VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA INFÂNCIA DEIXA MARCAS: SÓ O … filemuitas flores e outros detalhes...

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1 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA INFÂNCIA DEIXA MARCAS: O AMOR DEIXA TRILHAS Maria Amélia Azevedo 1.0 Introdução A história de Elin, a seguir, evidencia com perfeição a importância do que chamo de PAIS OMANE(*). São pais bons o bastante, porque capazes de neutralizar até mesmo os efeitos deletérios da VDCA. São pais bons o bastante porque capazes de identificar a principal necessidade de seus filhos São pais bons o bastante porque capazes de atender à necessidade identificada, não se importando com as dificuldades da “maternagem” e ou “paternagem”... CONFIRA !!! ____________________________ (*)Omane: palavra indígena que significa ABRAÇO

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VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA INFÂNCIA

DEIXA MARCAS:

SÓ O AMOR DEIXA TRILHAS

Maria Amélia Azevedo

1.0 Introdução

A história de Elin, a seguir, evidencia com perfeição a importância do que

chamo de PAIS OMANE(*).

São pais bons o bastante, porque capazes de neutralizar até mesmo os efeitos

deletérios da VDCA.

São pais bons o bastante porque capazes de identificar a principal

necessidade de seus filhos

São pais bons o bastante porque capazes de atender à necessidade

identificada, não se importando com as dificuldades da “maternagem” e ou

“paternagem”...

CONFIRA !!!

____________________________

(*)Omane: palavra indígena que significa ABRAÇO

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2.0 Elin nasceu duas vezes

Todos achavam que a bebê sofria de uma deficiência grave.

Mas o amor dos pais adotivos mudou tudo.

Por Lisbeth Pipping

NÓS NOS CONHECEMOS NUM FIM DE SEMANA, num hotel na cidade de Piteâ, no norte da Suécia, onde participo de uma reunião de pais adotivos. É uma oportunidade para pais e cuidadores adotivos e seus filhos se encontrarem, dividirem experiências e assistirem a palestras de especialistas. Famílias de cerca de cem lares adotivos se reuniram num local agradável na costa norte do Mar Báltico.

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Como cientista comportamental especializada em pesquisas sobre filhos de pais com deficiência intelectual, vou dar uma palestra sobre minha infância, vivida ao lado de uma mãe com atraso cognitivo. Mal posso esperar para conhecer pessoas com coragem de se envolver com crianças muito feridas emocionalmente como a criança que fui, pessoas que dão a elas uma segunda chance na vida. Tenho um filho e uma filha naturais, mas nunca tive coragem de adotar. A adoção exige um coração enorme e força para lidar com a dor e o sofrimento vividos por essas pequenas criaturas.

No saguão do hotel, no primeiro dia da conferência, uma menina que parece ter 8 anos corre feliz de um lado para outro, o cabelo louro cacheado girando em torno do rosto alegre. Ela está de mãos dadas com uma mulher e, na outra mão, leva uma toalha de banho grande. É fácil ver que são mãe e filha: as duas têm o mesmo cabelo cacheado, linguagem corporal semelhante e o forte vínculo entre elas é muito evidente. Suponho que estejam no hotel para passar um fim de semana de lazer, não para a reunião de famílias adotivas.

A menina para de repente e me olha, ou melhor, olha para os meus sapatos. Eles são diferentes, cor-de-rosa, com muitas flores e outros detalhes interessantes.

“Oi, moça! Adorei seu sapato! Queria um igualzinho!” diz a menina, se aproximando de mim, sem nenhuma timidez. “Como é seu nome? O meu é Elin. Acabei de sair do banho quente com a minha mãe.” As palavras tropeçam na língua e transmitem sua energia.

Mal tenho oportunidade de responder “Oi” e elas se afastam. Os brilhantes olhos azuis e a voz alegre de Elin não me saem da cabeça quando pego o elevador até meu quarto. Começo a pensar em Elin e na mãe. De onde serão? O que estarão fazendo no hotel?

Mais tarde, enquanto amarro o mesmo sapato antes de descer para jantar, me lembro da voz radiante de Elin. Será que a verei de novo?

Quando a porta do elevador se abre no restaurante, Elin me avista na mesma hora. “Oi, moça do sapato bonito! Vem sentar aqui”, grita ela, enquanto pega uma cadeira e a arrasta até a sua.

É assim que conheço Elin e sua família: a mãe, Marie, o pai, Jonas, e o irmão mais velho, Oscar, 12 anos. Elin fala o jantar inteiro.

- Onde você comprou esse sapato? Foi muito caro? - As perguntas e informações são intermináveis. Ela me conta que tem quase 9 anos, que adora cavalos, cachorros e gatos, e que toca clarinete e dança muito bem.

Quer saber se tenho filhos. Digo-lhe que minha filha Jonna também adora cavalos, o que a deixa empolgada. Às vezes Marie interrompe para dizer a Elin que precisa comer também, senão a comida esfria.

Quando o relógio se aproxima das 21 horas, Jonas diz à menina que está na hora de dormir. O irmão dá boa- -noite aos adultos à mesa. Mas Elin quer ficar mais um pouco e conversar com a “moça”.

- Elin, o nome dela é Lisbeth - diz Marie.

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- Tudo bem. Quero ficar e conversar mais um pouco com a moça Lisbeth. Consigo me intrometer.

- Ei, Elin. Vamos nos ver amanhã. Vou ficar aqui o fim de semana inteiro. Elin se cala. Depois, me olha.

- Promete que vai jantar conosco amanhã à noite? Queria que você tomasse café da manhã conosco também. Promete?

Começo a rir e prometo que vou comer com eles, e acrescento que é melhor ela ir para a cama para não ficar cansada demais no dia seguinte. A voz de Elin vai sumindo enquanto ela anda para o elevador com o pai, e de repente a mesa fica estranhamente silenciosa. Eu e Marie nos entreolhamos.

