Visconde de Taunay-A Retirada Da Laguna

download Visconde de Taunay-A Retirada Da Laguna

of 79

Transcript of Visconde de Taunay-A Retirada Da Laguna

A Retirada da Laguna

Falares Literrioshttp://www.falares.hpg.com.br

A Retirada da Laguna

Visconde de Taunay

A

Sua Majestade o Senhor

Dom Pedro II

Imperador do Brasil

Senhor,

Ao se render Uruguaiana, inaugurou Vossa Majestade, na Amrica do Sul, a guerra humanitria, a que aos prisioneiros poupa e salva, trata feridos inimigos com os desvelos dispensados aos compatriotas, a que, considerando a efuso de sangue humano deplorvel contingncia, aos povos apenas impe os sacrifcios indispensveis ao slido estabelecimento da paz.

E principalmente sob este pontuo de vista que ouso achar-me autorizado a colocar sob o augusto patrocnio imperial a desataviada narrativa da Retirada da Laguna, obra de constncia e da disciplina, em que os oficiais de Vossa Majestade, devendo defender, por entre obstculos os mais diversos, as bandeiras e os canhes a eles confiados, jamais cessaram, quanto lhes foi possvel, de conter o legitimo desforo de bizarros soldados, exasperados pelo furores do inimigo, e obstar crueldade tradicional de auxiliares ndios, vingativos como soem ser.

este reflexo de um grande ato de iniciativa soberana, a mais bela recordao que jamais poderemos entre camaradas invocar; cabe-nos a honra de a Vossa Majestade dedic-la.

De Vossa Majestade Imperial

Sdito e servidor, muito humilde e obediente,

Alfredo dEscragnolle Taunay.

Prlogo

o assunto deste volume a serie de provaes por que passou a expedio brasileira, em operaes ao Sul de Mato Grosso, no recuo efetuado desde a Laguna, a trs e meia lguas do rio Apa, fronteira do Paraguai, ate o rio Aquidauana, em territrio brasileiro, trinta e nove lguas, ao todo, percorridas em trinta e cinco dias de dolorosa recordao.

Devo esta narrativa a todos os meus irmos de sofrimento, aos mortos ainda mais do que aos vivos.

Em todos as pocas largo interesse se ligou s retiradas, no s por constiturem operaes de guerra difceis e perigosas, como nenhuma outra, mas ainda porque os que as executam, j sem entusiasmo nem esperanas, freqentemente entregues ao desanimo, ao arrependimento de erros ou das conseqncias de erros, precisam arrancar ao espirito, assim preocupado, os meios de enfrentar a fortuna adversa, que a cada passo os ameaa, com todos os seus rigores. Em tais contingncias requer-se o verdadeiro cabo de guerra: ali h de se lhe revelar o caracterisco essencial: a inabalvel constncia.

Vive a Retirada dos Dez Mil em todas as memrias. Colocou Xenofante na plana dos primeiros capites. Nos tempos modernos vrios ocorreram no menos notveis: a de Altenheim, pelo marechal de Lorge, aps a morte de Turenne, seu tio, e que ao grande Cond fez declarar que lha invejava; a de Praga, enaltecedora da nomeada do conde de Belle Isle: a de Plaffenhofen, por Moreau, tida como um dos mais belos jeitos darmas, efetuados por Turenne; j em nossos dias: a de Talavera, que levou Lorde Wellington, triunfante, a Lisboa; a que honrou o funesto regresso de Moscou e em que o Prncipe Eugnio e o Marechal Ney rivalizaram, em herosmo; a de Constantina pelo Marechal Clausel e outras menos clebres; mas que, no entanto, pela variedade dos perigos e das misrias, chamam a ateno da histria.

Resta-nos solicitar a maior indulgncia para esta narrativa cujo nico mrito pretende ser o dos fatos expostos. Tiramo-los de um dirio escrito em campanha.

Assim nela ho de abundar as incorrees, demasias e repeties; cremos dever deix-las; so indcios da presena da verdade.

Alfredo DEscragnolle Taunay.

Rio de Janeiro, outubro de 1868.

CAPTULO I

Formao de um corpo de exrcito destinado a atuar, pelo norte, sobre o alto Paraguai. Distncias e dificuldades de organizao.

Para dar uma idia, algum tanto exata, dos lugares onde, em 1867, ocorreram os acontecimentos cuja narrativa se vai ler, convm lembrar que, ao finalizar de 1864, havendo o Paraguai atacado e invadido, simultaneamente, o Imprio do Brasil e a Repblica Argentina, achava-se, decorridos dois anos, aps tal investida, reduzido a defender o prprio territrio, invadido do lado do sul, pelas foras conjuntas das duas potncias aliadas, a quem coadjuvava pequeno contingente de tropas da Repblica do Uruguai. Ao sul oferecia o caudaloso Paraguai mais vantagens expugnao da fortaleza de Humait, que, pela posio especial, se convertera na chave estratgica do pas, assumindo, nesta porfia encarniada, a importncia de Sebastopol, na Campanha da Crimia.

Ao norte, do lado de Mato Grosso, eram as operaes infinitamente mais difceis, no s porque ocorriam a milhares de quilmetros do litoral atlntico, onde se concentram todos os recursos do Brasil, como ainda por causa das inundaes do rio Paraguai, que cortando na parte superior do curso terras baixas e planas, transborda anualmente, a submergir ento regies extensssimas. Consistia o plano de ataque mais natural em subir as guas do Paraguai, do lado da Argentina, at o corao da repblica inimiga e, do Brasil, desc-las a partir de Cuiab, a capital mato-grossense que os paraguaios no haviam ocupado.

Teria impedido guerra arrastar-se durante cinco anos consecutivos esta conjugao de esforos simultneos. Mas era-lhe a realizao extraordinariamente difcil, devido s enormes distncias a transpor. Basta lanar os olhos sobre um mapa da Amrica do Sul e examinar o interior do Brasil, em grande parte desabitado, para que qualquer observador de tal se convena logo.

No momento em que se enceta esta narrativa, estava, pois, a ateno geral das potncias aliadas quase exclusivamente voltada para o Sul, para as operaes de guerra, travadas em torno de Curupaiti e Humait. Quanto ao plano primitivo fora ele mais ou menos abandonado; quando muito ia servir de pretexto a que se infligissem as mais terrveis provaes a uma pequena coluna expedicionria, quase perdida nos imensos e desertos sertes brasileiros.

Em 1865 ao arrebentar a guerra que Francisco Solano Lopes, o presidente do Paraguai, na Amrica do Sul suscitara sem maior motivo do que os ditames da ambio pessoal; quando muito a invocar o vo pretexto da manuteno do equilbrio internacional o Brasil, obrigado a defender honra e direitos, disps-se, denodadamente, para a luta. A fim de reagir contra o inimigo, em todos os pontos onde podia enfrent-lo, o plano da invaso do Paraguai setentrional acudiu naturalmente a todos os espritos; preparou-se uma expedio para este fim.

No foi infelizmente este projeto de diverso realizado nas propores que sua importncia exigia; e, mais infelizmente ainda, os contingentes acessrios sobre os quais contvamos, para avolumar o corpo de exrcito expedicionrio, durante a longa jornada atravs de So Paulo e Minas Gerais, falharam em grande parte ou desapareceram devido a cruel epidemia de varola e as deseres que esta provocou. Marchou-se lentamente: provinha a demora de muitas causas, sobretudo da dificuldade do abastecimento de vveres.

Foi somente em julho (partira do Rio de Janeiro em abril) que a coluna pde organizar-se em Uberaba, chegando-lhe os quadros a atingir cerca de trs mil homens. Reforavam-na vrios batalhes que, de Ouro Preto, trouxera o coronel Jos Antnio da Fonseca Galvo.

No sendo esta fora ainda suficiente para uma ofensiva, seu comandante, Manuel Pedro Drago, encminhou-a para a capital de Mato Grosso, a fim de avolum-la. Assim se adiantou em direo ao noroeste, at as margens do Paranaba, quando ali recebeu peremptrias ordens do governo, levando-lhe instrues formais de marchar para o distrito de Miranda, ento ocupado pelo inimigo.

Tal injuno, no ponto a que chegvamos, impunha como forado corolrio obrigar-nos a descer em direo ao rio Coxim e a contornar em seguida a serra de maracaju, por sua base ocidental, anualmente invadida pelas guas do Paraguai. Assim, pois, estava a expedio condenada a atravessar extensssma regio emprestada pelas febres palustres.

A 2o de dezembro atingiu o Coxim, ainda sob o comando do coronel Galvo, recentemente investido da chefia e, pouco depois, graduado em brigadeiro.

Embora sem valor algum estratgico, tinha pelo menos o acampamento do Coxim uma altitude que lhe garantia a salubridade. No tardou, porm, que a enchente havendo-o ilhado e isolado, ali passasse a fora pelas mais cruis privaes, sofrendo at fome.

Aps longas hesitaes, foroso se tornou romper ao acaso, atravs do pestilento pantanal, onde a coluna foi desde o princpio provado pelas febres. Uma das primeiras vtimas veio a ser o prprio e infeliz chefe, falecido margem do rio Negro. Afinal, arrastando-se penosamente, consguiu atingir a povoao de Miranda a 396 quilmetros para o sul. A uma epidemia climtica de novo gnero, a paralisia reflexa, ou beribri, acabrunou-a, dizimando-a ainda mais. Dois anos quase haviam decorrido, desde a nossa partida do Rio de Janeiro. Lentamente descrevramos imenso circuito de dois mil cento e doze quilmetros. E j um tero de nossa gente perecera.

CAPTULO II

Miranda. Partida da coluna. Marcha de Miranda a Nioc.

Foi a 1 de janeiro de 1867 que o coronel Carlos e Morais Camiso, nomeado pela presidncia de Mato Grosso, assumiu o comando dos desventurados soldados que, s mesmo profundo sentimento de disciplina, pudera at ento manter em forma. Miranda quase inabitvel, rodeada como se acha, e numa extenso considervel, de depresses que a menor chuva, num instante, inunda, at mesmo na melhor estao, e que os raios solares, som a mesma rapidez, enxugam. Privada de boa gua, pois a do Miranda sempre agitada e lodosa, a disposio do terreno no oferecia ali, alis, nenhuma das condies militares s quais, em rigor, poderiam Ter sido sacrificadas as consideraes higinicas. E com efeito, ao longo de um caudal, acessvel a grandes embarcaes, estendem-se margens uniformemente baixas a que tiram toda a segurana estradas abertas.

Freqente e energicamente pronunciara-se a comisso de engenheiros contra maior demora neste foco de infeco; e j, por duas vezes, em relatrio, o assinalara o chefe da junta mdica como a causa de runa da expedio, pois de contnuo diminua o seu pessoal, quer pela morte, quer pela dispensa forada dos doentes. Continuava o beribri a fazer em nossas fileiras numerosas vtimas naquele lugar ainda sujeito influncia dos grandes pantanais que a tropa acabara de atravessar, entre o Coxim e Miranda.

Estava Miranda em runas quando nossas foras ali entraram. Ao partirem haviam-na os paraguaios incendiado. Ardera parte das construes, mas eram evidentes os sinais de decadncia, anterior ao incndio que sucedera primeira fase de desenvolvimento e prosperidade. Ainda se mantinham de p prdios cmodos e sobre o local de velha fortificao, outrora bem construdo quartel, ento muito deteriorado pelo fogo, fechava uma praa de onde saam duas ruas que iam acabar em frente igreja paroquial, ambas ladeadas de casas erguidas a pequena distncia umas das outras.

