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Literatura ANO: 2016 Prof.: Flavio DATA: 17/05 Casa de Pensão, de Aluísio de Azevedo INTRODUÇÃO O Realismo é um movimento contrário ao Romantismo, contemporâneo à segunda metade do século XIX. A Revolução Industrial passa por outra fase, utilizando agora, por exemplo, o petróleo, o aço, a eletricidade. Grandes descobertas científicas ocorrem, a ciência é cada vez mais defendida: antes de expor idéias é preciso prová-las cientificamente. A defesa do pensamento científico chama-se cientificismo, e muito influenciou os movimentos realista e naturalista – em muitos livros são estudados juntos, devido sua semelhança. O Realismo recebe influência também do positivismo, do socialismo científico, de Marx e Engels, que define o materialismo histórico e a luta de classes – representada por Eça de Queirós em “O Primo Basílio”, na figura da empregada Juliana. É também influenciado pelo evolucionismo de Darwin, que procura mostrar, através de estudos, a evolução das espécies através da seleção natural – e não porque “Deus assim quis”. Utilizando suas influências, o Realismo nega características românticas como o subjetivismo e o culto do “eu”, analisando o homem detalhadamente, e universalmente. Nega, também, o sentimentalismo, o sonho e a idealização, devido ao materialismo. Preocupam-se agora com o presente, não mais com o passado histórico. Não é característico o romance “de época” no Realismo – e Naturalismo. O Realismo é, portanto, uma escola literária que envolve as diversas tendências que o acompanham. Em Portugal, a poesia realista foi feia por Antero de Quental –que depois também escreveu uma poesia filosófica e metafísica – Gomes Leal e Guerra Junqueiro. Há também a poesia cotidiana de Cesário Verde. No Brasil, a poesia vigente da época era a parnasiana CONTEXTO HISTÓRICO O Realismo no Brasil tem como marco a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, em 1881. A passagem do Romantismo para o Realismo acompanha um período de muitas mudanças na história econômica, política e social brasileira. O Brasil da década de 80, quando se instala o novo movimento literário, não é mais o mesmo de 1850, época em que a segunda geração romântica dividia seus versos entre o amor e a morte, e as "moreninhas" circulavam pelos salões. O Realismo vai encontrar terreno adubado para florescer, depois de o país ter passado, ao longo de quarenta anos, por fatos importantes que foram alterando aos poucos sua feição atrasada e tacanha. Como exemplo, a Guerra do Paraguai (1864-1870), o crescimento da campanha abolicionista, o enfraquecimento do governo de D. Pedro II, a intensificação das idéias republicanas, a força da economia agrária, que concentrava a renda nas mãos de fazendeiros de açúcar, primeiro, e de café, depois. A década de 80 será muito agitada: as campanhas abolicionistas e republicanas andam juntas, em comícios, movimentos e passeatas, na maioria de estudantes e intelectuais. A escravidão e o Império caem quase ao mesmo tempo: em 1888 veio a Abolição; em 1889 Deodoro da Fonseca proclamou a República. Esses dois fatos criaram uma nova realidade, ao eliminar o trabalho servil e introduzir o princípio do voto na eleição dos governos, constituindo um índice de que se iniciava o processo de modernização da economia e política nacionais. Paralelamente, dinamiza-se a vida social e cultural (principalmente no Rio de Janeiro), como sempre soprada por ventos europeus: liberalismo, socialismo, positivismo, cientificismo, etc. Idéias jáconsolidadas lá fora e importadas por nós, no mais das vezes sem a necessária adaptação. Numa sociedade agrária, escravocrata e preconceituosa, sem indústrias, sem classe operaria, elas surgiam deslocadas, fora de lugar. A literatura realista e naturalista brasileirapassa a refletir essas idéias, no interior da realidade específica do nosso país, - 1 -

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Literatura ANO: 2016

Prof.: Flavio Brito DATA: 17/05

Casa de Pensão, de Aluísio de Azevedo

INTRODUÇÃO

O Realismo é um movimento contrário ao Romantismo, contemporâneo à segunda metade do século XIX. A Revolução Industrial passa por outra fase, utilizando agora, por exemplo, o petróleo, o aço, a eletricidade. Grandes descobertas científicas ocorrem, a ciência é cada vez mais defendida: antes de expor idéias é preciso prová-las cientificamente. A defesa do pensamento científico chama-se cientificismo, e muito influenciou os movimentos realista e naturalista – em muitos livros são estudados juntos, devido sua semelhança.

O Realismo recebe influência também do positivismo, do socialismo científico, de Marx e Engels, que define o materialismo histórico e a luta de classes – representada por Eça de Queirós em “O Primo Basílio”, na figura da empregada Juliana. É também influenciado pelo evolucionismo de Darwin, que procura mostrar, através de estudos, a evolução das espécies através da seleção natural – e não porque “Deus assim quis”.

Utilizando suas influências, o Realismo nega características românticas como o subjetivismo e o culto do “eu”, analisando o homem detalhadamente, e universalmente. Nega, também, o sentimentalismo, o sonho e a idealização, devido ao materialismo. Preocupam-se agora com o presente, não mais com o passado histórico. Não é característico o romance “de época” no Realismo – e Naturalismo.

O Realismo é, portanto, uma escola literária que envolve as diversas tendências que o acompanham. Em Portugal, a poesia realista foi feia por Antero de Quental –que depois também escreveu uma poesia filosófica e metafísica – Gomes Leal e Guerra Junqueiro. Há também a poesia cotidiana de Cesário Verde. No Brasil, a poesia vigente da época era a parnasiana

CONTEXTO HISTÓRICO

O Realismo no Brasil tem como marco a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, em 1881.

A passagem do Romantismo para o Realismo acompanha um período de muitas mudanças na história econômica, política e social brasileira. O Brasil da década de 80, quando se instala o novo movimento literário, não é mais o mesmo de 1850, época em que a segunda geração romântica dividia seus versos entre o amor e a morte, e as "moreninhas" circulavam pelos salões.

O Realismo vai encontrar terreno adubado para florescer, depois de o país ter passado, ao longo de quarenta anos, por fatos importantes que foram alterando aos poucos sua feição atrasada e tacanha. Como exemplo, a Guerra do Paraguai (1864-1870), o

crescimento da campanha abolicionista, o enfraquecimento do governo de D. Pedro II, a intensificação das idéias republicanas, a força da economia agrária, que concentrava a renda nas mãos de fazendeiros de açúcar, primeiro, e de café, depois.

A década de 80 será muito agitada: as campanhas abolicionistas e republicanas andam juntas, em comícios, movimentos e passeatas, na maioria de estudantes e intelectuais. A escravidão e o Império caem quase ao mesmo tempo: em 1888 veio a Abolição; em 1889 Deodoro da Fonseca proclamou a República. Esses dois fatos criaram uma nova realidade, ao eliminar o trabalho servil e introduzir o princípio do voto na eleição dos governos, constituindo um índice de que se iniciava o processo de modernização da economia e política nacionais.

Paralelamente, dinamiza-se a vida social e cultural (principalmente no Rio de Janeiro), como sempre soprada por ventos europeus: liberalismo, socialismo, positivismo, cientificismo, etc. Idéias jáconsolidadas lá fora e importadas por nós, no mais das vezes sem a necessária adaptação. Numa sociedade agrária, escravocrata e preconceituosa, sem indústrias, sem classe operaria, elas surgiam deslocadas, fora de lugar.

A literatura realista e naturalista brasileirapassa a refletir essas idéias, no interior da realidade específica do nosso país, através da pena de Machado de Assis, Aluísio de Azevedo, Adolfo Caminha; Olavo Bilac brilha com a poesia parnasiana; Raul Pompéia ensaia sua prosa intimista.

Mudava a literatura porque mudava o país. Aumenta o número de estradas de ferro, incrementa-se o transporte urbano, surge a iluminação elétrica e o cinema. Nas cidades, aumentam a classe comercial, o funcionalismo, os militares e os trabalhadores livres, já em grande parte imigrantes. Nas ruas ainda estreitas e sujas proliferam os salões elegantes, as confeitarias e as lojas que copiavam a moda de Paris.

CARACTERÍSTICAS

A literatura realista e naturalista surge na França com Flaubert (1821-1880) e Zola (1840-1902). Flaubert (1821-1880) é o primeiro escritor a pleitear para a prosa a preocupação científica com o intuito de captar a realidade em toda sua crueldade. Para ele a arte é impessoal e a fantasia deve ser exercida através da observação psicológica, enquanto os fatos humanos e a vida comum são documentados, tendo como fim a objetividade. O romancista fotografa minuciosamente os aspectos fisiológicos, patológicos e anatômicos, filtrando pela sensibilidade o real.

Contudo, a escola Realista atinge seu ponto máximo com o Naturalismo, direcionado pelas idéias materialísticas. Zola, por volta de 1870, busca aprofundar o cientificismo, aplicando-lhe novos princípios, negando o envolvimento pessoal do escritor que deve, diante da natureza, colocar a observação e experiência acima de tudo. O afastamento do sobrenatural e do subjetivo cede lugar à observação objetiva e à razão, sempre, aplicadas ao estudo da natureza, orientando toda busca de conhecimento.

Alfredo Bosi assim descreve o movimento: "O Realismo se tingirá de naturalismo no romance e no conto, sempre que fizer personagens e enredos submeterem-se ao destino cego das "leis naturais" que a ciência da época julgava ter codificado; ou se dirá parnasiano, na poesia, à medida que se esgotar no lavor do verso tecnicamente perfeito".

Vindo da Europa com tendências ao universal, o Realismo acaba aqui modificado por nossas tradições e, sobretudo, pela intensificação das contradições da sociedade, reforçadas pelos movimentos republicano e abolicionista, intensificadores do descompasso do

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sistema social. O conhecimento sobre o ser humano se amplia com o avanço da Ciência e os estudos passam a ser feitos sob a ótica da Psicologia e da Sociologia. A Teoria da Evolução das Espécies de Darwin oferece novas perspectivas com base científica, concorrendo para o nascimento de um tipo de literatura mais engajada, impetuosa, renovadora e preocupada com a linguagem.

Os temas, opostos àqueles do Romantismo, não mais engrandecem os valores sociais, mas os combatem ferozmente. A ambientação dos romances se dá, preferencialmente, em locais miseráveis, localizados com precisão; os casamentos felizes são substituídos pelo adultério; os costumes são descritos minuciosamente com reprodução da linguagem coloquial e regional.

O romance sob a tendência naturalista manifesta preocupação social e focaliza personagens vivendo em extrema pobreza, exibindo cenas chocantes. Sua função é de crítica social, denúncia da exploração do homem pelo homem e sua brutalização, como a encontrada no romance de Aluísio Azevedo.

A hereditariedade é vista como rigoroso determinismo a que se submetem as personagens, subordinadas, também, ao meio que lhes molda a ação, ficando entregues à sensualidade, à sucessão dos fatos e às circunstâncias ambientais. Além de deter toda sua ação sob o senso do real, o escritor deve ser capaz de expressar tudo com clareza, demonstrando cientificamente como reagem os homens, quando vivem em sociedade.

Os narradores dos romances naturalistas têm como traço comum a onisciência que lhes permite observar as cenas diretamente ou através de alguns protagonistas. Privilegiam a minúcia descritiva, revelando as reações externas das personagens, abrindo espaço para os retratos literários e a descrição detalhada dos fatos banais numa linguagem precisa.

Outro tratamento típico é a caracterização psicológica das personagens que têm seus retratos compostos através da exposição de seus pensamentos, hábitos e contradições, revelando a imprevisibilidade das ações e construção das personagens, retratadas no romance psicológico dos escritores Raul Pompéia e Machado de Assis

O SURGIMENTO DO NATURALISMO

O Naturalismo é uma espécie de prolongamento do Realismo. Os dois movimentos são quase paralelos e muitos historiadores vêem no primeiro uma manifestação do segundo. Assim, o Naturalismo assume quase todos os princípios do Realismo, tais como o predomínio da objetividade, da observação, da busca da verossimilhança, etc., acrescentando a isso - e eis o seu traço particular - uma visão cientificista da existência.

Conseqüência das novas idéias científicas e sociológicas que varriam a Europa, a visão naturalista ergue-se sobre os preceitos do evolucionismo, da hereditariedade biológica, do positivismo e da medicina experimental. Hippolyte Taine - muito lido na época - afirma que "três fontes diversas contribuem para produzir o estado moral elementar do homem: a raça, o meio e o momento." O maior dos naturalistas, Émile Zola, delimita o caráter dessa junção entre literatura e atividade científica, e a subordinação da primeira diante da segunda:

Meu desejo é pintar a vida, e para este fim devo pedir à Ciência que me explique o que é a vida, para que eu a fique conhecendo.

Principais características do Realismo/Naturalismo

a) Objetividade/ compromisso com a verdade - O narrador deve ser imparcial e impessoal diante dos fatos narrados e dos seres que inventa para viver esses fatos.

b) Contemporaneidade - O escritor preocupa-se com o seu momento histórico, diferentemente dos autores do Romantismo, que davam grande destaque ao passado.

c) Semelhança das personagens com o homem comum - As personagens criadas pelos escritores do período assemelham-se ao homem comum, com todos os seus contrastes. Não há idealização, como ocorria no Romantismo.

d) Condicionamento das personagens ao meio físico e social - Nos romances realistas/naturalistas as personagens aparecem condicionadas a fatores naturais (temperamento, raça, clima) e fatores sociais (ambiente, educação).

e) Lei da causalidade - No romance realista/naturalista as atitudes das personagens e os acontecimentos sempre apresentam relação de causa e efeito, sempre têm uma explicação lógica, racional. Tudo o que pareça fantástico, sobrenatural, é rejeitado.

f) Detalhismo - Como o escritor pretende retratar fielmente a realidade, visando a convencer o leitor da veracidade do que está escrito, autor descreve com detalhes, com minúcias o espaço e as personagens que cria.

g) Linguagem mais simples que a dos românticos - Há uma preferência pelos períodos curtos, de compreensão mais imediata, pois o escritor procura atingir um público mais amplo, não se restringindo à elite intelectual.

Diferenças entre Realismo e Naturalismo

a) personagens: os naturalistas o fato de a hereditariedade física e psicológica determina o comportamento das personagens.

b) conflito: juntando-se os fatores herança biológica e ambiente, criam-se condições para que se manifeste o conflito dramático da personagem naturalista.

c) espaço: o escritor naturalista dá preferência a espaços miseráveis, pois estes, além de favorecerem o desabrochar do conflito das personagens, evidenciam os desequilíbrios que o escritor pretende denunciar.

d) enredo e intenção do escritor; o romance tipicamente naturalista tem intenções combativas. Pretende apresentar situações que façam o leitor refletir sobre as condições da realidade social de seu tempo.

Tanto o romance realista quanto o naturalista combateram três instituições da época; a Igreja, a família e a monarquia.

Análise da obra

A obra foi baseada num fato real: a Questão Capistrano, crime que sensibilizou o Rio de Janeiro em 1876/77, envolvendo dois estudantes, em situação muito próxima à da narração de Aluísio Azevedo. Neste livro, o autor estuda as influências da sociedade sobre o indivíduo sem qualquer idealização romântica, retratando rigorosamente a realidade social trazendo para a literatura um Brasil até então ignorada.

Autor fiel à tendência naturalista difundida pelo realismo, Aluísio Azevedo focaliza, nesta obra, problemas como preconceitos de classe, de raças, a miséria e as injustiças sociais. Descreve a vida nas pensões chamadas familiares, onde se hospedavam jovens que vinham do interior para estudar na capital. Diferente do romantismo, o naturalismo enfatiza o lado patológico do ser humano, as perversões dos desejos e o comporta-mento das pessoas influenciado pelo meio em que vivem.

Casa de Pensão é uma espécie de narrativa intermediária entre o romance de personagem (O Mulato) e o romance de espaço (O Cortiço). Como em O Mulato, todas as ações ainda estão vinculadas à trajetória do herói, nesse caso, Amâncio de Vasconcelos. Mas, como

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em O Cortiço, a conquista, ordenação e manutenção de um espaço é que impulsiona, motiva e ordena a ação. Espaço e personagem lutam, lado a lado, para evitar a degradação.

As teses naturalistas, especialmente o Determinismo, alicerçam a construção das personagens e das tramas.

Romance naturalista de 1884, em que o autor, de carreira diplomática bastante acidentada, move personagens que se coadunam perfeitamente com a análise dos críticos de que seus tipos são, via de regra, grosseiros, não se distinguem pela sutileza da compreensão, nem pela frescura dos sentimentos. São eixos de relações da estrutura da presente narrativa a Província - Maranhão, a Corte - Rio de Janeiro, a casa paterna e a casa de pensão.