- Foi um prazer conhecer você - dizemos juntas, e começamos a rir. Marie me oferece uma taça de vinho, que aceito. Deixamos a mesa, nos sentamos no saguão e começamos a conversar sobre como é ser mãe adotiva.

Muito amor para dar

- Quer saber como recebemos Elin? - pergunta Marie.

- Elin? - pergunto, surpresa. - Achei que Oscar era o filho adotivo.

Para mim, parecia óbvio que Oscar, o calado irmão mais velho, é que fora adotado. Era a única conclusão lógica a que podia chegar depois do pouco tempo passado com a família. Não que eu ache que crianças adotadas tenham de se comportar desta ou daquela maneira. É que Elin tinha um jeito confiante, uma segurança de ser profundamente amada, além do fato de ela e Marie se parecerem bastante, com cachos louros, jeans e gestos semelhantes, e sua intimidade ser muito óbvia. Daí eu ter suposto que Elin

fosse filha biológica de Marie. Marie cai na risada. Depois, me olha no fundo dos olhos e pergunta por que pensei assim.

- Porque fiquei com a sensação de que você levou Elin na barriga - digo com franqueza.

- Bom, dentro da barriga, não - diz Marie -, mas a levei sobre a barriga. Peço a Marie que me conte a história. Estou muito curiosa para saber como Elin foi morar com Marie, Jonas e Oscar. Não sei o que esperar. Ajeito-me na cadeira com minha taça de vinho e me preparo para ouvir.

- A mãe dela, que mora no norte da Suécia, tem deficiência mental e gerou cinco filhos. Elin é a caçula. Quando nasceu, a mãe não podia cuidar de um filho, muito menos de cinco, e, quando Elin tinha 7 meses, todas as crianças foram levadas pelo serviço de bem-estar social - conta Marie. - Todas foram adotadas, mas encontrar um lar para Elin estava difícil.

“Certo dia, na primavera de 1997, recebi um telefonema do serviço social. Já tínhamos ficado algum tempo com uma criança cuja identidade fora protegida por causa das ameaças de morte feitas pelo pai”, diz Marie à guisa de explicação. Ela fita a taça de vinho; dá para ver que essa história traz lembranças fortes.

- Acho que o serviço social registrou vocês como pais temporários competentes depois de uma situação dessas - comentei.

- É provável - disse ela. - Aí eles me avisaram que tinham uma menininha de 7 meses que precisava de um novo lar. Lembro-me de Jonas e eu sentados na sala das duas assistentes sociais,

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imaginando como seria maravilhoso cuidar de um bebezinho outra vez.

“Mas, ao nos falarem de Elin, havia algo na linguagem corporal delas, como se nos escondessem alguma coisa. Comecei a ficar inquieta. Não conseguia me concentrar no que diziam. Minha mente se distraia, e me lembro de pensar que a situação talvez acabasse como a outra em que fomos pais temporários, quando tivemos de proteger nosso endereço para que o pai agressivo e perigoso não encontrasse o filho nem nós. Foi uma época difícil, e eu não sabia se conseguiria passar por aquilo de novo. “Meu marido me cutucou e voltei dos meus pensamentos para o que as assistentes sociais diziam. Pedi desculpas e interrompi: ‘Preciso saber uma coisa. Estou com a sensação de que vocês estão nos escondendo algo.’

“A sala ficou em silêncio, mas por fim elas nos contaram que achavam que Elin tinha uma deficiência mental grave e que talvez não ouvisse nem enxergasse. ‘Ela não balbucia, não segue o olhar, não se senta, é basicamente um vegetal, admitiram. ‘Não sabemos se é congênito ou adquirido’.

“Ninguém disse nada. Tive medo de olhar para Jonas. Minha primeira ideia foi: seremos capazes de cuidar de um bebê com deficiência grave? Será que eu saberia lidar com isso? E como nosso filho Oscar reagiria se eu passasse o tempo todo com o novo bebê? Ele acabara de fazer 5 anos.

“Mas, quando fitei os olhos de Jonas, vi que não tínhamos escolha. Ambos sabíamos que tínhamos muito amor para dar. E respondi: ‘É claro que vamos conseguir!’ Jonas concordou e, naquele momento, senti que resolveríamos tudo.”

Nós duas tomamos um gole de vinho. De certo modo, entendo o que ela diz, o porquê de se sentir tão confiante de ser capaz. Depois de passar a noite na companhia dessa família, posso dizer que seu relacionamento é incomumente forte e harmonioso. É óbvio que se amam muito, sem restrições. Faço um sinal de cabeça para estimular Marie a continuar.

- Elin estava numa casa adotiva de emergência e fomos visitá-la naquela mesma semana. Eu estava nervosa antes de sairmos, sem saber qual seria a minha reação. Nem sabia se ficaria evidente para nós que ela tinha uma deficiência mental.

“Lembro-me do momento em que a vimos, da sensação que tive ao segurar seu corpinho magro e rígido. Era como se ela não tivesse articulações. Parecia um pedaço de madeira. E os olhos estavam mortos. Não restava vida neles, apenas um grande vazio. Era apavorante ver que podia existir tamanho vazio dentro de um bebê tão pequeno.

“Então chegou o dia em que ela viria morar conosco. Nessa época, Elin estava com 9 meses. Recordo que era um daqueles dias maravilhosamente quentes de verão. O vento era meio geladinho. mas o sol aquecia. Tirei Elin do carrinho, acariciei seu cabelo fino e conversei com ela. Disse-lhe que viria morar conosco, que tinhamos preparado um dos quartos do andar de cima para ela e pintado as paredes em tons pastel. Contei-lhe que havíamos comprado um berço novo. Nenhuma reação. Ela apenas fitava o espaço.

