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XVI Congreso Internacional de la ALFAL – Alcalá 2011 4376 O ESTATUTO DA REGRA VARIÁVEL E O FENÔMENO DA CONCORDÂNCIA VERBAL EM VARIEDADES DO PORTUGUÊS Silvia Rodrigues Vieira Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil) Resumo: Investiga-se a natureza da concordância verbal de 3ª pessoa do plural nas variedades brasileira, européia e africanas – São Tomé e Príncipe – do Português. Com base no referencial teórico provido pela Teoria da Variação e Mudança, a investigação busca suprir a carência de descrições variadas do fenômeno em materiais contemporâneos, contando com entrevistas a informantes provenientes de meios urbanos (europeus, brasileiros e são-tomenses), consoante as variáveis idade, escolaridade e sexo. No corpus sob investigação, verificou-se alta realização da concordância nas três variedades. Entretanto, o fenômeno comporta-se de maneira absolutamente diversa no PE frente às outras variedades, especialmente a brasileira. Os resultados sugerem a adequação do tratamento diferenciado do estatuto da concordância na Língua Portuguesa nas diversas sociedades, levando em conta não só a atuação de motivações estruturais, mas também o contexto social que envolve o uso da língua em cada grupo de falantes. Palavras-chave: concordância, variação, Sociolinguística. 1. Situando e justificando o trabalho Investigar o estatuto da concordância verbal de 3ª pessoa do plural nas variedades brasileira (PB), européia (PE) e africanas – São Tomé e Príncipe (PST) – do Português constitui o objetivo central do presente trabalho. Esse objetivo integra-se aos propósitos do Projeto Brasil-Portugal Estudo comparado dos padrões de concordância em variedades africanas, brasileiras e européia (CAPES-GRICES 217/08) 20 , projeto que, com nova configuração, passa a integrar, a partir de 2011, os grupos de projetos da Associação de Linguística e Filologia da América Latina (Projeto ALFAL n o 21). Para cumprir o objetivo proposto, a investigação vale-se do referencial teórico provido pela Teoria da Variação e Mudança (Weinreich; Herzog; Labov 1968). O fenômeno da concordância verbal tem sido amplamente utilizado nos debates relacionados à interpretação das origens do Português do Brasil (Naro & Scherre 2007; Guy 1981; Lucchesi 2008), consoante ao menos duas concepções distintas: uma que pressupõe que os índices de falta de concordância brasileiros tiveram origem no Português Europeu transplantado para o Brasil, de acordo com o movimento próprio do sistema em situação de deriva lingüística (Naro; Scherre 2007); e outra que propõe ser a falta de concordância brasileira resultante da intensa situação de contato lingüístico, do qual se originou uma transmissão lingüística irregular (Lucchesi et al. 2009). Para os que defendem a primeira abordagem, duas fontes de dados têm sido essenciais: (i) dados do Português arcaico, que demonstrariam a gênese da falta de concordância; (ii) dados do Português Europeu (PE) contemporâneo, que atestariam também a não-concordância, embora com variações menos freqüentes e com maiores limitações sociais. Os que defendem a segunda abordagem propõem que (i) a “variação da concordância no PE é na melhor das hipóteses residual e periférica” (Lucchesi et al. 20 O projeto – que contou com o apoio do Programa de cooperação internacional CAPES/GRICES – resulta da produtiva parceria entre a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Universidade de Lisboa e contou com a coordenação brasileira da Professora Silvia Rodrigues Vieira e com a coordenação europeia da Professora Maria Antónia Coelho da Mota. Para maiores detalhes, consultar o site www.letras.ufrj.br/concordancia.

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Sociolinguística da Língua portuguesa; sujeito.

