Violência, gênero e cotidiano

download Violência, gênero e cotidiano

of 13

Transcript of Violência, gênero e cotidiano

  • 8/13/2019 Violncia, gnero e cotidiano

    1/13

    R ESENHAS

    cadernos pagu (35), julho-dezembro de 2010:357-369.

    Violncia, gnero e cotidiano:o trabalho de Veena Das*

    Pedro Paulo Gomes Pereira**

    A antropologia e a teoria feminista tm como espaoprivilegiado de reflexo a interseco gnero, violncia esubjetividade. Algumas abordagens nessa interseco acabam porpensar violncia como algo apenas eventual, olvidando-sefrequentemente de assinalar suas ntimas conexes com ocotidiano. comum tambm, e consubstancial a essa viso de violncia comoextra-ordinrio , pensar o campo que envolve a violncia em oposies rgidas, tais como: vtima e agressor,agncia e opresso existindo mesmo uma habitual associaoentre agncia e transgresso, como se a voz das vtimas spudesse se manifestar transgredindo e enfrentado a Lei. Dessamaneira, como algo espordico e fortuito, que se irrompe aqui ouacol, a violncia no desce ao cotidiano, e o trabalho dirio nalida contra a violncia obnubilado em favor de certo tipo de violncia acidental e de certo tipo herico de resistncia. buscade pensar as relaes entre gnero, violncia e subjetividade paraalm da oposio ordinrio e extra-ordinrio, evitando as ciladasdessa oposio, que a antroploga indiana Veena Das vem sededicando na ltima dcada e, como fruto dessa inquietao,publicou o livro Life and Words: Violence and the Descent into theOrdinary .

    * Resenha do livro D AS, Veena. Life and Words: Violence and the Descent intothe Ordinary . Berkeley, University of California Press, 2007, 281p. Recebida parapublicao em agosto de 2010, aceita em setembro de 2010.** Antroplogo, Professor Adjunto da Universidade Federal de So Paulo Unifesp. [email protected]

  • 8/13/2019 Violncia, gnero e cotidiano

    2/13

    Violncia, gnero e cotidiano

    358

    Veena Das iniciou suas investigaes em Gujarat, um Estadoda ndia que faz fronteira com o Paquisto. Encontrou ali famliasque haviam imigrado ndia refugiadas de diversas regies doPunyab famlias que por dcadas compartilharam com aantroploga suas memrias e seus testemunhos da violncia daPartio (diviso territorial efetuada pela ndia e Paquisto em1947, pouco tempo aps suas independncias poltico-administrativas do imprio britnico). Esse "evento crtico"caracterizou-se pela violncia entre mulumanos, hindus, sikh ediversos grupos tnicos e religiosos que acabou por desalojar14

    milhes de pessoas e vitimar pelo menos um milho. Uma dashistrias recorrentes na Partio foi o rapto e a violao dasmulheres. Das efetuou uma paciente aproximao etnogrfica, naqual os relatos de violao, as reestruturaes familiares, ostestemunhos de violncia se encontravam tambm com umamemria que, simultaneamente, se silenciava sobre o acontecido ese manifestava nas relaes sociais, transformando as relaes deparentesco. Uma dcada aps, em1984, Das se deparou com a violncia contra os Sikh em Delhi, quando do assassinato deIndira Gandhi, ento Primeira-Ministra da ndia. s memrias doseventos violentos de1947, presentes mesmo que sob forma de um"conhecimento venenoso", somavam-se violncias sbitas,dirigidas contra os Sikh, organizadas com a conivncia do Estado,mas praticada por grupos ilegais, geralmente em forma de motins.