Marie franze a testa ao recordar aquele dia.

- Naquele momento, me senti um pouco insegura. Daríamos um jeito. Se ela

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conseguisse se sentir em segurança conosco, tudo daria certo.

Marie parece decidida ao dizer isso, consigo perceber uma vontade de ferro por trás do seu sorriso.

- Oscar estava esperando ansiosa mente o novo bebê. Ele contou a todo mundo no jardim de infância que ganharia uma irmãzinha. As outras crianças o acusaram de mentir, porque sua mãe não tinha um barrigão. Oscar lhes informou que era possível ter uma irmãzinha mesmo sem barrigão. Ele tinha uma foto dela, e seu nome era Elin.

“Quando chegamos, ele veio correndo ao nosso encontro. Estudou Elin durante muito tempo. Depois, disse: ‘Ela é muito fofinha’, e beijou sua testa. Eles se entenderam na hora. Bom, não que Elin o reconhecesse ou mostrasse que o via, mas o amor imediato de Oscar animou nosso coração.

“Aquelas primeiras semanas foram como uma lua de mel. Elin comia e dormia normalmente, nunca chorava, não emitia nenhum som. Só ficava lá. Achei que poderia dar certo. Tínhamos enfrentado desafios mais difíceis. “Mas, no minuto em que pensei isso, tudo virou de cabeça para baixo. Elin já morava conosco havia quase um mês quando aconteceu. Jonas saiu para trabalhar e deixar Oscar na escola. Eu acabara de fazer um bule de café e estava prestes a ir para o terraço ler o jornal ao sol. Foi quando Elin começou a gritar. Não era choro; eram gritos altos e prementes.

“Achei que fora picada por uma vespa ou coisa parecida. Corri até o quarto e a peguei no colo, mas não vi nada de errado.”

Um colo agarradinho — Tentei consolá-la de todos os

jeitos, mas não adiantou. Os gritos ficavam cada vez mais altos; era de enlouquecer. Ela gritou sem parar durante quatro horas, até que, finalmente, adormeceu, exausta, em meu colo. Mas logo acordou de novo, e os gritos de cortar o coração voltaram a ecoar pelas paredes. Elin gritou até vomitar. Tentei alimentá-la, niná-la, cantar para ela, dormir junto dela, levá-la para passear no carrinho, mas nada adiantava.

“Ficar ao ar livre tornou-se impossível, porque os vizinhos me olhavam como se eu tivesse batido nela. Portanto, nos tranquei em casa. No fim da tarde, quando Jonas e Oscar chegaram, eu estava à beira das lágrimas, e Jonas assumiu. Mas também não conseguiu acalmá-la. Os gritos de Elin nos deixaram acordados a noite inteira. Na manhã seguinte, liguei para o posto de saúde infantil e pedi uma consulta. ‘Ela está sentindo dor? perguntaram. ‘A vida dela corre perigo?’ Ora, do jeito que ela gritava podia ser qualquer coisa.”

Marie respira fundo. Faço-lhe um sinal de cabeça encorajador enquanto tento comparar as lembranças de Marie com a imagem vibrante da menina que acabei de conhecer.

- A enfermeira pediátrica nos visitou no dia seguinte, mas também não achou nada de errado com Elin. Mudamos a marca do leite em pó e compramos chupetas novas. Mas nada disso adiantou, e, após mais três dias de choro e gritos constantes, liguei para o clínica pediátrica e lhes disse que precisávamos de ajuda, senão nosso bebê choraria até morrer.

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Marie faz uma cara zangada. A telefonista me informou que bebês choram. Como se eu não soubesse! Mas não desisti, e insisti em falar com um médico. Levei o telefone até o quarto de Elin, para a médica ouvir os gritos capazes de acordar os mortos. A pediatra nos mandou ir até lá imediatamente.

“ ‘Bebês só gritam assim quando sentem dor’, afirmou ela. Nos 15 dias seguintes fomos ao hospital várias vezes, mas eles não encontraram nenhum problema. Fiquei um trapo”.

Só consigo concordar com a cabeça. Meus filhos nunca choraram tanto, mas, se isso tivesse acontecido, eu me sentiria péssima se não conseguisse consolá-los logo. Passar dias sem fim tentando acalmar um bebê deve ter sido muito difícil de suportar.

- Até que não aguentei mais - conta Marie. — Eu me sentia uma mãe inútil. Liguei para meu marido no trabalho e desabafei: “Desisto. Acho que não temos condições de cuidar de um bebê com deficiência grave, Jonas. Teremos de devolvê-la. Ela está chorando sem parar há mais de três semanas.”

“E foi aí que meu firme e amoroso marido disse: ‘Marie, acalme-se um pouco.’ Se ele não estivesse no trabalho, eu o mataria naquela hora. Eu? Me acalmar? Eu não tinha mais forças. ‘Isso não pode continuar’, afirmei, ‘senão desisto. Acho que Elin não se sente bem conosco, Jonas.’ E ele:

‘Então por que não pergunta a ela?’ ‘Perguntar a ela? Você sabe tão bem quanto eu que ela não vê nem ouve nada. Como vou falar com ela?’

“Jonas ficou algum tempo em silêncio, depois continuou: ‘Faça o que estou pedindo. Sente-se com Elin no colo.

Explique-lhe que você quer ajudá-la, mas que ela tem de lhe falar qual é o problema. Ela sabe. Confie nisso’. Agora um sorrisinho brinca nos lábios de Marie.

- Fiz o que Jonas pediu. Sentei-me em minha poltrona favorita na sala de estar, com Elin no colo. Olhei seus olhos vazios e disse: “Elin, você precisa me dizer qual é o problema. Quero ajudar, Elin querida, mas não sei o que fazer. Por favor, me ajude a entender.”

