Vinte Cigarros - Tito de Andréa

download Vinte Cigarros - Tito de Andréa

of 40

description

Vinte cigarros: contemplação é uma série de poemas escritos entre uma bomba e outra, um choro e outro, um cigarro e outro, um grito e outro, a insônia...Escrita na impossibilidade de uma ação verdadeiramente funcional. São apenas poemas.

Transcript of Vinte Cigarros - Tito de Andréa

  • 0

    Vinte cigarros: contemplao

    Tito de Andra

  • 1

  • 2

    segure o poema com as duas mos, que o mundo ser

    bombardeado. perca as pernas, os sapatos e as lembranas

    daquele vero na praia, mas segure o poema. o mundo estar

    em gerndica runa, fogo, povos s lgrimas, farelo de

    cimento, crianas caladas. permanea com o poema em mos.

    o poema esse inseto ps-apocalptico que observa a

    destruio e diz escapei, diz ufa. barata assustada, o poema

    vai sair de suas mos mortas, percorrer estas cidades

    arrasadas, respirar esta insuportvel fumaa, tossir e deitar-

    se sobre a pergunta: para onde? estas cidades no existem

    mais, o que existe o poema que voc segurou firme com as

    duas mos, antes de morrer. voc deixou o poema aos poucos

    homens sobreviventes. entre lama, fatias de automveis, casas

    deitadas, dinheiro queimado vivo, coisas nunca ditas, corpos

    flagrados nus pela destruio, ex-governantes, msseis que

    funcionaram, maquiagens de sangue, ces pela metade: o

    poema e os homens sobreviventes.

    Urik Paiva

  • 3

    Este pequeno volume dedicado primeiramente

    minha av e a toda a populao da Palestina.

    Tambm dedico aos amigos que estiveram

    prximos e fizeram parte desta produo,

    contribuindo com conversas, leituras e afeto.

    Grazi Maia,

    Maik Wanderson,

    Tiago Castelo,

    Germanno Santos,

    Lucas Dib,

    Munirah Lopes,

    Clarissa Moreira.

    Vocs so importantes e provam a mim que,

    mesmo com todo desmoronamento, possvel

    estar vivo e criar beleza no mundo.

    Obrigado.

    Obrigado.

  • 4

  • 5

    I

    Tivesse eu uma alma

    poderia vend-la

    para me comprar cigarros

    e um chocolate

    criana assombrada

    que trago comigo.

    Sentar-me-ia calada

    para repousar,

    em meu colo,

    sua cabea castanha

    e afagar seus cabelos.

    Estamos muito cansados.

    Ela comeria o chocolate

    enquanto eu fumaria

    descolorindo o cu

    e esquecendo o horror,

  • 6

    o horror e a bomba

    que nunca aprendi a amar.

    Ela limparia os dedos sujos

    com a boca e talvez sorrisse

    ao fim do chocolate.

    Eu, contemplativo,

    terminaria o primeiro cigarro

    e talvez sorrisse, tambm.

    Mas no tenho nada

    que sirva como moeda de troca:

    sou pobre.

  • 7

    II

    Minha cabea abortiva

    e convulsa

    quer ser um deserto,

    todo meu corpo est rido,

    quero ser um deserto,

    ns estamos prontos para isso,

    digo aos meus olhos ressecados

    enquanto acendo o segundo cigarro.

    Fumo e penso:

    a fsica bem sabe,

    h muitas maneiras

    para se destruir um corpo,

    tantas outras para esmigalhar

    um esprito,

    a bomba, meu deus,

    a bomba apenas mais uma

  • 8

    de tantas formas

    de fazer os corpos

    se amontoarem nas caladas

    como rasuras no sculo.

  • 9

    III

    Meu corao a cidade dos infectados,

    meu corao esfumaado

    foi atacado ao amanhecer

    e nenhum cigarro me livra do horror.

    Quero ser covarde e fugir para longe,

    meu corao a cidade dos refugiados,

    meu corao em runas guarda a sombra

    e o eco dos aleijados nas ruas.

    Nenhum cigarro aliviar minha retina,

    eu estou exausto,

    o pesadelo segura minha mo

    e recomenda repouso e uma bebida forte.

    Meu corao um albatroz alvejado,

    cado no centro da cidade dos invlidos,

    vinte minutos antes da primeira bomba

    que apagou sua queda.

  • 10

    IV

    Napalm, fsforo branco,

    plvora, nicotina.

    Flores atmicas nas feridas abertas,

    corao de mrtir:

    o menino est morto,

    eu estou desidratado e nmade,

    peregrino no deserto nuclear,

    se chover estarei perdido,

    mas alm da fumaa

    e dos gritos,

    o cu est limpo.

    Sento na areia,

    procuro a estrela que me guia,

    na sua falta, encontro o planeta Marte,

    acendo mais um cigarro,

    ser longa a noite.

