Visão - johnnybgoodpt - a seita do transe

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Nº 387 • 10 A 16 DE AGOSTO DE 2000 • 450$00 2,25 TROCA DE CASAIS NA INTERNET Nesta edição, o n.º24 WERTHER de Goethe Por apenas + 450$ Em Portugal, um movimento alternativo reúne milhares de jovens em festas musicais ao ar livre. Histórias de LSD, ecstasy e êxtase Em Portugal, um movimento alternativo reúne milhares de jovens em festas musicais ao ar livre. Histórias de LSD, ecstasy e êxtase EXCLUSIVO REPORTAGEM NUMA ALDEIA CERCADA PELO FOGO

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Artigo da revista Visão sobre "A seita do transe" publicado em Agosto de 2000upload by johnnybgoodpt

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Nº 387 • 10 A 16 DE AGOSTO DE 2000 • 450$00 • €2,25

TROCA DE CASAIS NA INTERNETNesta edição, o n.º24

WERTHER de Goethe Por apenas +450$

Em Portugal, um movimento alternativo reúne milhares de jovens em festas musicais ao ar livre.

Histórias de LSD, ecstasy e êxtase

Em Portugal, um movimento alternativo reúne milhares de jovens em festas musicais ao ar livre.

Histórias de LSD, ecstasy e êxtase

EXCLUSIVO

REPORTAGEM NUMA ALDEIA CERCADA PELO FOGO

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incêndio de terça-feira, 1 deAgosto, caiu mal. Já se esperavaque acontecesse algo assim. Nãose tinha, afinal, descontroladoum Concorde a 25 de Julho, diada Ponte dos Arco-Íris no calen-

dário Maia? Pois este era, como bem no-tou António Monteiro, um trancer de ca-belo preto rapado, rabo de cavalo louro euma infinidade de brincos na orelha direi-ta, «o dia do fogo, da morte e das altera-ções electromagnéticas». Ia acontecer des-graça, estava-se mesmo a ver. E aconteceu.«Bad vibes», no fundo.

Assim, o festival Boom — um dos maioresfestivais europeus do movimento musical

Transe (do inglês Trance) que todos osanos reúne milhares de pessoas perto da

localidade de Pinheiro, na Marateca —podia não ter acontecido. A casa típi-

ca alentejana que lhe serve de quar-tel-general, com as suas paredes

Viagem pela cultura de um movimento musical alternativo – que se reúne a partir de amanhã em Pinheiro, Palmela, num festival com gente de todo o globo

– o qual reaviva os cultos hippie, crê em ovnis, adopta a simbologia hindu e tem os cogumelos, os ácidos e o ecstasy como drogas de eleição

TRIBO TRIBO SOCIEDADE de vídeo: a trilogia da Guerra das Estrelas,

o Matrix e o Dark City. Com as revistasdos X-men da Marvel foi o mesmo, nem asgarras titânicas de Wolverine, nem os po-derosos óculos laser de Cyclops as protege-ram do fogo e da água.

Mas salvou-se o essencial. O enorme pa-no com uma representação dos chakrasdo tantrismo sobreviveu intocado e a re-presentação do deus hindu Ganesh esca-pou quase milagrosamente às labaredas.

As revistas alternativas, como a Mus-hroom, a Dream Creation e a PLUR(Peace, Unity, Love and Respect), ale-mãs, inglesas e tibetanas safaram-se,ficando apenas ligeiramente amarfa-nhadas. Mas, mais importante, as no-vas tecnologias como o computador,o DAT (Digital Audio Tape), o Mini-disc, a impressora e o próprio vídeo fi-caram incólumes.

Numa das noites seguintes, a quase-tragédia foi exorcizada da maneira ha-bitual: os mesmos que apagaram o fo-go dançaram, eléctricos, num ritual na«floresta», como chamam simbolica-mente ao local da planície alentejanaonde, a partir de amanhã, sexta-feira,11, estarão montadas cerca de 40 tas-

quinhas com comida de todo omundo. Dançaram noite den-tro, olhos pregados no extra-terrestre verde-fluorescente

que montaram ao lado de um sobreiro, ou-vidos concentrados nas gravações de rit-mos cardíacos que subliminarmente inun-dam as músicas Transe. E saudaram a vin-da do festival que se aproxima.

Festas da Lua CheiaSão arquitectos, jornalistas, jovens, altos

quadros da administração pública, técni-cos de imagem, especialistas em gestão desistemas informáticos. Gente de dinheiroque se mistura com hippies, neo-hippies etravellers, como chamam aos andarilhosaventureiros.