“Então, algo aconteceu. Foi como se ela falasse diretamente dentro do meu cérebro. Olhei-a e disse em voz alta: ‘Tem certeza? É isso mesmo que você quis dizer? É o que você quer?’

“Olhei a sala vazia, com medo que alguém me visse. Achariam, sem dúvida alguma, que eu tinha enlouquecido. Ali estava eu, conversando com um bebê surdo, cego e com deficiência mental grave!

“E foi ai que fiz o que ela me pediu, ou assim pensei. Despi-me até a cintura e deixei Elin só de fralda. Peguei-a no colo com carinho e a segurei junto de meus seios nus. Foi cormo se ela fosse uma espaçonave pequenina, atracando na nave-mãe; então, ela se calou. Ainda estava rígida como um pedaço de pau, mas em silêncio. Comecei a andar. “Passei a andar com ela, pele com pele, dia após dia, minha blusa aberta, desabotoada. Quando deitava Elin para trocar a fralda, ela voltava imediatamente a chorar, mas assim que a pegava no colo outra vez, ela se acalmava. À noite, ela se deitava sobre meu peito na cama.

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“Meus músculos dos braços e do

abdome ficaram fortes. Elin era um novo bebê depois de todas aquelas semanas de choro inconsolável. Mas eu tinha de continuar com ela no colo.

“Cerca de um mês depois, o corpo de Elin se afrouxou um pouquinho, mas os olhos ainda estavam vazios e mortos. Os dias se passaram, e ela ainda ficava aconchegada a meu peito como um canguruzinho. Era pequena para a idade e parecia ter 6 meses, não 9. A cabeça ficava ereta entre meus seios, virada com firmeza para a direita o tempo todo. A razão disso ficou óbvia quando conhecemos toda a sua história.

“Um dia, uns três meses depois, ela começou a mover a cabecinha e olhar ao redor. O olhar não estava mais tão vazio. Passamos a ter esperanças e até a acreditar que Elin conseguiria encontrar o caminho de volta à vida”. Assim que entenderam a necessidade que Elin tinha de proximidade e contato corporal, Jonas e Marie concordaram que ela, Marie,

carregaria e alimentaria Elin o tempo todo. A menina precisava da segurança de se apegar apenas a uma pessoa.

- Fiquei muito tempo sozinha com Elin naqueles meses. Era um pouco como cuidar de um bebê prematuro. Como eu a carregava dentro da blusa aberta, também não saía muito.

“Certo dia, depois de ficar com Elin grudada em meu corpo durante quatro meses, fui trocar sua fralda. Deitei-a no trocador e, como sempre, brinquei com ela e fiz barulhinhos com a boca na sua barriga. Tinha feito isso centenas de vezes. Mas dessa vez ela me deu um sorriso - o primeiro -, e depois gargalhou. Quase morri, porque meu coração ficou a ponto de explodir de alegria.

“Peguei no colo seu corpinho macio e fui correndo ligar para Jonas. Quando ele atendeu, eu disse: ‘Ela voltou à vida, Jonas. Elin encontrou o caminho de volta à vida.’ E então, chorei.”

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Amor à vida Agora há um brilho nos olhos de

Marie, e ela continua a história de Elin: - A partir desse dia, tudo mudou. Ela não precisava mais ficar grudada em mim dia e noite. Já estava abastecida de amor, pronta para viver, e com muita pressa. Você viu como ela é: uma mocinha animada, feliz e conversadeira que fará 9 anos daqui a um mês. Aquela menininha que todo mundo achava que era um caso perdido, sem nenhuma probabilidade de ter vida própria.

Continuo sentada em minha cadeira confortável, lutando contra as lágrimas. Então, Marie diz que gostar ia de me contar o que Elin sofreu antes de ir morar com sua família. Para ela foi importante descobrir.

- Eu precisava saber para contar a Elin algum dia, se ela quiser. Acredito que conhecer a própria história é importante para que ela venha a ter uma vida boa quando adulta, para se tornar uma pessoa íntegra.

“Os primeiros meses da vida de uma criança são muito importantes. Elin é a quinta filha de pais com deficiência mental. Ela sobreviveu graças à sua força interior, e não desistiu, embora muitas vezes sua vida pendesse por um fio.”

Nesse ponto da história de Marie não tenho certeza se quero saber ou se vou suportar conhecer o que Elin sofreu. Mas aí penso que, se Elin conseguiu passar por aquilo e sobreviver, eu sou capaz de escutar a história. Marie prossegue:

- A assistente social começou contando que não sabiam que a mãe esperava o quinto filho. Nem tinham certeza de que a mãe de Elin soubesse.

Então, um dia, lá estava ela: uma menininha que chamaram de Elin. Durante muitos anos, o serviço social tentou fazer a família aceitar ajuda. Mas só dava certo por breves períodos. Não havia dúvida de que as crianças eram maltratadas, mas o serviço social não tinha o direito de coagir os pais. “Elin ficava dias com a fralda suja, sem que ninguém a trocasse. Seu bumbum tinha grandes feridas quando ela chegou ao lar temporário de emergência. Também soubemos que a mãe preparava quatro, cinco mamadeiras e as deixava no berço de Elin, que tinha de se alimentar sozinha. Ela praticamente não saiu do berço durante os primeiros 7 meses de vida.”

O rosto sério de Marie se abre num sorriso.

- Mas ela amava a vida. Foi como se estivesse esperando por nós. Portanto, Lisbeth, não levei Elin dentro da barriga, mas fiquei com ela agarradinha no colo até que satisfizesse sua necessidade de amor, calor e intimidade. Foi quando ela nasceu pela segunda vez.

