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VIOLÊNCIA E ESCRAVIDÃO EM VILA MARIA DO PARAGUAI
(SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX)
Tatiane Alves da Silva1
RESUMO
Neste presente texto buscamos uma abordagem relacionada à Vila Maria do Paraguai, na segunda metade do século
XIX, na perspectiva de melhor compreender a violência escrava marcada por conflitos por constituir uma zona
fronteiriça localizada a oeste de Mato Grosso. Foi realizada uma pesquisa em processos crime disponibilizados
pelo Núcleo de Documentação de História Escrita e Oral (NUDHEO/UNEMAT). Neste contexto, entender como
as ações dos escravos influenciavam nas relações com seus companheiros de lida. Com a preocupação de entender
a ocorrência de violência entre os escravos, e focalizá-los em uma dimensão histórica, que seria primordial para
uma melhor interpretação acerca da escravidão presente nesta região, que obtinha características econômicas de
grande importância para a Província.
PALAVRAS-CHAVE: Vila Maria do Paraguai, Escravidão, Violência.
1 INTRODUÇÃO
Esta pesquisa tem por objetivo analisar a violência escrava presente na Vila Maria do
Paraguai (atual município de Cáceres/MT), em meados do século XIX. A referida localização
era uma área peculiar, cuja população era composta por portugueses, brasileiros,
afrodescendentes e índios.
Ao longo da minha formação no curso de Licenciatura em História observei o quanto a
História da escravidão foi importante em nossa região. Também observei que estas questões
nos levam a entender melhor as relações cotidianas dos escravos, bem como os eventos que as
alteravam. Desse modo será enfatizada a existência desses atores sociais enquanto sujeitos
capazes de tecerem suas próprias histórias.
Não obstante os avanços da historiografia brasileira sobre a escravidão, consideramos
importante aprofundar nosso conhecimento a respeito dessa temática em Vila Maria do
Paraguai, na segunda metade do século XIX. Tendo esse propósito, dediquei a observar o uso
da violência entre escravos residentes na referida região.
Dessa maneira, partindo dessas reflexões, optei em analisar a violência física como
1 Graduada em Licenciatura Plena em História pela Universidade do Estado de Mato Grosso- Unemat Campus Cáceres MT.
característica do cotidiano em uma comunidade escrava2 não estando restrito ao exercício do
domínio senhorial. E este foi tema central de diversos estudos relacionados a outras partes do
Brasil, entre os quais podemos destacar o de Silvia Lara, Maria Helena Machado e Hebe Mattos.
De início, ressalto que a pesquisa foi realizada por meio de fontes documentais
localizadas no Núcleo de Documentação de História Escrita e Oral (NUDHEO/UNEMAT).
Tratam-se de processos crimes e a partir das informações contidas nesses autos judiciais busco
observar mais do que a violência que marcava as relações entre senhor e escravo: o
foco são as brigas, mortes e lesões que resultaram dos conflitos estabelecidos entre os próprios membros
da comunidade de escravos.
Com esse intuito, no primeiro capítulo foi elaborada uma breve síntese da história de
Vila Maria do Paraguai, e sua importância para a província de Mato Grosso, e entender que tais
fatos estão interligados, dando ênfase na presença de mão de obra de escrava nessa região. No
segundo capítulo foi analisada a violência presente em Vila Maria do Paraguai através de um
processo crime, referente a um assassinato envolvendo escravos, ocorrido em Vila Maria do
Paraguai em 1873, abordando as negociações que envolviam senhor, feitor e grupos de
escravos. No terceiro capítulo também foi analisado a presença da violência, através de um
processo crime relacionado à ofensa física, envolvendo escravos na Fazenda Jacobina. Por fim,
foram tecidas algumas considerações referentes à questão em análise.
2 VILA MARIA DO PARAGUAI
A escravidão caracterizou-se com a posse do homem sobre o homem. O cativo era tido
como mercadoria, ou seja, como uma propriedade dos senhores. Ser negro era viver sob a
escravidão, significava submeter-se à condição de propriedade. Significava ficar sob o domínio
de seu senhor, trabalhar dia após dia e em diversas ocupações, segundo as ordens senhoriais.
Percebe-se isto através dos processos analisados sobre escravos de senhores em Vila Maria do
Paraguai, na segunda metade do século XIX.
Otávio Ribeiro Chaves, em seu texto “Império Português: O Marco de Jauru e a
povoação fronteiriça de Vila Maria do Paraguai, Século XVIII”, fala como e porque surgiu Vila
Maria:
2 O termo foi empregado por Hebe Maria Mattos. MATTOS, Hebe Maria. Das cores do Silêncio: os significados
da Liberdade no Sudeste escravista, Brasil século XIX. 2° ed: Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998. 379 p.
Após a assinatura do Tratado de Madri, em 1750, uma ardilosa política de povoamento
e demarcação do território da América portuguesa foi incrementada, visando à criação
de núcleos urbanos e a fixação de população. Ações estas que eram interdependentes,
não isoladas. A Oeste da capitania geral do Cuiabá e Mato Grosso, em 1754, com o
advento da terceira partida demarcatória foi fixado o Marco de Jauru, representação
material de uma época de disputas fronteiriças entre Portugal e Espanha na América
do Sul. Portanto, mais de duas décadas separam a fixação do Marco de Jauru (1754)
da criação da Vila Maria do Paraguai (1778), ações que se enquadravam no plano
político, administrativo, econômico e populacional da Coroa Portuguesa, que deram
origem à porção atual da fronteira oeste do Brasil (CHAVES, 2011, p. 12).