Guardaram influências do rock psicadé-lico dos anos 70, da música electrónica dosanos 80 e desiludiram-se com a músicatechno, por ser «demasiado comercial».Adoptaram uma filosofia que vai buscarmuitas das suas raízes ao movimento hip-pie, herdaram-lhes por exemplo toda a ico-nografia hindu. Representações de Shiva,deus que, conta Susana Oliveira, umaadepta do movimento, «é azul porque ab-sorve todas as drogas do mundo», do seufilho, Ganesh, «deus bebé, meio homemmeio elefante» e da sua mulher Parvatinão faltam num ambiente transe.

Vestem de forma própria, peculiar: sim-ples T-shirts brancas com fractais (imagensque variam consoante o ângulo de inci-dência da luz) alternam com largas saiastribais de algodão, camisas largas sem

brancas e janelas debruadas a azul, ia arden-do toda. Foi necessário criar um longo cor-dão humano entre 40 pessoas para trans-portar os baldes de água. Por fim, já noitedentro, evitaram o pior, sem nunca recorre-rem aos bombeiros de Águas de Moura.

O saldo foi pesado: o telhado partido,uma das cinco divisões daquele pequenomonte da enorme herdade do Zambujal,propriedade da família Vinhas, destruída.Perderam-se, alagadas, algumas cassetes

O

JOÃO DIAS MIGUEL (TEXTO) • ANTÓNIO PEDRO VALENTE (FOTOS)

MÚSICAO contacto com a natureza e os«sons orgânicos»são apreciados pelos participantes

PEDRO CARVALHO E SILVIAEle é um dos organizadores dafesta na Herdadedo Zambujal; elaparticipa e foinum destes encontros que oactual namoradoa conquistou...oferecendo-lheuma maçã

ACAMPAMENTOTudo a postos para a grande festa transe portuguesa

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incêndio de terça-feira, 1 deAgosto, caiu mal. Já se esperavaque acontecesse algo assim. Nãose tinha, afinal, descontroladoum Concorde a 25 de Julho, diada Ponte dos Arco-Íris no calen-

dário Maia? Pois este era, como bem no-tou António Monteiro, um trancer de ca-belo preto rapado, rabo de cavalo louro euma infinidade de brincos na orelha direi-ta, «o dia do fogo, da morte e das altera-ções electromagnéticas». Ia acontecer des-graça, estava-se mesmo a ver. E aconteceu.«Bad vibes», no fundo.

Assim, o festival Boom — um dos maioresfestivais europeus do movimento musical

Transe (do inglês Trance) que todos osanos reúne milhares de pessoas perto da

localidade de Pinheiro, na Marateca —podia não ter acontecido. A casa típi-

ca alentejana que lhe serve de quar-tel-general, com as suas paredes

Viagem pela cultura de um movimento musical alternativo – que se reúne a partir de amanhã em Pinheiro, Palmela, num festival com gente de todo o globo

– o qual reaviva os cultos hippie, crê em ovnis, adopta a simbologia hindu e tem os cogumelos, os ácidos e o ecstasy como drogas de eleição

TRIBO TRIBO SOCIEDADE de vídeo: a trilogia da Guerra das Estrelas,

o Matrix e o Dark City. Com as revistasdos X-men da Marvel foi o mesmo, nem asgarras titânicas de Wolverine, nem os po-derosos óculos laser de Cyclops as protege-ram do fogo e da água.

Mas salvou-se o essencial. O enorme pa-no com uma representação dos chakrasdo tantrismo sobreviveu intocado e a re-presentação do deus hindu Ganesh esca-pou quase milagrosamente às labaredas.

As revistas alternativas, como a Mus-hroom, a Dream Creation e a PLUR(Peace, Unity, Love and Respect), ale-mãs, inglesas e tibetanas safaram-se,ficando apenas ligeiramente amarfa-nhadas. Mas, mais importante, as no-vas tecnologias como o computador,o DAT (Digital Audio Tape), o Mini-disc, a impressora e o próprio vídeo fi-caram incólumes.

Numa das noites seguintes, a quase-tragédia foi exorcizada da maneira ha-bitual: os mesmos que apagaram o fo-go dançaram, eléctricos, num ritual na«floresta», como chamam simbolica-mente ao local da planície alentejanaonde, a partir de amanhã, sexta-feira,11, estarão montadas cerca de 40 tas-

quinhas com comida de todo omundo. Dançaram noite den-tro, olhos pregados no extra-terrestre verde-fluorescente

que montaram ao lado de um sobreiro, ou-vidos concentrados nas gravações de rit-mos cardíacos que subliminarmente inun-dam as músicas Transe. E saudaram a vin-da do festival que se aproxima.

Festas da Lua CheiaSão arquitectos, jornalistas, jovens, altos

quadros da administração pública, técni-cos de imagem, especialistas em gestão desistemas informáticos. Gente de dinheiroque se mistura com hippies, neo-hippies etravellers, como chamam aos andarilhosaventureiros.