Estilo

O naturalismo está plenamente representado em Casa de Pensão desde a abertura do romance, quando Amâncio aparece marcado fatalisticamente pela escola e pela família: uma e outra o encheram de revolta. Por causa de um castigo justo ou injusto, "todo o sentimento de justiça e da honra que Amâncio possuía, transformou-se em ódio sistemático pelos seus semelhantes...". O leite que o menino mamou na ama negra também está contagiado e irá marcá-lo. O médico dizia: "Esta mulher tem reuma no sangue e o menino pode vir a sofrer para o futuro." Amâncio é uma cobaia, um campo de experimentação nas mãos do romancista. Nele o fisiológico é muito mais forte do que o psicológico. É o determinismo que vai acompanhar toda a carreira do personagem.

Está presente também na obra o sentido documental e experimental do romance naturalista, renunciando ao sentimentalismo e à evasão, procura construir tudo sobre a realidade. Como já mencionado, a estória do romance se baseia num caso real.

Linguagem

Uma técnica comum ao escritor naturalista é o abuso dos pormenores descritivo-narrativos de tal modo que a estória caminha devagar, lerda e até monótona. É a necessidade de ajuntar detalhes para se dar ao leitor uma impressão segura de que tudo é pura realidade. Essas minúcias se estendem a episódios, a personagens e a ambientes. Num episódio, por exemplo, há minúcias de tempo, local e personagens. E móveis de uma sala até os objetos mais miúdos.

Não se pode dizer que a linguagem do romance é regionalista; pelo contrário, o padrão da língua usada é geral e o torneio frasal, a estrutura morfo-sintática é completamente fiel aos padrões da velha gramática portuguesa.

Como Machado de Assis, Aluísio Azevedo também usa alguns recursos desconhecidos da língua portuguesa do Brasil, principalmente na língua oral. Assim, por exemplo, o caso da apossínclise (é uma posição especial do pronome oblíquo que não escutamos no Brasil, mas é comum até na língua popular de Portugal). São exemplos de apossínclise: "Há anos que me não encontro com o amigo." (Há anos que nãome...) "Se me não engano, você está certo." Em Casa de Pensão essa posição pronominal é um hábito comum.

Foco narrativo

O autor escolheu o seu ponto-de-vista narrativo: a terceira pessoa do singular, um narrador onisciente e onipotente, fora do elenco dos personagens. Como um observador atento e minucioso dentro das próprias fórmulas apertadas do naturalismo. No caso deste romance, Aluísio Azevedo trabalhou muito servilmente sobre os fatos absolutamente reais.

Temática

Como em O Cortiço, Aluísio de Azevedo se torna excepcionalmente rico na criação de personagens coletivos: a casa de

pensão, tão comum ainda hoje, no Brasil inteiro, tem vida, uma vida estudante, nas páginas do romance. Aluísio conhecia, de experiência própria, esse ambiente feito de tantos quartos e tantos inquilinos, tão numerosos e tão diferentes, nivelados pela mediocridade e em fácil decadência moral. O autor faz alguns retratos com evidentes traços caricaturais (a sua velha mania ou vocação para a caricatura...), mas fiéis e verdadeiros. Tudo se movimenta diante do leitor: a casa de pensão é um mundo diferente, gente e coisas tomam aspectos novos, as pessoas adquirem outros hábitos, informadas ou deformadas por essa vida comunitária tão promíscua. Aí se encontram e se desencontram, se amontoam e se separam tantos indivíduos transformados em tipos, conhecidos, às vezes, apenas pelo número do quarto. Em O Cortiço o meio social é mais baixo; na Casa de Pensão é médio.

Às doenças morais (promiscuidades, hipocrisia, desonestidades, sensualismos excitados e excitantes, ódios, baixos interesses, dinheiro...) se misturam também doenças físicas (o tuberculoso do quarto 7 que morre na casa de pensão, a loucura e histerismo de Nini...). Foi o que encontrou Amâncio na Casa de Pensão de Mme. Brizard. Fora para o Rio de Janeiro, para estudar. E, num ambiente como esse, quem seria capaz de estudar? É verdade que o rapaz já trazia a sua mentalidade burguesa do tempo: o que ele buscava não era uma profissão, mas apenas um diploma e um título de doutor. Ele, sendo rico, não precisaria da profissão, mas, por vaidade, de um status, de um anel no dedo e de um diploma na parede. Essa mania de doutor, doença que pegou no Brasil, já foi magistralmente caricaturada em deliciosa carta de Eça de Queirós ao nosso Eduardo Prado: "A nação inteira se doutorou. Do norte ao sul do Brasil, não há, não encontrei senão doutores! Doutores com toda a sorte de insígnias, em toda a sorte de funções!! Doutores com uma espada, comandando soldados; doutores com uma carteira, fundando bancos: doutores com uma sonda, capitaneando navios; doutores com uma apito, comandando a polícia; doutores com uma lira, soltando carnes; doutores com um prumo, construindo edifícios; doutores com balanças, ministrando drogas; doutores sem coisa alguma, governando o Estado! Todos doutores..." O próprio Aluísio de Azevedo abandonou a Província para buscar sucessos na Corte (Rio de Janeiro) e, certamente também, um título de doutor...

Personagens

Os personagens, sob nomes fictícios, escondem pessoas reais:Amâncio da Silva Bastos e Vasconcelos - (João Capistrano da Silva) estudante, acusado de sedução. Foi absolvido.Amélia ou Amelita - (Júlia Pereira) a moça seduzida, pivô da tragédia.Mme. Brizard - (D. Júlia Clara Pereira, mãe da moça e do rapaz, assassino) é uma viúva, dona da casa de pensão: João Coqueiro - Janjão - (Antônio Alexandre Pereira, irmão da moça Júlia Pereira e assassino de João Capistrano. Foi também absolvido).Dr. Teles de Moura - (Dr. Jansen de Castro Júnior) advogado da família da moça.

Enredo

Amâncio (Da Silva Bastos e Vasconcelos), rapaz rico e provinciano, abandona o Maranhão e segue de navio para o Rio de Janeiro (a Corte) a fim de se encaminhar nos estudos e na vida. É um provinciano que sonha com os deslumbramentos da Corte. Chega cheio de ilusões e vazio de propósitos de estudar... A mãe fica chorosa e o pai, indiferente, como sempre fora no trato meio distante com o filho. O rapaz tinha que se tornar um homem.

Amâncio começa morando em casa do sr. Campos, amigo do Pai, e, forçado, se matricula na Escola de Medicina. Ia começar agora uma vida livre para compensar o tempo em que viveu escravizado às imposições do pai e do professor, o implacável Pires.

Por convite de João Coqueiro, co-proprietário de uma casa de pensão, junto com a sua velhusca mulher Mme. Brizard, muda-se para lá. É tratado com as maiores preferências: os donos da pensão

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queriam aproveitar o máximo de seu dinheiro e ainda arranjar o seu casamento com Amélia, irmã de Coqueiro. Um sujo jogo de baixo interesses, sobretudo de dinheiro. Naquele ambiente, tudo concorreria para fazer explodir a super-sensualidade do maranhense.

"Ele, coitado, havia fatalmente de ser mau, covarde e traiçoeiro: Na ramificação de seu caráter e sensualidade era o galho único desenvolvido e enfolhado, porque de todos só esse podia crescer e medrar sem auxílios exteriores."

A casa de pensão era um amontoado de gente, em promiscuidade generalizada, apesar da hipócrita moralidade pregada pelo seu dono: havia miséria física e moral, clara e oculta. Com a chegada de Amâncio, a pensão passou a arapuca para prender nos seus laços o jovem, inesperto e rico estudante: pegar o seu dinheiro e casá-lo com a irmã do Coqueiro. Para alcançar o fim, todos os meios eram absolutamente lícitos. Amélia, principalmente quando da doença do rapaz, se desdobrou nos mais íntimos cuidados. Até que se tornou, disfarçadamente, sua amante. Sempre mantendo as aparências do maior respeito exigido dentro da pensão pelo João Coqueiro...

O pai de Amâncio morre no Maranhão. A mãe chama o filho. Ele pretendo voltar, logo que terminarem os seus exames de medicina. Era preciso que o filho voltasse para vê-la e ver os negócios que o pai deixara. Mas o rapaz está preso à casa de pensão e a Amélia: este o ameaça e só permite sua ida ao Maranhão, depois do casamento. Amâncio prepara sua viagem às escondidas. Mas, no dia do embarque, um oficial e justiça acompanhado de policiais o prende para apresentação à delegacia e prestação de depoimentos. Amâncio é acusado de sedutor da moça. João Coqueiro prepara tudo: o caso foi entregue ao famigerado e chicanista Dr. Teles de Moura. Aparecem duas testemunhas contra o rapaz. Começa o enredado processo: uma confusão de mentiras, de fingimentos, de maucaratismo contra o jovem rico e desfrutável para os interesses pecuniários de Mme. Brizard e marido. Há uma ressonância geral na imprensa e, na maioria, os estudantes se colocam ao lado de Amâncio. O senhor Campos prepara-se para ajudar o seu protegido, mas Coqueiro lhe faz chegar às mãos uma carta comprometedora que Amâncio escrevera à sua senhora, D. Hortênsia. E se coloca contra quem não soube respeitar nem a sua casa...

Três meses depois de iniciado o processo, Amâncio é absolvido. O rapaz é levado em triunfo para um almoço, no Hotel Paris.

"Amâncio passava de braço a braço, afagado, beijado, querido, como uma mulher famosa." Todo mundo olhava com curiosidade e admiração o estudante absolvido. E lhe atiravam flores, Ouviam-se vivas ao estudante e à Liberdade. Os músicos alemães tocaram a Marselhesa. Parecia um carnaval carioca.

Em outro plano, Coqueiro, sozinho, vendo e ouvindo tudo. A alma envenenada de raiva. Em casa o destampatório da mulher que o acusava de todo o fracasso. As testemunhas reclamavam o pagamento do seu depoimento. Um inferno dentro e fora dele. Chegaram cartas anônimas com as maiores ofensas. Um homem acuado...

Pegou, na gaveta, o revólver do pai. E pensou em se matar. Carregou a arma. Acertou o cano no ouvido. Não teve coragem. Debaixo da sua janela, gritavam injúrias pela sua covardia e mau caráter... No dia seguinte, de manhã, saiu sinistro. Foi ao Hotel Paris. Bateu no quarto II, onde se encontrava o estudante com a rapariga Jeanete. Esta abriu a porta. Amâncio dormia, depois da festa e da bebedeira, de barriga para cima. Coqueiro atirou a queima-roupa. Amâncio passa a mão no peito, abre os olhos, não vê mais ninguém. Ainda diz uma palavra: "mamãe" ... e morre.

Coqueiro foi agarrado por um policial, ao fugir. A cidade se enche de comentários. Muitos visitam o necrotério para ver o cadáver de Amâncio. Vendem-se retratos do morto. Um funeral grandioso com a presença de políticos, notícias e necrológicos nos jornais, a cidade toda abalada. A tragédia tomou conta de todos.

A opinião pública começa a flutuar, a mudar de posição: afinal, João Coqueiro tinha lavado a honra da irmã...

Quando D. Ângela, envelhecida e enlutada, chega ao Rio de Janeiro, se viu no meio da confusão, procurando o filho. Numa vitrine, ela descobriu o retrato do filho "na mesa do necrotério, com o tronco nu, o corpo em sangue. Uma legenda: "Amâncio de Vasconcelos, assassinado por João Coqueiro, no Hotel Paris...

Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos

Graciliano Ramos foi preso em março de 1936, acusado de ligação com o Partido Comunista. Prisão sem processo, mas que não evitou a deportação do acusado, num porão de navio, para o Rio, onde permaneceu encarcerado. Foi demitido do cargo de Diretor da Instrução Pública e levado a diversos presídios, até Janeiro de 1937, quando foi libertado. Dessa experiência resultou a obra Memórias do Cárcere, publicada postumamente em 1953. A obra não é o relato puro e simples do sofrimento e humilhações do homem Graciliano Ramos; é a análise da prepotência que marcou a ditadura Vargas e que, em última análise, marca qualquer ditadura. É um dos depoimentos mais tensos da literatura brasileira.

Escrito em quatro volumes (sem o capítulo final, pois Graciliano faleceu antes de concluí-lo), Memórias do Cárcere narra acontecimentos da vida de Graciliano Ramos e de outras pessoas que estiveram presas durante o Estado Novo. A narrativa é amarga, mas sem exageros ou invenções, nessa obra Graciliano Ramos é fiel aos acontecimentos. Se há amarguras e sordidez, é porque as situações vividas foram sórdidas e amarguradas.

A narrativa de Graciliano Ramos, pela exposição de motivos contida no capítulo de abertura da obra, dá ao texto uma autenticidade autobiográfica, sobretudo se a ela somarmos a “explicação final” de Ricardo Ramos, na qual ficam esclarecidas as dificuldades que impediram o autor de dar definitivamente o texto por concluído. Essa narrativa, característica do relato autobiográfico, oferece a típica junção autor-narrador-personagem, sendo possível percebê-la como resultado da experiência vivida, o que aproxima Graciliano Ramos da noção de narrador clássico.

A autoridade do narrador clássico é referendada pela perspectiva da morte, conforme se percebe já no início do texto: “... estou a descer para a cova...”. A morte, para o filósofo alemão, confere autoridade, pois é nesse momento que o saber humano assume uma força maior, tornando imperativa a sua transmissão. O narrador clássico sabe dar conselhos. Narra porque tem experiência de vida, e é essa experiência que lhe dá sabedoria. A obra do escritor alagoano, ao fazer uso da forma autobiográfica, ao falar de si mesmo, intencionalmente mistura a sua voz a outras, até então silenciadas, contrariando assim a perspectiva natural desse tipo de relato.

Memórias do Cárcere é o testemunho da realidade nua e crua de quem, sem saber por quê, viveu em porões imundos, sofreu com torturas e privações provocadas por um regime ditatorial chamado de Estado Novo.

Na obra Graciliano Ramos não diz diretamente que se sente injustiçado, embora o tenha sido e isso se explicita no próprio texto. Não fica insistindo que não deveria estar naquelas situações, isso faz com que a indignação do leitor não fique restrita às suas histórias particulares, mas se direcione a situações vivenciadas por muitas

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pessoas. O que o autor retrata, e é o que mais interessa em Memórias do Cárcere, é um olhar de quem foi preso, algo que é muito mais abrangente do que se fixar no olhar do narrador.

O discurso, regido pela égide da opressão, é caracterizado pelo desdobramento: pois é psicológico, e, ao mesmo tempo, um documentário; é particular, mas universaliza-se.

Trecho da obra“O mundo se tornava fascista. Num mundo assim, que futuro

nos reservariam? Provavelmente não havia lugar para nós, éramos fantasmas, rolaríamos de cárcere em cárcere, findaríamos num campo de concentração. Nenhuma utilidade representávamos na ordem nova. Se nos largassem, vagaríamos tristes, inofensivos e desocupados, farrapos vivos, fantasmas prematuros; desejaríamos enlouquecer, recolhermo-nos ao hospício ou ter coragem de amarrar uma corda ao pescoço e dar o mergulho decisivo. Essas idéias, repetidas, vexavam-me; tanto me embrenhara nelas que me sentia inteiramente perdido.”

Comentário - O romance documenta a trajetória do autor desde momentos que antecederam sua prisão. Se inicia com a demissão injustificada do cargo de secretário da Instrução Pública do Estado de Alagoas, seguida das passagens pelo Quartel Militar de Pernambuco, trajeto no porão do Navio Manaus, prisão da cidade do Rio de Janeiro e Colônia Correcional de Ilha Grande, bem como seu retorno ao primeiro presídio carioca antes de ser finalmente libertado. A reclusão teve período aproximado de nove meses para a qual não houve acusação ou julgamento formal. A ênfase da obra é dada ao comportamento do sujeito aprisionado, com rica descrição dos tipos psicológicos diversos ali encontrados. No conjunto de presos encontravam-se dissidentes políticos, militares, profissionais liberais, intelectuais, prostitutas e ladrões. Dada a visão documental do autor, a situação lhe despertou, desde o início, grande vontade de escrever sobre tudo o que ali vivenciou. No decorrer da narrativa descreve a adaptação de sua própria natureza aos diversos ambientes hostis pelos quais passou e a surpreendente constatação de que já vivenciava um cárcere anterior àquela trajetória, quando da ocupação de seu cargo público e a convivência com esposa e filhos. Igualmente transcorre com aguçada crítica ao sistema político da ocasião, constatando este como um grande cárcere não só para os revolucionários, como também para o povo, dado o regime opressor da época..Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, por Dennis de Almeida

Memórias do Cárcere incomoda, incomoda muito, mas nos leva a viajar. Nesta obra, publicada postumamente em 1953, Graciliano Ramos faz um relato de suas passagens por presídios do Recife, Maceió e Rio de Janeiro, com destaque para a célebre colônia penal da Ilha Grande, no período entre março de 1936 e janeiro de 1937. Preso e solto sem qualquer tipo de acusação formal, o autor de Angústia (1936) e Vidas Secas (1938) se caracterizou como uma das vítimas do regime varguista (1930-1945).

