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A SEGUNDA CHANCE Por Aloisio Villar (Rio de Janeiro, RJ) (2017)

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A SEGUNDA CHANCEPor Aloisio Villar

(Rio de Janeiro, RJ)

(2017)

PERSONAGENS

GUSTAVO

BÁRBARA (Esposa de Gustavo)

ANDRÉ (Amigo de Gustavo)

IRMÃO (Espírito que ampara Gustavo)

ISMAEL (Amigo de Gustavo)

ELZA (Mãe de Bárbara)

LARA (Filha de Gustavo e Bárbara)

E MAIS:

EMÍLIA

MÉDICO

HOMEM

MULHER

SENHOR

SENHORA

GARÇOM

ÉPOCA: ATUAL, LUGAR DO DRAMA: RIO DE JANEIRO

(Cena vazia. Fundos de cortinas. Os personagens é que, por vezes, segundo a necessidade de cada situação, trazem e levam cadeiras, mesinhas, travesseiros que são indicações sintéticas dos múltiplos ambientes. Luz móvel. Entra uma voz em off. Voz masculina que pode ser de Gustavo Fialho ou não)

VOZ – Tinha o coração cheio de rachaduras e saía por aí dizendo para todo mundo que nunca tinha sido machucada. Porque era fraca e se fingia de forte para ver se assim as pessoas evitavam lhe ferir.

(Gustavo entra em cena vestido de preto, senta-se no palco com tudo escuro e apenas uma luz sobre ele.

VOZ – Como julgar um suicida? Comosaber o que se passa na cabeça de alguém para cometer tal ato ? É um ato de coragem? De covardia? Todos os dias nos acostumamos a julgar os outros, apontar nossos dedos esquecendo que temos nossas falhas e medos. Mas o que será que leva alguém a tal ato? Somos todos capazes de algo assim em uma dor extrema? Alguém que aparentemente leva uma vida feliz, normal e do nada nos surpreende e mostra como somos frágeis? O que existe realmente de felicidade? Somos verdadeiros quando respondemos que somos felizes ou apenas não paramos para analisar e assim ver o quão triste pode ser nossa existência? Muitas perguntas, poucas respostas..Assim é a vida.

(Gustavo se levanta e sai. Um pouco depois Bárbara entra ao telefone)

BÁRBARA (Feliz) - Oi mamãe, tentei o dia todo falar com ele, mas não consegui. Deixei recado para a secretária pra me encontrar aqui no restaurante. Não sei qual vai ser a reação dele, toansiosa..Depois a gente se fala tá mãe? Te amo.

(Ela senta e garçom vai até sua mesa)

GARÇOM - Madame Fialho?

BÁRBARA - Oi, tudo como combinado?

GARÇOM - Tudo sim madame. Esperando apenas doutor Fialho chegar.

BÁRBARA - Ele deve estar chegando, espero..

GARÇOM - Estarei no balcão, quando vê-lo faço o que combinamos.

BÁRBARA - Obrigada, sempre atencioso conosco.

GARÇOM - É um prazer madame.

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(Garçom sai de cena)

BÁRBARA - Ai Gustavo, chega logo, chega logo meu amor...Chega pro nosso sonho...

(Gustavo entra em cena)

GUSTAVO - Bárbara!!

BÁRBARA (Acena) - Aqui meu amor!!

GUSTAVO – O que foi meu amor? Fiquei preocupado, recebi o recado da secretária pedindo que eu viesse aqui.

BÁRBARA - Desculpe deixar recado assim, mas não consegui falar com você.

GUSTAVO – Estava em reunião com os japoneses, conseguimos fechar o contrato.

BÁRBARA - Que bom meu amor..

GUSTAVO – Mas me diz, o que houve?

BÁRBARA - Sente, vamos almoçar.

GUSTAVO - Você está me deixando ansioso.

BÁRBARA - Sente amor.

(Eles se sentam)

GUSTAVO – Bem, deixe-me fazer o pedido então..

BÁRBARA - Não precisa, já pedi.

GUSTAVO - Já? Mas nem sabe o que quero comer.

BÁRBARA - Sei que vai gostar, confie em mim.

(Garçom se aproxima com prato e uma tampa em cima)

GARÇOM - Madame.

BÁRBARA - Obrigada, é do senhor Gustavo.

GUSTAVO – Meu? Você não vai comer?

BÁRBARA - Você primeiro.

(Garçom bota o prato na mesa)

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GARÇOM - Bom apetite senhor Gustavo.

BÁRBARA - Vai..Levante a tampa.

GUSTAVO (Levantando) - O que é isso?

BÁRBARA - Não consegue reconhecer?

GUSTAVO (Pegando) - É um...

BÁRBARA - Sapatinho de bebê.

GUSTAVO – Sapatinho de bebê..você...

BÁRBARA (sorrindo) - Sim.

(Gustavo começa a chorar, levanta e abraça e beija Bárbara)

GUSTAVO – Eu te amo..Eu te amo..

BÁRBARA - O nosso sonho.

GUSTAVO (Gritando) - Eu vou ser pai!! Eu vou ser pai!!

BÁRBARA (Rindo) - Seu louco, pare de gritar!!

GUSTAVO – Tenho que gritar, todo mundo tem que ouvir que eu sou o homem mais feliz do mundo.

BÁRBARA - Te amo.

(Eles se beijam. Luz apaga e acende com os dois na cama, pode ser um colchão)

GUSTAVO – Quanto tempo tentando?

BÁRBARA - Três anos..

GUSTAVO - Três anos com todos os tratamentos possíveis, todos os médicos..

BÁRBARA - Mas valeu a pena.

GUSTAVO – Se valeu..Um filho, não consigo acreditar, um filho.

BÁRBARA - Ou filha né?

GUSTAVO (Abraçando Bárbara) - Não importa, sendo menino ou menina vai ser muito querido ou querida.

BÁRBARA - Um menino para jogar bola com você.

GUSTAVO – Sendo Flamengo igual ao pai.

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BÁRBARA(Rindo) - Já não gostei disso.

GUSTAVO – Ou uma menina para você fazer cachinhos..ensinar maquiagem.

BÁRBARA - Quero ver você na hora que ela começar a namorar.

GUSTAVO – Vai ser freira.

BÁRBARA (Gargalhando) - Ah sim, vai nessa.

GUSTAVO (Olhando Bárbara) - Que tenha seus olhos, seu rosto, o seu jeito.

BÁRBARA - Eu não sei o que seria minha vida sem você.

GUSTAVO – Sempre estarei perto de você.

(Eles se beijam)

BÁRBARA - Promete? Promete me abandonar nunca?

GUSTAVO – Por quê isso agora?

BÁRBARA - Não sei..Uma sensação que eu tive, meprometa vai?

GUSTAVO – Nunca vou te deixar meu amor, nem a você nem nosso filho, prometo.

BÁRBARA (Abraçando forte Gustavo) - Com você me sinto segura, você me faz bem.

(Luz apaga e acende. Estão Gustavo, André e Ismael em cena)

ISMAEL - Até que enfim hein seu borracha fraca!!

GUSTAVO – Cara eu to tão ansioso que nem vou te dar a porrada que merece pelo borracha fraca.

ANDRÉ - Deixa de ser chato Ismael. Você merece meu irmão, to feliz em dividir esse momento com você!!

GUSTAVO – Te amo irmão!!

(André e Gustavo se abraçam)

ISMAEL - Parabéns Gustavo, to zoando, mas eu sei o quanto esse momento é importante para você.

GUSTAVO - Obrigado mano.

ISMAEL – Agora, se prepare que ter filho é mole não.

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ANDRÉ - Mas ele terá um, não cinco como você.

GUSTAVO -Umamenina..Lara!!

ISMAEL – Que seja..Acabou esse namoro eterno de vocês hein? Essa coisa de namoro de adolescentes que vocês sempre tiveram, agora são pai e mãe.

ANDRÉ - Não é assim também.

ISMAEL - Não é assim? Agora sexo será programado, uma vez por semana, escolha terça porque não é dia de futebol e não está arriscado a você broxar porque o Flamengo perdeu.

GUSTAVO (rindo) - Que mais?

ISMAEL – Saiba que vão ter que apelar pra papai e mamãe, pras rapidinhas porque a qualquer momento terá uma criança chorando ou batendo na porta porque ta com medo de dormir sozinha.

GUSTAVO (rindo) - Anotado, prometo que lembrarei de tudo.

ISMAEL – Nada de noitadas, boates, viagens românticas. Os sábados de vocês serão em casa comendo pipoca e vendo desenho na tv a cabo.

GUSTAVO – Mais alguma coisa?

ISMAEL – Sim..Isso tudo vai acontecer e sabe o que é o pior?

GUSTAVO - Não, mas você vai me contar.

ISMAEL – Vou...Você vai ser o cara mais feliz do mundo porque por mais que seu dia tenha sido péssimo, tenha dado tudo errado você vai receber um sorriso que vai te desconcertar.

GUSTAVO – Eu sei disso.

ANDRÉ - Olha, falou bonito agora.

ISMAEL – Falta só você agora né seu borracha fraca?

ANDRÉ - Pronto, sobrou pra mim.

GUSTAVO – Tem que arrumar uma namorada André.

ANDRÉ - Eu vou, na hora certa.

ISMAEL - Na hora certa..Na hora certa..Isso é coisa de mulherzinha, você não é não né André?

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ANDRÉ - Qual é? Ta me estranhando?

GUSTAVO – Que demora, nenhuma notícia.

ISMAEL – Calma, é assim mesmo.

(Médico entra em cena)

MÉDICO - Senhor Gustavo Fialho?

GUSTAVO – Sou eu.

MÉDICO - Parabéns!! Quarenta e oito centímetros e três quilos e seiscentos, uma linda e chorona menina.

GUSTAVO – Eu sou pai?

MÉDICO - Veio aqui pra isso, não?

GUSTAVO (Emocionado, limpando as lágrimas) - Não sei nem o que dizer, eu sou pai...

ISMAEL – Pronto, já vai chorar de novo.

MÉDICO - Quer conhecer sua filha não?

GUSTAVO – Claro..

MÉDICO - Vem comigo.

(Eles saem de cena)

ANDRÉ - Quem diria..Gustavo e Bárbara tiveram uma menina.

ISMAEL - Podia ter sido você né?

ANDRÉ - Do que você está falando?

ISMAEL - Você foi o primeiro namorado dela. Terminaram porque seu pai foi transferido para Manaus e quando voltaram ela já estava com o Gustavo.

ANDRÉ - Que isso Ismael, tanto tempo que eu nem lembrava mais.

ISMAEL - Não mesmo?

ANDRÉ - Claro que não. Só faltava essa, depois de velho ainda ser apaixonado pela Bárbara.

ISMAEL – Ta certo...(Passa a mão pela roupa) Droga!!

ANDRÉ - Que foi?

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ISMAEL –Esqueci os charutos nocarro, vou lá pegar.

ANDRÉ - Não acredito que você vai acender charutos em um hospital.

ISMAEL - Tradição é tradição, já volto.

(Ismael sai de cena)

ANDRÉ - É Bárbara..Agora você é mãe.

(Luz apaga e acende com Bárbara deitada com bebê no colo. Uma boneca sob um manto)

GUSTAVO – Oi.

BÁRBARA - Entra meu amor.

(Gustavo se aproxima devagar)

BÁRBARA - Vem.

(Gustavo senta no colchão, ao lado delas)

BÁRBARA - Pega.

GUSTAVO - Não sei, fico com medo de machucar.

BÁRBARA - Bobo, machuca não, é sua filha..Pega.

(Gustavo pega sem jeito)

GUSTAVO – Larinha, minha filha...

BÁRBARA - Família completa agora.

GUSTAVO – Como você está?

BÁRBARA - Me sentindo a mulher mais feliz do mundo.

GUSTAVO – Nunca me senti tão feliz também.

BÁRBARA - Não esqueça da promessa Gustavo.

GUSTAVO – Promessa?

BÁRBARA - Nunca iremos nos separar.

GUSTAVO – Nunca, nem a morte.

BÁRBARA - Não fale essa palavra, não gosto.

GUSTAVO – Ela não é nada diante de nós três.

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BÁRBARA - Não fale assim, não gosto.

GUSTAVO – Nada, ninguém, nem mesmo a morte será capaz de nos separar, está bem? Olhe pra mim, olhe pra mim.

(Bárbara olha)

GUSTAVO - Nem a morte.

(Bárbara abraça Gustavo que está com Lara no colo)

GUSTAVO - Você vai ser muito feliz Lara, nós seremos muito felizes.

(Luz se apaga e acende com oito anos se passando. Lara está sentada em um canto escrevendo e Gustavo entra em cena)

GUSTAVO – Cheguei!!

LARA – Papai!!!

(Lara corre para abraçar o pai)

GUSTAVO – Meu amor!! Como foi seu dia?

LARA – Foi bom. Eu brinquei, estudei.

GUSTAVO – Nossa, quanta coisa..Ta cansada não?

LARA (Ri) - Não pai, to fazendo o dever.

GUSTAVO - Estava pensando hoje..

LARA - É?

GUSTAVO - É..Sabia que eu gosto mais de você que de lasanha a bolonhesa?

LARA - E eu mais de você que de sorvete.

GUSTAVO - É? Nossa..To sentindo uma coisa estranha..

LARA – O que?

GUSTAVO (Fazendo careta, mostrando a mão) - É a garra!!

LARA (Rindo) - Socorro!!

GUSTAVO (Correndo atrás de Lara que corre pelo palco) - A garra vai pegar a Lara!! A garra vai pegar a Lara!! Socorro!! Eu não consigo impedir a garra!!

LARA (Rindo e correndo) - Socorro!! Socorro!!

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(Gustavo alcança Lara e a joga no chão)

GUSTAVO – E agora? O que a garra vai fazer?

LARA - Cosquinha não!!

GUSTAVO – Cosquinha sim!!!