Da matriz apenas subsistiam as paredes laterais, e arcabouo da torre, o galo de folha-de-flandes e uma cruz esculpida no alto do fronto. Fora edificada graas aos esforos de virtuoso missionrio italiano, Frei Mariano de Bagnaia, que no somente nela empregara o produto das esmolas, por ele prprio recolhidas em toda a vizinhana, com incomparvel trabalho e ardor, como ainda ali aplicara a modesta cngrua.

Os tristes destroos desta igreja, saqueada pelos paraguaio, que at os sinos lhe tomaram, havia algum tempo antes presenciado uma cena que nos parece merecer meno.

A 22 de fevereiro de 1865, deixando Frei Mariano as margens do Salobro, onde se refugiara, ao aproximar-se a invaso, viera, de moto prprio, entregar-se aos paraguaios, no intuito de lhes pedir compaixo para com a desventurada parquia. Ao chegar vila, fora-lhe o primeiro cuidado correr matriz, objeto da sua mais viva solicitude. Desolador espetculo o esperava: altares derribados, as imagens santas despojadas dos adornos, enfim todas as mostras da profanao. Ao presenci-lo, dele se apoderou tal sentimento de indignao e desespero, que no pde dominar-se. Imediatamente, e em tom retumbante, frente do chefe paraguaio e seus comandados, pronunciou solene antema contra os autores de tais atentados. Ouviram-no todos cabisbaixos, como se esta voz severa fora a de algum daqueles Padres que outrora lhes haviam catequizado os antepassados, esforando-se o comandante em convencer o missionrio que os nicos culpados eram os Mbaias (ndios).

Lavado em lgrimas, corria o santo homem de altar em altar, como para verificar os ultrajes praticados contra cada um dos objetos de sua venerao. S aps minuciosa constatao de todas as indignidades cometidas se resignou a celebrar o santo sacrifcio da missa; e isto depois de tudo haver disposto para que a cerimnia se pudesse realizar.

De cento e treze dias, foi a permanncia da coluna em Miranda de 17 de setembro de 1866 a 11 de janeiro seguinte. A 28 de dezembro retirou-se um dos comandantes enviados da capital de Mato Grosso, ele prprio atacado pela epidemia. A 31 de mesmo ms apresentava-se em Miranda o coronel Carlos de Morais Camiso; e no dia imediato, 1 de janeiro de 1867, assumia o comando, como j o dissemos.

Enviou imediatamente a Nioc dos membros da comisso de engenheiros, Cato Roxo e Escragnolle Taunay, a fim de examinarem as estradas e o local e preparar ali acampamentos, tomando ao mesmo tempo algumas disposies relativas recepo de enfermos e ao armazenamento das munies de guerra e da boca.

A 1o tornou pblica a ordem de marcha.

Nova organizao dera ao corpo de exrcito. Anteriormente dividia-se em duas brigadas, cada qual composta de trs corpos. Mas tanto uma como outra estavam to reduzidas, que as manobras, baseadas sobre um nmero certo de homens, se haviam tornado quase impraticveis. Pela fuso de todas em uma brigada de mil e seiscentas praas, ficou o estado-maior aligeirado, e no sem vantagens para o errio pblico, de pessoal suprfluo. Tal medida, desde muito reputada til, teve geral aprovao.

Moveu-se a fora a 11; e, pela primeira vez, as peas de artilharia montada, puxadas por bois, acompanharam a marcha da infantaria.

Saram os diferentes corpos da vila de Miranda completamente fardados, armados e providos de munies, libertos, pressentiam-no, das provaes a que se submeteram, desvanecidos daquele sentimento de disciplina que tudo os fizera suportar, embora exercitando-se, cada vez mais, no manejo das armas. O que estes homens pediam era um clima salubre que os revigorasse e os pusesse em condies de agir. E este iam encontr-lo em Nioac, a 21o quilmetros a sudesde de Miranda.

Era a estrada larga e corria ao longo de magnficos bosques, onde predominavam os umbus balsmicos, espalhando ao longe o perfume das flores abertas, os piquis, carregados de frutos, e as inesgotveis mangabeiras.

So mui belos os acidentes do terreno; os ribeires e riachos, a correrem volumosos por toda a parte, ofereciam excelente gua. J no mais pousvamos os olhos sobre as tristonhas perspectivas dos pntanos. Pelo contrrio, nos comprazamos agora em contemplar verdejantes campinas, trechos que apresentavam os mais poticos aspectos, sombra de poderosos contrastes luminosos. At Lauiad ruma a estrada, diretamente, para leste. A partir deste ponto toma a direo sul-sudeste. O panorama que ento subitamente se desdobra realmente grandioso. Aos ps do espectador, vasta campina a que embelezam magnficos acidentes; alm, as grandes orlas da mata que acompanham as sinuosidades das belas guas do Aquidauana; ao longe a extensa serra de Maracaju, com os pncaros escavados, refletindo os esplendores do Sol, e coroando toda esta massa prodigiosa, azulada pela distncia. Foi este ponto, com razo, chamado pelos Guaicurus Campo Belo (Lauiad).

Parece apangio dos povos civilizados o sentimento admirativo; pelo menos bem raro nos homens primitivos a sua manfiestao exterior. No entanto, as grandes linhas de um quadro majestoso da natureza conseguem, s vezes, vencer a feio material do selvagem, unindo ao autor da obra o rude espectador maravilhado. O primeiro Guaicuru que sobre esta regio encantada deitou os olhos, no pde conter a exclamao de surpresa; com a voz gutural e cavernosa pronunciou a palavra Lauiad, que para sempre a assinalou.

A quatro lguas de Lauiad est a Forquilha, onde o Nioac conflui com o Miranda.

So todos estes panoramas de incomparvel beleza. Uma eminncia, entre outras, de onde se dominam as margens cheias de mata do Uacogo, do Nioc e do Miranda, enlaando a plancie em suas curvas convergentes, oferece aspecto que sobrepuja ainda, se possvel, o panorama da Lauiad. To brilhante, to suave a luz que a toda aquela paisagem cobre que, involuntariamente, vem a imaginao emprestar a sua magia a este irresistvel conjunto dos encantos da terra e do cu. Apertadas entre altas ribanceiras, cobertas de taquaruus, correm as guas frescas do Nioac sobre um leito quase contnuo, de grs vermelho, disposto em grandes lajes; e, em vrios lugares, a ao da correnteza sobre a pedra to notvel, que se recomenda ateno e ao estudo do gelogo. Mas quem, sbio ou artista, no acharia farta messe nestes campos admirveis? Na extenso das dez lguas que separam a Forquilha de Nioc tm os terrenos nvel inferior aos que precedem Lauiad, muito embora jamais possam, em tempo algum, ser invandidos pela inundao. So, pelo contrrio, secos e cobertos de pedregulho, como de macadame natural. Nos cerrados surgem os piquis, freqentes.; h tambm uma grande rvore que se cobre de bagas aucaradas e agradveis, a que chamam fruta-de-veado. No se mostram os jacarands, tambm, a raros.

Realizou-se a marcha para Nioac com muita ordem e regularidade. Eram alguns doentes transportados em redes, outros em cangalhas semelhantes aos cacolets usados pelo exrcito francs na Arglia e da inveno de Larrey, no Egito. Grandes servios nos prestou este excelente modo de transporte. Suavizou, at, os ltimos momentos do capito Lomba, do 21 batalho, que morreu ao chegar, supremo sacrifcio, oferecido ao mau fado da nossa longa permanncia em Miranda.

A benigna influncia do planalto que atingramos fez desaparecer completamente a epidemia. Restabeleceram-se do pronto os doentes: no tornamos a ver aquelas terrveis dormncias, sinais precursores do mal que tantas vtimas causara.

CAPTULO III

Nioac. O coronel Carlos de Morais Camiso. O guia Jos Francisco Lopes.

Fora a vila de Nioac abandonada pelo inimigo a 2 de agosto de 1866. Por toda a parte ali se viam vestgios do incndio. Poupadas, apenas, duas casas e uma pequena igreja de pitoresca aparncia. primeira vista agrada o aspecto geral do lugar. De um lado, o povoado e um ribeiro chamado Orumbeva; do outro, o rio Nioac, cujas guas confluem cerca de 90o metros, para trs da igreja, deixando livre, em torno desta, direita e esquerda, um espao duas vezes maior. Pequena colina fica-lhe em frente, a pouca distncia.

Ali chegamos s 11 horas de 24 de janeiro de 1867 acampando, em ordem de batalha, com a direita encostada margem direita de Nioac; e a esquerda mata do Orumbeva. Instalaram-se o quartel-general e o trem retaguarda, no local da vila, ocupando o hospital as pequenas casas salvas do fogo e um grande galpo que s pressas se construiu.

Serviu a nave da igreja de onde se retirara tudo quanto ainda havia de smbolos do culto de depsito ao cartuchame e a todas as munies.

Ergueram-se, de todos os lados, ranchos de palha, gurbis como lhes chamam na Arglia, e, dentro em pouco, oficiais e soldados ali se acharam to bem instalados quanto as circunstancias o permitiam. Um bem-estar, desde vrios meses ausente, o renovamento da existncia um sentimento de plenitude de vida a todos ns exaltava, e em todos se transmutava na nsia de sobressair, graas a algum brilhante feito d'armas que chamasse a ateno do pas para uma expedio desde muito inativa. Reinavam no acampamento a esperana e a alegria.

Perigo havia, contudo, neste entustasmo; e os que conheciam o chefe, de si para si, indagavam, com secreto desassossego, qual lhe seria a demonstrao da iniciativa.

Ia-lhe no peito amarga lembrana que no conseguia remover da mente. Ao abandonar o coronel Oliveira, comandante das armas da provncia, a praa de Corumb (1), embora estranho s primeiras deliberaes motivadoras desta precipitada retirada, figurara neste triste episdio o coronel Camisso na qualidade de comandante do segundo batalho de artilharia; e, por tal motivo, vira-se acoimado de solidariedade com este ato de fraqueza. Contra ele servira-se a malevolncia destas vozes cruis, circulando, em tal poca, um soneto impresso, acerbo estigmatizador dos defensores de Mato Grosso. Dentre os nomes nele apontados, lera o prprio...

Subsistia a dor da afronta, profundamente magoado como se lhe achava o pundonor militar. Com verdareira paixo aceitara o comando da expedio. Seria, a seu ver, o modo de se reabilitar perante a opino pblica e, desde tal momento, concebera o projeto no de se manter na defensiva, como o critrio o indicava, dada a exigidade dos recursos de que podia dispor, e sim de levar a guerra ao territrio inimigo, fossem quais fossem as conseqncias.

Dia a dia. cada vez mais, tal idia o empolgara. Sob, a influncia de legtimo ressentimento, tomou a feio da fixidez, apesar da inata indeciso do carter. Si nistro fadrio o impelia ao infortnio.

Encontrava-se no arquivo da coluna um ofcio do Ministro da Guerra recomendado a marcha sobre o Apa logo que as conjunturas a tanto se prestassem.

Ali enxergou, no o que exatamente havia, uma indicao facultativa, mas a ordem de avanar, forma peremptria. Por mais que se lhe fizessem observaes: cego, graas a doentia suscetibilidade, levava a mal que de menos contestvel se lhe objetasse.

Uma frase depreciativa a seu respeito pronunciada, imprudentemente repetida, ainda lhe acirrou a inflexibilidade, tornando-o surdo a quanto parecesse desvi-lo do projeto de invaso. No era que lhe no sopesasse as dificuldades; via, porm, os soldados cheios de entusiasmo e j aguerridos; embalava-se na esperana de, sua testa, praticar grandes feitos; adestrava-os s manobras, por meio de freqentes exerccios, levava-os a empenhar combates simulados, em que a artilharia representava ruidoso papel; e desta agitao geral resultava uma animao de que ele prprio compartia.