Guardaram influências do rock psicadé-lico dos anos 70, da música electrónica dosanos 80 e desiludiram-se com a músicatechno, por ser «demasiado comercial».Adoptaram uma filosofia que vai buscarmuitas das suas raízes ao movimento hip-pie, herdaram-lhes por exemplo toda a ico-nografia hindu. Representações de Shiva,deus que, conta Susana Oliveira, umaadepta do movimento, «é azul porque ab-sorve todas as drogas do mundo», do seufilho, Ganesh, «deus bebé, meio homemmeio elefante» e da sua mulher Parvatinão faltam num ambiente transe.

Vestem de forma própria, peculiar: sim-ples T-shirts brancas com fractais (imagensque variam consoante o ângulo de inci-dência da luz) alternam com largas saiastribais de algodão, camisas largas sem

brancas e janelas debruadas a azul, ia arden-do toda. Foi necessário criar um longo cor-dão humano entre 40 pessoas para trans-portar os baldes de água. Por fim, já noitedentro, evitaram o pior, sem nunca recorre-rem aos bombeiros de Águas de Moura.

O saldo foi pesado: o telhado partido,uma das cinco divisões daquele pequenomonte da enorme herdade do Zambujal,propriedade da família Vinhas, destruída.Perderam-se, alagadas, algumas cassetes

O

JOÃO DIAS MIGUEL (TEXTO) • ANTÓNIO PEDRO VALENTE (FOTOS)

MÚSICAO contacto com a natureza e os«sons orgânicos»são apreciados pelos participantes

PEDRO CARVALHO E SILVIAEle é um dos organizadores dafesta na Herdadedo Zambujal; elaparticipa e foinum destes encontros que oactual namoradoa conquistou...oferecendo-lheuma maçã

ACAMPAMENTOTudo a postos para a grande festa transe portuguesa

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belecer contacto com o mundo espiritual,com as várias dimensões que o hinduísmoensina coexistirem na Terra. Mas não fe-cham os olhos ao mundo moderno. Ser-vem-se das mais recentes tecnologias paracriarem melodias de construção matemáti-ca. Usam, por exemplo, os mesmos pro-gramas de computador utilizados por cen-tros de investigação de vida extraterrestre,para tentar descobrir uma linguagem alie-nígena nos ciclos das nebulosas do espaço,um pouco como acontece no filme Con-tacto, com Jodie Foster. «Estes ciclos sãotransformados em sons e introduzidos namúsica. É isso que lhe dá uma atmosfera‘galáctica’», explica ainda Artur, que está aterminar o último ano de Psicologia. Damesma forma utilizam gravações reais dasbatidas do coração para obter um ritmo«orgânico».

Só dançam no campo, naquilo a quechamam fool moon parties (festas da luacheia), longe de tudo e de todos. O máxi-mo que a aldeia mais próxima ouve do que

se está ali a passar é uma batida rítmicadistante. Mas numa fool moon party pas-sa-se muita coisa. Boa e má.

O DNA de DeusDesde há vários meses que na Herdade

do Zambujal se prepara o Boom. PedroCarvalho, um dos donos da Good Mood,não vai a casa há oito semanas. «Eu sou ocriativo, o Diogo é o produtivo», conta Pe-dro, enquanto orienta as pinturas das ban-cas da zona de restaurantes, uma dasvárias zonas em que se vai dividiro evento.

Diogo Rui, o «produtivo»,é o homem que resolve ascoisas — a quem toda agente pergunta o que fa-zer antes de o fazer. Ain-da faltava quase uma se-mana para o festival co-meçar e havia já umacampamento de dez a15 tendas de gente que

SOCIEDADE

62 VISÃO 10 de Agosto de 2000

SOCIEDADE

colarinho, calças radicais de costuras fluo-rescentes. O símbolo Om — que, acredi-tam, simboliza o som que deu início a tu-do — está presente nos colares e o moder-no titânio nos piercings.

Muitos são adeptos do vegetarianismo,do nudismo, da agrobiologia; outros dedi-cam-se ao yoga, ao tantrismo. Se não acre-ditam em tudo, aceitam quase tudo comoparte do movimento. Têm ídolos culturaispróprios: «Terence McKenna, pai do LSD,Timothy Leary e, de certa forma, WilliamBurroughs», aponta Artur Silva, 23 anos,crítico de música transe numa pequena re-vista portuguesa.