Um aspecto importantíssimo desta obra é sua elaboração. O autor de Vidas Secas escreveu diversas notas manuscritas desde os primeiros dias de prisão, mas a cada transferência, era obrigado a desfazer-se dos papéis. Por este motivo, abandonou por muitos anos o interesse de escrever o livro. Somente em 1952, já desenganado pelos médicos, iniciou a redação dos dois volumes, construindo-os apoiado em suas memórias. Não conseguiu, no entanto, concluí-los, faltando o capítulo final. Mesmo assim, o autor nos proporcionou uma leitura ao mesmo tempo rica e angustiante, pois se trata de obra imaginada e escrita diversas vezes, em que as sobreposições emergem no resultado final.

Também deve-se mencionar a interferência em sua obra do Partido Comunista Brasileiro, ao qual Graciliano era filiado desde 1945. De acordo com o crítico Wilson Martins, houve pressão do Partidão sobre a família de Graciliano para que o livro não fosse

publicado. Martins ainda conta que o resultado do acordo entre as partes para a publicação do livro foi a “elaboração” de um novo “original”, com cortes e revisões cujos limites até hoje são ignorados. Anos depois, os filhos de Graciliano admitiram que o texto original foi adulterado por determinação do Partido.

Graciliano foi, portanto, vítima de uma dupla violência. Em vida, foi preso, torturado, roubado e privado dos direitos mais básicos de um cidadão. Depois de morto, teve a memória violada, esta que é uma das partes mais valorizadas de nossa consciência, justamente pelo partido a que se filiara.

A primeira agressão está impressa em Memórias do Cárcere. O constante confronto com a realidade crua presente em obras como São Bernardo e o já mencionado Vidas Secas se encontra ali, só que com o autor no papel de protagonista. A segunda está oculta por trás do próprio relato. Como Graciliano reagiria a mais esta brutalidade? Jamais saberemos, só nos restando mais este exemplo do quanto a luta pela liberdade e justiça dos discursos pode estar diametralmente oposta à sua prática.

Ilha Grande em Memórias….

Discorrer ou mesmo historicizar sobre o papel das ilhas como local de isolamento dos marginalizados exigiria mais dados, mais espaço, e com certeza mais dedicação. Mas, para continuar, basta saber que a Ilha Grande é mais uma ilha-prisão como foram a famosa Alcatraz na baía de São Francisco, a Ilha do Diabo no litoral da Guiana Francesa ou o Château d’If no litoral mediterrâneo francês. Também é pertinente lembrar o próprio verbo isolar, parente próximo do latim insula que deu origem ao italiano isola, ou seja ilha.

Localizada no Estado do Rio de Janeiro, a ilha ganhou já no século XIX status de lugar maldito quando o Império comprou duas fazendas na ilha, uma voltada para o continente, que viria a ser o chamado “Lazareto”, usado na quarentena dos imigrantes que iriam para o Rio de Janeiro ou São Paulo. Este prédio viria a também cumprir o papel de prisão de 1893, com a detenção de participantes da Revolta da Armada, até sua implosão em 1963, por decreto do governador do antigo estado da Guanabara Carlos Lacerda.

A outra fazenda comprada, virada para o oceano, transformou-se em colônia penal em 1903. Esta é a prisão de Graciliano Ramos. Para se chegar neste lugar, era necessário atravessar a ilha por uma trilha que subia a montanha que separava os dois lados da ilha. Este caminho começava no pequeno povoado que servia de sede da ilha, chamado Abraão. Depois desta caminhada, encontrava-se a vila de funcionários e o presídio propriamente dito. A recepção não é das mais animadoras. O oficial responsável pelos presos é incisivo: “Vocês não vêm corrigir-se, estão ouvindo? Não vêm corrigir-se: vêm morrer”.

É neste lugar que Ramos teve maior contato com outros que, como ele, estavam ali por serem incômodos ao Estado Novo. Testemunhou torturas, abusos, roubos. Na sua descrição, Dois Rios foi, sem dúvida, o pior presídio pelo qual passou. A idéia de uma colônia penal onde se passava o dia trabalhando em plantações, criação de animais ou na construção de tijolos deu lugar ao horror do trabalho escravo.

Depois, vem a descrição da imundície, da fome, do constante cheiro de carne apodrecida. Percorre com a memória o caminho que lhe ficou marcado e desenha com letras o mapa para que possamos segui-lo. Um mapa cheio de intervenções, fora de escala e sem alguns pontos de referência esquecidos pelo cartógrafo. Como já disse, este mapa não é confiável, menos pelos limites da memória do que pela censura da qual esta obra foi vítima em sua origem, mas ainda assim é possível ler este mapa e, assim, viajarmos com Graciliano nesta peregrinação de horrores, em que somente a resistência do autor nos é dada como esperança diante de tamanha truculência.

.Memórias do Cárcere: Memória e ressignificação na obra de Graciliano Ramos. Fabio Villani Simini.

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Memórias enquanto patrimônio literário. No ano de 1953, o governo de Getúlio Vargas passava por um processo crescente de crise política, culminando com o suicídio do então presidente.5 Assim, Memórias do Cárcere fornece aos leitores um testemunho político de alto nível literário, ao mesmo tempo em que atua enquanto denúncia do regime repressivo varguista, ou nas palavras do autor, do “nosso pequenino fascismo tupinambá”. Entretanto, de acordo com Regina Abreu, “Ao ser transformada em monumento, símbolo nacional ou ‘lugar de memória’, uma obra literária extrapola suas características iniciais, desempenhando funções sociais que ultrapassam seu valor puramente literário.” (ABREU, 1998 ,23).

A obra de Ramos excede seu conteúdo meramente narrativo-biográfico e fornece elementos capazes de questionar a ideologia oficial do estado nacionalista e intervencionista e a memória do Estado Novo. Desta forma, “Memórias do Cárcere” se transforma em patrimônio literário brasileiro, assumindo um papel antagônico em relação à memória oficial varguista e possibilitando uma análise que confronta o legado do Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP. Devemos, portanto, entender as “memórias do cárcere” a partir de uma visão de “memórias em disputa”, como trabalhado por Michael Pollak em seu artigo “Memória, Esquecimento, Silêncio”.6

Segundo Pollak, a memória, enquanto operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se pretende salvaguardar, está constantemente inserida em um processo de negociação entre memória nacional e memórias subterrâneas. A memória nacional constitui um objeto de disputa onde são comuns conflitos para determinar o que deve fazer parte da memória de um povo. Tal seleção passa constantemente por processos de enquadramento e ressignificação, que visa atender as exigências de credibilidade dos sujeitos pertencentes a uma coletividade. Para que emerja nos discursos políticos um fundo comum de referências que possam constituir uma memória nacional, um intenso trabalho de organização é indispensável para superar a simples ‘montagem’ ideológica, por definição precária e frágil. (POLLAK, 1989, 9)

Quando as memórias subterrâneas ocupam a cena cultural, editorial e os meios de comunicação, observamos que a memória oficial já não consegue satisfazer certas exigências de justificação. As memórias clandestinas passam a comprovar “o fosso que separa de fato a sociedade civil e a ideologia oficial de um partido e de um Estado que pretende a dominação hegemônica” (POLLAK, 1989, 5). Nos relatos de “Memória do Cárcere”, fatos históricos e lembranças de sua vivência no cárcere se misturam, como é o caso do episódio da entrega às autoridades nazistas de Olga Benário e Elisa Berger. Assim, é a partir desta obra que as memórias de Graciliano Ramos se integram, de certa maneira, à memória nacional.

Memórias enquanto patrimônio cinematográfico. As memórias do escritor alagoano voltam à cena trinta e um anos após a publicação de seu livro póstumo. Desta vez, a obra literária é levada ao cinema pelo cineasta Nelson Pereira dos Santos, que em 1963 já havia retratado um romance de Graciliano Ramos, “Vidas Secas”.7 Segundo nos revela a jornalista Helena Salem, a ideia inicial de Nelson Pereira dos Santos era de realizar “Memória do Cárcere” logo após o sucesso de Vidas Secas, ainda na década de 1960. No entanto, “a falta de condições políticas no regime ditatorial pós-64 e de recursos materiais para a produção tinham inviabilizado o projeto na raiz” (SALEM: 1987, 334). Para o teórico de cinema Ismail Xavier, em 1984, o cinema nacional passava por um período de crise de produção: num quadro em que se fala da morte do cinema e da necessária reformulação da Embrafilme.

A concentração do debate na questão institucional mal consegue abafar o desconforto diante do desempenho cultural do cinema, seja dos diretores mais experientes, seja dos jovens. Embora tenhamos valores novos em plena atividade, a renovação geracional está cheia de problemas e o momento não propicia a ascensão rápida de talentos tal como ocorreu ao longo dos anos 1960. (XAVIER, 2001, 48)

No que tange o aspecto político brasileiro, o ano de 1984 simbolizava, através da luta pelas “Diretas Já” e o clima de transição

para um governo civil, que o país finalmente caminhava para a abertura democrática. Xavier revela que a produção cinematográfica daquele ano correspondeu “a trabalhos de cineastas veteranos que realizaram agora antigos projetos ou a eles voltaram em função do novo clima social e político.” (XAVIER, 2001, 48), dentre estes se destacam “Memórias do Cárcere” (Nelson Pereira dos Santos) e “Cabra marcado para morrer” (Eduardo Coutinho). A adaptação da linguagem literária de Memórias do Cárcere para a linguagem fílmica levou cerca de dois anos. Os aproximadamente 250 personagens foram fundidos em 120, alguns personagens tiveram os nomes alterados, outros só foram mencionados, a ordem cronológica não foi seguida fielmente ao tratado no livro, além de outros improvisos e licenças poéticas existentes ao longo do filme aclamado pelo público e pela crítica nacional e internacional.8 A historiadora Tânia Nunes Davi, em sua dissertação de mestrado, buscou analisar as apropriações feitas pelo cineasta da obra literária e os diálogos entre sua arte e a sociedade do período. Segundo seu estudo, além do governo de Vargas, Nelson Pereira dos Santos estendeu suas representações e relações para a realidade autoritária pós-1964.

Diante dessa analogia Vargas/pós-1964, entendemos como o filme contribui para divulgar uma memória de Graciliano Ramos ao mesmo tempo em que traça, paralelamente, uma relação entre a ditadura de Vargas e a ditadura civil-militar de 1964. Para Ismail Xavier, “Memórias do Cárcere” “encena o passado para pensar toda uma configuração de problemas políticos no presente.” (XAVIER, 2001, 86), ou seja, se preocupa em trazer do passado facetas de uma história de conflitos sociais e discutir as chagas abertas que opõem repressão militar e resistência popular num Brasil-prisão. Memórias enquanto patrimônio museal Considerado como o berço da facção criminosa “Comando Vermelho” e palco de fugas espetaculares, a Ilha Grande possuía uma vocação carcerária que perdurou por praticamente todo o século XX. A ilha, já em 1893, recebia os rebeldes da Revolta Armada.

Em seguida, diversas instituições de encarceramento foram ali estabelecidas, sempre situadas em dois locais específicos – Vila do Abraão e Dois Rios - pautavam-se ora em políticas públicas, ora sítio destinado a abrigar líderes de movimentos políticos contrários ao governo. Destacam-se como presos que conheceram as condições desumanas da ilha os revoltosos da Revolução Constitucionalista de 1932, Orígenes Lessa, Graciliano Ramos, Agildo Barata, militantes das organizações de esquerda na ditadura militar brasileira; criminosos como Madame Satã, Lúcio Flávio, Zé Bigode, Mariel Mariscot, José Carlos dos Reis Encina (Escadinha); contraventores como Natal da Portela e Castor de Andrade.10 Entretanto, foi Graciliano Ramos quem imortalizou aquele espaço prisional ao retratar as condições desumanas em que os presos políticos e presos comuns estavam submetidos.

As características espaciais do presídio, as especificidades nas relações entre a heterogeneidade de presos, a interação destes com a administração penitenciária e seus agentes e, por fim, aspectos psicológicos e sociais que se constituíram no local, nos são revelados com tantos detalhes que temos uma ilusória impressão de que a experiência prisional de Graciliano Ramos na instituição é maior do que os dezoitos dias que esteve retido na Colônia Correcional de Dois Rios, como podemos ver nesse documento transcrito no livro de Myrian Sepúlveda dos Santos: Graciliano Ramos. [...] preso em Alagoas, acusado de participação no movimento de 35, foi apresentado à chefatura da polícia a 14/03/1936, sendo recolhido à Casa de Detenção. [...] Transferido a 11/06/1936 para a Colônia Correcional de Dois Rios, dali regressou a 29/06/1936, sendo recolhido à sala da Capela de Correção e finalmente posto em liberdade [...] a 13/01/37. É quando me cabe informar. (SANTOS, 2009, 220) O Instituto Penal Cândido Mendes, último presídio da Ilha Grande continuou suas atividades até 2 de julho de 1994, quando, sob ordens do Governo Nilo Batista, toneladas de dinamite implodiram parte do complexo penitenciário.

Fim parecido com o ocorrido no período de desativação da Colônia Penal Cândido Mendes, Vila do Abraão, no governo de Carlos

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Lacerda. Myrian dos Santos identifica nessa semelhança uma clara tentativa “de apagar as memórias prisionais do país.” 11 Após a destruição do local, o Governo do Estado do Rio de Janeiro, através do decreto nº 19983/94, cedeu, por um prazo de cinqüenta anos, a área e as benfeitorias anteriormente ocupadas pelo Instituto Penal Cândido Mendes, à Universidade Estadual do Rio de Janeiro, com o objetivo de se criar um centro de estudos ambientais e um museu. 12 Inaugurado em 05 de junho de 2009 e aberta ao público 21 de junho de 2009, O Museu do Cárcere, localizado nas ruínas do antigo Instituto Penal Cândido Mendes, tem por objetivo retratar a história das instituições carcerárias na Ilha Grande, que lá funcionaram entre 1894 a 1994. Desta forma, observamos que o local, com a construção do Museu do Cárcere, se torna um “lugar de memória”, onde pode ser concebido como um ponto em torno do qual se materializa uma parte da memória nacional. Tal atitude é um importante passo frente à tradicional política de se implodir e apagar o passado prisional brasileiro.

Menino do Engenho – José Lins do Rego

ANÁLISE DA OBRA

Narrado em 1ª pessoa por Carlos Melo (personagem), que aponta suas tensões sociais envolvidas em um ambiente de tristeza e decadência, é o primeiro livro do ciclo da cana-de-açúcar. Publicado em 1932, Menino do Engenho é a estreia em romance de José Lins do Rego e já traz os valores que o consagraram na Literatura Brasileira.

Durante a década de 30 do século XX, virou moda uma produção que se preocupava em apresentar a realidade nordestina e os seus problemas, numa linguagem nova, introduzida pelos participantes da Semana de Arte Moderna de 22. José Lins do Rego seria o melhor representante dessa vertente, se certas qualidades suas não atenuassem fortemente o tom crítico esperado na época.

A intenção do autor ao elaborar a obra Menino de Engenho, era escrever a biografia de seu avô, o coronel José Paulino, que considerava uma figura das mais representativas da realidade patriarcal nordestina. Seria também a autobiografia das cenas de sua infância, que ainda estavam marcadas em sua mente. Mas o que se constata é que o biógrafo foi superado pela imaginação criadora do romancista: a realidade bruta é recriada através da criatividade do gênero nordestino.

É a história típica, natural e sem retoques de uma criança, Carlos, órfão de pai e mãe, que, aos oito anos de idade, vem viver com o avô, o maior proprietário de terras da região - coronel José Paulino.

Carlos é criado sem a repressão familiar e mesmo sem os cuidados e atenções que lhe seriam necessários diante das experiências da vida. Vê o mundo, aprende o bem e o mal e chega a uma provável precocidade acerca dos hábitos que lhe eram "proibidos", mas inevitáveis de serem adquiridos.

Pela ausência de orientação, toma-se viciado, corrompido, aos 12 anos de idade. Além dos problemas íntimos do menino, desorientado para a vida e para o sexo, temos a análise do mundo em que vivia, visto por Carlos, que é o narrador-personagem.

Carlos vê o avô como um verdadeiro Deus, uma figura de grandiosidade inatingível. O engenho é o mundo, um império, de

onde o coronel José Paulino dirige e guia os destinos de todos. E, em conseqüência, Carlos considera-se, e é considerado pelos servos, escravos e agregados, o “coronelzinho” cujas vontades têm que ser rigorosamente realizadas.

Descreve com emoção a vida dos escravos, a senzala, o sofrimento e os castigos do “tronco”. Uma cena a ser destacada é a “enchente” do rio, vista com admiração e susto por Carlos, constituindo uma descrição de grandiosidade bíblica.

