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VIOLÊNCIA E ESCRAVIDÃO EM VILA MARIA DO PARAGUAI (SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX) Tatiane Alves da Silva 1 RESUMO Neste presente texto buscamos uma abordagem relacionada à Vila Maria do Paraguai, na segunda metade do século XIX, na perspectiva de melhor compreender a violência escrava marcada por conflitos por constituir uma zona fronteiriça localizada a oeste de Mato Grosso. Foi realizada uma pesquisa em processos crime disponibilizados pelo Núcleo de Documentação de História Escrita e Oral (NUDHEO/UNEMAT). Neste contexto, entender como as ações dos escravos influenciavam nas relações com seus companheiros de lida. Com a preocupação de entender a ocorrência de violência entre os escravos, e focalizá-los em uma dimensão histórica, que seria primordial para uma melhor interpretação acerca da escravidão presente nesta região, que obtinha características econômicas de grande importância para a Província. PALAVRAS-CHAVE: Vila Maria do Paraguai, Escravidão, Violência. 1 INTRODUÇÃO Esta pesquisa tem por objetivo analisar a violência escrava presente na Vila Maria do Paraguai (atual município de Cáceres/MT), em meados do século XIX. A referida localização era uma área peculiar, cuja população era composta por portugueses, brasileiros, afrodescendentes e índios. Ao longo da minha formação no curso de Licenciatura em História observei o quanto a História da escravidão foi importante em nossa região. Também observei que estas questões nos levam a entender melhor as relações cotidianas dos escravos, bem como os eventos que as alteravam. Desse modo será enfatizada a existência desses atores sociais enquanto sujeitos capazes de tecerem suas próprias histórias. Não obstante os avanços da historiografia brasileira sobre a escravidão, consideramos importante aprofundar nosso conhecimento a respeito dessa temática em Vila Maria do Paraguai, na segunda metade do século XIX. Tendo esse propósito, dediquei a observar o uso da violência entre escravos residentes na referida região. Dessa maneira, partindo dessas reflexões, optei em analisar a violência física como 1 Graduada em Licenciatura Plena em História pela Universidade do Estado de Mato Grosso- Unemat Campus Cáceres MT.

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VIOLÊNCIA E ESCRAVIDÃO EM VILA MARIA DO PARAGUAI

(SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX)

Tatiane Alves da Silva1

RESUMO

Neste presente texto buscamos uma abordagem relacionada à Vila Maria do Paraguai, na segunda metade do século

XIX, na perspectiva de melhor compreender a violência escrava marcada por conflitos por constituir uma zona

fronteiriça localizada a oeste de Mato Grosso. Foi realizada uma pesquisa em processos crime disponibilizados

pelo Núcleo de Documentação de História Escrita e Oral (NUDHEO/UNEMAT). Neste contexto, entender como

as ações dos escravos influenciavam nas relações com seus companheiros de lida. Com a preocupação de entender

a ocorrência de violência entre os escravos, e focalizá-los em uma dimensão histórica, que seria primordial para

uma melhor interpretação acerca da escravidão presente nesta região, que obtinha características econômicas de

grande importância para a Província.

PALAVRAS-CHAVE: Vila Maria do Paraguai, Escravidão, Violência.

1 INTRODUÇÃO

Esta pesquisa tem por objetivo analisar a violência escrava presente na Vila Maria do

Paraguai (atual município de Cáceres/MT), em meados do século XIX. A referida localização

era uma área peculiar, cuja população era composta por portugueses, brasileiros,

afrodescendentes e índios.

Ao longo da minha formação no curso de Licenciatura em História observei o quanto a

História da escravidão foi importante em nossa região. Também observei que estas questões

nos levam a entender melhor as relações cotidianas dos escravos, bem como os eventos que as

alteravam. Desse modo será enfatizada a existência desses atores sociais enquanto sujeitos

capazes de tecerem suas próprias histórias.

Não obstante os avanços da historiografia brasileira sobre a escravidão, consideramos

importante aprofundar nosso conhecimento a respeito dessa temática em Vila Maria do

Paraguai, na segunda metade do século XIX. Tendo esse propósito, dediquei a observar o uso

da violência entre escravos residentes na referida região.

Dessa maneira, partindo dessas reflexões, optei em analisar a violência física como

1 Graduada em Licenciatura Plena em História pela Universidade do Estado de Mato Grosso- Unemat Campus Cáceres MT.

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característica do cotidiano em uma comunidade escrava2 não estando restrito ao exercício do

domínio senhorial. E este foi tema central de diversos estudos relacionados a outras partes do

Brasil, entre os quais podemos destacar o de Silvia Lara, Maria Helena Machado e Hebe Mattos.

De início, ressalto que a pesquisa foi realizada por meio de fontes documentais

localizadas no Núcleo de Documentação de História Escrita e Oral (NUDHEO/UNEMAT).

Tratam-se de processos crimes e a partir das informações contidas nesses autos judiciais busco

observar mais do que a violência que marcava as relações entre senhor e escravo: o

foco são as brigas, mortes e lesões que resultaram dos conflitos estabelecidos entre os próprios membros

da comunidade de escravos.

Com esse intuito, no primeiro capítulo foi elaborada uma breve síntese da história de

Vila Maria do Paraguai, e sua importância para a província de Mato Grosso, e entender que tais

fatos estão interligados, dando ênfase na presença de mão de obra de escrava nessa região. No

segundo capítulo foi analisada a violência presente em Vila Maria do Paraguai através de um

processo crime, referente a um assassinato envolvendo escravos, ocorrido em Vila Maria do

Paraguai em 1873, abordando as negociações que envolviam senhor, feitor e grupos de

escravos. No terceiro capítulo também foi analisado a presença da violência, através de um

processo crime relacionado à ofensa física, envolvendo escravos na Fazenda Jacobina. Por fim,

foram tecidas algumas considerações referentes à questão em análise.