Vila Maria do Paraguai foi fundada no ano de 1778 como eixo de consolidação da
expansão territorial fronteiriça da costa oeste da América portuguesa, numa disputa entre
Portugal e Espanha, sob o comando do capitão general Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e
Cáceres, governador da Capitania de Mato Grosso, e tal povoado contava inicialmente com a
participação de mais de sessenta índios chiquitos, conforme termo de fundação enviado a
Lisboa. Mas, depois da fundação, outras levas de índios foram trazidos a Vila Maria,
ocasionando a miscigenação étnica existente entre Mojos, Chiquitos, Bororos, Guató e etc.
Chaves cita Antônio Manuel Hespanha que fala sobre poder afirmar que a estrutura do
governo nos moldes tradicionais era inspirado no modelo administrativo da época no reino, pois
segundo Hespanha “foi a excepção, reservada às zonas de ocupação terrestre mais permanente;
ainda que modificada, quer no seu aspecto institucional, quer na forma como foi praticada” e
que “instituições e formas de domínio ultramarino constituem um enquadramento político
administrativo mais débil, pelo menos do ponto de vista formal” (HESPANHA apud CHAVES,
2011, p. 14), sendo possível estabelecer uma gradação entre expedientes formais de domínio
partindo do tradicional ao formal como também influencia mercantil e eclesiástica.
Assim, além de estratégia de defesa havia também a estratégia de colonização e
estratégia administrativa política, pois não eram apenas mais locais a serem fundados, mas sim
localidades que precisavam de aparatos legais para seu funcionamento e manutenção:
Entenda-se por criação de núcleos urbanos, não somente a fundação de novas vilas,
mas também a atribuição desse estatuto a antigas povoações (aldeamentos, lugares,
freguesias e arraiais). Importante lembrar que o termo vila (ou cidade) atribuía um
estatuto político à povoação, com uma jurisdição de justiça e de administração locais.
Símbolo de autonomia municipal, a Câmara, todavia, tinha as suas atividades
fiscalizadas por funcionários régios que garantiam uma relativa homogeneidade
quanto ao trabalho administrativo e de justiça que os vereadores e juízes ordinários
realizavam. Ao mesmo tempo em que novas vilas e cidades estavam sendo criadas, o
governo português legislava sobre o estatuto político de seus súditos americanos. Os
indígenas e os mestiços de pais índios que antes não detinham os privilégios de
vassalos do reino, passam a ser reconhecidos como tais, procurando-se conduzir essas
populações para viverem sob a égide das câmaras municipais (SANTOS, 1999, p. 68).
Portugal dependia dessas ocupações para fixar e preservar seus domínios e, com isso,
recuperar-se economicamente, pois a Coroa portuguesa media forças com a Espanha. Assim, o
rei português não pretendia perder domínios para os espanhóis.
O surgimento de Vila Maria do Paraguai trouxe preocupações para Portugal, porque
não era apenas criar, era também “civilizar” os novos e velhos súditos da Coroa. Maria de
Fátima Mendes de Lima Moraes fala que “Vila Maria seria um espaço social, segundo os seus
idealizadores/construtores, em que deveriam incidir as concepções culturais de onde
provinham” (2003, p. 61).
A incorporação indígena era interessante aos portugueses por assegurar a posse da
região fronteiriça, aumentando a população por meio de casamentos étnicos e com os filhos dos
mestiços sendo considerados mais resistentes a doenças. Essa ocupação também se fez por
conta das milícias indígenas. Segundo o relato de Hércules Florance, um viajante francês que
participou da expedição Langsdorff no ano de 1825 a 1828, a fazenda Jacobina que tinha como
proprietários o Sargento-Mor João Pereira Leite esposo de Maria Josefa de Jesus Leite, fazenda
esta localizada em Vila Maria do Paraguai que possuía:
Duzentos escravos de trabalho dos dois sexos e sessenta crianças formavam toda a
escravatura desse estabelecimento; mas havia quase igual número de gente forra entre
agregados, crioulo, mulatos e índios, que trabalhavam mais ou menos para si, ou pagos
pelo proprietário (FLORENCE, 1977, p.182).
Como podemos perceber a economia gerada na fazenda jacobina não se fazia apenas
da mão de obra escrava mas como também da mão de obra indígena que ali existiam.
A localização favorecia o crescimento populacional, ainda que a população existente
fosse formada, em sua maioria, de índios chiquitanos e seus descendentes. De modo geral, os
relatos a respeito de Vila Maria do Paraguai enfatizam que o local estava passando por um
processo de desenvolvimento, proporcionado pela existência do rio Paraguai e de suas riquezas
naturais.
No ano de 1874, Vila Maria do Paraguai passou a se chamar São Luiz de Cáceres,
graças a uma lei que a elevou à condição de município, sendo também elevada a sede da 2ª
comarca judiciária de Mato Grosso. Segundo Mendes (2009, p.50), Vila Maria do Paraguai
ultrapassa os limites da categoria recebida em 1859, graças ao desenvolvimento da sua pecuária,
indústria extrativa e facilidade de navegação fluvial.
Após esse momento, a então São Luiz de Cáceres passa por inúmeras transformações
que exprimiam uma nova condição socioeconômica local. Mesmo sendo uma cidade periférica,
passou por transformações que passavam os grandes centros econômicos como: reconfiguração
moderna e interiorização ideológica. As mudanças passadas em Vila Maria do Paraguai
ocorreram principalmente após a reabertura da navegação do rio Paraguai.