“Elin” continua bem; terminou o ensino

médio na Suécia e planeja cursar a universidade para ser assistente social e ajudar crianças.

EXTRATO DE FAMILJEHEMSBOKEN

DE LISBETH PIPPING. COM ACRÉSCIMOS DA AUTORA (GOTHIA FÖRLAG, 2011)

Publicada no Brasil in Seleções,

outubro 2015, p. 124-135 com o título: O bebê que nasceu duas vezes.

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3.0 Entendendo o que aconteceu com Elin

Dois textos-reproduzidos parcialmente no item 4.0 deste trabalho – podem sugerir hipóteses explicativas para o que ficou conhecido como o caso de bebê que nasceu duas vezes.

No texto de Daniela Ovadia fica claro que “as necessidades de um bebê são muito mais complexas do que a simples fome...” (Ovadia, Daniela, 2015). O vínculo entre mãe e filho – quando fornecedor de afeto – é tão essencial quanto o leite materno. É o que a obra de Patricia Piccinini parece simbolizar, inclusive com seu nome: BIG MOTHER (Grande Mãe).

Big Mother, 2005

Obras da exposição ComCiência,

da artista australiana Patricia

Piccinini, que apresenta ao

espectador mutações

perturbadoras e, ainda assim,

cheias de humanidade e bondade

no olhar.

Fonte: Exposição ComCiência, S.

Paulo, Centro Cultural, Banco do

Brasil, dezembro/2015 a janeiro/2016.

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A mãe hibrida (entre macaco e gente) indica que o vínculo é fundamental tanto no caso de animais quanto no caso de seres humanos, como relata a jornalista Ovadia. Lembra também que partilhamos 94 a 99% do genoma dos símios.

A história pregressa de Elin mostra que ela foi vitima de VIOLÊNCIA NEGLIGENCIAL, em sua modalidade mais cruel: privação emocional. Sua mãe biológica – devido às próprias limitações – violou sua necessidade de segurança emocional, uma das necessidades básicas de todo bebê.

Em seus primeiros meses de vida, Elin foi privada de Fatores Protetivos Fundamentais para sobreviver e exposta sem piedade a Fatores de Risco.

Fonte: Azevedo, M. Amélia e Guerra, Viviane [2010-2016] - Curso de Difusão: Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes (VDCA), Prevenção / KIT, p.11.

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No entanto Elin não sucumbiu à falta de cuidados adequados. Sobreviveu,

provavelmente por ser uma criança resiliente. Usou o choro como arma a seu favor.

O texto a seguir esclarece o que a ciência entende hoje por RESILIÊNCIA.

Resiliência

- “O conceito de resiliência advem da física e significa a capacidade que um material

possui de voltar ao seu estado normal, depois de sofrer alta tensão.

- A resiliência envolve dois fatores, os fatores de risco e os de proteção. Quando

falamos em fatores de risco estamos nos referindo às adversidades que ocorrem na

vida de todo ser humano: morte de entes queridos, violência, desastres, desemprego,

etc... Já os fatores de proteção são aqueles que ajudam as pessoas no enfrentamento

das adversidades: rede de apoio social, auto estima, etc...

- O conceito de resiliência tem contribuído com o questionamento, a cerca do

determinismo que pressupõe, que todos os indivíduos expostos a situações de risco,

invariavelmente desenvolvem transtornos psicológicos.

- Segundo o psiquiatra britânico Rutter, um dos pioneiros do estudo da resiliência, as

pessoas podem ser resilientes em relação a algumas experiências, porém não

resilientes em relação a outras.

- O resiliente se recupera do trauma sem se tornar vítima: é uma questão de

flexibilidade interna que permite ao indivíduo interagir com sucesso, aprendendo e se

adaptando, como resultado dos confrontos adversos.

(Carneiro, Ana L. L. – Viktor Emil Frankl: Um exemplo de resiliência. Recuperado de:

http://artigos.

netsaber.com.br/resumo_artigo_21596/artigo_sobre_viktor_emil_frankl:... Acesso a

10/10/2003).

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4.0 Para saber mais

4.1 Entre a fome e o afeto

EXEMPLOS DE CRUELDADE COM ANIMAIS E FALTA DE ÉTICA, EXPERIMENTOS DO PESQUISADOR AMERICANO HARRY HARLOW

CONSTATARAM QUE AS NECESSIDADES DE UM BEBÊ SÃO MUITO MAIS COMPLEXAS DO QUE APLACAR A FOME; O ANSEIO DE SE VINCULAR

AFETIVAMENTE A ALGUÉM PODE INDUZIR HUMANOS E MACACOS A ESCOLHAS APARENTEMENTE POUCO LÓGICAS OU ATÉ DESCONFORTÁVEIS

___________________________________________________

Pode-se estudar experimentalmente a natureza do amor e aquilo que o determina a partir dos primeiros dias de vida? Sim — disse na década de 50 o psicólogo americano Harry Harlow. Nascido em Iowa, em 1905, filho de Alonzo Harlow Israel e Mabel Israel, dois membros da pequena burguesia em um estado com vocação essencialmente agrícola, Harlow teve uma vida instável e complexa. O pai, que queria estudar medicina, deu espaço às suas ambições científicas perdidas tornando-se um típico “inventor de fim de semana”. A mãe, descrita pelo próprio pesquisador como bastante fria, ocupava se dos quatro filhos homens. Harry Harlow estudou na Universidade Stanford, no laboratório do psicólogo Lewis Terman, que na época pesquisava o quociente de inteligência (QI) infantil

e o desenvolvimento do que se tornaria o teste Stanford-Binet, uma das ferramentas mais populares para a medição da inteligência. Foi ele quem sugeriu a Harlow abandonar o sobrenome Israel — por evocar desconfortáveis origens judaicas (pelo menos na época) e que o orientou a aceitar um cargo de professor na Universidade do Wisconsin em Madison, cidade para a qual Harlow se mudou em 1930. Para seus estudos, ele deveria observar colônias de ratos, mas na universidade havia apenas macacos. Foi assim que ele entrou no mundo da primatologia, ao qual deve as suas realizações científicas e também a sua reputação duvidosa como experimentador pouco atento à ética e aos direitos dos animais.

