VIOLÊNCIAS E CONFLITOS INTERSUBJETIVOS NO BRASIL

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    VIOLÊNCIAS E CONFLITOS INTERSUBJETIVOS NO BRASILCONTEMPORÂNEO

     Arthur Trindade M. Costa*

    Neste trabalho, discutimos a violência interpessoal no Brasil, cuja consequência mais visível éo aumento da mortalidade por homicídios. Sugerimos que a chave para entender esse fenôme-no violento é a compreensão do contexto nos quais essas mortes ocorreram, ou seja, o tipo deconflito, seu significado para as partes envolvidas, seu objeto e sua estruturação. Finalmente,sustentamos que, embora dramática, a violência intersubjetiva tem recebido pouca atenção dasautoridades brasileiras.

    PALAVRAS-CHAVE: violência, conflitos intersubjetivos, homicídios, Brasil.

    No Brasil, a violência tem feito parte dahistória e do cotidiano dos cidadãos, especialmentedos grupos social e politicamente desprivilegiados,tais como mulheres, crianças, jovens, idosos, gru-pos étnicos, trabalhadores rurais e homossexu-ais. A violência, no entanto, ganhou grande visi-bilidade nas últimas décadas, devido ao enormecrescimento da mortalidade por homicídio e dacriminalidade nas áreas urbanas.

    Três grandes tendências podem ser ob-servadas, no contexto contemporâneo: a) o au-mento dos crimes contra o patrimônio, particu-larmente os roubos, furtos e extorsão mediante

    sequestro; b) a emergência de novas dinâmicasrelacionadas à criminalidade organizada, em es-pecial, o tráfico internacional de drogas; e c) oaumento dos conflitos intersubjetivos violentos.

    Certamente, a consequência mais visívelda violência é o acentuado crescimento da mor-

    talidade violenta, especialmente nas grandes re-giões metropolitanas do país. Esse crescimentopode ser verificado pelo aumento das taxas demortalidade por homicídio, que saltou de 11,4homicídios por 100 mil habitantes em 1980 para23,6 em 2005, representando um aumento de110%. Pode-se afirmar que os homicídios sãoumas das principais causas de mortalidade dapopulação brasileira.

    Essas mortes não se distribuem de formaigual na sociedade. De uma forma geral, os bair-ros com atendimento deficiente de serviços pú-blicos, com precária infraestrutura urbana, bai-

    xa oferta de empregos, serviços e lazer são fla-grantemente os mais afetados pela violência le-tal. No que se refere à distribuição etária da mor-talidade por homicídios, os dados revelam que éa população jovem masculina a mais atingida poresse tipo de violência.

     Entretanto, continuam constituindo umagrande incógnita os fatores que explicam o es-pantoso crescimento da mortalidade por homi-cídios nas últimas décadas. Análises mais agre-gadas, que procuram relacionar indicadores

    * Doutor em Sociologia pela Universidade da Brasília. Pro-fessor do Departamento de Sociologia da Universidade deBrasília. Pesquisador 2 do CNPq.Departamento de Sociologia. Universidade de Brasília –Campus Universitário Darcy Ribeiro. Cep: 70910-900.Brasília – DF – Brasil. [email protected]

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    socioeconômicos com níveis de mortalidade porhomicídio, não têm sido capazes de explicar o

    fenômeno. As pesquisas não evidenciam umarelação entre as tendências dos níveis de escola-ridade, de desemprego ou de desigualdade soci-al e econômica, nas últimas décadas, com os ní-veis crescentes de violência (Cerqueira; Lobão2002; Sapori; Wanderley 2001; Beato, 1998).

    As estatísticas sobre homicídios refletemapenas algumas das consequências de uma varie-dade enorme de conflitos sociais. Portanto, a lei-tura dos indicadores não pode dar lugar à ideiasimplificadora de reduzir o fenômeno da violên-

    cia a um único tipo de comportamento social.Por ser polissêmica e multifacetada, a noção deviolência abrange uma série de comportamentossociais cujas explicações repousam em diferentescausas, o que implica que os estudos sobre o fe-nômeno considerem os diferentes tipos de confli-tos sociais e as formas de administrá-los.

    Neste trabalho, concentramos a reflexãosobre os conflitos intersubjetivos violentos, cujaconsequência mais visível é o aumento da mor-talidade por homicídios. Argumentamos que achave para entender o fenômeno da violência éa compreensão do contexto no qual essas mor-tes ocorreram, ou seja, o tipo de conflito, seusignificado para as partes envolvidas, seu objetoe sua estruturação. Finalmente, sustentamos que,das três tendências descritas anteriormente, aviolência intersubjetiva é a mais dramática e aque tem recebido menos atenção das autorida-des brasileiras. Nas seções seguintes, trataremoscada um desses itens.

    AS TRÊS TENDÊNCIAS DE VIOLÊNCIA

    Embora possam guardar algum tipo de re-lação, o aumento dos crimes contra o patrimônio,o surgimento de novas tendências dacriminalidade organizada e o aumento dos confli-tos intersubjetivos devem ser analisados de for-ma separada, pois apresentam objetos próprios,dinâmicas diferentes e consequências específicas.

    Aqui nos parece útil distinguir os aspec-tos instrumentais e expressivos da ação huma-

    na. Os instrumentais referem-se aos aspectosobjetivos, como a relação entre os meios e osfins da ação. Já os aspectos expressivos dizemrespeito aqui aos elementos subjetivos da açãohumana, ou seja, ao significado e sentido quelhes conferimos.