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O ESTATUTO DA REGRA VARIÁVEL E O FENÔMENO DA CONCORDÂNCIA VERBAL EM

VARIEDADES DO PORTUGUÊS

Silvia Rodrigues Vieira Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil)

Resumo: Investiga-se a natureza da concordância verbal de 3ª pessoa do plural nas variedades brasileira, européia e africanas – São Tomé e Príncipe – do Português. Com base no referencial teórico provido pela Teoria da Variação e Mudança, a investigação busca suprir a carência de descrições variadas do fenômeno em materiais contemporâneos, contando com entrevistas a informantes provenientes de meios urbanos (europeus, brasileiros e são-tomenses), consoante as variáveis idade, escolaridade e sexo. No corpus sob investigação, verificou-se alta realização da concordância nas três variedades. Entretanto, o fenômeno comporta-se de maneira absolutamente diversa no PE frente às outras variedades, especialmente a brasileira. Os resultados sugerem a adequação do tratamento diferenciado do estatuto da concordância na Língua Portuguesa nas diversas sociedades, levando em conta não só a atuação de motivações estruturais, mas também o contexto social que envolve o uso da língua em cada grupo de falantes.

Palavras-chave: concordância, variação, Sociolinguística.

1. Situando e justificando o trabalho Investigar o estatuto da concordância verbal de 3ª pessoa do plural nas variedades brasileira (PB),

européia (PE) e africanas – São Tomé e Príncipe (PST) – do Português constitui o objetivo central do presente trabalho. Esse objetivo integra-se aos propósitos do Projeto Brasil-Portugal Estudo comparado dos padrões de concordância em variedades africanas, brasileiras e européia (CAPES-GRICES 217/08)20, projeto que, com nova configuração, passa a integrar, a partir de 2011, os grupos de projetos da Associação de Linguística e Filologia da América Latina (Projeto ALFAL no 21). Para cumprir o objetivo proposto, a investigação vale-se do referencial teórico provido pela Teoria da Variação e Mudança (Weinreich; Herzog; Labov 1968).

O fenômeno da concordância verbal tem sido amplamente utilizado nos debates relacionados à interpretação das origens do Português do Brasil (Naro & Scherre 2007; Guy 1981; Lucchesi 2008), consoante ao menos duas concepções distintas: uma que pressupõe que os índices de falta de concordância brasileiros tiveram origem no Português Europeu transplantado para o Brasil, de acordo com o movimento próprio do sistema em situação de deriva lingüística (Naro; Scherre 2007); e outra que propõe ser a falta de concordância brasileira resultante da intensa situação de contato lingüístico, do qual se originou uma transmissão lingüística irregular (Lucchesi et al. 2009).

Para os que defendem a primeira abordagem, duas fontes de dados têm sido essenciais: (i) dados do Português arcaico, que demonstrariam a gênese da falta de concordância; (ii) dados do Português Europeu (PE) contemporâneo, que atestariam também a não-concordância, embora com variações menos freqüentes e com maiores limitações sociais. Os que defendem a segunda abordagem propõem que (i) a “variação da concordância no PE é na melhor das hipóteses residual e periférica” (Lucchesi et al.

                                                            20 O projeto – que contou com o apoio do Programa de cooperação internacional CAPES/GRICES – resulta da produtiva parceria entre a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Universidade de Lisboa e contou com a coordenação brasileira da Professora Silvia Rodrigues Vieira e com a coordenação europeia da Professora Maria Antónia Coelho da Mota. Para maiores detalhes, consultar o site www.letras.ufrj.br/concordancia.  

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2009: 331); e (ii) no PB, haveria um continuum relacionado à concretização da concordância – da norma urbana culta (com altos índices de concretização da regra de concordância ) até as comunidades rurais afro-brasileiras (com os mais baixos índices de não-concordância) – que evidenciaria o efeito do contato entre línguas.

Em relação à variedade brasileira, os estudos variacionistas têm registrado fartas evidências dos índices expressivos de não-concordância nominal e verbal (especialmente em comunidades rurais e não escolarizadas), condicionados por variáveis já bem delineadas. A variedade europeia não dispõe, até onde se sabe, de resultados sociolingüísticos que apontem, com segurança, as tendências já amplamente comprovadas no Português do Brasil em termos quantitativos e qualitativos. Quanto ao PST, não se teve acesso a resultados sociolinguísticos labovianos acerca do fenômeno.