2.1 A violência escrava em Vila Maria do Paraguai
No dia 30 de junho de 1873, dois escravos do Alferes José Augusto Pereira Leite, um de
nome Ventura e o outro Faustino, se envolveram em uma briga, que acabou resultando em
morte. O escravo Ventura matou o escravo Faustino e, em seguida, fugiu. Diante desses fatos,
o delegado de polícia, José Maria de Pinho, fora encarregado de averiguar o ocorrido no sítio
Quilombo. Destacamos assim um trecho do relato do Alferes José Augusto Pereira Leite feito
ao agente da segurança pública, no ano de 1873:
Depois de fazer reunir toda a minha gente que existião empregados em differentes
destinos em serviço, fui informado que no referido dia só existião os escravos de
nomes Faustino, Ventura, e a escrava de nome Angelica com sua filha de menor idade
Francelina, a vista do que informou-me a referida escrava que, estando ella em sua
casa (na sensala), ouvio gritos de sua filha que estava no terreiro, logo depois ouvio
mais gritos a vista do que ella acudindo encontrou os escravos de nome Faustino
offendido com uma facada, e o escravo Ventura presente, porém que ambos existião
com faca fora da bainha, correndo ella para a casa de minha residência a dar parte ao
encarregado Lunguinho, na sua volta encontrarão já o offendido sem falla, e que logo
depois espirou, isto as 7 p/ 8 horas da noite mais ou menos e já não existia o de nome
Ventura. (Acervo do Fórum de Cáceres, Caixa s/n
.Processo s/n. p.03. Ano 1873).
Podemos perceber através dos autos de averiguação feitos pelo delegado de polícia
que o alferes José Augusto Pereira Leite não se encontrava no local quando ocorreu o crime, e
sim os escravos de nome Ventura, Faustino, Angélica e sua filha de menor Francelina.
Conforme aborda Maria Helena Machado, deve-se considerar que nas relações
historicamente estabelecidas entre senhores e escravos residiam os nexos de um extenso sistema
de hegemonia senhorial, a historiografia sobre escravidão tem buscado resgatar o escravo e seu
universo social (Machado, p.13, 1987). Enfatizando assim a relação entre senhor e escravo,
focalizá-los em uma dimensão histórica seria primordial para uma melhor compreensão acerca
da escravidão. Através destas abordagens podemos perceber que só existiam escravos no local
e que havia a presença de uma relação de confiança entre senhor e escravos, pelo fato do senhor
deixar sua propriedade sob responsabilidade dos mesmos.
Voltemos então a atenção ao modo e ao comportamento do senhor que de certa forma,
demonstra que suas relações com cativos era de confiabilidade, tornando explícito um elo entre
senhor e escravo, na busca de manter uma relação de troca e na concretização e funcionamento
do sistema. Conforme Aborda Silvia Lara (p.165, 1998), a relação entre senhores e escravos
era, sem dúvida alguma, uma relação pessoal de dominação. Dessa maneira o poder senhorial
se afirmava no cotidiano, através da convivência.
Tendo em vista que a escrava Angélica estava presente no local do crime voltemos a
atenção para um trecho de seu testemunho, dado ao escrivão e ao delegado:
Compareceu a escrava Angélica, de propriedade do mesmo Alferes José Augusto
Pereira Leite e pelo dito juiz lhe forão feitas as perguntas sobre a morte do escravo
Faustino como adiante se segue: Perguntado se sabia como se deu o facto da morte do
escravo Faustino? Respondeu que em um domingo no entrar do sol, estando ella em
sua caza na senzala, ouvio gritos de uma sua filha menor e sahindo para ve-la
encontrou o escravo Faustino agarrado com outro de nome Ventura, ambos de faca
desembainhada, com o que ella informante dirigio-se a caza de morada do seu senhor
a chamar o escravo de nome Lunguinho para acudir ou apartar aquele barulho, porém
voltando com o referido Lunguinho ao lugar onde se acharão os dois já encontrarão
os escravo Faustino com uma facada nas verilhas e já sem fala e o de nome Ventura
não se achava no lugar. (Acervo do Fórum de Cáceres, Caixa s/n .Processo s/n. p.05-
verso. Ano 1873).
Quanto aos detalhes dos acontecimentos do sítio, temos a versão de Angélica, que
então tinha vinte e cinco anos de idade, “pouco mais ou menos”, escrava do mesmo Alferes
José Augusto Pereira Leite, solteira, moradora e natural de Vila Maria.
Angélica presenciou o momento em que os dois escravos estavam em luta corporal.
Em seu relato para a polícia, ela disse que Ventura e Faustino se encontravam no local e ambos
com faca na mão, e que ela logo correu para a casa do senhor Pereira Leite, a chamar pelo
escravo de nome Lunguinho que fora encarregado de cuidar da propriedade. Mas que ao
retornar em sua companhia já encontraram Faustino sem fala e logo depois, ele acabou
morrendo devido aos ferimentos, e o escravo agressor já havia fugido do local.
Devemos assim considerar, entre outros aspectos, a questão econômica, destacando o
papel do escravo como ferramenta primordial na produção e no desenvolvimento da produção.
Lembramos que a proibição do tráfico em 1850 fez com que aumentassem os preços dos
escravos e possui-los, desde então, passou a ser privilegio para ricos. E o senhor ao perder dois
escravos – um morto e outro fugido – era considerado prejuízo, pois o escravo era um bem de
grande valia e de difícil reposição.
Considerando também que o escravo não era apenas um mero objeto, mas também um
sujeito capaz de conduzir e controlar suas próprias vontades e seus interesses particulares,
através da convivência no cotidiano, de forma a interagir no universo do senhor, fez com que
estes sujeitos pudessem estabelecer uma relação de troca, na busca pela sobrevivência.