Se se juntam no campo, é porque os an-tigos druídas o faziam; se amam a nature-za, também é porque a sociedade ociden-tal — a Igreja — fechou os olhos aos conhe-cimentos ancestrais sobre plantas e cogu-melos alucinogéneos, retirando assim apossibilidade de entrar em transe, de esta-

Os gurus Foram vidas cheias, passadas acorrer, antes que o tempo se esgo-tasse. E que tornaram William Bur-roughs,Timothy Leary e TerenceMcKenna em figuras de culto.Quando uma crise cardíaca derru-bou William Burroughs (1914-1997), muitos se interrogaram so-bre a capacidade de resistência deum homem que, tendo experi-mentado todo o tipo de drogas, vi-veu até aos 83 anos. Fundador,com Jack Kerouac e Allen Gins-

berg, do movimento beatnick, desde cedo serevelou incapaz de se adaptar às regras da so-ciedade americana dos anos 50. Pintor, cantore escritor (autor do Festim Nu) refugiou-se noTexas, cultivando algodão, laranjas e marijua-na. Burroughs mudou depois para o México,fugido à Justiça.Aí, enquanto imitava Guilher-me Tell, matou, de um só tiro, a sua mulher.Para Timothy Leary (1920-1996), o «pai» doLSD, a morte merecia atenção idêntica à vida.Só isso pode explicar a «extravagância» que sepermitiu – tornar mediática a sua lenta agonia,difundindo-a em directo no seu site. Professorde Psicologia em Harvard, foi dos primeiros adefender o psicadelismo como terapia, mas assuas experiências foram interrompidas quandoos efeitos secundários do LSD começaram a serdivulgados e o ácido tornado ilegal. Depois decumprir pena por consumo e tráfico de drogas,mudou-se para a Califórnia e tornou-se numentusiasta da Internet e da cibercultura.Após se ter dedicado ao estudo do shamanis-mo e da etnofarmacologia, também TerenceMcKenna (1946-2000) se rendeu, no final davida, aos encantos das novas tecnologias. Gra-duado pela Universidade de Berkeley (Califór-nia), foi o autor da Teoria da Novidade (umateoria cíclica da História) e escreveu sobre oimpacto de certas plantas no humano, nomea-damente True Hallucinations (Alucinações ver-dadeiras), uma narrativa sobre a sua «viagemespiritual» no meio da selva colombiana.

SARA BELO LUÍS

lBOOM 2000O dia na Herdade doZambujal é passado em trabalho árduo, namontagem dos palcos,na pintura das bancasdos restaurantes. Já à noite, o tempo é defesta e de dança, numespectáculo visual queparece montado parafavorecer alucinações

lCRENÇAQuartel-General do festival: representação dos Chakras do Tantrismo

TRIBO TRANSE

VISÃO 10 de Agosto de 2000

AP/W

ALT W

EIS

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belecer contacto com o mundo espiritual,com as várias dimensões que o hinduísmoensina coexistirem na Terra. Mas não fe-cham os olhos ao mundo moderno. Ser-vem-se das mais recentes tecnologias paracriarem melodias de construção matemáti-ca. Usam, por exemplo, os mesmos pro-gramas de computador utilizados por cen-tros de investigação de vida extraterrestre,para tentar descobrir uma linguagem alie-nígena nos ciclos das nebulosas do espaço,um pouco como acontece no filme Con-tacto, com Jodie Foster. «Estes ciclos sãotransformados em sons e introduzidos namúsica. É isso que lhe dá uma atmosfera‘galáctica’», explica ainda Artur, que está aterminar o último ano de Psicologia. Damesma forma utilizam gravações reais dasbatidas do coração para obter um ritmo«orgânico».

Só dançam no campo, naquilo a quechamam fool moon parties (festas da luacheia), longe de tudo e de todos. O máxi-mo que a aldeia mais próxima ouve do que

se está ali a passar é uma batida rítmicadistante. Mas numa fool moon party pas-sa-se muita coisa. Boa e má.

O DNA de DeusDesde há vários meses que na Herdade

do Zambujal se prepara o Boom. PedroCarvalho, um dos donos da Good Mood,não vai a casa há oito semanas. «Eu sou ocriativo, o Diogo é o produtivo», conta Pe-dro, enquanto orienta as pinturas das ban-cas da zona de restaurantes, uma dasvárias zonas em que se vai dividiro evento.

Diogo Rui, o «produtivo»,é o homem que resolve ascoisas — a quem toda agente pergunta o que fa-zer antes de o fazer. Ain-da faltava quase uma se-mana para o festival co-meçar e havia já umacampamento de dez a15 tendas de gente que

SOCIEDADE

62 VISÃO 10 de Agosto de 2000

SOCIEDADE

colarinho, calças radicais de costuras fluo-rescentes. O símbolo Om — que, acredi-tam, simboliza o som que deu início a tu-do — está presente nos colares e o moder-no titânio nos piercings.