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SEM BEIJO DE BOA-NOITE

Naqueles anos era bastante presente a discussão sobre a natureza do vínculo entre mãe e filho e o que o torna tão inevitável e ao mesmo tempo essencial. O psiquiatra e psicanalista britânico John Bowlby, ligado à Organização Mundial da Saúde (OMS), acabara de publicar os resultados de sua investigação sobre crianças abandonadas e crimes

juvenis desde a Segunda Guerra Mundial, uma relação que ajudou a provar a validade de sua teoria do apego e, mais especificamente, a necessidade de um sólido vínculo entre mãe e filho para um bom desenvolvimento da personalidade.

Na mesma época, o psicólogo James Robertson havia feito um breve documentário sobre os efeitos imediatos e devastadores para uma criança de 2 anos por ser separada da mãe. O filme foi baseado nas teorias de um aluno de Freud, o psicanalista René Spitz, que já nos anos 30 havia descrito nas crianças institucionalizadas o que denominou depressão anaclítica ou hospitalismo, uma forma grave de psicose relacionada com a separação da figura afetiva de referência.

Muitos pesquisadores, porém, acreditavam que o vínculo entre mãe e filho decorria da função de nutrição desempenhada por ela, não sendo essencialmente associado ao amor ou a outros sentimentos: seria um instinto animal puro, voltado para satisfazer uma necessidade primordial, como a do alimento. Foram anos difíceis para as crianças aqueles entre 1930 e 1950, marcados pela frieza. O famoso pediatra Benjamin Spock convidava as mães a educar seus filhos desde os primeiros dias, amamentando com base em esquemas rígidos, e não pela demanda dos bebês. O psicólogo comportamental B. F. Skinner propunha uma educação embasada

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nos mecanismos de punição e reforço. John B. Watson, em seu manual sobre como criar filhos, escreve: “Não os estrague. Não lhes dê o beijo de boa-noite. Em vez disso, incline-se levemente e aperte suas mãos antes de apagar a luz”. Sobre tudo isso os resultados das experiências de Harlow com os macacos estavam prestes a cair como um ciclone.

PRIVAÇÃO, TATO E VISÃO

As colônias de macacos da Universidade de Wisconsin são numerosas e vitais e a cada ano nascem muitos macaquinhos que geralmente crescem com a mãe na mesma jaula. Com o objetivo de verificar o que determina o apego dos pequenos, Harlow tirou os recém-nascidos da respectiva mãe e os

colocou em gaiolas em que construiu dois tipos de “mães de aluguel”. A primeira era macia, coberta com panos quentes e aconchegantes, com uma falsa mama no centro, absolutamente vazia. A segunda era, na verdade, uma máquina, um conjunto de caixas metálicas das quais se projetava um tipo de chupeta de onde vinha o leite para os bebês.

Se o determinante do apego é a necessidade de alimento, pensou Harlow, então os macaquinhos passarão mais tempo com a mãe metálica que amamenta.

Inesperadamente, no entanto, isso não ocorreu. Os bebês passaram muito tempo aconchegados entre os “braços” da mãe macia e foram àquela mecânica apenas pelo tempo estritamente necessário para se alimentar. Antes de tudo isso acontecer, no entanto, houve dias de grande sofrimento: as mães naturais, privadas de seus bebês, gritavam desesperadamente. Os recém-nascidos, por sua vez, sozinhos nas gaiolas com as mães de aluguel, manifestavam evidentes sinais de ansiedade, se mexiam incessantemente em busca da mãe natural e somente depois de alguns dias se resignavam e escolhiam a substituta.

Harlow, no entanto, estava exultante: não é o alimento que determina o apego, mas sim o toque. Ë o tato que transmite a necessidade de amor dos bebês e o acolhimento materno. “Não estamos surpresos ao

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descobrir que o contato é uma variável importante e necessária para o vínculo e o amor, mas não esperávamos que suplantasse tão completamente a variável do alimento”, explicou Harlow.

No entanto, o pesquisador acreditava que deveria haver algo mais nesse processo, provavelmente ligado à visão: as mães de aluguel tinham rosto muito estilizado, feito com dois botões e uma linha para a boca. O que aconteceria se os bonecos tivessem a cara de uma macaca de verdade? O segundo experimento de Harlow partiu dessa pergunta. Ele pediu a um colaborador que confeccionasse uma máscara realista de macaca. O filhotinho destinado a esse experimento, no entanto, nasceu antes do tempo: foi colocado na gaiola com a mãe de aluguel sem rosto, esperando até que a máscara ficasse pronta. E, quando finalmente a mãe de pano ganhou feições, os experimentadores registraram uma reação inesperada: o macaquinho entrou em pânico, atacou o novo rosto a ponto de destruí-lo, chegando a deixar o manequim completamente sem cabeça, apenas para reaver sua mãe sem rosto. Ou seja, a visão, o segundo determinante do apego, depende do que o pequeno registrou nos primeiros momentos de vida, a marca que ficou “impressa” para ele, o imprinting.