  • 11

    V

    Se eu dormisse

    talvez o choro

    dos homens

    acordados e vtreos

    parasse.

    Talvez a hipnose do sonho

    leve para longe

    o som das pedras caindo

    e dos gritos das mes,

    talvez, se eu pegar no sono

    o cigarro caia no colcho

    e minha cama se torne,

    finalmente,

    uma pira funerria.

    Mas no possvel dormir,

    estive sonhando acordado.

  • 12

    VI

    H coisas importantes,

    penso deitado na rua,

    costas frias sobre asfalto frio,

    orvalho nos olhos,

    chuva, no so lgrimas,

    juro.

    H coisas importantes,

    diz o mundo s minhas costas,

    silencioso e srio o mundo,

    mas o importante saber

    que meu rosto est molhado pela chuva,

    isso no so lgrimas.

    Um cigarro agora

    para ser srio e silencioso,

    h coisas importantes,

  • 13

    metralhadoras, balas,

    bombas e crnios.

    Os corpos dos meninos mortos

    so menos importantes

    que a terra com gosto de mel,

    os olhos queimados pela areia,

    no so importantes,

    os pedaos de vidro e os estilhaos de

    granada...

    O importante que saibas

    que chove em minha rua,

    onde me deito para fumar agora

    na esperana que o mundo me esquea

    e que a prxima bomba seja em mim,

    s a chuva,

    no so lgrimas.

  • 14

    VII

    Um cigarro para amanhecer,

    o sono da droga

    coagulou o pesadelo

    e talhou o sangue

    estampado nas paredes,

    entretanto

    no impediu o estrangulamento

    que fez calar o grito

    dos carros na rua.

    Esta noite,

    enquanto a droga

    me permitia dormir

    fomos atacados.

    Um cigarro para amanhecer,

    cidade cercada, estado de stio,

    fome, dormncia.

  • 15

    VIII

    Que tenho eu a te oferecer,

    cadver de menino rabe?

    Acendo um cigarro

    e me ponho a caminho

    do teu corao invadido.

    Que tenho eu a dizer

    para teu torso chacinado,

    cadver de menino rabe?

    Para tuas mos

    que tua me beijava,

    teus ps, ai, em um deles

    ainda resta um sapato...

    A vida cotidiana

    ainda no se desprendeu

    totalmente de ti...

  • 16

    Que tenho eu no mundo inteiro,

    cadver de menino rabe,

    alm dos teus olhos

    e desse cigarro pela metade?

  • 17

    IX

    J no sei onde estou,

    tudo o que eu queria

    era arrebatar sua testa

    com um beijo,

    no entanto,

    viemos juntos at aqui

    e eu no sei onde estou.

    Um cigarro para ser familiar,

    caf forte com gosto de chumbo,

    tudo o que eu queria era...

    J no posso ver o cu.

  • 18

    X

    Para ir andando por a,

    um cigarro,

    atrs de mim uma msica

    e algumas folhas verdes

    que abandono...

    Para ir andando por a,

    vastido, profundidade,

    qualquer coisa

    para ir andando esquecido por a.

    Com gosto de vento

    no corpo fechado,

    com gosto de sol ou de sal.

    Ilha, praia, oceano, horizonte,

    qualquer coisa

    para ir andando por a.

  • 19

    XI

    Deteriorado pelo tempo,

    um trapo amarrotado

    desgastado pelo sol

    arrastado por toda parte.

    Esse corao relutante se recusa.

    preciso parar um pouco

    respirar fumaa,

    mais um cigarro

    e ento de volta

    ao vazio desesperado.

    Um trapo vencido,

    bandeira branca encardida

    amarrada nos pulsos cortados,

  • 20

    um cigarro para que o dio

    no chegue at os olhos

    e estoure as cancelas desta represa,

    preciso sangrar o sculo,

    quanto a isso no resta dvida.

  • 21

    XII

    Algo deve nos aliviar

    no meio do caminho,

    mais um cigarro

    e uma cerveja,

    encontrar um rio

    para molhar os ps

    e rezar aos mortos,

    quem sabe?

    Qualquer coisa.

  • 22

    XIII

    Algum me diz para olhar a lua,

    a fumaa do cigarro

    forma um rosto,

    olhos de carvo morto,

    estamos desaparecendo,

    tenho estado suicida,

    admito.

    Algum me diz para olhar a lua,

    mas mantenho a cabea baixa,

    olhos firmes na terra,

    h sangue no cho.

    Algum me diz para olhar a lua,

    mas prefiro manter os olhos baixos,

    tenho tido medo do cu.

  • 23

    XIV

    Estou exausto

    e no quero mais falar sobre isso,

    um cigarro ao meio dia

    no desejo de ser esquecido

    e de esquecer a tudo.

    Pouso a cabea nas mos

    e os cotovelos nos joelhos,

    sentado, ainda,

    margem do rio do tempo,

    por mim passavam homens a p

    e montados em camelos,

    agora so carros e tanques,

    a Histria segue seu caminho,

    est tudo bem em algum lugar.