2 VILA MARIA DO PARAGUAI

A escravidão caracterizou-se com a posse do homem sobre o homem. O cativo era tido

como mercadoria, ou seja, como uma propriedade dos senhores. Ser negro era viver sob a

escravidão, significava submeter-se à condição de propriedade. Significava ficar sob o domínio

de seu senhor, trabalhar dia após dia e em diversas ocupações, segundo as ordens senhoriais.

Percebe-se isto através dos processos analisados sobre escravos de senhores em Vila Maria do

Paraguai, na segunda metade do século XIX.

Otávio Ribeiro Chaves, em seu texto “Império Português: O Marco de Jauru e a

povoação fronteiriça de Vila Maria do Paraguai, Século XVIII”, fala como e porque surgiu Vila

Maria:

2 O termo foi empregado por Hebe Maria Mattos. MATTOS, Hebe Maria. Das cores do Silêncio: os significados

da Liberdade no Sudeste escravista, Brasil século XIX. 2° ed: Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998. 379 p.

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Após a assinatura do Tratado de Madri, em 1750, uma ardilosa política de povoamento

e demarcação do território da América portuguesa foi incrementada, visando à criação

de núcleos urbanos e a fixação de população. Ações estas que eram interdependentes,

não isoladas. A Oeste da capitania geral do Cuiabá e Mato Grosso, em 1754, com o

advento da terceira partida demarcatória foi fixado o Marco de Jauru, representação

material de uma época de disputas fronteiriças entre Portugal e Espanha na América

do Sul. Portanto, mais de duas décadas separam a fixação do Marco de Jauru (1754)

da criação da Vila Maria do Paraguai (1778), ações que se enquadravam no plano

político, administrativo, econômico e populacional da Coroa Portuguesa, que deram

origem à porção atual da fronteira oeste do Brasil (CHAVES, 2011, p. 12).

Vila Maria do Paraguai foi fundada no ano de 1778 como eixo de consolidação da

expansão territorial fronteiriça da costa oeste da América portuguesa, numa disputa entre

Portugal e Espanha, sob o comando do capitão general Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e

Cáceres, governador da Capitania de Mato Grosso, e tal povoado contava inicialmente com a

participação de mais de sessenta índios chiquitos, conforme termo de fundação enviado a

Lisboa. Mas, depois da fundação, outras levas de índios foram trazidos a Vila Maria,

ocasionando a miscigenação étnica existente entre Mojos, Chiquitos, Bororos, Guató e etc.

Chaves cita Antônio Manuel Hespanha que fala sobre poder afirmar que a estrutura do

governo nos moldes tradicionais era inspirado no modelo administrativo da época no reino, pois

segundo Hespanha “foi a excepção, reservada às zonas de ocupação terrestre mais permanente;

ainda que modificada, quer no seu aspecto institucional, quer na forma como foi praticada” e

que “instituições e formas de domínio ultramarino constituem um enquadramento político

administrativo mais débil, pelo menos do ponto de vista formal” (HESPANHA apud CHAVES,

2011, p. 14), sendo possível estabelecer uma gradação entre expedientes formais de domínio

partindo do tradicional ao formal como também influencia mercantil e eclesiástica.

Assim, além de estratégia de defesa havia também a estratégia de colonização e

estratégia administrativa política, pois não eram apenas mais locais a serem fundados, mas sim

localidades que precisavam de aparatos legais para seu funcionamento e manutenção:

Entenda-se por criação de núcleos urbanos, não somente a fundação de novas vilas,

mas também a atribuição desse estatuto a antigas povoações (aldeamentos, lugares,

freguesias e arraiais). Importante lembrar que o termo vila (ou cidade) atribuía um

estatuto político à povoação, com uma jurisdição de justiça e de administração locais.

Símbolo de autonomia municipal, a Câmara, todavia, tinha as suas atividades

fiscalizadas por funcionários régios que garantiam uma relativa homogeneidade

quanto ao trabalho administrativo e de justiça que os vereadores e juízes ordinários

realizavam. Ao mesmo tempo em que novas vilas e cidades estavam sendo criadas, o

governo português legislava sobre o estatuto político de seus súditos americanos. Os

indígenas e os mestiços de pais índios que antes não detinham os privilégios de

vassalos do reino, passam a ser reconhecidos como tais, procurando-se conduzir essas

populações para viverem sob a égide das câmaras municipais (SANTOS, 1999, p. 68).

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Portugal dependia dessas ocupações para fixar e preservar seus domínios e, com isso,

recuperar-se economicamente, pois a Coroa portuguesa media forças com a Espanha. Assim, o

rei português não pretendia perder domínios para os espanhóis.

O surgimento de Vila Maria do Paraguai trouxe preocupações para Portugal, porque

não era apenas criar, era também “civilizar” os novos e velhos súditos da Coroa. Maria de

Fátima Mendes de Lima Moraes fala que “Vila Maria seria um espaço social, segundo os seus

idealizadores/construtores, em que deveriam incidir as concepções culturais de onde

provinham” (2003, p. 61).

A incorporação indígena era interessante aos portugueses por assegurar a posse da

região fronteiriça, aumentando a população por meio de casamentos étnicos e com os filhos dos

mestiços sendo considerados mais resistentes a doenças. Essa ocupação também se fez por

conta das milícias indígenas. Segundo o relato de Hércules Florance, um viajante francês que

participou da expedição Langsdorff no ano de 1825 a 1828, a fazenda Jacobina que tinha como

proprietários o Sargento-Mor João Pereira Leite esposo de Maria Josefa de Jesus Leite, fazenda

esta localizada em Vila Maria do Paraguai que possuía:

Duzentos escravos de trabalho dos dois sexos e sessenta crianças formavam toda a

escravatura desse estabelecimento; mas havia quase igual número de gente forra entre

agregados, crioulo, mulatos e índios, que trabalhavam mais ou menos para si, ou pagos

pelo proprietário (FLORENCE, 1977, p.182).