Passado algum tempo, os experimentos de privação de Harlow começaram a ser considerados, mesmo por seus pares, muito cruéis:

os filmes que ele mesmo gravou falam por si e despertam empatia para com os macaquinhos tão brutalmente arrancados dos cuidados da mãe. No entanto, nesses filmes há também algo de novo e poderoso: a demonstração de que as necessidades de um bebê são muito mais complexas do que a simples fome e que o anseio de se vincular afetivamente tem o poder de induzir a escolhas aparentemente pouco lógicas, como a de um boneco de pano sem nenhuma expressão. ESTUPRADAS E ABANDONADAS

No final dos anos 50, após a euforia dos primeiros anos, os cientistas do laboratório de Harlow começaram a perceber os efeitos nefastos da privação. Os primeiros macaquinhos usados nos experimentos haviam crescido manifestando graves distúrbios psíquicos: apresentavam todas as características de uma psicose autística, incluindo lesões autoinfligidas. Os colegas que visitavam a Universidade de Wisconsin encontravam pobres animais que mordiam os próprios dedos até se mutilar.

Quando Harlow decidiu verificar que tipo de mães se tornaram as macaquinhas submetidas à privação, isso não foi possível, pois não conseguia fazê-las acasalar: elas recusavam qualquer contato com o macho e eram muito agressivas. Depois de várias tentativas, o pesquisador escolheu um caminho cruel, que veio a ser muito contestado:

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amarrou-as para que os machos pudessem agarrá-las e fecundá-las — e, sem rodeios, chamou a prática de “experimento do estupro”. Essas macacas submetidas a mais essa violência revelaram-se mães terríveis: algumas mataram os bebês, outras os maltrataram e outras ainda os ignoraram. Ficou evidente que o apego à mãe substituta inanimada não fora suficiente para criar exemplares adultos equilibrados.

Harlow, em seguida, introduziu um terceiro elemento, após o toque e a visão: o movimento. Repetiu o experimento com mães de aluguel capazes de se balançar e os macacos ficaram um pouco melhor. Com meia hora a mais por dia de contato e brincadeira com uma macaca de verdade, os pequenos cresceram normalmente. Incrivelmente, bastou pouco: meia hora de interação social se mostrou suficiente para evitar graves psicoses.

A notícia se espalhou, sobretudo no âmbito das instituições para a infância como escolas e orfanatos: não basta alimentar, aquecer e manter as crianças limpas para torná-las adultos saudáveis. É preciso tocá-las e, sobretudo, brincar com elas.

“NATUREZA DO AMOR”

Os experimentos de privação materna de Harlow não seriam aceitos hoje por nenhum comitê de ética. O mesmo psicólogo americano que declarou publicamente não ter nenhum sentimento pelos animais que

utilizava, sofreu por toda a vida graves crises de depressão e até mesmo foi submetido a choques elétricos nos últimos anos de sua existência. No entanto, deve-se a ele a ideia de que os mecanismos psicológicos primordiais podem ser estudados com modelos experimentais.

Em 1958, no final do seu discurso de aceitação do cargo de Presidente da Associação Americana de Psicologia, Harlow mostrou os filmes de seus macacos às voltas com mães macias e mães-caixas. O texto que acompanhava o vídeo foi posteriormente publicado no American Psychologist: “As necessidades socioeconômicas do presente e os desafios socioeconômicos do futuro levaram as mulheres americanas a superar, ou ameaçar superar, os homens americanos na indústria. Se esses problemas permanecerem, haverá claramente dificuldade de cuidar dos filhos de forma adequada. É tranquilizador, considerando a tendência social, perceber que o macho americano é fisicamente equipado com tudo que é verdadeiramente necessário para competir com a mulher americana em igualdade de condições em uma atividade essencial: a criação dos filhos. Sabemos que as mulheres das classes trabalhadoras não têm, necessariamente, de ficar em casa por causa de sua natureza de mamífero; e é possível, em um futuro próximo, que a amamentação do bebê não seja mais

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considerada uma necessidade, mas um luxo, uma forma de consumo dispendiosa, talvez limitada às classes altas. Mas, seja qual for o curso que a

história tomará, é reconfortante saber que estamos agora conscientes da natureza do amor”.

Pelos direitos dos animais

Todos os anos, na frente do Primate Research Center, da Universidade de Wisconsin em Madison, no mesmo complexo em que Harlow realizou seus experimentos, grupos americanos de luta pelos direitos dos animais se reúnem para uma cerimônia inspirada no shivá, um ritual judaico de luto, do qual participam dezenas de macacos de pelúcia. O objetivo do Animal Liberation Front é chamar atenção para as pesquisas que usam animais, especialmente primatas.

O movimento pelos direitos dos animais nasceu, em grande parte, por causa dos experimentos de Harlow e, sobretudo, do seu modo cruel de conduzi-los e descrevê-los. O experimento com mães de aluguel pouco aconchegantes, por exemplo, foi batizado de “Lâminas de aço” e a tentativa de fazer as macacas se reproduzirem por coação foi descrita nas revistas científicas como “tortura do estupro”. Atualmente, a pesquisa com macacos, com os quais partilhamos 94% a 99% do genoma, dependendo da espécie, é regulada de forma bastante restritiva, O laboratório de Harlow ainda está ativo, mas felizmente nenhum macaquinho é separado da mãe no nascimento para ser jogado nos braços pouco amorosos de um boneco.

Fonte: Ovadia, Daniela – Entre a fome e o afeto. Mentecérebro, novembro 2015, p. 48-51.

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4.2 CONFORTANDO O BEBÊ INQUIETO

Todos os bebês ocasionalmente choram ou parecem estar um pouco aflitos sem nenhuma razão identificável, em especial durante os primeiros dois meses e meio de vida. Em geral referida como inquietação ou cólica, essa aflição frequentemente atinge seu pico à noite, por razões ainda não entendidas (St. James-Roberts et al., 1996 a, b). Os bebês também choram por razões perfeitamente compreensíveis — quando recebem uma vacina, por exemplo (Lewis e Ramsay, 1999). Mas, não importa porque o bebê está chorando, é provável que a pessoa que está cuidando dele intervenha para reduzir a aflição do bebê.