(Gustavo faz um monte de cócegas em Lara que gargalha. Bárbara entra em cena)

BÁRBARA - Que bagunça é essa?

LARA - A garra mamãe!! A garra Me pegou!!

BÁRBARA - Vai meu amor, volte a estudar que o papai vai me ajudar a terminar a janta.

GUSTAVO (Apontando a bochecha para Lara) - Vem cá.

(Lara dá um beijo na bochecha de Gustavo)

GUSTAVO – Vai estudar. Depois vou ver como está o caderno.

(A luz se apaga e acende com Lara e Gustavo mexendo no caderno)

GUSTAVO – Entendeu meu amor? Se três vezes três da nove e quatro vezes quatro dezesseis quanto dá dezesseis mais nove?

LARA – Vinte e cinco!!

GUSTAVO - Parabéns meu amor!! (Lhe dá um beijo)

LARA – Eu sou muito inteligente.

GUSTAVO – A menina mais bonita e inteligente do mundo.

BÁRBARA (Entrando em cena) - Ta na hora de criança dormir.

LARA – Ah mãe..

BÁRBARA - Nem ah nem meio ah, vamos, andando escovar os dentes.

(Lara sai de cena)

BÁRBARA - Sabe que dia é hoje?

GUSTAVO – Claro danadinha, terça-feira.

BÁRBARA - Nosso dia.

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(Eles se beijam e deitam no colchão que já está no canto)

BÁRBARA - Como esperei por essa terça-feira...

GUSTAVO – Como você consegue ficar cada dia mais bonita?

BÁRBARA - Exagero seu.

GUSTAVO – Exagero nada, mais bonita do que naquela festa quandonos beijamos pela primeira vez.

BÁRBARA - Festa de aniversário do Ismael.

GUSTAVO – Não tenho como esquecer. A menina mais bonita da festa, infelizmente namorada do meu melhor amigo.

BÁRBARA - O André já tinha ido embora.

GUSTAVO – Mesmo assim..Era meu amigo.

BÁRBARA - Que bom que você não ligou pra isso.

GUSTAVO – Que bom que você aceitou dançar comigo.

BÁRBARA - Oneday in youlife.

(Eles se deitam e sonoplastia toca oneday in yourlifeenquanto se beijam. Lara entra em cena)

LARA – Papai, mamãe..

BÁRBARA (Os dois se recompondo) - Oi Larinha.

LARA – To com medo de dormir sozinha.

GUSTAVO – Vem amor, deita com a gente.

(Puxando um lençol e com travesseiro na mão Lara deita no meio dos dois)

BÁRBARA (Rindo) - Fica para a próxima terça.

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GUSTAVO (Acariciando Lara e cantando para ela "Valsa para uma menininha" de Toquinho e Vinicius) - Menininha do meu coração, eu só quero você a três palmos do chão, menininha não cresça mais não, fique pequenininha na minha canção, senhorinha levada batendo palminha, fingindo assustada do bicho papão. Menininha que graça é você, uma coisinha assim começando a viver. Fique assim meu amor sem crescer porque o mundo é ruim, é ruim e você vai sofrer de repente uma desilusão porque a vida somente é teu bicho papão. Fique assim, fique assim, sempre assim, e se lembre de mim pelas coisas que eu dei e também não se esqueça de mim quando você souber enfim de tudo que eu amei.

(Luz se apaga e acende com André e Ismael em cena. Gustavo entra)

ISMAEL – Onde você estava? Porque não atendeu o telefone?

GUSTAVO – Telefone descarregou, o que foi?

ANDRÉ - Se acalma.

GUSTAVO – Me acalmar por quê? Se ta me pedindo pra acalmar é pra que eu não me acalme, que foi?

(André e Ismael se olham)

GUSTAVO - Me falem!! O que foi??

ANDRÉ - O carro da Bárbara..Ela sofreu um acidente, caminhão na contramão bateu no carro.

GUSTAVO (Desesperada) – O que??

ANDRÉ - Ela estava com a Lara no carro, elas estão internadas.

GUSTAVO – Aonde?? Me falem aonde!!ISMAEL – Vamos, você não está em condições de dirigir.

ANDRÉ - Vem Gustavo..

GUSTAVO - Não pode ser..Não pode ser...

(Luz apaga e acende com os três no hospital falando com o médico)

MEDICO - Então senhor Gustavo. Sua esposa teve algumas fraturas.Baço, costelas e teve hemorragia. Foi operada e está em coma, temos que esperar a reação aos medicamentos agora.

GUSTAVO – E minha filha?

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(Médico fica em silêncio)

GUSTAVO – Pelo amor de Deus doutor e a minha filha!!

MÉDICO - Ele sofreutraumatismo craniano, está nesse momento sendo operada.

GUSTAVO – Corre riscos?

MÉDICO - Acredita em Deus?

GUSTAVO – Sou ateu.

MÉDICO - Acho que é um bom momento para passar a acreditar. Toda ajuda é bem vinda. Com licença.

(O médico sai de cena)

ISMAEL – Calma Gustavo, vai ficar tudo bem.

GUSTAVO – Minha mulher, minha filha.

ISMAEL – Elas estão bem cuidadas. A Bárbara já foi operada, vai se recuperar.

GUSTAVO – Se acontecer alguma coisa com uma delas eu morro, não teria mais pelo que viver sem uma das duas.

ISMAEL – Que isso mano, pensamento positivo.

GUSTAVO – Eu juro. Se eu perder uma delas eu me mato.

ANDRÉ - Lembra de quando fizemos primeira comunhão?

GUSTAVO – Lembro.

ANDRÉ - Ainda sabe rezar?

GUSTAVO – Eu sou ateu.

ISMAEL – Custa nada mano.

GUSTAVO – Está bem.

(Os três dão as mãos e começam a rezar. Luz se acende e apaga com André sentado e Gustavo dormindo sentado ao lado. Ismael entra em cena)

ANDRÉ - E aí?

ISMAEL – Doutor está vindo falar com o Gustavo.

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ANDRÉ - Ai meu Deus...

ISMAEL (Chorando) - Acorda o Gustavo.

ANDRÉ (Mexendo em Gustavo enquanto o médico entra em cena) - Gustavo...Acorda Gustavo.

GUSTAVO – Oi, o que foi? Doutor?

MÉDICO - Oi Gustavo Fialho.

GUSTAVO - Então doutor. Elas estão bem?

MÉDICO - Sua esposa está na mesma situação ainda. Em coma. Temos que aguardar a medicação.

GUSTAVO – E a minha filha doutor? E a Larinha?

(Médico fica em silêncio)

GUSTAVO - Pelo amor de Deus doutor!! E a minha filha!!

MÉDICO - Eu sinto muito...

GUSTAVO (trêmulo) - Não..não..

(Ismael e André começam a chorar)

MÉDICO - Nós tentamos tudo o que pudemos, ela foi muito valente, mas sinto muito...

GUSTAVO – A minha menininha...Não a minha menininha...

ISMAEL (Abraçando Gustavo) - Calma mano..

GUSTAVO - A minha menininha Ismael, a minha Larinha..não!! Não!! (Se desespera) Não!! A minha filha não!!!

ANDRÉ (Chorando) - Eu não sei o que falar..

GUSTAVO (Se joelhando no chão) - Eu quero a minha filha!! Ela só tem oito anos!! Eu quero a minha filha!!

(Ismael se ajoelha por cima para abraçar Gustavo, os dois chorando)

MÉDICO (Para André) - Eu infelizmente preciso tratar de detalhes burocráticos agora, você poderia me ajudar.

ANDRÉ (Chorando) - Sim doutor, claro.

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(Os dois saem de cena)

GUSTAVO (Urrando pro céu ajoelhado com Ismael ao lado) - Não!!!!!

(Luz apaga e acende com Ismael, André e Gustavo sentados)

ANDRÉ - Muito bonito de sua parte doar os órgãos da Larinha.

GUSTAVO – Era o mínimo...

ISMAEL – Eu não consigo acreditar. Menina tão esperta, tão linda..Oito anos.

GUSTAVO – Minha vida acabou.

ANDRÉ - Hei, não fala assim, tem sua esposa, ela está lutando pela vida.

ISMAEL – O amor de vocês Gustavo, lembre do amor de vocês cara.

GUSTAVO – Que amor que resiste a uma tragédia dessas?

ANDRÉ - O amor resiste a tudo.

GUSTAVO - O que você entende de amor André?

ISMAEL - Vai ver a Bárbara, vai se informar sobre ela, nem no hospital você vai mais.

GUSTAVO – Ela estava dirigindo aquele carro...

ISMAEL – Que isso Gustavo? Acha que ela foi culpada? O caminhão estava na contramão!!

(Telefone toca)

ANDRÉ - Não vai atender?

GUSTAVO - Pra quê?

ANDRÉ - Me dá aqui (Pega o telefone dele) Alô? É um amigo dele, ele não pode atender no momento. Sim, sim, que maravilha. Estamos indo praí agora. Está bem, muito obrigado (Ele desliga)

ISMAEL – Que foi?

ANDRÉ - A Bárbara Gustavo. Ela acordou.

ISMAEL – Que maravilha!! Vamos!!

(Gustavo fica imóvel)

ISMAEL – Que foi Gustavo? Parece nem que ficou feliz.

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GUSTAVO – Como você quer que eu me sinta feliz com minha filha morta?

ANDRÉ - A sua mulher está viva!! Vem, vamos vê-la.

(A luz apaga e acende com Bárbara deitada. Ela e o Gustavo se olham)

BÁRBARA - Eu não lembro de nada, o que aconteceu?

GUSTAVO - Vocês tiveram um acidente, somente isso.

BÁRBARA - Como somente? Cadê a Lara?

GUSTAVO – Ela está bem.

BÁRBARA - Está bem? Aonde?

GUSTAVO - Está bem Bárbara.

BÁRBARA - Você está estranho.

GUSTAVO – Esses dias não foram fáceis.

BÁRBARA - Cadê o meu marido? Cadê aquele homem feliz que eu me apaixonei, cadê o brilho no seu olhar Gustavo? Seu olhar está morto!!

GUSTAVO - Não está acontecendo nada Bárbara.

BÁRBARA (Gritando) - Eu quero a verdade Gustavo!! A verdade!!Cadê a Lara??

GUSTAVO – Se acalme Bárbara.

BÁRBARA (Gritando) - Cadê a Lara??

(Médico entra em cena)

MÉDICO - O que está acontecendo?

BÁRBARA - Eu quero a verdade doutor!! Cadê a minha filha??

MÉDICO - Se acalme, por favor.

BÁRBARA - Não!! Eu não vou me acalmar!! Eu tenho direito de saber o que está acontecendo!!

MÉDICO (Suspira) - Está bem, você tem razão.

(A luz se apaga)

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BÁRBARA (Gritando com a cena apagada) - Não!!

(Luz se acende com Bárbara, Gustavo e Elza, a mãe de Bárbara, em cena)

BÁRBARA (Chorando) - Não sei como vou conseguir ficar nessa casa sem a Lara, isso é um pesadelo.

ELZA – Vamos lá para casa minha filha, tem espaço para vocês dois lá, fiquem uns dias pelo menos.

BÁRBARA - Não mamãe, essa é a minha casa.

GUSTAVO – Dona Elza tem razão, acho que você devia ir Bárbara.

BÁRBARA - Ela chamou a nós dois Gustavo.

GUSTAVO - Eu sei, mas estou dizendo que para você será melhor ficar com sua mãe cuidando de você.

ELZA – Você também Gustavo.

GUSTAVO – Eu estou com muito trabalho na cabeça dona Elza, agradeço o convite, mas nem tenho tempo de pensar em tudo o que ocorreu.

BÁRBARA - Se fazendo de forte agora Gustavo? Querendo enganar quem?

ELZA – Por favor, não briguem agora, não agora.

GUSTAVO - Não estamos brigando dona Elza, fique tranquila.

BÁRBARA - Você está estranho comigo Gustavo, desde que acordei. Você me culpa pelo acidente?

GUSTAVO - Claro que não.

BÁRBARA - Então por quê está estranho comigo?

GUSTAVO – Minha filha morreu, queria que estivesse como?

BÁRBARA - A minha também morreu.

ELZA - Acho melhor ir embora e deixar vocês dois conversarem.

GUSTAVO – Acho melhor você ir junto Bárbara, pelo menos por uns dias.

BÁRBARA - Eu não vou.

ELZA – Bem, eu tenho que ir, qualquer coisa me liguem.

BÁRBARA - Obrigado por tudo viu mamãe.

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GUSTAVO – Obrigado dona Elza.

ELZA - Não tem que agradecer, eu amo vocês assim como amo a minha netinha e sei o que estão sentindo.

(Elza sai de cena)

BÁRBARA - Agora só nós dois e essa casa imensa sem a Lara.

GUSTAVO (Lacônico) - É...

BÁRBARA - Precisamos conversar.

GUSTAVO - Tenho reunião amanhã cedo, preciso trabalhar para acertar detalhes.

BÁRBARA - Trabalhar? Do que está falando? Você não parou de trabalhar desde que a Lara morreu.

GUSTAVO - A vida continua Bárbara.

BÁRBARA - Para de tentar bancar o forte Gustavo, isso não vai te fazer bem.

GUSTAVO (Sem encarar Bárbara) - Não to bancando nada, realmente preciso trabalhar. Vou ali no escritório rapidinho e já vou deitar.

BÁRBARA - Olha pra mim Gustavo, olha pra mim..

(Gustavo olha)

BÁRBARA - Somos uma família esqueceu? Você me fez uma promessa.

GUSTAVO - Eu sei.