Entretanto, algumas vezes tambm, percebia nitidamente que apenas dispunha de uma vanguarda de exrcito em campanha; e era obrigado a reconhec-lo. As hesitaes lhe voltavam ento, e, chegado o dia por ele prprio fixado para a arrancada das foras, achava sempre motivo para o adiamento, embora precisasse invocar as razes na vspera repelidas. Ora oficiava ao Ministro que nada podia empreender sem cavalaria, e ora pretendia poder dispens-la; dolorosos embates entre a autoridade da razo clara e as inspiraes do orgulho magoado.

Era-lhe a atitude, alis, sempre digna e firme; em todas as questes administrativas trazia, sobretudo, o cunho de nobre integridade. No admitia uma diminuio ao prestgio de chefe e sabia mant-lo tanto mais quanto lhe assistia real singeleza e amenidade.

Homem de quarenta e sete anos de idade, baixo e aparentemente robusto, feies regulares, tez moreno-escura, olhos negros e vivos, tinha larga testa e belo cranio, completamente calvo, que dos paraguaios lhe valeu injuriosa alcunha. Sempre srio e preocupado, era visto solitrio, ou a conferenciar com o velho sertanista que nos servia de guia, Jos Francisco Lopes.

Merece este ser apresentado ao leitor antes que o veja agir. Dentre ns, os que tinham presentes os romances de Fenimore Cooper, nso podiam, vista do sertanejo brasileiro, o homem das solides, deixar de evocar a grande e singela figura de Olho de Falco no ltimo dos Moicanos.

Tivera, desde a infancia, o pendor pelas entradas nos sertes brutos. Contava-se tambm que um ato violento, da primeira mocidade, lhe impusera, durante algum tempo, este modo de vida. Viera depois a idade desenvolver-lhe todas as aptides. Prodigiosamente sbrio, viajava dias inteiros sem beber, trazendo garupa da cavalgadura pequeno saco de farinha de mandioca, amarrado ao pelego macio, que lhe forrava o selim. Jamais deixava o machado destinado a cortar palmitos. Nascido na vila de Pinmi, em Minas Gerais, dali, ao lu das aventuras, havia atingido todos os pontos da rea que se estende das margens do Paran s do Paraguai. A fundo conhecia as planicies que entestam com o Apa, divisa do Brasil e do Paraguai. Numerosas localidades at ento virgens do p humano, at mesmo selvagem, percorrera e a vrias batizara (Pedra de Cal, entre outras). Tomara, em nome do Brasil, posse, ele s, de imensa floresta, no meio da qual chantara uma cruz, grosseiramente falquejada, onde esculpira a inscrio P II (Pedro Segundo), imponente madeiro, perdido no recesso dos desertos. Criava a iniciativa do sertanista domnios ao soberano.

Numa viagem para estudar a navegao do rio Dourado, afluente do Paran, gravemente ferira a planta do p, acidente de que jamais pudera curar-se. Um dia. como lhe vssemos a chaga, semicicatrizada, sempre a sangrar, disse-nos: "Prometeu-me o governo dar-me, a ttulo de recompensa, trezentos mil-ris, mas nunca os pagou. Perdoei-lhe a divida; o que se me devia era uma condecorao; j a tenho e nada mais quero".

Durante sete anos, com a famlia, residira no Paraguai; mas no momento da invaso j estava de volta ao solo brasileiro, habitando, margem do rio Miranda, uma propriedade sua, que batizara Jardim, fertilizada por seu trabalho e o dos filhos j crescidos. Ele e a mulher, D. Senhorinha, generosamente hospedavam quantos ali fossem ter.

Quando, em 1865, irromperam os paraguaios em territrio brasileiro, conseguira escapar-lhes, mas nico da famlia, que cara toda em poder do inimigo e fora transportada para a aldeia paraguaia de Horcheta, a sete lguas da cidade de Concepcin. Com ela vivia o corao do velho guia.

Por todas estas razes, nele encontrou o coronel Camisso apaixonado adepto. Desde que, dando-lhe a conhecer os seus projetos, acenou a Jos Francisco Lopes com o ensejo de, como guia da expedio, ir ter com a familia e vingar-lhe os agravos, empolgou o espirito do sertanista brasileiro, que, apesar de todo o ardor, jamais perdeu, contudo, a perfeita intuio das convenincias. Assim, nunca esquecendo a modstia da posio, freqentemente dizia: "Nada sei, sou sertanejo; os senhores que estudaram nos livros que sabem".

Era-lhe o orgulho num nico ponto irredutivel, no que tocava ao conhecimento do terreno, legitima ambio, alm do mais, pois dela nos proveio a salvao. "Desafio, exclamava, todos os engenheiros com as suas agulhas (bssolas) e plantas. Nos campos da Pedra de Cal e Margarida sou rei. S eu e os indios Cadiueus conhecemos tudo isto".

Resolveu-se a partida de Nioac, embora j com grandes dificuldades tivssemos que lutar, sobretudo quanto ao abastecimento de gado.

Comunicou-se a ordem s tropas sem que se soubesse para onde se ia marchar. Pensava a maioria que se tratava somente de alguma incurso a fazer em territrio inimigo. Levava a coluna apenas o material indispensvel para um ms de ausncia. Ficavam no acampamento as mulheres dos soldados, exceto duas ou trs.

______________

(1) Fora em fins de dezembro de 1864 Corumba tomada e devastada pelos paragualos. Era a principal praca comerciante de Mato Grosso: e o inimigo ali realizou mui considervel presa. Haviam-se os habitantes refugiado na matas vizinhas, mas Barrios os perseguiu. Saqueadas as casas, varios objetos roubados, e dos mais valiosos, remeteram-se a Lopez que no hesitou em os guardar, sobressaindo-se Barrios entre todos os que assim procederam. A um brasllelro rico, e sua filha, levaram a bordo do seu navio: e quando o pai recusou delxar a menina a sos com o chefe paragualo, arrastaram-no fora, ficando a infeliz criana no navio. Ps Barrios em tratos todos os qu Ihe cairam as mos, quando queriam ou no podiam dar-lhe as intormaes pedidas, ordenando que os espancassem: foram varios lanceados como espies.

The War in Paraguay por G. Thompson, vol. In 12, 1869. Jovem engenheiro ao servio de Lopez, entrara o Sr. Thompson em campanha, crente que ia defender o fraco contra a opresso. A experlncla dos fatos testemunhados dissipa-se, porm, a generosa iluso.

CAPTULO IV

Marcha sobre a fronteira paraguaia. Conselho de guerra.

Arrancou a coluna a 25 de fevereiro de 1867, indo acampar a uma lgua da vila, margem do rio Nioac. Logo que pudemos, visitamos o comandante. Tinha a barraca sobre um montculo pedregoso, a meio abrigado por palmeiras que tornavam aprazvel aquele local. Estava agitado: j para o rancho da tarde faltava gado. A 26 estvamos no Canind; a 27 no Desbarrancado.

Dois dias demorou a coluna neste lugar, 28 de fevereiro e 1 de maro. A 2 marchava at o Feio, rio da vizinhana, onde, devido ao mau tempo, passou o dia 3. Nesse mesmo dia voltou Jos Francisco Lopes de sua estncia do Jardim trazendo-nos, mais ou menos, duzenta e cinqenta cabeas de gado, circunstncia que naturalmente veio aumentar a grande confiana que nele e em sua palavra j depositvamos. A 4, uma hora da tarde, ocupamos o lugar onde fora a colnia de Miranda, distante 8o quilmetros S.S.O. de Nioac (1). Apenas ali restavam alguns vestgios de construes incendiadas.

Principiou o coronel Camiso por fazer explorar os diversos pontos que se ligavam nossa posio e ordenou que, em todas as direes, se abrissem picadas atravs das matas, mandando ocupar as estradas do Apa e da colnia por piquetes. Ao mesmo tempo eram os aproches da frente e da retaguarda resguardados por destacamentos considerveis.

O que teria convindo seria investir com as fortificaes paraguaias e tom-las. Na primeira confuso desta surpresa, poderiamos devastar o Norte da Repblica antes que o governo de Assuno soubesse de nossa marcha. Deu-se inteiramente o contrrio: teve o inimigo tempo de perceber a diretriz e o alcance da empresa.

Continuava sempre iminente a fome. Segundo rebanho de duzentas cabeas, que Lopes ainda trouxera de suas terras, estava a acabar. Nenhuma remessa nova se anunciava e a Intendncia em ofcio, datado de Nioac, declarava achar-se incapaz de prover, da em diante, ao abastecimento de gado. Nesta contingncia acentuaram-se as hesitaes do coronel com maior freqncia. Deixou mesmo pressentir a necessidade que talvez o compelissem a retrogradar at Nioac e abandonar provisoriamente os projetos de ofensiva. Como fazia praa em observar, tal idia, alis, jamais fora favoravelmente acolhida.

Quis em todo o caso pr a salvo a responsabilidade, por meio de documento oficial com que, oportunamente, pudesse justificar-se, quer perante o governo, quer perante o pblico. Assim, pois, a 23 de maro, oficiou ao presidente da comisso de engenheiros, determinando-lhe que convocasse os colegas para deliberarem sobre a possibilidade de um movimento ofensivo e os meios de o executarmos. A tarde desse mesmo dia. graas a um contraste, cuja recordao nos ficar inapagvel mente, reuntu-se este conselho pejado de tantas desgraas, quando a luz crepuscular enchia os espaos de paz e alegria. A principio solene, acabou por violncias nascidas da exaltao conscienciosa.

Por diversas vezes esforaram-se trs dos membros da comisso em pintar a posio do corpo do exrcito tal qual realmente era; a insuficincia de vveres; a inpia absoluta dos meios de transporte; a ausncia da cavalaria e a escassez das munies; a impossibilidade de angariar reforos ou socorros para um punhado de homens internados em terra inimiga. Da a eventualidade infalivelmente prxima de uma retirada a executar-se, sem dados de antemo estudados, e sob condies em que as tentativas s podiam conduzir a um desastre, e isto com a deplorvel conseqncia de atrair novamente para o territrio brasileiro, a ocupao paraguaia, acompanhada de todos os horrores.

Razo, mais que sobeja, assistia incontestavelmente aos que assim pensavam. Dois dos colegas, porm, encarando a questo sob um ponto de vista diverso, e buscando argumentos em mais elevada esfera, pretenderam que ao corpo de exrcito assistia uma misso que, a todo o transe, devia cumprir. Tornara-se-lhe a marcha para o Norte do Paraguai absolutamente indispensvel no plano de conjunto da guerra. Era sem dvida a coluna mais fraca e talvez sucumbisse, mas til e gloriosamente. Dir-se-ia, pelo menos, que se compunha de valentes brasileiros.

ramos todos moos; tais pensamentos, tais modos de sentir invocados a propsito de opinies contrrias, trouxeram troca de palavras speras e afinal recriminaes pessoais.

At ento mantivera-se calado o tenente-coronel Juvncio, chefe da comisso de engenheiros, sem contudo conseguir dominar a comoo que de vez em quando o agitava. De seu voto, preponderante, devia depende, o desfecho do debate. Resumiu o parecer, colocando-se exclusivamente no terreno prtico: "No podia a coluna avanar sem vveres e j no dispunha de mais gado" Exatamente em tal momento ocorreu um destes incidentes que nas combinaes das coisas humanas surgem para lhes encaminhar o curso.

Um rebanho que o infatigvel Lopes, a instancias do nosso comandante, juntara nos campos de sua estncia do Jardim e tangera para o acampamento, ali entrava tumultuosamente, respondendo os mugidos dos animais aos clamores dos vaqueiros e pees.