Também vêm à tona as superstições e crendices comuns entre as camadas populares, como a do “lobisomem”.

O romance tem como cenário a região limítrofe entre Pernambuco e Paraíba, o que pode ser deduzido pelas descrições da paisagem e da vida dos engenhos de açúcar.

Os bandidos e cangaceiros, comuns na região, são mostrados como única forma de reação social de um povo oprimido.

SOBRE O AUTOR

José Lins do Rego Cavalcanti, Zélins, como era chamado, nasceu em 1901 no estado da Paraíba. Do seu crescimento no mundo rural nordestino, retira muitas experiências que servirão para suas histórias nos seus 13 romances publicados. Em 1926 muda-se para Maceió, onde publica seu primeiro romance, Menino do Engenho. O romancista recebe elogios da crítica e daí em diante suas publicações tornam-se constantes. Em 1935, muda-se para o Rio de Janeiro e em 1955 é eleito para a Academia Brasileira de Letras. Falece em 1957.

IMPORTÂNCIA DO LIVRO

Publicado em 1932, Menino do Engenho é a primeira obra do autor, cujos exemplares foram custeados por ele e quase todos vendidos. Aclamado pela crítica com entusiasmo, o livro foi lido na época por grande parte do Rio de Janeiro e com isso recebeu o conhecido prêmio da Fundação Graça Aranha.

PERÍODO HISTÓRICO

A década de 1930 acontece o forte impacto da crise iniciada com a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, seguida pelo colapso do sistema financeiro internacional.

No Brasil, 1930 marca o fim da República Velha, do domínio das velhas oligarquias ligadas ao café e o início do longo período em que Vargas permaneceu no poder.

A Revolução de 30, que levou Getúlio Vargas a um governo provisório, contava com o apoio da burguesia industrial, dos setores médios e dos tenentes responsáveis pelas revoltas na década de 1920 (exceção feita a Luís Carlos Prestes, que, no exílio, havia optado claramente pelo comunismo). Desenvolve-se, assim, uma política de incentivo à industrialização e à entrada de capital norte-americano, em substituição ao capital inglês.

Getúlio Vargas, auxiliado pelos integralistas, inicia sua ditadura em 10 de novembro de 1937. O chamado Estado Novo será um longo período antidemocrático, anticomunista, baseado num nacionalismo conservador e na idolatria de um chefe único: Getúlio Vargas. Essa situação se prolongará até 29 de outubro de 1945, quando, pressionado, Getúlio renuncia.

Tendo como fundo os engenhos do interior paraibano, o livro retrata de forma genial o cenário em que a escravidão já terminara, mas o respeito, a servidão e o cuidado entre senhor do engenho e escravos ainda existia. As relações de afetividade entre os meninos, a sexualidade das negras, as secas e as enchentes são retratadas com a pureza e verossimilhança de um menino.

ANÁLISE

Carlos, além de personagem, é o narrador de O menino de engenho. Através de sentimentos memorialistas e de recordações saudosistas e fiéis ao que passou, conta aos seus leitores uma parte

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de sua infância, desde os quatro anos quando seu pai assassina sua mãe, até os doze anos, quando é mandado para um internato e o livro tem seu fim. O autor utiliza uma linguagem simples, direta, verdadeira e própria de um menino; além de ser extremamente espontânea, passando pelos sonhos, medos, curiosidades e amores. O autor mostra uma despreocupação com moldes estilísticos, já prenunciando o movimento do modernismo. Através de tal escrita, o autor toca seus leitores com profundas observações que um menino ingenuamente faz sobre um engenho, onde com tantas complexidades, parece tão simples aos olhos de uma criança.

Como cenário histórico, é presente no livro o pós-escravidão, mas há a continuidade dos laços de trabalho, confiança e respeito. Em troca de comida, casa e proteção, os escravos trabalhavam nos engenhos e nas casas grandes. Com isso, as negras contadoras de estórias, as crianças mulatas, as negras sedutoras, tudo faz parte do cotidiano do engenho e é retratado pelo menino. A relação entre negros e brancos é vista sob uma óptica positiva, de ganhos para ambos os lados. O avô de Carlinhos, sendo um homem justo e protetor, tem a confiança dos negros, chegando a exercer o papel da justiça, onde muitas vezes castiga àquele que age fora da lei social. Um negro chega a ir para o tronco, mesmo não sendo mais escravo segundo a lei.

Carlinhos é um menino acanhado, tristonho e melancólico. Após a morte da mãe, se vê sem rumo, com pessoas até então desconhecidas. Sente-se limitado e diferente das outras crianças, e é assim tratado por ser o neto do coronel. Não pode brincar como os outros, não pode ficar até tarde no sereno, e sente inveja da liberdade alheia. Sua liberdade vai acontecer através de sua descoberta sexual aos doze anos. Como caminho para o menino tornar-se homem, seu avô ao manda-lo para o internato enxerga um desejo de sua filha. Carlos aceita e vai.

Porém, fazendo uma conexão com "O Ateneu", ele não se vê como Sérgio, que era uma criança ingênua. Carlos se vê como menino que já descobriu o que, segundo sua ideia, é ser homem; mau, libertino e incontrolável. Ao ir para o internato, deseja fazer a vontade de sua mãe e seu avô.

PERSONAGENS

Carlinhos - É o narrador do romance. Órfão aos quatro anos, tornou-se um menino melancólico, solitário e bastante introspectivo. De sexualidade exacerbada, mantém, aos doze anos, a sua primeira relação sexual, contraindo “doença-do-mundo” - a popular gonorréia.

Coronel Zé Paulino - É o todo-poderoso senhor de engenho - o patriarca absoluto da região. Era uma espécie de prefeito - administrava pessoalmente, dando ordens e fazendo a justiça que ditava a sua consciência de homem bom e generoso.

Tia Maria - Irmã da mãe de Carlinhos (Clarisse), torna-se para este a sua segunda mãe. Querida e estimada por todos pela sua bondade e simpatia, era chamada carinhosamente de Maria Menina.

Velha Totonha - É uma figura admirável e fabulosa. Representa bem o folclore ambulante dos contadores de histórias.

Antônio Silvino - Representa bem o cangaceiro sempre temido e respeitado pelo povo, em virtude de seu senso de justiça, tirando dos ricos e protegendo os fracos. Compõe bem a paisagem nordestina.

Tio Juca - Não chega a representar um papel de destaque no romance. Por ser filho do senhor de engenho, fazia e desfazia (sobretudo sexo com as mulatas), mas não era punido. De certa forma, representa o papel de pai de Carlinhos.

Lula de Holanda - Embora ocupe pouco espaço, o Coronel Lula é uma personagem relevante, pois representa o senhor de engenho decadente que teima em manter a fachada aristocrática.

Sinhazinha - Embora não fosse a dona da casa (era cunhada do Coronel), mandava e desmandava no governo da casa-grande. Era odiada por todos por seu rigor e carranquice, e pode ser identificada com as madrastas ruins dos contos populares.

Negras - Restos do tempo de escravidão, destacam-se a negra Generosa, dona da cozinha, a vovó Galdina, que vivia entrevada numa cama.

ENREDO

O romance, narrado em primeira pessoa, apresenta uma estrutura memorialista, em quarenta capítulos. O tempo flui cronologicamente: o narrador (Carlinhos) tem quatro anos quando a narrativa começa e doze, quando termina o livro.

A mãe do narrador (Clarisse) está morta, assassinada pelo pai no quarto de dormir. “Por quê?” Ninguém sabia compreender”. O menino, apesar de pequeno, sente o impacto da morte da mãe e a solidão que esta lhe deixa. “Então comecei a chorar baixinho para os travesseiros, um choro abafado de quem tivesse medo de chorar”.

O pai então é levado para o presídio. Era uma pessoa nervosa, um temperamento excitado, “para quem a vida só tivera o seu lado amargo”. Num momento de desequilíbrio, matara a esposa com quem sempre discutia. O narrador o recorda com saudade e ternura. O narrador lembra também, com ternura e carinho, a mãe tão precocemente ceifada pelo destino. Recorda as suas carícias, a sua bondade, a sua brandura. “Os criados amavam-na”. Era filha de senhor de engenho, mas “falava para todos com um tom de voz de quem pedisse um favor”.

Um mundo novo espera o narrador. “Três dias depois da tragédia, levaram-me para o engenho do meu avô materno. Eu ia ficar ali morando com ele”. Conduzido pelo tio Juca, que viera buscá-lo, encanta-se com tudo que vê: tudo é novidade naquele mundo novo. A imagem que sempre fizera do engenho era a “de um conto de fadas, de um reino fabuloso”. À primeira vista, a realidade ia comprovando fantasia.

No engenho, é levado para receber a bênção do avô e da preta velha Tia Galdina e ganha uma nova mãe – a tia Maria. No dia seguinte, com o mergulho nas águas frias do poço, o narrador está batizado para a nova vida que vai começar. Aos poucos, o narrador vai penetrando no mundo novo do engenho. Levam-no para ver o engenho e ele fica deslumbrado com o seu mecanismo. Tio Juca vai-lhe explicando todos os detalhes.

Os primos chegam para passar as férias na fazenda e o narrador se solta de vez – “já estava senhor de minha vida nova”; passeios, banhos proibidos, brincadeiras, sol o dia todo e as recomendações de Tia Maria. Ao lado da fada boa e terna que era tia Maria, vivia no engenho uma velha de nome Sinhazinha que “tomava conta da casa do meu avô com um despotismo sem entranhas”. “Esta velha seria o tormento da minha meninice”. Todos a temiam e fugiam dela. “As negras odiavam-na. Os meus primos corriam dela como de um castigo”.

A prima Lili – “magrinha e branca”; “parecia mais de cera, de tão pálida. Tinha a minha idade e uns olhos azuis e uns cabelos louros até o pescoço”. “Na verdade a prima Lili parecia mais um anjo do que gente”. E tal sucedeu com a pobrezinha: um dia, amanheceu vomitando preto e morreu, para desconsolo do narrador, que se afeiçoara muito a ela. Com a morte de Lili, o desvelo e os cuidados de tia Maria com o narrador se acentuam. Era tempo das primeiras letras, mas nada entra na sua cabeça, pois só pensava na liberdade nas patuscadas no mundo lá fora. Ainda recorda do flagelo das secas: as aves de arribação.

O cangaceiro Antônio Silvino faz uma visita de cortesia ao engenho Santa Rosa. Há uma grande expectativa sobretudo por parte dos meninos. O famoso cangaceiro chega e é recebido pelo senhor de engenho. A partir, entretanto, o narrador demonstra o seu desencanto: “Para mim tinha perdido um bocado de prestígio. Eu fazia

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outro, arrogante e impetuoso, e aquela fala bamba viera desmanchar em mim a figura de herói”. É que o mito se tornou real, descendo do seu pedestal. Organiza-se um passeio ao sítio do Seu Lucino, nas proximidades do engenho. No caminho, gente que voltava da feira com seus quilos de carne. A caravana chega ao sítio e são recebidos com a boa hospitalidade sertaneja. À tardinha, voltam todos para casa, quando os moleques começam a falar de mal-assombrados.

O narrador leva a sua primeira surra pelas mãos da velha Sinhazinha. Ficou desolado o dia todo, e à noite, foi dormir pensando na vingança: “Queria vê-la despedaçada entre dois cavalos como a madrasta da História de Trancoso.”

A cheia do Paraíba chegou devastadora, matando gente e animais, destruindo plantações e casas. A gente do engenho refugia-se na casa do velho Amâncio, fugido da fúria das águas. A enchente tinha sido arrasadora e as águas chegaram a penetrar na casa grande. Os prejuízos eram enormes .

As primeiras letras, enfim, vieram com a bela Judite, mulher do Dr. Figueiredo. Com ela, começam a surgir os primeiros lampejos do amor. “Sonhava com ela de noite, e não gostava dos domingos porque ia ficar longe de seus beijos e abraços”.

Depois mandaram-no para uma escola onde tinha todas as regalias, em meio da miséria geral, por ser o “neto do Coronel Zé Paulino”. Paralelamente às letras, começa a iniciação sexual, apesar da pouca idade. Com Zé Guedes, moleque que o levava e buscava na escola, aprendeu “muita coisa ruim”. Com o primo Silvino e outros andou fazendo muita “porcaria” com as cabras e vacas da fazenda.

Nas visitas e incertas do Coronel José Paulino à sua propriedade, está patente todo o seu poder de senhor de engenho, de patriarca absoluto daquelas terras.

A religião no engenho se restringia aos limites do quarto de santos com suas estampas e imagens. O Coronel Zé Paulino não era um devoto, e mesmo a tia Maria, sempre preocupada com rezas e orações, não era de frequentar igreja e comungar. Na semana santa, especialmente na Sexta-Feira da Paixão, havia um recolhimento natural em obediência à tradição.

O cabra Chico Pereira está amarrado ao tronco para receber a punição pelo malfeito: A vítima, a mulata Maria Pia, jogara-lhe a culpa, e o senhor patriarcal, inflexível, ordenara que o moleque assumisse. Convidada a jurar sobre o livro sagrado, a mulata confessa.

Uma traquinagem de criança e um ato de heroísmo – eis a síntese deste capítulo. O primo Silvino, querendo provocar um desastre, coloca uma pedra enorme na linha de trem para vê-lo tombar. O narrador imagina a cena terrível com gente morta e ferida e, num gesto heroico, atira-se diante do trem e rola a pedra dos trilhos.

Pelo engenho, corria o boato de que um lobisomem estava aparecendo na Mata do Rolo. “Diziam que ele comia fígado de menino e que tomava banho com sangue de criança de peito”. Seria José Cutia? Além do lobisomem, outros duendes da superstição popular povoaram a infância do narrador: o zumbi, as caiporas, as burras-de-padre etc.

A velha Totonha com suas histórias fabulosas encantam o narrador. Quando passava pelo engenho era um festa. Suas histórias, sempre de reis e rainhas comoviam. Ela sabia como ninguém contar uma história. Mas “o que fazia a velha Totonha mais curiosa era a cor local que ela punha nos seus descritivos (...) Os rios e as florestas por onde andavam os seus personagens se pareciam muito com o Paraíba e a Mata do Rolo. O seu Barba Azul era um senhor de engenho de Pernambuco.

“A senzala do Santa Rosa não desaparecera com a abolição. Ela continuava pregada à casa-grande, com suas negras parindo, as boas amas-de-leite e os bons cabra do eito e as boas cabras do cifo”. Apesar de terem sido aforriados, muitos ficaram no engenho. Aí estava a velha Galdina, doente e alquebrada, Generosa, que mandava na cozinha da casa-grande e a demoníaca Maria Gorda.

Tal como um monarca, o senhor de engenho, sentado no seu trono, ia ouvindo as queixas e pedidos dos seus súditos.

Mais um passeio. Agora é ao engenho do Oiteiro. Saem cedo e vão de carro-de-boi. Destaca-se aqui a habilidade do carreiro Miguel Targino na condução dos bois. Por onde passa a comitiva é recebida com festejos e cortesia. Destaca-se em cada lugar a hospitalidade e gentileza do povo simples e humilde. Tia Maria, a senhora do Santa Rosa, retribui a tudo com simpatia.

A morte trágica da mãe o marcou profundamente e, apesar das brincadeiras e traquinagens com os moleques, era um menino melancólico que buscava sempre a solidão.

Contadores de histórias — os mestres de ofício dos quais o narrador se tornou amigo. É através deles que ele fica conhecendo o Capitão Quincas Vieira, irmão mais novo do Coronel Zé Paulino, que morreu brigando.

Um antigo sonho do narrador se realiza: ganhou um lindo Carneiro para montaria. Chamava-se Jasmim. Entretinha-se com ele boa parte do tempo e, com isso, os canários ganharam a liberdade. Nos seus passeios com Jasmim, na solidão do entardecer, a melancolia de sempre, “arrastava-me aos pensamentos de melancólico”.

Da história triste do Santa Fé e seu senhor decadente - O Coronel Lula de Holanda, surgiu um dos grandes romances de José Lins: Fogo Morto. O Santa Fé é um engenho em decadência, símbolo de um mundo que está prestes a ruir. Em vão, o Coronel tenta manter a fachada com seu cabriolé. Um pouco mais e o Santa Fé estará de fogo morto.

A doença tira a liberdade do narrador por um bom espaço de tempo. Era o puxado, “uma moléstia horrível que me deixava sem fôlego, com o peito chiando, como se houvesse pintos sofrendo dentro de mim”. Amargou, por causa do puxado, muitos dias de solidão e de cama.

O narrador penetra no quarto do tio Juca e na sua intimidade: “uma coleção de mulheres fluas, de postais em todas as posições da obscenidade”.

A descrição de um incêndio de largas proporções faz brotar de todos os cantos a solidariedade do sertanejo. Mais uma vez sobressai aqui a figura do avô, com sua autoridade e com seus gritos de ordem para conter o fogo que ia devastando o canavial.