(Gustavo da um beijo na testa de Bárbara e sai de cena. Luz apaga e acende com Gustavo sozinho. Gustavo caminha em silêncio pelo palco. Mexe num aparelho imaginário e sonoplastia começa a tocar "Valsa para uma menininha". Anda mais um pouco e pega um porta retratos com a foto de Lara. Mexe em uma gaveta e pega uma arma. Anda mais um pouco e se senta de costas para o público. Aperta o porta retrato contra o peito e dá um tiro na cabeça. A luz se apaga, a música para)

BÁRBARA (Da coxia gritando) - Gustavo!!! Gustavo!!!

(Luz se acende e ela entra correndo em cena)

BÁRBARA (Pegando Gustavo morto e lhe abraçando, chora desesperada) - Não Gustavo!! Não!!! Você me prometeu!! Você me prometeu!!!

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(Luz apaga novamente e começa a tocar "Oneday in yourlife". No fundo do palco tem um telão e nele passa momentos felizes de Gustavo, Bárbara e Lara. Duração que seja o tempo necessário para que Gustavo coloque novamente a roupa preta do começo da peça. Luz se acende com Gustavo deitado em cena. Aos poucos ele desperta e se senta)

GUSTAVO (Botando a mão na cabeça) - Ai, que dor. O que aconteceu?

(Gustavo caminha um pouco zonzo pelo palco. Sonoplastia coloca gritos. Alguns aterrorizantes, outros de pessoas aterrorizadas)

GUSTAVO – O que é isso? Que lugar é esse? O que está acontecendo aqui?

(Os gritos continuam, a luz muda e intercala entre vermelho e preto, intercala dando um tom assustador. Restante do elenco entra vestidos de preto e com máscaras. Puxam Gustavo, derrubam no chão, rodeiam gritando. Os gritos da sonoplastia continuam junto. Ambiente sombrio)

GUSTAVO – Socorro!! Me tirem daqui!! Me tirem daqui!!

(Luz para de piscar e fica normal, gritos param e os personagens saem de cena. Gustavo fica sozinho)

GUSTAVO (Chorando) - Me tirem daqui...

(Luz se apaga. Acende um pouco depois com os gritos vindos da sonoplastia e Gustavo deitado no chão em posição fetal. Irmão, vestido de branco, entra em cena. Ele se aproxima e toca a mão no ombro de Gustavo)

GUSTAVO (Depois de um tempo percebe o toque e se levanta correndo se afastando)

IRMÃO (Sorrindo) - Calma, não vim te fazer mal.

GUSTAVO – Quem é você? E que lugar louco é esse?

IRMÃO - Me chame de Irmão e esse lugar é o lugar que você quis vir.

GUSTAVO – Eu quis? Eu nunca quis vir pra cá. Nem sei que lugar é esse.

IRMÃO - Do que você lembra Gustavo?

GUSTAVO - Eu estava com minha esposa, a Bárbara, fui para o escritório e..

IRMÃO - E...

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GUSTAVO - Não, não pode ser.

IRMÃO - Tenho duas notícias ruins para te dar. A primeira é que esteve enganado a vida inteira. Deus existe. Segundo é que você cometeu um ato que não é bem visto por Ele.

GUSTAVO - Impossível, eu nunca me senti tão vivo, eu estou bem, estou ótimo fisicamente, só estou com umas pontadas na cabeça, ai..

IRMÃO - Pontadas na cabeça..

GUSTAVO - Não é possível...

IRMÃO - É sim.

GUSTAVO – Que lugar é esse?

IRMÃO - O lugar que todos os suicidas vem.

GUSTAVO – Umbral.

IRMÃO - Cada um chama como lhe convém.

GUSTAVO - Eu sempre fui um bom homem. Ganhei muito dinheiro trabalhando, mas dividi com os mais necessitados, ajudei pessoas, instituições, fui um bom pai, bom marido.

IRMÃO - Acha mesmo que foi um bom marido?

GUSTAVO – Claro. Sempre respeitei a Bárbara. Nunca lhe traí, sempre fui seu companheiro.

IRMÃO - E lhe deixou no pior momento de sua vida, no momento em que ela estava mais fraca.

GUSTAVO - Eu não estava mais aguentando aquela dor.

IRMÃO - E a dor passou?

GUSTAVO - Não...

IRMÃO - Então não adiantou nada o que fez.

GUSTAVO – Como ela está?

IRMÃO - Os anos amenizaram um pouco a dor, mas ainda sofre muito.

GUSTAVO – Anos?

IRMÃO - No plano físico cinco anos se passaram.

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GUSTAVO – Cinco anos? Mas como?

IRMÃO - O tempo aqui é contado de forma diferente.

GUSTAVO - Minha filha, eu quero ver a minha filha.

IRMÃO - Não acha que está muito exigente para quem cometeu um dos maiores crimes possíveis? suicídio?

GUSTAVO – Eu errei, não podia ter feito aquilo com a Bárbara.

IRMÃO - Arrependimento é um começo.

GUSTAVO - Por favor, me tire daqui, eu faço qualquer coisa. Eu preciso ver minha filha.

IRMÃO - Você é um bom homem Gustavo.

GUSTAVO – Me ajude.

IRMÃO - Venha comigo.

GUSTAVO - Verei minha filha?

IRMÃO - Antes disso ocorrer tem que mostrar que está pronto.

GUSTAVO - Fazendo o que?

IRMÃO - Venha, eu vou lhe ajudar.

(Gustavo e Irmão saem de cena. Luz apaga e se acende com os dois de volta a cena)

GUSTAVO - Que lugar é esse?

IRMÃO - Logo saberá.

(Um homem e uma mulher entram em cena)

HOMEM - Pare de me infernizar.

MULHER - Acha que eu estou lhe infernizando? Viu nada ainda!!

HOMEM - Eu te sento a mão na cara, quer ver?

MULHER – Vem!! Faz isso que eu vou direto na delegacia!!

HOMEM – Tua sorte é a Maria da Penha.

MULHER – Vagabundo!! Eu que sustento essa casa!! Você só quer saber de beber e me trair!!

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HOMEM - É o que me resta tendo que aturar essa tua cara todo dia e ainda aturar o traste do teu pai!!

MULHER - Não fale assim do meu pai!!

HOMEM – Não fale assim? Nem para morrer esse velho serve!! Noventa anos na cara, se mija e se caga todo e ainda temos que cuidar desse imprestável!! Bota num asilo!!

MULHER - Não temos dinheiro para asilo, se tivesse já teria colocado faz tempo.

HOMEM – Ele que atrapalha nossas vidas.

MULHER - Uma hora ele morre, calma.

HOMEM – Morre nada, saúde de ferro, melhor que a nossa.

MULHER – Mas é a pensão dele que nos ajuda a viver já que você só quer saber de farras.

HOMEM - Uma hora eu perco a paciência e meto !! Meto a mão na sua cara!! Meto a mão na cara desse velho também!!

MULHER – Faz isso e eu te mato.

HOMEM – Quer saber? Vou pra rua de novo!!

(Homem sai de cena)

MULHER - Desgraçado!! Volte aqui!!

(Ela sai atrás dele)

GUSTAVO – Meu Deus..Que coisa horrível..

IRMÃO - Isso não foi nada..Ele ouviu tudo.

GUSTAVO – Ele?

(Um senhor de idade entra em cena)

IRMÃO - Ele.

(O senhor de idade tira os óculos, limpa as lágrimas dos olhos e sai)

GUSTAVO - E agora?

IRMÃO - Vem comigo.

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(Eles saem de cena. O senhorretorna e se senta em um colchão que estava em um dos lados do palco)

SENHOR – Deus..Por quê não vem me buscar logo?

(Ele se deita e Irmão e Gustavo entram)

IRMÃO - Senhor Argemiro.

SENHOR (Se levantando) - Sim.

IRMÃO - Seu pedido será atendido. Nosso Pai lhe recebe de braços abertos.

( O senhor de idade fica de pé)

IRMÃO - Venha meu bom homem..

(Irmão lhe abraça)

SENHOR – Obrigado..Obrigado..

IRMÃO - Vamos Gustavo...

(Eles saem de cena. Irmão e Gustavo voltam e sentam na beira do palco)

GUSTAVO – Sempre vem aqui?

IRMÃO - É o prédio mais alto da cidade. Gosto de ver as pessoas daqui, ficam pequenininhas.

GUSTAVO - Tantas vidas lá embaixo, tantas histórias acontecendo.

IRMÃO - Sim e nós dois aqui em cima assistindo a tudo.

GUSTAVO – Curioso. Quando era vivo eu morria de medo de altura, agora não preciso mais temer.

IRMÃO - Quem disse que você morreu Gustavo? Apenas foi para outra fase, fez uma viagem. O espírito não morre nunca.

GUSTAVO - E aquele senhor?

IRMÃO - Seu Argemiro?

GUSTAVO - Sim, ele ficará bem?

IRMÃO - Te garanto que bem melhor que estava antes. Estará em um lugar especial cercado de pessoas que cuidarão dele.

GUSTAVO – E o casal?

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IRMÃO - Logo estarão juntos no Umbral. Ele dará um tiro nela e irá se matar.

GUSTAVO – Mas como assim? Não podem fazer nada para impedir? Não disse que suicídio vai contra as leis de Deus? Se sabem que ele fará isso não estará causando ruptura em sua história, é destino.

IRMÃO - Deus traça os planos para seus filhos, tudo que foge desses planos, tudo que causa uma ruptura como homicídio e suicídio são atos de violência contra Ele, mas isso não quer dizer que é pego de surpresa, Ele sabe de tudo. Deus faz uma estrada para todos, se alguém entra numa curva errada Ele só pode lamentar e ser justo, a curva do livre arbítrio.

GUSTAVO – Tantas histórias..tantos dramas..

IRMÃO - Você viu nada ainda, vamos?

GUSTAVO – Para aonde?

IRMÃO - Mais pessoas precisam de nós.

(Eles se levantam e dão a volta pelo palco. Nisso uma senhora entra e com pedaço de jornal se deita encolhendo no meio do palco)

IRMÃO - Aqui.

GUSTAVO – Aqui o que?

(Irmão aponta para ela)

IRMÃO - Adenilza Maria Brandão. Mulher batalhadora, foi professora, educou centenas de crianças. Um dia começou processo de Alzheimer e foi colocada em um asilo. Fugiu do asilo e ninguém da família correu atrás para buscá-la, o asilo também não se importou.

GUSTAVO - E pelo que entendi ela vai morrer..O Alzheimer vai lhe matar?

IRMÃO - Não, o frio.

GUSTAVO – Frio? Ninguém vai fazer nada? (Começa a gritar) Gente!! Faça alguma coisa!! Uma mulher vai morrer de frio aqui!!

IRMÃO - Ninguém vai te ouvir Gustavo. Mesmo se pudessem não iriam.

GUSTAVO - Não pode ser...Não é possível que vão deixar uma senhora de idade morrer de frio na rua.

(Ela começa a gemer e a se encolher ainda mais)

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GUSTAVO - Eu não posso ver isso, eu não quero ver isso.

IRMÃO - Venha..

GUSTAVO – Pra onde?

(Se ajoelham)

IRMÃO - Aquecer seu espírito enquanto o corpo padece.

(Irmão espalma as mãos sobre a mulher que fica sentada)

IRMÃO - Tudo bem com a senhora?

(Ela acena positivamente com a cabeça)

IRMÃO - Venha conosco. Conhecerá um mundo sem tristeza e maldade.

(Dá a mão para ela e os três saem de cena. Gustavo volta e fica um pouco sentado no palco. Irmão entra depois)

IRMÃO - Tudo bem Gustavo?

GUSTAVO – Eu estou um pouco assustado.

IRMÃO - Com o que?

GUSTAVO – Eu não tinha noção de tanto sofrimento, tanta maldade, tanta frieza..quer dizer, até tinha, mas nunca tinha visto de perto.

IRMÃO - Sempre teve uma vida privilegiada, não é?

GUSTAVO - De certa forma sim. Cresci numa família de classe média alta, cercado de amor, carinho, construí minha família, trabalhei no que amava, ganhei muito dinheiro, tinha uma mulher que amava e...

IRMÃO - E...

GUSTAVO - Pus tudo a perder por egoísmo.

IRMÃO - Tudo a perder não. Não tudo.

GUSTAVO – Como não? To aqui, sem a minha filha, sem a mulher que eu amo que está lá sofrendo.

IRMÃO - Como eu te falei a vida não acaba, apenas fazemos uma viagem e durante a nossa vida, nosso processo evolutivo sempre aprendemos. Ninguém sabe tudo de todas as coisas, só Ele. (Aponta para o céu) Temos nossas falhas, medos, cabe a nós aprendermos como agir, errando, acertando, aprendendo.

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GUSTAVO - E o que estou passando agora é uma aprendizagem?

IRMÃO - Tome isso aqui. (Entrega uma caneta e uma caderneta)

GUSTAVO - Pra quê isso?

IRMÃO - Anote tudo o que vê e o que pensa. Faça disso um diário. Verá como vai te fazer bem, perceberá como a aprendizagem faz parte de nosso crescimento.

GUSTAVO – Farei isso.

IRMÃO - Bem, vou para algumas missões, vou deixar você aí pensando nas suas memórias.

GUSTAVO - Mais gente morrendo?

IRMÃO - Mais gente renascendo.

(Irmão sai de cena)

GUSTAVO (Se senta, depois olha um tempo a caderneta) - Custa nada tentar..(Escreve e repete para o público como se estivesse ditando) O diário de um suicida..(Escreve mais um pouco, em silêncio, e levanta)

GUSTAVO (Para o público) - Eu não sei que dia é hoje, nem a hora, aqui onde estou o tempo passa de um modo diferente. Aliás, onde estou? Tudo é tão escuro..Tudo é tão sinistro..Sei que estou pagando por um ato que cometi, um erro. Fui fraco em determinado momento da minha vida e não pensei nas consequências desse ato..Acho que fui um bom homem, não fui perfeito, mas quem é perfeito? Tive algumas qualidades encalacradas em inúmeros defeitos, mas no geral acho que fiz o melhor que pude. Por acreditar nisso que tenho fé que um dia estarei em um lugar melhor e a lado da minha filha. Lara..Umasaudade que sufoca meu peito de uma forma que...que.. (Volta a se sentar, pega o caderno, a caneta e olha para ele)..me faz morrer todos os dias.