    Obviamente, toda ação humana envolveambos os aspectos, os instrumentais e os expres-sivos. O que varia é a ênfase que conferimos acada um deles. Essa distinção analítica pode serútil para o estudo da violência. Nos assaltos e

    roubos a estabelecimentos comerciais, bem comonos conflitos relacionados ao negócio do crime,os aspectos instrumentais dessas ações são bas-tante evidentes. Já nos casos da violênciaintersubjetiva, a dimensão cultural e expressivaganha maior destaque.

    OS CRIMES CONTRA O PATRIMÔNIO

    Embora tenha aumentado o número defurtos e roubos a residências, o comércio conti-nua sendo o principal alvo dos crimes contra opatrimônio. Dentre as diversas teorias que bus-cam explicar as motivações para tais crimes, cer-tamente a proposta de Robert Merton (1959) é amais influente. Para esse sociólogo estadunidense,a desigualdade social e a falta de recursos mate-riais para manter os padrões de consumo dita-dos pela sociedade estariam por detrás desse tipode comportamento. Dessa forma, os crimes con-

    tra o patrimônio seriam meios ilegítimos para arealização de valores culturalmente compartilha-dos. Entretanto, trata-se de saber se esses gru-pos sociais (normalmente de jovens) buscam sim-plesmente se conformar aos valores já existen-tes, ou se, na verdade, o que está em questão é aconstituição de novos valores.

    Se, por um lado, as motivações desse tipode criminalidade ainda são objeto de debate, suasconsequências já são bastante conhecidas. Sabe-mos que os crimes contra o patrimônio não se

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    distribuem de forma homogênea pelo espaço ur-bano. Ao contrário, existe uma concentração es-

    pacial desse tipo de crime, influenciada pela dis-tribuição espacial das condições socioeconômicase demográficas das áreas urbanas. Assim, algunslocais concentram uma proporção grande doscrimes contra o patrimônio.

    Os grupos sociais mais afetados por essetipo de criminalidade têm adotado diversas es-tratégias para lidar com tal problema. Aumen-tam as demandas sobre as instituições policiais:cobram-se a contratação de maiores efetivos po-liciais, a aquisição de equipamentos mais mo-

    dernos e a adoção de programas especiais depoliciamento das áreas comerciais e residenciais.Também tem aumentado o crescimento e a so-fisticação de sistemas de vigilância privada.Acompanhando a tendência mundial, a socieda-de brasileira tem se deparado com o crescimen-to do número de firmas de vigilância privada.Devido às características do aparato legal e bu-rocrático brasileiro, boa parte dessas firmas éirregular e está submetida a fiscalização precá-ria. Com relação às áreas residenciais, observa-mos, nos últimos 20 anos, o surgimento de no-vos padrões de moradia, condomínios verticaise horizontais, cuja característica comum é acentralidade da preocupação com a segurançade seus moradores. Esses condomínios são ver-dadeiros “enclaves fortificados” (Caldeira, 2000).

    Entretanto, as áreas comerciais dos bair-ros de classe alta e média não são as únicas afe-tadas por esse tipo de criminalidade. Nossos es-tudos mostram que outras regiões menos nobres

    também concentram crimes contra o patrimônio.As principais vítimas são pequenos comercian-tes, como donos de bares, açougues, padariasetc. Nesses casos, as vítimas dificilmente con-tam com a atenção das unidades policiais etampouco podem dispor de um sofisticado e caroaparato de segurança privada. Nessas áreas, sãofrequentes os relatos sobre a atuação de gruposde extermínio e justiceiros. O vigilantismo, comoé conhecido esse fenômeno, tem sido emprega-do para conter o crime e controlar determina-

    dos grupos sociais, como prostitutas, homosse-xuais e grupos indígenas (Rosenbaum; Sederberg

    1976). Os grupos de justiceiros atuam à margemda lei, e frequentemente são integrados por poli-ciais e contam, via de regra, com apoio financei-ro de comerciantes.

    Uma consequência observável do cresci-mento da criminalidade contra o patrimônio é oendurecimento da legislação penal e processualpenal. Aumentaram-se as penas de alguns cri-mes e reduziram-se suas garantias processuais.O resultado disso é o acentuado aumento da po-pulação prisional brasileira. O fenômeno não

    acontece exclusivamente no Brasil, mas aqui ga-nha cores dramáticas, quando constatamos a pre-cariedade do atendimento jurídico às pessoas debaixa renda e as péssimas condições dos estabe-lecimentos penitenciários. Apesar das suas gra-ves consequências sociais, o aumento dacriminalidade contra o patrimônio responde poruma pequena parcela do número de homicídios.De uma forma geral, os latrocínios respondempor uma pequena proporção do número total dehomicídios. No Distrito Federal, por exemplo,os latrocínios responderam por menos de 8%das mortes por homicídios ocorridas entre 2003e 2007 (Costa, 2007).

    A noção de crime organizado esconde,mais do que revela, as nuanças das práticas soci-ais a ela associadas (Misse, 2007). Ela se refereao comércio formal ou informal de produtos le-gais ou ilegais. O contrabando envolve geralmenteo comércio irregular de produtos legais. Já a ven-da de produtos piratas implica o comércio in-

    formal de produtos ilegais. O narcotráfico estárelacionado à comercialização ilegal de produtostambém ilegais. Grupos se organizam para pro-duzir, adquirir ou comercializar tais produtos.Qualquer que seja a modalidade, o crime organi-zado, fundamentalmente, se refere a um negó-cio, o crime-negócio (Zaluar 2004).