Desde ento tudo se decidiu, como outrora em Roma expedies militares se sobrestiveram ou precipitaram-se segundo os gemidos das vtimas ou os gritos dos frangos sagrados.

Levantou-se o presidente do Conselho e, voltando-se para o secretrio encarregado de redigir a ata da sesso, o prprio autor desta narrativa, encarregou-o de comunicar ao comandante que a comisso unnime reconhecia a possibilidade da marcha para a frente, sobre a fronteira inimiga, apressando-se em oferecer toda a sua boa vontade para a execuo deste plano.

Em seguida, exclamou, como algum que ao sacrificio se vota: "Deixo viva e seis rfos. Tero como nica herana um nome honrado".

Assim se encerrou este conselho sobre o qual se fixara a ateno de toda a oficialidade e cujo resultado; todos surpreendeu; a ningum tanto, contudo, quanto ao comandante, por se ver arrastado pelo obstculo que acreditara antecer sua pessoa e os riscos do primitivo projeto. O sentimento do decoro pessoal, nele poderoso desde o despertar, preservou-o, contudo, de outro testemunhos da impressso, alm de alguns gestos, inopinados e involuntrios. Esforou-se desde ento em bem realizar o que fatalmente se tornara impossvel deixar de empreender.

___________

(1) No se eonnmda com a vila de MIranda, sita a 21o qullmetros N. O. de Nioac.

CAPTULO V

Reconhecimento. Rebute falso. Regresso de cativos escapos ao inimigo. O guia Lopes e o filho. Avante!

Recebeu imediatamente o 21 batalho ordem de escoltar os engenheiros, numa explorao das localidades vizinhas da colnia; e, com efeito, a 25, o tenente-coronel Juvncio, com os dois subordinados, avanou at o ponto chamado Retiro que, havia pouco, fora evacuado por um destacamento paraguaio de uma centena de homens. Feito o reconhecimento regressou na mesma tarde a nossa comisso ao acampamento. Haviam tido os infantes que nos acompanhavam que percorrer mais de 52 quilmetros transportando capotes e armas, alm de sessenta cartuchos na patrona. Pudemos freqentemente constatar que as mais longas marchas no conseguem abater a energia do soldado brasileiro.

Decorreram os dias subseqentes, na inao; e neste solene repouso do pensamento, que apenas prudncia em vsperas de arriscadas empresas.

Tanto ningum deve perturbar-se com a apreenso de desgraas, que talvez no ocorram, como se no entregar exagerada confiana no futuro, que possivel catstrofe ainda venha trazer o rigor do imprevisto.

Abril comeara, o ms fadado s nossas provaes. O servio de comboio longe estava de se achar garantido e no entanto como que a abundncia reinava no acampamento. Carretas em contnua afluncia ali traziam toda a espcie de fazendas e demais objetos de luxo que aqueles pramos desertos jamais haviam certamente visto. Assim, as mulheres dos soldados, atradas por este movimento comercial desciam de Nioac em grupos cada vez mais numerosos. Tambm para tal afluxo de gente contribua a reputao de salubridade da Colnia de Miranda.

Era para aquele ponto, com efeito, que, muito antes da invaso estrangeira, de toda a vizinhana mandavam convalescentes e valetudinrios. Ali so cristalinas as guas do rio que as infiltraes salobras dos pntanos de jusante ainda no contaminaram. Nada deixava a desejar o estado sanitrio das tropas. Haviam, pois, recomeado os exerccios dirios de todos os batalhes e nossas msicas, rompendo afinal o longo silncio, alegravam os espritos. A dos voluntrios de Minas, sobretudo, cuidadosamente recrutada, executava sinfonias cuja novidade, para os ecos locais, ajuntava novo encanto ao prazer da audio.

Recebeu logo o 17 batalho ordem de ir, alm do ponto atingido pelo 21, realizar um reconhecimento, sob a direo do guia Lopes e em companhia de um grupo de ndios Terenas e Guaicurus, que desde algum tempo se apresentara ao Coronel. A 1o de abril, realizou-se a partida, bandeiras desfraldadas e msica testa, espetculo sempre imponente em vsperas de combate. Graas ao comandante apresentava-se o corpo em p de disciplina, que em qualquer ponto o tornaria notado.

Reservava-nos o dia seguinte emoes muito diversas e quase contraditrias: a esperana de encontrar o inimigo, que se no realizaria, e o imprevisto das mais comoventes cenas familiares.

Anunciou-nos uma mulher, vinda de Nioac, o encontro, margem de um rio prximo, de um grupo de cavaleiros, falando o espanhol. Depois de lhe fazerem algumas perguntas, haviam-na deixado passar tranqilamente.

Deu-se logo o alarma em toda a frente e retaguarda, mas tivemos logo a agradvel surpresa do regresso do nosso destacamento trazendo dez cavaleiros. Eram brasileiros, eram irmos! Pertenciam a famlias estimadas e bem conhecidas de fazendeiros das vizinhanas de Nioac: Barbosas, Ferreiras, Lopes, e haviam conseguido escapar ao inimigo inexorvel. Com a rapidez do raio circula a notcia de sua apario por todo o acampamento, e at em Nioac. Para os ver acodem homens e mulheres, possudos como que de embriaguez; e a maioria at a chorar. Patrcios nossos! Rodeados, carregados, acham-se de repente em presena do comandante que os interroga.

Contam que, levados prisioneiros para o territrio paraguaio, eles e as famlias, haviam, ao se retirar o inimigo, sido dispersos por diversas localidades, principalmente em Vila Horcheta, a sete lguas de Concepcin

Ali lhes haviam dado terras de cultura sob a condio de pagarem aos coletores o quinto da colheita. Nunca os incomodaram muito at ento, mas sabendo, ultimamente, que o ditador Lopez, j falto de gente para o exrcito, projetara recrutar todos os estrangeiros, e at mesmo os prisioneiros, e que, ao mesmo tempo, se aproximava uma coluna brasileira, tudo tinham arriscado para reunir-se aos patrcios, escapando ao perigo de ter de os combater. As prprias famlias os haviam acorooado a assim proceder.

A 25 de maro, exatamente no dia dos nossos primeiros reconhecimentos diante da colnia, conseguiram apossar-se de bons cavalos paraguaios, e, como se no iludissem acerca do destino que os aguardava caso fossem novamente capturados, tinham se arriscado a caminhar noite, e de mata em mata, fazendo contnuos rodeios, em direo fronteira. Atingindo-a felizmente, atravessaram o Apa e depois, deixando direita a estrada da colnia, subiram ao norte, em direo estancia do Jardim, de onde desceram ao nosso encontro.

A um deles, o filho do guia Lopes, chamou o Coronel sua barraca e a ss. Era moo simptico, cuja inteligncia e discrio pareciam provir da herana paterna. Versou a conversa, naturalmente, sobre as informaes que ele e o cunhado, Barbosa, podiam dar relativamente situao do Paraguai, sua fora aprecivel, meios de resistncia, e sobretudo quanto fronteira vizinha.

Responderam os refugiados que as fortificaes do Apa no passavam de simples estacadas de madeira comum, guarnecidas, em Bela Vista, por uma centena de homens, sob o comando do major Martim Urbieta. Estavam os outros fortes em piores condies defensivas; mas o governo paraguaio, vista dos avisos recebidos, comprometera-se a providenciar dentro em pouco e a enviar reforos, determinando que at a chegada destes, se fizesse uma retirada ante a investida brasileira, destruindo-se tudo o que no fosse possvel carregar. Acrescentaram que, no interior do Paraguai, era geral o desnimo; dia a dia menos se acreditava num feliz desfecho da guerra. Entretanto a resoluo da defesa, a todo o transe, no parecia esmorecida. Quanto ao respeito pelo presidente, El supremo, cujo nome todos pronunciavam descobrindo-se, era sempre o mesmo.

Apenas pelo acampamento se espalharam tais notcias, s houve um grito: Ao Apa! Ao Apa! Atingiu o entusiasmo ao auge, deixando-se os mais prudentes arrastar pela excitao apaixonada dos grupos que de todos os lados se formavam.

Anunciou-se neste momento a volta do 17 batalho que acompanhara o velho Lopes. Era geral o desejo de assistir ao primeiro encontro do pai e do primognito que lhe voltava aos braos.

Passando pelos postos avanados soubera o nosso guia da grande notcia.

Vinha plido, lacrimejante, em direo ao filho que, respeitosamente, o esperava, descoberto. No descavalgou; estendeu a destra trmula ao filho, que a beijou; depois o velho guia deu-lhe a bno e passou sem proferir palavra.

Foi uma cena patriarcal, e como seja o corao humano sempre sensivel aos grandes lances, atnitos, olhvamos uns para os outros, como a indagar se no seria fraqueza entre soldados nem sempre poder conter as lgrimas.

Que emoo devia sentir o velho vendo o filho escapo ao inimigo! E quanta dor, ao pensar que os outros membros da famlia, ainda cativos, haviam perdido o mais valente defensor! Quando em tal lhe falamos tomou longa pitada e disse: "Deus tudo faz. Deus assim o quis. Fui outrora feliz, tive casa e famlia. Hoje durmo ao relento; estou s, e como do que a caridade d".

Vamos encontrar casa em Bela Vista, lhe respondemos. Tem o senhor a seu lado filho e genro. Come em companhia de amigos e at ainda quem lhes d a comer de seu gado.

Com melanclico sorriso meneou a cabea, dizendo: "Nunca mais ser minha a estancia do Jardim!... "

Entrementes, depois de haver combinado com Barbosa os meios de ainda obter gado do sogro, ordenou o Coronel que se avanasse.

CAPTULO VI

Em marcha. Formatura da coluna. A vista da fronteira.

Fortalecido em sua primeira resoluo, no pde entretanto, o coronel Camiso execut-la sem deixar perceber algumas das antigas hesitaes. Fora ele prprio que para 13 de abril marcara a partida; adiou-se para o dia imediato, embora, desde o romper d'alva, tudo estivesse pronto e o corpo do exrcito em ordem de marcha. S em hora avanada tornou conhecida a nova determinao, a tal respeito estendendo-se em explicaes que a todos espantavam, provocando malignas interpretaes, principalmente a propsito dos pousos, que fixara. Dispusera-os com efeito de modo que a coluna chegsse a Bela Vista, ou em suas imediaes, isto na fronteira, no sbado de Aleluia ou domingo de Pscoa, para que ali se celebrasse esta solenidade. "Assim diziam os crticos, os tiros de pea, iniciais de nossa entrada em fogo, sero os mesmos que geralmente acompanham a cerimnia religiosa: a iniciativa da campanha ser coberta pela festa".

Treze de abril foi, pois, ainda um dia perdido: gastaram-se as horas da manh em preliminares de viagem, inteiramente suprfluos, e cujo nico objetivo parecia procurar entreter os soldados. Estes, alis, a tudo se prestavam com a melhor disposio. Fizera-se ouvir o hino nacional e uma exploso de entusiasmo o acolhera. Vrios ajudantes-de-ordens se despacharam ento, cada qual do seu lado, a ler uma ordem do dia. apelando para o patriotismo da coluna e a lhe relembrar a confiana nos chefes. Enrgicas aclamaes estrugiram ainda, aps esta proclamao, repetindo-se vrias vezes: chegara ao auge a animao. No entanto cara a noite, que se passou sem que nos houvssemos movido. Viram todos comandante, meditativo como sempre, passear na sombra, em frente sua barraca, por mais tempo e mais tarde do que geralmente fazia.