Às vezes, bebês inquietos podem ser aliviados pelo amamentação. Se acabaram de ser alimentados e continuam a chorar, seus cuidadores frequentemente presumem que suas fraldas estejam molhadas ou que eles estejam com frio. E, na verdade, trocar as fraldas dos bebês e aquecê-los tende a acalmá-los. Entretanto, a pesquisa tem mostrado que o que acalma os bebês é serem segurados no colo e não terem suas fraldas trocadas. Se os bebês forem pegos no colo e suas fraldas molhadas lhes forem recolocadas, eles param de chorar na mesma frequência com que o fazem quando lhes são colocadas fraldas secas (Wolff, 1969).

Annaliese Korner e seus colaboradores descobriram que segurar os bebês junto ao ombro é uma maneira eficiente de fazê-los parar de chorar (Korner e Thoman, 1970). Um benefício adicional quando os bebês são segurados junto ao ombro é que há maior probabilidade de eles se tornarem atentos ao ambiente que os cerca.

Outros métodos que as mães usam para acalmar bebês chorando incluem balançar, dar-lhes palmadinhas leves, aninhá-los e enrolá-los. Enrolar o bebê ou enfaixá-lo fortemente em um lençol ou manto de modo que ele não passa mexer seus braços e pernas frequentemente parece ser uma medida eficiente (Fearon et al., 1997). A manta proporciona aos bebês uma constante estimulação de tato e, restringindo seus movimentos, reduz a quantidade de estímulo que eles recebem desses movimentos.

A conveniência de se dar ao bebê uma mamadeira depende do que há dentro dela. Elliott Blass e sua equipe relatam que dar uma mamadeira com água adoçada ou uma fórmula para bebês aquieta os recém-nascidos, enquanto uma com água pura não o faz (Blass, 1997; Blass e Smith, 1992). Até mesmo dar ao bebê

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uma mamadeira com um líquido amargo pode reduzir o choro. Um mecanismo comum que parece subjacente a técnicas bem-sucedidas usadas pelos cuidadores para reduzir sinais explícitos de aflição do bebê é o fato de elas todas quebrarem o ritmo do choro do bebê.

No entanto, há alguma incerteza sobre o grau em que o interrupção do choro e da inquietação alivia a próprio aflição subjacente (Lewis e Ramsay, 1999). Até mesmo quando os bebês paravam de chorar para sugar em uma mamadeira com uma fórmula para bebês mesmo seu sangue continuava a mostrar um nível elevado de cortisol (um esteróide relacionado ao estresse) durante um período de tempo ampliado.

Entre dois e quatro meses de idade, há um agudo declínio na extensão de tempo que os bebês demoram para se recuperar de crises de aflição, como aquela causada por uma injeção (Barr, 1990). Supõe-se que essa mudança indique o início de uma capacidade do bebê para controlar suas próprias emoções.

Este bebê mongoliano está sendo confortado de duas maneiras populares - sendo enrolado

nos panos tradicionais e sugando uma chupeta.

Fonte: Cole, M. and Cole, Sheila R. [2003] – O desenvolvimento da Criança e do Adolescente, P.

Alegre: Artmed, 4ª edição, p. 172.

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Referências Bibliográficas

Barr, R.G. (1990) – The normal crying curve: what do we really know? Developmental

Medicine and Child Neurology, 32, 356-362.

Blass, E.M. (1997). Infant formula quiets crying human newborns. Journal of

Developmental and Behavioral Pediatric. 18(3), 162-165.

Blass, E.M. & Smith, B.A. (1992). Differential effects of sucrose, fructose, glucose, and

lactose on crying in 1 – to 3-day-old human infants: Qualitative an quantitative

considerations. Developmental Psychology, 28, 804-810.

Fearon, I., Kisilevky, B.S., Hains, S.M.J., Muir D.W., & and others, 91997). Swaddling after

heel-lance: Age-specific effects on behavioral recovery in preterm infants. Journal of

Developmental – Behavioral Pediatrics, 18(4), 222-232.

Korner, A.F., & Thoman, E. (1970). Visual alertness in neonates as evoked by maternal

care. Journal of Experimental Child Psychology, 10, 67-78.

Lewis, M., & Ramsay, D.S. (1999). Effect of maternal soothing on infant stress response.

Child Development, 70(1), 11-20.

St James–Roberts, I., Conroy, S., & Wilshir, K. (1996). Bases for maternal perceptions of

infant crying and colic behavior. Archives of Disease in Childhoad, 75, 375-381.

Wolff, P.H. (1969). The natural history of crying and other vocalizations in infancy. In B.M. Foss (Org.) Determinants of infant behavior (Vol. 4). London: Methuen

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5.0 Para refletir

CRIAR UMA FAMÍLIA

Antes de ter um filho, seria maravilhoso se

as pessoas reservassem um ano para se

observarem profundamente, para praticarem

o diálogo amoroso e a escuta profunda, e

para aprenderem as demais práticas que as

ajudariam a se divertirem ainda mais consigo

mesmas e com seus filhos. Trazer uma nova

vida a este mundo é coisa séria. Reservar um

ano de introspecção e preparação não me

parece um exagero. Médicos e terapeutas

demoram dez anos para conseguirem seus

diplomas. No entanto, qualquer pessoa

pode virar pai sem nenhum treinamento

ou preparação. Os pais devem aprender a

semear felicidade, paz e alegria junto aos

seus novos filhos.

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Nhât-Hanh, Thich, 1926- A arte de amar / Thich Nhat Hanh Tradução Rodrigo Peixoto

1ª edição – Rio de Janeiro: Agir, 2015, p. 62