    Com relação ao crime organizado, chamaa atenção, nas últimas décadas, o surgimento denovas dinâmicas relacionadas ao tráfico de dro-gas ilícitas. Embora seja um importante setor da

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    economia global, o tráfico de drogas opera a partirde organizações criminosas fundadas em bases

    locais nas quais os aspectos culturais desempe-nham papel fundamental.Outro aspecto relevante do tráfico de dro-

    gas é a sua flexibilidade e versatilidade. Seu modus operandi é a formação de redes em ní-veis locais, nacionais e internacionais, como des-tacou Manuel Castels (1999). No caso brasileiro,em especial nos últimos anos, pudemos perce-ber a melhoria da capacidade de coordenação earticulação das ações de diferentes facções cri-minosas (novas ou preexistentes). Isso se deve,

    em parte, às características do sistema peniten-ciário brasileiro. Há inúmeros relatos sobre comoo convívio nas prisões entre membros de gruposcriminosos deu origem às redes de crime organi-zado (Adorno; Salla, 2007).

    Mais recentemente, temos assistido a açõesrealizadas por esses grupos criminosos contraestabelecimentos policiais e outros órgãos daadministração pública. Isso tem chamado a aten-ção das autoridades políticas, das lideranças po-liciais, dos militares, como tem contribuído bas-tante para aumentar o sentimento de inseguran-ça da população em geral. Em função disso, crescea pressão para que as forças de repressão inten-sifiquem suas atividades e aumenta também apressão para que se estabeleçam penas mais du-ras contra esse tipo de crime.

    Entretanto, os efeitos desse tipo de crimeorganizado não desafiam apenas a autoridade dosagentes estatais. Sua mais grave consequência ésentida pelas pessoas que residem nas áreas onde

    tais grupos criminosos se instalam. A expansãodo comércio ilegal de drogas encontrou condi-ções favoráveis nas periferias e favelas dos gran-des centros urbanos brasileiros. No Rio de Ja-neiro, as características das favelas – alta mobili-dade interna, fácil controle das vias de acesso eausência do Estado – proporcionaram condiçõesfavoráveis para que o varejo do comércio de dro-gas fosse deslocado para o seu interior.

    No plano comunitário, a presença do co-mércio de varejo de drogas, cuja principal ex-

    pressão é a “boca de fumo”, veio a deteriorarainda mais o já frágil tecido social.1 Em alguns

    lugares, as quadrilhas organizadas transforma-ram-se no poder central das favelas. Moradoresincômodos foram expulsos ou mortos, bem comoas associações de moradores foram esvaziadas eperderam substancialmente participação no de-bate político. De modo geral, a presença dessasquadrilhas alterou profundamente toda a redede sociabilidades locais, das famílias aos blocosde samba (Arias, 2007).

    No plano individual, as quadrilhas denarcotraficantes exercem uma grande influên-

    cia sobre a juventude pobre das favelas. Opertencimento a um grupo criminoso e a possede uma arma operam como mecanismos de re-conhecimento num cenário de exclusão einvisibilidade social. Nesse contexto, a violênciadeixa de ser simplesmente uma estratégia de açãoe passa a ser o próprio instrumento de expres-são social. Esse tipo de violência expressiva põeem cena não uma juventude miserável, mas umajuventude pobre que aspira ao reconhecimentosocial (Wieviorka 1997; Peralva 1997, 2000).

    Algumas pesquisas têm destacado a rela-ção entre a criminalidade organizada e a morta-lidade violenta, em especial o tráfico de drogas(Zaluar 1999; Beato et al, 2001). A probabilida-de de morte violenta tende a aumentar quandose verifica algum tipo de envolvimento com es-sas atividades. Entretanto, parte significativa doshomicídios registrados no Brasil pode ser com-putada às violências intersubjetivas, não neces-sariamente relacionadas ao tráfico de drogas ou

    aos crimes contra o patrimônio. Analisando asocorrências policiais da região metropolitana deSão Paulo, Renato Lima (2002) constatou que92,4% dos homicídios estão relacionados a con-flitos sociais que, muitas vezes, surgem comopequenas controvérsias e acabam por desembo-car em um ato violento.

    1 Para um apanhado geral sobre os efeitos das quadrilhas denarcotraficantes nas comunidades carentes, ver ZuenirVentura, Cidade Partida (1994) e Paulo Lins, Cidade deDeus (1997).

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    A VIOLÊNCIA RESULTANTE DE CONFLITOSINTERSUBJETIVOS

    De uma forma geral, os estudos sobre aviolência, articulados à teoria do Estado, tendema encobrir aquelas expressões de violência queocorrem nas relações cotidianas entre as pessoascomuns que mantêm algum tipo de vínculo –vicinal, de amizade, amoroso, afetivo, familiar,entre outros –, que passam a ser denominadascomo constituintes da violência interpessoal.

    Esse tipo de violência, historicamente, fazparte do cotidiano de boa parte da sociedade bra-

    sileira. Trata-se de conflitos entre pessoas conhe-cidas, cujo resultado muitas vezes é a morte deuma das partes. Essas situações compreendemconflitos entre cônjuges, parentes, amigos, vizi-nhos e colegas de trabalho. Resultam geralmentede conflitos cotidianos, nos quais os atores sociaisenvolvidos são incapazes de administrá-los de for-ma a não produzir aquelas mortes.