No dia seguinte, desfilou o corpo diante dele; com isto pouco a pouco se animou. J a vanguarda, contudo devia dar-lhe motivos de reflexo, composta como e de homens de nossa cavalaria desmontada. E com efeito j relatamos que no tnhamos mais cavalos, todos vitimados na regio de Miranda por uma epizootia do gnero da paralisia reflexa que a ns mesmos, to cruelmente, viera provar. Quando muito pudera o servio de faxina conservar alguns muares. Faltava-nos o elemento primordial da guerra nestes terrenos, a cavalaria; e no havia quem com isto se no impressionasse.

Malgrado a diferena de feio, a que se tinha: de resignar, nada perderam os nossos caadores do aspecto marcial. Aps eles marchava o 21 batalho de linha, precedendo uma bateria de duas peas raiada depois o 20 batalho, outra bateria igual primeira acompanhada pelo 17 de Voluntrios da Ptria; e afinanl as bagagens, o comrcio, com a sua gente e material, as mulheres dos soldados, bastante numerosas.

Ocupava o gado o flanco esquerdo, com as carret de munies de guerra e de boca, massa confusa prot gida por forte retaguarda.

Tnhamos o Miranda frente; os soldados o atrav' saram; uns levantando acima d'gua armas, cintur' patronas; outros sobre uma ponte volante que os eng nheiros acabaram de construir, auxiliando-os neste tI balho urgente um 2 tenente de artilharia, Nobre Gusmo, jovem oficial, cheio de inteligncia, que nes ocasto demonstrou o zelo que mais tarde sempre ps em destaque (1).

Mais de duas horas tomou esta travessia; neste n rim havia o coronel Camiso e seu estado-maior lido noticias que o correio de Mato Grosso acabara de traz Nenhum comunicado, oficial ou privado, relativo in, so do Paraguai pelo sul viera ao nosso comandan nem coisa alguma que a tal fato se ligasse. Seriam, entanto, informes do mais alto interesse, at mesmo indispensveis no momento em que nos aventurvamos perigosa operao, sem que colimssemos prefixado fim. s duas horas da tarde recomeou a marcha, e, lentido era extrema: regulvamos o passo pelo dos bois que puxavam a artilharia e ainda, de tempos a temto todos estacavam, porque o prprio Coronel, indo e vindo com o seu estado-maior, da frente retaguarda, punha-se com o culo de alcance, a examinar as cercantas, ora distrada ora muito atentamente. Surpreendia-nos isto porque se jamais houve campos sem mistrios eram os que atravessvamos. Estavam, ento, inteiramente despidos; recentemente incendiados neles perecera at a erva rasteira, de modo que os atiradores distribudos, no momento da partida, ao longo da nossa coluna, para guard-la, a ela se haviam incorporado, dispensados dum servio sem razo de ser.

Ao cair da noite atingimos elevado cmoro. A 16 ii recomeou a marcha na mesma ordem, somente deviam os diferentes corpos alternar, de um dia para outro, testa, ao centro e retaguarda.

Seguamos uma estrada formada de dois trilhos paralelos, espaados por trs ou quatro palmos de capim e est estendendo-se a perder de vista pelas plancies desnudadas. Uma outra molta, ou arbusto, quando muito, surgiam de vez em quando. S no horizonte se divisavam uns capes. Estavam os dois trilhos bem batidos, tornando-se visvel que havia pouco por eles tinham passado e tornado a passar cavaleiros e em contingentes avultados.

Desta estrada partiam, de distancia em distancia, outros rastos de cavalos encaminhados para os acidentes do solo, que permitiam a viso ao longe. No se podia mais duvidar que o inimigo nos observava a marcha.

Fomos acampar perto do morro do Retiro, onde ocupamos a vertente em cuja base nasce o volumoso ribeiro do mesmo nome. nesse lugar admirvel a natureza; corre a gua emoldurada de palmares, entre margens ligeiramente sinuosas, revestidas de relva curta e fina, da mais bela cor esmeraldina.

No longe dali residira outrora esta mesma D. Senhorinha, cuJa hospitalidade j gabamos. Achava-se, ento, casada, em primeiras npcias, com um Lopes (Joo Gabriel), irmo do nosso valente guia Jos Francisco, e falecido em 1849. Residindo s, com os filhos, ento crianas, numa zona fronteiria, onde no h a mnima segurana para os fracos, j fora outrora a viva presa e levada por um magote de paraguaios. Reclamada, ao cabo de algum tempo, pela legao brasileira em Assuno e liberta, em 1850, contrara, segundo o costume generalizado naquela terra, segundo casamento com o cunhado, o nosso guia, que a estabelecera em sua estancia do Jardim. Ali, ao comear a invaso, de 1865, fora de novo presa e internada no Paraguai.

A 17 de abril, pela manh, deixamos o Retiro e, duas lguas frente, encontramos uma construo em forma de galpo ou cabana que evidentemente acabava de ser abandonada por uma ronda inimiga. Erguia-se-lhe ao lado um destes mastros de vigia a que os paraguaios chamam mangrulhos, grosso esteio ou travejamento de toscos madeiros, pelos quais trepam para descortinar, ao longe, os terrenos circunvizinhos. Haviam os nossos ndios Guaicurus avanado at ali, anteriormente, num reconhecimento do tenente-coronel Enias Galvo. Desta vez fizeram os selvagens, nossos aliados, alegre fogueira do tal mastro e da choupana.

Avisaram neste momento ao Coronel que o nosso comboio se atolara sada do Retiro. Decidiu imediata mente que, sem interromper a marcha, iramos esper-lo a alguma distancia, vanguarda. Foi o que fizemos assentando acampamento exatamente no local onde exis tira a fazenda de Joo Gabriel. Grosso contingente d' vanguarda colocou-se em observao sobre uma culmi nancia que dominava a campina.

Quem comandava este destacamento era um capito da guarda nacional do Rio Grande do Sul, Delfino Ro drigues de Almeida, mais conhecido pelo apelido patern' de Pisaflores, homem enrgico, a cuja bravura todo prestvamos homenagem. Vimo-lo olhar fixamente par. oeste; de repente, partido de diferentes pontos, rebou um grito: A fronteira! Da elevao onde se achava destacamento avistava-se com efeito a mata sombria d Apa, limite das duas naes.

Momento solene este, em que entre oficiais e soldado nso houve quem pudesse conter a comoo! O aspect da fronteira que demandvamos a todos surpreende que realmente era novo. Podiam alguns j t-la vist' mas com olhos do caador ou do campeiro, indiferente. A maior parte dos nossos dela s haviam ouvido vaga mente falar; e agora ali estava nossa frente com ponto de encontro de duas naes armadas, e como campo de batalha.

__________

(1) Por ocasio da travessla dos pantanais e da Retlrada da Laguna pr' tou este oncial, Cesrlo de Almelda Nobre de Ousmo, prodlglosos servl; _ Vd D1.Y de Guerra e de Serto nelo A.

CAPTULO VII

Passagem do Apa. Primeiro embate. Ocupao da Machorra.

Haviam as nossas carretas retardatrias chegado ao acampamento a 17. No dia 18, pelas nove da manh, fez-se a rendio das guardas avanadas. Reinava em nossas linhas a maior tranqilidade quando, de repente, pelas onze, ouviu-se o grito de alarma: "Cavalaria inimiga!". Armam-se os batalhes; expede o comandante os engenheiros aos postos avanados; o ajudante-general retaguarda; o assistente do quartel-general aos diversos corpos para lhes examinar as condies e remediar ao que possa faltar. Para a vanguarda marcha ele prprio, acompanhado pelo batalho de voluntrios, com as bocas de fogo do major Canturia e do tenente Marques da Cruz, o mesmo que havia de morrer combatendo nas Linhas de Humait. Por ns passou, com a espada nua, no querendo, dizia, tornar a embainh-la seno depois que houvesse travado conhecimento com os paraguaios.

Estavam os inimigos, ento, a pequena distncia de ns, perto da mata que beirava um ribeiro. Avanavam sensivelmente estendendo-se em linha de atiradores, correndo de um lado para outro, sob as ordens de um oficial, que entre eles se destacava; e sbito mandou se retirassem: perdemo-los de vista. Aps to prolongada espera ordenou o comandante que volvssemos s nossas posies.

Pela manh de 19 deixamos o acampamento. O Coronel destacou o 21 batalho para a vanguarda com a recomendao de nunca perder de vista o grosso do corpo do exrcito, durante a marcha, embora sempre a ganhar terreno. Seguia o resto em estacamentos, prdmos uns dos outros, mas, como a animao dos soldados e a dos oficiais corressem parelhas, avanaram os corpos sem prestar grande ateno s ordens dadas, achando-se por vezes separados por distncias maiores do que a prudncia aconselhava.

passagem do Taquaruu, cuja ponte acabavam os paraguaios de destruir, deu-lhes a vanguarda uma descarga, embora quase estivessem fora de alcance. Viu-se um de seus cavaleiros cair ferido. Tomou-o um dos camaradas garupa, enquanto o terceiro lhe laava a montaria que fugia, sentindo-se solta. Ao presenciar esta primeira cena de guerra, queriam os nossos soldados deitar-se gua para perseguir o inimigo, quando um toque de clarim do quartel-general os fez estacar. Toda a coluna achou-se logo agrupada atrs deles. Neste entrementes os engenheiros restabeleciam a ponte; bastou-lhes uma hora. Efetuou-se a passagem e a marcha recomeou outra margem.

Vencendo pequenos planaltos interpostos s depresses paralelas que sulcam aquela campina, avanamos at a base de uma colina que domina toda a vizinhana. Achara a nossa vanguarda esta posio ocupada por um piquete de cavaleiros; estacou ento, e todas as nossas unidades, isoladas, assim fizeram tambm, uma aps outra. Examinaram-nos, ento, os paraguaios: nada entre ns e eles se interpunha; podiam contar-nos vontade. Foi para ns grande desvantagem. At ento julgavam, dando crdito aos nossos refugiados, que a coluna brasileira contava nada menos de seis mil homens, e nosso comandante, como regra de guerra, esforara-se por lhes alimentar a abuso. Desfizera-se-lhes a iluso, desvanecida ao primeiro owr lanado sobre ns.

Mais uma razo para que logo e logo os atacssemos, mas o comandante manteve-nos imveis.

S mais tarde soubemos por qu: provinha de intimo motivo: estvamos em Sexta-Feira Santa e a iniciativa de urna ao de guerra, no prprio dia da morte do Salvador, repugnava a um corao religioso como o do nosso chefe, escravo de todos os nobres sentimentos, a ponto de os exagerar at contradio, inquieto e como perturbado pelo pressentimento do fim prximo.

Durou-lhe a hesitao bastante para que o destacamento paraguaio no mais receando ser atacado e, cheio de desprezo, talvez, pela nossa nossa pequena fora atirada, sem cavalaria alguma, em vastas plancies encharcadas, onde todo o homem a p assunto dqescrnio, se lembrasse pela atitude, de nos dar insolentes mostras de desdm que lhe inspirava a inferioridade de nossos recursos militares e, por meio de demonstraes ruidosas, nos fazer ver quanto considerava inteis quaisquer precaues contra ns. Descavalgaram todos os homens, assentando-se uns sombra das macabas, ao passo que outros faziam tranqilamente pastar os cavalos. Fazia-nos ferver o sangue aquele afetado descuido. Felizmente, afinal, at ao nosso chefe atingiu esta indignao. Decidiu-se a agir. S havia um meio de rpido emprego e deste lanamos mo. Fez Marques da Cruz avanar a sua pea e uma granada silvou ao meio das aclamaes dos nossos soldados. Atingiu a base de alta palmeira, que abrigava bom nmero de cavaleiros e depois de ricochetear explodiu no ar.