Segundo Machado (1987, p. 18), “o escravo é, pois, um agente social e o prova a
necessidade com que se defrontaram os senhores de produzir mecanismos acomodadores de
suas relações com o mesmo”. Tornando comum uma relação voltada para a ordem, reagindo
seja pela convivência tranquila, articulada a convivência de forma passiva, em que ambos
ganhariam algo em troca. Através das formas de resistência, podemos entender que, estes
sujeitos tiveram seus espaços conquistados, frente à condição de escravo, em meio ao mundo
do senhor.
Viver sob a escravidão seria viver em um espaço permeado por conflitos, se tornando
parte de um sistema no qual estava sujeito a qualquer forma de interação, seja pela adaptação
de modo tranquilo, como também de maneira agitada. Analisaremos então o testemunho de
Lunguinho, o escravo que trabalhava no sítio como feitor:
Perguntado se sabia que entre Faustino e Ventura havia alguma rixa e que desse lugar
ao acontecimento? Respondeu que não havia rixa alguma e que pelo contrário erão
muito amigos. Perguntado se Ventura não apareceu até hoje? Respondeu que ainda
não apareceu e nem dele tem notícia. (Acervo do Fórum de Cáceres, Caixa
s/n.Processo s/n. p.06- verso. Ano 1873).
Através do testemunho de Lunguinho Pereira Leite, escravo do Alferes José Augusto
Pereira Leite de quarenta anos de idade “mais ou menos”, solteiro, natural de Villa Maria, feitor
do sítio Quilombo, percebemos que os escravos envolvidos na briga eram amigos, e entre eles
não havia, até o momento, nenhuma desavença ou qualquer tipo de rixa. Estes fatos provindos
do documento, nos faz refletir acerca desta relação entre ambos, nos fazendo indagar sobre
determinados detalhes.
Se ambos eram amigos e não havia nenhuma rixa, o que poderia ter acontecido para
que Ventura pudesse agir de tal forma e chegar até mesmo a ferir o escravo Faustino, que era
seu “amigo”, ao ponto de matá-lo? Durante as averiguações, fora observado que Angélica e sua
filha de menor idade eram as únicas escravas mulheres que morava no sítio denominado
Quilombo. Portanto, a mulher escrava ocupava um papel crucial dentro deste contexto.
Voltando então a nossa atenção aos detalhes, neste período Angélica tinha mais ou
menos vinte e cinco anos de idade, esta poderia ter sido “alvo” de disputa entre Faustino e
Ventura, disputa esta que poderia ter ocasionado um desentendimento entre os escravos que
estavam no sítio naquela tarde de domingo.
Através das averiguações, constam que o escravo Ventura fugiu, e nem mesmo o
encarregado Lunguinho que também era escravo, sabia para onde ele havia ido e também não
teve mais notícias suas.
Dessa maneira, podemos perceber que a violência não se restringia apenas ao
exercício do domínio senhorial, mas estava também presente no meio dos próprios escravos
que não podem ser visto como uma massa homogênea, desprovida de diferentes interesses e
identidades. Das diferenças poderiam resultar desentendimentos, por vezes, explícitos e
registrados em documentos, quando, por exemplo, era preciso acionar a intermediação da
Justiça.
Nessa perspectiva, o escravo quebra a ideia de ser passivo, ingênuo e alienado.
Através da violência empregada, o casamento, a formação da família, também eram uma forma
de demonstrar sua força e capacidade em planejar, de criar estratégias, e domínio de território.
Muitas vezes, os escravos rebelavam-se contra seus senhores, com escravos do mesmo grupo,
ou funcionários e fugiam. Como foi o caso de Ventura que matou seu colega escravo e logo
fugiu.
Também percebemos que a fazenda Jacobina de propriedade de Maria Josefa Pereira
Leite, era próxima ao sitio Quilombo, que ficava a mais ou menos seis léguas de distancia entre
uma propriedade e outra. Segundo Silvia Lara (1988, p.166), “o feitor não só se constituía na
figura da violência, mas também na do regulador do trabalho no interior das unidades
produtivas”.
Devemos considerar que o crime em si, as ofensas, eram fundamentais para desvendar
o que ocorria no universo do escravo, e cada detalhe em relação ao crime, e a cada confissão,
vão se tornando peças que vão se encaixando e remontando um cenário pelo qual o escravo era
o ator principal, revelando assim as tensões sociais que acabavam gerando uma pluralidade de
acontecimentos, demonstrando que o escravo não era apenas uma ferramenta de trabalho, mas
também um ser capaz de agir e reagir a determinadas situações.
Tendo como principal objetivo senhorial manter os fins econômicos, o senhor
mantinha seus escravos no sítio Quilombo de maneira tal que pudessem trabalhar de forma
organizada. Dessa maneira, ficava sob a responsabilidade do senhor e do feitor manter a ordem
e a disciplina entre os escravos. Um escravo indisciplinado poderia também sofrer as
penalidades da lei, a menos que seu senhor, desfrutando de sua autoridade, viesse a resolver de
forma particular os casos de violência em sua senzala, sem envolver a Justiça. Mas neste caso,
o senhor José Augusto Pereira Leite fora até a delegacia dar seu depoimento a respeito do que
fora lhe informado, e relatar sobre o fato ocorrido com seu escravo, e teve ainda prejuízo, com
a morte de um escravo e a fuga do outro.
