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ALBERTOBRAGA

VINHOSEÁGUAS-ARDENTES

FREEBOOKSEDITORAVIRTUAL–CLÁSSICOSLUSO-BRASILEIROS

TERROR-HORROR-FANTASIA

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Título:VINHOSEÁGUAS-ARDENTES

Autor:AlbertoBraga(1851–1911)

Imagemdacapa:GiacomoCeruti(1698–1776)

Leiautedacapa:Canva

Série:ClássicosLuso-brasileiros–vol.3

Direitos:Obradedomíniopúblico

Editor:FreeBooksEditoraVirtual

Site:www.freebookseditora.com

Ano:2017

Sitesrecomendados:

www.triumviratus.net,www.contosdeterror.com.br

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SumárioVINHOSEÁGUASARDENTES

SOBREOAUTOR

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VINHOSEÁGUASARDENTESQuando entrei no cemitério, lobriguei, ao fundo, por entre a rama de

algunsciprestes,queorlavamasruastransversais,ocoveiroalevantarasúltimaspazadasdeterradeumavala.

Ohomemcantarolavaassim:

Menina,queestáàjanela,

Alançargoivosàrua…

E,depois,agachadonocairel,mediacomocabodaenxadaaprofundidadedacova,prosseguindoalegremente:

Seocoveiroaquipassa,

Vaipôr-lhosnasepultura.

Meteuapádaenxadanaleivadeterra,quelheficavaaolado, transpôsocômoro de outras sepulturas, e parou junto de um esquife pobre, de pau, semforro,comossímbolosdamortepintadosd'amarelo.

Arrastou-ocomesforçoparaabocadavala,escancarouastampas;e,aodarcomorostodocadáver,exclamoudesiparasi:

—Ora,espera!Euconheçoestarapariga!

Entreabriuoslábioscomaunhadodedopolegar,concentrou-seuminstanteameditarcomosolhosfechados;e,porfim,continuoucompadecido:

—Ah!ÉsaRositadotecelão!

Àmedidaqueretiravacomjeitosapiedadeocadáverdoesquife,lamentava:

—Pobrerapariga!Eulogoviquetenãodilatavas1atrásdafilha!

Depois,orestofoirápidoebreve.

Baldeouocadáveraofundodacova,lançou-lheporcimaaterraquetinha

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levantado,recalcoubemcomospésjuntososúltimostorrões,eretirou-separacasa,comaenxadaaoombro!

***

Aívai ler-seahistóriadessamulher.Asuavidaéavida trivialdemuitasdesgraçadas.

Quando tinha apenas dezoito anos,Rosa chorou as primeiras lagrimas docoraçãoretalhadosobreocadáverdamãe,quelheexpirounosbraços.

Ficava sozinha nomundo, a viver pobremente do seu trabalho honesto eincessante, sem uma voz consoladora que a alentasse a arrostar todas asadversidades,queasortelhehaviadedeparar.

Ograndeperigoestava-lhenaperegrinaformosuradorostoenainocênciadocoração,queéaformosuradaalma.

Umdia oBenjamim tecelão, um rapaz alegre e bemparecido, que de hámuito lhe arrentava a porta, disse-lhe que a amava; e, para justificar a suadeclaração,propôs-lhecomvoztrémulaasuamãod'esposo.Mentiu-lhe.

Aocabodeonzemeses,duranteosquaisotecelãoiainventandoembargosàrealizaçãodasuapromessa,apobreraparigadeuàluzumafilha.Asprimeirasalegrias da mãe deram tréguas ao sofrimento do coração ludibriado. A filhachamava-seIsabel,queeraonomedamãedeRosa.

Depois, quando as lagrimas lhe rebentavam copiosas, Rosa tomava acriancinha nos braços, e um sorriso dela era-lhe um grato refrigério para asamargurasdavida.

O operário entendeu que a filha era um vínculo mais apertado do que aestolad'umsacerdote.Propôsavidaemcomum.Rosaacedeudepronto, fiadaemqueoamordepaitalvezdespertassenaconsciênciadeBenjamimaideiadocasamento,queareabilitasse.

O tecelão, vendo que o trabalho de Rosa bastava ás despesas da casa,deixou-se ficar uma semana sem ir à fábrica. Quando a ociosidade lhe eratediosa, ia procurar distração na taberna mais próxima. Voltou de novo aotrabalho;masoseuprodutodespendia-oconsigoecomosamigos,ásmesasdas

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tabernaseásbancasdojogo,esquecendo-sedeRosaedafilha.AconteceuRosaadoecer da muita fadiga, e pedir algum dinheiro a Benjamim. Não teve elecoragemdelh'onegar;masentregou-lhodeummodotãoáspero,queofendeuocoraçãodadesventuradamãe.

FoiaíqueprincipiouocalváriodeRosa!