Embora não tenha por objetivo o debate a respeito da origem do PB supracitado, o presente artigo propõe que o estabelecimento dos padrões de concordância assumidamente variáveis em dados contemporâneos de variedades brasileira, europeia e africanas do Português, e a comparação da expressão de concordância nessas variedades, considerando a quantidade e a qualidade de dados variáveis, constituem propósitos fundamentais para a caracterização da(s) gramática(s) da língua portuguesa. Por ora, o trabalho cumpre apenas o propósito de apresentar os índices de concordância em cada variedade estudada e as reflexões preliminares a respeito da regra variável e dos condicionamentos da variação no corpus estudado, descrito a seguir.

2. Aspectos metodológicos Para o cumprimento desses propósitos, a pesquisa conta com parte do corpus representativo do PB e

do PE constituído, no período de 2008 a 2010, no âmbito do Projeto Estudo comparado dos padrões de concordância em variedades africanas, brasileiras e européias e, ainda, com parte da amostra referente ao PST, organizada, em 2008, pelo Professor Tjerk Hegemeijer.

No que se refere aos critérios gerais de constituição do material utilizado neste trabalho, a pesquisa vale-se de 53 entrevistas com informantes oriundos de meios urbanos (18 europeus; 18 brasileiros, e 17 são-tomenses21), consoante as variáveis idade, escolaridade e sexo.

Faixa etária

Nível de escolaridade

Gênero

A = 18 a 35 anos Fundamental (de 6 a 9 anos de escolaridade)

Masculino

B = 36 a 55 anos Médio (de 10 a 12 anos de escolaridade)

Feminino

C = 56 a 75 anos Superior (graduação)

3 células x 3 células x 2 células =18 informantes (naturais das localidades em estudo)

Quadro 1. Critérios de constituição da amostra em análise

Todas as ocorrências de sintagmas sujeito com 3ª pessoa do plural foram coletadas, codificadas e tratadas22 segundo o arcabouço da Sociolingüística Variacionista, que se vale do pacote de programas

                                                            21 No momento da elaboração do trabalho, em fase preliminar, só estavam disponíveis as entrevistas realizadas em Nova Iguaçu/RJ (PB) e em Oeiras/Lisboa (PE). Não obstante os diferenciados perfis dessas localidades, acredita-se que elas constituem fontes válidas de depreensão do que ocorre no fenômeno da concordância em áreas de perfil nitidamente urbano. Quanto ao PST, lamentavelmente, só foi possível localizar, no corpus gentilmente disponibilizado pelo Professor Tjerk Hegemeijer, 5 dos 6 informantes com curso superior planejados.

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computacionais Goldvarb-X. Esse levantamento de dados permitiu detectar a existência de semelhanças e / ou diferenças quantitativas ou qualitativas em PB, PE e PST, no que se refere aos padrões de concordância de 3a pessoa.

3. A expressão da não-concordância em PB, PST e PE: análise preliminar 3.1. A distribuição dos dados: concordância versus não-concordância O levantamento e o tratamento dos dados nas três subamostras consideradas revelaram a seguinte

distribuição de dados em cada localidade (cf. tabela a seguir):

PB PST PE Não-concordância 294 / 1374 (21%) 47 / 687 (7%) 19 / 1477 (1%) Concordância 1080/ 1374 (79%) 640 / 687 (93%) 1457/1477 (99%)

Tabela 1. Distribuição dos dados de concordância e não-concordância verbal de 3ª pessoa plural nas três variedades estudadas

Considerando apenas os índices gerais de ausência da marca de número plural, pode-se observar

que as variedades do Português em análise apresentam comportamentos distintos quanto ao fenômeno. Enquanto a amostra do Português Europeu apresenta apenas 1% de não-concordância, a amostra do PST exibe 7% e a do PB, 21%. Essa diferença quanto à produtividade das variantes por si só enseja um debate acerca da natureza da suposta regra variável registrada em cada amostra.