Talvez o que o tivesse motivado era este último incidente. O Alferes Pereira Leite
poderia estar interessado em obter a ajuda dos agentes da Justiça para encontrar seu escravo
fugido. Por isso, recorreu à Justiça ao invés de praticá-la com suas próprias mãos. Como ressalta
Machado (p.28, 1987), “aspecto de fundamental importância para a compreensão da sub-
representação da criminalidade escrava, prende-se à consideração do valor econômico do cativo
e dos prejuízos acarretados pela sua prisão ou pelos reflexos das mutilações impostas pelas leis
penais”.
Para além disso, cabe aqui destacar que a presença da violência no ambiente escravista
acabava se tornando alvo de maior vigilância, criando assim uma margem de negociação e
tensão entre senhor e escravos. Em meio ao silêncio das testemunhas, podemos entender que
havia medo ou até mesmo uma iniciativa de esconder o paradeiro do escravo Ventura. De certa
maneira, era ao lado de seus companheiros que os escravos entravam em um campo de disputas
com outros indivíduos, buscando auxílio para assim viver da melhor maneira possível, para
manter sua existência. Machado, (p.60, 1987), demonstrou que a “acomodação e resistência,
cooptação e ruptura descreveram assim movimentos pendulares, conformando um mundo
social, marcado pelo equilíbrio instável, perpassado de tensões”.
De acordo com o trecho citado e encontrado no processo crime, no dia 24 de setembro
de 1874, Ventura foi condenado no grau máximo do artigo 193 do código criminal paragrafo
1°, 4°, 15°. E o senhor José Augusto Pereira Leite teve que arcar com as custas processuais:
Portanto pronuncio o réo Ventura incurso no artigo 193 do código criminal como o
autor do homicídio cometido na pessoa de seu parceiro Faustino (por não estar
provado que com o mesmo homicídio tenha concorrido qualquer das circunstancias
indicadas no artigo 192 do citado código) e assim o sujeito a pagar pelo senhor do dito
reo as custas deste processo. O escrivão passe sem demora o mandado de prisão contra
o lance, seu nome no ról dos culpados e remetto os autos aos jus Dr. Juís de Direito
da comarca, para quem recorro ex officcio na forma do deposto no artigo 2°do decreto
n°707de 9 de outubro de 1850. (Acervo do Fórum, Caixa s/n .Processo s/n. p.43. Ano
1874).
Sendo assim, torna-se evidente que o escravo Ventura foi condenado à prisão pelo
artigo 2° do decreto n°707 de 9 de outubro de 1850. O escravo foi considerado culpado pelo
assassinato de Faustino, que foi morto no sítio Quilombo, de propriedade do Alferes José
Augusto Pereira Leite.
A partir do desenvolvimento dessas manifestações, passamos a perceber o interesse
pelo senhor em recuperar o escravo que foi perdido, em consequência do crime ocorrido no
sítio.
2.2 Fazenda Jacobina no contexto da Escravidão
Segundo Mônica Salomão (p,23, 2012), a Fazenda Jacobina surgiu no contexto rural
distante dos núcleos urbanos maiores da capitania de Mato Grosso, portanto, foi o núcleo
irradiador do povoado de Vila Maria do Paraguai. Conforme o que vimos no segundo capítulo,
o sítio Quilombo ficava próximo à fazenda Jacobina, que era de propriedade de Maria Josefa
de Jesus Leite.
No dia 29 de outubro de 1878, dois escravos de nomes Anastácio e Salomão de
propriedade de Maria Josefa de Jesus Leite, se envolveram em uma briga com o ferreiro Manoel
Antônio de Jesus que também trabalhava para a mesma senhora. O ferreiro feriu os escravos
Anastácio e Salomão e, em seguida, foi retido e enviado aos agentes da Justiça. Diante destes
fatos, o delegado de polícia, João Alves da Costa Garcia, fora encarregado de averiguar o
ocorrido na fazenda Jacobina. Destacamos, assim, um trecho dos autos de corpo de delito feitos
pelos agentes da Justiça:
Às duas horas da tarde aproximadamente, em o lugar denominado – Jacobina, de
propriedade de Dona Maria Josefa de Jesus Leite, destricto da cidade de São Luiz de
Cáceres, da Província de Matto-Grosso, presentes o Miritissimo Delegado de policia
substituto do Termo, o Tenente João Alves da Costa Garcia, comigo escrivão no fim
deste nomeado e assignado, os peritos notificados Pharmaceutico contractado –
Lourenço Anastácio Monteiro de Mendonça e Alferes José Luiz Moreira Serra, e as
testemunhas Francisco Pedro de Figueiredo e Antonio Luiz de Camargo, moradores
do termo da dita cidade. ( Acervo do Fórum, Caixa n°01 .Processo n°04. p.06. Ano
1878).
Conforme o que foi relatado por meio da averiguação feita, o crime ocorreu em São
Luiz de Cáceres e, segundo os autos de corpo de delito, fora contratado o farmacêutico para que
fizessem as análises de corpo de delito nos escravos ofendidos fisicamente. Então passaram os
peritos a fazer os exames que julgaram necessários e, ao concluí-los, declararam que, no escravo
Salomão havia um ferimento nas costas, aproximando o lado descrito, com a dimensão de
quatro centímetros de largura sobre cinco de profundidade. Já no escravo Anastácio, o
ferimento era no pescoço, pendendo para o lado esquerdo, atingindo apenas algumas pequenas
artérias, medida de três centímetros de largura sobre dois de profundidade. Os danos causados
nos escravos custaram o valor de trinta mil réis, contando com o curativo.