Um exército de homens miseráveis e esfarrapados trabalham no eito: “estavam na limpa do partido da várzea”. “Às vezes eu ficava por lá, entretido com o bate-boca dos cabras”. Muitos desfilam pelo capítulo — uns com suas virtudes, outros com seus defeitos. Em todos, um ponto comum: a vida de servidão, a miséria, a degradação.

Após a ceia, o Coronel Zé Paulino gostava de contar seus casos de escravos a senhores de engenho, antes e depois da abolição. As ruindades do Major Ursulino com os negros sempre se destacam nas suas histórias. Gostava também de relembrar a visita de Dom Pedro ao Pilar e tinha grande orgulho de sua casta branca e nobre.

O amor desperta forte no coração do narrador que possuía então oito anos. Era Maria Clara, uma prima civilizada do Recife, que estava ali com a família para passar férias. A paixão é violenta: os passeios, o beijo, as lágrimas da partida.

A loucura solitária e miserável do pai remete o narrador a doentes (como o Cabeção e o doido) e a maus presságios que o deprimem. O seu puxado atormenta-o e os cuidados o aprisionam: “a minha vida ia ficando como a dos meus canários prisioneiros”. Por outro lado, a sexualidade precoce encontra na negra Luísa uma comparsa das “minhas depravações antecipadas”; “só pensava nos meus retiros lúbricos com o meu anjo mau, nas masturbações gostosas com a negra Luísa.”

O casamento da tia Maria foi digno da opulência e grandeza do senhor de Engenho do Santa Rosa. Atraiu gente de toda a redondeza e do Recife. É com tristeza que tudo é descrito pelo narrador que perde a sua segunda mãe: “E pela estrada molhada das chuvas de fim de junho, lá se fora a segunda mãe que eu perdia”. Até mesmo o Jasmim, o carneiro montaria, fora-se nessa, servindo de almoço e jantar, juntamente com outros, aos inúmeros convidados.

“— Você, no mês que entra, vai para o colégio”. Arranjavam-se os preparativos, e, com o casamento de tia Maria, “vivia a desejar o dia da minha partida”. Já estava grandinho (cerca de doze anos) e não

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sabia quase nada. Sabia ruindades, puxava demais pelo meu sexo, era um menino prodígio da porcaria.

Lá fora, a chuva caía fazendo crescer as plantações: “os pés de milho crescendo, a cana acamando na várzea, o gado gordo e as vacas parindo”.

Uma briga entre dois negros se encerra com a morte de um deles que deixou mulher e cinco filhos órfãos. Levam preso o assassino, mas a alma do morto continuou pairando pelo engenho sob a forma de assombração.

“Tinha uns doze anos quando conheci uma mulher, como homem”. E, com ela, apanhou doença-do-mundo a qual ia operando nele uma transformação: o menino de calça curta ia ficando na curva do tempo e dali, precocemente, ia brotando um rapazinho de sexualidade exacerbada. “Recorriam ao colégio como a uma casa de correção”.

Enfim chega a época de o depravado menino ir para o colégio. “Uma outra vida ia começar para mim ". Tudo ia ficando para trás com o trem em movimento.

Carlinhos “levava para o colégio um corpo sacudido pelas paixões de homem feito e uma alma mais velha do que o corpo”. Era o oposto de Sérgio, em O Ateneu, que “entrava no internato de cabelos grandes e com uma alma de anjo cheirando a virgindade.”

O URAGUAI – Basílio da Gama

INTRODUÇÃO

“Ao tempo de Basílio da Gama, (...), mantinha-se a imitação dos antigos (inclusive dos renascentistas), com um maior equilíbrio entre a razão e o sentimento, entre a realidade e a fantasia, a informação e a invenção.” (Mário Camarinha da Silva).

“Uma epopéia incomum”. Assim poderíamos em linhas gerais, classificar a produção árcade de Basílio da Gama, muito mais vocacionada ao louvou da política pombalina do que à expressão valorativa na confecção de uma obra. É certo que, mesmo se valendo de “um tema não adequado ao gênero épico, por ser pouco grandioso e contemporâneo do autor, Basílio da Gama conseguiu, (...), criar uma obra de fôlego e de certa elegância poética”, como afirma José de Nicola. No entanto, o caráter laudatório, configurado em O Uraguai, desabona a força literária da composição que, presa à “necessária” exaltação do governo falsamente ilustrado (lembrar o despotismo esclarecido de Marquês de Pombal), afrouxa a preocupação puramente estética.

As composições neoclássicas, cultoras da simplicidade e, consequentemente, da razão evocaram sempre as imagens aborígines e primitivas. Junto à natureza, reencontraram a imagem das primeiras expressões humanas, livres dos vícios comuns à alma de um homem que vive oprimido em meio a uma sociedade urbana. Daí a presença inegável do “bom selvagem” que ressurge como um mito

em tempos de franca urbanização. Tal referência urbana indica, nesta caso, o século XVIII, das “luzes iluministas”, da Revolução Industrial e da indiscutível ascensão da burguesia. No entanto, a obra específica de Basílio da Gama, apesar de fazer “a exaltação da natureza e do ‘bom selvagem’, soube fugir aos lugares – comuns do bucolismo vigente”, ainda admitindo algumas das considerações de Nicola.

Os poemas laudatórios não são incomuns na literatura colonial. Desde a Prosopopéia de Bento Teixeira, em um texto de exaltação incontida (obra constituída por 94 oitavas), as “qualidades” do governador de Pernambuco, Jorge Albuquerque Coelho, e de seu irmão Duarte, este modelo de composição subserviente está presente na literatura brasileira, revelando, sobretudo, os estigmas eternos de uma colônia de exploração. Sem dúvida, Basílio da Gama não se atém ao modelo bem comportado e meramente bajulador da epopéia de Bento Teixeira. Em seu texto, as ações do Marquês de Pombal são sutilmente dignificadas. Até porque o comportamento estético adotado por Basílio da Gama apresenta virtudes inegáveis na proposição inovadora. Enquanto a Prosopopéia versa obediente aos “cânones” camonianos, O Uraguai revela versos brancos, estrofação irregular e ainda a restrita expressão de cinco cantos, com certeza, bem distante de se modelar na obra clássica de Luiz de Camões.

Tematizado basicamente na lua empreendida pelas tropas luso-espanholas contra os índios da Missão dos Sete Povos, que lutam contra as tropas mobilizadas, sobretudo por Pombal, o texto vai revelar a covardia dos jesuítas, descumpridores Tratado de Madri, ao defenderem a posse de Sete Povos das Missões do Uraguai e também o domínio da Missão do Sacramento. Segundo o tratado luso-espanhol os territórios onde estavam fixadas estas missões seria de propriedade respectiva dos portugueses e espanhóis.

O que se faz interessante perceber é que o conflito histórico no enfoque da epopéia de Basílio da Gama propõe a imagem de heróis tanto entre os índios, destacadas as “figuras românticas” de Cacambo e Lindóia, como também entre os luso-espanhóis, é o caso do português heróico, Gomes Freire Andrada. No entanto, no banco dos réus há espaço apenas para os jesuítas perseguidos por Marquês de Pombal, personificados claramente através de uma caricatura muito bem construída, o Padre Balda, que revela sua sordidez e por conseqüência o imundo caráter de seus parceiros religiosos. A caça aos jesuítas, instituto do déspota português, teve então o seu aval literário no texto de Basílio da Gama que assim podia se garantir em tempos de política pombalina. Será mesmo, “o saco do chefe”, “o corrimão da vida”? abaixo a literatura! Vivas à bajulação!

“BASÍLIO DA GAMA, UM BAJULADOR!”

José Basílio da Gama – Nasceu a 8 de abril de 1741, em São José do Rio das Mortes (atualmente Tiradentes), Minas Gerais. Estudou no Colégio dos jesuítas do Rio de Janeiro. Em 1759, expulsos os jesuítas, segue para Roma, onde seus mestres fazem que seja aceito na Arcádia Romana (fundada em 1690), sob o (pseudônimo) de Termindo Sipílio. Depois de breve estada no Rio de Janeiro, ruma para Lisboa, onde é preso por suspeição de jesuitismo, e condenado ao degredo. Salva-o, na emergência um Epitalâmio à filha do Marquês de Pombal: este, sensibilizado pelo veemência do poeta, não só o perdoa como resolve protegê-lo, publicando-lhe O Uraguai (1769) e passando-lhe carta de fidalguia (1771). Com a queda de seu mecenas, consegue manter-se prestigiado, agora junto a D. Maria I. E é cercado de privilégios que falece a 31 de julho de 1795. Além das duas obras mencionadas, deu à estampa A Declaração Trágica (1772), Os Campos Elísios (1776), Lenitivo da Saudade (1791) e Quitúbia (1791).

As Obras Poéticas de José Basílio da Gama, reunindo tudo quanto escreveu, foram editadas em 1902, no Rio de Janeiro, precedidas de um estudo de José Veríssimo.

É conhecido, principalmente por sua epopéia laudatória:

Análise da obra

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O Uraguai, poema épico de 1769, critica drasticamente os jesuítas, antigos mestres do autor Basílio da Gama. Ele alega que os jesuítas apenas defendiam os direitos dos índios para ser eles mesmos seus senhores. O enredo situa-se todo em torno dos eventos expedicionários e de um caso de amor e morte no reduto missioneiro.

Tema central: Pelo Tratado de Madri, celebrado entre os reis de Portugal e de Espanha, as terras ocupadas pelos jesuítas, no Uruguai, deveriam passar da Espanha a Portugal. Os portugueses ficariam com Sete Povos das Missões e os espanhóis, com a Colônia do Sacramento. Sete Povos das Missões era habitada por índios e dirigida por jesuítas, que organizaram a resistência à pretensão dos portugueses. O poema narra o que foi a luta pela posse da terra, travada em princípios de 1757, exaltando os feitos do General Gomes Freire de Andrade. Basílio da Gama dedica o poema ao irmão do Marquês de Pombal e combate os jesuítas abertamente.

PersonagensGeneral Gomes Freire de Andrade (chefe das tropas portuguesas); Catâneo (chefe das tropas espanholas); Cacambo (chefe indígena); Cepé (guerreiro índio); Balda (jesuíta administrador de Sete Povos das Missões); Caitutu (guerreiro indígena; irmão de Lindóia); Lindóia (esposa de Cacambo);Tanajura (indígena feiticeira).

Resumo da narrativaA pobreza temática impele Basílio da Gama a substituir o modelo camoniano de dez cantos por um poema épico de apenas cinco cantos, constituídos por versos brancos, ou seja, versos sem rimas.Canto I: Saudação ao General Gomes Freire de Andrade. Chegada de Catâneo. Desfile das tropas. Andrade explica as razões da guerra. A primeira entrada dos portugueses enquanto esperam reforço espanhol. O poeta apresenta já o campo de batalha coberto de destroços e de cadáveres, principalmente de indígenas, e, voltando no tempo, apresenta um desfile do exército luso-espanhol, comandado por Gomes Freire de Andrade.

Canto II: Partida do exército luso-castelhano. Soltura dos índios prisioneiros. É relatado o encontro entre os caciques Cepê e Cacambo e o comandante português, Gomes Freire de Andrade, à margem do rio Uruguai. O acordo é impossível porque os jesuítas portugueses se negavam a aceitar a nacionalidade espanhola. Ocorre então o combate entre os índios e as tropas luso-espanholas. Os índios lutam valentemente, mas são vencidos pelas armas de fogo dos europeus. Cepé morre em combate. Cacambo comanda a retirada.

Canto III: O General acampa às margens de um rio. Do outro lado, Cacambo descansa e sonha com o espírito de Cepê. Este incita-o a incendiar o acampamento inimigo. Cacambo atravessa o rio e provoca o incêndio. Depois, regressa para a sede. Surge Lindóia. A mando de Balda, prendem Cacambo e matam-no envenenado. Balda é o vilão da história, que deseja tornar seu filho Baldeta, cacique, em lugar de Cacambo. Observa-se aqui uma forte crítica aos jesuítas. Tanajura propicia visões a Lindóia: a índia “vê” o terremoto de Lisboa, a reconstituição da cidade pelo Marquês de Pombal e a expulsão dos jesuítas.

Canto IV: Maquinações de Balda. Pretende entregar Lindóia e o comando dos indígenas a Baldeta, seu filho. O episódio mais importante: a morte de Lindóia. Ela, para não se entregar a outro homem, deixa-se picar por uma serpente. Os padres e os índios fogem da sede, não sem antes atear fogo em tudo. O exército entra no templo. O poema apresenta então um trecho lírico de rara beleza: "Inda conserva o pálido semblanteUm não sei que de magoado e tristeQue os corações mais duros enternece,Tanto era bela no seu rosto a morte!"

Com a chegada das tropas de Gomes Freire, os índios se retiram após queimarem a aldeia.

Canto V: Descrição do Templo. Perseguição aos índios. Prisão de Balda. O poeta dá por encerrada a tarefa e despede-se. Expressa suas opiniões a respeito dos jesuítas, colocando-os como responsáveis pelo massacre dos índios pelas tropas luso-espanholas. Eram opiniões que agradavam ao Marquês de Pombal, o todo-poderoso ministro de D. José I. Nesse mesmo canto ainda aparece a homenagem ao general Gomes Freire de Andrade que respeita e protege os índios sobreviventes.

Apreciação críticaO poema é escrito em decassílabos brancos, sem divisão em estrofes, mas é possível perceber a sua divisão em partes: proposição, invocação, dedicatória, narrativa e epílogo. Abandona a linguagem mitológica, mas ainda adota o maravilhoso, apoiado na mitologia indígena. Foge, assim, ao esquema tradicional, sugerido pelo modelo imposto em língua portuguesa, Os Lusíadas. Por todo o texto, perpassa o propósito de crítica aos jesuítas, que domina a elaboração do poema.A oposição entre rusticidade e civilização, que anima o Arcadismo, não poderia deixar de favorecer, no Brasil, o advento do índio como tema literário. Assim, apesar da intenção ostensiva de fazer um panfleto anti-jesuítico para obter as graças de Pombal, a análise revela, todavia, que também outros intuitos animavam o poeta, notadamente descrever o conflito entre a ordenação racional da Europa e o primitivismo do índio.Variedade, fluidez, colorido, movimento, sínteses admiráveis caracterizam os decassílabos do poema, não obstante equilibrados e serenos. Ele será o modelo do decassílabo solto dos românticos.

Além dessas, outras características notáveis do poema são:Sensibilidade plástica: apreende o mundo sensível com verdadeiro prazer dos sentidos. Recria o cenário natural sem que a notação do detalhe prejudique a ordem serena da descrição.Senso da situação: o poema deixa de ser a celebração de um herói para tomar-se o estudo de uma situação: o drama do choque de culturas.Simpatia pelo índio, que, abordado inicialmente por exigência do assunto, acaba superando no seu espírito o guerreiro português, que era preciso exaltar, e o jesuíta, que era preciso desmoralizar. Como filho da “simples natureza”, ele aparece não só por ser o elemento esteticamente mais sugestivo, mas por ser uma concessão ao maravilhoso da poesia épica.Devido ao tema do índio, durante todo o Romantismo, o nome de Basílio da Gama foi talvez o mais freqüente, quando se tratava de apontar precursores da literatura nacional. Convém, entretanto, distinguir neste poeta o nativismo do interesse exterior pelo exótico, havendo mesmo predomínio deste, pois o indianismo não foi para ele uma vivência, foi antes um tema arcádico transposto em linguagem pitoresca.O preto africano lhe feriu a sensibilidade também, tendo sido o primeiro a celebrá-lo no poemeto Quitúbia, mostrando que a virtude é de todos os lugares.Basílio foi poeta revolucionário com seu poema épico. Enquanto Cláudio trazia ao Brasil a disciplina clássica, Basilio, sem transgredi-la muito, mas movendo-se nela com maior liberdade estética e intelectual, levava à Europa o testemunho do Novo Mundo.

O URAGUAI

Poemeto épico, em cinco cantos, estrofação livre, decassílabos brancos, gira em torno da guerra que portugueses e espanhóis moveram contra indígenas e jesuítas em Sete Povos de Missões do Uruguai, em 1759, O herói, Gomes Freire de Andrada, divide as honras com Cacambo, herói indígena. Travada a luta, Cacambo incendeia o acampamento. Morrem Cepé e Cacambo.

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Aplacadas as chamas, o Padre Balda planeja dar Lindóia em casamento a seu filho Baldeta, mas a índia, para fugir ao opróbrio, suicida-se. Os jesuítas abandonam o aldeamento e ateiam-lhe fogo. Termina a guerra.

OBSERVAÇÕES (O Uruguai, Fragmentos principais)

Em versos brancos, sem estrofação, mas dividido em preposição, invocação, dedicatória, narração e epílogo (como e eponéia clássica), Basílio da Gama narra a luta travada entre os indígenas das missões dos Sete Povos do Uruguai e um exército luso-espanhol que tentava transferir estas terras para os portugueses e a Colônia de Sacramento para os espanhóis, tudo para cumprir o Tratado de Madri, celebrando entre Portugal e Espanha em 1750.