    Das vem pesquisando esse contexto desde o incio dadcada de setenta como se pode acompanhar pelos seustrabalhos(1990, 2003, 2005), alguns j resenhados e relativamenteconhecidos no Brasil(Das, 1995; Peirano, 1997). A busca geral daantroploga verificar como se estabelecem as relaes sociaisnesses eventos crticos(1995), de que forma o gnero acionadocomo uma gramtica que autoriza a violncia(2007), qual o papeldesempenhado pelo Estado(Das e Poole, 2004), qual o status das vtimas e sua capacidade de resistncia, em que condies

    ocorrem os testemunhos e o que podem revelar(1995; 2007), entreoutros. Life and Words persiste nessas indagaes, propondo, no

  • 8/13/2019 Violncia, gnero e cotidiano

    3/13

    Pedro Paulo Gomes Pereira

    359

    entanto, um novo e importante foco: averiguar como a violnciadesce ao cotidiano.

    No prefcio ao livro, Stanley Cavell(2007:ix-xiv) sustenta queDas dialoga com Wittgenstein ao fazer sua anlise girar em tornoda dor. De fato, o dilogo existe e Life and Words umacontribuio significativa aos estudos de violncia, sofrimento edor. Das utiliza o conceito de Wittgenstein de formas de vida para averiguar como a violncia expe os limites dos critrios de vida e se apresenta como fracasso da gramtica cultural noestabelecimento e interpretao de formas de vida. Mas a

    importncia desse livro

    aquilo que a autora avana e acentua secomparado a seus trabalhos anteriores reside, vale insistir, nolugar privilegiado atribudo ao cotidiano. Opo que ensejadiversas indagaes: de que forma esses eventos violentos, que seirrompem na vida social, descem ao dia-a-dia? que tipos depersonagens atuam nessa descida? como agem? em quaisgramticas atuam e sob quais jogos? como operam os rumores?como as mulheres, que surgem como os principais atores desseprocesso, reconstroem o cotidiano como forma de resistir violncia?

    *

    O livro dividido em duas partes. A primeira (captulos2 ao5) aborda a Partio da ndia, em1947, e os processos pelos quaisa violncia desse evento crtico construda no dia-a-dia da ndiacontempornea. Nessa parte, tendo como interlocutores as vtimasda Partio, Das demonstra que os sujeitos enfrentam essa violncia no com um acento excessivo numa memriaparalisada, mas como forma de reabitar o cotidiano. Na segundaparte (captulos7 ao 11), Das reflete sobre a violncia coletiva quese seguiu ao assassinato de Indira Gandhi, caracterizada pelosmotins anti-Sikh. A abordagem se centra numa poltica de afetosque se transforma em atos de violncia e conforma "comunidadesde ressentimento".

  • 8/13/2019 Violncia, gnero e cotidiano

    4/13

    Violncia, gnero e cotidiano

    360

    Nas anlises sobre a Partio, uma das questes principaisabordadas pela autora o rapto e a violao das mulheres.Durante a Partio, os Estados da ndia e do Paquisto adotaramnormas que vinculavam a castidade da mulher dignidade danao. O corpo da mulher se transformou, ento, num signo decomunicao entre homens, uma violenta linguagem damasculinidade. As mulheres violadas pelos raptores eram oraassassinadas, ora se suicidavam como condio de reentrar honradas na imaginao da nao; as sobreviventes erammarginalizadas e enfrentavam contnuas e rduas dificuldades

    para refazerem suas vidas. Segundo a autora, as mulheresraptadas circulavam nos debates polticos e permitiam ao Estadoestabelecer umestado de exceo que sinalizava uma alterao dofluxo na troca de mulheres. Esse acontecimento permitiu um contrato social entre homens, fundamentado num contratosexual , que reivindicava os direitos dos homens sobre asmulheres. A violncia infligida s mulheres no se referia apenasao silenciamento de suas vozes, mas transformao dasmulheres em testemunhas da violncia brutal, testemunhassilenciadas, mas que tinham em seus corpos os signos da violncia corpos apropriados numa disputa pela soberania que operavapor uma gramtica violenta de gnero.