Dessa maneira, percebemos que o ferreiro Manoel Antônio agrediu e feriu seus colegas
de trabalho, escravos, no mesmo local de morada de todos eles e agora procuremos
compreender as seguintes questões: Qual a relação entre estes escravos e o ferreiro no ambiente
de trabalho? Qual o motivo pelo qual levou o ferreiro a agredir os escravos de dona Maria Josefa
de Jesus Leite? Dentre estas e outras questões, tentaremos compreendê-las ao longo da análise
do processo crime.
Anastácio Pereira Leite, escravo de trinta e oito anos de idade, solteiro, filho de Maria
Theresa, natural de São Luiz de Cáceres, roceiro e escravo de Dona Maria Josefa de Jesus Leite,
não sabia ler e nem escrever, e deu seu depoimento aos agentes da Justiça, alegando ter sido
agredido por Manoel Antônio, como vemos no trecho a seguir:
Perguntado como se tinha passado o facto de ser ferido? Respondeu que estando no
seu quarto já deitado ouviu voserias no terreiro da casa e sahindo para observar o
motivo dessa voserias encontrou Manoel Antônio com uma faca em punho e Salomão
com uma foice a vista do que elle fez com que Salomão deixasse da foice e retirasse
para seu quarto com isto o dito Manoel Antônio partio sobre elle com a faca com que
estava por de traz e fez-lhe o ferimento constante.( Acervo do Fórum de Cáceres,
Caixa n°01 .Processo n°08. p.06. Ano 1878).
Como vemos no depoimento acima, Anastácio estava em seu quarto quando escutou
Salomão e Manoel Antônio discutindo no terreiro, foi até lá tentar apartar a briga, e acabou
sendo esfaqueado por este último. Em seu momento de fúria, o ferreiro partiu pra cima do
escravo e o feriu pelas costas.
Podemos perceber que havia uma relação entre Salomão e Anastácio, e um esforço por
parte de Anastácio entender o que se passava naquele momento. Demostrando assim, que estes
sujeitos apresentavam-se próximos uns dos outros, porém de maneira diferente, onde construíra
a diferença entre os membros de uma comunidade, os quais mantinham relações múltiplas.
Como aborda Maria Helena Machado (p.22, 1987) o que se busca é apreender nas
entrelinhas do documento o testemunho do outro, ou seja, das massas anônimas que, apesar de
marginalizadas do discurso institucional, nele se colocam de maneira sutil mas indubitável. Os
conflitos encontrados nos processos demonstram que havia uma relação de poder e negociação,
que teciam a uma trama que poderia levar a desavenças ou ate mesmo a convivência tranquila
entre um escravo e outro. Formando assim uma irmandade entre um grupo, pelo qual viviam
determinadas situações, unidos pelas condições sociais.
Como vemos no depoimento de Salomão Pereira Leite, solteiro, de vinte anos de idade
mais ou menos, filho de Henriqueta, natural da referida cidade de São Luiz de Cáceres, roceiro,
e não sabia ler e escrever:
Perguntado como se tinha passado o facto de ser ferido? Respondeu que estando
Manoel Antônio em sua casa, estava d’ali a boquejar com Anástacio que era seu
vizinho pelo que elle ofendido dirigiu-se a casa de Manoel Antonio a pedir-lhe que
deixasse de barulho, este não lhe atendendo puxou por uma faca e partio para elle com
o que tratou de defender na mesma casa, neste ato veio Anastácio a fim de apasiguar
e evitar qualquer delicto que pudesse haver, foi então nessa ocasião que recebeu o
ferimento mencionado no respectivo auto.( Acervo do Fórum de Cáceres, Caixa n°01
.Processo n°08, p.06. Ano 1878).
Segundo o depoimento de Salomão, o mesmo pedira para que Manoel Antônio parasse
de brigas, e deixasse de conflitos, mas não foi o que aconteceu, e Manoel acabou agredindo- os
com a faca. Nesta mesma perspectiva podemos perceber que ambos eram vizinhos,
demostrando assim que conviviam de maneira bem próximas uns dos outros, dividiam
praticamente os mesmos espaços. Mas Manuel Antônio era homem livre, talvez ex-escravo.
As brigas e os desentendimentos cometidos entre escravos e não escravos também
eram controladas. Havia uma vigilância exercida, não apenas no interior da própria população
escrava, mas como também pela justiça. Aqui devemos considerar o fato de dois escravos,
propriedades de uma senhora terem sido lesionados por um terceiro. O fato indica que o
incidente parou na delegacia para que os prejuízos fossem ressarcidos. Por isso e por causa do
seu registro, podemos observar o cotidiano das relações entre trabalhadores escravos e livres
agregados em uma importante fazenda de São Luíz de Cáceres.
Segundo o depoimento de Salomão, o mesmo pedira para que Manoel Antônio parasse
de brigas, e deixasse de conflitos, mas não foi o que aconteceu, e Manoel acabou agredindo- os
com a faca. Nesta mesma perspectiva podemos perceber que ambos eram vizinhos,
demostrando assim que conviviam de maneira bem próximas uns dos outros, dividiam
praticamente os mesmos espaços. Mas Manuel Antônio era homem livre, talvez ex-escravo.
As brigas e os desentendimentos cometidos entre escravos e não escravos também
eram controladas. Havia uma vigilância exercida, não apenas no interior da própria população
escrava, mas como também pela justiça. Aqui devemos considerar o fato de dois escravos,
propriedades de uma senhora terem sido lesionados por um terceiro. O fato indica que o
incidente parou na delegacia para que os prejuízos fossem ressarcidos. Por isso e por causa do
seu registro, podemos observar o cotidiano das relações entre trabalhadores escravos e livres
agregados em uma importante fazenda de São Luíz de Cáceres.