A respeito da definição do perfil de regras lingüísticas, Labov (2003) propõe que fenômenos cujas marcas de concretização de determinada variante alcancem índices superiores a 95% poderiam ser considerados regras semicategóricas, e não efetivamente variáveis. Se fosse o caso de aplicar unicamente esse perfil quantitativo como critério, os dados encontrados nesta pesquisa indicariam que a concordância de 3ª pessoa plural no PB e no PST constituiria uma regra variável, enquanto no PE constituiria uma regra semicategórica. Entende-se, entretanto, que uma investigação qualitativa dos dados deve ser associada à observação dos índices quantitativos, de modo a discutir o perfil do fenômeno em cada variedade.

Neste trabalho, desenvolvem-se as primeiras reflexões de natureza qualitativa acerca das ocorrências de não-concordância encontradas consoante a indicação das variáveis condicionadoras selecionadas na análise estatística, no caso do PB e do PST, e a observação das ocorrências de cancelamento da marca de número, no caso do PE23.

3.2. O estatuto variável da concordância em cada variedade Os resultados do tratamento estatístico, oriundos da aplicação do pacote de programas Goldvarb-X,

não deixam dúvida ao perfil variável da amostra brasileira, com altos índices de realização da marca de número. Esses índices localizam essas variedades, consoante o continuum proposto por Lucchesi et al. (2009) para o Brasil, no espaço das variedades urbanas com informantes (semi-)escolarizados. Esse continuum brasileiro de polarização sociolinguística pode ser representado no esquema abaixo, que apresenta as freqüências brutas de cancelamento da marca de número de 3ª pessoa do plural em estudos com materiais brasileiros, incluindo, a seguir, os resultados do presente estudo:

______________________________________________________________________________

                                                                                                                                                                              22 A coleta e a codificação preliminar dos dados contaram com a participação de Fernanda Fernanda Villares Vianna Barreto (para o PE), Mariana de Araújo Jaggi (para o PST) e Rodrigo Cunha da Silva (para o PB), orientandos que desenvolveram, durante o ano de 2010, pesquisa de iniciação científica na Faculdade de Letras da UFRJ. 23 Tendo em vista a inexpressiva concretização da variante não-concordância (apenas 19 dados), não foi produtivo realizar a rodada variacionista, de modo que foi feita a observação individual das ocorrências.

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94%

73%-79% 48% 38% 16%

Falantes da cidade do Rio de Janeiro com curso superior (Graciosa 1991)

Escolarizados RJ (Scherre; Naro 1997); Florianópolis (Monguilhott; Coelho 2002) + Nova Iguaçu/ RJ (Vieira 2011)

Analfabetos da cidade do Rio de Janeiro (Naro 1981)

Comunidades de pescadores analfabetos do Estado do RJ (Vieira 1995)

Comunidades rurais do interior da Bahia (Lucchesi et al. 2009)

Esquema 1. Localização dos resultados para o PB no continuum de concretização da não-concordância em variedades brasileiras segundo levantamento feito por Lucchesi et al. 2009: 348

Considerando apenas as tendências verificadas na seleção de variáveis relevantes ao

condicionamento da concordância verbal, estratégia preferida na amostra, o estudo confirma resultados de outras investigações brasileiras. As variáveis lingüísticas selecionadas foram as seguintes: a posição do sujeito em relação ao verbo; o paralelismo das marcas de número no nível oracional – entre sujeito e verbo; o traço semântico de animacidade do referente sujeito; e, ainda, a saliência fônica. Quanto ao condicionamento extralingüístico, os grupos de fatores extralingüísticos faixa etária e escolaridade apresentaram relevância na amostra estudada.