    Essas mulheres, cujos corpos so signos dessa gramtica violenta de gnero, expressavam-se numa zona de silncio. Dasutiliza a metfora de "conhecimento venenoso" para falar como asmulheres atuam sobre o sofrimento a elas infligindo. Quandoconversava com as mulheres raptadas e violadas durante aPartio, indagando sobre suas experincias, Das percebeu umazona de silncio, principalmente sobre os fatos mais brutais. Surgiaali uma linguagem metafrica que se valia de figuras de linguagempara escapar de narrar diretamente a violao. As mulheresutilizavam a metfora de uma mulher que bebia veneno e omantinha dentro de si. Esse conhecimento manifestava-se no

    cotidiano e nas formas de perceber a vida, construindo um mapadas relaes sociais, permitindo-lhes operar as experincias

  • 8/13/2019 Violncia, gnero e cotidiano

    5/13

    Pedro Paulo Gomes Pereira

    361

    violentas no cotidiano, na reconstruo do dia-a-dia. Testemunhassilenciosas atuam valendo-se do trabalho do tempo sobre osrelacionamentos familiares, num processo contnuo de reescrita. As mulheres parecem se valer de um tipo especfico decompreenso: o tempo tambm possui agncia, e trabalha. Saberlidar com o tempo significa atuar diretamente na reconstruo dasrelaes e permite reabitar o mundo. O trabalho do tempopossibilita colocar essas mulheres na condio de sujeitos, noprocesso de reconstruo de suas relaes familiares.

    Para falar sobre o trabalho do tempo , Das descreve a

    histria de Manjit, uma das mulheres raptadas durante a Partioe resgatada pelo exrcito indiano. A narrativa acompanha Manjitdo arranjo apressado de seu casamento (devido aos tumultos daPartio e seus efeitos nas famlias), violncia rotineira desferidapor seu marido contra ela e, posteriormente, contra o primognitodo casal; aproxima-se das complexas negociaes do casamentodo filho de Manjit e mostra o deslocamento da violncia de seumarido para a jovem esposa; assinala como essa violncia faz comque se contrariem todas as convenes culturais, forando oprimognito e sua esposa a se mudarem de casa; e finalizaretratando o esposo de Manjit adoecido e necessitando decuidados, o filho de Manjit retornando sua casa, onde aprotagonista da narrativa consegue finalmente tranqilidade para viver ao lado de seus netos. A histria, muito mais rica do quepude descrever, conta-nos como o tempo no algosimplesmente representado, mas um agente que trabalha nasrelaes, permitindo que sejam reinterpretadas e rescritas noembate dos agentes na construo de suas histrias.

    Semelhanas entre essa poderosa histria eO vento , filmede Victor Sjstrm(1928), poderiam ser traadas. No filme, uma jovem sulista vai ao Texas para se casar, mas violentada no trempor um desconhecido. A jovem, entretanto, mata o agressor eenlouquece, em meio tempestade de areia provocada pelo

    vento incessante. Embora ambos abordem a violncia de gnero,a trama da narrativa diferente: Manjit no enlouquece como a

  • 8/13/2019 Violncia, gnero e cotidiano

    6/13

    Violncia, gnero e cotidiano

    362

    jovem Letty do filme, e sabe utilizar o trabalho do tempo a seufavor. Contudo, nas duas narrativas temos a forte presena deoutros protagonistas: na obra de Sjstrm, o vento; no texto deDas, o tempo ambos so agentes que aparecem comopersonagens principais da histria.

    O trabalho do tempo tambm se manifesta nas relaes entrea Partio e os eventos que se sucederam aps1984 (a invaso doTemplo Dourado de Amritsar, o assassinato de Indira Gandhi porseus guardas Sikh, a violncia contra os Sikh). A localizao e aatualizao da violncia contra os Sikh devem ser compreendidas

    como uma mescla de memrias dos sobreviventes da Partio, deuma gramtica de gnero violenta caracterizada por umamasculinidade que auto-proclama sua superioridade sobre umoutro-inferior-feminino ou feminilizado , de um Estado coniventee, de certa forma, fomentador da violncia. As relaes docotidiano processam sentimentos de raiva e dio e permitem, aomesmo tempo, um trabalho de reconstruo da sociabilidade, mastambm possibilitam o incremento desses sentimentos de dio quepodem ser traduzidos em atos de violncia, como o assassinatodos Sikh.