Como podemos perceber a economia gerada na fazenda jacobina não se fazia apenas

da mão de obra escrava mas como também da mão de obra indígena que ali existiam.

A localização favorecia o crescimento populacional, ainda que a população existente

fosse formada, em sua maioria, de índios chiquitanos e seus descendentes. De modo geral, os

relatos a respeito de Vila Maria do Paraguai enfatizam que o local estava passando por um

processo de desenvolvimento, proporcionado pela existência do rio Paraguai e de suas riquezas

naturais.

No ano de 1874, Vila Maria do Paraguai passou a se chamar São Luiz de Cáceres,

graças a uma lei que a elevou à condição de município, sendo também elevada a sede da 2ª

comarca judiciária de Mato Grosso. Segundo Mendes (2009, p.50), Vila Maria do Paraguai

ultrapassa os limites da categoria recebida em 1859, graças ao desenvolvimento da sua pecuária,

indústria extrativa e facilidade de navegação fluvial.

Após esse momento, a então São Luiz de Cáceres passa por inúmeras transformações

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que exprimiam uma nova condição socioeconômica local. Mesmo sendo uma cidade periférica,

passou por transformações que passavam os grandes centros econômicos como: reconfiguração

moderna e interiorização ideológica. As mudanças passadas em Vila Maria do Paraguai

ocorreram principalmente após a reabertura da navegação do rio Paraguai.

2.1 A violência escrava em Vila Maria do Paraguai

No dia 30 de junho de 1873, dois escravos do Alferes José Augusto Pereira Leite, um de

nome Ventura e o outro Faustino, se envolveram em uma briga, que acabou resultando em

morte. O escravo Ventura matou o escravo Faustino e, em seguida, fugiu. Diante desses fatos,

o delegado de polícia, José Maria de Pinho, fora encarregado de averiguar o ocorrido no sítio

Quilombo. Destacamos assim um trecho do relato do Alferes José Augusto Pereira Leite feito

ao agente da segurança pública, no ano de 1873:

Depois de fazer reunir toda a minha gente que existião empregados em differentes

destinos em serviço, fui informado que no referido dia só existião os escravos de

nomes Faustino, Ventura, e a escrava de nome Angelica com sua filha de menor idade

Francelina, a vista do que informou-me a referida escrava que, estando ella em sua

casa (na sensala), ouvio gritos de sua filha que estava no terreiro, logo depois ouvio

mais gritos a vista do que ella acudindo encontrou os escravos de nome Faustino

offendido com uma facada, e o escravo Ventura presente, porém que ambos existião

com faca fora da bainha, correndo ella para a casa de minha residência a dar parte ao

encarregado Lunguinho, na sua volta encontrarão já o offendido sem falla, e que logo

depois espirou, isto as 7 p/ 8 horas da noite mais ou menos e já não existia o de nome

Ventura. (Acervo do Fórum de Cáceres, Caixa s/n

.Processo s/n. p.03. Ano 1873).

Podemos perceber através dos autos de averiguação feitos pelo delegado de polícia

que o alferes José Augusto Pereira Leite não se encontrava no local quando ocorreu o crime, e

sim os escravos de nome Ventura, Faustino, Angélica e sua filha de menor Francelina.

Conforme aborda Maria Helena Machado, deve-se considerar que nas relações

historicamente estabelecidas entre senhores e escravos residiam os nexos de um extenso sistema

de hegemonia senhorial, a historiografia sobre escravidão tem buscado resgatar o escravo e seu

universo social (Machado, p.13, 1987). Enfatizando assim a relação entre senhor e escravo,

focalizá-los em uma dimensão histórica seria primordial para uma melhor compreensão acerca

da escravidão. Através destas abordagens podemos perceber que só existiam escravos no local

e que havia a presença de uma relação de confiança entre senhor e escravos, pelo fato do senhor

deixar sua propriedade sob responsabilidade dos mesmos.

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Voltemos então a atenção ao modo e ao comportamento do senhor que de certa forma,

demonstra que suas relações com cativos era de confiabilidade, tornando explícito um elo entre

senhor e escravo, na busca de manter uma relação de troca e na concretização e funcionamento

do sistema. Conforme Aborda Silvia Lara (p.165, 1998), a relação entre senhores e escravos

era, sem dúvida alguma, uma relação pessoal de dominação. Dessa maneira o poder senhorial

se afirmava no cotidiano, através da convivência.

Tendo em vista que a escrava Angélica estava presente no local do crime voltemos a

atenção para um trecho de seu testemunho, dado ao escrivão e ao delegado:

Compareceu a escrava Angélica, de propriedade do mesmo Alferes José Augusto

Pereira Leite e pelo dito juiz lhe forão feitas as perguntas sobre a morte do escravo

Faustino como adiante se segue: Perguntado se sabia como se deu o facto da morte do

escravo Faustino? Respondeu que em um domingo no entrar do sol, estando ella em

sua caza na senzala, ouvio gritos de uma sua filha menor e sahindo para ve-la

encontrou o escravo Faustino agarrado com outro de nome Ventura, ambos de faca

desembainhada, com o que ella informante dirigio-se a caza de morada do seu senhor

a chamar o escravo de nome Lunguinho para acudir ou apartar aquele barulho, porém

voltando com o referido Lunguinho ao lugar onde se acharão os dois já encontrarão

os escravo Faustino com uma facada nas verilhas e já sem fala e o de nome Ventura

não se achava no lugar. (Acervo do Fórum de Cáceres, Caixa s/n .Processo s/n. p.05-

verso. Ano 1873).

Quanto aos detalhes dos acontecimentos do sítio, temos a versão de Angélica, que

então tinha vinte e cinco anos de idade, “pouco mais ou menos”, escrava do mesmo Alferes

José Augusto Pereira Leite, solteira, moradora e natural de Vila Maria.