Em resumo24, o quadro a seguir lista, conforme a ordem de seleção das variáveis, os contextos que favoreceram a realização da marca de número plural na amostra estudada:

Variáveis Contextos favorecedores da marca de nº

Faixa etária Indivíduos da faixa B (> faixa C > faixa A)

Escolaridade Informantes com curso superior (versus os demais)

Posição do sujeito A anteposição do sujeito

Paralelismo no nível clausal Sujeitos com núcleos plurais

Animacidade do sujeito Sujeito animado

Saliência fônica Formas verbais de alto nível de saliência

Quadro 2. Sistematização dos resultados por variável relevante: contextos favorecedores da concordância verbal de 3ª pessoa plural na amostra do PB

Os resultados obtidos para a amostra do Português de São Tomé e Príncipe, cujo índice de

concordância é bastante expressivo (93%), apresentaram semelhanças em relação aos resultados do PB quanto a três variáveis lingüísticas, quais sejam: posição do sujeito em relação ao verbo, animacidade do sujeito e saliência fônica. Além desses grupos de fatores, também foram selecionados para a amostra de

                                                            24 Dado o caráter panorâmico deste artigo, não se detalham aqui os resultados por variável, mas são apresentadas apenas as tendências gerais. O detalhamento de cada variável condicionadora já está previsto na agenda da pesquisa, para publicação em breve.

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PST – com resultados que merecem um tratamento particular – as variáveis extralingüísticas sexo, faixa etária e escolaridade do informante.

O quadro a seguir também sistematiza, conforme a ordem de seleção das variáveis, os fatores que favoreceram a realização da marca de número plural na amostra estudada para o PST:

Variáveis Contextos favorecedores da marca de nº

Escolaridade Informantes com curso superior (> ensino médio > ensino fundamental)

Sexo Mulheres

Saliência fônica Formas verbais de alto e médio níveis de saliência

Animacidade do sujeito Sujeito animado

Faixa etária Indivíduos da faixa A (> faixa B > faixa C)

Posição do sujeito Anteposição do sujeito

Quadro 3. Sistematização dos resultados por variável relevante: contextos favorecedores da concordância verbal de 3ª pessoa plural na amostra do PST

Embora a natureza do condicionamento na realidade dos dados que dizem respeito ao Português do

Brasil e ao Português de São Tomé e Príncipe mereçam, sem dúvida, tratamentos particulares, podem-se detectar algumas semelhanças gerais entre os resultados referentes à amostra do PB e à amostra do PE.

A seleção comum de variáveis lingüísticas (exceto “paralelismo”, selecionada apenas na amostra do PB) revela tendências semelhantes, quais sejam: (i) a posposição do sujeito desfavorece a concordância, (ii) o alto grau de diferenciação fônica entre as formas singular e plural desfavorece a concordância, e (iii) o traço menos animado do referente sujeito também desfavorece a concordância.

Quanto ao condicionamento extralingüístico, a seleção das variáveis revela que, na sociedade brasileira e na são-tomense, a escolaridade e a idade dos informantes, ainda que de forma diferenciada, exercem influência no condicionamento do fenômeno. Na amostra do PB, revela-se que ter alto grau de escolaridade implica alteração de comportamento, no sentido de concretizar mais a forma de prestígio, a marca de número plural, tendência que não se verifica nem na fala dos indivíduos com ensino fundamental, nem nos indivíduos com ensino médio. Na amostra do PST, a preferência pela marca de número vai-se intensificando de forma gradual em relação ao nível de instrução, de modo que o aumento da concordância é proporcional ao aumento da escolaridade.

No que se refere à faixa etária na amostra brasileira estudada, verifica-se que os informantes da faixa intermediária (de 36 a 55 anos) são os que mais concretizam a marca de número, enquanto os da faixa A (de 18 a 35 anos) e os da faixa C (acima de 55 anos) têm comportamento semelhante, com índices menores de concordância. Esse resultado é sugestivo, em termos labovianos, de um quadro de variação estável. Na amostra do PST, a preferência pela marca de número também aumenta de forma gradual em relação à idade do informante, de modo que o quadro detectado sugere, em termos labovianos, um quadro de mudança em progresso em direção à concordância. Obviamente, é prematuro postular qualquer interpretação geral para as variedades estudadas tomando por base os primeiros resultados de uma única amostra. A continuidade da pesquisa permitirá aferir as tendências mais gerais especialmente em relação ao PST, variedade pouco explorada nos estudos labovianos.