    A noção de conflito intersubjetivo aponta,portanto, para o contexto relacional do qualemerge a discórdia. Ele inclui aqueles que ocor-rem em espaços de relativa intimidade, como osdomésticos e conjugais e, para além deles, osque acontecem nas relações de vizinhança, nosespaços de lazer (especialmente nos bares), detrabalho, de negócios, e mesmo de culto.

    A noção de conflito intersubjetivo é útilpara distinguir os antagonismos abrigados nasrelações cotidianas daqueles que surgem de re-lações contingentes nas quais os objetivos da açãosão claramente definidos (Costa; Bandeira, 2007).

    O SENTIDO DA VIOLÊNCIA

    Nos estudos e pesquisas sobre a violência,existe uma concepção dominante a respeito dapacificação das sociedades modernas, bem comosobre a crescente monopolização da força físicapor parte do Estado. Nessas condições, os indi-víduos estariam compelidos a reprimir seus im-pulsos violentos. Dessa forma, há uma tendên-

    cia a se buscar entender a violência em termosracionais e estratégicos. As questões relativas ao

    que essa violência significa para seus autores evítimas (ou o que ela expressa) têm sido tratadasde forma secundária (Wieviorka, 2004).

    Desse modo, o comportamento violento évisto como uma estratégia ilegítima para alcan-çar determinados objetivos. Por outro lado,estamos inclinados a pensar que os casos em quetais estratégias e objetivos não são claramentedefinidos como situações anormais ou irracio-nais, a violência está desprovida de sentido. Issotalvez explique por que frequentemente nos re-

    ferimos a uma “violência sem sentido”, quandonão conseguimos reconhecer facilmente os mei-os e fins daquela ação.

    Entretanto, ao invés de definir a violênciaa priori  como irracional, nós deveríamosconsiderá-la como expressão de uma forma deinteração. Uma forma de ação que foi histórica esocialmente construída e que é capaz de dar sen-tido e significado à violência. Qualificar a vio-lência como irracional, sem sentido ou significa-do, apenas reflete uma tendência de analisar oscasos de violência dissociados do seu contexto.De fato, sem o conhecimento das suas circuns-tâncias e sem qualquer descrição do seu contex-to, é provável que muitas manifestações de vio-lência sejam consideradas “irracionais” e “semsentido”. Ironicamente, esse tipo de abordagemfecha as portas para os estudos exatamente ondeeles deveriam começar: a análise da forma, dosignificado e do sentido da violência (Blok, 2001).

    Os limites dessa visão instrumental são

    mais grave quando sabemos que diversas for-mas de violência, rotuladas com irracionais ousem sentido, de fato são também orientadas se-gundo normas, protocolos e prescrições especí-ficas. Noutras palavras, são estruturadas eritualizadas. Sabemos, por exemplo, que muitoscasos de homicídios resultam de insultos. Tam-bém sabemos que o significado do insulto variade acordo com o contexto social e cultural, oque define, em parte, por que algumas pessoassão mais sensíveis aos insultos do que outras.

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    Quando realizados em público, os insultos po-dem incluir formas de violência verbal e agres-

    são física. Isso é particularmente válido para aque-les grupos que desenvolveram forte senso dehonra. Nesses grupos, a forma mais recorrentede a figura masculina preservar a sua honra eresguardar a sua reputação é o uso da violência.

    Ao invés de tomar a violência como umobjeto de pesquisa propriamente dito, considera-mos, portanto, neste artigo, seus diversos senti-dos e os contextos nos quais ela ocorre. Essas aná-lises sociológicas e antropológicas sobre o temaparecem promissoras quando concentram sua

    atenção nos conflitos sociais intersubjetivos, es-pecialmente naqueles que resultam em violência.

    CONFLITO SOCIAL, OBJETO E ESTRUTURA

    Para alguns autores, o conflito social apa-rece como algo provisório, circunscrito a algu-mas situações especiais e de caráter transitório.Karl Marx, por exemplo, analisou o conflito so-cial moderno a partir das determinações econô-micas das relações sociais. Não há dúvida de quea posse e a distribuição desigual dos meios deprodução produziram um tipo muito singularde conflito social, a luta de classes. Segundo Marx,a eliminação da propriedade privada levaria aofim das dissensões sociais.

    Entretanto, não foi exatamente isso que severificou ao longo do século XX. Nas sociedadespós-industriais, temos assistido ao declínio da in-tensidade e a uma melhor estruturação de antigos

    conflitos sociais, em especial os conflitosinterpessoais e os conflitos trabalhistas. Por outrolado, surgiram novos conflitos étnicos e religiososde grande intensidade e baixo grau de estruturação.

    Para Émile Durkheim, o surgimento do con-flito social moderno seria consequência da fragili-dade dos mecanismos de integração social. Astransformações sociais e aquelas acompanhadaspela substituição de um tipo de “solidariedademecânica” por outra, a “solidariedade orgânica”,estariam por trás dos novos conflitos sociais. À

    medida que as sociedades modernas desenvolves-sem novos mecanismos de integração social, os

    conflitos sociais tenderiam a desaparecer.De fato, o surgimento de novos conflitossociais pode gerar também o estabelecimento deoutros mecanismos de integração. Entretanto,nem todos os conflitos desempenham essa fun-ção integradora, mas apenas aqueles cujos obje-tivos, valores e interesses em disputa não con-tradizem os pressupostos básicos nos quais a re-lação social está fundada. Por outro lado, a au-sência de conflito não pode ser tomada comoindicador de estabilidade da estrutura social.