Angélica presenciou o momento em que os dois escravos estavam em luta corporal.

Em seu relato para a polícia, ela disse que Ventura e Faustino se encontravam no local e ambos

com faca na mão, e que ela logo correu para a casa do senhor Pereira Leite, a chamar pelo

escravo de nome Lunguinho que fora encarregado de cuidar da propriedade. Mas que ao

retornar em sua companhia já encontraram Faustino sem fala e logo depois, ele acabou

morrendo devido aos ferimentos, e o escravo agressor já havia fugido do local.

Devemos assim considerar, entre outros aspectos, a questão econômica, destacando o

papel do escravo como ferramenta primordial na produção e no desenvolvimento da produção.

Lembramos que a proibição do tráfico em 1850 fez com que aumentassem os preços dos

escravos e possui-los, desde então, passou a ser privilegio para ricos. E o senhor ao perder dois

escravos – um morto e outro fugido – era considerado prejuízo, pois o escravo era um bem de

grande valia e de difícil reposição.

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Considerando também que o escravo não era apenas um mero objeto, mas também um

sujeito capaz de conduzir e controlar suas próprias vontades e seus interesses particulares,

através da convivência no cotidiano, de forma a interagir no universo do senhor, fez com que

estes sujeitos pudessem estabelecer uma relação de troca, na busca pela sobrevivência.

Segundo Machado (1987, p. 18), “o escravo é, pois, um agente social e o prova a

necessidade com que se defrontaram os senhores de produzir mecanismos acomodadores de

suas relações com o mesmo”. Tornando comum uma relação voltada para a ordem, reagindo

seja pela convivência tranquila, articulada a convivência de forma passiva, em que ambos

ganhariam algo em troca. Através das formas de resistência, podemos entender que, estes

sujeitos tiveram seus espaços conquistados, frente à condição de escravo, em meio ao mundo

do senhor.

Viver sob a escravidão seria viver em um espaço permeado por conflitos, se tornando

parte de um sistema no qual estava sujeito a qualquer forma de interação, seja pela adaptação

de modo tranquilo, como também de maneira agitada. Analisaremos então o testemunho de

Lunguinho, o escravo que trabalhava no sítio como feitor:

Perguntado se sabia que entre Faustino e Ventura havia alguma rixa e que desse lugar

ao acontecimento? Respondeu que não havia rixa alguma e que pelo contrário erão

muito amigos. Perguntado se Ventura não apareceu até hoje? Respondeu que ainda

não apareceu e nem dele tem notícia. (Acervo do Fórum de Cáceres, Caixa

s/n.Processo s/n. p.06- verso. Ano 1873).

Através do testemunho de Lunguinho Pereira Leite, escravo do Alferes José Augusto

Pereira Leite de quarenta anos de idade “mais ou menos”, solteiro, natural de Villa Maria, feitor

do sítio Quilombo, percebemos que os escravos envolvidos na briga eram amigos, e entre eles

não havia, até o momento, nenhuma desavença ou qualquer tipo de rixa. Estes fatos provindos

do documento, nos faz refletir acerca desta relação entre ambos, nos fazendo indagar sobre

determinados detalhes.

Se ambos eram amigos e não havia nenhuma rixa, o que poderia ter acontecido para

que Ventura pudesse agir de tal forma e chegar até mesmo a ferir o escravo Faustino, que era

seu “amigo”, ao ponto de matá-lo? Durante as averiguações, fora observado que Angélica e sua

filha de menor idade eram as únicas escravas mulheres que morava no sítio denominado

Quilombo. Portanto, a mulher escrava ocupava um papel crucial dentro deste contexto.

Voltando então a nossa atenção aos detalhes, neste período Angélica tinha mais ou

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menos vinte e cinco anos de idade, esta poderia ter sido “alvo” de disputa entre Faustino e

Ventura, disputa esta que poderia ter ocasionado um desentendimento entre os escravos que

estavam no sítio naquela tarde de domingo.

Através das averiguações, constam que o escravo Ventura fugiu, e nem mesmo o

encarregado Lunguinho que também era escravo, sabia para onde ele havia ido e também não

teve mais notícias suas.

Dessa maneira, podemos perceber que a violência não se restringia apenas ao

exercício do domínio senhorial, mas estava também presente no meio dos próprios escravos

que não podem ser visto como uma massa homogênea, desprovida de diferentes interesses e

identidades. Das diferenças poderiam resultar desentendimentos, por vezes, explícitos e

registrados em documentos, quando, por exemplo, era preciso acionar a intermediação da

Justiça.

Nessa perspectiva, o escravo quebra a ideia de ser passivo, ingênuo e alienado.

Através da violência empregada, o casamento, a formação da família, também eram uma forma

de demonstrar sua força e capacidade em planejar, de criar estratégias, e domínio de território.

Muitas vezes, os escravos rebelavam-se contra seus senhores, com escravos do mesmo grupo,

ou funcionários e fugiam. Como foi o caso de Ventura que matou seu colega escravo e logo

fugiu.

Também percebemos que a fazenda Jacobina de propriedade de Maria Josefa Pereira

Leite, era próxima ao sitio Quilombo, que ficava a mais ou menos seis léguas de distancia entre

uma propriedade e outra. Segundo Silvia Lara (1988, p.166), “o feitor não só se constituía na

figura da violência, mas também na do regulador do trabalho no interior das unidades

produtivas”.

Devemos considerar que o crime em si, as ofensas, eram fundamentais para desvendar

o que ocorria no universo do escravo, e cada detalhe em relação ao crime, e a cada confissão,

vão se tornando peças que vão se encaixando e remontando um cenário pelo qual o escravo era

o ator principal, revelando assim as tensões sociais que acabavam gerando uma pluralidade de

acontecimentos, demonstrando que o escravo não era apenas uma ferramenta de trabalho, mas

também um ser capaz de agir e reagir a determinadas situações.