Fica claro, ao longo do poema, que as intenções de Basílio da Gama são políticas. Com o tom laudatório que o poema encerra, a figura homenageada fica sendo o Marquês de Pombal e o elemento repudiado fica sendo o jesuíta, que se coloca ao lado dos índios, na defesa de Sete Povos.

Um personagem, Padre Balda, representa a caricatura dos jesuítas; Gomes Freire de Andrada e o herói português; os guerreiros Cepé e Cacambo e as índias Tanajura e Lindóia representam a raça indígena.

No primeiro trecho selecionado de O Uruguai, Cacambo está ansioso por voltar aos braços da senhoril Lindóia, sua esposa, mas o maldoso Balda se incumbe de afastá-la.

TINHA CACAMBO

Real esposa, a senhoril Lindóia,De costumes suavíssimos e honestos,Em verdes anos: com ditos laçosAmor os tinha unido; mas apenasOs tinha unido, quando ao som primeiroDas trombetas lho arrebatou dos braçosA glória enganadora. Ou foi que Balda,Engenhoso e sutil, queis desfazer-seDa presença importuna e perigosaDo índio generoso; e desde aquelaSaudosa manhã, que a despedidaPresenciou dos duos amantes, nuncaConsentiu que outra vez tornasse aos braços

Da formosa Lindóia e descobriaSempre novos pretextos da demoraTornar não esperado e vitoriosoFoi todo o seu delito. Não consenteO cauteloso Balda que LindóiaChegue a falar ao seu esposo; e mandaQue uma escura prisão o esconda e aparteDa luz do sol. Nem os raeais parentes,Nem dos amigos a piedade, e o prantoDa enternecida esposa abranda o peitoDo obstinado juiz: até que à forçaDe desgosto, de mágoa e de saudade, por meio de um licor desconhecido,Que lhe deu compassivo o santo padre,Jaz o ilustre Cacambo - entre os gentiosÚnico que na paz e em dura guerraDe virtude e valor deu claro exemplo.

OBSERVAÇÃO IMPORTANTE

1) Observe que o trecho transcrito (parte do canto II do poema) é composto de versos decassílabos, sem rima e sem estrofação.

1 2 3 4

Re al As PoCom sen tiu Que ou

5 6 7 8as a se nho riltra vez tor nas

9 10 11Lin Dói ASe aos bra ços

2) Como se vê, o par amoroso é formado por Cacambo e por Lindóia. Ele, caracterizado como generoso e vitorioso; pessoa de virtude e de valor. Ela, caracterizada como pessoa senhoril, de costumes suavíssimos e honestos. Além de formosa, dedicada ao marido.

3) O jesuíta Balda, por sua vez, impede a reaproximação do nobre casal, mandando prender Cacambo e depois envenenado-o, fazendo a sua morte parecer um suicídio.

4) Os versos brancos, a falta de estrofação e o enredo apresentado, quase que de forma prosaica, tornam o episódio muito leve: uma leitura fácil de ser consumada.

Tendo por base os acontecimentos destacados no episódio da morte de Cacambo, pode-se falar que existe no poema uma oposição entre o jesuíta mau caráter e o índio bom caráter, o jesuíta age tão premeditadamente ao dar o “licor desconhecido” a Cacamco que a sua maldade fica em evidência. É claro que o leitor, diante da venalidade de Balda, se coloca ao lado de Cacambo: é a intenção política com tintas fortes o padre sem piedade.

O segundo trecho selecionado de O Uruguai é um fragmento da morte de Lindóia.

MORTE DE LINDÓIA

Este lugar delicioso e triste,Cansada de viver, tinha escolhidoPara morrer a miséria Lindóia.Lá reclinada, como que dormia,Na branda relva e nas mimosas flores,Tinha a face na mão, e a mão no troncoDe um fúnebre cipreste, que espalhava.Melancólica sombra. Mais de pertoDescobrem que se enrola em seu corpoVerde serpente, e lhe passeia, e cingePescoço e braços, e lhe lambe o seio.Fogem de a ver assim, sobressaltados,E param cheios de temor ao longe,E nem se atrevem a chamá-la, e tememQue desperte assustada, e irrite o monstroE fuja, e apresse no fugir a morte.Porém o destro Caitutu, que tremeDo perigo da irmã, sem mais demoraDobrou as pontas do arco, e quis três vezesSoltar o tiro, e vacilou três vezesEntre a ira e o temor. Enfim sacodeO arco e faz voar a aguda seta,Que toca o peito de Lindóia, e fereA serpente na testa, e a boca e os dentesDeixou cravados no vizinho tronco.Açouta o campo coa ligeira caudaO irado monstro, e em tortuosos girosSe enrosca no cipreste, e verte envoltoEm negro sangue o lívido venenoLeva nos braços a infeliz LindóiaO desgraçado irmão, que ao despertá-la

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Lúmen Específicas

Conhece com que dor! No frio rostoOs sinais do veneno, e vê feridoPelo deste sutil o branco peito.Os olhos, em Amor reinava, um dia,Cheios de morte; e muda aquela línguaQue ao surdo vento e aos ecos tantas vezesContou a larga história de seus males.Nos olhos Caitutu não sofre o pranto.E rompe em profundíssimos suspiros,Lendo na testa da fronteira grutaDe sua mão já trêmula gravadoO alheio crime e a voluntária morte.É por todas as partes repetidoO suspiro nome de Cacambo.Inda conserva o pálido semblanteUm não sei quê de magoado e triste;Que os corações mais duros enternece.Tanto era bela no seu rosto a morte!(...)

Numa ambientação que prenuncia os quadros românticos por vir, no que se refere ao processo literário brasileiro, percebemos Lindóia, entregue à morte, inevitável destino, sobretudo para aqueles que não sabem viver sem amor; “por amor se vive”, “por amor se morre”, “se se morrer de amor”, como expressará mais tarde a lírica amorosa de Gonçalves Dias. é por essas e por outras que podemos classificar O Uruguai como uma obra pré-romântica, seja na proposição do amor idealizado e invencível, ou mesmo no heroísmo indígena. Cacambo morre, e confirma uma imagem heróica do índio brasileiro, ante visão da perspectiva indianista, tão comum no romantismo brasileiro que se revela anos depois.

Portugueses e índios heróicos! Jesuítas, vilões incorrigíveis! Salve Pombal! O Uruguai cumpre sua sina de texto bajulador!

BIBLIOGRAFIA

- O Uruguai, Basílio da Gama, Editora Record.- Literatura Brasileira (Das Origens aos Nossos Dias), José de Nicola, Editora Scipione- A Literatura Brasileira Através dos Textos, Massaud Moisés, editora Cultrix.- Literatura: História e Texto, volume I, Samira Youssef Campedelli

TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA - LIMA BARRETO.

Biografia - Filho de um operário e de uma professora primária, ambos mulatos, Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881. Cedo ficou órfão de mãe e passou a freqüentar a Colônia dos Alienados, um asilo de loucos onde seu pai exercia a função de almoxarife. Graças a protetores, Lima Barreto concluiu o secundário e iniciou os estudos superiores na Escola Politécnica. Por ironia do destino, seu pai enlouqueceu e acabou internado no próprio asilo onde trabalhava. Lima Barreto encarregou-se de sustentar a família, abandonando os estudos e conseguindo um emprego

burocrático na Secretaria de Guerra. Ao mesmo tempo, começou a colaborar com quase todos os jornais do Rio de Janeiro. Todavia seu espírito inquieto e rebelde, seu inconformismo com a mediocridade reinante, suas críticas mordazes aos letrados nativos tornaram-lhe bastante difícil a vida econômica. Além disso, manifestou-se contra ele o preconceito de cor. Para fugir das complicações pessoais e sociais, entregou-se então de corpo e alma ao álcool. Suas contínuas depressões o conduziram várias vezes ao hospital de alienados mentais. Morreria de um colapso cardíaco, em plena miséria aos quarenta e um anos, em 1922. De há muito já não escrevia coisas importantes e caíra no esquecimento em vida. Somente na década de 1970 sua obra voltaria a circular no país. No Rio de Janeiro do início do século, dominado culturalmente pelos letrados tradicionais, a contestação artística se faz de forma bastante problemática: o conservadorismo parece asfixiar o novo. Daí as dificuldades e provocações que Lima Barreto enfrenta ao produzir uma literatura inteiramente desvinculada dos padrões e do gosto vigentes.

Obras principais: Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909) Triste fim de Policarpo Quaresma (1911) Numa e Ninfa (1915) Vida e morte de M .J. Gonzaga de Sá (1919) Os bruzundangas (1923) Clara dos Anjos (1924) Cemitério dos vivos (1957 - edição póstuma)

Estilo – Lima Barreto

Numa opção voluntária, abandona o mundo helênico, os deuses olímpicos para revelar sobretudo a tristeza dos subúrbios, com sua gente humilde: funcionários públicos aposentados, jornalistas pobretões, tocadores de violão, raparigas sonhadoras, etc. Além disso - e como negação da época - impregna a sua obra com uma justa preocupação com os fatos históricos e com os costumes sociais, tornando-se uma espécie de cronista apaixonado da antiga capital federal, seguindo a linha aberta por Manuel Antônio de Almeida, sessenta anos antes.

É uma brutal mudança de enfoque. Poucos aceitam estes contos e romances que desvelam a vida cotidiana das classes populares, sem qualquer idealização, ainda que cheios de simpatia humana para os protagonistas mais sofridos. Isso o diferenciava, por exemplo de Aluísio Azevedo, que também enfocara as massas urbanas, mas sob um ângulo enauseado. Lima Barreto experimenta grande ternura pelos desvalidos e humilhados, fugindo, no entanto, do sentimentalismo populista que é o maior perigo dessa literatura a favor dos pobres.

A sua rebeldia contra a estética dominante se manifesta também na questão do estilo. Despreza a retórica bacharelesca e parnasiana e escreve com simplicidade, até com certo desleixo voluntário, querendo aproximar a escrita da linguagem coloquial. Acusado de escritor incorreto e incapaz de lidar com os padrões lingüísticos da elite culta, sua obra será julgada gramaticalmente e condenada por suposta vulgaridade. Décadas depois, podemos constatar que Lima Barreto não é apenas o romancista mais importante do período, como também aquele que mais se aproxima da expressão prosaica, conquistada pela geração de 1922.

É uma brutal mudança de enfoque. Poucos aceitam estes contos e romances que desvelam a vida cotidiana das classes populares, sem qualquer idealização, ainda que cheios de simpatia humana para os protagonistas mais sofridos. Isso o diferenciava, por exemplo de Aluísio Azevedo, que também enfocara as massas urbanas, mas sob um ângulo enauseado. Lima Barreto experimenta grande ternura pelos desvalidos e humilhados, fugindo, no entanto, do sentimentalismo populista que é o maior perigo dessa literatura a favor dos pobres.

Triste Fim de Policarpo Quaresma - Comentários

A obra-prima de Lima Barreto não é perturbada, - ao contrário das demais, - pela caricatura ou pela intromissão opiniática do narrador e assim o seu realismo se torna mais complexo. Conta-se

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nela o drama de um velho aposentado, Policarpo Quaresma, em sua luta ingênua pela salvação do Brasil. Nacionalista xenófobo, propõe a adoção do tupi-guarani como língua oficial, alimenta-se apenas com comidas brasileiras, recebe as visitas gesticulando e chorando como um verdadeiro índio goitacá, intenta fracassadas pesquisas folclóricas.

Depois de uma passagem pelo hospício, causada pela distância entre o seu nacionalismo ufanista e a realidade, ele resolve adquirir um sítio, para plantar e, acima de tudo, comprovar a máxima de que, em se plantando, tudo daria nas nossas férteis terras. Também nessa experiência o protagonista fracassa. Só que agora sua bizarria vai cedendo lugar à percepção de que os problemas do país eram maiores do que ele supunha.

O caso de Policarpo passa do cômico ao dramático. Tanto o seu sincero desejo de progresso para a nação quanto a consciência crítica, que aos poucos vai adquirindo, lhe dão grande autenticidade humana e social. Ao estourar a Revolta da Armada, em 1893, ele já sabe algumas das verdadeiras causas do atraso brasileiro. Mesmo assim, alista-se entre os voluntários defensores do regime republicano, chefiado por Floriano Peixoto. Ele acredita nos princípios do marechal e esta será a sua última ilusão.

Vitorioso e dentro de seu estilo bonapartista, o Presidente da República inicia violenta perseguição aos derrotados, os quais são impiedosamente fuzilados. Policarpo lhe escreve então uma carta áspera e lúcida, solicitando que o terrorismo de Estado seja interrompido. A resposta do ditador jacobino vem em seguida: o "visionário" Policarpo Quaresma é preso, sem qualquer base legal, mandado para uma ilha e lá condenado à morte por fuzilamento. A sua compreensão derradeira sobre tudo o que havia vivido é extraordinária:

Iria morrer, quem sabe se naquela noite mesmo? E que tinha feito de sua vida? Nada. Levara toda ela atrás da miragem de estudar a pátria, por amá-la e querê-la muito, no intuito de contribuir para a sua felicidade e prosperidade. Gastara a sua mocidade nisso, a sua virilidade também; e, agora que estava na velhice, como ela o recompensava, como ela o premiava, como ela o condecorava? Matando-o.

Desde 18 anos que o tal patriotismo o absorvia e por ele fizera a tolice de estudar inutilidades. Que lhe importavam os rios? Eram grandes? Pois que fossem... Em que lhe contribuiria para a felicidade saber o nome dos heróis do Brasil? Em nada. O importante é que ele tivesse sido feliz. Foi? Não. Lembrou-se das suas coisas de tupi, do folclore, de suas tentativas agrícolas...Restava disso tudo em sua alma uma satisfação?? Nenhuma! Nenhuma!

E quando o seu patriotismo se fizera combatente, o que achara? Decepções. Onde estava a doçura de nossa gente? Pois ele não a viu combater como feras? Pois não a via matar prisioneiros inúmeros?(...)

Contudo, quem sabe se outros que lhe seguissem as pegadas não seriam mais felizes? E logo respondeu a si mesmo: mas como? Se não se fizera comunicar, se nada dissera e não prendera o seu sonho, dando-lhe corpo e substância?

A mudança que se opera em Policarpo - da alienação ufanista à consciência real do país - constitui o cerne da narrativa.. Sua visão final remete-o para a análise corrosiva das mitologias dos grupos dirigentes e das mistificações de que fora vítima. Quando compreende o papel da ideologia no processo histórico, precisa morrer. O sistema tem as suas defesas, sabe como extirpar os hereges.

O velho Policarpo tem de seu apenas a verdade, antes que a madrugada raie e os galos cantem e os assassinos a soldo do Poder se aproximem. Por segundos, ele pensa na falta de sentido do conhecimento que alcançara, principalmente por não poder transmiti-lo a ninguém: não tivera seguidores, e isso é mais uma matéria para a sua angústia. Então os soldados o arrastam e dá-se o seu "triste fim".

Lima Barreto não fornece esperanças para o anti-herói que criou, mas a jovem Olga apresenta uma perspectiva de futuro no término do relato. A amiga do burocrata sabe que, apesar de tudo, a

História não pára. Pela primeira vez na ficção brasileira uma mulher entende o fluir social:

Saiu e olhou. Olhou o céu, as árvores de Santa Teresa, e se lembrou que, por estas terras, já tinham errado tribos selvagens, das quais um dos chefes se orgulhava de ter no sangue o sangue de dez mil inimigos. Fora há quatro séculos. Olhou de novo o céu, os ares, as árvores de Santa Teresa, as casas, as igrejas; viu os bondes passearem; uma locomotiva apitou; um carro puxado por uma linda parelha atravessou-lhe na frente. Tinha havido grandes e inúmeras modificações. Que fora aquele parque? Talvez um charco. Tinha havido grandes modificações nos aspectos, na fisionomia da terra, talvez no clima. Esperemos mais, pensou ela; e seguiu serenamente ao encontro de Ricardo Coração dos Outros.

1 – Estilo de época Segundo Moisés Gicovate, eis as principais características

da obra de Lima Barreto: – Não copiou nem imitou. Os personagens de Lima Barreto

são arrancados de sua própria vida; escrevia por necessidade, era uma forma de libertar-se, de analisar-se a si próprio.

- Os escritos são, em grande parte, autobiográficos; encerram muitos fatos verdadeiros, com a interpretação de Lima Barreto.

- A espontaneidade e a marca de seu estilo: fazia da pena o instrumento do coração.

- Lançou mão da sátira, da ironia e do humor. Certo, tudo isso é um meio de defesa, ou, segundo Freud, é mesmo o principal meio de defesa. De qualquer forma, a caricatura e a mordacidade faziam ressaltar a brutalidade e o ridículo de certas situações e, na medida em que se fundamentavam na realidade, eram objetivamente válidas.