Benjamimentravaemcasa,poraltashorasdanoite,cambaleanteeobsceno.Atiravaquantosinsultoslhelembravamaorostodarapariga.Rosaamparava-ocombrandura,sofria-lheosescárnioscomamaissantaresignação,auxiliava-oadeitar-se; e, depois, quandoBenjamim, com os cabelos em desalinho, o rostodescorado, ressonava, prostrado com o peso da embriaguez, ela quedava-se acontemplá-lo,comasfacescobertasdelagrimas.

Oviçoda sua formosura iapoucoapoucodesaparecendo. Jánão tinhaomesmo brilho nos olhos, o mesmo cetim na cútis, a mesma ondulação noscontornos do rosto. As lagrimas deixavam um vestígio indelével da suapassagem,eRosaenvelheciaeenfeava.

Benjamim, ao acordar do dia seguinte ao da embriaguez, sentia-seenfastiadodapresençadaquelavelha,esaíadecasasemlhedirigirumapalavradegratidãoecarinho!

Deumavez—tinhaIsabelseteanos—otecelãochegouacasan'umestadolastimoso. Dois amigos e consócios de taberna levaram-no nos braços, até àporta.Benjamimsubiuacustoosdegrausíngremesdaescada;abriuderepelãoaportadasala,eapareceuhediondo,a tremer,comosolhos injetados,os lábiosconvulsos,oscabelosempastadosdeumsuorviscoso.FezumesforçoparaseaproximardeRosa.Estendeuosbraçosparasearrimaràparede;abriuaspernaspara conservar o equilíbrio; e, ao arriscar vacilante o primeiro passo, caiu debruços,comtodoopesodocorpo,sobreopavimento!

Isabel, que já dormia, acordou sobressaltada com o estrondo da queda, eprincipiouagritardemedo!Benjamimergueu-sedegolpe,dirigiu-seàenxerga,emquedormiaafilhaeespancoubrutalmenteapobrecriança,queemudeceudeterror aos primeiros tratos. Acudiu Rosa, implorando com altos brados aBenjamim que perdoasse à filha;mas o bêbado respondia ás súplicas damãecompancadaseempuxões.

Ao outro dia, a Isabel tinha o corpinho tão macerado, que mal se podiaremover da cama. Rosa levantou-a carinhosamente nos braços, agasalhou-a

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n'umas saias de baeta, e, logo que o tecelão saiu de casa, foi com a filha aohospitaldaMisericórdia.Ofacultativo,queobservouacriança,viu,atravésdaslagrimasdamãe,acausadaquelascontusões.Apequenitaestavamuitodoente.

Aoterceirodia,afilhinhachamoucomvozdébilpelamãe,pediu-lhequesesentasse na enxerga

2, bem junto dela, encostou-lhe a sua loira cabecinha no

regaço,edisse-lhe:

—Opai émuitomau!E amãe chora tanto!Se eumorrer, hei depedir aNossaSenhoraqueleveamãeparajuntodemim;quer?

Rosa não respondia, porque os soluços, que lhe estalavam o peito, lheembargavamavoz.

A Isabelinha então, já com a vista turva, e a boca entreaberta, lançou osbraçosaopescoçodamãe,paraaachegarmaisdesi,estremeceudaderradeiraconvulsãoe…expirou!

Aocabodeummês,duranteoqualopadecimentodeRosaforahorrível,omesmocoveiroqueenterrouafilha,abriuaoladooutracovaparareceberamãe.

***

O rosto daquela mulher, magro, lívido, macerado, tinha a impressãoindeléveldas torturasporquepassara.Nãohavianeleascontorçõesdaagoniadosdelinquentes,quemorremconvulsionadospeloterrordeumcastigoeterno.Oderradeiroalentoentreabriu-lhenoslábiosumsorrisodebem-aventurança!

É como ficam as criaturas, santificadas pelo martírio, e que esperam namorteahoradoseuresgate!

Equemdiria—pobrecriança!—quetinhasapenasvinteecincoanos,eque foste formosa, e que te julgaste feliz no dia em que pousaste pela vezprimeiraoslábiosconvulsosdealegrianafacecorderosadetuafilha!?

E saber-se que o martirológico é com certeza o único elogio fúnebre detantasdesgraçadascomoRosa!

EBenjamim?

Benjamim, aquele homem que seduziu impunemente uma mulher e que

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matou impunemente a filha, prossegue inflexível na vida crapulosa, dominadopelovíciodaembriaguez,emquetemperdido,poucoapouco,ovigoreavidade todas as faculdades, a saúde, a honra e a própria dignidade de um serhumano!

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SOBREOAUTOR

Alberto Leal Barradas Monteiro Braga (1851-1911), jornalista e escritorportuguês, natural do Porto, dedicou-se ao teatro e às narrativas breves.Colaborouemdiversosperiódicosportugueses,comooJornaldoCommercioeas revistas Brasil-Portugal, Ilustração Portuguesa, A Risota e Serões (1901-1911).

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Notes

[←1]Ouseja,demoravas.

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[←2]Camahumilde,catre.