Voltemos então a atenção para o depoimento de Francisco Pedro de Figueiredo, de
trinta anos de idade, lavrador, solteiro, morador de São Luiz de Cáceres, natural da Província
de Mato Grosso:
E sendo requerido sobre os ferimentos de Anastácio e Salomão, constante do auto de
corpo de delito que lhe foi lido: respondeu que na noite de sábado da semana passada
achando elle testemunha dormindo em um dos quartos das casas do sítio da Jacobina
lhe batera na porta o escravo Anastácio dizendo-lhe que prendesse a Manoel da Tenda
que lhe havia offendido a ellle e Salomão o que elle testemunha assim fez
imediatamente visto os dous escravos offendidos. (Acervo do Fórum de Cáceres,
Caixa n°01 .Processo n°08, p.11- verso. Ano 1878).
Através do testemunho de Francisco Pedro de Figueiredo, podemos perceber que este
não estava presente no momento do fato ocorrido, pois estava em seu quarto e foi chamado por
Anastácio, para que denunciasse Manoel Antônio à polícia, por ter ferido a ele e Salomão com
uma faca.
Francisco Pedro foi questionado se sabia com que instrumento Manoel Antônio havia
feito os ferimentos em Salomão e Anastácio. Francisco respondeu que sabia que fora feito com
uma faca por ter visto a dita arma no chão, suja de sangue. E ao perguntarem a Manoel Antônio
se o mesmo contestaria o que foi dito por Francisco Pedro, o acusado do crime respondeu que
não contestava, por ter sido verdade o que Francisco Pedro havia dito.
Deste modo confirmando o que Salomão e Anastácio haviam dito para os agentes da
Justiça em seus depoimentos, a testemunha Francisco Pedro afirma que houve um
desentendimento entre os escravos, que acabou ocasionando em prejuízo, para Dona Maria
Josefa de Jesus Leite, a então proprietária dos escravos, que devia querer ser indenizada.
Continuando, o próximo depoimento tomado foi o de Felicíssimo da Costa Nunes, de
trinta e dois anos de idade, que vivia de seus serviços como camarada do Major João Carlos
Pereira Leite.
E sendo inquirido sobre os ferimentos dos escravos Anastácio e Salomão, conforme
o auto de corpo de delito, que todo lhe foi lido. – respondeu que sabia por ouvir dizer,
que na noite de sábado as onze horas mais ou menos os escravos Bebiano lhe batera
na porta do quarto em que dormia e ahi passou a contar-lhe que Manoel da Tenda
Tinha faquiado Anastácio e Salomão na porta do seu referido quarto e via que
conduzião a prisão d’aquelle sitio o réo presente a que no dia seguinte lhe foi ordenado
pelo seu patrão o senhor Tenente Coronel Luiz Benedicto para conduzir o réo presente
a esta cidade á fim de ser entregue a justiça, assim o fiz acompanhado de David Pereira
Leite.( Acervo do Fórum, Caixa n°01 .Processo n°08, p.12-verso. Ano 1878).
De acordo com o depoimento de Felicíssimo da Costa Nunes, este disse aos agentes
da Justiça que foi chamado em seu quarto pelo escravo Bebiano, para que ele fosse dar parte de
Manoel Antônio pelo fato deste ter ferido os escravos Salomão e Anastácio, ambos de
propriedade de Maria Josefa de Jesus Leite. E no dia seguinte, Felicíssimo levou Manoel
Antônio a mando do seu patrão, o Tenente Coronel Luiz Benedito, juntamente com David
Pereira Leite então amigo de Manoel Antônio, à delegacia para que fossem tomadas as
providencias cabíveis em relação ao fato ocorrido na propriedade da referida senhora.
O que pretendemos com este estudo não é fazer um estudo da criminalidade em São
Luiz de Cáceres, mas sim, através das possibilidades buscar entender os confrontos e conflitos
que envolviam não apenas senhores e escravos, mas também os escravos entre eles própriose
seus parceiros de trabalho, homens livres ou ex-escravos, o que nos permite conhecer mais
acerca das relações cotidianas dos trabalhadores.
Fermino da Fonseca Prestes, de cinquenta e oito anos de idade, solteiro, brasileiro,
natural da Província de São Paulo, vivia de ajuste como arrieiro de tropa, e morador da Jacobina,
disse também que estava dormindo em seu quarto quando foi acordado por Anastácio e João
Faustino, e disseram a ele que fosse ajuda-los a prender a Manoel Antônio por ter ferido
Anastácio e Salomão, e Fermino disse que logo foi imediatamente ajudar a Francisco Pedro de
Figueiredo efetuar a prisão.
Dessa maneira, fica evidente que ambos sabiam o que aconteceria com Manoel
Antônio, pelo mesmo ter cometido tal ato, em meio a estes acontecimentos do sítio da Jacobina,
nos faz pensar e tentarmos responder a inúmeras perguntas, como: O que levou Manoel Antônio
a pegar uma faca e agredir seus companheiros de lida? O que Manoel Antônio disse a Salomão
que logo o deixou enfurecido a ponto de pegar uma foice? E porque Anastácio defendeu
Salomão? Estes e outros questionamentos discutiremos a seguir.Voltando ao segundo
depoimento da primeira testemunha Francisco Pedro de Figueiredo, de trinta anos de idade,
onde respondeu a pergunta do delegado:
Perguntado se sabia se o reo era desordeiro ou barulhento, e como era ele considerado
no citio: respondeu que não era barulhento nem dersordeiro e que era considerado
como homem sossegado. E dada a palavra ao reo para contestar a testemunha
respondeu que ele estava a atordoado do sono e de uma pinga que haviatomado, e
estando repreendendo Salomão que ele havia criado, Anastácio veio entremeter-se. (
Acervo do Fórum, Caixa n°01 .Processo n°08, p.28. Ano 1878).
