Virginia de Araujo Figueiredo - A Política do Pensamento

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A politica do pensamento Virginia de Araujo Figueiredo1 Para ser fiel, deve-se contar tudo, mesmo correndo 0 risco de ir de en- contro a regra do "estilo filosofico" que nos obriga a deixar de lado como escoria todo aspecto chamado "biogrmco". Mas existem disso estou certa hoje, que nao chegamos a esclarecer inteiramente a nao ser com a ajuda dessa escoria biogrmca. Inicio esta homenagem a Philippe Lacoue-Labarthe contando uma breve historia cUjo sentido, espero, nao esteja reduzido ao anedotico. Vi Philippe pela primeira vez em outubro de 1989. Ele residia ainda na rna Charles Grad. Eu acabara de chegar a Strasbourg para estudar com ele. Eu tinha urn projeto sobre a estetica de Kant. Ele ficou urn pouco surpreso, talvez porque eu estivesse gravida; talvez por causa da dist3.ncia do meu pais, 0 Brasil. Ele entao me perguntou por que eu havia vindo de tao longe para estudar em Strasbourg. Depois de the contar urn pouco das minhas dificuldades para realizar estudos de estetica no Brasil, ele me respondeu com seu humor incompacivel: "Imagino. A filosofia analitica domina todos os departamentos de filosofia do mundo, exceto em Strasbourg, onde nos tomamos 0 poder!" Sal desse primeiro encontro totalmente tranqiiilizada. "Sim!", disse para mim mesma, "eles toma- ram 0 poder, E eu, tomei a decisao certa quando vim aqui." Eu nao podia imaginar 0 quanto este primeiro encontro seria reve- lador do engajamento politico de Philippe com a filosofia. Vendo a coisa retros- pectivamente, eu me digo: e claro, eu devia ter percebido, uma vez que era justa- mente a sua maneira polltica de ler Heidegger que me fascinara sempre, desde a primeira vez que entrei em contato com seus textos. Foi em 1986. Eu estava redigindo minha de mestrado a respeito da filosofia heideggeriana sobre a arte e tinha me casado com urn psicanalista lacaniano que havia.lido Ie titre de la lettre e me prevenido sobre a entre 0 pensamento de Lacoue- 1 Sergio Medeiros 81

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Apolitica do pensamentoVirginia de AraujoFigueiredo1

Para ser fiel, deve-se contar tudo, mesmo correndo 0 risco de ir de en­contro aregra do "estilo filosofico" que nos obriga adeixar de lado como escoriatodo aspecto chamado "biogrmco". Mas existem articula~6es, disso estou certahoje, que nao chegamos a esclarecer inteiramente a nao ser com a ajuda dessaescoria biogrmca. Inicio esta homenagem a Philippe Lacoue-Labarthe contandouma breve historia cUjo sentido, espero, nao esteja reduzido ao anedotico.

Vi Philippe pela primeira vez em outubro de 1989. Ele residia aindana rna Charles Grad. Eu acabara de chegar a Strasbourg para estudar com ele. Eutinha urn projeto sobre a estetica de Kant. Ele ficou urn pouco surpreso, talvezporque eu estivesse gravida; talvez por causa da dist3.ncia do meu pais, 0 Brasil.Ele entao me perguntou por que eu havia vindo de tao longe para estudar emStrasbourg. Depois de the contar urn pouco das minhas dificuldades para realizarestudos de estetica no Brasil, ele me respondeu com seu humor incompacivel:"Imagino. Afilosofia analitica domina todos os departamentos de filosofia domundo, exceto em Strasbourg, onde nos tomamos 0 poder!" Sal desse primeiroencontro totalmente tranqiiilizada. "Sim!", disse para mim mesma, "eles toma­ram 0 poder, Eeu, tomei adecisao certa quando vim aqui."

Eu nao podia imaginar 0 quanto este primeiro encontro seria reve­lador do engajamento politico de Philippe com a filosofia. Vendo a coisa retros­pectivamente, eu me digo: e claro, eu devia ter percebido, uma vez que era justa­mente a sua maneira polltica de ler Heidegger que me fascinara sempre, desdea primeira vez que entrei em contato com seus textos. Foi em 1986. Eu estavaredigindo minha disserta~ao de mestrado a respeito da filosofia heideggerianasobre a arte e tinha me casado com urn psicanalista lacaniano que havia.lido Ietitre de la lettre e me prevenido sobre a liga~ao entre 0 pensamento de Lacoue-

1 Tradu~ao: Sergio Medeiros

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outra'I'ravessia

Labarthe e 0 de Heidegger. Fato raro nessa epoca no Brasil, eu havia conseguido com­prar seu livro L'imitation des modernes no mesmo ano de seu lan9llllento na Fran~a.