Tendo como principal objetivo senhorial manter os fins econômicos, o senhor

mantinha seus escravos no sítio Quilombo de maneira tal que pudessem trabalhar de forma

organizada. Dessa maneira, ficava sob a responsabilidade do senhor e do feitor manter a ordem

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e a disciplina entre os escravos. Um escravo indisciplinado poderia também sofrer as

penalidades da lei, a menos que seu senhor, desfrutando de sua autoridade, viesse a resolver de

forma particular os casos de violência em sua senzala, sem envolver a Justiça. Mas neste caso,

o senhor José Augusto Pereira Leite fora até a delegacia dar seu depoimento a respeito do que

fora lhe informado, e relatar sobre o fato ocorrido com seu escravo, e teve ainda prejuízo, com

a morte de um escravo e a fuga do outro.

Talvez o que o tivesse motivado era este último incidente. O Alferes Pereira Leite

poderia estar interessado em obter a ajuda dos agentes da Justiça para encontrar seu escravo

fugido. Por isso, recorreu à Justiça ao invés de praticá-la com suas próprias mãos. Como ressalta

Machado (p.28, 1987), “aspecto de fundamental importância para a compreensão da sub-

representação da criminalidade escrava, prende-se à consideração do valor econômico do cativo

e dos prejuízos acarretados pela sua prisão ou pelos reflexos das mutilações impostas pelas leis

penais”.

Para além disso, cabe aqui destacar que a presença da violência no ambiente escravista

acabava se tornando alvo de maior vigilância, criando assim uma margem de negociação e

tensão entre senhor e escravos. Em meio ao silêncio das testemunhas, podemos entender que

havia medo ou até mesmo uma iniciativa de esconder o paradeiro do escravo Ventura. De certa

maneira, era ao lado de seus companheiros que os escravos entravam em um campo de disputas

com outros indivíduos, buscando auxílio para assim viver da melhor maneira possível, para

manter sua existência. Machado, (p.60, 1987), demonstrou que a “acomodação e resistência,

cooptação e ruptura descreveram assim movimentos pendulares, conformando um mundo

social, marcado pelo equilíbrio instável, perpassado de tensões”.

De acordo com o trecho citado e encontrado no processo crime, no dia 24 de setembro

de 1874, Ventura foi condenado no grau máximo do artigo 193 do código criminal paragrafo

1°, 4°, 15°. E o senhor José Augusto Pereira Leite teve que arcar com as custas processuais:

Portanto pronuncio o réo Ventura incurso no artigo 193 do código criminal como o

autor do homicídio cometido na pessoa de seu parceiro Faustino (por não estar

provado que com o mesmo homicídio tenha concorrido qualquer das circunstancias

indicadas no artigo 192 do citado código) e assim o sujeito a pagar pelo senhor do dito

reo as custas deste processo. O escrivão passe sem demora o mandado de prisão contra

o lance, seu nome no ról dos culpados e remetto os autos aos jus Dr. Juís de Direito

da comarca, para quem recorro ex officcio na forma do deposto no artigo 2°do decreto

n°707de 9 de outubro de 1850. (Acervo do Fórum, Caixa s/n .Processo s/n. p.43. Ano

1874).

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Sendo assim, torna-se evidente que o escravo Ventura foi condenado à prisão pelo

artigo 2° do decreto n°707 de 9 de outubro de 1850. O escravo foi considerado culpado pelo

assassinato de Faustino, que foi morto no sítio Quilombo, de propriedade do Alferes José

Augusto Pereira Leite.

A partir do desenvolvimento dessas manifestações, passamos a perceber o interesse

pelo senhor em recuperar o escravo que foi perdido, em consequência do crime ocorrido no

sítio.

2.2 Fazenda Jacobina no contexto da Escravidão

Segundo Mônica Salomão (p,23, 2012), a Fazenda Jacobina surgiu no contexto rural

distante dos núcleos urbanos maiores da capitania de Mato Grosso, portanto, foi o núcleo

irradiador do povoado de Vila Maria do Paraguai. Conforme o que vimos no segundo capítulo,

o sítio Quilombo ficava próximo à fazenda Jacobina, que era de propriedade de Maria Josefa

de Jesus Leite.

No dia 29 de outubro de 1878, dois escravos de nomes Anastácio e Salomão de

propriedade de Maria Josefa de Jesus Leite, se envolveram em uma briga com o ferreiro Manoel

Antônio de Jesus que também trabalhava para a mesma senhora. O ferreiro feriu os escravos

Anastácio e Salomão e, em seguida, foi retido e enviado aos agentes da Justiça. Diante destes

fatos, o delegado de polícia, João Alves da Costa Garcia, fora encarregado de averiguar o

ocorrido na fazenda Jacobina. Destacamos, assim, um trecho dos autos de corpo de delito feitos

pelos agentes da Justiça:

Às duas horas da tarde aproximadamente, em o lugar denominado – Jacobina, de

propriedade de Dona Maria Josefa de Jesus Leite, destricto da cidade de São Luiz de

Cáceres, da Província de Matto-Grosso, presentes o Miritissimo Delegado de policia

substituto do Termo, o Tenente João Alves da Costa Garcia, comigo escrivão no fim

deste nomeado e assignado, os peritos notificados Pharmaceutico contractado –

Lourenço Anastácio Monteiro de Mendonça e Alferes José Luiz Moreira Serra, e as

testemunhas Francisco Pedro de Figueiredo e Antonio Luiz de Camargo, moradores

do termo da dita cidade. ( Acervo do Fórum, Caixa n°01 .Processo n°04. p.06. Ano

1878).