Foi, pelo menos, para ns, um prazer vermos o efeito produzido, a surpresa, o alarma, a confuso. Correram uns ap6s os animais que a detonao dispersara; calvagaram outros, precipitadamente; e sem mais detena dispararam pelo campo, a todo o galope. Passados poucos minutos desaparecera o destacamento inteiro. Lanou-se-lhe segundo projetil, e logo em seguida terceiro, que alcanou mais de meia lgua e deu a conhecer ao inimigo a fora de nossa artilharia. Toda esta tropa fugidia s haveria de reaparecer diante da fazenda da Machorra, na fronteira.

Chegados esta tarde, margem de um ribeiro, que os espanhis chamam Sombrero, fomos acampar no tringulo que ele ali forma, confluindo com o Apa. Admiramos este belo rio, fronteira dos dois pases e cujo aspecto, com sua mjta cerrada, tanto nos impressionara quando de longe o avistramos. Grande futuro lhe est reservado aps a guerra.

Desce o Apa por trs galhos, logo confluentes, da serra dos Dourados, um pouco abaixo da colnia militar deste nome, a doze lguas, este-sudeste da de Miranda. Corre a principio para Oeste, 10 N. at o forte de Bela Vista, que se acha no paralelo 22, e dai, descambando para Oeste 10 S., vai com um curso levemente sinuoso banhar Santa Margarida, Rinconada e outros pontos fortificados at o Paraguai, em cujo leito se despeja.

Ao chegar pediu o Coronel que lhe dessem gua do Apa, e, ou porque lhe viessem mente vagas reminiscncias histricas, a propsito de caudais clebres, ou porque, aps tanto abalo de esprito, experimentasse como que uma agitao febril, disse sorrindo: "Notemos a que hora provamos a gua deste rio". Puxou o relgio, bebeu e acrescentou a gracejar: "Desejo que este incidente seja consignado na histria desta expedio, se algum dia a escreverem". Pareceu empenhado que se lhe fizesse uma promessa em tal sentido. Foi o autor desta narrativa quem, em nome de todos, a tanto se comprometeu, e hoje o cumpre com religiosa exao porque a morte, de que estava o nosso chefe to prximo, sabe, pela prpria natureza enigmtica, tudo enobrecer, tudo absolver e consagrar.

neste ponto o Apa correntoso; mas as grandes lajes que lhe calam o leito como que convidam a entrar em suas belas guas. Foi o que fizeram muitos soldados; passaram vrios para a outra margem a dizer que iam conquistar o Paraguai.

noite chegaram dois oficiais que hora do perigo vinham procurar-nos para conosco dele compartirem. A marchas foradas acudiam de Camapu. Adiantando-se escolta haviam atravessado, no sem correr o risco de algum acidente, as nossas linhas de vanguarda. S no dia seguinte apareceram os seus soldados ao acampamento, com um viajante por nome Joaquim Augusto, homem corajoso, mas que ao nosso contato s incitava o interesse pessoal.

No dia imediato, s nove da manh, ps-se a coluna em movimento e, atravessando o Sombrero, avanou sobre a margem direita do Apa, tendo vanguarda o batalho de voluntrios. Muito tempo nos custou vencer uma lgua, apenas. Sucedia a cada momento algum acidente s carretas das munies. Delas no nos podiamos afastar, prximos como nos achvamos do inimigo. Atingiramos quase, segundo a opinio dos refugiados, a primeira guarda paraguaia, a saber, o forte e fazenda da Machorra, situada em territrio brasileiro, a uma lgua e quarto para c do forte de Bela Vista, que est construdo na margem paraguaia.

Espervamos, a cada passo, encontrar resistncia. No entanto marchava sempre o nosso batalho da vanguarda sem perceber ou sem medir a distncia que as paradas continuas dos demais corpos punham entre ele e as outras unidades. Em vo soavam os clarins; j se afastara demais para que os pudesse ouvir. Deixa-lo assim isolado no era prudente; tornava-se indispensvel mandar um prprio chama-lo. Ofereceu-se o tenente-coronel Juvncio e partiu logo com seus dois ajudantes-de-campo e Gabriel Francisco, o genro do guia, que conosco quis ir. Felizmente, tnhamos bons cavalos, dos que haviam resistido epizootia; safaram-se de perigoso atoleiro, que pela nsia de chegar no quisramos contornar. Perdemos logo de vista o corpo de exrcito, mas no percebamos, ainda, nossa tropa j empenhada em combate, ao que supnhamos, pelas descargas e disparos isolados dos atiradores. Vamos perfeitamente, por vezes, tremular a bandeira nacional, a que depois encobriam elevadas moitas. Parecia-nos, alis, que no avanava. Em poucos instantes a rapidez da carreira dela nos aproximou e, como eletrizados pela sua vizinhana, atiramos os cavalos s guas do volumoso ribeiro, que nos barrava o passo, o Jos Carlos, e afinal nos achamos reunidos aos nossos que, em lugar fechado, combatiam entrada da Machorra.

Uma linha de paraguaios, assaz extensa, fazia frente ao ataque, ao passo que grande nmero dos seus se encarniava, com uma espcie de furor, em destruir a fazenda, incendiando quanto parecia poder arder. Ocupava-se o nosso comandante da vanguarda (1) em examinar uma ponte que cumpria atravessssemos para envolver o inimigo. Foi ento que o tenente-coronel Juvncio lhe comunicou a ordem de estacar. No permitiam as circunstncias, porm, que a ela atendssemos. Concordaram os oficiais na imprescindvel necessidade de se ocupar a posio, custasse o que custasse.

Imediatamente a nossa linha de atiradores atirou-se a correr para a frente oposta, e pela prpria ponte, porfiando todos em ardor.

Recuaram os paraguaios, mas em boa ordem. Tinham ordens, certamente, para no empenhar combate, mas somente reunir e tanger retaguarda cavalos e bois que no queriam deixar-nos; e deviam ser numerosos, tanto quanto nos permitia avaliar a poeira que sua marcha ocasionava.

Foi o recinto ocupado: o tenente-coronel Enias, ali, deu imediatamente nova formatura ao seu batalho e o manteve numa srie de posies que lhe valeu, posteriormente, no s a aprovao do Coronel como gerais parabns. Foram os nossos os primeiros recebidos. Aplaudiram todos o esprito de disciplina dos seus subordinados e o af com que, logo primeira voz, comearam a desentulhar o terreiro de objetos que o atravancavam, sem coisa alguma subtrair, assim como de quanto estava no interior das casas.

Neste nterim apareceu o prprio comandante. No vendo voltar nenhum daqueles que vanguarda mandara, s pressas partira para constatar o que havia. O entusistico acolhimento que neste momento lhe fizeram, e as aclamaes dos soldados lhe causaram uma satisfao cuja expresso, malgrado a reserva habitual, a todos se patenteou.

Os auxiliares ndios, Guaicurus e Terenas, no foram os ltimos a se apresentar para o saque. To pequena disposio para o combate haviam mostrado que, na nossa carreira, ao lhe tomarmos a frente, lhes bradramos: Vamos! Avante! Valentes camaradas! Agora se lhes transmutara a indolncia num ardor sem limites para o saque. J se haviam disseminado pelas roas de mandioca e de cana, de l trazendo, imediatamente, cargas sob as quais vergavam, sem, contudo, encurtar o passo.

Vislumbrava-se um resto de crepsculo, ainda quando o grosso da coluna chegou. Foi este o momento do atropelo e da balbrdia: tantos objetos se avistavam sem dono, misturados e fadados destruio. Cada qual tomou o seu quinho, sendo exatamente os menos beneficiados aqueles que presa tinham mais direito, pois o haviam conquistado sob o fogo inimigo e guardado, como propriedade pblica, at o momento da depredao geral. Era este saque, alis, legitimo, e no se teria podido, sem manifesta injustia, recusar tal prazer aos soldados, que o haviam comprado e adiantado por uma srie de meses de privaes e fome.

Das oito ou dez casas da Machorra, duas estavam reduzidas a cinzas pelo fogo que os prprios paraguaios lhes haviam posto. Foram as outras preservadas pelos nossos soldados. Alguns pedaos do madeiramento, alguns moures abrasados serviam para cozinhar as batatas, a mandioca e as aves do inimigo. A Machorra, denominada fazenda do marechal Lopez, no passava realmente de terra usurpada, cultivada por ordem sua, alm da fronteira.

O trabalho dos invasores, frutuoso como fora, vinha acrescer ao banquete a satisfao de um sentimento de reivindicao nacional. Autorizou-o o Coronel com um ar prazenteiro que jamais at ento lhe percebramos.

CAPTULO VIII

Ocupao de Bela Vista. Devastaes dos paraguaios em torno da coluna. Tentativa de negociaes. Seu malogro. Tornam-se os viveres escassos. Marcha sobre Laguna.

dia seguinte, 21 de abril, s 8 da manh, deram os clarins do quartel-general o toque de marcha: nada menos significava do que transpormos a fronteira, entrar em territrio paraguaio e atacar o forte de Bela Vista, que, deste lado, a chave de toda aquela regio. No havia quem no compreendesse o alcance da operao, redobrando por este motivo a animao geral. Cada qual envergara o mais luzido uniforme; e como s nossas antigas bandeiras no prestigiasse ainda feito notvel algum, foram substituidas por outras, cujas cores vivas se destacavam no cu formoso das campinas paraguaias.

Deixando a Machorra, adotara-se a ordem compacta. Dos dois lados da coluna, e para lhe facilitar o movimento, os atiradores, que a flanqueavam, cortavam a macega; pois mudara a natureza do terreno. No mais tnhamos a grama curta e fresca dos prados que acabvamos de atravessar. Estava o solo coberto desta perigosa gramnea que atinge a altura de um homem, e a que chamam macega, e cujas hastes duras e arestas cortantes tornam, em muitos lugares do Paraguai, a marcha to penosa. Transpusemos o Apa em frente a Bela Vista; o 20 de infantaria de Gois formava a vanguarda, sob o comando do capito Ferreira de Paiva. Avanando frente dos batedores, a quem comandava, jovem e valente oficial, de nome Mir, fadado morte prxima, vamos o velho Lopes, apressurado, montando belo cavalo bafo um daqueles animais que o filho e os companheiros deste haviam tomado aos paraguaios.

Estava no auge da alegria, o olhar como o de um rapineiro, a fitar Bela Vista, que comevamos a avistar. De repente, no momento em que acabvamos de chegar ao seu lado, percebemos que a fisionomia se lhe anuviara: "A perdiz, disse-nos, voa do ninho e nada nos quer deixar, nem os ovos". Mostrava ao mesmo tempo tnue fumo que subia aos ares. "So as casas de Bela Vista que incendiaram".

Foi a noticia levada ao Coronel que, avisado tambm por um sinal do alferes Porfirio, do batalho da frente, fez acelerar a marcha. Comeamos a correr, precipitando-se a linha dos atiradores do 20 para o rio; mas a sua frente j se antecipara pequeno grupo de que fazia parte o nosso guia. Com grande espanto nosso no pareciam os inimigos pretender disputar-nos o passo; retiravam-se do Apa como j se haviam afastado da Machorra, indo estacar a uma distncia bastante grande, imveis sobre os cavalos.

Cabia-nos, pois, o feliz ensejo de ser os primeiros a atravessar a fronteira, pisar esquerda do Apa e sentir sob os ps o solo paraguaio.

