Viena do Vinho

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por Carlos Marcondes Viagem DiVina A TERRA DA MúSICA CLáSSICA E DE FABULOSOS MONUMENTOS IMPERIAIS é TAMBéM A CAPITAL QUE MAIS PRODUZ VINHO NO MUNDO H A Viena dO V inhO á séculos, Viena traz consigo a imagem de ser referência como capital inovadora e de forte personalidade. Sob a dinastia Habsburger, chegou a ser a cidade mais importante do Ocidente na era do império austro-húngaro. Após passar por séculos de monarquia, guerras e diversas transformações, ela soube se reinventar para per- manecer sob os holofotes globais, evoluindo até conquistar, em 2010, pela segunda vez, o título de metrópole com melhor qualidade de vida do planeta, concedido pela consultoria internacional Mercer, que avalia as condições sociais, ambientais e de entretenimento oferecidas à população em mais de 220 cidades. Viena é uma das poucas cidades que pratica a viticultura em perímetro urbano

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por Carlos MarcondesViagem DiVina

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A Viena dO VinhO

á séculos, Viena traz consigo a imagem de ser referência como capital inovadora e de forte personalidade. Sob a dinastia Habsburger, chegou a ser a cidade mais importante do Ocidente na era do império austro-húngaro. Após passar por séculos de monarquia, guerras e diversas transformações, ela soube se reinventar para per-manecer sob os holofotes globais, evoluindo até conquistar, em 2010, pela segunda vez, o título de metrópole com melhor qualidade de vida do planeta, concedido pela consultoria internacional Mercer, que avalia as condições sociais, ambientais e de entretenimento oferecidas à população em mais de 220 cidades.

Viena é uma das poucas cidades que pratica a viticultura em perímetro urbano

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Esses vinhos são conhecidos como Heurige. A tradição data de uma lei de 1784, promulgada quando o impera-dor José II quis garantir aos produtores a possibilidade de vender suas garrafas diretamente em suas vinícolas. Hoje, diversos vinicultores têm pequenas tavernas onde oferecem suas criações e ótima comida. Segundo a tradi-ção, um pequeno galho de pinheiro na porta do estabe-lecimento garante que o cliente encontrará vinho jovem para ser degustado. Há dezenas dessas tavernas na cidade, mas o local mais pitoresco e com o maior número de opções é o pequeno bairro de Grinzing. A charmosa região fica no início dos Pré-Alpes austríacos, ou florestas de Viena, e é considera-da pela Unesco uma reserva da biosfera. Grinzing é uma bela combinação de bairro residencial com polo turístico, cercado de vinhedos por todos os lados. O perfeito retrato de uma rica cidade do interior, que está a poucos quilômetros do centro de uma das maiores capitais europeias. Nosso simpático guia uruguaio, Pablo Rudich, conta que a região também era uma das preferidas de Bee-thoven, que, por 35 anos em Viena, chegou a morar em 67 diferentes locais. “Contam que ele tinha muitas manias, além de ter a vida financeira muito instável. Mudar-se pas-sou a ser uma rotina em sua vida”, explica. Acima desse bairro chega-se a diversos mirantes cerca-dos de vinhas, de onde é possível ter uma noção clara de como os vinhedos estão próximos do centro da cida-de, emoldurados pelo suntuoso rio Danúbio, o segundo maior do continente. De lá também se avista a pequena cidade de Klosterneuburg, distante cerca de 10 km de Viena. A vila foi fundada pelo imperador Carlos Magno e se desenvolveu como berço de importantes monastérios, que também produziam vinhos. Podem-se visitar diversas vinícolas que ainda hoje continuam sob o comando de monges beneditinos.

Gourmet imperialTalvez nenhuma capital do mundo ofereça uma experiên-cia enófila tão completa como a de Viena. Mas a cidade também brilha com outros deleites culinários e culturais, presentes em todos os pequenos bairros, projetados em volta de um anel central, o Ringstrasse, onde fica a maio-ria dos palácios e museus da época imperial.

Os cafés, por exemplo, são quase sagrados em Viena, uma tradição que vem do século 17 e que se modernizou um pouco, mas nem tanto assim. Você não deve, porém, pedir simplesmente um “café” ao garçom – é considerado de bom tom pedir diretamente pelo tipo preferido, como um Melange ou um Einspanner. Há na cidade cerca de 150 típicos cafés vienenses, alguns sempre cheios de turistas, como o Mozart bei der Oper ou o Gerstner. Uma boa pe-dida é visitar o tradicional Sperl, que mantém preservada a maioria de sua mobília original, da época de sua inaugu-ração, em 1880. O lugar é frequentado por moradores do descolado bairro 11, bem próximo ao centro.