Eu 0 encontrei por acaso numa livraria do centro do Rio de Janeiro que importavalivros, sobretudo franceses. Entrei ali sem expectativa definida. Esal com a intui~ao deque havia adquirido urn dos livros mais importantes para a minha forma~ao. Nao estavaerrada. Depois que li seus ensaios sobre HOlderlin e Heidegger, nao consegui mais meseparar deles. Eu os li e reli varias vezes. Alguns anos mais tarde, no volume La fictiondu politique, encontrei definitivamente aquilo de que eu mais sentia falta, no Brasil- ouem certo heideggerianismo brasileiro --: uma reflexao politica sobre 0 pensamento deHeidegger.

o que mais me faltava (essa "explication avec Heidegger") foi resumido porLacoue-Labarthe na Advertencia aLafiction du politique:

Ce qui devait se presenter, peu ou prou, comme une 'explica­tion avec moi-meme' apris [,allure, sans doute osee (ou preten­tieuse), d'un 'explication avec Heidegger'. La raison en est tressimples: je ne suls 'entre en phtlosophie', sl j'y suls entre, quepour avoir subi Ie coup ou Ie cboc (Stoss, est-ttl dans 'L'Originede l'oeuvre d'art? de la pensee de Heidegger. Presque au mememoment - 11 s'en est fallu de quelques mois - j'ai appris queHeidegger avait adhere au nazisme. Et je dois avouer que,comme beaucoup d'autres, je ne m'en suisjamais remis. 5i ['onaime mieux: quelle que soit l'admiration qui Jut (et reste) lamienne al'egard de la pensee de Hetdegger, de cette adhesionje ne peux, et je n'ai jamais pu, politiquement et plus que poli­tiquement, m'accommoder.3

Sim, diante da equa~ao que uniu Heidegger e 0 nazismo, a questao do Sere Auschwitz, 0 sentimento de repulsa e inevitavel. Gostariamos verdadeiramente queesta equa~ao jamais pudesse ter sido formulada, que a adesao de Heidegger ao nazismojamais tivesse acontecido. Talvez porque tenhamos alguma pregui~a para pensar e aguinada politica (ele 0 disse na Poetique et Politique) de Heidegger nos fa~a pensarmuito. Diante desse acontecimento dolorosamente irreversiveI, tres posi~6es peIo me­nos sao possiveis. Ainda que haja sempre urn pouco de incorre~ao nas "c1assifica~6es",

fa~o apelo as que nos foram propostas por Catherine David, a fim de tentar introduziras posi~6es filosofico-politicas tambem assumidas peIo heideggerianismo no Brasil. Issome permitira talvez falar urn pouco sobre a recep~ao (se houve urna) do pensamento deLacoue-Labarthe no Brasil, sobretudo no que se refere asua contribui~ao insuperaveIsobre "0 caso Heidegger", a respeito da qual, tanto quanto sei, 0 nosso ambiente filos6­fico continua a resistir. Infelizmente.

Tal como na Fran~, no Brasil a atitude mais comum consiste tambem narecusa em reconhecer a importancia do pensamento de Heidegger, considerando-osimplesmente como urn nazista, ou urn impostor. Se examinarmos ainda que de rna­neira muito superficial a "politica" das editoras brasileiras, poderemos constatar isto:

2 LACOUE-LABARTHE, Ph. Lajiction du politique, Paris: Christin Bourgois Ed., 1987, pp. 11-12.3 DAVlD, Catherine, "L'introduction" ao "Dossier: Heidegger et la pensee nazie", Le Nouvel Observateur, Janeiro,

1988.