Transposto o rio, galgamos num pice uma eminncia que nos ficava fronteira, e nos proporcionou a vista prxima da fortaleza e da aldeia: ambas ardiam. Pelo interior e vizinhana vagavam ainda paraguaios a p, retardados pelo pesar da presa que nos abandonavam e a ira que os levava a tudo devastar. Outros, em maior nmero, e a cavalo, retiravam-se desordenadamente.

Ps-se o nosso guia a provoca-los com assobios e apstrofes de desprezo, ante as quais difcil nos foi conter o riso. Teriam podido volver sobre ns estes robustos cavaleiros, e com as possantes montarias e pesados sabres facilmente destroar o nosso pequeno grupo, a meio montado e mal armado, como nos achvamos.

Mas tal idia no nos ocorria e a Lopes ainda menos. Este intrpido velho quase sempre nos precedera na carreira, a galope; e por mais esforos que fizssemos, a todo o instante redobrava de velocidade, pensando na mulher, duas vezes agarrada e arrastada prisioneira para o Paraguai, em todos os seus, nos amigos e companheiras de existncia, com ela prisioneiros. Mil recordaes de atrocidades antigas e recentes lhe incutiam violenta sede de vingana.

Uma vez efetuada a passagem pelo corpo de exrcito, o forte, que apenas consistia em slida estacada de madeira, foi ocupado, assim como a vila, por grande destacamento. A linha de atiradores do 20 batalho, formada esquerda, ps-se em movimento para ir atacar os paraguaios imveis. Vimos, ento, que haviam arvorado alguma coisa branca. No tardamos, porm, a perceber que se afastavam devagar, tendo em mente, atrair-nos para algum mato, onde caro pagaramos excesso de confiana em sua lealdade. Soubemos tarde que tal lhes fora, com efeito, o plano. Acreditavam precisar de algumas vitimas para coonestar uma retirada por demais precipitada e que no podia deixar de atrair a clera dos chefes fossem quais fossem, alis, as ordens deles recebidas.

Assim se passou 21 de abril; os dias imediatos consagramo-los ao repouso e exame da situao. Todo o corpo de exrcito transpusera a fronteira e acampara ao sul da fortaleza, ali apoiando a ala direita, ao passo que a esquerda se prolongava pela mata do rio. Reinava, ento, no acampamento abundncia de vveres frescos. Deles tnhamos a maior nccessidade; e a nossa gente pde gozar dos ltimos bons momentos que a sorte nos reservara. Parecia nosso chefe mais sereno do que habitualmente, mostrando-se at confiante. Comeou qualificar a coluna expedicionria: Foras em operaes Norte do Paraguai e todos os seus ofcios, como alis, imita-lo, todas as nossas cartas, destinadas a Mato Grosso, Gois e ao Rio de Janeiro (confiadas a Loureiro, que ento de ns se despediu) traziam no sobrescrito: Imprio do Brasil.

No entanto, do alto do morro da Bela Vista, viam-se de dia numerosos cavaleiros inimigos, de sentinela ao p de grandes buritis. noite ousavam alguns acercar-se do acampamento ainda mais.

Esta contnua vigilncia tanto mais nos incomodava, quanto tambm tinha em vista subtrair do nosso alcance o gado da campina, sempre que as nossas guardas avanadas pareciam querer captura-lo. E a nossa inquietao a tal respeito crescia sempre. Haviam os refugiados exagerado a facilidade do abastecimento nestas pastagens; nada vamos do que nos fora anunciado; e at mesmo dois dias depois de nossa chegada a Bela Vista, ordenando o Coronel um rodeio, protegido pelo 21 batalho, e levado a mais de uma lgua, dai se no auferiu resultado algum. Ficamos todos convencidos de que nada havia a esperar, pelo menos agora, de tentativas neste gnero. Se exato que os paraguaios haviam desaparecido ao avistarem os nossos, desde o dia imediato estavam de novo no posto, ao p da palmeira.

Quase insultuosa chegava a ser tal permanncia. Poderamos livrar-nos dela atirando algumas granadas, mas pensamento diverso veio contrariar esta ideia, inclinando-se o esprito do comandante a outra ordem de sugestes.

Neste pressuposto fez partir, escoltado pelo 17 Batalho, um oficial parlamentrio, portador de proclamao escrita em espanhol, portugus e francs, que se fincou, presa a uma bandeirola branca, a lgua e meia do acampamento.

Assim se redigia:

"Aos Paraguaios:

Fala-vos a expedio brasileira como a amigos. No seu intuito levar a devastao, a misria e as lgrimas ao vosso territrio. A invaso do Norte como a do Sul de vossa Repblica significa apenas uma reao contra injusta agresso nacional. Ser conveniente que venha um de vossos oficiais entender-se conosco. Poder retirar-se, desde que assim entenda; e bastar que manifeste simplesmente tal desejo. Jura o comandante da expedio pela honra, pela santa religio professada por ambos os povos, que todas as garantias se oferecem ao homem generoso que em ns confiar. Disparamos tiros de pea como inimigos, queremos agora nos entender como amigos reconciliveis. Apresentai-vos empunhando a bandeirola branca e sereis recebidos com todas as atenes que os povos civilizados, embora em guerra, mutuamente se devem".

A resposta, no dia seguinte encontrada, fora traada sobre um papel preso a uma varinha e era do teor seguinte:

"Ao Comandante da expedio brasileira:

Estaro os oficiais das foras paraguaias sempre atentos a todas as comunicaes que se lhes quiserem fazer; mas no atual estado de guerra aberta entre o Imprio e a Repblica, s de espada desembainhada poderemos tratar convosco. No nos atingem os vossos disparos de pea e quando tivermos ordens de os obrigar a calar, h no Paraguai campo de sobra para as manobras dos exrcitos republicanos".

Era a letra de mo firme e corrente. Apunha-se-lhe o selo da Repblica: barrete frgio por sobre um leo rampante.

As frmulas empregadas em tal resposta atestavam certo grau de cultura intelectual e boa educao. Mas veio logo o insulto. Recebeu o comandante uma folha de couro na qual se estampavam os seguintes versos, mais grosseiros do que ingnuos:

"Avana, crnio pelado!

Mal-aventurado general que espontaneamente

Vem procurar o tmulo".

A isto se ajuntava:

"Crem os brasileiros estar em Concepcin para as festas; os nossos ali os esperam com baionetas e chumbo".

Bravatas sem alcance, nada tendo de srio. Mas o que o era, e no mais alto grau, viam-no todos, vinha a ser a impossibilidade de nos abastecermos. O 21 batalho mandado novamente, a 27, para ajuntar e trazer gado, nada conseguira; e embora a ningum perdesse numas escaramuas de cavalaria, voltava com a triste certeza de que a regio estava para conosco nas disposies as mais negativas e hostis.

Assim, pois, tomou o comandante a resoluo de manter, por algum tempo, na Bela Vista; e numa expedida pelo viajante Joaquim Augusto, que determinou que a Nioac lhe enviassem munies, a bagagem dos soldados e o arquivo da coluna. Avisara aos oficiais que, a seu turno, deviam mandar vir tudo quanto haveriam de precisar para uma assaz larga estada. Mas a falta de gado tornava insustentvel a prpria posio de Bela Vista. Comevamos a sentir a penria nas distribuies de viveres. Era preciso sem mais detena procurar uma soluo ou avanar na esperana de bater o inimigo, que, nossa frente, no podia ter grandes contingentes, visto como a guerra ao Sul da Repblica para ali atraira a maior parte das suas foras (e ento, aps algum feito feliz, teriam as nossas patrulhas mais largo raio de ao sobre o gado errante nas campinas); a no ser assim convinha retrogradar para os distritos da fronteira, menos desprovidos de recursos.

Esta alternativa, semelhante opo, veio por completo arrancar a calma ao nosso comandante. Tornou-se-lhe a agitao do esprito visivelmente violenta. Ps-se de novo a imaginar a calnia a abocanha-lo em toda a provncia de Mato Grosso, sobretudo na capital, e assim, pois, como a refletir, em voz alta, deixava escapar exclamaes que debalde tentava sufocar: "Por toda parte me atassalham, dizia, apregoam que at agora nunca tivemos encontro srio com o inimigo e apostam que jamais o teremos".

Nesta perturbao e falta de dados exatos para a escolha de um alvitre, os refugiados, indiretamente consultados, comearam, com maior insistncia do que at ento o haviam feito, a falar de uma fazenda chamada Laguna, cerca de quatro lguas de Bela Vista, pertencente aos domnios do Presidente da Repblica e destinada criao do gado.

Ali acharamos, afianavam, grandes rebanhos, posies firmes e base para operaes. Depois, como esta sugesto no parecesse desgostar ao Coronel, vrios oficiais que o cercavam, e a quem parecia consultar, deixaram convencer-se. "Por que, exclamaram, no haveremos de ir at Concepcin como nos desafiam? Viemos parar to longe para recuar? Contanto que possamos contar com um quarto de rao, no h um nico soldado que hesite em seguir os chefes, e com eles no deseje tentar a fortuna do Brasil".

testa dos mais ardentes via-se o capito Pereira do Lago, oficial to ousado quanto positivo e obstinado. Dotado desta coragem que facilmente se exalta, e jamais decai do nvel a que se alou, coube-lhe, certamente, a maior responsabilidade nas nossas temeridades. Mas, tambm, soube sempre, mais tarde, nos transes mais difceis de nossa retirada, fazer frente a todas as necessidades do momento, pela atividade, poderosa iniciativa e perspiccia do descortino, grandes qualidades que lhe vinham realar a doura, a singeleza e o bom gnio.

CAPTULO IX

Ordem de marcha. Formatura do corpo expedicionrio. O mascate italiano. O major Jos Toms Gonalves. Surpresa e tomada do acampamento paraguaio da Laguna.

Acabara o coronel Camiso de determinar que marcharamos sobre a Laguna. A 3o de abril levantamos acampamento para estacar margem do Apa-Mi, ribeiro que dista uma lgua do forte da Bela Vista.

Pareciam os soldados ressentir-se da insuficincia do rancho. Corria a marcha silenciosa e como ensombrecida pela tristeza. Para a animar ordenou-se que os cornetas de todos os corpos alternadamente tocassem; e a tropa gostou disto. Era como um desafio, uma provocao lanada aos paraguaios, que de longe viam seguir a coluna.

Avanavam os nossos diferentes corpos em quatro divises distintas, formadas na previso dos ataques de cavalaria que, com efeito, deveramos esperar. Em conselho de guerra, anterior nossa ocupao de Bela Vista, fizera o Coronel adotar uma ordem de marcha apropriada feio da zona atravessada e da campanha. Propusera, ao mesmo tempo, duas disposies de defensiva para duas hipteses: de plancie descampada, ou coberta de capes de mato, combinaes de grande simplicidade que, na prtica, nos prestaram grandes servios, obstando qualquer confuso ao se travarem os combates. Se, realmente, foram em geral as cargas da cavalaria inimiga frouxas e impersistentes, de se supor, contudo, que o seu nico fito no vinha a ser simplesmente avaliar-nos a resistncia. Poderia um primeiro momento de hesitao, ser sempre decisivo e trazer-nos o completo destroo.

No caso, pois, em que estivssemos pelas proximidades de alguma moita, ou cerrado, ou ainda de algum ribeiro, devamos convergir para este amparo natural, nele apoiar as carretas de munies e de feridos, com as bagagens, e cobrir-lhes a testa com uma curva formada pelas quatro divises da coluna, levando cada uma a sua boca de fogo. Em campo raso e desabrigado formariam estes corpos, sempre alternados com as peas, quadrado em volta do nosso material. Em todo o caso deviam os comandantes ser avisados pelos ajudantes-de-campo ou por prprios, da formatura escolhida, de acordo com as circunstncias.