Conforme o que foi relatado por meio da averiguação feita, o crime ocorreu em São

Luiz de Cáceres e, segundo os autos de corpo de delito, fora contratado o farmacêutico para que

fizessem as análises de corpo de delito nos escravos ofendidos fisicamente. Então passaram os

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peritos a fazer os exames que julgaram necessários e, ao concluí-los, declararam que, no escravo

Salomão havia um ferimento nas costas, aproximando o lado descrito, com a dimensão de

quatro centímetros de largura sobre cinco de profundidade. Já no escravo Anastácio, o

ferimento era no pescoço, pendendo para o lado esquerdo, atingindo apenas algumas pequenas

artérias, medida de três centímetros de largura sobre dois de profundidade. Os danos causados

nos escravos custaram o valor de trinta mil réis, contando com o curativo.

Dessa maneira, percebemos que o ferreiro Manoel Antônio agrediu e feriu seus colegas

de trabalho, escravos, no mesmo local de morada de todos eles e agora procuremos

compreender as seguintes questões: Qual a relação entre estes escravos e o ferreiro no ambiente

de trabalho? Qual o motivo pelo qual levou o ferreiro a agredir os escravos de dona Maria Josefa

de Jesus Leite? Dentre estas e outras questões, tentaremos compreendê-las ao longo da análise

do processo crime.

Anastácio Pereira Leite, escravo de trinta e oito anos de idade, solteiro, filho de Maria

Theresa, natural de São Luiz de Cáceres, roceiro e escravo de Dona Maria Josefa de Jesus Leite,

não sabia ler e nem escrever, e deu seu depoimento aos agentes da Justiça, alegando ter sido

agredido por Manoel Antônio, como vemos no trecho a seguir:

Perguntado como se tinha passado o facto de ser ferido? Respondeu que estando no

seu quarto já deitado ouviu voserias no terreiro da casa e sahindo para observar o

motivo dessa voserias encontrou Manoel Antônio com uma faca em punho e Salomão

com uma foice a vista do que elle fez com que Salomão deixasse da foice e retirasse

para seu quarto com isto o dito Manoel Antônio partio sobre elle com a faca com que

estava por de traz e fez-lhe o ferimento constante.( Acervo do Fórum de Cáceres,

Caixa n°01 .Processo n°08. p.06. Ano 1878).

Como vemos no depoimento acima, Anastácio estava em seu quarto quando escutou

Salomão e Manoel Antônio discutindo no terreiro, foi até lá tentar apartar a briga, e acabou

sendo esfaqueado por este último. Em seu momento de fúria, o ferreiro partiu pra cima do

escravo e o feriu pelas costas.

Podemos perceber que havia uma relação entre Salomão e Anastácio, e um esforço por

parte de Anastácio entender o que se passava naquele momento. Demostrando assim, que estes

sujeitos apresentavam-se próximos uns dos outros, porém de maneira diferente, onde construíra

a diferença entre os membros de uma comunidade, os quais mantinham relações múltiplas.

Como aborda Maria Helena Machado (p.22, 1987) o que se busca é apreender nas

entrelinhas do documento o testemunho do outro, ou seja, das massas anônimas que, apesar de

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marginalizadas do discurso institucional, nele se colocam de maneira sutil mas indubitável. Os

conflitos encontrados nos processos demonstram que havia uma relação de poder e negociação,

que teciam a uma trama que poderia levar a desavenças ou ate mesmo a convivência tranquila

entre um escravo e outro. Formando assim uma irmandade entre um grupo, pelo qual viviam

determinadas situações, unidos pelas condições sociais.

Como vemos no depoimento de Salomão Pereira Leite, solteiro, de vinte anos de idade

mais ou menos, filho de Henriqueta, natural da referida cidade de São Luiz de Cáceres, roceiro,

e não sabia ler e escrever:

Perguntado como se tinha passado o facto de ser ferido? Respondeu que estando

Manoel Antônio em sua casa, estava d’ali a boquejar com Anástacio que era seu

vizinho pelo que elle ofendido dirigiu-se a casa de Manoel Antonio a pedir-lhe que

deixasse de barulho, este não lhe atendendo puxou por uma faca e partio para elle com

o que tratou de defender na mesma casa, neste ato veio Anastácio a fim de apasiguar

e evitar qualquer delicto que pudesse haver, foi então nessa ocasião que recebeu o

ferimento mencionado no respectivo auto.( Acervo do Fórum de Cáceres, Caixa n°01

.Processo n°08, p.06. Ano 1878).

Segundo o depoimento de Salomão, o mesmo pedira para que Manoel Antônio parasse

de brigas, e deixasse de conflitos, mas não foi o que aconteceu, e Manoel acabou agredindo- os

com a faca. Nesta mesma perspectiva podemos perceber que ambos eram vizinhos,

demostrando assim que conviviam de maneira bem próximas uns dos outros, dividiam

praticamente os mesmos espaços. Mas Manuel Antônio era homem livre, talvez ex-escravo.

As brigas e os desentendimentos cometidos entre escravos e não escravos também

eram controladas. Havia uma vigilância exercida, não apenas no interior da própria população

escrava, mas como também pela justiça. Aqui devemos considerar o fato de dois escravos,

propriedades de uma senhora terem sido lesionados por um terceiro. O fato indica que o

incidente parou na delegacia para que os prejuízos fossem ressarcidos. Por isso e por causa do

seu registro, podemos observar o cotidiano das relações entre trabalhadores escravos e livres

agregados em uma importante fazenda de São Luíz de Cáceres.

Segundo o depoimento de Salomão, o mesmo pedira para que Manoel Antônio parasse

de brigas, e deixasse de conflitos, mas não foi o que aconteceu, e Manoel acabou agredindo- os

com a faca. Nesta mesma perspectiva podemos perceber que ambos eram vizinhos,

demostrando assim que conviviam de maneira bem próximas uns dos outros, dividiam

praticamente os mesmos espaços. Mas Manuel Antônio era homem livre, talvez ex-escravo.