(A luz se apaga e acende com uma menina, deitada em um colchão com olhos fechados, sonoplastia bota batidas de coração, uma mulher está sentada ao lado do colchão dormindo. Irmão e Gustavo observam)

GUSTAVO - Tão novinha...

IRMÃO - Emília Aguiar, tem a idade de sua filha quando desencarnou.

GUSTAVO – O que ela tem?

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IRMÃO - Leucemia.

GUSTAVO – Meu Deus, tão pequena...

IRMÃO - Era uma menina normal, saudável. Começou a anemia, teve desmaios, foi levada ao hospital e diagnosticaram o problema. Precisava de um transplante de medula, o transplante demorou, mas foi feito.

GUSTAVO – Mas para nós estarmos aqui...

IRMÃO - Daqui a pouco esse coraçãozinho vai parar de bater.

GUSTAVO - Tão novinha...

IRMÃO - Faz parte da vida Gustavo.

GISTAVO - Por quê? Por quê crianças tem que sofrer? Por quê a Lara e essa menina tem que passar por isso?

IRMÃO - Faz parte do processo evolutivo Gustavo. Somos adultos e crianças encarnados, mas nossos espíritos tem outra variedade de tempo, diferente do que é visto. Lara e essa linda meninacumpriram suas missões no plano físico.

GUSTAVO – Mesmo assim, não dá pra entender.

IRMÃO - Você ainda está muito preso na vida terrena, muito por culpa da forma que desencarnou, tudo tem uma explicação. Deus não nos fez para sofrer, nos fez para cumprir nossas missões e evoluirmos.

GUSTAVO – Crianças morrendo? Pessoas morrendo de fome, de frio? Guerras, violência? Tudo faz parte da evolução?

IRMÃO - E do livre arbítrio. O homem dificulta sua passagem no plano físico.

GUSTAVO – Desculpe, mas não consigo entender.

IRMÃO - Fique tranquilo, não é o único. Muitos não entendem, mas no fim acabam entendendo. Deus escreve certo por linhas certas, não linhas tortas como um ditado idiota que vocês inventaram.

GUSTAVO – E os pais dela?

IRMÃO - Vão sofrer muito, no começo não conseguirão perceber que dessa forma eles e ela irão descansar e evoluir.

GUSTAVO – Sei bem como é isso.

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IRMÃO - Aí fundarão o Instituto Emília Aguiar para crianças com câncer. Salvarão dezenas, centenas, milhares de crianças ao longo das décadas. A vida dessa menininha e seu desencarne darão oportunidade para inúmeras que não teriam salvação.

GUSTAVO - Incrível isso. Tirarem força de uma tragédia dessas para fazerem o bem. Eu não tive essa força.

IRMÃO - Talvez porque seus ensinamentos tenhamque ser ministrados aqui e nas próximas encarnações.

GUSTAVO – Desculpe Irmão, mas essas coisas não estão me fazendo bem. Ver tanto sofrimento nas pessoas, elas morrerem...

IRMÃO - Você ainda não conseguiu perceber que esses momentos que passamos juntos não é de sofrimento, mas do fim deles. O ser humano sofre

porque vai desencarnar um dia sem perceber que o desencarne nada mais é que uma volta para casa depois de uma missão cumprida.

GUSTAVO - É..Realmente não consigo ver assim.

IRMÃO - Essa é a última missão nossa juntos, você terá uma missão especial a partir de agora.

GUSTAVO – Como assim missão especial?

IRMÃO - Antes vamos acabar com o sofrimento dessa linda menina.

(Os dois se aproximam da menina,Emília acorda)

EMÍLIA- Oi tio.

IRMÃO - Oi minha linda menina, como você está?

EMÍLIA - Ta doendo tio.

IRMÃO - Feche os olhos que você vai melhorar.

(Irmãoespalma suas mãos, coração bate mais forte na sonoplasta até que para de bater. Ela abre os olhos)

IRMÃO - E agora? Como você está?

MENINA (Sorrindo) - Agora eu to bem.

IRMÃO - Quer ir a um lugar muito bacana com o tio?

EMÍLIA - Tem algodão doce?

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IRMÃO - Tudo o que você quiser...

EMÍLIA - Tudo? Minha avó está lá?

IRMÃO - Te esperando de braços abertos e muita saudade.

(Ela dá a mão a Irmão)

IRMÃO - Vamos Gustavo. Daqui a pouco a mãe vai acordar e ela precisa ter esse momento de privacidade para se despedir dafilha.

GUSTAVO – Sim..Vamos..

(Os três saem de cena.. Irmão e Gustavo voltam)

GUSTAVO – Que lugar é esse?

IRMÃO - Frequentou tanto e não lembra mais?

GUSTAVO – Parece um aeroporto.

IRMÃO - Isso aí, acertou.

GUSTAVO – Mas o que estamos fazendo em um aeroporto no meio dos vivos? Não vai me dizer que alguém vai morrer aqui? Vai ter acidente de avião?

IRMÃO (Rindo) - Não, nada disso, chega de desencarnes para você, aqui começa a sua missão.

GUSTAVO - E qual é a minha missão?

IRMÃO - Logo descobrirá.

(André entra em cena com um bilhete na mão)

ANDRÉ (Olhando para o bilhete) - Droga, esse é o terminal certo? To completamente perdido...

GUSTAVO - É o André!! O meu amigo André!! Ele pode me ver??

IRMÃO - Claro que não,

GUSTAVO - Ele parece mais envelhecido..

IRMÃO - Normal Gustavo, sete anos se passaram desde seu desencarne.

GUSTAVO – Sete? Não eram cinco?

IRMÃO - No tempo deles já estamos há dois anos nas missões.

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GUSTAVO – Passou rápido assim? Mas afinal, não estou entendendo, minha missão tem a ver com o André? Ele vai morrer?

IRMÃO - Já lhe disse, nada de desencarnes.

GUSTAVO – Qual é então?

IRMÃO - Você irá ajudar o André a encontrar um amor.

GUSTAVO (Sorrindo) - Olha, gostei dessa missão.

IRMÃO - Imaginei que fosse gostar. O alvo do amor dele vai aparecer.

GUSTAVO – Estou curioso..

ANDRÉ - Droga..O que eu faço?

(Bárbara entra em cena e tromba nele)

BÁRBARA - Desculpe moço.

ANDRÉ - Tudo bem...Bárbara?

BÁRBARA - André? Quanto tempo!!

(Eles se abraçam)

GUSTAVO (Emocionado) - Bárbara..A minha Bárbara...

IRMÃO - Sim, ela mesma...

GUSTAVO – Meu Deus..Como está linda.

BÁRBARA - Quanto tempo!! O que faz aqui em São Paulo?

ANDRÉ - Vim morar aqui faz seis anos, esqueceu?

BÁRBARA - Verdade, desde que a sua empresa lhe transferiu.

ANDRÉ - Não virei militar como meu pai, mas também sofri com transferências. E você? O que faz aqui?

BÁRBARA - Vim para um congresso da minha empresa, estou voltando ao Rio.

ANDRÉ - Que coincidência, também estou indo para o Rio.

BÁRBARA - Visitar a cidade?

ANDRÉ - Não, de mudança, me transferiram de novo para lá.

BÁRBARA - Que coisa boa André, bom ter você de volta.

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ANDRÉ - Só estou perdido aqui tentando encontrar o terminal.

BÁRBARA - Deixa ver seu bilhete (Ela olha o bilhete) Você vai pegar o mesmo voo que eu.

ANDRÉ - Sério?

BÁRBARA (Rindo) - Sempre enrolado, vem comigo, vamos embarcar.

(André e Bárbara saem de cena)

GUSTAVO – O que foi isso?

IRMÃO - Um encontro, destino, karma, maktub..

GUSTAVO - Você disse que ele iria encontrar o amor aqui.

IRMÃO - Sim.

GUSTAVO - Ele encontrou a Bárbara. A minha Bárbara.

IRMÃO - Gustavo, ela não é sua. Ninguém pertence a ninguém e você abriu mão dela quando cometeu aquele ato.

GUSTAVO -Peraí, deixa ver se eu entendi. Você quer que eu una os dois?

IRMÃO - Eu não, (Aponta para o céu) Ele quer.

GUSTAVO – Ele? Deus está querendo se vingar de mim porque eu falava que era ateu?

IRMÃO - Deus não se vinga, Deus é justo e ele quer fazer justiça com a Bárbara, a maravilhosa mulher que não sabe o que é ser feliz há sete anos, desde que perdeu o marido e a filha.

GUSTAVO - Estão me castigando..

IRMÃO - Não, você está sendo colocado em provação. É a hora de mostrar que não está preso a vida terrena e como um espírito evoluído quer o melhor para aqueles que ama.

GUSTAVO – Eu não sei se serei capaz disso.

IRMÃO - O André foi capaz de ver o amor de vocês, mesmo a Bárbara tendo sido sua primeira namorada e o amor de sua vida. Nunca lhe virou as costas.

GUSTAVO – Como eu farei isso?

IRMÃO - A partir de agora me despeço de você. É com você essa missão.

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GUSTAVO – Sem você eu não vou conseguir.

IRMÃO - Consegue sim. És mais forte que pensas. Quer um conselho? Comece vendo como é a vida da Bárbara. Espere por ela na casa da mãe, quando ela chegar de viagem.

(Irmão se encaminha para a coxia)

IRMÃO - Você consegue. Escreva, vai te ajudar. Escrever é nascer todos os dias.

(Irmão sai de cena e deixa Gustavo sozinho. Luz se apaga e acende com Gustavo sentado e dona Elza ouvindo Júlio Iglesias, cantando e varrendo junto. Bárbara entra em cena)

ELZA - Oi meu amor, chegou rápido, que bom.

BÁRBARA - Trânsito do aeroporto para cá estava bom. Só no Júlio Iglesias né mãe?

ELZA - Sabe que eu sou tarada nesse homem, não sabe?

BÁRBARA (Sorrindo) - Só você mesma.

ELZA – Olha, eu vi um sorriso.

BÁRBARA - Para mãe, para de bobeira.

ELZA - Seu sorriso é tão bonito minha filha, você devia sorrir mais vezes.

BÁRBARA - Como?

ELZA (Apontando com controle remoto a esmo e o som parando) - Já se passaram sete anos filha.

BÁRBARA - No meu peito parece que foi ontem.

ELZA - Sinto muita falta da Lara, a netinha mais linda que Deus poderia ter me dado, sinto falta do meu genro também, homem maravilhoso.

BÁRBARA - Como ele pôde fazer isso comigo mãe? Na hora que eu estava mais frágil?

ELZA - Cada um tem seus motivos Bárbara, cada um tem sua cabeça.

BÁRBARA - Como não pude enxergar o que estava ocorrendo? Que ele poderia fazer isso?

(Gustavo se levanta e bota a mão perto do ombro dela, sem encostar)

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BÁRBARA - Tem vezes que eu sinto o Gustavo tão perto.

(Ficam em silêncio um instante)

BÁRBARA (Andando pelo palco) - Vou tomar um banho.

ELZA - Como foi em São Paulo?

BÁRBARA - Foi tudo bem, congresso chato, mas que deu para fechar alguns negócios bons para a empresa.

ELZA - Que bom minha filha, isso que importa.

BÁRBARA - Você não sabe quem eu encontrei no aeroporto.

ELZA – Quem?

BÁRBARA - O André, lembra dele?

ELZA – Claro que lembro, foi seu primeiro namorado.

BÁRBARA - Nem lembrava mais disso, tanto tempo, ele está no Rio. Voltou para morar aqui.

ELZA – Que bom minha filha..Quem sabe..

BÁRBARA (Interrompendo) - Nem completa mãe, nunca mais quero saber dessas coisas.

ELZA – Não está mais aqui quem falou ou quem tentou falar. Hoje tem aquela macarronada que você tanto ama..Está quase pronta.

BÁRBARA - Que bom mãe, como dizia o Gustavo estou varada de fome.

ELZA - Vai tomar seu banho enquanto vou na cozinha ver como está.

BÁRBARA (Dá um beijo em Elza) - Te amo viu mãe?

ELZA - Também te amo minha filha.

(Bárbara sai de cena deixando Elza e Gustavo sozinhos)

ELZA – Eu só queria que essa menina voltasse a ser feliz. Me ajude meu Deus.

(Elza sai de cena pelo outro lado. Gustavo sai pelo lado que Bárbara saiu. Bárbara volta ao palco. Gustavo atrás. Bárbara mexe em algumas coisas imaginárias e finge ligar som. Sonoplastia começa a tocar "Oneday in yourlife")

BÁRBARA (Chorando) - Ai Gustavo, por quê? Por quê?

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(Bárbara chora mais forte e Gustavo senta ao seu lado olhando para ela com tristeza. Som abaixa um pouco)

BÁRBARA (Chorando e tentando sorrir) - Sabe Gustavo..Outro dia estava lembrando de quando começamos a namorar, no Arpoador...

(Som para e luz dá uma piscada para mostrar que é outra cena, uma volta ao tempo. Quando luz volta Bárbara está sentada na beira do palco)

BÁRBARA - Ai Gustavo..Cadê você? Sabe que eu detesto esperar, ainda mais sozinha aqui no Arpoador!!

(Gustavo entra em cena escondendo um violão atrás das costas)

GUSTAVO – Oi amor..Demorei?

BÁRBARA - Pra caramba né? Onde se meteu? O que está escondendo aí?

GUSTAVO – Uma surpresa.

BÁRBARA - O que é? Está me deixando ansiosa.

(Gustavo mostra o violão)

BÁRBARA - O que é isso? Um violão? Desde quando sabe tocar isso?