- A obra de Lima Barreto aborda quase tudo, no seu tempo: forma de governo, organização econômica, preconceitos de raça, a burocracia, os tráficos de influência; os grupinhos, as sociedades de elogio mútuo - sem as quais o literato era condenado à marginalização.

2) Um Precursor do Modernismo Os críticos geralmente concordam em situar Lima Barreto

entre os pré-modernistas: "Caberia ao romance de Lima Barreto e de Graça Aranha, ao largo ensaísmo social de Euclides, Alberto Torres, Oliveira Viana e Manuel Bonfim, e a vivência brasileira de Monteiro Lobato o papel histórico de mover as águas estagnadas da "belle epoque", revelando, antes dos modernistas, as tensões que sofria a vida nacional"

O período que vai de 1902 a 1922 é considerado "atípico" dentro da literatura brasileira. Tivemos uma série de "neos": neo-realismo, neo-parnasianismo, neo-simbolismo, todos sem maior expressão. O que triunfou, mesmo, foi uma sintaxe acadêmica, lusitanizante, que cortou por um momento a irrupção do projeto lingüístico brasileiro, começado no Romantismo e continuado no Realismo. Lima Barreto rompeu com essa literatura muito antes do Modernismo.

3 - Precursor social

Enquanto alguns escritores do período escreviam como se estivéssemos no melhor dos mundos, e viam na literatura "o sorriso da sociedade" (Afrânio Peixoto), Lima Barreto escancarou as janelas e deixou entrar o cheiro forte da realidade. Ele assumiu os problemas do seu tempo e examinou-os em seus romances. Foi, sobretudo, o "romancista da Primeira República", vista pelos olhos da classe média dos subúrbios do Rio. Enquanto os historiadores oficiais falavam nas lutas patrióticas da consolidação da República, ele via o outro lado da medalha: o povo, massa de canhão totalmente inconsciente do que se passava; a luta pelo poder entre os barões da agricultura e a burocracia militar ou civil; e, sobretudo, a vida dos subúrbios, com seus dramas e suas pequenas felicidades, seus grotescos e ridículos, seu lado terno e humano... A tradição desse romance realista remonta as "Memórias de Um Sargento de Milícias", de Manuel Antônio de

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Almeida, e, depois de Lima Barreto, só teria continuadores expressivos já em pleno Modernismo, com o romance regionalista.

4 - Precursor literário

Lima Barreto rompeu conscientemente com a linguagem anacrônica, classicizada, de um Rui Barbosa, de um Coelho Neto, de tanto prestígio na sua época. Sobre isso, ele tem tiradas inesquecíveis: acusava os escritores acadêmicos de fazerem da literatura "uma continuação do exame de português". Foi por isso, e por alguns pequenos descuidos em suas obras, que os adversários o acusaram de desleixado, quando na verdade ele rompeu voluntariamente com os representantes da "idade de ouro do lídimo linguajar castiço e vernáculo" (M. Cavalcanti Proença). O combate a tal tipo de linguagem seria retomado pelo Modernismo. Lima Barreto chegou primeiro.

Aspectos estruturais

a - Classificação - Trata-se de um romance social, tendo como núcleo principal a história de um patriota tão puro e ardente quanto ingênuo, quase "louco".

b - A narração é feita em terceira pessoa, "narrador onisciente". Em pequenos trechos, a história é contada pelos próprios personagens, como as circunstâncias da guerra que o major Quaresma descreve, em carta, a sua irmã Adelaide. Como o autor conduz simultaneamente vários núcleos dramáticos (várias histórias), ele às vezes antecipa alguns fatos para, em "flash-back", voltar atrás e explicar como as coisas sucederam. Assim, no terceiro capítulo, Genelício dá a notícia de que o Major Quaresma fora internado num hospício. E só no capítulo quarto é que iremos saber as causas e circunstâncias desse internamento.

Lima Barreto desenvolve, simultaneamente, o núcleo principal e os núcleos secundários da história. Em quase todos os capítulos comparece a totalidade dos protagonistas. Para isso o autor se vale de encontros fortuitos entre os personagens, ou de correspondência, ou de visitas recíprocas, ou festas e almoços. Através desses processos ele encontra jeito de ir contando paralelamente a história de todos e de cada um.

Os diálogos são, geralmente, de extraordinária espontaneidade e adequação aos personagens: a fala de Genelício é sempre pedante, afetada e superior; a do Major Quaresma trai as suas leituras patrióticas e seu jeito tímido a formaliza; a de Vicente Coleoni e entremeada de expressões e palavras italianas...

Tempo: o romancista da Primeira República

1 A ação do romance situa-se numa época precisa: a da implantação da República no Brasil, com os governos de Deodoro e, sobretudo, do Marechal Floriano.

Os acontecimentos políticos são vistos no livro não pela ótica oficial, mas pelos olhos do povo e, em particular, na perspectiva da classe média suburbana.

Sob o aspecto sociológico, Lima Barreto conseguiu uma pintura perfeita: surge diante dos olhos aquela época dos fraques, das casacas e sobrecasacas, do pince-nez (óculos de um aro só), das correntinhas de ouro nas cavas dos coletes, das bengalas e das cartolas... Dorme-se de camisão, paga-se em ceitis, mil réis e contos de réis. Anda-se de coches, de tílburis e de bondes puxados a mulas, joga-se o "pocker" , as mulheres enfiam-se em cassas bem engomadas... As gravatas têm alfinetes, as casas são ornamentadas com monogramas na porta de entrada, compoteira nas cimalhas "e outros detalhes equivalentes..."

Já o tempo da narrativa é cronológico: os fatos, normalmente são apresentados em sua seqüência temporal. Raramente, como vimos há uma antecipação, em algum capítulo, logo seguida de um "flash-back" para restabelecer o elo perdido.

Lugar: o romance dos subúrbios do Rio

Com exceção dos meses passados no "Sossego", a obra se ambienta, como outras de Lima Barreto, no Rio de Janeiro e, sobretudo, nos seus subúrbios. Há um pano de fundo maravilhosamente bem retratado, econômica, social e folcloricamente: o sossego das ruas da periferia, as fofocas, a vigilância e o comentário dos vizinhos sobre os vizinhos, os tipos populares – como o próprio e inesquecível Ricardo Coração dos Outros. A "aristocracia" dos subúrbios, composta

de funcionários públicos, de pequenos negociantes, de médicos de alguma clínica, de tenentes de diferentes milícias, nata essa que impara pelas ruas esburacadas daquelas distintas regiões..."

O ambiente burocrático das repartições publicas, de "papelada inçada", de conversas e "gozações", e descrito com vivacidade: Lima Barreto o conhecia muito bem.

Outra reconstituição que nos cala fundo, porque é feita com fibras de sua própria vida e experiência, é a do hospício, onde Quaresma passou uma temporada.

O sítio do "Sossego" é descrito logo no início da segunda parte. O lugar tinha "o aspecto tranqüilo e satisfeito de quem se julga bem com sua sorte". "A casa erguia-se sobre um socalco, uma espécie de degrau, formando a subida para a maior altura de uma pequena colina que lhe corria nos fundos. Em frente, por entre os bambus da cerca, olhava uma planície a morrer nas montanhas que se viam ao longe". Essa planície era cortada por um regato de águas sujas e, qual uma fita, pela via férrea. A habitação "era também risonha e graciosa nos seus muros caiados. Edificada com a desoladora indigência das nossas casas de campo, possuía, porém, vastas salas, amplos quartos, todos com janelas, e uma varanda com uma colunata heterodoxa".

Outra excelente descrição dos subúrbios do Rio aparece no segundo capítulo da segunda parte, conforme mostramos ao resumir o enredo. Finalmente, nos últimos capítulos do romance a ação decorre muitas vezes a beira-mar. E não faltam as poéticas reconstituições desse ambiente: a cerração que de manhã envolve tudo, o pôr-do-sol na praia...

O centro da cidade, a época da rebelião, era alegre e jovial. Havia muito dinheiro, o governo pagava soldos dobrados... Os teatros eram freqüentados e os "restaurantes" noturnos também.

Em contraste, o Campo da São Cristóvão: "ia vendo aquela sucessão de cemitério, com as suas campas alvas que sobem montanhas, como carneiros tosquiados e limpos a pastar; aqueles ciprestes meditativos que as vigiam; e como que se lhe representava que aquela parte da cidade era feudo e senhorio da morte".

A problemática A problemática central da obra e relativamente simples.

Mas as questões levantadas secundariamente, como de passagem, por Lima Barreto, são tão numerosas:

1. O Tema da Loucura - há descrições e tentativas de entender o fenômeno da loucura, que é abordado em páginas comovedoras traindo, sem dúvida, a experiência amarga e a convivência do autor com a deficiência mental.

2. A Burocracia - outro aspecto ligado a experiência pessoal do autor. A burocracia é impiedosamente satirizada: na dificuldade em se "liquidar uma aposentadoria"; no ambiente nivelador e anônimo; no vale-tudo para se obter promoção e nas manobras do "especialista" Genelício.

3.Política no Interior do Brasil- Os "golpes" nos adversários; a política rasteira, de fofocas, perseguições; a utilização do cipoal de leis, decretos, portarias em vinganças mesquinhas contra os desafetos, desestimulando as iniciativas e a produção...

4. Os casamentos interesseiros da burguesia - o esforço de Albernaz para levar a bom termo o casamento das filhas. O casamento de Quinota com Genelício: "Creio que casei bem minha filha..." Armando Borges meditando a sua ascensão social e financeira pelo matrimônio. A educação errada das mulheres para o casamento, como se fosse o sentido da vida - o que explica o drama de Ismênia.

5 O Mito do "doutor"– contra ele Lima Barreto assesta suas baterias mais causticas e contundentes: Cavalcanti, na festa do pedido

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de casamento, e cercado por uma turma de basbaques, quase a adorá-lo como a um deus, pela simples razão de ter concluído o curso de Odontologia.

Armando Borges, formado, passando a conversar "pausadamente, sentenciosamente, dogmaticamente", revirando no dedo o seu anelam, para marcar a infinita distancia que o separava de Quaresma. Ele resistia à idéia de ir visitar o padrinho da esposa, "gente sem fortuna e sem título, de outra esfera".

6. Miséria e improdutividade do interior - "O que mais a impressionou foi a miséria geral, a falta de cultivo, a pobreza das casas, o ar triste, abatido, da gente pobre". "Por que ao redor dessas casas, não havia culturas, uma horta, um pomar? Não seria tão fácil, trabalho de horas?"

"De resto, a situação geral que o cercava, aquela miséria da população campestre que nunca suspeitara, aquele abandono de terras a improdutividade, encaminhavam sua alma de patriota meditativo a preocupações angustiosas. Via o Major com tristeza não existir naquela gente humilde sentimento de olidariedade, de apoio mútuo. Não se associavam para cousa alguma..."

7. Literatura do tempo - A "charge" do Dr. Armando Borges escrevendo seus artigos em "língua comum" e depois "traduzindo-os para o clássico" mediante alguns truques, e mais expressiva do que longas considerações. O famoso requerimento de Quaresma pedindo a oficialização do tupi não deixa de dar também uma alfinetada:

...certo de que a língua portuguesa é emprestada ao Brasil; certo também de que, por esse fato, o falar e o escrever em geral, sobretudo no campo das letras, se vêem na humilhante contingência de sofrer continuamente censuras ásperas dos proprietários da língua; sabendo, aliás, que, dentro do nosso país, os autores e os escritores, com especialidade os gramáticos, não se entendem no tocante a correção gramatical...

8. Críticas ao governo - Avolumam-se, a propósito de cada deficiência social, econômica ou política observada no romance. A política de colonização, com abandono dos brasileiros e favorecimento dos imigrantes: as taxas e impostos que esmagavam o produtor agrícola, deixado, por outro lado, as mãos dos atravessadores monopolistas. O ensino brasileiro, incapaz de formar doutores que pudessem combater uma simples peste de galinheiro...

9, A República– Sabe-se que Lima Barreto sempre guardou profunda mágoa da República, cuja implantação deixou o seu pai sem emprego, sobrevivendo à custa de favores de amigos. Espetáculos de prisões, de saques, de assassinatos, ele também viu, desde menino, na invasão da Ilha do Governador - episódio que, aliás, e mencionado neste romance. Isto tudo ajuda a explicar as muitas criticas e sátiras endereçadas ao novo regime, em contraste com acentuada benevolência em relação à Monarquia do Segundo Reinado. O positivismo, em particular, do qual eram adeptos os "pais da República", e asperamente estigmatizado, no seu culto à falsa ordem, a tirania, a ditadura, ao próprio regime, como se este fosse a chave da felicidade geral da humanidade.

O Mal. Floriano e o seu governo são impiedosamente dissecados: a apatia e a falsa auréola do Marechal, a bajulação que o cercava; as perseguições aos adversários, as prisões; a corrida interesseira para se colherem os frutos da rebelião da esquadra: promoções, patentes, comissões extras".

10. A Imprensa Frívola - atacada na campanha de insultos, troças e zombarias promovida contra o major Quaresma, no episódio do tupi, língua brasileira: "Não ficaram nisso; a curiosidade malsã quis mais. Indagou-se quem era, de que vivia, se era casado, se era solteiro. Uma ilustração semanal publicou-lhe a caricatura e o Major foi apontado na rua. Os pequenos jornais alegres, esses semanários de espírito e troça, então! eram de um encarniçamento atroz com o pobre major. Com uma abundância que marcava a felicidade dos redatores em terem encontrado um assunto fácil, o texto vinha cheio dele..."

11. Superstições - em duas ocasiões especiais, são mencionadas e satirizadas: nos esforços de Albernaz para curar

Ismênia, recorrendo a espíritas, médiuns e feiticeiros ex-escravos; e na descrição de Sinhá Chica e seus "dotes".

12. O Tema principal: o choque de um patriota sonhador com a realidade. Sob esse aspecto, o tema do romance e desdobrado em três movimentos principais, correspondentes a três partes da obra.

a. Primeira etapa: predomínio da fantasia.

O major Quaresma nos é apresentado como indivíduo sem amigos, levando vida reclusa, incubando e engordando seu extraordinário patriotismo em leituras sem fim, em reflexões "meufanistas". Acredita piamente nos livros e, no seu pequeno mundo, vive do que é "nacional".

Observa-se que esta fase, de máxima defasagem entre sonho e realidade, também se veste de máxima comicidade: o sisudo Quaresma representando o Tangolomango, ou reproduzindo o livro goitacá de boas maneiras, só faltando chegar a "alta costura" de Adão; ou ainda, acreditando na oficialização do tupi-guarani...

A loucura é o resultado lógico de tamanha ruptura entre o sonho e a realidade.

b. Segunda etapa: equilíbrio entre realidade e fantasia.

Esta é a fase do Quaresma agrícola. E ainda cômico ver a concepção e a execução de sua estratégia agrária: os minuciosos cálculos baseados nos boletins da Associação de Agricultura Nacional; a parafernália de hidrômetros, pluviômetros, anemômetros, barômetros e outras inutilidades domésticas, logo dribladas pela realidade; a crença inabalável nas "terras mais ubérrimas do mundo"; a tenacidade com que tenta dominar os altos segredos do emprego da enxada, no que mais de uma vez teve de "beijar a terra, mãe dos frutos e dos homens"...

E o impossível acontece. Quaresma é tão honesto, tão puro, que sua aparentemente inexpugnável fortaleza de crenças não resiste ao assalto da realidade: as decepções se sucedem, e ele as acolhe, com um sofrido espanto; as formigas, as intempéries, os atravessadores, as perseguições de coletores e políticos em disponibilidade...

É o segundo choque de Quaresma; "a luz se lhe fez no pensamento..." a rede de posturas, códigos e preceitos, nas mãos de tais caciques, transformada em "instrumentos de suplícios para torturar os inimigos, oprimir as populações, crestar-lhes a iniciativa e a independência abatendo-as e desmoralizando-as..."

Estava a crise posta à mesa. A antiga visão ainda resiste. Reconhece a puerilidade, a ingenuidade do primeiro Quaresma, mas é este que, ainda vivo, tenta encontrar em Floriano um Sully, um novo Henrique IV para reformar a Pátria...

c. Terceira etapa: vence a realidade

E o humor cede ao patético. Na verdade, é bem o antigo Quaresma que, ao primeiro contacto, ainda não extrai a raiz quadrada de Floriano e da fauna que o cerca, que ainda pretende comandar um destacamento inspirando-se nos livros; que ainda larga um canhão apontado para o alvo e corre a casa conferir os cálculos... mas triunfam a sua candura, a sua honestidade e pureza; elas e que não o deixam compactuar com o crime, com a opressão, com o absurdo. Elas - ainda uma vez a estrada real para a verdade. E são elas, ainda que banham as páginas finais do romance – de um grande romance –com estas águas de humanidade e de sofrimento que não mais nos fazem rir, e que talvez nos puxem as lágrimas...