Muitos são adeptos do vegetarianismo,do nudismo, da agrobiologia; outros dedi-cam-se ao yoga, ao tantrismo. Se não acre-ditam em tudo, aceitam quase tudo comoparte do movimento. Têm ídolos culturaispróprios: «Terence McKenna, pai do LSD,Timothy Leary e, de certa forma, WilliamBurroughs», aponta Artur Silva, 23 anos,crítico de música transe numa pequena re-vista portuguesa.

Se se juntam no campo, é porque os an-tigos druídas o faziam; se amam a nature-za, também é porque a sociedade ociden-tal — a Igreja — fechou os olhos aos conhe-cimentos ancestrais sobre plantas e cogu-melos alucinogéneos, retirando assim apossibilidade de entrar em transe, de esta-

Os gurus Foram vidas cheias, passadas acorrer, antes que o tempo se esgo-tasse. E que tornaram William Bur-roughs,Timothy Leary e TerenceMcKenna em figuras de culto.Quando uma crise cardíaca derru-bou William Burroughs (1914-1997), muitos se interrogaram so-bre a capacidade de resistência deum homem que, tendo experi-mentado todo o tipo de drogas, vi-veu até aos 83 anos. Fundador,com Jack Kerouac e Allen Gins-

berg, do movimento beatnick, desde cedo serevelou incapaz de se adaptar às regras da so-ciedade americana dos anos 50. Pintor, cantore escritor (autor do Festim Nu) refugiou-se noTexas, cultivando algodão, laranjas e marijua-na. Burroughs mudou depois para o México,fugido à Justiça.Aí, enquanto imitava Guilher-me Tell, matou, de um só tiro, a sua mulher.Para Timothy Leary (1920-1996), o «pai» doLSD, a morte merecia atenção idêntica à vida.Só isso pode explicar a «extravagância» que sepermitiu – tornar mediática a sua lenta agonia,difundindo-a em directo no seu site. Professorde Psicologia em Harvard, foi dos primeiros adefender o psicadelismo como terapia, mas assuas experiências foram interrompidas quandoos efeitos secundários do LSD começaram a serdivulgados e o ácido tornado ilegal. Depois decumprir pena por consumo e tráfico de drogas,mudou-se para a Califórnia e tornou-se numentusiasta da Internet e da cibercultura.Após se ter dedicado ao estudo do shamanis-mo e da etnofarmacologia, também TerenceMcKenna (1946-2000) se rendeu, no final davida, aos encantos das novas tecnologias. Gra-duado pela Universidade de Berkeley (Califór-nia), foi o autor da Teoria da Novidade (umateoria cíclica da História) e escreveu sobre oimpacto de certas plantas no humano, nomea-damente True Hallucinations (Alucinações ver-dadeiras), uma narrativa sobre a sua «viagemespiritual» no meio da selva colombiana.

SARA BELO LUÍS

lBOOM 2000O dia na Herdade doZambujal é passado em trabalho árduo, namontagem dos palcos,na pintura das bancasdos restaurantes. Já à noite, o tempo é defesta e de dança, numespectáculo visual queparece montado parafavorecer alucinações

lCRENÇAQuartel-General do festival: representação dos Chakras do Tantrismo

TRIBO TRANSE

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AP/W

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te horas na tenda do chill out — uma áreapara descansar, ouvir música mais calma,tocar Didgeridoo (instrumento aborígena),ter uma boa «aterragem» das drogas quese consomem — com a garantia de que,mesmo não havendo sítio para os comprarem quilómetros, não desaparece nem um.Não há violência, não há encontrões napista de dança e também não há engates,‘bocas’. «Nós, raparigas, sentimo-nos bem,ninguém olha para nós, cada um está co-mo quer», explica Paula Ferreira, uma es-tudante da Guarda. «Por isso é que sevêem tantas mulheres nestas festas.»

Não há engates, não há ‘esquemas’. Ouse os há, são feitos de forma diferente. P.Mac, um jovem paramédico de 27 anosque se tornou num dos bons DJ’s portu-gueses do movimento, conquistou a com-panheira oferecendo-lhe uma maçã, pri-meiro, e um charro, depois. Sem palavras,apaixonaram-se. «Foi lindo», recorda anamorada, Sílvia.

É suposto, portanto, falar-se pouco. O transe, dizem os seus adeptos, pode

ser, num mesmo momento, altamente in-trospectivo e de grande união tribal. «Nãohavia grandes diálogos nos primórdios»,frisa um rapaz pedrado de mais pa-ra se lhe perguntar o nome. «Ha-via o riso, o choro e poucomais. E no entanto as pessoasentendiam-se, comungavam»,explica, enquanto enrola maisum charro de haxixe nepalês.