GUSTAVO - Andei treinando.

(Ele senta ao seu lado)

BÁRBARA - E vai tocar o que pra mim?

(Gustavo tenta tocar e cantar "Oneday in yourlife", mas é desastrado, Bárbara começa a rir e põe a mão no violão)

BÁRBARA (Rindo) - Não precisa.

GUSTAVO – Em casa eu me saí melhor, deve ser o vento.

BÁRBARA - Com certeza é o vento.

(Bárbara dá um beijo em Gustavo)

BÁRBARA - Eu amo você pelo que você é. Esse cantor desajeitado, péssimo no violão, mas o homem mais carinhoso que eu já conheci.

GUSTAVO – Repete, você disse o que?

BÁRBARA - Que você é desafinado e...

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GUSTAVO – Não, o que disse antes.

BÁRBARA - Que eu amo você.

GUSTAVO - Você não tinha dito isso ainda.

BÁRBARA - Disse de várias formas, você que não tinha ouvido.

GUSTAVO – Quer namorar comigo?

BÁRBARA - Como?

GUSTAVO – Namorar, estou perguntando se você quer namorar comigo.

BÁRBARA - Já não estamos?

GUSTAVO – Eu não tinha pedido ainda.

BÁRBARA - Humm..Então você é aquele amante a moda antiga, do tipo que ainda manda flores.

GUSTAVO – E tento cantar Michael Jackson para minha amada.

BÁRBARA - Amada? Quer dizer que você...

GUSTAVO - ...Quer dizer que eu te amo...

BÁRBARA - Eu aceito.

(Eles se beijam novamente, depois se abraçam e olham para o público)

BÁRBARA - O mar é tão lindo daqui, as ondas..As pessoas ficam pequenininhas...

GUSTAVO - Só você para me fazer vir aqui, morro de medo de altura.

BÁRBARA - Me aperta forte que eu te protejo de tudo, de todos os seus medos.

GUSTAVO - Podia ser sempre assim né?

BÁRBARA - Assim como?

GUSTAVO - Essa calma, essa paz.

BÁRBARA - Não será assim, a vida não é assim, mas o que importa é que sempre teremos um ao outro. Um será a fortaleza do outro.

GUSTAVO - Pra sempre.

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BÁRBARA - Nós dois olhando as ondas do Arpoador. Eu nunca irei me esquecer desse momento. Vai ser a última imagem que passará em minha retina antes de morrer.

GUSTAVO - Pois eu vou me lembrar mesmo depois de morto.

ELZA (Gritando da coxia) - Bárbara!!

(Bárbara e Gustavo se olham. Gustavo se afasta com o violão, fica em pé olhando Bárbara que volta a posição que estava antes de se lembrar. Sonoplastia volta a tocar "oneday in yourlife" e ela volta a chorar)

ELZA (De novo da coxia) - Bárbara!!

BÁRBARA (Gritando) - Oi mãe!!

ELZA – Vem!! Macarrão está pronto!!

BÁRBARA (Gritando) - Estou indo mãe!! (repetindo baixinho) Estou indo.

(Bárbara sai de cena. Gustavo sai pelo outro lado, deixa o violão e volta com a caderneta e a caneta, se senta no palco)

GUSTAVO (Escrevendo e falando) - Diário de um suicida.

(Se levanta e se dirige ao público)

GUSTAVO - Egoísta..Só isso que eu consigo me sentir agora, egoísta. Evidente que eu sabia o mal que fiz a Bárbara, mas até esse momento eu não tinha a exata noção. Ver a Bárbara tão frágil, tão triste..Meu Deus, o que eu fiz? Eu pensei em nada, em ninguém só queria tirar a dor dilacerante de meu peito que éperder um filho..Porque por mais que tentem me explicar nunca entrará na minha cabeça um filho morrer antes dos pais, é contra a ordem natural das coisas, da vida. Eu só conseguia pensar na minha dor, na minha angústia, não conseguia pensar em mais nada e não pensei em Bárbara, no meu amor. Como pude ser tão egoísta? Como pude ser tão fraco? Tantas promessas trocadas, de sermos um a fortaleza do outro e eu lhe deixei sozinha...Eu tenho que resolver essa situação (Senta-se e volta a escrever) Eu vou resolver essa situação, por mais que doa em mim, eu preciso.

(Luz apaga e acende com Ismael e André sentados em mesas como se fosse um bar, Gustavo está sentado ao lado observando)

ISMAEL – Cara, que saudades estava sentindo de você.

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ANDRÉ - Eu também Ismael, eu também, apesar do Rio me fazer um pouco mal.

ISMAEL - É..Eu sei.

ANDRÉ - Nós nunca conversamos sobre..

ISMAEL – Eu nunca consegui.

ANDRÉ - Como ele pôde? O Gustavo cara, tão cheio de vida..

ISMAEL – Até entendo de uma certa forma. Tenho filhos André, cinco, se um morresse ainda teria quatro, mas mesmo assim acho que eu morria junto porque eu não consigo nem mensurar o que é isso.

ANDRÉ - E a gente não percebeu nada.

ISMAEL - Não tinha como André. Não é fácil identificar algo assim, perceber que alguém vai tentar se matar e ele não deu nenhum indício.

ANDRÉ - Ele era muito fechado.

ISMAEL - Acho que esse foi o problema. Gustavo sempre foi um cara fechado, nunca foi um cara de dividir os problemas, de desabafar, se trancava com seus problemas, seu medos, esses são os piores André. O que estão sempre felizes, de bom humor, brincando, os palhaços...Esses caras são bombas relógio.

ANDRÉ - Eu não me conformo de não ter percebido Ismael.

ISMAEL – Sabe do que estava me lembrando?

ANDRÉ - Não.

ISMAEL - Lembra do que tinha aqui na rua ao lado?

ANDRÉ - Claro que lembro, a nossa escola que foi demolida.

ISMAEL – A gente aprontava muito.

ANDRÉ - Tempo bom.

(Os três se levantam e vão até o outro lado do palco. É uma recordação)

ISMAEL - E aí? Qual vai ser hoje?

GUSTAVO – Por meu irmão, estreou filme do Stallone, Stallone Cobra.

ANDRÉ - Eu vi, filmaço, mas como vamos entrar? Idade não permite.

GUSTAVO - Conheço um cara que arruma identidades falsas.

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ISMAEL – Você não é fácil moleque..

GUSTAVO - Po, acha que vou perder esse filme? Não mesmo, pra tudo na vida se dá um jeito.

ANDRÉ - É, mas acho que pra mim vai ter jeito não.

ISMAEL – Qual foi André? Vai dar pra trás agora?

ANDRÉ - To sem grana, meu pai cortou a mesada porque não quis lavar o carro.

ISMAEL – Porque não lavou? Mané também hein?

ANDRÉ - Estava chovendo, achei que bastava a natureza fazer seu trabalho.

GUSTAVO – Eu te arrumo, fica tranquilo.

ANDRÉ - Caramba, valeu mesmo Gustavo.

GUSTAVO - E fica preocupado não, paga quando puder.

ISMAEL - Acha que consegue essas identidades quando?

GUSTAVO – Daqui a pouco passo na casa do cara, acho que em três dias estarão na mão e podem deixar que pago o cara, presente do papai aqui.

ANDRÉ - Três dias? Não tem risco do filme sair de cartaz?

GUSTAVO – Ta maluco? Já viu a fila do cinema? Ta dobrando a rua, chegando até a mercearia, claro que não vão tirar de cartaz.

ISMAEL – Vamos fazer assim então..Fim de semanas nós vamos.

GUSTAVO – Fechado.

ISMAEL – Olha lá..As meninas na educação física.

GUSTAVO – Que maravilha que elas ficam com essas roupinhas.

ANDRÉ - E com shortinho enfiado na...

GUSTAVO (Interrompendo) - Vamos dar notas?

ISMAEL – Vamos embora..Daniele.

ANDRÉ - Oito.

GUSTAVO – Oito? Ela é uma gata!!

ANDRÉ - Peitinho não cresceu ainda.

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GUSTAVO - Mas vai crescer cara.

ANDRÉ - Mantenho o oito.

ISMAEL – Nove.

GUSTAVO - Vocês são loucos, dez.

ANDRÉ - Luciana.

GUSTAVO – Oito.

ISMAEL – Oito

ANDRÉ - Sete.

GUSTAVO – Exigente pra caramba hein?

ANDRÉ - Liliane.

ISMAEL – Oito.

GUSTAVO – Sete.

ANDRÉ - Oito, Andréia Motta

ISMAEL - Ta amarrado, quatro.

GUSTAVO - Três.

ANDRÉ - Um e meio, Andréia Maria.

ISMAEL – Oito.

GUSTAVO – Nove.

ANDRÉ - Sete.

ISMAEL – Essa menina nova que esqueci o nome.

ANDRÉ E GUSTAVO (Juntos) - Bárbara..

ISMAEL – Isso, dou nove.

ANDRÉ E GUSTAVO (Juntos) - Dez.

ISMAEL – Ih, que deu em vocês? Se apaixonaram pela menina?

GUSTAVO – Que isso? Ta doido?

ANDRÉ - Aqui tem essa de paixão não, a gente só quer pegar as meninas, sem se apegar.

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GUSTAVO – Isso aí.

ISMAEL - Ótimo, lembrem-se da promessa que fizemos, nunca nenhuma mulher vai ficar no meio de nossa amizade.

GUSTAVO – Isso aí, nunca!!

ANDRÉ - Somos os três mosqueteiros!!

OS TRÊS (Botando as mãos um por cima do outro) - Um por todos!! E todos por um!!

(O três voltam a se sentar, voltam ao presente)

ANDRÉ - E o mosqueteiro nos deixou.

ISMAEL - Inacreditável isso.

ANDRÉ - Ele nunca me cobrou todas as vezes que ofereceu dinheiro emprestado, sabia?

ISMAEL – Era bem dele isso mesmo.

ANDRÉ - E você Ismael? Como você está meu irmão?

ISMAEL - To ótimo, melhor impossível.

ANDRÉ - E por quê está bebendo tanto?

ISMAEL – De onde você tirou isso? Sempre gostei de beber, sempre bebi bem.

ANDRÉ - Não sou bobo Ismael, sei de tudo que vem ocorrendo..E seus filhos?

ISMAEL - Nada ainda, não consigo vê-los, Adriana sempre arruma uma desculpa, tive que entrar na justiça.

ANDRÉ - Que droga cara.

ISMAEL – Se ela entrou na justiça querendo meu dinheiro eu também entro, tenho direito de ver meus filhos, são meus filhosdroga!!

ANDRÉ - Claro, você está certo. Ela está com o...

ISMAEL (Interrompendo) - Com o chefe? Está sim, me largou por ele. Cheguei do trabalho um dia e a encontrei com as malas feitas dizendo que estava indo embora porque estava apaixonada.

ANDRÉ - Sinto muito.

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ISMAEL – Quinze anos de casamento, vinte anos juntos jogados em um ralo, dissolvidos no ar...

ANDRÉ - Mas beber não vai te levar a nada.

ISMAEL – Qual é? Virou minha mãezinha agora? Já tenho mãe, não preciso de você não.

ANDRÉ - Desculpa.

ISMAEL - Vamos mudar de assunto que é melhor, fale alguma coisa boa aí.

ANDRÉ - Vindo para o Rio encontrei a Bárbara.

ISMAEL – A Bárbara? Tempo que não falo com ela, como ela está?

ANDRÉ - Parecia bem, conversamos amenidades, evidente que não falamos do Gustavo.

ISMAEL – Que barra que ela deve passar.

ANDRÉ - Continua linda.

ISMAEL – Humm, coração bateu mais forte..

ANDRÉ - Que isso cara, mulher do Gustavo.

ISMAEL – Gustavo morreu faz sete anos André. Você está vivo, ela também.

GUSTAVO – Liga pra ela.

ISMAEL – Por quê você não liga pra ela?

GUSTAVO – Liga pra ela André.

ANDRÉ - Do que você ta falando Ismael? Ta louco?

GUSTAVO – Chama pra cinema e jantar.

ISMAEL – Chama pra cinema e jantar.

ANDRÉ - Que isso, você ta doido.

GUSTAVO – Liga André, liga pra ela.

ANDRÉ - Não sei Ismael..Não sei mesmo.

ISMAEL - Você tem nada a perder..

ANDRÉ - O Gustavo cara...

40

GUSTAVO (Ficando em pé, olhando André) - Liga para ela, estou te pedindo.

ANDRÉ - Estranho..Alguma coisa está me pedindo que ligue para ela.

ISMAEL - Então não perca tempo. Ligue.

(André pega o telefone e digita. Bárbara aparece do outro lado do palco com telefone tocando)

ANDRÉ (Ao telefone) - Alô.

BÁRBARA (Ao telefone) - André, aconteceu alguma coisa?

ANDRÉ - É que..É que..

BÁRBARA - Fale, está me deixando nervosa.

ANDRÉ - Queria saber se você quer ir ao cinema comigo, jantar..

BÁRBARA - Cinema? Jantar?

(Elza entra em cena, vai para olado de Bárbara)

ELZA - Estão te convidando para ir a cinema?

ANDRÉ - Sim Bárbara..Você quer?

BÁRBARA - Não sei André, é estranho, tanto tempo que não vou ao cinema.

ELZA (Pegando o telefone da mão de Bárbara) - Oi André, é Elza, ela aceita sim.

ANDRÉ - Oi dona Elza, que bom.

ELZA – Passe aqui as sete, beijo, saudades de você. (Desliga o telefone)

ISMAEL – E aí?

ANDRÉ - Aceitou..Eu acho..

ISMAEL - Que bom, vamos beber então.

(Luz do lado deles apaga)

BÁRBARA - O que foi isso mamãe?

ELZA – Qual problema de cinema e jantar com uma pessoa querida?

BÁRBARA - Isso é tão adolescente mamãe.