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Cabe, a seguir, descrever as ocorrências do cancelamento da marca de concordância na amostra europeia, que, diferente das amostras brasileira e são-tomense, não permitiu sequer o desenvolvimento do estudo quantitativo laboviano. Tendo em vista que só se registraram dezenove casos de suposta não-concordância na amostra do PE, passa-se a apresentar os tipos de estruturas que representam esses dados.

Após proceder à observação das dezenove ocorrências, uma a uma, foi possível detectar os padrões estruturais encontrados. Sistematizando os resultados dessa observação, essas ocorrências foram distribuídas pelos seguintes contextos:

(i) sete dados (exemplos 1 a 3) de estruturas com o verbo “ser”: estruturas topicalizadas, construções apresentacionais, usos impessoais (cf. Mota, Vieira, 2007).

(1) “o português é um pouco mais fechado e eu também as vezes tenho imensos comentários porque no ginásio apanho muitos brasileiros no ginásio os brasileiros É o culto do corpo o total calor a falar e então eles têm o hábito o hábito do exercício que já está com eles acho que vem um bocado por causa do culto do corpo lá faz calor mais tempo”

(2) “devia fazer desporto mas não faço- essencialmente essencialmente é- os meus tempos livres É passar são passados a família a brincar com as minhas filhas a- apoiá-las a- passearmos a- e quando tenho- um bocadinhos bocadinhos livres é ler”

(3) “acho que tem a ver também com a tecnologia como vai desenvolvendo vai havendo cada vez mais distracções a nível de tecnologia que É as internets é – é os jogos de computador é pronto vai havendo cada vez mais - os telemóveis que dantes não havia tudo isso – e – e que dantes era ( ) era diferente a pessoa acabava por comunicar mais do que hoje – hoje é tudo por telefone por mails – não há cara-a-cara não há – tipo olhar para a pessoa e falar directamente com a pessoa – é diferente”

(ii) duas estruturas cujo sujeito pode ser interpretado como singular ou plural, explícito ou não (exemplos 4 e 5);

(4) “portanto a aí eu já vou pôr essas que há muita gente perdeu os seus empregos ai eu sei que para esses há crise e também aquelas pessoas que vieram de fora também - CHEGOU [gente? Pessoas?] aqui também não têm nada não é?”

(5) “é assim aproveitam imagina que estes óculos estão a estão a cinquenta euros mas querem aumentá-los para sessenta e cinco - então metem o preço em cima sessenta e cinco euros e depois metem riscado os os cinquenta euros - tipo a dizer que ESTÁ [os óculos? o estabelecimento comercial?] em promoção”

(iii) 8 ocorrências duvidosas de cancelamento da marca de número em função do contexto fonético-fonológico (a dúvida quanto à identificação da marca de número ocorre em função do encontro de segmentos nasais – como no exemplo 6 – ou de segmentos vocálicos possivelmente nasalizados – como no exemplo 7)

(6) “os hábitos que não me AGRADA muito a é é é- neste momento que estamos a atravessar é a falta de respeito que a juventude tem pelos mais velhos no meu tempo não era assim”

(7) “é muito chata porque eu já sabia de quem era não sabia de quem ERA os carros mas sei sei que é dos vizinhos não é?”

e (iv) 2 dados de posposição do sujeito (exemplos 8 e 9): (8) “acho que não e acho que as pessoas ainda nem sequer estão a pensar nisso – falou-se

nisso quando foi aprovado e acabou - SAIU algumas gramáticas alteradas mas ninguém está a usar nada – acho que a grande complicação é por exemplo quando chegamos à altura dos nossos filhos”

(9) “são de um modo geral são famílias também ah de imigrantes pronto mais de imigrantes não quer dizer que agora com esta – crise que a gente está a passar que não há pessoas que