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As brigas e os desentendimentos cometidos entre escravos e não escravos também

eram controladas. Havia uma vigilância exercida, não apenas no interior da própria população

escrava, mas como também pela justiça. Aqui devemos considerar o fato de dois escravos,

propriedades de uma senhora terem sido lesionados por um terceiro. O fato indica que o

incidente parou na delegacia para que os prejuízos fossem ressarcidos. Por isso e por causa do

seu registro, podemos observar o cotidiano das relações entre trabalhadores escravos e livres

agregados em uma importante fazenda de São Luíz de Cáceres.

Voltemos então a atenção para o depoimento de Francisco Pedro de Figueiredo, de

trinta anos de idade, lavrador, solteiro, morador de São Luiz de Cáceres, natural da Província

de Mato Grosso:

E sendo requerido sobre os ferimentos de Anastácio e Salomão, constante do auto de

corpo de delito que lhe foi lido: respondeu que na noite de sábado da semana passada

achando elle testemunha dormindo em um dos quartos das casas do sítio da Jacobina

lhe batera na porta o escravo Anastácio dizendo-lhe que prendesse a Manoel da Tenda

que lhe havia offendido a ellle e Salomão o que elle testemunha assim fez

imediatamente visto os dous escravos offendidos. (Acervo do Fórum de Cáceres,

Caixa n°01 .Processo n°08, p.11- verso. Ano 1878).

Através do testemunho de Francisco Pedro de Figueiredo, podemos perceber que este

não estava presente no momento do fato ocorrido, pois estava em seu quarto e foi chamado por

Anastácio, para que denunciasse Manoel Antônio à polícia, por ter ferido a ele e Salomão com

uma faca.

Francisco Pedro foi questionado se sabia com que instrumento Manoel Antônio havia

feito os ferimentos em Salomão e Anastácio. Francisco respondeu que sabia que fora feito com

uma faca por ter visto a dita arma no chão, suja de sangue. E ao perguntarem a Manoel Antônio

se o mesmo contestaria o que foi dito por Francisco Pedro, o acusado do crime respondeu que

não contestava, por ter sido verdade o que Francisco Pedro havia dito.

Deste modo confirmando o que Salomão e Anastácio haviam dito para os agentes da

Justiça em seus depoimentos, a testemunha Francisco Pedro afirma que houve um

desentendimento entre os escravos, que acabou ocasionando em prejuízo, para Dona Maria

Josefa de Jesus Leite, a então proprietária dos escravos, que devia querer ser indenizada.

Continuando, o próximo depoimento tomado foi o de Felicíssimo da Costa Nunes, de

trinta e dois anos de idade, que vivia de seus serviços como camarada do Major João Carlos

Pereira Leite.

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E sendo inquirido sobre os ferimentos dos escravos Anastácio e Salomão, conforme

o auto de corpo de delito, que todo lhe foi lido. – respondeu que sabia por ouvir dizer,

que na noite de sábado as onze horas mais ou menos os escravos Bebiano lhe batera

na porta do quarto em que dormia e ahi passou a contar-lhe que Manoel da Tenda

Tinha faquiado Anastácio e Salomão na porta do seu referido quarto e via que

conduzião a prisão d’aquelle sitio o réo presente a que no dia seguinte lhe foi ordenado

pelo seu patrão o senhor Tenente Coronel Luiz Benedicto para conduzir o réo presente

a esta cidade á fim de ser entregue a justiça, assim o fiz acompanhado de David Pereira

Leite.( Acervo do Fórum, Caixa n°01 .Processo n°08, p.12-verso. Ano 1878).

De acordo com o depoimento de Felicíssimo da Costa Nunes, este disse aos agentes

da Justiça que foi chamado em seu quarto pelo escravo Bebiano, para que ele fosse dar parte de

Manoel Antônio pelo fato deste ter ferido os escravos Salomão e Anastácio, ambos de

propriedade de Maria Josefa de Jesus Leite. E no dia seguinte, Felicíssimo levou Manoel

Antônio a mando do seu patrão, o Tenente Coronel Luiz Benedito, juntamente com David

Pereira Leite então amigo de Manoel Antônio, à delegacia para que fossem tomadas as

providencias cabíveis em relação ao fato ocorrido na propriedade da referida senhora.

O que pretendemos com este estudo não é fazer um estudo da criminalidade em São

Luiz de Cáceres, mas sim, através das possibilidades buscar entender os confrontos e conflitos

que envolviam não apenas senhores e escravos, mas também os escravos entre eles própriose

seus parceiros de trabalho, homens livres ou ex-escravos, o que nos permite conhecer mais

acerca das relações cotidianas dos trabalhadores.

Fermino da Fonseca Prestes, de cinquenta e oito anos de idade, solteiro, brasileiro,

natural da Província de São Paulo, vivia de ajuste como arrieiro de tropa, e morador da Jacobina,

disse também que estava dormindo em seu quarto quando foi acordado por Anastácio e João

Faustino, e disseram a ele que fosse ajuda-los a prender a Manoel Antônio por ter ferido

Anastácio e Salomão, e Fermino disse que logo foi imediatamente ajudar a Francisco Pedro de

Figueiredo efetuar a prisão.