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lena tie Santa Catarina

que a "facc;ao" anti-heideggeriana (e mesmo os que ostentam uma falta de respeito totalpelo pensamento do fil6sofo alemiio) conheceu urn avan~o desproporcional em rela~iio

aoutra "fac~iio", a dos que levam a serio 0 pensamento de Heidegger. Isso pode sercomprovado, por exemplo, pela recep~iio de urn livro como 0 de Victor Farias, que tevegrande sucesso no final dos anos 1980, niio apenas na Fran~a, mas tambem no Brasil ,onde foi logo traduzido, se niio estou enganada, no ano seguinte asua publica~iio naFran~a. Urn outro exemplo, ainda mais expressivo, e 0 livro de Jean-Pierre Faye, La rai­son narrative, sobre a filosofia heideggeriana. Publicado na Fran~a em 1990, portantodois anos depois de La fiction du politique (que, passadas duas decadas, continua semtradu~iio em portugues), foi traduzido no Brasil em 1996, e seu autor, convidado afazeruma conferencia na Universidade Federal do Rio deJaneiro. Niio Ii seu livro, mas (ou porque) fui ouvir sua conferencia, que ele concluiu com a afirma~iio de que 0 principal in­terlocutor de Heidegger era Ernest Krieck, 0 reitor da Universidade de Frankfurt, eleitono mesmo ana (1933) que Heidegger... Segundo ele, os interlocutores de Heideggerniio eram Nietzsche, Hegel ou Kant, niio havia portanto "diaIogo entre pensadores",como Heidegger definiu urn dia a filosofia, mas "diaIogo entre reitores"... Niio! Paroaqui, poiS niio e minha inten~iio apresentar toda a serie de mal-entendidos sobre "0 casoHeidegger". Para finalizar esta primeira atitude, lembrarei 0 anexo (sobre 0 livro de Vic­tor Farias) de Fiction du politique, onde escreve Lacoue-Labarthe:

5'ilY a un 'cas Heidegger', qui ne s'est illustre - que je sache- par aucun 'crime contre l'humanite', meme si sa silencieusecomplicite est terrijiant, c'est parce qu'il a la 'pensee de Hei­degger'. La compromissionpolitique n'estpas celle de telou tel,professeur ici ou la, adherent No. tant du Parti, sinon on nyconsacreraitpas cinq minutes; c'est celle du plusgrandpenseurde ce temps. C'est dans sa pensee que se pose donc la questionde sa responsahilite politique. 4

Asegunda posi~iio, favocivel ao pensamento de Heidegger, tende a recha­~ar 0 epis6dio politico como uma falta, reconhecidamente lamentavel, mas sem con­seqiiencias para 0 seu pensamento. Do lado frances, Catherine David havia incluidoFran~ois Fedier. Do nosso lado brasileiro, com raras exce~6es, diria que essa posi~iio

e majoritana. Porem, na minha opiniiio, nessa posi~iio, muito condescendente, eu co­locaria ninguem menos do que Hannah Arendt. No seu belissimo "Martin Heideggerat eighty" 5, ela sustenta que uma inocencia quase infantil caracterizaria niio apenas aatitude de Heidegger, mas a de tOOos os grandes fil6sofos. 0 argumento principal dotexto e conhecido. Trata-se de uma certa concep~iio do pensamento como imagina~iio.

Ela retoma a lenda que Platiio havia narrado no Teeteto (173d·176) sobre 0 sabio Talese a mo~a da Tcicia: " Foi 0 caso de Tales, Teodoro, quando observava os astros; porqueolhava para 0 ceu, caiu num po~o. Contam que uma decidida e espirituosa rapariga daTcicia zombou dele, com dizer-Ihe que ele procurava conhecer 0 que se passava no ceumas niio via 0 que estava junto dos pr6prios pes. Essa pilheria se aplica a todos os que

4 LACOUE·LABARTHE, Ph. Gp. cit., p. 187.5 ARENDT, H. "Martin Heidegger at eighty" in Heidegger and modern philosophy, ed. Michael Murray, New Haven,

Yale University Press, 1978.

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outrat[ra1Jessia

vivem para a Filosofia". 6

Comparando a adesao de Heidegger ao nazismo aadesao de Platiio aSiracusa, Arendt escreve:

We who wish to honor the thinkers, even if our own residencelies in the midst ofthe world, can hardly help finding it strikingand perhaps exasperating that Plato and Heidegger, when theyentered into human affairs, turned to tyrants and Fuhrers. Thisshould be imputed not just to the drcumstances of the timesand even less to preformed character, but rather to what theFrench call a deformation professioneUe. 7

Entre os argumentos mais importantes que Arendt reuniu nesse ensaio emhomenagem a Heidegger, YOU destacar pelo menos dois: inicialmente, a ja mencionadadefini~ao do pensamento como imagina~ao, como urn ato que nos afasta do continuumdos nossos neg6cios; em segundo lugar, a essencia "ficcionante" (jictionante) da razao.Aconseqiiencia inevitavel do exerdcio da imagina~ao seria ade distanciar os homens domundo comum. Ao opor a filosofia apolitica, Arendt acabou por justificar a tendenciaque tern os fil6sofos (os homens de imagina~ao?) de sucumbirem aatra~ao pelos tiranose Fiihrers. Aconclusao se aproxima perigosamente da banalidade: os fil6sofos estiio nomundo da lua. Se posso compreender a grande generosidade da leitura de Arendt, pa­rece-me dificil, por outro lado, entender os motivos que poderiam justificar a resistenciado heideggerianismo brasileiro a enfrentar 0 problema.