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não estejam a recorrer a estes meios porque pronto está assim um bocado a situação que APARECE pessoas que a gente pensa às vezes que nem que não precisam e que não e que aparecem mas era mais de imigrantes”

A observação detalhada das estruturas encontradas na amostra do Português Europeu permitiu verificar que, em termos qualitativos, a suposta falta de concordância na amostra do PE lisboeta está concentrada em contextos lingüísticos específicos e não ocorre na diversidade de contextos já verificados no PB. Apenas nos dois casos de sujeito posposto, tem-se de fato um contexto estrutural, amplamente debatido na literatura, em que as três variedades registram casos de cancelamento da marca de número plural. Acredita-se que esse resultado, associado ao baixíssimo índice da suposta falta de concordancia em termos quantitativos, fortalece a hipótese de que, ao menos no Português Europeu lisboeta, o fenômeno configura um caso de regra semicategórica, nos termos de Labov (2003).

4. Considerações finais Os resultados obtidos para as variedades do Português consideradas neste estudo permitiram atestar

que PB e PST apresentam uma regra variável de concordância verbal de 3ª pessoa plural, com altos índices de realização da marca de número. Esses índices aproximam o comportamento geral da concordância nessas variedades – consoante o continuum proposto por Lucchesi et al. (2009) para o Brasil – ao das variedades urbanas brasileiras com informantes (semi)-escolarizados. No que se refere ao PE lisboeta, a inexpressiva produtividade da não-concordância associada à qualidade dos exemplos encontrados, que revelam contextos estruturais bastante específicos (e por vezes até duvidosos), faz supor que o fenômeno estudado se concretiza com o perfil de uma regra semicategórica, o que desfavorece a argumentação em prol das semelhanças entre PB e PE quanto ao fenômeno.

Tendo em vista o caráter panorâmico dessa primeira investigação com dados contemporâneos do banco de dados do Projeto “Estudo comparado dos padrões de concordância nas variedades africana, brasileira e europeia do Português”, propõe-se que o aprofundamento da investigação não poderá abdicar das seguintes tarefas:

(a) traçar um quadro sociolingüístico detalhado do comportamento das variedades considerando outros pontos de inquérito (Copacabana e adjacências, no PB; e Cacém, no PE) e maior número de informantes (no caso do PST);

(b) comparar os resultados obtidos com os de outros estudiosos, especialmente sobre a concordância verbal no PE (Varejão 2006; Naro & Scherre 2007; Monguilhot 2010) e sobre a concordância de forma geral no PST (Brandão 2011);

(c) proceder a uma investigação das características socioculturais relacionadas ao Português de São Tomé e Príncipe; e

(d) propor explicações para o conjunto dos fenômenos observados, à luz de diversificado aparato teórico-científico.

O cumprimento da agenda de tarefas proposta implica o investimento de vasta pesquisa em duas

frentes de trabalho: (i) ampliar o estudo contrastivo variacionista considerando PB, PE e variedades africanas, de modo

a responder à seguinte questão: as variáveis linguísticas e extralinguísticas que atuam na variedade brasileira e, ao que parece, no PST manifestam relevância estatística no caso do PE na totalidade dos dados a investigar? (investigação sociolingüística lavobiana).

(ii) considerando os dados de difícil identificação da presença da marca de concordância, proceder ao levantamento minucioso da pronúncia das desinências número-pessoais em corpora brasileiros e fazê-lo em corpora europeus, de modo a responder à seguinte questão: a diferenciação que se propõe para o PE e PB é verificável na comparação das mesmas formas verbais? (investigação no âmbito da interface morfologia-fonética).

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Espera-se que, a médio prazo, os resultados das pesquisas no âmbito do Projeto ALFAL (número 21)

permitam a caracterização do estatuto da concordância nas variedades brasileiras, africanas e européias, levando em conta não só a atuação de motivações estruturais, mas também o contexto social que envolve o uso da língua em cada grupo de falantes. Referências bibliográficas Brandão, Silvia Figueiredo. 2010. Concordância nominal em duas variedades do português:

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