ELZA - Você precisa viver. Vem, vamos escolher uma roupa bonita para você.

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(As duas saem de cena, Gustavo vai para o meio do palco com caneta e caderneta, senta-se ao chão)

GUSTAVO (Escrevendo) - Diário de um suicida..(Levanta, se dirige ao público) André e Bárbara..Confesso que sinto ciúmes sim. Não lembro de minha vida sem a Bárbara, mas ela precisa ser feliz, ela merece. Abri mão de nossas vidas, de nossa felicidade quando cometi um ato impensado. Eu e André conhecemos a Bárbara ao mesmo tempo, na escola. Acabou que os dois se envolveram, eu gostava dela, mas fiquei na minha deixando os dois serem felizes, até que o pai de André foi transferido para Manaus e eles terminaram. Numa festa lhe dei o primeiro beijo, no Arpoador começamos a namorar e nossa história ocorreu. Tive uma história linda com ela assim como André poderia ter tido e o destino interrompeu. Talvez seja a hora dos dois..Talvez...

(Gustavosai de cena por um lado e André e Bárbara entram pelo outro)

ANDRÉ - Está entregue.

BÁRBARA - Obrigada André, tempo que não me divertia tanto.

ANDRÉ - Eu também, muito bom ter esses momentos com você

(Gustavo entra)

BÁRBARA - Bateu uma nostalgia, uma saudade.

GUSTAVO – Fala o quanto ela é especial, o quanto é importante para você.

ANDRÉ - Você é muito especial pra mim, muito importante. Minha primeira namorada né?

BÁRBARA - Você também foi meu primeiro namorado.

ANDRÉ - Infelizmente destino não quis naquele momento, a transferência do meu pai, tantas coisas ocorreram.

BÁRBARA - Não era pra ser..

GUSTAVO - Não era pra ser naquele momento, hoje em dia é diferente.

ANDRÉ - Não era pra ser naquele momento, mas quem sabe...

BÁRBARA - Não André.

ANDRÉ - Não o que?

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BÁRBARA - Sei onde quer chegar, desculpe, mas não consigo. Gustavo é muito vivo dentro de mim e nós dois somos amigos, viramos amigos.

ANDRÉ - Entendo.

BÁRBARA - Obrigada por essa noite maravilhosa viu? Acredite, a melhor em muitos anos.

ANDRÉ - Fico feliz por isso.

GUSTAVO – Mas nada impede que saiam de novo Bárbara.

BÁRBARA - Mas nada impede que a gente saia de novo, como amigos.

ANDRÉ - Claro, ficarei feliz.

GUSTAVO – Museu Bárbara, exposição.

BÁRBARA - Tem uma exposição ótima de um artista francês no museu perto do meu trabalho, quer ir amanhã?

ANDRÉ - Claro, ficaria muito feliz, te encontro amanhã na saída do seu trabalho, as seis, pode ser?

BÁRBARA - Te espero lá.

(André se aproxima dela, as bocas ficam próximas e ela lhe beija a bochecha)

BÁRBARA - Boa noite André.

ANDRÉ - Boa noite Bárbara.

(Bárbara sai de cena)

ANDRÉ - Ai meu Deus, por quê tudo é tão difícil? Por quê eu não consigo ser feliz? Por quê eu não consigo esquecer essa mulher?

(André vai para frente do palco, Gustavo também vai, é uma recordação)

GUSTAVO – Oi André, você voltou!!

ANDRÉ - Gustavo meu parceiro, só você eu não tinha visto ainda!!

(Se abraçam)

GUSTAVO – Dois anos..

ANDRÉ - Pois é, dois anos em Manaus, tempo parece que voou, mas foi demorado viu? Terra maravilhosa, mas estava com saudades disso aqui.

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GUSTAVO – Voltou em definitivo?

ANDRÉ -Sim, meu pai tanto tentou que conseguiu a transferência de volta.

GUSTAVO – Fico feliz, de verdade, mas me diz..E as manauaras?

ANDRÉ - Lindas cara, você não tem ideia...

GUSTAVO – Ficou com alguma?

ANDRÉ - Digamos que consegui ficar com algumas, olha, difícil achar uma cidade com mulheres tão bonitas quanto Manaus.

GUSTAVO – Olha, eu tenho que falar uma coisa com você...

ANDRÉ - É sobre a Bárbara? Não a encontrei ainda. Sabe dela?

GUSTAVO - Nós estamos namorando, um ano já.

ANDRÉ - É..Ouvi bochicho sobre isso, mas tinha nada confirmado até agora.

GUSTAVO – Eu tinha que te falar, nós somos irmãos.

ANDRÉ - Tranquilo Gustavo, como você disse, somos irmão e eu fiquei dois anos fora, claro que ela se interessaria por alguém, ficaria com alguém, que bom que é um cara bacana como você.

GUSTAVO - Tem certeza?

ANDRÉ - Sim, nós já tínhamos terminado, fiz questão de terminar nosso namoro antes de ir embora para deixá-la livre e nós só namoramos cinco meses né? Namorico de nada. Fico feliz por vocês, de verdade.

GUSTAVO - Você não sabe como fico aliviado ouvindo isso.

ANDRÉ - E eu fico feliz que tenha partido de você me contar. Mostra o cara correto que é.

GUSTAVO – Mosqueteiros?

ANDRÉ - Pra sempre!!

(Se abraçam. Depois andam um pouco pelo palco. André vai para frente dele se dirigindo ao público e Gustavo fica atrás)

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ANDRÉ - Eu devia ser ator, disfarço bem..Só eu sei a dor que senti naquele dia, o frio na alma que me cortou..Eu era louco pela Bárbara, sempre fui. Terminei o namoro na esperança que ela dissesse que não, que me esperaria o tempo que fosse e ela aceitar cortou meu coração. Fui para Manaus e não teve um dia que eu não pensasse nela, que não desejasse a volta. Não conheci nenhuma mulher em Manaus, não olhei para nenhuma mulher em Manaus, só sonhando com a volta. Voltei e queria vê-la de qualquer forma, fui correndo para a casa dela, mas ela não estava, saí e dei de cara com meu irmão Gustavo que me contou do namoro. Eu não sabia de nada, mas tive que disfarçar, falar que ouvira buchichos. Ouvira nada, foi uma punhalada no meu peito, a minha vontade era de urrar de dor, chorar, mas eu não podia fazer nada. Era meu amigo, meu melhor amigo, meu irmão. Como poderia me voltar contra aquilo? Naquela hora virei best friend de todos, o que aceitava tudo calado, com um sorriso enquanto sangrava por dentro. Sangrando vi o namoro deles, casamento, nascimento da Lara..Mas digo, passaria por tudo isso de novo para ter meu amigo aqui. A amizade do Gustavo, ter meu irmão perto de mim era mais importante que tudo.

(Gustavo se aproxima e bota a mão perto do ombro de André)

ANDRÉ (Chorando) - Ai meu irmão..Que falta você me faz..como eu queria você aqui.

GUSTAVO - Estou aqui André.

ANDRÉ - E agora essa situação com a Bárbara. Me sinto um canalha, traindo você.

GUSTAVO - Faça a Bárbara feliz, te peço.

ANDRÉ - Melhor eu não pensar assim, se te conheço bem você iria querer a Bárbara feliz.

GUSTAVO - Faça a Bárbara feliz.

ANDRÉ - Melhor eu ir pra casa, tomar um banho, dormir e deixar o destino agir..O que tiver que ser será.

(Anda até próximo da coxia)

ANDRÉ - O que tiver que ser será...

(André sai de cena e volta rindo com Bárbara. Gustavo entra olhando)

BÁRBARA (Gargalhando) - Nós somos loucos, definitivamente somos loucos.

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ANDRÉ - Por quê? Não fizemos nada demais.

BÁRBARA - Não? Nós esvaziamos o videokê!!

ANDRÉ - Não temos culpa que não gostem de cultura.

BÁRBARA - Você chama cantar pessimamente da forma que cantamos de cultura?

ANDRÉ - Não fomos tão mal assim.

BÁRBARA - Ah sim claro, ainda conseguíamos manter um pouco de dignidade até você começar a cantar e dançar conga la conga.

ANDRÉ - Vem não que você me acompanhou.

BÁRBARA (Rindo) - Verdade, não posso beber que dá nisso.

ANDRÉ - Mas até que foi divertido.

BÁRBARA (Gargalhando) - Começamos comportados em um museu tomando banho de cultura e terminamos em um videokê cantando conga la conga.

ANDRÉ- Você devia rir mais, fica ainda mais linda rindo.

BÁRBARA - Obrigada por momentos tão especiais viu? Você por perto vem me fazendo muito bem.

(Eles se olham por um tempo. Rostos próximos)

BÁRBARA - É melhor eu entrar. Obrigada por tudo André.

(Ela dá um beijo em seu rosto e começa a caminhar)

GUSTAVO (Cantando) - Paixão antiga sempre mexe com a gente, é tão difícil esquecer, basta um encontro poracaso e pronto, começa tudo outra vez...

ANDRÉ (Cantando) - Paixão antiga sempre mexe com a gente, é tão difícil esquecer, basta um encontro por acaso e pronto, começa tudo outra vez...

BÁRBARA - Que isso?

ANDRÉ (Cantando) - Vendo você meu coração parece que vai saltar, pelo meu corpo saudade em todo lugar...

BÁRBARA (Sorrindo) - Seu louco, a nossa música.

ANDRÉ (Cantando) - E eu sem disfarçar te como com meu olhar, foi bom demais, não tinha que acabar...

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BÁRBARA - Para com isso..

ANDRÉ (Caminhando para ela) - Meu bem quando eu te vi tudo voltou e eu compreendi, que eu te amo e quero agora e sempre mais (Passa a mão em seu rosto e continua cantando) Deixa o coração te seduzir não dá mais pra disfarçar, deixa o sentimento decidir já é hora de voltar...

(Eles se beijam e um pouco depois Bárbara se afasta)

BÁRBARA - Desculpe, eu não posso, eu não devo...desculpa.

(Bárbara sai correndo de cena, André se volta para o outro lado, começa a andar, sorri e dá um soco no ar como se tivesse marcado um gol. Luz se apaga e acende com Elza em cena e Bárbara entrando)

ELZA – Que cara é essa?

BÁRBARA - Foi nada não mãe.

ELZA – Como não? Você está com uma cara, aconteceu alguma coisa?

BÁRBARA - Não..Nada, só estou confusa...

ELZA - André?

BÁRBARA - Tempo que não me divirto tanto, não me sinto tão especial, mas...

ELZA - Mas o que?

BÁRBARA - Eu não consigo..

ELZA - Minha filha...Você acha que foi fácil quando seu pai morreu?

BÁRBARA - Imagino que não.

ELA – Você era uma criança ainda, ficamos só eu e você, eu uma menina ainda que sabia pouco da vida tendo que cuidar de uma criança.

BÁRBARA - É, eu sei.

ELZA - E cuidei, não cuidei? Deu tudo certo. Me dediquei a você, criei você, fiquei feliz por ver a mulher que se transformou, mas estava me faltando algo. Eu precisava ser feliz, não que você não me fizesse, mas precisava amar ser amada..

BÁRBARA - Mas a senhora não casou de novo, nem namoros longos teve.

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ELZA – Mas sabe o que é tão bom quanto conseguir? Tentar. Não temos que ser obrigados a conseguir, mas tentar sim, se não der certo paciência, a gente vai tentando, tentando e isso é bem divertido. A única obrigação que temos nessa vida é tentarmos.

BÁRBARA - Não sei se tenho forças, se consigo..

ELZA – Tente..Nãovai te custar nada.

(Bárbara e Elza se abraçam. Luz apaga e acende com Ismael em cena bebendo e Gustavo observando)

GUSTAVO - Já bebeu demais.

ISMAEL – Vai mandar em mim agora Gustavo?? Não enche meu saco!!

GUSTAVO – Como consegue me ver?

ISMAEL – Os sensitivos e os bêbados podem tudo, até ver fantasmas.

GUSTAVO – Para com isso, não vai te fazer bem.

ISMAEL – Olhem só, recebendo conselhos praparar de beber de alguém que deu um tiro na cabeça!! Se você tivesse bebido em vez de se matado estava aqui ainda!!

GUSTAVO – Tem razão.

ISMAEL - Você faz falta seu desgraçado!! (Começa a chorar) To me sentindo tão sozinho..Sem minha mulher, sem meus filhos..Eu chego em

casa, casa que não é a minha, não é a que eu construí, esquento a janta, sento no sofá e fico vendo futebol, todos os dias isso, ate já decorei o esquema tático do Bangu. Ultimamente até novela tenho visto e chorado com elas..Porque as novelas, o time do Bangu que são minhas companhias agora.

GUSTAVO – Eu sinto muito.

ISMAEL - Sente muito? Eu te invejo seu desgraçado!! Queria ter a coragem de meter uma bala na minha cabeça também, mas não consigo, sou fraco.

GUSTAVO - Não, você não é fraco meu amigo, acredite nisso, você é mais forte que pensa. Eu me arrependo do que fiz, muito.

ISMAEL(Chorando) – Eu preciso dos meus filhos...

GUSTAVO – Terá de volta, só ter fé.

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ISMAEL - Fé? Você não era ateu?

GUSTAVO – Fui convencido a não ser

ISMAEL – Como é Deus? Tem barba branca?

GUSTAVO - Não estive com ele.

ISMAEL – Que tipo de morto é você que nem consegue estar com Deus?

GUSTAVO – Do tipo que te ama e não vai te deixar sozinho.

ISMAEL – Lembra do dia do meu casamento? Lembra?

(Ismael e Gustavo vão para frente do palco. É uma recordação)

ISMAEL – Cara, eu tomuito nervoso.

GUSTAVO – Medo de quê? Da noiva não aparecer?

ISMAEL – Adriana nem é louca de fazer isso...Medo de fazer alguma besteira.