    O passado tem um carter indeterminado. O presente seconverte no lugar onde elementos do passado que foramrejeitados podem assediar o mundo. O acontecimento sobreviveem verses diversas dentro da memria social dos diferentesgrupos sociais. Das sustenta, ento, que o rumor ocupa umaregio da linguagem que pode fazer experimentar acontecimentose, mais do que se apresentar como um ato externo, termina porproduzir no mesmo ato em que enuncia. Os processos detraduo e rotao funcionam para atualizar certas regies dopassado e criam um sentido de continuidade entre osacontecimentos, conectando-os entre si. No caso dosacontecimentos ps-assassinato de Indira Gandhi, Das assinalacomo diversas correntes de rumores se combinaram para criar

    uma sensao de vulnerabilidade entre os hindus e fazer suporque os Sikh seriam desprovidos de subjetividade humana. O

  • 8/13/2019 Violncia, gnero e cotidiano

    7/13

    Pedro Paulo Gomes Pereira

    363

    rumor acabou por fazer os hindus se pensarem como umacoletividade instvel e em perigo o que autorizou a violnciacontra ooutro desprovido de subjetividade.

    O rumor ressalta a dimenso do impessoal na vida social. Osrumores exercem um campo de fora que atrai as pessoas paraagirem de determinada maneira. Trata-se, portanto, de um tipo de violncia que nubla as distines claras entre agressores e vtimas. A impessoalidade e esse campo de foras propiciam atos moraisque no seriam executados em condies diferentes, e pessoascomuns so arrastadas para cometer atrocidades(Das, 2010). O

    rumor, enfim, embaralha e complexifica as categoriasconvencionais que temos para pensar a violncia e se constituinum modelo para complexificarmos as definies de agncia. Afora perlocucionria do rumor mostra a fragilidade do mundo, ecomo as imagens de desconfiana, que podem ser apenas virtuais,tomam uma forma voltil, e a ordem social se v ameaada porum acontecimento crtico.

    A anlise do rumor, alm de focalizar o poder do impessoal(Das 2010:137), apresenta tambm a agncia de determinadosatores que no se encaixam naquilo que geralmente se imaginacomo agncia . Por exemplo, noes como pacincia e paixoso mais vinculadas passividade do que resistncia. A descidaao cotidiano, entretanto, abala nossos modelos pr-estabelecidosde resistncia ou, pelo menos, apresenta outras possibilidades depens-los. Das encontra uma forma de lidar com a violncia quese distancia dos modelos de resistncia herica, tal como ospercebidos no modelo clssico de Antgona. A antroplogaindiana conta, ento, a histria de Asha, uma mulher punjab, que vivia com a famlia de seu esposo na fronteira do Paquisto noperodo da Partio. Depois do conflito, teve que abandonar sua famlia poltica por diversos motivos relacionados suacondio de mulher e de viva. Ela se casa com um comerciantebem estabelecido. Depois de muito tempo e de uma insistente

    ao de Asha e de sua cunhada, termina por reatar os laos comsua famlia poltica. Das contrasta as aes de Asha s de

  • 8/13/2019 Violncia, gnero e cotidiano

    8/13

    Violncia, gnero e cotidiano

    364

    Antgona. Para a antroploga, se a figura de Antgona ofereciauma maneira de pensarmos voz e agncia, a figura de Ashamostra um sujeito genereficado que possui um conhecimento venenoso , mas que constri um trabalho cotidiano de reparao.Diferentemente de Antgona, a agncia no est no herico e noextra-ordinrio , mas na descida ao cotidiano, no preparo dirio daalimentao, na arrumao e organizao dos afazeres, nocuidado e cultivo persistente das relaes familiares. So essasaes cotidianas que possibilitam a criao de um discurso dereparao. Ao justapor o modo menos dramtico de discurso

    utilizado por Asha ao discurso de Antgona, Das sugere quemulheres como Asha ocuparam uma zona diferente ao descer aocotidiano em lugar de ascender a um plano superior (Das, 2007;2010). Se nos dois casos percebemos mulheres como testemunhas no sentido de se encontrarem no marco dos acontecimentos ede serem por eles afetadas , Asha fala da zona do cotidiano,ocupando os signos das feridas que a afetaram e estabelecendouma continuidade no espao da devastao.