    Esses dois autores, fundadores da Sociolo-gia (Marx e Durkheim), acabaram por limitar asreflexões sobre os conflitos sociais, posto que ostomaram como exceção, e não como regra, comotransitórios, e não como constantes. Nas palavrasde Durkheim, como patológicos. Isso levou a umavisão limitada do conflito social, incapaz de lidarcom a enorme variedade de suas causas, bem comde suas formas de manifestação.

    Além disso, ao basearam suas análises nasestruturas sociais, ambos os autores desconsiderarema intencionalidade dos atores envolvidos nos uni-versos microssociais. Tanto para Marx quanto paraDurkheim, o conflito é analisado a partir de con-tradições macroestruturais, resultantes da distri-buição desigual da propriedade privada, para oprimeiro, e do processo de diferenciação inerenteà nova divisão social do trabalho, para o segundo.Não restam dúvidas de que essas mudanças es-truturais determinaram o surgimento de novosconflitos sociais e o acirramento dos já existentes.

    Entretanto, ao desconsiderar a importância dos ato-res sociais nos espaços microssociais, os dois auto-res deixaram de lado aspectos fundamentais parao entendimento dos conflitos sociais como expres-são da intersubjetividade, além das característicasde sua intensidade, sua regulação, a ideologia queos expressa e o seu significado cultural.

    Foi, de fato, Georg Simmel quem elabo-rou uma teoria sociológica do conflito. Para ele,longe de se revelar patológico, o conflito entreatores sociais no nível interpessoal (e não das

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    conflito, explorando suas variedades, teve e temgrande impacto nos estudos do que alguns pas-saram a chamar sociologia da conflitualidade(Simmel, 1995). Uma das dimensões principaisda obra de Simmel é a sua tentativa de entenderas formas de sociação que tornam a sociedadeuma realidade. Sua ênfase era entender os vín-culos sociais que se estabelecem entre as pesso-as. Daí o seu esforço para compreender e anali-sar as mais diversas formas de interação social(Vandenberghe, 2004).

    Para Simmel, o conflito é certamente umadas formas de sociação mais importantes. Ele é“destinado a resolver dualismos divergentes; éuma forma de conseguir algum tipo de unidade,ainda que através da aniquilação de uma das par-tes conflitantes” (1993, p.11). Para esse autor, aconfiguração social não é dada apenas pelos ele-mentos convergentes dessa sociedade, mas tam-bém por seus elementos dissociativos. É exata-mente essa tensão que irá moldar as estruturassociais. Tais estruturas não são resultado da sim-ples soma ou subtração desses elementos, comose pudéssemos atribuir-lhes sinal positivo ounegativo. Para o sociólogo alemão, “os elementosnegativos e duais jogam um papel inteiramentepositivo nesse quadro mais abrangente, apesarda destruição que podem causar em  relaçõesparticulares.” (p.126). Nesse sentido, o conflitonão é patológico e tampouco é a negação da soci-edade, mas uma condição de sua estruturação.

    Se, por um lado, sua existência é intrínse-

    ca a uma sociedade, por outro, podemos verificaruma grande variedade de conflitos. Apesar dessavariedade, podemos sintetizá-los a partir das se-guintes características: a) seus efeitos sobre os gru-pos sociais, b) sua intensidade, c) seus objetos eobjetivos e d) sua forma de estruturação.

    A existência de conflitos exerce impor-tantes efeitos sobre as dinâmicas sociais intra eextragrupos. Eles servem para estabelecer e man-ter identidades e fronteiras entre diferentes gru-pos sociais. De uma forma geral, a distinção en-

    tre nós e eles é estabelecida por meio do conflitosocial, uma vez que há necessidade de construir

    e afirmar as identidades coletivas.O conflito também sustenta a coesão e aunidade do grupo. Nesse sentido, ele é, um ele-mento estabilizador da estrutura social (Coser,1961). Ao mesmo tempo em que destrói, ele tam-bém constrói relações. Dessa perspectiva, o con-flito possui funcionalidade para a manutençãoda estrutura social. As hostilidades não só pre-servam os limites entre os grupos, mas, muitasvezes, são cultivadas para garantir a sua sobrevi-vência. Segundo Simmel, quando um grupo en-

    tra numa relação de antagonismo com um po-der exterior, ocorre o estreitamento das relaçõesentre os seus membros e a intensificação da suaunidade em consciência e ação. Como o oponen-te é o mesmo para todos os elementos do grupo,eles se unem.

    A intensidade do conflito também podevariar bastante, e os conflitos mais intensos po-dem suprimir ou agravar outros conflitos sociaismenos radicais. Simmel sugere que a discórdiadentro do grupo será mais intensa quando as par-tes envolvidas tiverem algo em comum e forempróximas umas das outras. Ou seja, quanto maispróximas forem as partes, maior a intensidade doconflito. Isso ocorre porque os participantes sãoobrigados a suprimir os sentimentos de hostilida-de. Entretanto, é provável que o acúmulo dessessentimentos intensifique o conflito quando eleeclodir. Noutras palavras, o conflito será maispassional e radical quando eclodir a partir de re-lacionamentos próximos (Coser, 1961).