«O momento M, consegui-o em duasou três ocasiões», reforça por suavez Paulo Cego, um DJ invisualcom residência em Paris e meia

SOCIEDADE

conhecido. A área do Flea Market ( à letra,mercado das pulgas — e não é uma metá-fora...) vai reunir cerca de 40 bancas de to-do o mundo, das massagens asiáticas às lo-jas de discos, roupa e artesanato. A zonados restaurantes alberga desde comida is-raelita a japonesa, de casas de chás preten-samente alucinogéneos a cibercafés.

Para decorar o Boom, vieram artistas detodo o mundo. Feijão, um português doBarreiro — louro, de barba, olhos azuis, ca-belo atado atrás — faz pinturas de «livreinspiração maia» e sobrevive quase só dis-so. No caso, pintou a estrutura do BancoBoom, onde toda a gente irá trocar escu-dos pela nota oficial do festival. (Nas ante-riores edições, os organizadores concluí-ram que os donos das tasquinhas não «de-claravam» a maior parte dos seus lucros,fugindo à entrega da percentagem acorda-da. A solução foi criarem uma nota pró-pria para o festival.)

Avi Kal, nome que esconde um italiano,reproduz elipses gigantes rendilhadas emcores fortes, de luminosidade fluorescente.Está numa tenda como toda a gente, é an-tipático, insiste em não dizer palavra. Masleva cerca de 300 contos por cada traba-lho, viagens e estadia à parte. E no fim decada festa, queima o que criou, para des-gosto dos organizadores.

K.C., um artista japonês, reproduziu fisi-camente, um pouco por todo o perímetro,instalações que, a partir de cálculos com-putadorizados, replicam as estruturas geo-métricas em que a visão humana decom-poria as formas, se elas pudessem ser redu-zidas a equações matemáticas. Numa pin-tura, disse ele a um dos trancers portugue-ses, tentou mesmo «reproduzir oDNA de Deus».

‘Uma maçã e um charro’Um verdadeiro ambiente

transe é algo de diferente.Por exemplo, podem deixar-se maços de cigarros duran-

64

viera porque queria ajudar. «Hi, o meu no-me é Mark, venho de Amesterdão e queriasaber se posso acampar aqui e se precisamde mim para alguma coisa», diz um holan-dês de 30 anos, largas entradas no cabeloe pontas de espuma branca nos cantos daboca. «A melhor ajuda que podes dar demomento é não estares aqui», respondeDiogo, no seu inglês perfeito — ele que ti-rou Engenharia de Sistemas de Som emInglaterra. «Mandaram-me vir ter conti-

vida na Bahia (Brasil). «Às vezes sente-semesmo que se consegue levar as pessoas auma união de espíritos, a esse momento Mque é o transe, em que as pessoas se abs-traem delas próprias para se fundiremnum colectivo, num estado colectivo deconsciência modificado pela... muitas ve-zes pela acção da dança», vacila.

É que, noutras vezes, o momento M éconseguido de outras formas. transe e alu-cinogéneos são quase indissociáveis. Mastalvez seja melhor começar pelo que nãohá: heroína e álcool, de certa forma os es-tupefacientes da base e do topo. De resto,quase tudo é permitido.

As drogas de eleição do movimento sãoos cogumelos alucinogéneos, os ácidos(compostos de LSD, como reza a cançãodos Beatles, Lucy in the Sky with Dia-monds) ou o mais moderno ecstasy.

go», desespera Mark, com um ar cansado.«Andei o dia todo para cá chegar.»

Diogo cede, o holandês ficará, primeirocom a promessa de que será só por 24 ho-ras, depois logo se vê. À noite, Mark jantano típi (tenda índia) da Manu (Manuela),senhora dos seus quarentas e tais, mãe deum dos primeiros adeptos transe portu-gueses. Dias antes chegara do Nepal um is-raelita com haxixe, um condensado deuma erva local que se diria druídica. E as-sim o número de tendas tem crescido.

Passam os dias em trabalho árduo, amontar um festival que tem uma dimensãotal que admira que seja praticamente des-

ALUCINAÇÕESOs cogumelos ilegais, a cultura maia, hindu e druídicasão algumas das influênciasdo colorido movimento transe. As fluorescências e os fractais estão presentesnas roupas e nos adereços

TRIBO TRANSE

MOICANORapar o cabelo antes da festa

VISÃO 10 de Agosto de 2000

SOCIEDADE

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te horas na tenda do chill out — uma áreapara descansar, ouvir música mais calma,tocar Didgeridoo (instrumento aborígena),ter uma boa «aterragem» das drogas quese consomem — com a garantia de que,mesmo não havendo sítio para os comprarem quilómetros, não desaparece nem um.Não há violência, não há encontrões napista de dança e também não há engates,‘bocas’. «Nós, raparigas, sentimo-nos bem,ninguém olha para nós, cada um está co-mo quer», explica Paula Ferreira, uma es-tudante da Guarda. «Por isso é que sevêem tantas mulheres nestas festas.»

