seguida pelo marido.

    Numa variante, o perito mais velho (ou "grande mdico") borrifavaambos, mulher e marido, com remdio frio e quente.

    Em seguida, o seu assistente assumia a direco durante algum tem-

    po e procedia da mesma maneira.

    47

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    46/58

    Aves brancas e vermelhas

    Quando a paciente entra pela primeira vez na ikela fria, do-lhe a

    franga branca para segurar. Durante os ritos ela a estreita contra o peitoesquerdo, no mesmo lugar onde uma criana carregada (veja-se a Figura2).

    Alis os dois, marido e mulher, esto nus, usando apenas estreitas ti-ras de pano na cintura. Dizem que isto representa o facto de que eles so,ao mesmo tempo, como bebs e cadveres.

    Os oficiantes, em contraste, esto vestidos. O galo vermelho adulto deitado, atado pelos ps, direita da ikela quente, do lado dos homens,

    pronto a ser sacrificado por degola, no fim do ritual.

    O seu sangue e as suas penas so derramados dentro da ikela, comoacto final de rito, representando a anttese da recepo da franga branca

    pela paciente, com que se inicia o ritual.

    Acredita-se que a franga branca representa ku-koleka, "boa sorte ou vigor",e ku-tooka," brancura, pureza, ou bons augrios". Mas o galo ver-melho,como vimos, representa o chisaku, ou desgraa mstica, o sofri-mento" da

    mulher. A franga branca, de acordo com um informante, tambm simbolizalusemu, capacidade de procriar.

    por isto que dada mulher", disse ele, "porque ela que ficagrvida e d nascimento aos filhos. Um homem um homem, e no podeficar grvido. Mas o homem d poder s mulheres para terem filhos, que

    podem ser vistos, que so visveis.

    O galo vermelho representa o homem, talvez o rancor esteja l" [isto

    , contra ele]. "Se a mulher continua a no ter filhos depois do ritual, o ran-cor estaria na mulher" [isto , no se relacionaria com a sua situao mari-tal, mas teria origem em outros grupos de parentes.

    Por fim, provavelmente significativo, ainda, embora isto no sejadeclarado, que o galo vermelho permanea amarrado e imobilizado duranteo ritual enquanto a galinha branca acompanha a mulher, medida que elase movimenta atravs do tnel da "vida" para a "morte" e, de volta, para a"vida" outra vez. Noutros contextos do ritual ndembo, o movimento repre-senta a vida e a imobilidade a morte: o galo destinado a ser abatido.

    48

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    47/58

    FIGURA 2. Isoma: a paciente segura a franga branca de encontro ao seioesquerdo, representando o lado da amamentao.

    49

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    48/58

    O PROCESSO CURATIVO

    Na makela os ritos seguem um padro processual. A primeira faseconsiste na passagem da ikela fria para a quente, indo a mulher na frente eo homem atrs. Na ikela quente os mdicos mesclam os borrifos de rem-dio com exortaes a quaisquer feiticeiros ou imprecadores, a fim de seremeliminadas suas influncias adversas.

    Depois, o casal, na mesma ordem, retorna ikela fria onde outravez aspergido com remdio (veja-se a Figura 3).

    Cruzam ento uma vez mais na direo da ikela quente. Segue-se umtemporrio perodo de calma, durante oqual o marido escoltado para forada lkela, indo buscar um pequeno pedao de pano para enxugar o remdiodo rosto do casal e do corpo da franga.

    FIGURA 3. Isoma: o mdico, ao lado da cabaa, borrifa os pacietnescomremdio, enquanto os homens ficam de p, do lado direito do eixolongitudinal do tnel, cantando a cano ondulante, Kupunjila

    50

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    49/58

    Volta ikela fria e, depois de nova medicao, h um prol do inter-valo, durante o qual trazida cerveja, que bebido pelos assistentes e pelomarido. Quanto paciente, est proibida de beber. Aps a cerveja, ini-ciando-se outra vez na ikela fria, a asperso recomea.

    Desta vez o marido quem toma adianteira para a ikela quente (veja-se a Figura 4). Voltam para a ikela fria na mesma ordem.