    O conflito pode ser radicalizado quandoos membros mais tolerantes são expulsos do grupoem nome da coesão interna. Por outro lado, aunidade do grupo pode se perder quando nãohá mais um adversário externo. De acordo comSimmel, o grupo passa a repetir, no seu interior,o conflito que antes era travado contra osadversários externos. Para certos grupos, é sinalde “sabedoria” política cuidar para que existamalguns inimigos, a fim de que a unidade dosmembros continue efetiva.

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    Quanto ao objeto dos conflitos, eles tam-bém podem variar bastante. O conflito pode se

    dar por antagonismos persistentes ou por anta-gonismos momentâneos. No primeiro caso, oconflito se refere a um estado de espírito abstra-to e duradouro. Já no segundo caso, o conflito éconcreto, diz respeito a um objeto de disputareal (simbólico ou material). De qualquer forma,como assinala Simmel, os efeitos resultantes dosconflitos não são determinados apenas pelos in-teresses em disputa, mas também pela sua du-ração e intensidade.

    Apesar dos seus esforços para analisar os

    efeitos da intensidade e da duração dos conflitossobre os grupos sociais, Simmel não fez distin-ção entre “comportamento conflitivo” e “senti-mento de hostilidade”. Sem dúvida, o primeiroé uma forma de sociação. Já o último não impli-ca necessariamente algum tipo de interação so-cial. A confusão entre comportamento e atitudenos traz algumas dificuldades para a análise dosconflitos sociais.

    Primeiro, o conflito pode mudar os ter-mos de uma relação social, enquanto a hostilida-de não necessariamente afeta essa relação. Se-gundo, a hostilidade pode ser descarregada nãoapenas contra o objeto original, mas tambémcontra objetos substitutos. Simmel não conce-beu as situações nas quais o comportamentoconflitivo contra um objeto específico foi blo-queado. Nesses casos, os sentimentos de hostili-dade podem ser dirigidos para objetos substitu-tos. Terceiro, a satisfação desse sentimento dehostilidade pode ser alcançada por meios alter-

    nativos, capazes de aliviar as tensões existentes.A expressão dos sentimentos de hostili-dade pode ocorrer de três formas. Primeiro, ahostilidade pode ser dirigida diretamente contraa pessoa ou grupo que é a fonte de frustração.Os enfrentamentos entre grupos étnicos antagô-nicos pela ocupação das posições de poder ourecursos econômicos escassos numa sociedadeconstituem um exemplo disso.

    Em segundo lugar, esse sentimento de hos-tilidade pode ser deslocado para outros objetos

    substitutos. São comuns as revoltas de gruposcontra a violência e a arbitrariedade policial. Fre-

    quentemente, membros de uma comunidadeexpressam sua revolta quebrando e incendiandoônibus, carros e trens, uma vez que não podemexpressar de forma clara e direta seu desconten-tamento com a polícia.

    Esse deslocamento do objeto está relacio-nado à supressão dos conflitos. Um conflito soci-al pode ser suprimido ou bloqueado pela força.Foi o caso dos inúmeros conflitos políticos queaconteceram no interior dos regimes autoritáriose totalitários. Já os conflitos raciais e de gênero,

    via de regra, são suprimidos por uma série depráticas sociais mais sutis, porém não menos efi-cazes, que os confinaram à invisibilidade. Embo-ra essas práticas sociais sejam capazes de blo-quear os conflitos, não são capazes de suprimiros sentimentos de hostilidade e de antagonismo.

    E, finalmente, pode haver o relaxamentodas tensões através de atividades que permitamsatisfação em si mesmas. O teatro, as competi-ções esportivas e outras formas de entretenimen-to podem prover esse tipo de relaxamento dastensões. Mas, nesses casos, podemos notar que,embora a hostilidade possa ser expressa, o pa-drão de interação social permanece inalterado.

    A distinção entre deslocamento dos mei-os e deslocamento dos objetos é de grande signi-ficado sociológico. Essas questões nos trazem umproblema central para a teoria do conflito. Atéque ponto as práticas sociais, destinadas a cana-lizar as hostilidades e evitar danos ou alteraçõesno objeto original da disputa, podem servir de

    mecanismos de relaxamento das tensões? Atéque ponto, esse deslocamento de meios de ex-pressão das hostilidades pode manter a estrutu-ra social inalterada?

    Existem casos em que o conflito surge ex-clusivamente de impulsos agressivos que bus-cam expressão, não importa o objeto. Nessas si-tuações, a escolha dos objetos é puramente aci-dental. Ralf Dahrendorf (1972) sugere a distin-ção entre objetos (interesses) manifestos e laten-tes. Os primeiros referem-se a objetos conscien-

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    temente definidos, sobre os quais cabe uma açãoracional orientada para alcançá-los. Já os inte-

    resses latentes não são predefinidos, e a buscade objetivos não é racionalmente orientada.Para entender essa dinâmica, é importante

    distinguir entre conflito real e conflito irreal ouimaginário. Os conflitos reais surgem pela frus-tração de uma demanda específica sobre um ob-jeto de disputa. Nesse caso, o conflito é um meiopara alcançar um fim. Os conflitos irreais não sãoproduzidos pela disputa sobre um objeto especí-fico, mas pela necessidade de expressar as ten-sões e frustrações de uma das partes. Nesse caso,

    a escolha dos rivais e dos objetos não é necessari-amente orientada na direção de um resultado es-pecífico. Os conflitos reais não envolvem neces-sariamente hostilidade e agressividade. Nos con-flitos irreais, a hostilidade e a agressividade sãoextravasadas através do conflito, sem a necessi-dade de um objetivo definido.