RecQnhe~o que a terceira posi~ao - a unica a encarar verdadeiramente aquestiio "Heidegger e 0 nazismo" - e, sem duvida, muito mais dificil. Eaqui que en­contra Philippe Lacoue-Labarthe. Este niio busca "nem conciliar nem negar esses doisextremos, 0 irreconcliavel e 0 inegcivel. Por urn lado, Heidegger era urn imensa pensa­dor, e Sein und Zeit [Ser e Tempo] e urn dos grandes livros da hist6ria da humanidade.Por outro lado, esse genio imortal manteve rala~6es com os assassinos mais deplociveis,mais inumanos. (...).Ele jamais se explicou verdadeiramente" 8

Ao contrario do fil6sofo da lenda contada no Teeteto, os olhos de Philippe naoestao de maneira nenhuma voltados para 0 ceu; atentos, voltam-se de maneira obstinadapara 0 nosso mundo, para a nossa atualidade, que coloca a questao eminentementefilos6fica do hic et nunc, voltam-se para a questiio "quem somos?". Mesmo balbuciandouma resposta poetica, provis6ria, na sua voz baixa e grave, ele jamais abandonou 0 lugardo politico. Ao contclrio de Heidegger, ele nao se refugiou, ele nunca se furtou a expli­car-se, a uma "explication avec", a uma "Auseinandersetzung". De acordo com Arendt,existe uma rela~ao intrinseca entre essa palavra e a essencia do politico. Heidegger seserviu dela para traduzir a vocabulo grego "polemos", no fragmento 53 de Heciclito. A·rendt nos oferece a sua propria versao daAuseinandersetzung como tradu~o do termogrego "logon didonai". Ela escreve nas Lectures on Kant's Political Philosophy:

6 PWAo. Ditilogos: Teeteto/Cratilo, trad. de Carlos Alberto Nunes, Belem: EDUFPA, 2001, p.83.7 ARENDT, H. Op. Cit., p. 303.8 DAVID, Catherine. "Heidegger et la pensee nazie", p. 42.

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lUia de Santa Catarina

The term itself is political in origin: to render accounts is whatAthenian citizens asked oftheir politicians, not only in moneymatters but in matters ofpolitics. They could be held respon­sible. And this - holding oneselfand everyone else responsibleand answerable for what he thought and taught - was whattransformed into philosophy that search for knowledge andtruth that had sprung up in Ionia. 9

Para ela, 0 termo "logon didonai" tern tal importancia que ~eria a linha di·vis6ria entre Platao e seus predecessores:

{Plato} saw the difference between himselfand the 'wise man'of old, the Presocratics, in the fact that they, wise though theywere, nevergave an account oftheir thoughts. There they were,with their great insights; but when you asked them a question,they remained silent. Logon didonai, 'to give an account' - notto prove, but to be able to say how one came to an opinion andfor what reasons and formed it - is actually what separatesPlatofrom all ofhispredecessors. 10

Tentando compreender nossa (brasileira) resistencia a encarar 0 problema"Heidegger eo nazismo", indagando 0 quanto este poderia nos revelar da essencia dapolitica modema que permanece no escuro, dirijo·me agora a ti, Philippe, porque naodevias ter partido antes de nos haver ensinado tua coragem, que e a virtude politicapor excelencia; sem haver nos ensinado teu rigor, a virtude filos6fica por excelencia;teu silencio, a virtude poetica por excelencia; tua generosidade, a virtude cntica porexcelencia; sem nos haver preparado para receber tao importante legado: 0 de se expor,sem tregua e da maneira mais rigorosa, ao tragico de nossa condi\ao contempocinea.Nao, tu partiste muito cedo. Nao estivamos prontos para te perder.

9 ARENDT, Hanna. Lectures on Kant's Political Philosophy, edited and with an interpretive essay by Ronald Reiner,Chicago: The University Chicago Press, 1982,. P. 41.

10 ARENDT, H. Idem, p. 41.

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