    **

    Estes breves comentrios nem de longe do conta da argciados argumentos, da riqueza das histrias descritas e do impecvelestilo de Veena Das. Tentei apenas desenhar em traos largos osmovimentos principais da obra. E, para finalizar, com objetivoapenas de ressaltar alguns aspectos, fao algumas consideraesmais gerais sobre Life and Words .

    Bronislaw Malinowski(1935) revelou em suas confisses deignorncia e falha , no apndice deCoral Gardens and Their

    Magic, que uma fonte geral da inadequao de seu materialconsiste no fato ter sido seduzido pelo dramtico e excepcional eter negligenciado o dia-a-dia (ver Martin,2007). Porm,acompanhar o dia-a-dia de nossos interlocutores demanda tempoe uma pesquisa de campo prolongada (nem sempre possvel, sepensarmos, por exemplo, na realidade brasileira). Sem uma

  • 8/13/2019 Violncia, gnero e cotidiano

    9/13

    Pedro Paulo Gomes Pereira

    365

    interao cuidadosa, por anos a fio, muito do cotidiano se perde eo antroplogo acaba seduzido pelo dramtico e excepcional . Seisso vale mesmo para antroplogos que tiveram a oportunidadede ficar por muito tempo em campo, como Malinowski, h que seconjecturar as dificuldades de, em perodos curtos, se conseguiruma aproximao razovel s prticas cotidianas. Life and Words interessante para refletirmos sobre o assunto. Ao analisar otrabalho de restabelecimento da sociabilidade aps experinciasde ruptura proporcionadas pela violncia, assinala Das apersistncia de zonas de silncio nas quais a emergncia da voz

    feminina se dava nem sempre pelodizer , mas pelomostrar . Omostrar no algo que surge apenas de narrativas ou dereivindicaes, mas no fabrico dirio de modos de viver. Donde anecessidade de uma laboriosa prtica etnogrfica que se voltepara o dia-a-dia. Das parece sugerir que somente um trabalho decampo que saiba manejar o trabalho do tempo conseguir ouviro que se tem a dizer, perceber os dizeres do silncio ecompreender o que os interlocutores desejammostrar . Afinal, aintensidade e persistncia na investigao que possibilitam um vnculo com os interlocutores.

    Todavia, no estranha histria da antropologia a figurado nativo convertido simplesmente num vetor de informaes (oinformante), destitudo de nome e sem traos que o singularize. Adespeito desse movimento, e justamente pela intensidade doempreendimento etnogrfico que, em maior ou menor grau,propicia vnculos com os interlocutores, alguns nomes ficarammarcados: Ahuia de Malinowski, Tuhami de Crapanzano,Ogotemmeli de Griaule, Muchona de Victor Turner, Pa Fenuatarade Raymond Firth, Adamu Jenitongo de Stoller. Das nosapresenta outros personagens. No decorrer do livro, a antroplogase envolve e interpelada pelos seus interlocutores, enredando-seno drama de suas vidas, estabelecendo vnculos que, em algunscasos, perduram por dcadas. Certamente as mulheres desses

    eventos crticos narrados por Das, como Manjit e Asha, ficaro nahistria da disciplina. Ademais, a antroploga lhes confere um

  • 8/13/2019 Violncia, gnero e cotidiano

    10/13

    Violncia, gnero e cotidiano

    366

    lugar privilegiado, reivindicando uma equiparao s heronas dastragdias gregas: Asha igualada no menos que Antgona.