    Podemos também analisar os conflitos deacordo com a sua estruturação. Ou seja, os me-canismos existentes para regulá-los e os limitesde ação das partes envolvidas. Em diversas soci-edades, tem sido frequente a tentativa de pro-mover a regulamentação dos conflitos, isto é, oestabelecimento de regras (tácitas ou explicitas)e práticas sociais que definam as formas legíti-mas de manifestação do conflito.

    Há, portanto, dois aspectos essenciais paraa estruturação dos conflitos. As regras e práticassociais precisam ser aceitas pelos participantes,bem como devem estabelecer limites à sua ação.Para isso são criadas instituições capazes de ad-

    ministrar os conflitos, bem como as práticas soci-ais são ajustadas aos valores e regras dessas insti-tuições. Frequentemente, essas regras e práticassão internalizadas pelos indivíduos através de umlongo e complexo processo de socialização. Pode-mos dizer que se, por um lado, a observação des-sas regras e práticas regula as relações sociais, poroutro produz a institucionalização do conflito.

    Na Europa, na América do Norte e, maisrecentemente, na América Latina, foram esta-belecidos regimes democráticos. Apesar da vari-

    ação quanto a seu funcionamento e os resultadosgerados, o estabelecimento desses regimes per-

    mitiu a institucionalização do conflito político.Isto se faz através do estabelecimento de regraspara a participação e disputa política. Como con-dição de processamento dos conflitos políticos,foram criados sistemas eleitorais transparentes ese estabeleceu um sistema partidário capaz deprocessar as demandas e anseios da sociedade.Além disso, as práticas e os valores dos atorespolíticos foram ajustados aos princípios de funci-onamento dos regimes democráticos. Em suma,nas modernas democracias, a estruturação do con-

    flito político se opera através da criação e do aper-feiçoamento de instituições e práticas políticas.

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    A regulação institucional do conflito soci-al, de forma a evitar suas consequências violen-tas, é resultado de um complexo processo socialque envolve tanto a construção de instituiçõesespecíficas quanto a mudança de hábitos e com-portamentos individuais. O surgimento dessetipo específico de autocontrole, que Norbert Eliaschamou de “processo civilizador”, não pode serdissociado do processo de construção do Estado-nação. Como Elias coloca, “a estabilidade peculi-ar do aparato de autocontrole mental que emergecomo traço decisivo, embutido nos hábitos detodo ser humano ‘civilizado’, mantém a relaçãomais estreita possível com a monopolização daforça física e a crescente estabilidade dos órgãos

    centrais da sociedade” (Elias, 1994, p.197).Entretanto, não existe um único “proces-so civilizador”. Existem importantes variaçõesna forma e no alcance desse processo descritopor Elias. Nas sociedades que tiveram sistemasescravocratas, como em algumas das Américas,a violência física e a punição brutal contra de-terminados segmentos sociais nunca foram com-pletamente abandonadas como formas de con-trole social. Do mesmo modo que as sociedadesde passado colonial (e às vezes escravocrata) aca-

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    baram desenvolvendo formas diferentes de con-trole social – muitas das quais passavam pela

    delegação de poderes estatais a determinadossegmentos sociais para exercer uma espécie decontrole social privado –, pode-se dizer que esseprocesso acompanhou e reforçou a estrutura depoder implantada. Além disso, em regiões deeconomia periférica, como a América Latina,essas formas de controle social têm sido reforça-das pelo seu passado de dependência e de crisefiscal (Costa, 2004).

    No Brasil contemporâneo, os aspectos quemais chamam a atenção no funcionamento das

    instituições estatais destinadas à administraçãode conflitos são a desigualdade de tratamento ea exclusão de direitos de determinados segmen-tos sociais. Essa desigualdade e exclusão social,longe de apontarem para o mau funcionamentodos tribunais e das polícias, são aspectosconstitutivos do sistema brasileiro de justiça cri-minal e de segurança pública , como sugereRoberto Kant de Lima (2004).

    O sistema de justiça certamente desem-penha papel central na estruturação dos confli-tos interpessoais. Entretanto, no caso brasileiro,boa parte da população não tem acesso à justiça.As barreiras que impedem os mais pobres e so-cialmente vulneráveis de requisitarem os servi-ços da justiça não são apenas de ordem materiale procedimental, mas também simbólicas.

    Por outro lado, as exigências processuaisconstituem obstáculo ao acesso à justiça. Alémda morosidade dos processos, os cidadãos preci-sam constituir um advogado que possa representá-

    los em juízo. Dada a precariedade de funciona-mento das defensorias públicas, torna-se difícil ecaro iniciar um processo judicial. Em função dis-so, alguns estados brasileiros criaram recentementejuizados especiais, nos quais o procedimento émais rápido, e os cidadãos podem litigar sem ne-cessidade de advogados ou defensores. O proble-ma, nesses casos, é a forma como os juízes e me-diadores se colocam diante dos cidadãos, exigin-do comportamentos e argumentações distantes darealidade social dos segmentos mais pobres.

    Outra instituição importante para aestruturação dos conflitos interpessoais são as

    polícias. No Brasil, são frequentes as denúnciasde violência, corrupção e arbitrariedades dospoliciais. De fato, as pesquisas têm demonstradoque a população confia muito pouco nas políciasbrasileiras (Iser, 1996).