GUSTAVO – Que besteira? Únicas coisas que você tem que fazer é falar sim e dar as alianças.

ISMAEL - Alianças? Alianças estão com você.

GUSTAVO – Comigo? Claro que não.

ISMAEL – Como não Gustavo? Você é o padrinho, eu deixei com você.

GUSTAVO – Ih rapaz...

ISMAEL – Ih rapaz o que? O que quer dizer esse "ih rapaz", faz isso comigo não!!

GUSTAVO (Rindo)– To brincando bobalhão, estão com a Bárbara.

ISMAEL - Ta maluco? Virou comediante agora? Quer me matar do coração no dia do casamento?

GUSTAVO (Rindo) – Se acalme Ismael, vai dar vexame.

ISMAEL – E quando você vai parar de enrolar a Bárbara?

GUSTAVO – Ela é a mulher da minha vida.

ISMAEL – Isso já sabemos, todos sabem, queremos datas.

GUSTAVO – Breve, hoje é o seu meu irmão..Tabonitão hein?

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ISMAEL - Eu sou bonitão.

GUSTAVO - Verdade, tá me dando uma vontade de te agarrar.

ISMAEL (Rindo e correndo pela cena) - Sai fora!!

GUSTAVO (Gargalhando atrás) - Só um beijinho.

(Eles voltam a se sentar)

ISMAEL – Minha vida acabou.

GUSTAVO – Nem a minha acabou, quanto mais a sua.

ISMAEL – Quer saber? To com sono. Vou deitar a cabeça aqui nessa mesa e tirar um cochilo.

(Ismael bota a cabeça na mesa)

GUSTAVO – Amanhã você vai acordar melhor e pensar que nossa conversa foi um sonho. Durma bem meu amigo, durma em paz.

(Luz se apaga e acende com Elza varrendo e Gustavo olhando)

ELZA (Pondo a mão no braço) - Ai!!

GUSTAVO – O que foi dona Elza?

ELZA – Ai, ai, ai..

GUSTAVO – Socorro!! Alguém ajuda!!

(Ela cai no chão gemendo)

GUSTAVO – Droga Bárbara, cadê você? Chega logo!!

(Elza desmaia)

GUSTAVO - Meu Deus, o que eu faço? Irmão!! Irmão!!

(Ele observa Elza caída desmaiada, se aproxima, se ajoelha e estende as mãos sobre ela. Depois de um tempo ela se senta)

ELZA – To meio zonza, o que aconteceu? (Olha para Gustavo) Você!!

GUSTAVO – Oi dona Elza.

ELZA – Isso quer dizer que eu...

GUSTAVO – Sim dona Elza.

50

ELZA (Ficando em pé) – Olha, eu to muito feliz que tenha sido você a me acolher viu? Eu estava com muitas saudades de você meu filho.

GUSTAVO – Oh minha sogra, minha mãe..

(Eles se abraçam)

GUSTAVO – Venha..

ELZA – Para onde?

GUSTAVO - Não precisa ter medo, venha..

(Elza e Gustavo saem de cena. André e Bárbara entram pelo outro lado)

BÁRBARA - Acabou..Não consigo acreditar..

ANDRÉ - Sua mãe era uma pessoa maravilhosa, gostava muito dela.

BÁRBARA - Sem minha filha, meu marido, minha mãe..to sozinha no mundo (Começa a chorar)

ANDRÉ - Calma meu anjo, calma (André abraça Bárbara)

BÁRBARA - Como? Me diz como? O que eu vou fazer agora? Eu só tinha a ela no mundo!! Perdi tudo!! Por quê Deus?? Por quê você não gosta de mim??

(Gustavo entra)

ANDRÉ - Claro que gosta, para com isso.

BÁRBARA - Não gosta André, Ele me tirou tudo, eu não tenho mais ninguém!!

GUSTAVO - Tem a você André.

ANDRÉ - Tem a mim.

BÁRBARA - Como?

GUSTAVO – Tem a mim que te amo desde o dia que te vi pela primeira vez, ainda adolescentes, que ama seu sorriso tímido, seus olhinhos que fecham ao sorrir, sua voz, seu jeito guerreiro e ao mesmo tempo frágil, a sua presença em minha vida, o simples fato de você existir. Amo você tanto que decidi virar seu amigo e acompanhar sua felicidade de longe porque a sua felicidade me bastava. Amo tanto você que sua felicidade sempre foi mais importante que a minha. Você nunca estará sozinha enquanto eu estiver aqui.

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ANDRÉ - Tem a mim que te amo desde o dia que te vi pela primeira vez, ainda adolescentes, que ama seu sorriso tímido, seus olhinhos que fecham ao sorrir, sua voz, seu jeito guerreiro e ao mesmo tempo frágil, a sua presença em minha vida, o simples fato de você existir. Amo você tanto que decidi virar seu amigo e acompanhar sua felicidade de longe porque a sua felicidade me bastava. Amo tanto você que sua felicidade sempre foi mais importante que a minha. Você nunca estará sozinha enquanto eu estiver aqui.

BÁRBARA - Eu nem sei o que dizer..

ANDRÉ - Não precisa dizer nada, só queria que soubesse.

(Dá um beijo em sua testa e se vira para ir embora)

BÁRBARA - Espere..Não me deixe sozinha.

ANDRÉ (Voltando para perto dela) - Nunca, nunca te deixarei.

BÁRBARA - Dorme aqui.

ANDRÉ - Sim, eu durmo.

(Luz se apaga e acende com Bárbara deitada no colchão e André sentado ao lado velando seu sono. Em pé Gustavo observa os dois)

GUSTAVO - Você gosta dela mesmo né meu irmão?

(Gustavo anda pelo palco, senta, pega a caderneta e caneta)

GUSTAVO (Pegando a caneta e escrevendo) - Diário de um suicida..(Se levanta e se dirige ao público) Dona Elza está em um bom lugar, está agora ao lado do marido que tanto amava. Não consegui entrar lá, ainda não pertenço aquele mundo. Não aguento mais sofrer, não aguento mais a solidão, escuridão ..É tão difícil..Queria tanto ver a Larinha de novo, poder abraçar a minha filha e isso me parece tão distante, mais distante até que quando estava no plano físico após seu desencarne. Tenho pena da Bárbara, por tantas perdas e saber que sou responsável também por essa dor me dói, me consome e me atrai mais ainda para a escuridão. Começo a achar que a missão na verdade é do André, ele tem que salvar a Bárbara e tem que salvar a mim.

(Luz se apaga. Ouve-se barulho de chaves)

BÁRBARA - Tenho que consertar essa porta, cada vez mais difícil entrar.

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(Luz se acende e ela dá de cara com André com um chapéu panamá e um microfone na mão)

BÁRBARA - Que isso?

ANDRÉ - Showtime.

(Ele aponta controle remoto a esmo e sonoplastia coloca "You are thefirst, mylast, myeverything de Barry White. André dubla)

BÁRBARA (Rindo) - O que foi isso?

ANDRÉ - Barry White. Não gostou?

BÁRBARA - Sei que é Barry White, mas como conseguiu entrar aqui?

ANDRÉ - Porteiro já me conhece e deixou subir. Toquei a campainha e nada, bati na porta e ela estava aberta, aliás, tome cuidado com isso mocinha, essa cidade anda muito violenta.

BÁRBARA (Rindo) - Por isso não conseguia abrir a porta, você é completamente louco.

ANDRÉ - Tem mais.

BÁRBARA - Mais? Mais o que? Da até medo.

ANDRÉ- Preparei um jantar delicioso para a gente e pelo cheirinho deve estar pronto. Sente aí, vou trazer. Gosta de Arroz a piamontese?

BÁRBARA - Adoro (Senta)

ANDRÉ - Que bom, acertei..Ah, não disse se gostou da minha performance.

BÁRBARA - Sinceridade?

ANDRÉ - Sinceridade, meu coração já está preparado.

BÁRBARA - Foi uma das coisas mais fofas que já fizeram pra mim na vida.

ANDRÉ (Sorrindo) - Vou trazer a janta.

(Luz apaga e acende com os dois na mesa)

ANDRÉ - Gostou?

BÁRBARA - Amei, você cozinha bem, já pode casar.

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ANDRÉ - Isso é um convite?

BÁRBARA (Rindo) - Bobo demais.

ANDRÉ - Pena que você chegou antes que eu pensasse em alguma sobremesa.

BÁRBARA - Eu tenho aqui.

ANDRÉ - Ah é?

BÁRBARA - Sim, não viu na geladeira? Tem um pavê delicioso que fiz ontem.

ANDRÉ - Mas é "pavê" ou "pacomê"?

BÁRBARA - Êpiada velha, vou pegar.

(Ela se levanta, encaminha pra coxia, André levanta, a puxa e lhe beija)

ANDRÉ - Desculpa.

(Bárbara lhe puxa e o beija. A luz se apaga e acende com os dois no colchão)

ANDRÉ - Ta tudo bem?

BÁRBARA - Ta, ta sim..

ANDRÉ - Arrependida?

BÁRBARA - Não, sem arrependimentos.

ANDRÉ - Sabe quanto tempo sonhei com isso?

BÁRBARA - Foi bom, foi maravilhoso, mas..

ANDRÉ - Mas..

BÁRBARA - Desculpe André, mas eu não posso.

ANDRÉ - Não pode por quê?

BÁRBARA - É mais forte que eu, eu queria, juro que queria, mas não consigo.

ANDRÉ - O Gustavo morreu Bárbara.

BÁRBARA - Eu sei André e tenho lutado, juro que tenho, você é um cara maravilhoso, encantador e tenho tentado muito, mas sou fraca, não consigo.

ANDRÉ - Tudo bem, sou paciente espero o tempo que for.

BÁRBARA - Não vai ter tempo que for André, desculpe.

ANDRÉ - Como assim? Não estou entendendo.

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BÁRBARA - Acho melhor não nos vermos mais.

ANDRÉ - Mas por quê?

(Bárbara se levanta)

BÁRBARA - Eu não to bem, eu preciso de um tempo sozinha e você ta me sufocando André, até na minha casa entrou sem permissão.

ANDRÉ - Eu só quis te agradar.

BÁRBARA - Eu não quero ser agradada, não quero ser sufocada, só quero ficar sozinha.

ANDRÉ (Se levantando) - Desculpe Bárbara..De verdade.

(André dá um beijo no rosto de Bárbara e sai. Bárbara se joga no colchão e começa a chorar. Luz se apaga e acende com campainha tocando. Bárbara entra correndo em cena para atender)

BÁRBARA - Já vai..Já vai..

(Abre uma porta imaginária)

ISMAEL – Posso entrar?

BÁRBARA - Claro, entre.

(Ismael e Gustavo entram)

BÁRBARA - Tudo bem com você?

ISMAEL - Sim, consegui entrar em acordo com a Adriana e agora vejo meus filhos todos os finais de semana, até para o A.A. entrei, to feliz como há muito tempo não ficava.

BÁRBARA - Que bom Ismael, mas me diga, aconteceu alguma coisa?

ISMAEL - André está indo embora.

BÁRBARA - Como assim?

ISMAEL- Foi transferido para Miami.

BÁRBARA - Miami? Mas é muito longe, ele acabou de voltar pra cá tem poucos meses, por quê já transferiram?

ISMAEL - Não transferiram, ele que pediu transferência.

BÁRBARA - Mas como? Por quê?

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ISMAEL - Você não tem nem ideia do por quê?

BÁRBARA - Eu nem sei o que dizer...

ISMAEL – Esse homem é louco por você Bárbara. Aguentou calado durante anos o amor entre você e o Gustavo só porque te amava e tinha o Gustavo como irmão, um cara desses não existe, um amor desses não se desperdiça.

BÁRBARA - E agora? O que eu faço?

GUSTAVO - Vai atrás dele Bárbara.

ISMAEL – Vai atrás dele Bárbara.

BÁRBARA - Não sei se posso, não sei se tenho coragem.

GUSTAVO - Você tem Bárbara, você tem que ir, tem que ser feliz, eu só conseguirei partir de vez, descansar se você for feliz, só assim terei meu espírito em calma, tirarei do meu coração esse peso que trago. Você tem o direito e o dever de ser feliz.

(Elza entra em cena)

BÁRBARA - Eu não posso perder o André de novo, mas..

ELZA (Colocando a mão no ombro de Bárbara) - Tente minha filha..Tente.

BÁRBARA - Onde ele está?

ISMAEL – Em casa arrumando as coisas.

BÁRBARA - Obrigada Ismael.

(Bárbara sai de cena)

ISMAEL – Mas você vai deixar a casa aberta assim?

(Gustavo e Elza sorriem)

ISMAEL – Não sei o que deu em mim pra fazer isso, mas acho que precisava (olha pro céu) Tem coisa sua nisso, não tem safado?

(Gustavo e Elza se entreolham, sorriem e piscam pro público. Luz apaga e acende com campainha tocando e André indo atender)

ANDRÉ - Calma!! Parece que vai tirar o pai da forca!!

(Abre a porta imaginária)

ANDRÉ - Bárbara!!

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BÁRBARA - Não vai!!

ANDRÉ - Como?

BÁRBARA - Não vai embora. Não de novo, já perdi você quando seu pai foi para Manaus, não quero perder você de novo, você é tudo o que eu tenho, tudo que eu preciso, que me faz feliz.

ANDRÉ - Do que você está falando?

BÁRBARA - Fica comigo, eu te amo.

ANDRÉ - Bárbara, eu não estou entendendo..Oi? O que você disse?

BÁRBARA - Eu disse que te amo.

ANDRÉ - Repete.

BÁRBARA (Sorrindo) - Eu te amo!! Te amo!! Te amo!!

(Gustavo entra em cena e observa)

ANDRÉ - Como eu sonhei ouvir isso!

(Eles se beijam)

BÁRBARA - Promete..Promete pra mim que você não vai embora.

ANDRÉ - Mas de onde você tirou isso que vou embora?