    Em Life and Words, as protagonistas so os interlocutoras daantroploga, que no apenas narram suas histrias, mas formulamsofisticadas teorias sobre tempo, dor, sofrimento, adoecer; teoriassobre formas de relao. A antroploga procura alar a teoria deseus interlocutores ou, para falar em termos mais filosficos, alarsuas prticas de conhecimento. O que no significa um abandonodas discusses tericas e dos conceitos antropolgicos; antes,trata-se de intensificar as conexes entre os saberes. Da, por

    exemplo, o intenso dilogo estabelecido com Wittgenstein (cf.Das, 1998) dilogo ancorado numa longa experinciaetnogrfica, e numa lida cuidadosa com as teorias, sejam elas demulheres punjab ou de filsofos austracos. Apesar desse cuidado,teo duas pequenas observaes.

    1) Das lembra que a relao da formao do sujeito e aexperincia de subjugao foi compreendida por Foucault, em suaanlise da disciplina do corpo, por intermdio da metfora dapriso: a alma a priso do corpo . Entretanto, ressalta aantroploga, ao tentar compreender as complexas conexesexistentes entre violncia e relaes de parentesco, percebeu queos modelos de poder-resistncia ou a metfora da priso soexcessivamente grosseiros como ferramentas para entender o delicado trabalho de criao do sujeito (2007:78). Pelo contrrio,continua a autora, ao explorar a profundidade temporalpropiciada pelos momentos originrios de violncia, e o carterfundamental da vida cotidiana, em vez de utilizarmos metforasde priso para significar as relaes entre critrios externos eestados internos (corpo e alma), devemos pensar que eles serecobrem um ao outro, compreendidos sempre em unio. Aressalva que fao reconhecendo, evidentemente, a importnciado achado etnogrfico de Das que o autor deVigiar e Punir tambm autor de Histria da Sexualidade , e as exegeses da obra

    de Foucault vm revelando em sua trajetria uma complexificaocrescente do enfoque sobre a formao do sujeito e da

  • 8/13/2019 Violncia, gnero e cotidiano

    11/13

    Pedro Paulo Gomes Pereira

    367

    subjetivao(ver Goldman, 1999). Qualquer anlise que seconcentre apenas na abordagem deVigiar e Punir sernecessariamente parcial, no alcanado a complexidade daabordagem de Foucault. Judith Butler(1997), por exemplo, emsua obra sobre a vida psquica do poder (ou seja, sobre asrelaes entre sujeio e tornar-se sujeito ), revela um Foucaultatento s sutilezas daquilo que Das denominou de delicadotrabalho de criao do sujeito . A busca de compreender asprticas de conhecimento de nossos interlocutores no nosautoriza a simplificar as teorias que manejamos, quaisquer que

    sejam, e mesmo sob a justificativa de priorizar o conhecimentonativo. Ainda que se argumente que a utilizao de Foucault emDas foi pontual, h que se indagar sobre o porqu de tal uso, jque o autor poderia atuar positivamente no desenvolvimento daautora e no apenas como algo tosco ( crude ) a ser evitado.

    2) Outra questo que me intriga na composio geral de Lifeand Words que a autora, talvez pela inrcia constitutiva dalinguagem, parece demasiadamente colada aos significantes homem e mulher na sua concepo de gnero. Das estrefletindo sobre um quadro em que a gramtica de gnero parecegirar quase exclusivamente em torno da heterossexualidade. Mas,ainda assim, sinto a falta de uma maior problematizao sobre aconcepo de gnero e da violncia da prpria gramtica culturalheteronormativa. Quando Butler(1990) redefiniu gnero como

    performance , interrogou-se sobre a produo e reproduo dosistema sexo/gnero normativo e binrio, concluindo que, damesma maneira que sexo e sexualidade no so a expresso de siou de uma identidade, mas o efeito do discurso sobre o sexo umdispositivo disciplinar, portanto , o gnero tambm no umaexpresso do sexo. Se a feminilidade no deve ser necessria enaturalmente a construo cultural de um corpo feminino; se amasculinidade no deve ser necessria e naturalmente aconstruo cultural do corpo masculino; se a masculinidade no

    colada aos homens e se no privilgio dos homensbiologicamente definidos; porque o sexo no limita o gnero, e

