Vinte e Nove de Abril

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  • 8/17/2019 Vinte e Nove de Abril

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    Vinte e nove de abril

     Não conheço alguém que goste de uma quarta-feira. É o meio da semana, parece

    que nunca irá ter fim, nem o dia nem a semana. quarta-feira quando cin!enta é ainda

     pior, é morosa. Vinte e nove de abril foi uma quarta assim. cordei um pouco en"oada e

    irritada com o barulho renitente do despertador. #or alguns segundos esqueci que ele

    dependia apenas de mim para aquietar-se. $oi quando me levantei de um s% pulo e perdi

    o equil&brio. 'e repente perdi o controle sobre o meu corpo, s% pode ser coisa da

    labirintite. - (ssa quarta promete) - pensava enquanto tentava reequilibrar meu corpo.

    *uem tem problemas com os labirintos sabe que não se levanta de um s% golpe, mas

    ninguém acorda pensando nos seus problemas. +omos até bem otimistas pela manhã.

     pessimismo é o resultado de nossas desventuras diárias. No fim do dia somos todos

    niilistas, crentes ou não.

    esta altura, pr%imo ao banheiro, o corpo "á havia se realinhado. ncr&vel como

    a medicina, tão senhora de si, ainda não tenha uma cura ou ao menos um paliativo para

    esse mal. magino que se"a algo muito simples, alguém um dia ainda vai acordar em

    uma quarta cin!enta e preguiçosa e vai resolver o mistério. (nquanto isso os

    desequilibrados por esta afecção se realinham com uma receita da vov%/ café com tr0s

    gotas de limão. +im, aparentemente, isso passa pela loteria genética. Não consigo

    entender ainda como funcionam as prioridades das pesquisas cient&ficas, mas não tenho

    muito tempo para pensar no assunto. água ferveu. pago o fogo da chaleira e espero

    que as borbulhas acabem. +e não faço isso, o café fica com gosto de queimado e o

    melhor desta bebida é o cheiro. +empre começo o meu café pelo aroma. É um deleite.

    1entamente despe"o a água fervida no coador para que o cheiro desperte meus labirintos

    e Vicente, que ainda dormem. 2omo é bom esse vapor perfumado pela manhã, ainda

    que se"a quarta, mas ho"e esse pra!er foi transformado em algo estranho.

    cheiro da borra do café me embrulhou o est3mago e a despeito de não ter ingerido nada ainda algo parecia fa!er força para sair. Vou regurgitar minhas v&sceras,

    cogitei. bandonei o café, foi preciso. Vicente acordou com o barulho que eu fi! para

    chegar ao banheiro, uma mistura de tropeços com gritinhos de medo. deio ter que

    fa!er isso. 2olocar coisas para fora do seu corpo pela boca, um lugar marcado para ser a

     principal porta de entrada dele. 4ais estranho que isso s% os nervos do seu ouvido em

    comum acordo com o seu cérebro serem capa!es de causar um desequil&brio em todo o

    seu corpo. +im, foi a labirintite, disse ao Vicente. (ra a 5nica "ustificativa plaus&vel paraaquela cena de filme trash pela manhã.

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     Não era. menstruação atrasara há dias. desespero tomava meus pensamentos

    e o café esfriava na pia da co!inha. 2omemos, poderia assim melhorar. 2onversamos

    um pouco e seguimos com os preparativos para a "ornada diária. (le, professor de

    #ortugu0s, em uma escola p5blica no 6ra"a5. (u, uma das redatoras da equipe de

     pol&tica nacional de um "ornal de grande circulação. casa era o meu escrit%rio favorito,

    mas era dia de reunião no escrit%rio. 'ia cheio. (ra quarta.

     No "ornalismo se aprende a import7ncia da praticidade. #ensar uma situação

    complea e falar sobre ela para que todos entendam da forma mais simples poss&vel e

    em menos tempo ou caracteres é uma virtude para a profissão. $oi assim que resolvi

    agili!ar o processo. #ara que esperar por mais en"oos8 estresse pode inclusive atrasar 

    ainda mais o fluo menstrual. ptei pelo método mais rápido e su"o, o teste de farmácia.

    9m dia, ouvi de um professor de biologia, nos idos anos de ensino médio, que tais testes

    eram tão precisos quanto o de laborat%rio. 4e apeguei nessa lembrança e fui para o

     banheiro da redação para p3r fim : ansiedade.

     Nada demais, nem me su"ei como imaginava. 'eu positivo. 4as será que isso é

     preciso mesmo8 meu professor do ensino médio diria que sim, mas por que ele estaria

    certo8 (le nem trabalhava com isso, s% nos ensinava algumas coisas que eu nem me

    lembro, tipo o reino procariontes. Não) (ram células) Não sei como pude confiar em

    alguém que passou tr0s anos em minha vida a falar sobre tais coisas. ( como posso

    lembrar disso se não ca&a na prova e eu nem fiquei horas tentando decorar. lgo eiste,

    é procarionte e eu "á não faço ideia do que se"a. educação é um pro"eto falido mesmo.

    $iquei tensa com o resultado. #recisava contar para o Vicente. +% ele poderia

    entender e me acalmar ou, ao menos, compartilhar do meu desespero. 1arguei a reunião

    no começo. redator chefe falava o que era de costume em uma quarta cin!enta/ ;-

    +e"amos imparciais) Não é o momento de escrever ou falar com o coração. +e"amos

     profissionais.< =uth sempre chorava e sa&a com o rosto vermelho dessas reuni>es. (lanão concordava com aquela atitude, quem é do meio sabe que não eiste neutralidade

    ou isenção em nada, nem na declaração do imposto de renda. ?á não precisava ouvir 

    nada daquilo, pois sabia eatamente o que o chefe queria. 2om tantas contas a pagar e o

    salário de professor do Vicente, peguei o "eito rápido. ceitei a primeira pauta

    resignada, precisava sair dali.

    2heguei a casa. @udo va!io. Vicente s% voltaria no fim da tarde. #oderia ter 

    ficado até o fim da reunião e disputado um tema melhor A resmungava para mimmesma.

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      proveitei para treinar como seria. ssisti a uns v&deos de grávidas que foram

    criativas nesse momento. s gravaç>es são lindas e os horm3nios da maternidade me

    fi!eram chorar em todos. 2omecei a pensar nessas mudanças que meu corpo sofreria.

    4editei alguns minutos sobre a poss&vel participação das tais procariontes nisto. +erá

    da& que isso vem8

    Vicente chegou. 4eu teto não estava pronto. Nada criativo, teria que ser rápida

    e direta. 4inhas mãos suavam. #edi para que ele sentasse para conversarmos. (le

    ofereceu abrir um vinho, neguei. *uase escapuliu que poderia fa!er mal para o nosso

    filho. 4e calei.