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Felicidade clandestina

CLARICE LISPECTOR

LEITURA

1. L o conto que se segue da autoria da escritora brasileira de origem ucraniana Clarice Lispector (1920-1977).

Felicidade clandestina

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7 Elucidativas: esclarecedoras.

8 Perversidade: malvadez.

9 Pudor: embarao.

10 xtase: maravilhamento, encanto.

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Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto1 enorme, enquanto ns todas ainda ramos achatadas. Como se no bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas2. Mas possua o que qualquer criana devoradora de histrias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

1 Busto: parte do corpo para cima da cintura, seios.

2 Balas: rebuados.

3 Recife: cidade brasileira.

4 Magno: grande, importante.

5 As reinaes de Narizinho: livro infantil.

6 Sobrado: casa com mais de um andar.

Pouco aproveitava. E ns menos ainda: at para aniversrio, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mos um carto-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife3 mesmo, onde morvamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrs escrevia com letra bordadssima palavras como data natalcia e saudade.

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingana, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, ns que ramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha nsia de ler, eu nem notava as humilhaes a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela no lia.

At que veio para ela o magno4 dia de comear a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possua As reinaes de Narizinho5, de Monteiro Lobato.

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

At ao dia seguinte eu me transformei na prpria esperana da alegria: eu no vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui sua casa, literalmente correndo. Ela no morava num sobrado6 como eu, e sim numa casa. No me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para busc-lo. Boquiaberta, sa devagar, mas em breve a esperana de novo me tomava toda e eu recomeava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem ca: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e no ca nenhuma vez.

Mas no ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tranquilo e diablico. No dia seguinte l estava eu porta de sua casa, com um sorriso e o corao batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda no estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do dia seguinte com ela ia se repetir com meu corao batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? No sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel no escorresse todo de seu corpo grosso. Eu j comeara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, s vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, s vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente sua casa, sem faltar um dia sequer. s vezes ela dizia: pois o livro s esteve comigo ontem de tarde, mas voc s veio de manh, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que no era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

At que um dia, quando eu estava porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu a sua me. Ela devia estar estranhando a apario muda e diria daquela menina porta de sua casa. Pediu explicaes a ns duas. Houve uma confuso silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas7. A senhora achava cada vez mais estranho o facto de no estar entendendo. At que essa me boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e voc nem quis ler!

E o pior para essa mulher no era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silncio: a potncia da perversidade8 de sua filha desconhecida e a menina loura em p porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi ento que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: voc vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: E voc fica com o livro por quanto tempo quiser. Entendem? Valia mais do que me dar o livro: pelo tempo que eu quisesse tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mo. Acho que eu no disse nada. Peguei o livro. No, no sa pulando como sempre. Sa andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei at chegar em casa, tambm pouco importa. Meu peito estava quente, meu corao pensativo.

Chegando em casa, no comecei a ler. Fingia que no o tinha, s para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer po com manteiga, fingi que no sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu j pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar Havia orgulho e pudor9 em mim. Eu era uma rainha delicada.

s vezes sentava-me na rede, balanando-me com o livro aberto no colo, sem toclo, em xtase10 purssimo.

No era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

Clarice Lispector, Contos, Relgio dgua, 2006

2. Justifica a seguinte proposta de diviso do texto em trs partes:

introduo pargrafos 1 a 3;

desenvolvimento pargrafos 4 a 12;

concluso pargrafos 13 a 16.

2.1. Atribui um ttulo a cada parte, de acordo com o texto.

3. No primeiro pargrafo do texto, estabelece-se uma relao de contraste. Explicita esse contraste.

4. Que caracterstica da narradora revelada na ltima frase do primeiro pargrafo?

5. Mas que talento tinha para a crueldade. (linha 11). Explica de que forma a filha do dono da livraria exerce essa crueldade sobre a narradora e as suas amigas.

5.1. Refere a razo que a leva a agir dessa forma.

6. Enumera as diferentes fases da tortura chinesa (linhas 16-17) praticada pela filha do dono da livraria sobre a narradora.

6.1. Na tua opinio, essa atitude da filha do dono da livraria seria considerada uma tortura chinesa por toda a gente? Justifica a tua resposta.

7. Explica, por palavras tuas, o significado da passagem seguinte:

[] era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. (linhas 19-20)

8. Retira do texto exemplos de:

a) adjetivos ou advrbios de intensidade ou nomes usados na caracterizao negativa da filha do dono da livraria;

b) metforas utilizadas para retratar a felicidade da narradora perante a possibilidade de vir a ler o livro;

c) expresses que revelem a paixo da narradora pela leitura.

9. Refere os sentimentos da narradora no dia em que a filha do dono da livraria lhe comunica pela primeira vez que emprestou o livro a outra pessoa.

9.1. Esses sentimentos mantm-se nos dias em que a rapariga volta a recusar-lhe o livro?

9.2. Por que razo continua a narradora a reagir de forma humilde e silenciosa (linha 46), apesar do sofrimento que as recusas lhe causam?

10. Explicita a importncia da me da filha do dono da livraria para o desfecho desta histria.

10.1. Que caracterstica da filha, revelada neste momento da narrativa, provoca a atitude da me?

11. Sobre o momento em que leva o livro para casa, a narradora afirma: No, no sa pulando como sempre. Sa andando bem devagar. (linhas 62-63) Justifica esta mudana de comportamento.

12. Por que razo a leitura do livro adiada?

13. L o artigo de dicionrio da palavra clandestino.

Clandestino, adj. 1 feito s escondidas 2 fora da legalidade, ilegtimo.

Houaiss, Dicionrio do Portugus Atual, Crculo de Leitores, 2011

13.1. Escolhe a aceo com que a palavra utilizada no conto e explica o sentido do ttulo Felicidade clandestina.

ESCRITA

Relembra uma situao em que tenhas conseguido concretizar algo que desejavas h muito tempo.

Escreve um texto narrativo, no esquecendo de:

identificar as personagens, bem como o espao e o tempo da ao;

referir de forma lgica a sucesso de acontecimentos e o desfecho da histria;

enriquecer o discurso, recorrendo a adjetivos, advrbios e a recursos expressivos, como a comparao e a metfora;

verificar o cumprimento das regras de concordncia, ortografia e pontuao;

verificar se o texto apresenta coeso e coerncia.

Cenrios de resposta

Leitura

2. Na introduo, feita a apresentao e a caracterizao das personagens. No desenvolvimento, narram-se as peripcias vividas pela narradora na tentativa de obter o livro prometido pela filha do dono da livraria. Na concluso, a narradora revela os sentimentos e e