    Além disso, os policiais têm dificuldadede perceber seu trabalho como um serviço pres-tado à população. Em 2007, equipes de pesqui-sadores visitaram 160 delegacias de polícia noBrasil para verificar as condições de atendimen-to ao público. De uma forma geral, constatou-se

    que boa parte das delegacias de polícia tem con-dições inadequadas para atender ao público(Altus... 2007).2

    Além disso, há uma grande relutância dospoliciais em atuarem nos casos de conflitos do-mésticos e de conflitos entre vizinhos. O quadrotorna-se mais grave quando constatamos que,devido às dificuldades de acesso à justiça, as po-lícias são as principais instituições estatais queadministram os conflitos interpessoais.

    Obviamente, a estruturação dos conflitosinterpessoais não depende apenas do funciona-mento da justiça e da polícia. Há uma grande va-riedade de práticas e estruturas sociais capazesde limitar os resultados dos conflitos. Exatamen-te por isso, nos últimos anos, têm surgido algunsprogramas e projetos sociais destinados a reduzira violência, em especial os homicídios.3 Os proje-tos para a redução da violência existentes no Bra-sil têm sido implantados nas periferias das gran-des áreas metropolitanas. Eles têm em comum o

    fato buscarem fortalecer os vínculos sociais e assolidariedades locais, aumentar a autoestima dosjovens e melhorar integração dessas comunida-des com as diversas instituições estatais. No pla-

    2  Disponível em: www.ucamcesec.com.br/at_proj_conc_texto.php?cod_proj=225

    3  O projeto “Fica Vivo”, em Belo Horizonte, o projeto“Afroatitude”, no Rio de Janeiro, e os Centros Integradosde Cidadania, em São Paulo, são bons exemplos dessetipo de iniciativa. Há também o exemplo da cidade deDiadema, no estado de São Paulo, onde foramimplementadas várias iniciativas com vistas à redução doshomicídios.

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    no político, esses projetos, via de regra, são deiniciativa municipal (Sento-Sé, 2005).

    Apesar de relativamente bem sucedidas,são raras as iniciativas desse tipo. Para se ter umaideia, entre 2000 e 2005, do total de recursos doFundo Nacional de Segurança Pública, apenas7% foram aplicados na implantação de projetospara a redução da violência, tais como policia-mento comunitário, centros integrados de segu-rança e cidadania, justiça comunitária etc. Poroutro lado, cerca de 86% dos recursos destina-ram-se à compra de equipamentos, viaturas, ar-mamentos, material de comunicações e

    informática. Cerca de 4% dos recursos destina-ram-se à construção ou reforma de instalaçõespoliciais e 3% foram utilizados no treinamento eformação dos policiais (Costa; Grossi, 2007).

    As ações governamentais no campo dasegurança pública e da justiça criminal têm dadogrande enfoque aos problemas relacionados aocrescimento dos crimes contra o patrimônio e aameaça representada pela melhoria da capaci-dade de coordenação dos grupos de crime orga-nizado. Nesse sentido, a ênfase das ações gover-namentais recai na contratação de mais polici-ais, na compra de equipamentos mais sofistica-dos e no endurecimento da legislação penal eprocessual penal. Muito pouca atenção por par-te das autoridades governamentais tem sido dis-pensada aos problemas relacionados à violênciainterpessoal. Talvez isso ocorra porque esse tipode violência atinge fundamentalmente os segmen-tos mais pobres da sociedade brasileira.

    (Recebido para publicação em 03 de maio de 2010)(Aceito em 17 de fevereiro de 2011)

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     Arthur Trindade M. Costa - Doutor em Sociologia pela Universidade da Brasília. Professor do Depar-tamento de Sociologia da Universidade de Brasília. Pesquisador 2 do CNPq. Coordenador do Núcleo deEstudos sobre Violência e Segurança (NEVIS / UnB). Desenvolve pesquisas na área de violência, políci-as e segurança pública. Publicou entre outros textos o livro Entre a Lei e a Ordem: violência e reformasnas polícias do Rio de Janeiro e Nova York (Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2004).

    INTERSUBJECTIVE VIOLENCE AND CONFLICT INCONTEMPORARY BRAZIL

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    In this paper, we discuss the interpersonalviolence in Brazil, which most visible consequence isthe increase in homicide mortality. We suggest thatthe key to understanding this violent phenomenon isto understand the context in which these deathsoccurred, ie, the type of conflict, its significance for theparties involved, its object and its structure. Finally,we argue that, although dramatic, intersubjectiveviolence has received little attention from the Brazilianauthorities.

    KEYWORDS: violence, intersubjective conflicts, murders,Brazil.

     VIOLENCES ET CONFLITS INTERSUBJECTIFSDANS LE BRÉSIL CONTEMPORAIN

     Arthur Trindade M. Costa

    Il est question, dans cette recherche, du débatsur la violence interpersonnelle au Brésil dont laconséquence la plus visible est la croissance de lamortalité par homicides. On y suggère que la clé pourla compréhension de ce phénomène violent réside dansla compréhension du contexte dans lequel cesassassinats ont lieu, à savoir le type de conflit, sonimportance pour les parties impliquées, son objet et sastructure. Enfin, nous soutenons que bien quedramatique, la violence intersubjective n’a reçu quepeu d’attention de la part des autorités brésiliennes.

    MOTS-CLÉS: violence, conflits intersubjectifs, homicides,Brésil.

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