BÁRBARA - O Ismael foi lá em casa dizer que você pediu transferência para Miami.

ANDRÉ (Rindo) - A firma nem tem filial em Miami.

BÁRBARA - Como?

ANDRÉ - Pedi transferência de nada e até estou negociando com a empresa minha saída. Quero montar um negócio no Rio, não saio mais daqui nunca mais.

BÁRBARA - E por quê?

ANDRÉ - Porque eu sou completamente louco por você.

(Se beijam novamente)

BÁRBARA - Peraí..Quer dizer que o Ismael mentiu?

ANDRÉ (Rindo) - Que safado..Eu amo esse cara.

BÁRBARA - Ele mentiu para nos juntar.

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ANDRÉ - Um bom motivo para que ele seja o padrinho.

BÁRBARA - Padrinho de quê?

ANDRÉ - De nosso casamento. Quer casar comigo?

BÁRBARA - Casar? O que? Do que você está falando?

ANDRÉ - Estou pedindo você em casamento. Não disse que me ama?

BÁRBARA - Amo, amo sim, mas casar assim? Do nada?

ANDRÉ - Não é do nada, é um desejo de vinte e cinco anos que eu tenho.

BÁRBARA - Ta, mas é estranho.

ANDRÉ - Lembra de nosso começo de namoro? Como foi?

BÁRBARA - Estava com amigas na escola e de repente uma bola surgiu do nada e me acertou sujando minha roupa, fiquei brava demais.

ANDRÉ - Eu fui pegar a bola, pedi desculpas e você começou a me xingar..E depois?

BÁRBARA - Você parou meus xingamentos me dando um beijo e depois do beijo você me pediu em namoro.

ANDRÉ - E você fez o que?

BÁRBARA - Eu aceitei.

ANDRÉ - Lembra do presente que te dei no nosso aniversário de um mês de namoro?

BÁRBARA - Um livro.

ANDRÉ - E o que dizia o livro? Aquela frase que virou nosso mantra?

BÁRBARA (Suspirando) - Não crie juízo, crie histórias de amor.

ANDRÉ - Então, quer casar comigo?

GUSTAVO (Fechando os olhos, sorrindo) - Sim.

BÁRBARA (Fechando os olhos, sorrindo) - Sim.

(Eles se beijam e Gustavo espalma as mãos sobre eles abençoando)

ANDRÉ (Sorrindo, pega a mão de Bárbara) - Vem!! Vem comigo!!

BÁRARA - Aonde seu doido?

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ANDRÉ - Começarmos a ser felizes!!

(André e Bárbara saem de cena)

GUSTAVO – Seja feliz meu amor, seja feliz Bárbara.

(Luz se apaga e acende com Bárbara deitada dormindo. Gustavo entra e se senta lhe observando dormir. Aos poucos Bárbara desperta e vê Gustavo)

BÁRBARA - Gustavo?

GUSTAVO – Oi meu amor.

BÁRBARA (Levanta) - Você está aqui, é você mesmo (Passa a mão no rosto dele)

GUSTAVO – Sim amor, sou eu.

BÁRBARA - Você não tem ideia de como eu quis esse momento, como quis te ver de novo.

GUSTAVO - Eu também amor, apesar que estive ao seu lado não digo por todo o tempo, mas por um bom tempo.

BÁRBARA - Do meu lado?

GUSTAVO - Sim e estou aqui hoje para me despedir de você.

BÁRBARA - Se despedir? Por quê?

GUSTAVO – Vai casar amanhã, minha missão está cumprida.

BÁRBARA - Me desculpa Gustavo..

GUSTAVO – Ei (Põe dedo na boca de Bárbara tampando) Não precisa se desculpar de nada não. Você merece ser feliz, de verdade eu to muito feliz por esse casamento.

BÁRBARA - Você foi o amor da minha vida.

GUSTAVO – Sim eu fui, assim como o André é. As pessoas tem uma ideia errada que só vivemos um amor na vida, não é assim, somos capazes de conhecer vários, só darmosoportunidade para que esse amor floresça e você meu amor é uma pessoa tão especial, tão maravilhosa que teve dois. Dois homens que te amaram com intensidade, com vontade, tesão, carinho, dois homens loucos por você. Viveu tudo o que podia com um, está na hora de viver com o outro.

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BÁRBARA - Por quê Gustavo? Porquê se matar?

GUSTAVO - Adoraria ter uma resposta sábia para você, mas não sei, não sou senhor de todas as respostas, talvez eu precisasse passar por todo sofrimento que passei depois do desencarne, talvez precisasse passar por todo ensinamento que passei depois desse sofrimento. Deus escreve certo por linhas certas já me disse um grande amigo. Depois que desencarnei aprendi que por mais que existam dor, sofrimento, sempre existirá uma luz, uma mão (Espalma as mãos) ou um par de mãos dispostas a nos acarinhar,

proteger, livrar da dor e da maldade. Por um ato intempestivo aprendi isso da pior maneira, mas aprendi que não estamos sozinhos e que sempre tem alguém perto para nos amparar.

BÁRBARA (Chorando) - Sinto tanto sua falta.

GUSTAVO (Acariciando o rosto de Bárbara) - Eu cumpri a promessa, nem a morte foi capaz de nos separar. Seja feliz agora, por você, por mim. Um dia a gente se esbarra de novo, eu, você e a Lara estaremos juntos de novo, tenha certeza disso.

BÁRBARA - Como ela está?

GUSTAVO - Melhor que a gente..

BÁRBARA - Eu tentei te odiar, juro que tentei, mas não consegui.

GUSTAVO - Deita vai..Amanhã vai acordar e pensar que isso foi um sonho.

BÁRBARA - Posso te pedir uma última coisa? Um abraço?

GUSTAVO – Claro.

(Eles se abraçam)

BÁRBARA - Obrigada por tudo. Pelo seu amor, companheirismo de tantos anos, por tudo que vivemos. Nem no fim dos meus dias eu vou esquecer de você.

GUSTAVO - Não tem que agradecer nada amor, amor não se agradece.

(Bárbara se deita)

BÁRBARA - Me ama?

GUSTAVO – Pra sempre..Durma bem.

(Bárbara fecha os olhos, dorme e Gustavo se levanta)

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GUSTAVO - Durma bem meu amor.

(Luz se apaga e acende com Gustavo olhando a plateia. Sonoplastia toca marcha nupcial. Irmão entra em cena e se aproxima de Gustavo. Música para)

IRMÃO - Linda noiva, lindo casamento, casamentos sempre me emocionam.

GUSTAVO - Irmão?

IRMÃO - Como você está Gustavo? Como se sente vendo essa cena?

GUSTAVO - A verdade?

IRMÃO - Sempre a verdade.

GUSTAVO – Muito feliz. A Bárbara merece muito ser feliz e com um cara que sei que lhe ama, lhe respeita, amo muito esses dois, me sinto muito feliz e aliviado.

IRMÃO - Muito bem Gustavo, cumpriu sua missão.

GUSTAVO – Sim, consegui unir os dois.

IRMÃO - Não era essa sua missão.

GUSTAVO – Como não? Você disse que era.

IRMÃO (Rindo) - Eu menti.

GUSTAVO – Mentiu? Que brincadeira é essa? Seres espirituais evoluídos também mentem? E essa história de sempre a verdade?

IRMÃO - Sua missão era praticar o desprendimento e a solidariedade, fazer o bem a seus semelhantes sem se importar com seus sentimentos terrenos, você conseguiu, você conseguiu se desprender do egoísmo, da mágoa, da dor terrena.

GUSTAVO – Sim, eu consegui, não sinto mais nada disso, minha alma está leve como poucas vezes senti na vida. O egoísmo que me fez cometer aquele ato não existe mais dentro de mim.

IRMÃO - Sabe o que é o bom da vida Gustavo?

GUSTAVO - Não.

IRMÃO - Milkshake..

GUSTAVO (Rindo) - Como é que é?

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IRMÃO - Um milkshake geladinho e cremoso, humm, ainda mais se for de ovomaltine, acredito que tenha sido a melhor invenção do homem.

GUSTAVO (Rindo) - Não acredito que estou ouvindo isso.

IRMÃO - Mas tem uma coisa melhor que milkshake e que foi inventada por Ele (Aponta para o céu).

GUSTAVO - O que é?

IRMÃO - A segunda chance...

GUSTAVO – Segunda chance?

IRMÃO – Sabe os finais de novela? Que as pessoas sentem raiva e reclamam que suas vidas não são assim? Que não tem final feliz? Todos temos finais felizes Gustavo, se não estamos felizes é porque o fim não chegou. Passamos por várias encarnações, desencarnes, crescemos, aprendemos, evoluímos sempre em busca do final feliz e o sofrimento, a dor sempre tem fim, se não for em uma vida será na outra. E melhor, quando erramos, quando perdemos a chance temos direito a segunda chance.

GUSTAVO - E temos mesmo?

IRMÃO - O senhorArgemiro que morava com o casal que brigava recebe e passa carinho, o próprio casal, hoje no Umbral, protege um ao outro contra o mal e nunca estiveram tão próximos. A senhora que sentia frio é aquecida de amor, a menina Emíliacome algodões doces com a avó, Elza reencontrou seu amado esposo. Todos agora estão em um lugar cheio de amor, maravilhoso cercados de pessoas que lhes ama, acarinha e quer bem. Os pais de Emília agora tem inúmerosfilhos postiços cujo amor que nasceu da dor salvaram as vidas. Ismael teve a segunda chance, conseguiu se reaproximar dos filhos e breve vai encontrar sua verdadeira alma gêmea, André teve um amor, perdeu e muitos anos depois está se casando com ele. Bárbara perdeu tudo, perdeu o companheiro, a filha, perdeu as esperanças e tem agora sua segunda chance com André. Todos, todos nós temos direito a uma segunda chance. Sabe por quê?

GUSTAVO –Por quê?

IRMÃO - Porque Deus é justo e além de justo Deus ama seus filhos, ama tanto seus filhos que dará quantas chances forem necessárias para que sejam felizes. E sabe do que mais? Perdem tanto tempo, tantos séculos em dúvidas se acreditam em Deus quando o mais importante é que Deus acredite em nós.

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(Irmão começa a caminhar para a coxia)

GUSTAVO – Quando terei minha segunda chance?

IRMÃO (Continuando a andar) - Está tendo

GUSTAVO – Estaremos juntos de novo?

IRMÃO - Nunca estive longe de você.

(Irmão sai de cena. Gustavo olha para baixo, para o chão do palco e Lara entra em cena)

LARA – Papai?

GUSTAVO – Lara? Larinha? (Grita) Larinha!!!

(Um corre para o outro, Gustavo se ajoelha e abraça forte Lara chorando copiosamente, choro muito forte. Luz se apaga e no telão passa fotos ou vídeo de Gustavo e Lara juntos, vivos e felizes enquanto sonoplastia toca "Valsa para uma menininha". Luz acende e Gustavo, agora de branco, está sozinho em cena. De pé para o público ele pega a caderneta, a caneta e abre a caderneta)

GUSTAVO (Sentando e escrevendo) Diário de um...diário de um...(Olha para o público e sorri) Diário de um homem feliz.

(Lara entra por trás, sem que ele perceba e tampa seus olhos com as mãos)

GUSTAVO – Humm, quem será...Eu conheço essas mãos..

(Pega a menina e lhe joga no chão)

GUSTAVO – A garra!!

LARA (Gargalhando) - Socorro!! A garra!!

(Gustavo começa a fazer cócegas em Lara e Irmão entra em cena observando)

GUSTAVO - Irmão? (Se levanta)

IRMÃO - Bom ver a alegria de vocês.

GUSTAVO – Bom te ver de novo Irmão.

IRMÃO - Eu vim buscar vocês.

GUSTAVO - Buscar? Por quê?

IRMÃO - Está na hora de continuarem a evolução. Reencarnação.

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GUSTAVO (Assustado, pegando a mão de Lara) - Reencarnar? Mas eu acabei de reencontrar minha filha. Eu te imploro Irmão, não faça isso, não nos separe.

IRMÃO (Sorrindo) - Separar? Vocês nunca serão separados. Vocês dois são almas gêmeas e estarão juntos por toda a eternidade.

(Irmão se aproxima de Gustavo e Lara)

IRMÃO (Estendendo a mão para Lara) - Venham..Podem vir sem medo que uma encarnação maravilhosa lhes espera. A segunda chance.

(Lara dá a mão para Irmão e de mãos dadas com ele e o pai os três saem de cena)

VOZ (Com cenário vazio) - Hoje, de algum lugar destas terras, há um doce olhar só para você, um olhar especial, de alguém especial, distantes origens, um olhar de um justo coração que pulsa só a vida. Que sorri porque ama plenamente sem julgamentos, preconceitos, nem prisões. Hoje, como ontem, longe destes céus, há um encantado olhar só para você e nesse olhar para você a magia da luz, a simplicidade do perdão, a força para comungar com a vida, a esperança de dias mais radiantes de paz. Hoje de algum lugar dentro de você, alguém que já o amou muito e ainda o ama, diz para você que valeu a pena ter estado nestas terras, sobre estes céus, falando de união, paz, amor e perdão. Poder sentir a força que faz você sorrir e continuar o caminho que um dia aquele doce olhar iniciou pra você. Tudo isso só para você saber que a vida continua e a morte é uma viagem.

(André e Bárbaraentram em cena. Sonoplastia coloca "Oneday in yourlife". Cada um dele carrega um bebê no colo, que evidente, são bonecos, eles sorriem para o público, sorriem um para o outro e caminham saindo de cena. Na caminhada a luz se apaga).

Essa peça é dedicada a Bia, Gabriel, Lucas e a Regina, minha mãe e avó deles, que em algum lugar nos protege.

Essa peça é dedicada a todos aqueles que tiveram perdas, sofrimento e que sabem que uma hora virá a segunda chance.

FIM