Não há engates, não há ‘esquemas’. Ouse os há, são feitos de forma diferente. P.Mac, um jovem paramédico de 27 anosque se tornou num dos bons DJ’s portu-gueses do movimento, conquistou a com-panheira oferecendo-lhe uma maçã, pri-meiro, e um charro, depois. Sem palavras,apaixonaram-se. «Foi lindo», recorda anamorada, Sílvia.

É suposto, portanto, falar-se pouco. O transe, dizem os seus adeptos, pode

ser, num mesmo momento, altamente in-trospectivo e de grande união tribal. «Nãohavia grandes diálogos nos primórdios»,frisa um rapaz pedrado de mais pa-ra se lhe perguntar o nome. «Ha-via o riso, o choro e poucomais. E no entanto as pessoasentendiam-se, comungavam»,explica, enquanto enrola maisum charro de haxixe nepalês.

«O momento M, consegui-o em duasou três ocasiões», reforça por suavez Paulo Cego, um DJ invisualcom residência em Paris e meia

SOCIEDADE

conhecido. A área do Flea Market ( à letra,mercado das pulgas — e não é uma metá-fora...) vai reunir cerca de 40 bancas de to-do o mundo, das massagens asiáticas às lo-jas de discos, roupa e artesanato. A zonados restaurantes alberga desde comida is-raelita a japonesa, de casas de chás preten-samente alucinogéneos a cibercafés.

Para decorar o Boom, vieram artistas detodo o mundo. Feijão, um português doBarreiro — louro, de barba, olhos azuis, ca-belo atado atrás — faz pinturas de «livreinspiração maia» e sobrevive quase só dis-so. No caso, pintou a estrutura do BancoBoom, onde toda a gente irá trocar escu-dos pela nota oficial do festival. (Nas ante-riores edições, os organizadores concluí-ram que os donos das tasquinhas não «de-claravam» a maior parte dos seus lucros,fugindo à entrega da percentagem acorda-da. A solução foi criarem uma nota pró-pria para o festival.)

Avi Kal, nome que esconde um italiano,reproduz elipses gigantes rendilhadas emcores fortes, de luminosidade fluorescente.Está numa tenda como toda a gente, é an-tipático, insiste em não dizer palavra. Masleva cerca de 300 contos por cada traba-lho, viagens e estadia à parte. E no fim decada festa, queima o que criou, para des-gosto dos organizadores.

K.C., um artista japonês, reproduziu fisi-camente, um pouco por todo o perímetro,instalações que, a partir de cálculos com-putadorizados, replicam as estruturas geo-métricas em que a visão humana decom-poria as formas, se elas pudessem ser redu-zidas a equações matemáticas. Numa pin-tura, disse ele a um dos trancers portugue-ses, tentou mesmo «reproduzir oDNA de Deus».

‘Uma maçã e um charro’Um verdadeiro ambiente

transe é algo de diferente.Por exemplo, podem deixar-se maços de cigarros duran-

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viera porque queria ajudar. «Hi, o meu no-me é Mark, venho de Amesterdão e queriasaber se posso acampar aqui e se precisamde mim para alguma coisa», diz um holan-dês de 30 anos, largas entradas no cabeloe pontas de espuma branca nos cantos daboca. «A melhor ajuda que podes dar demomento é não estares aqui», respondeDiogo, no seu inglês perfeito — ele que ti-rou Engenharia de Sistemas de Som emInglaterra. «Mandaram-me vir ter conti-

vida na Bahia (Brasil). «Às vezes sente-semesmo que se consegue levar as pessoas auma união de espíritos, a esse momento Mque é o transe, em que as pessoas se abs-traem delas próprias para se fundiremnum colectivo, num estado colectivo deconsciência modificado pela... muitas ve-zes pela acção da dança», vacila.

É que, noutras vezes, o momento M éconseguido de outras formas. transe e alu-cinogéneos são quase indissociáveis. Mastalvez seja melhor começar pelo que nãohá: heroína e álcool, de certa forma os es-tupefacientes da base e do topo. De resto,quase tudo é permitido.

As drogas de eleição do movimento sãoos cogumelos alucinogéneos, os ácidos(compostos de LSD, como reza a cançãodos Beatles, Lucy in the Sky with Dia-monds) ou o mais moderno ecstasy.

go», desespera Mark, com um ar cansado.«Andei o dia todo para cá chegar.»

Diogo cede, o holandês ficará, primeirocom a promessa de que será só por 24 ho-ras, depois logo se vê. À noite, Mark jantano típi (tenda índia) da Manu (Manuela),senhora dos seus quarentas e tais, mãe deum dos primeiros adeptos transe portu-gueses. Dias antes chegara do Nepal um is-raelita com haxixe, um condensado deuma erva local que se diria druídica. E as-sim o número de tendas tem crescido.