    FIGURA 4. Isoma: o marido prepara-se para seguir a mulher atravs dotnel.

    Depois da asperso, h outro intervalo para a cerveja. Ento a se-quncia frio-quente-frio prossegue, a mulher frente. Finalmente, h umasequncia idntica, ao fim da qual o galo vermelho degolado e o seu san-gue derramado dentro da ikela quente (veja-se a Figura 5). O casal ento

    borrifado mais uma vez com ambos os tipos de remdio, e gua fria derramada sobre os dois (veja-se a Figura 6). No Iodo, o casal aspergidovinte vezes, treze das quais na ikela fria, sete na quente, uma proporoaproximadamente de dois para um. Enquanto a asperso continua, os pe-ritos do sexo masculino, direita, e as mulheres adultas esquerda, entoamcantos pertencentes aos rituais da grande crise da vida e dos ritos de ini-ciao dos ndembos: dos Mukanda, circunciso dos meninos; Mung'ong'i,ritos de iniciao funerria; Kayong'u, iniciao adivinhao; Nkula, cul-to tradicional de mulheres; e Wuyang'a, iniciao a cultos de caadores.Periodicamente, cantam o canto Isoma "mwanami yaya punjila", acompa-

    51

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    50/58

    FIGURA 5. Isoma: o galo degolado sobre o fogo, sendo o sangue espa-lhado na cavidade "quente".

    nhado por uma dana ondulante, chamada kupunjila, que representa o estilode dana dos Mvweng'i ikishi, e, ademais, imita as contraces do trabalhoabortivo.

    ESTRUTURA CLASSIFICATRIA: AS TRADES

    Temos agora dados bastantes para tentar analisar a estrutura dos ritos.Primeiramente, h trs sries de trades. Existe a trade invisvel - feiticeiro,sombra e Mvweng' i - qual se ope a trade visvel - mdico, paciente emarido da paciente. Na primeira trade, o feiticeiro o mediador entre osmortos e os vivos, numa hostil e letal conexo; na segunda, o mdico omediador entre os vivos e os mortos, numa ligao conciliatria e doadorade vida. Na primeira, a sombra feminina e o ikishi, masculino, enquanto o

    feiticeiro pode ser de qualquer sexo; na segunda a paciente do sexo fe-minino e o marido, do sexo masculino. O mdico serve de intermedirioentre os sexos, j que trata de ambos. O mdico ndembo, na verdade, temmuitos atributos considerados na cultura ndembo como femininos. Podemoer remdios num almofariz utilizado no preparo de refeies, tarefa nor-malmente cumprida por mulheres e trata com as mulheres e conversa comelas sobre assuntos particulares, de uma maneira que no seria permitidoaos homens em funes profanas. O termo usado para designar o "mdico",chimbana, relaciona-se, segundo os ndembos, com o termo mumbanda, querepresenta "mulher".

    52

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    51/58

    FIGURA 6. Isoma : gua fria derramada sobre o casal

    53

  • 7/28/2019 Victor Turner -planos de classificao ritual

    52/58

    FIGURA 7. Isoma: mulher e marido acocoram-se na cabana de recluso

    recentemente construda, onde a franga branca tambm ser mantida at postura do primeiro ovo. A cabana construda fora da aldeia. O mdicosegura na mo direita a faca com a qual degolou o galo.

    Em ambas as trades h estreitos laos de relaes entre dois par-ceiros. Na primeira, acredita-se que a sombra e o feiticeiro sejam parentesmatrilineares; na segunda, marido e mulher so ligados por afinidade.

    O primeiro par aflige o segundo com a infelicidade. O outro parceiro,Mvweng'i, representa o modo dessa desgraa e o outro terceiro parceiro, omdico, representa o modo de suprimir o infortnio.

    A terceira trade representada pela proporo 2:1 entre as tubu-laes frias e quentes, que, alm disso, podem ser consideradas um smboloda vitria final da vida sobre a morte. Est contida aqui uma dialtica que

    passa da vida, atravs da morte, para uma vida renovada.

    Talvez, no nvel da "estrutura profund