E a crise final, e a redenção de Quaresma: "A pátria que quisera ter era um mito; era um fantasma criado por ele no silêncio do seu gabinete". "A que existia de fato, era a do tenente Antonino, a do Dr. Campos, a do homem do Itamarati". (269)

Sim, este é o romance do verdadeiro patriotismo, redimido pela vida, paixão e morte do humilde Policarpo Quaresma, que lhe assinalou a sua verdadeira base, o lugar de onde é preciso, modestamente, começar. O romance não termina, depois de tudo, no

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desespero: "esperemos mais", e o último pensamento, sereno, de Olga - é de Lima Barreto.

O TRONCO – BERNARDO ÉRIS

ROMANCE HISTÓRICO, REALISMO E LISIBILIDADE N’O TRONCO, DE BERNARDO ÉLIS

Dra. Albertina Vicentini

Na sua relação com a História, O tronco, de Bernardo Élis, é um romance histórico realista. Publicado em 1956, no momento em que Guimarães Rosa apontava também para o mesmo momento da história mineira – segunda década do século XX –, em seu Grande sertão: veredas, o romance de Bernardo Élis é um romance aos moldes clássicos do gênero. A informação básica que o livro nos transmite é conhecida de todos (até porque o livro já obteve recente produção cinematográfica sob a direção de João Batista de Andrade): trata-se da luta travada entre um contingente policial e os jagunços a serviço de um coronel do interior, Artur Melo, destituído das graças do governo estadual de Eugênio Jardim, aliado do oligarca Caiado, Estado de Goiás, no início do século XX, entre 1917 e 1918. O tronco se refere à estratégia da polícia de prender alguns reféns ligados à família Melo, para suster o assalto dos jagunços à Vila de São José do Duro, norte do Estado de Goiás e local onde se passa a maior parte da ação do livro.

O tronco é construído em quatro partes cronologicamente sucessivas – O Inventário, A Comissão, A Prisão e O Assalto –, compondo uma figura no sentido auerbachiano do termo: “modo de ligação explícito de segmentos disjuntos de um enunciado” (HAMON, 1973, p. 424), formando a sintaxe narrativa causal do realismo: o inventário é a causa primeira (porque é o desmando que desencadeia a história, mas não é o único) que provoca a vinda do contingente policial sob a chefia do juiz Carvalho – a comissão –, que, desfazendo um acordo pré-estabelecido – a prisão –, provoca o assalto à Vila do Duro.

A costura dessa sintaxe é feita pelo personagem Vicente, coletor da Vila, autor do ato de recusa do inventário e que prosseguirá dentro da estória como o fio de ligação entre os todos os acontecimentos que a narrativa irá informar. Parente do coronel, embora também seu oponente, é um estereótipo do discurso realista, figura de transferência e de circulação do conhecimento do meio familiar e sociocultural da estória ao leitor e dos pormenores da narração do autor. A transmissão de conhecimentos e de saberes é uma das maiores convenções realistas, responsável pela transparência do relato ao leitor que não precisa se esforçar para entender os acontecimentos. Os conteúdos difusos passam a ter explicações informativas através da circulação de Vicente pela cidade: visitas, reuniões, encontros, liderança, decisões etc. É porque é parente dos Melo, por exemplo, que todos os acontecimentos de dentro da casa de D. Aninha, esposa do Cel. Pedro Melo, pai de Artur, circulam. Caso contrário, o narrador seria auto-suficiente demais, o que atrapalharia a verossimilhança do texto.

A enunciação, no entanto, não é feita por ele, mas por um narrador onisciente de terceira pessoa, que vê através de seu ponto de vista, mas também através do ponto de vista de outros personagens, especialmente do próprio Vicente. O narrador onisciente alarga a carga informativa do texto justamente nesse sentido. E usa, para isso, recursos procedentes do universo literário realista, ou seja, o conhecimento justificado dos personagens para os quais passa o foco narrativo. Por exemplo, o personagem vê porque uma luz se acende, ou vê por uma porta ou por uma janela. Já no quinto parágrafo da primeira parte do livro, tal acontece. Vicente chega à janela e esse é o pretexto para a descrição da Vila do Duro na sua topografia e aparência, para introduzir três outros personagens,

inclusive o Juiz Ferreira (personagens que se perdem até o final do livro, diga-se de passagem).

A seguir, é usado outro pressuposto do discurso realista informativo: o personagem transmite conhecimentos ao leitor dentro de atitudes da vida quotidiana. Vicente almoça e, enquanto almoça, pensa. Crescem informações do narrador onisciente sobre os coronéis Pedro Melo e seu filho Artur, a desavença com Eugênio Jardim e Totó Caiado, o caso de Vicente, Norato e Tozão, a afirmação da injustiça praticada pelos coronéis etc., introduzindo o leitor nos meandros das causas fora da estória do livro (no caso, a História) – os nós aristotélicos.

Aliás, o recurso a casos contados, que alargam e informam o universo representado, é também recorrente no livro, principalmente nessa sua primeira parte. Em grande parte, vêm através de recursos casuais a partir de descrições. Lugar-comum da narrativa realista, o personagem vê um objeto que lhe chama a atenção e a partir dele uma pequena estória, ou conto, ou caso é contado. No caso bernardiano, por várias vezes são também introdutórios de outros casos. Algumas funções podem ser detectadas: uma primeira seria uma exposição do meio sociocultural, usos e costumes, a confor-mação do caráter, dos desmandos e da justiça que era preciso ser feita na região, índice da situação do Estado de Goiás ao tempo, formação de opinião do leitor sobre os fatos e assim por diante; uma segunda, a recorrência às convenções da narrativa realista regionalista do final do século passado e início do século XX; uma terceira, contraponto gerador do suspense, como é o caso da estória de uma comissão anterior estadual chefiada pelo Juiz Hermínio, um bêbado e frouxo, que nada havia conseguido a não ser se desmoralizar junto aos coronéis. A pergunta do leitor sempre será, a partir do que é contado: o Juiz Machado será do mesmo calibre que o Juiz Hermínio?; uma quarta, ainda, entre tantas outras, a tentativa de usar o espaço ou o caso como recurso simbólico. Por exemplo, o caso da alavanca fincada no lugar, onde caiu morto a tiros, pela mão do Cel. Pedro Melo e seus capangas, o Vigilato Chapadense, sobrinho daquele e razão do inventário mal arrolado, para roubo da viúva, que é a causa última (o inventário, não Vigilato) de toda a narrativa do livro. No lugar, o coronel fincou uma alavanca, “publicando seu feito”. Nesse mesmo lugar, ao final da narrativa, será depositado o corpo do Coronel Pedro Melo, morto pelos soldados na terceira parte do livro – A Prisão. Esse recurso pretende, evidentemente, ser simbólico (inclusive da redenção das diferentes injustiças já praticadas pelos desmandos do coronelismo na região), embora consiga, infelizmente, ser só melodramático, afrouxando a pretensão realista do texto, ao introduzir nele formulações de um romanesco de pretensões trágicas.

O romance histórico tradicional quer-se, sobretudo, como dissemos, numa perspectiva moral de que podemos aprender e mudar comportamentos com a lição do passado. Esse sentido ético, no caso bernardiano, relaciona-se à discussão do atraso e do progresso do Estado, do descaso do governo nacional para com o Estado, e da ‘vingança’/reivindicação dos sertões, um tema recorrente na sua obra. Isso pode ser corroborado na entrevista que ele concedeu ao Jornal Opção, em duas partes, originalmente saídas em duas edições, a de n. 1.099 e a de n. 1.100, entre agosto e julho de 1996. Transcrevemos aqui a pergunta e resposta de B. Élis sobre o livro:

‘Euler Belém – Nas memórias que está escrevendo, o senhor afirma que o romance O Tronco nasceu de um projeto de um livro de sociologia, de história. Por que o senhor mudou de ideia?’ Na época, os romances de José Lins do Rego e Graciliano Ramos me encantavam muito, mas eu queria escrever uma obra científica sobre aqueles episódios de Dianópolis. A história que originou o romance O Tronco me foi contada por um tio do Haroldo de Britto, o Sebastião de Britto, fazendeiro, comerciante, promotor público. Era uma grande figura, um homem muito emotivo. Eu tinha ouvido umas cem pessoas, porque queria escrever uma obra científica, examinando os aspectos atrasados da região. Mas o Sebastião de Britto era um grande contador de história. Ele se emocionava com os fatos até as lágrimas.

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Lúmen Específicas

Um dia teve uma crise de choro tão forte que precisei chamar um médico para atendê-lo. Então percebi que era besteira querer fazer ciência quando eu tinha nas mãos um material excelente para um romance. Conversei com o Zoroastro Artiaga, e ele disse: “Larga de bobagem. É melhor fazer um romance. Fica muito mais emocionante”. Então, desisti de fazer ciência e escrevi O Tronco. O José Godoy Garcia detestou o romance. O Tronco tinha uma certa orientação ideológica. Eu enxergava, na região, uma pureza originária e, depois, um pessoal que defendia o atraso e outro queria o progresso. Achei esse conflito interessante e resolvi transpô-lo para o romance. Essas guerras do sertão marcaram a minha infância. Por Corumbá passavam fugitivos, soldados. Todo mundo em petição de miséria. Essas cenas ficaram na minha cabeça, constituindo uma espécie de literatura de vingança do sertão, uma espécie de reivindicação. O sertão era tão grande, importante, mas vivia isolado. Éramos pessoas honestas, trabalhadoras, mais ou menos cultas, mas ninguém se lembrava de nós. Em minha casa, era comum meus pais e tios dizerem: “Somos apenas bucha para canhão. Quando o governo precisa fazer uma guerra, vem aqui e leva todo o mundo”.

HISTÓRIA E SOCIEDADE EM BERNARDO ÉLIS: UMA ABORDAGEM SOCIOLÓGICA DE O TRONCO

Cristiane Roque de Almeida

A proposta de resgatar as interconexões entre literatura, história e sociedade a partir de uma abordagem sociológica das personagens do romance, levou-nos à percepção de que o literato reconstruiu “tipos sociais” comuns à época e ao lugar em que se desenrola a trama. A partir das personagens-tipo apresentadas pelo autor, escolhemos algumas que nos serviram de fio condutor quando visamos delinear a existência de “tipos sociais” correspondentes. São eles: o coletor, o coronel, o camarada, o juiz, a mulher e o cangaceiro.

A análise da figura do coletor nos remeteu para a ineficácia da lei numa região comandada pelo poder paralelo dos coronéis. O coletor era o representante legal na região e, indo contra os poderosos coronéis, representava a oposição do governo às lideranças locais da vila do Duro. Sua posição remete à promiscuidade entre os espaços público e privado que marca a história do Brasil desde suas origens. O drama vivenciado pela personagem durante toda a história, revela a dificuldade de se executar os códigos legais numa terra onde o poder dos coronéis se sobrepõe ao Estado e à justiça.

O coronel é o chefe político que se elevou ao posto natural de Chefe, tornando-se possuidor de um poder incontestável. É o comandante que tira do caminho, a qualquer custo, os empecilhos que interfiram na realização de seus desígnios. Sua atuação no decorrer da narrativa demonstra a existência de um poder tradicional, construído através dos tempos, desde sempre, e passado de pai para filho, configurando o que a sociologia clássica consagrou como dominação tradicional.

Ao camarada, o trabalho. Vivendo num regime de relações de trabalho que se assemelha mais ao regime escravocrata do Brasil Império, as relações semi-feudais que os ligam ao senhor, proprietário de terras ou de gado, os tornam também propriedade dos coronéis. A eles, os camaradas devem inúmeros favores, além de dívidas “fantásticas” originadas geralmente no armazém do coronel, de modo a se manterem permanentemente em uma relação de dependência e subjugação.

Nesse contexto, os coronéis manipulavam seus “homens”, é o que deixa claro a historiografia. Na ausência do poder do Estado eles, de uma maneira ou de outra impunham sua vontade que se transformava em lei, a lei do sertão. A configuração da crença no poder do “senhor” demonstra o quanto o poder do senhor paira sobre “seus homens”, de maneira tão opressora que eles, dominados e subjugados, se sentem na obrigação de obedecê-lo. Com isso, temos o

panorama sócio-políticoeconômico de uma época em que o trabalhador está preso à terra do senhor – o grande latifundiário - por necessidades específicas, já que em termos de relações de trabalho é o senhor quem detém os meios e os instrumentos de produção necessários à atividade e à vida do sertanejo. É uma realidade já captada pela historiografia e que a literatura revela em extensão e profundidade.

Com relação à figura do juiz, pudemos, a partir da visão que Bernardo Élis nos apresenta do regime coronelista na Primeira República brasileira, perceber a questão da dubiedade das ordens para perseguição e punição aos cangaceiros, no sentido de solucionar os impasses do contraditório relacionamento governo-coronelcangaço.

Essa dubiedade nos remete a uma realidade em que a racionalidade legal não se impôs como princípio e prática. As posturas dos juízes evidenciam o isolamento do Estado frente às exigências mínimas de justiça social, remetendo-nosà ineficácia do aparato legal na região do Duro, microcosmo do que se passava no Estado e na maior parte do país. São três os tipos de juízes que pudemos visualizar: o idealista, que acredita o tempo todo na possibilidade de se fazer justiça numa região comandada por coronéis; o dominado, que demonstra a conivência do poder legal com uma situação política em que se tem a transgressão como rotina e, por fim, o corrupto, juiz preocupado unicamente com a realização de seus interesses pessoais. Esses tipos revelam dilemas e tensões da justiça no Brasil.

À mulher, sem muita expressão na vida social, é delegado o espaço do lar e o cuidado da família. Sua submissão ao marido representa uma quase anulação de sua personalidade, tornando-a “quase” uma sombra dele. Socializada para o casamento desde a mais tenra idade, sua preocupação é manter a unidade da família, protegendo o lar de qualquer infortúnio. Assim se tocava a vida.

O cangaço, na narrativa de Bernardo Élis, exprime uma força incrível, fazendo do romance um repositório singular das tensões políticas marcadas pelo confronto da tropa policial do governo e da força armada dos coronéis. Representa um poder paralelo organizado e movido em torno de paixões e mágoas que se arrolam no tempo, fazendo do cangaceiro portador de uma terrível missão: vingar os seus, que foram afligidos pelo poder dos coronéis e pelos infindos confrontos com a policia. Assim, percebemos não ser o cangaceiro um predestinado à vida que leva e, sim, fruto de tensões de um contexto social determinado.

Da forma como as abordamos, as personagens de O tronco revelaram-nos a realidade a que remete o romance. A análise do texto literário, amparada pelo diálogo entre texto e contexto, orientada pelas perspectivas de Antônio Cândido e Karl Mannheim, considerou-as como um fio condutor para a apreensão das significações que nos remeteram para o diálogo com as teorias, possibilitando-nos, assim, compreender a dimensão sócio-histórica da obra.Por fim, a análise nos remeteu a uma reflexão a respeito do “delicado” equilíbrio entre história e ficção. As características de pesquisador em Bernardo Élis já foram muito questionadas, por andarem os críticos achando que ele “fazia história”. Em 1967, Barbosa (op. cit.) já salientava: “Assim é de fato Bernardo Élis, sobretudo neste romance O Tronco, por sinal extraído de uma história real, bem entendido, de uma fato histórico ou simplesmente policial, acontecido em Goiás, nos idos de 1917 e 1918, o qual de tão real que é parece te coisa inventada”. Por mais que Bernardo Élis tenha frisado que constatamos que a linha que separa os fatos históricos dos ficcionais, em O tronco, é muito tênue.

Tirantes os pormenores, os fatos centrais desta narrativa aconteceram realmente em Goiás. Os personagens, entretanto, tendo tudo de comum com o tipo social que representam, são fictícios. O autor não quis retratar ninguém, nem copiou de nenhum modelo vivo ou já falecido. Qualquer semelhança com pessoa viva ou morta é mera coincidência (Nota introdutória de O tronco.)

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Lúmen Específicas

Acreditamos que Bernardo Élis quis mais que reconstruir um contexto específico da história de Goiás. Ele quis contar um pouco dessa história, transfigurando-a à sua maneira, sem compromisso com a visão da historiografia oficialmente sancionada. Dessa forma, a visão literária não divergiu da história evidenciando, além das disputas de poder, a fragilidade de uma região distante da capital e de outros centros populacionais e à mercê de um pacto: o pacto da reciprocidade coronelista.

Fundamentados nas argumentações de autores clássicos sobre o coronelismo, o que temos é a visão de um estado pobre, periférico e “atrasado” trazida à tona. A carência de participação política nos centros de decisão e a distância desses mesmos centros, relegou aquela região à sua própria sorte, sob um domínio oligárquico, marcado pelas contradições da política local, estadual e nacional..

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