    Eu estou exausto

  • 24

    e com vontade de morrer,

    assumo e sopro fumaa

    para dentro do corao da cidade,

    logo o alarme tocar novamente

    e precisaremos correr

    para nos esconder debaixo dos destroos

    ou abrir os peitos para abrigar

    os estilhaos.

    Logo chegaro os homens

    antes empunhavam espadas,

    agora jogam pedras ou msseis,

    tudo igual:

    apesar de tanta diferena

    a Histria segue seu rumo.

    No fiquemos preocupados

    foi sempre assim.

  • 25

    XV

    Em breve no estarei mais aqui,

    terei deixado

    algumas pontas de cigarro apagadas,

    um pouco de amargura

    e angstia.

    O resto levarei comigo,

    no muito

    e ningum h de dar por falta.

    Por enquanto

    neste quarto que me deito

    enquanto foguetes riscam o cu

    do outro lado do espelho.

    Por enquanto fumo,

    pinto a parede

    com o sangue que cuspo

    e escrevo poemas

  • 26

    na esperana

    de que a morte me esquea

    por mais alguns instantes.

    v.

  • 27

    XVI

    Ansiosamente aguardo

    uma bomba que venha

    para finalmente me redimir

    dos meus pecados.

    Dizem os pregadores

    que Ele h de vir

    montado em sua ira,

    espada presa

    entre dentes brancos

    e lnguas de fogo

    para queimar nossos ouvidos.

    Acendo um cigarro

    para fazer uma orao.

    Fumo como aqueles

    a quem apetece pedir

    pedem.

  • 28

    Dizem os pregadores

    que esta terra

    tem um dono antigo

    e que a Ele foi prometida

    a capacidade da paz

    e da vingana.

    A criana atada em meus ps

    j fede h dias

    est morta e cinza,

    estufada e podre,

    est salva,

    pode ser limpa

    e receber novas roupas.

    Para que todo sofrimento

    esteja esquecido

    resta apenas a vinda do Messias.

  • 29

    XVII

    Hoje devo dormir

    com a chinela virada

    para que minha me

    amanhea morta,

    na esperana

    de que todas as mes

    amanheam mortas

    e que tenhamos

    ao menos isso em comum.

    Mais um cigarro

    e um caf

    para esperar o invasor,

    ele h de chegar noite,

    o juiz em forma de ladro,

    ele h de reconhecer meu rosto

    e desrespeitar meu jejum.

  • 30

    Hoje devo dormir

    com a chinela virada

    com vergonha

    das manchas de sangue

    em seu solado,

    pois tenho vergonha

    do meu sangue

    e da minha pobreza

    que me impede

    de comprar uma chinela nova.

  • 31

    XVIII

    Quero dizer me recuso,

    mas minha boca est seca

    e meus lbios fracos

    so incapazes,

    de qualquer modo,

    nada mudaria,

    mesmo com lbios fechados

    um corpo fcil de abrir.

    Quero gritar,

    para fora desta carcaa

    e queria que o grito

    fosse um dardo

    em direo testa

    do prximo,

    mas no mais possvel

    e ento eu fumo mais um cigarro

  • 32

    e deito com os olhos suaves

    admirando

    a chuva no cu.

    Parece de estrelas,

    mas de estilhaos.

    No tenho mais medo.

  • 33

    XIX

    O tempo andou para trs,

    e agora estou esquecido.

    No tenho ptria nem lngua,

    guardo terra dentro dos sapatos,

    mas a metfora ruim.

    Ainda o mesmo quarto,

    mas a violncia do tempo

    trouxe o mar para dentro

    e eu durmo ilhado

    em uma cama suja de areia.

    Ontem mesmo

    ouvi passarem navios

    cheios de soldados,

    iam desbravar o mar,

    disseram,

  • 34

    vamos descobrir um novo continente,

    disseram.

    Fumo com os ps dentro do mar,

    e ao longe, na costa,

    ouo gritos e vejo fumaa.

    O tempo esqueceu seus filhos,

    descobriu, tardiamente,

    que h coisas melhores

    para comer.

  • 35

    XX

    Para a Palestina,

    com amor,

    um cigarro.

    Pois no temos muito tempo

    neste absurdo

    impermevel

    que no deixa minhas lgrimas

    irem embora.

    No temos muito tempo,

    logo as crianas

    aprendero a matar

    ou a morrer.

    Para a Palestina,

    com amor,

    a violncia destes anos.

  • 36

    Pois no temos muito tempo

    neste deserto oleoso

    que guarda azedando

    o leite da promessa.

    Para a Palestina,

    com amor,

    um cigarro para tentar sorrir:

    no temos muito tempo,

    sabemos morrer.

  • 37

  • 38

    Tito de Andra

    Fortaleza

    Julho de 2014

  • 39