O que poucos sabem, entretanto, é que a terra que inspi-rou gênios como Strauss, Freud e Beethoven também es-timulou vinhateiros a transformarem-na na única capital do mundo a praticar a viticultura dentro de seu perímetro urbano com uma produção considerável. Cerca de 230 pe-quenos agricultores cultivam 700 hectares de vinhas que geram 2,1 milhões de litros por ano. Da área total, 80% são reservados para cepas brancas, cultivadas para elaborar principalmente o tradicional Gemischter Satz, nome dado ao vinho feito com diferentes uvas, que, plantadas lado a lado, após colhidas, são prensadas juntas, gerando uma be-bida sem muita estrutura, porém repleta de personalidade.

Orgulho nacionalA relação cultural do vinho com os vienenses é algo bem interessante. Há um orgulho admirável pela bebida regio-nal, que contagia quem visita a cidade. A aceitação é tão significativa que quase 75% do total produzido no país atende a demanda interna. Além do aumento da quali-dade nos rótulos oferecidos, há uma tradição tentadora que motiva consumir apenas os vinhos locais: são os cha-mados Heuriger. É quase uma instituição austríaca. São charmosas tabernas, espalhadas por todo o país e presen-tes em diversos bairros de Viena. As casas são autoriza-das a vender apenas rótulos locais e da safra corrente.

investir em qualidade e em produção sustentável parece ser o futuro da viticultura de Viena. um exemplo é a hajszan, bodega que tem 14 hectares de vinhas com vista panorâmica do centro da cidade. o enólogo stefan hajszan orgulha-se de se tornar o primeiro produtor de biodinâmicos de Viena. seu Gruner Veltliner nussberg 2008 é uma prova de que o terroir da cidade pode gerar belos brancos com ótimo frescor e acidez equilibrada. Já o Gemischter satz, também feito sob a filosofia biodinâmica, leva 11 diferentes uvas, entre as quais muller thurgau, zweigelt e Gelber traminer. outro produtor de destaque é richard zahel, presidente da associação dos produtores locais, que foi o primeiro a produzir um espumante de Gemischter satz. segundo richard, o segredo é não colocar muitas uvas diferentes – no máximo seis – para não perder o caráter do vinho. “o nosso terroir depende do vento que sopra pelo danúbio e dá um frescor aos vinhedos. o sul de Viena, com mais água, é perfeito para os tintos; já no norte temos brancos mais minerais e alcoólicos”, explica. Vale a visita ao heuriger da zahel, no sul da cidade. Viena também esconde a maior e mais antiga cava do país, a schlumberger. Aberta ao público, tem quilômetros de labirintos decorados com tonéis centenários, alguns ainda usados para fazer espumantes com uvas autóctones da áustria.

Vinhateiros

Taberna típica, que vende apenas vinhos

produzidos no país

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flete o espírito de diversidade do vienense. São dezenas de barracas que se misturam a descolados bares e restau-rantes. Lá se encontra de tudo, desde produtos locais e orgânicos até queijos árabes especiais. Uma das tendas mais curiosas é a que oferece uma degustação de vinagres aromáticos. O cliente escolhe o tonel de vidro com a espe-cialidade a ser provada e a produtora coloca em seu braço um pingo, com um conta gotas, para ele experimentar de um jeito bem tradicional. OriginalidadesAo andar pelas ruas de Viena, tem-se a impressão de estar em uma cidade monumental, mas que, ao mesmo tempo, esconde muitos toques vanguardistas. Suntuosos palácios e tradicionais charretes imperiais se misturam a propostas inovadoras, como as coloridas poltronas pú-blicas repletas de design, espalhadas pelas calçadas do Museums Quartier.

As belas confeitarias da cidade também merecem des-taque. São verdadeiros paraísos produtores dos famosos Strudel, Guglhupf e da Sachertorte. É essencial visitar as duas principais concorrentes, a Demel e a Sacher. Ambas são lindas e fazem jus à fama de oferecer doces inesque-cíveis. A Demel, além de surpreender visualmente com criações muito originais, era também a confeitaria oficial da família imperial. Por ter sido a capital de um enorme império, Viena in-corporou à sua gastronomia diversas especialidades que cresceram tanto no país que o mundo passou a considerá-las quase pratos típicos da Áustria, como os famosos Wie-ner, Schnitzel (escalope à vienense, original de Milão), o Goulasch – que é originalmente húngaro – e o Apfelstru-del, este nascido na Turquia. A rica e eclética gastronomia disponível na cidade pode ser mais bem compreendida em uma visita ao famoso Naschmarkt, um mercado municipal a céu aberto que re-