  • 8/13/2019 Violncia, gnero e cotidiano

    12/13

    Violncia, gnero e cotidiano

    368

    o gnero pode exceder os limites do binarismo sexo feminino/sexomasculino. Todo gnero uma performance de gnero, ou seja,uma pardia sem original. Sem querer me estender nessa questo,cabe aqui uma indagao sobre a pressuposio de gnero nosmarcos estritamente heterossexuais ou numa gramtica em tornode significantes hetero e tambm de uma possvelhomogeneizao das mulheres que acabaria por criar umuniversalismo mascarado. Sobre esse ltimo ponto, quem sabeno seja mais interessante perceber as mulheres no como umgrupo explorado, mas uma coalizo poltica a construir, e que no

    se define unicamente pelo gnero ou pela opresso de gnero

    posio esta, inclusive, que se aproxima ao prprio movimentoterico empreendido por Das. Essa questo precisa ser mais bemobservada. De qualquer forma, um dilogo mais intenso comtericas como Judith Butler, Teresa de Lauretis e MarilynStrathern numa discusso conceitual da categoria gnero, poderser frutfero para futuros trabalhos de Veena Das.

    Independentemente dessas observaes, Life and Words consegue, de forma convincente, abordar a interseco gnero, violncia e subjetividade, demonstrando que a vida cotidiana ,para repetir Stanley Cavell, ao mesmo tempo, umabusca e uma

    pesquisa [a quest and an inquest ]. Veena Das destaca, compersistncia e delicadeza, os ensinamentos do poeta Rainer MariaRilke ao aprendiz Franz Kappus, em famosa missiva que acaboupor ser publicada emCartas a um jovem poeta : "Se o cotidianolhe parece pobre, no o acuse: acuse-se a si prprio de no sermuito poeta para extrair as suas riquezas".

    Referncias bibliogrficas

    BUTLER, Judith. The psychic life of power: theories in subjection .California, Stanford University Press, 1997.

    __________. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity .New York, Routledge, 1990.

  • 8/13/2019 Violncia, gnero e cotidiano

    13/13

    Pedro Paulo Gomes Pereira

    369

    C AVELL, Stanley. Foreword. In: D AS, Veena. Life and Words. Violenceand the descent into the ordinary . Berkeley, University of CaliforniaPress, 2007, pp.ix-xiv.

    D AS, Veena. Listening to Voices. An interview with Veena Das. (interviewby DIFRUSCIA, Kim Turcot). Alterits, vol. 7, n 1, 2010, pp.136-145.

    __________. Life and Words. Violence and the descent into the ordinary . Berkeley, University of California Press, 2007.

    __________. Sexual violence, discursive formations and the state. In:CORONIL, F. e SKURSKI, J. (eds.)States of Violence. Michigan, Univ.Mich. Press, 2005, pp.323-425.

    __________. Trauma and testimony. Implications for political community. Anthropological Theory , vol. 3, n 3, 2003, pp.293-307.

    __________. Wittgenstein and anthropology. Annual Review of Anthropology, vol. 27, 1998, pp.171-195.

    __________.Critical events. An anthropological perspective oncontemporary India. Delhi, Oxford University Press. 1995.

    __________. Our Work to Cry: Your Work to Listen. In: D AS, Veena.(ed.) Mirrors of Violence: Communities, Riots and Survivors in South

    Asia. Delhi, Oxford University Press, 1990, pp.345-99.__________ e POOLE, Deborah. (eds.) Anthropology in the margins of the

    State. New Delhi, Oxford University Press. 2004.GOLDMAN, Mrcio. Objetificao e subjetificao no ltimo Foucault. In:

    Alguma Antropologia . Relume Dumar, Rio de Janeiro, pp.65-76.M ALINOWSKI, Bronislaw.Coral Gardens and Their Magic: a Study of the

    Methods of Tilling the Soiland of Agricultural Rites in the Trobriand Islands. New York, American Book, 1935.

    M ARTIN, Emily. Violence, language and everyday life. Americanethnologist, vol. 34, n 4, pp.741-745.

    PEIRANO, Mariza. Onde est a antropologia. Mana, vol. 3, n 2, 1997,pp.67-102.