Passam os dias em trabalho árduo, amontar um festival que tem uma dimensãotal que admira que seja praticamente des-

ALUCINAÇÕESOs cogumelos ilegais, a cultura maia, hindu e druídicasão algumas das influênciasdo colorido movimento transe. As fluorescências e os fractais estão presentesnas roupas e nos adereços

TRIBO TRANSE

MOICANORapar o cabelo antes da festa

VISÃO 10 de Agosto de 2000

SOCIEDADE

Page 8: Visão - johnnybgoodpt - a seita do transe

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SOCIEDADE

Aliás, todo o espectáculo visual de umafesta transe parece montado de forma afacilitar alucinações.

‘Sair da Beira vivo’Um fim-de-semana de Julho, muito an-

tes do festival. Para esta festa, ninguém fezpublicidade, não havia quaisquer indica-ções. Foram pequenas mensagens escritaspassadas por telemóvel — às vezes em tro-ca de uma palavra-chave — que os fizeramlá chegar. Foram quase secretistas. No fimde uma aldeia, na estrada que liga a Covi-lhã à Guarda, há uma cancela branca deuma propriedade agrícola: «Está fechada eé para continuar fechada. Levanta-a, bai-xa-a, anda uns quilómetros, passa umaponte de madeira, anda um pouco mais ehás-de começar a ver os outros carros.»Foi a única pista, de voz que se quis anó-nima, para chegar a esta festa.

É meia-noite. A aldeia — que não podeser identificada para não denunciar o pro-prietário da enorme quinta onde decorreuo encontro — está completamente desertae mesmo que alguém passeasse à beira da

estrada não saberia, com toda a certeza, aque se devia aquele inusitado movimentoautomóvel.

Foram quilómetros de cerejeiras antesde lá chegar e nada garantia que a ponteaguentasse o peso de um carro. Junto a umpequeno casario começam a avistar-se osBMW, os Volkswagens e os Land Rover.No bar, improvisado numa ruína abando-nada, cheira a haxixe — um cheiro forte,bem mais forte do que o habitual. Está látudo: as fluorescências, os fractais, as luzesnegras, os símbolos hindus. Mas qualquercoisa não corre bem. Há imensa droga arodar, nomeadamente cocaína. Há muitagente também bêbeda e muita gente «pas-tilhada». O clima é agressivo.

Um dos adeptos do movimento diz queos flashes da máquina fotográfica interfe-rem com a «onda» de uma festa transe.Uma questão de ciclos, esclarece. Diferen-ciam-se da música, interferem com os rit-mos dela. Mas isso não explica tudo. Háviolência no ar, os estados de espírito va-riam da euforia, ao ódio, à tristeza. «Pira-te que ainda não sais da Beira vivo», dizema um dos elementos da equipa de reporta-gem da VISÃO. O transe tem afinal um la-

do bastante negro. «Essa noite foi um badflight», dirão depois.

«Uma coisa que me impressionou bem,de princípio, foi a paz de espírito que sesentia, toda aquela boa onda», recordauma jornalista de uma rádio de projecçãonacional que esteve de baixa vários mesespor causa do ecstasy e dos ácidos. «Só de-pois vi o resto. As pastilhas não são comoa heroína, não são drogas que tenham ummomento alto em que se sobe e desce empouco tempo», explica.

Uma «pedra» destas pode durar 24 ho-ras e o problema não é a dependência físi-ca. «Aquilo absorve-te completamente, oambiente fascina-te, só pensas na próximafesta, não consegues trabalhar. Aí, vês queaquilo mexeu com a tua cabeça. Mas se es-tás de mal contigo, nem tu lá vais fazer na-da, nem eles te querem lá.»

É então que vem o pesadelo. «Ninguémestá no transe mais de um ano», reforçaum colega desta mulher de trinta e poucosanos. «Só os ‘carolas’, os que vivem daqui-lo — os outros, ao fim desse tempo, ou sevêm embora ou precisam de tratamentopsiquiátrico.» Para lidar com os problemasda vida real. ■

TRIBO TRANSE

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OMÚSICA Paulo, DJ invisual:«O momento M,em que a multidão comunga em transe,consegui-o muitopoucas vezes» DROGA

Festa numa «floresta»,algures na Beira.Nem para todos otranse é inocente.Há drogas duras e também háquem arranje sérios problemas

REFEIÇÃOAo pé do seu tipi,Manu, mãe de um dos trancers,prepara a refeição vegetariana

DESCANSOFeijão, artista plástico que se «inspira livremente» na cultura maia, tocaum instrumentooriental