Como podemos perceber, em seu depoimento Francisco Pedro deixa claro que o réu
era considerado no sítio da Jacobina como um homem sossegado, ou seja um homem tranquilo
e que não procurava desavença alguma com as pessoas. No próprio depoimento quando dada a
palavra a Manoel Antônio, este dizia que estava atordoado, devido a uma bebida alcoólica que
havia tomado, e repreendendo Salomão, que ele o havia criado, foi quando Anastácio apareceu
e começaram a brigar.
O fato de Manoel Antônio ter criado Salomão é um indício da estreita relação entre
este escravo e aquele agregado, talvez um ex-escravo. Demostra que as redes de sociabilidade
no interior dessa comunidade era forte. Entendemos que ao ser repreendido por Manoel
Antônio, Salomão tenha se agastado. Então se achando injuriado, acabou entrando em discussão
com Manoel Antônio, que por consequência puxou uma faca para Salomão.
Torna-se assim evidente a importância do depoimento destes sujeitos, que até pouco
tempo não apareciam na historiografia brasileira, sujeitos estes que eram testemunhas chave
para desvendarmos o cotidiano dos escravos e dos trabalhadores livres pobres, que a tantos anos
havia sido esquecido nos arquivos públicos. Como aborda Machado (p.23, 1987), é o evento
criminoso que condiciona as confissões e revela-se como o fio condutor do documento,
emprestando significado á pluralidade dos fatos registrados. Embora a violência esteja presente
neste espaço, o cotidiano dos escravos não pode ser deixado de lado, ate porque, a escravidão
deve ser estudada, e o documento é uma peça fundamental que nos conduz, e nos ajuda a
preencher as lacunas encontradas na história da escravidão. Sendo assim o processo criminal,
conduzindo o historiador a estudar não apenas o crime em si, mas como também as tensões
sociais que os sujeitos acabavam gerando.
Voltando a situação em que Manoel Antônio se encontrava, este prestou fiança para
se livrar da cadeia e indicou como seu fiador o cidadão Antônio Pedro de Figueiredo, morador
da cidade de São Luiz de Cáceres, e para testemunhas, o Alferes João Veigas Muniz e José
Dulce, comprometendo-se a depositar a quantia que foi determinada pelos agentes da Justiça.
Provavelmente, essa é uma medida que indica a tentativa de acusado em restabelecer as antigas
relações de trabalho e convivência na fazenda Jacobina.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio desta pesquisa, constatamos que os escravos, ainda que pertencentes a um
mesmo senhor, não podem ser vistos como uma comunidade homogênea. Entre eles havia
muitas diferenças, como de gênero, ocupações e de interesses. Essas diferenças possibilitaram
o estabelecimento não só de alianças, mas também de rivalidades e brigas entre eles. Da mesma
forma, percebemos que em uma mesma propriedade, como a fazenda Jacobina, trabalhavam
escravos e livres. A convivência entre esses trabalhadores também resultava em relações
harmoniosas e, por vezes, conflituosas.
Por fim, devemos destacar que os registros judiciais dos conflitos foram propiciados
pela iniciativa senhorial de acionar a justiça. Os proprietários queriam, com isso, receber algum
auxílio para reduzir os prejuízos decorrentes da fuga de um escravo condenado pelo crime de
assassinato e o ressarcimento dos gastos provocados pelas lesões em outros dois escravos,
envolvidos numa briga. Em comum, a análise de ambos os processos judiciais demonstra que
através dos atos de violência escrava podemos obter preciosas informações sobre o cotidiano
das relações estabelecidas entre os escravos, bem como entre estes e os demais atores sociais.
FONTES
Núcleo de Documentação de história Escrita e Oral (NUDHEO). Acervo do Fórum de
Cáceres, Caixa s/n .Processo s/n. Ano 1873.
Núcleo de Documentação de história Escrita e Oral (NUDHEO). Acervo do Fórum de
Cáceres, Caixa n°01 .Processo n°08. Ano 1878.
REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS
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Página 100.
CASTENAU. Francis. Expedição ás Regiões Centrais da América do sul. Belo Horizonte. Rio
de Janeiro: Itatiaia, 2000.
CHAVES, Otávio Ribeiro. ARRUDA, Elmar Figueiredo de. História e Memória Cáceres.
Editora Unemat. 2011, p.303.
CHAVES, Otávio Ribeiro. Política de povoamento e a constituição da Fronteira Oeste do
Império Português: A Capitania de Mato Grosso na Segunda Metade do Século XVIII.
Curitiba, 2008. 286f.
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<http://www.monarquia.org.br/PDFs/CONSTITUICAODOIMPERIO.pdf>. Acesso em 22 de
Novembro de 2015.
FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas: 1825 a 1829. São Paulo:
Cultrix, ed. Da Universidade de São Paulo, 1977.
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência. Escravos e senhores na capitania do Rio de
Janeiro, 1750 a 1808. Paz e Terra, 1998.
MATTOS, Hebe Maria. Das cores do Silêncio: os significados da Liberdade no Sudeste
escravista, Brasil século XIX. 2° ed: Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998. 379 p.
MACHADO,Maria Helena Pereira Toledo, Crime e Escravidão: Trabalho, luta e resistência
nas lavouras paulistas, (1830-1888). São Paulo; Brasiliense, 1987.