Dessa maneira, fica evidente que ambos sabiam o que aconteceria com Manoel

Antônio, pelo mesmo ter cometido tal ato, em meio a estes acontecimentos do sítio da Jacobina,

nos faz pensar e tentarmos responder a inúmeras perguntas, como: O que levou Manoel Antônio

a pegar uma faca e agredir seus companheiros de lida? O que Manoel Antônio disse a Salomão

que logo o deixou enfurecido a ponto de pegar uma foice? E porque Anastácio defendeu

Salomão? Estes e outros questionamentos discutiremos a seguir.Voltando ao segundo

depoimento da primeira testemunha Francisco Pedro de Figueiredo, de trinta anos de idade,

onde respondeu a pergunta do delegado:

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Perguntado se sabia se o reo era desordeiro ou barulhento, e como era ele considerado

no citio: respondeu que não era barulhento nem dersordeiro e que era considerado

como homem sossegado. E dada a palavra ao reo para contestar a testemunha

respondeu que ele estava a atordoado do sono e de uma pinga que haviatomado, e

estando repreendendo Salomão que ele havia criado, Anastácio veio entremeter-se. (

Acervo do Fórum, Caixa n°01 .Processo n°08, p.28. Ano 1878).

Como podemos perceber, em seu depoimento Francisco Pedro deixa claro que o réu

era considerado no sítio da Jacobina como um homem sossegado, ou seja um homem tranquilo

e que não procurava desavença alguma com as pessoas. No próprio depoimento quando dada a

palavra a Manoel Antônio, este dizia que estava atordoado, devido a uma bebida alcoólica que

havia tomado, e repreendendo Salomão, que ele o havia criado, foi quando Anastácio apareceu

e começaram a brigar.

O fato de Manoel Antônio ter criado Salomão é um indício da estreita relação entre

este escravo e aquele agregado, talvez um ex-escravo. Demostra que as redes de sociabilidade

no interior dessa comunidade era forte. Entendemos que ao ser repreendido por Manoel

Antônio, Salomão tenha se agastado. Então se achando injuriado, acabou entrando em discussão

com Manoel Antônio, que por consequência puxou uma faca para Salomão.

Torna-se assim evidente a importância do depoimento destes sujeitos, que até pouco

tempo não apareciam na historiografia brasileira, sujeitos estes que eram testemunhas chave

para desvendarmos o cotidiano dos escravos e dos trabalhadores livres pobres, que a tantos anos

havia sido esquecido nos arquivos públicos. Como aborda Machado (p.23, 1987), é o evento

criminoso que condiciona as confissões e revela-se como o fio condutor do documento,

emprestando significado á pluralidade dos fatos registrados. Embora a violência esteja presente

neste espaço, o cotidiano dos escravos não pode ser deixado de lado, ate porque, a escravidão

deve ser estudada, e o documento é uma peça fundamental que nos conduz, e nos ajuda a

preencher as lacunas encontradas na história da escravidão. Sendo assim o processo criminal,

conduzindo o historiador a estudar não apenas o crime em si, mas como também as tensões

sociais que os sujeitos acabavam gerando.

Voltando a situação em que Manoel Antônio se encontrava, este prestou fiança para

se livrar da cadeia e indicou como seu fiador o cidadão Antônio Pedro de Figueiredo, morador

da cidade de São Luiz de Cáceres, e para testemunhas, o Alferes João Veigas Muniz e José

Dulce, comprometendo-se a depositar a quantia que foi determinada pelos agentes da Justiça.

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Provavelmente, essa é uma medida que indica a tentativa de acusado em restabelecer as antigas

relações de trabalho e convivência na fazenda Jacobina.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio desta pesquisa, constatamos que os escravos, ainda que pertencentes a um

mesmo senhor, não podem ser vistos como uma comunidade homogênea. Entre eles havia

muitas diferenças, como de gênero, ocupações e de interesses. Essas diferenças possibilitaram

o estabelecimento não só de alianças, mas também de rivalidades e brigas entre eles. Da mesma

forma, percebemos que em uma mesma propriedade, como a fazenda Jacobina, trabalhavam

escravos e livres. A convivência entre esses trabalhadores também resultava em relações

harmoniosas e, por vezes, conflituosas.

Por fim, devemos destacar que os registros judiciais dos conflitos foram propiciados

pela iniciativa senhorial de acionar a justiça. Os proprietários queriam, com isso, receber algum

auxílio para reduzir os prejuízos decorrentes da fuga de um escravo condenado pelo crime de

assassinato e o ressarcimento dos gastos provocados pelas lesões em outros dois escravos,

envolvidos numa briga. Em comum, a análise de ambos os processos judiciais demonstra que

através dos atos de violência escrava podemos obter preciosas informações sobre o cotidiano

das relações estabelecidas entre os escravos, bem como entre estes e os demais atores sociais.

FONTES

Núcleo de Documentação de história Escrita e Oral (NUDHEO). Acervo do Fórum de

Cáceres, Caixa s/n .Processo s/n. Ano 1873.

Núcleo de Documentação de história Escrita e Oral (NUDHEO). Acervo do Fórum de

Cáceres, Caixa n°01 .Processo n°08. Ano 1878.

REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS

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Página 100.

CASTENAU. Francis. Expedição ás Regiões Centrais da América do sul. Belo Horizonte. Rio

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CHAVES, Otávio Ribeiro. ARRUDA, Elmar Figueiredo de. História e Memória Cáceres.

Editora Unemat. 2011, p.303.

CHAVES, Otávio Ribeiro. Política de povoamento e a constituição da Fronteira Oeste do

Império Português: A Capitania de Mato Grosso na Segunda Metade do Século XVIII.

Curitiba, 2008. 286f.

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<http://www.monarquia.org.br/PDFs/CONSTITUICAODOIMPERIO.pdf>. Acesso em 22 de

Novembro de 2015.

FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas: 1825 a 1829. São Paulo:

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LARA, Silvia Hunold. Campos da violência. Escravos e senhores na capitania do Rio de

Janeiro, 1750 a 1808. Paz e Terra, 1998.

MATTOS, Hebe Maria. Das cores do Silêncio: os significados da Liberdade no Sudeste

escravista, Brasil século XIX. 2° ed: Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998. 379 p.

MACHADO,Maria Helena Pereira Toledo, Crime e Escravidão: Trabalho, luta e resistência

nas lavouras paulistas, (1830-1888). São Paulo; Brasiliense, 1987.