Naschmarkt, famoso mercado municipal que reúne barracas, bares e restaurantes

São mais de 150 cafés espalhados por Viena. Abaixo, a adega do hotel Palais Coburg, avaliada em 28 milhões de euros

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Viena é cosmopolita, histórica e contemporânea. um passeio de bicicleta é quase essencial para sentir a tranquilidade vienense, conhecer os diversos braços do danúbio e apreciar as artes dos arquitetos, como hundertwasser e o mestre otto Wagner, que deixou sua marca por todos os cantos. Vale contratar por um dia um guia local. christina crisafulli e pablo rudich conhecem tudo e falam português ([email protected] e [email protected]). em se tratando de gastronomia, o mais tradicional schnitzel fica na figlmuller, feito com 105 anos de história. Já o novo motto am fluss é um restaurante descolado, com proposta bem moderna, e fica ao lado do canal do danúbio. no coração da cidade, o Griechenbeisl é o mais antigo, numa casa com vestígios de 1447 – em um dos ambientes, assinaturas originais de figuras como beethoven e schubert engrandecem a decoração. para quem admira arte, Viena é esplendorosa. Alguns lugares merecem entrar na programação de todo turista: schonbrunn palace, Albertina, imperial palace, museu de sissi, belvedere e museu quarter.

Ver e vivenciar

A cidade exala o clássico, mas também surpreende pela criatividade. É o caso da proposta da Babette’s, ideia de uma jovem cozinheira austríaca que montou uma pe-quena livraria gourmet ao lado de uma cozinha-balcão. O cliente entra e folheia alguns livros enquanto espera que ela comece a cozinhar, mas há um detalhe: não pode escolher o que vai comer. A sugestão é interagir com a proprietária, que elege na hora o menu a ser servido, dependendo de sua inspiração. Um conceito um tanto confuso, mas que já conquistou muitos admiradores. O movimento por uma alimentação mais sustentável tam-bém tem crescido muito em Viena. Diversos restaurantes optaram por trabalhar apenas com produtos regionais, sa-zonais e quase sempre orgânicos, dentro da filosofia Slow Food. É o caso do curioso Hollmann Salon, que, guiado por conceitos de sustentabilidade, além de oferecer op-ções requintadas, resolveu adotar um sistema de cobran-ça diferente. Durante o almoço, o cliente paga quanto achar justo, podendo, inclusive, não pagar nada. “Ao con-trário do que muitos previam, aumentamos em 20% nos-sa frequência. Quem gosta do menu e do serviço muitas vezes paga até mais do que nós normalmente cobraríamos pelo almoço”, conta o chef Stefan Schartner.A inovação também alcança os hotéis, que se destacam tanto pelo luxo como pelo conceito. O hotel Rathaus, pró-ximo à prefeitura da cidade, é uma bela escolha para os amantes do vinho. Cada quarto propõe uma homenagem

a um produtor local, com um painel de fotos da vinícola estampado na porta e, é claro, garrafas com seus vinhos disponíveis no minibar. O design de todos os ambientes mescla arte com sofisticação e vinho. Outro magnífico local é o Palais Coburg. Hospedar-se em uma das suas exclusivas suítes pode custar até 2.700 euros por noite. Mas não é preciso gastar tanto para apro-veitar o principal atrativo do palácio: um restaurante ex-cepcional, que esconde um verdadeiro tesouro líquido − uma adega com mais de 60 mil garrafas avaliada em 28 milhões de euros e considerada uma das cinco maiores do continente. É possível conhecer os vários ambientes subterrâneos da adega e encantar-se com preciosidades como uma amostra rara do Château d’Yquem 1900.Com poucos dias em Viena já se percebe o real conceito de civilidade e respeito social. A qualidade de vida é um orgulho regional. O verde cerca todos os bairros da cidade, mostrando por que é considerada uma das capitais mais arborizadas do mundo. A bicicleta também é transporte ofi-cial: são dezenas de quilômetros de ciclovias, que tornam o pedalar um verdadeiro prazer. Seus cafés, restaurantes, teatros, monumentos e sua for-te musicalidade são ofertas únicas, em um lugar onde é possível viver do vinho levando a vida como um simples camponês que tem ao seu dispor todos os atrativos e facili-dades de uma bela e organizada metrópole. Um privilégio exclusivo dos vienenses.

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