Primeiro de mato. Aps uma noite tranqila recomeamos a marcha, e sem incidente, at a fazenda da Laguna, a localidade designada pelos nossos refugiados do Paraguai. Ali havia, ento, apenas uma choupana de palha que o inimigo, retirando-se, desdenhara incendiar. Ao chegarmos vimos um dos nossos soldados dirigir-se ao nosso encontro trazendo um papel que achara pregado, com um espinho, ao tronco de uma macaubeira; variante da primeira ameaa em verso. Dirigida ao comandante, assim dizia: "Malfadado o general que aqui vem procurar o tmulo; o leo do Paraguai, altivo e sanguissedento, rugir contra qualquer invasor".

Domina este planalto vasta extenso de terras, como que convidava o Coronel a que ali acampasse; mas ainda desta vez fizeram os refugiados preponderar a sua opinio que era a seguinte: sem mais detena, nos dirigssemos exatamente para o centro do estabelecimento, onde, mais facilmente, poderia o gado ser rodeado e cercado. A vista disto resolveu-se que a marcha prosseguiria, indo-se, sem que dai proviesse nenhum dos resultados acenados, acampar a meia lgua dali, num terreno triangular de marga nitrosa, entre dois regatos que confluem antes de se lanar no Apa-Mi; e onde os rebanhos, atraidos pelas propriedades salinas do solo, costumam geralmente concentrar-se na estao das grandes cheias: lugar denominado Invernada da Laguna.

Mostrou-nos o primeiro relance de olhos que, tanto ali como em qualquer parte, o inimigo nos cerceava sobretudo os viveres. Ao colocarmos guardas avanadas pudemos, a certa distncia, divisar um acampamento paraguaio dispondo de grande boiada e cavalhada tangida para o Sul, enquanto a sua vanguarda nos vigiava os movimentos. Que podamos fazer sem cavalaria?

No entanto os dias 2 e 3 se empregaram em diversas tentativas para a obteno de gado ou pelo menos para surpreender algumas sentinelas de quem se pudesse obter informaes sobre o estado do interior da Repblica. Malogrou-se-nos, contudo, o duplo intuito.Quanto grande boiada que avistramos, desaparecera. Fizemos ainda algumas avanadas em busca dos animais tresmalhados em tais pastagens. Ainda nos falhou este expediente precrio. No dia da chegada, tivera o 21 batalho a sorte de apanhar apenas umas cinqenta cabeas, malgrado os esforos dos cavaleiros inimigos, que nada pouparam para lhas retomar. Nenhuma outra batida pelos arredores teve resultados; muito embora para tal servio partissem os demais corpos, uns aps outros. O que deste trabalho penoso lucramos foi que levando nossos soldados sempre vantagens nas escaramuas parciais que dai provieram, completou-se-lhes a educao militar no fogo, sem demasiados sacrifcios. No s ganharam confiana em si como nos chefes.

A 4 vimos chegar ao acampamento um mascate italiano, Miguel Arcanjo Saraco, que de Nioac viera, seguindo-nos as pegadas, com duas carretas de provises, recurso para ns insuficiente. Passara o Apa, atravessando as trs e meia lguas que nos separavam, acompanhado de um nico camarada que o ajudava a conduzir os veculos. O maior terror o perseguira durante todo o trajeto; mas a ele contrapusera o inato pendor para o cmico. Por uma fantasia armada para se incutir coragem, rodeara-se, contava-nos, de imaginrios batalhes a quem, de tempo em tempo, dava ordens em voz alta, simulando manobras. Entre outras cenas deste gnero relatava que s dez horas de uma noite trevosa, ao transpor o Apa-Mi mandara, com todo o flego dos pulmes, cruzar baionetas, vista de um capo de mato que lhe inspirava receios.

No meio da alegria da chegada, e das emoes de toda a natureza, no esqueceu, contudo, a noticia positiva, afirmava, da aproximao de longa fila de comboios a que se adiantara, e rodava pela estrada de Nioac ao Apa, apesar de todos os perigos de uma linha de perto de trinta lguas a percorrer em completo descampado. Seja-nos relevada esta diverso cmica no momento de encetarmos a narrao de cenas sempre dolorosas. Traria esta mesma noite srio motivo de inquietao. Verificara-se a ausncia de um soldado do batalho de voluntrios. Este miservel, de ndole viciosa e semi-imbecil, havendo roubado a um dos camaradas, furtara-se ao castigo desertando. E sobejas razes tnhamos de recear que o comandante paraguaio por ele viesse a ter informaes, as mais completas, sobre a nossa falta de viveres e a necessidade em que j nos achvamos de bater em retirada.

E efetivamente tivera o Coronel de dar neste sentido ordens impostas pela necessidade. No sabemos se ainda tentava engodar a si prprio como procurava faz-lo em relao a ns outros, ao qualificar o movimento retrgrado de contramarcha sobre a fronteira do Apa, para ali ocuparmos forte base antes de prosseguir na invaso do Paraguai. No houve, porm, quem se iludisse. Principiava a retirada.

Pretendeu pelo menos disfar-la com algum brilhante feito d'armas, pois punha empenho em demonstrar aos inimigos, aos do Brasil e aos pessoais, que se retrocedamos no era porque a tanto estivssemos forados pela superioridade do adversrio. Conhecendo a excelente disposio de nossa gente, resolveu apossar-se do acampamento paraguaio; e para a execuo deste assalto designou o 21 de linha e o corpo desmontado de caadores. Fixara-se a manh de 5 para esta ao; no entanto s se realizou um pouco mais tarde.

A causa de tal demora foi que, exatamente nesta mesma noite, s nove horas, tremendo furaco se desencadeou sobre o acampamento. Torrentes de chuva transformaram logo o solo em lamacento pantanal. No so raros no Paraguai estes terrveis fenmenos; jamais viramos, porm, coisa igual. Os relmpagos que continuamente se cruzavam, os raios que por todos os lados caiam; o vendaval a arrebatar tendas e barracas, formaram um caos a cujo horror se uniam, de tempos a tempos, os disparos de nossas sentinelas contra os diablicos inimigos que, apesar de tudo, no cessavam de aferretoar-nos: interminvel noite em que para ns tudo representava a imagem da destruio. A merc de todas as cleras da natureza, sem abrigo nem refgio, quase nus, escorrendo gua, mergulhados at a cinta em correntezas capazes de nos arrebatar, ainda precisavam os nossos soldados preocupar-se em subtrair da umidade os cartuchos. Veio a manh encontrar-nos em tal situao. Dois dias mais tarde, contudo, antes dos primeiros albores, e apesar de se haver renovado a tormenta daquela noite, puseram-se em movimento os dois corpos designados.

Era o comandante do 21 um major em comisso, por nome Jos Toms Gonalves, homem resoluto e audaz, alm de tudo popular, tanto pelo mrito como pela estima que facilmente conquista uma fisionomia aberta e simptica. Haveremos de v-lo testa da nossa expedio, aps a morte do coronel Camiso, guiando-a ao termo desejado.

Gozava o comandante do corpo de caadores, capito Pedro Jos Rufino, de grande reputao de bravura e atividade. Se alguma coisa devssemos recear, era o excesso de ardor por parte de ambos, a comprometer a empresa; e assim deitar a perder toda a coluna. Foi, pelo contrrio, a reunio de tais qualidades que facilitou o xito de uma combinao a que o comandante, com razo, ligara o maior apreo.

Ignorvamos com que foras iam eles medir-se. Fornece o Paraguai menos espies ainda do que guias; e por falta de cavalos no pudramos efetuar reconhecimentos.

Nada viramos ou ouvramos, rudo, poeira ou fumaa, que nos permitisse presumir da chegada de reforos inimigos. Ns lhes reconhecamos, contudo, a habilidade em encobrir os movimentos considerveis de tropas. Assim, pois, deu o coronel ordens para que os oficiais, comandando a coluna de ataque, s entrassem em fogo quando o corpo de voluntrios estivesse em condies de os sustentar. hora aprazada, destacou este corpo com uma das peas de nosso parque em direo ao acampamento inimigo.

Neste entrementes, aps grande rodeio, e a travessia de uma lgua de banhado, chegara a tropa do major Gonalves s posies dos paraguaios. Era noite ainda, uma hora antes do nascer do Sol; e tudo se fizera no maior silncio. Verificou-se, ento, que a bateria inimiga fora ali assestada para defender a passagem do fosso. Na posio que lhe fora marcada, teria Jos Toms Gonalves, desde o romper da alva, de sofrer o fogo do inimigo. Assim, pois, compreendendo que no havia um momento a perder, mandou calar baionetas sobre os canhes; investida favorecida pela negligncia do inimigo. E, realmente, de toda a cavalaria acumulada por trs do entrincheiramento no havia uma s patrulha para a guarda das peas.

A toque-toque chegou nossa infantaria sobre os canhes, sem deixar tempo aos seus animais de tiro de no-los subtrair. Forou-se num pice a entrada do acampamento, mal defendido contra a impetuosidade desta surpresa, havendo o capito Jos Rufino e os seus caadores tambm entrado em ao. Penetraram todos de roldo no recinto, levando e derribando quanto pela frente encontravam, no acanhado recinto em que oficiais e soldados, homens e cavalos, mutuamente se embaraavam, tratando muito menos de resistir do que de escapar para o campo. Tudo o que no foi morto ou ferido, salvou-se pela fuga.

Estas boas noticias, trazidas por um prprio, encontraram-nos no alto de um cmodo que domina a plancie e para onde se encaminhara o comandante, com o seu estado-maior, a fim de poder fazer entrar em fogo toda a sua gente, se assim se tornasse necessrio.

Iluminados por uma aurora magnfica percebamos, aos nossos ps, os nossos soldados correndo pelo campo, para o local do combate; mais longe, os ndios Terenas e Guaicurus, que depois de se haverem comportado nesta refrega como bravos auxiliares, carregavam agora aos ombros os despojos dos cavalos tomados aos paraguaios. Haviam os comandantes deixado sua gente tomar um pouco de flego e como no recebessem, alis, a ordem de ocupar as posies e vissem, ainda, que o Coronel, sabedor do triunfo, no deixava a eminncia para vir ao encontro, pensaram que teriam de evacuar o posto recm-conquistado. Comeavam a mover-se em nossa direo, quando os paraguaios, rpidos como cossacos, trouxeram a todo o galope a sua artilharia, ento sustentada por numerosa cavalaria.Abriram o fogo at que de nosso lado, entrando em linha todo o nosso parque, com as boas pontarias feitas pelos nossos oficiais, tivessem de calar-se, aps alguns disparos.

O pequeno nmero de baixas que tivemos, as perdas considerveis dos paraguaios, sua inferioridade no combate em relao a ns, demonstrada pelos fatos, restabeleceram a calma, incutindo ao esprito do Coronel uma apreciao mais exata das circunstncias e das coisas. Estes selvagens, exclamou, que a tanta gente assassinaram e tanto assolaram esta regio, quando indefesa, no mais diro que os tememos. Sabem que dentro do prprio territrio, podemos obrig-los a pagar o mal que nos fizeram. Vamos fronteira aguardar algumas probabilidades de nos abastecer e gozar de pequeno repouso que me no poder ser exprobrado".

CAPTULO X

Retrocesso sobre o Apa-Mi. Escaramuas e combates com a cavalaria inimiga que envolve completamente a coluna.

amos, apesar de tudo, encetar a retirada. Sabia o inimigo que os movimentos de nossa coluna, fosse qual fosse o sentido tomado, tinham motivos a que era alheia a sua superioridade militar sobre ns. O combate que nos entregara o seu acampamento abatera-lhe a presuno, elevando ao mesmo tempo a confiana de nossa gente, em si prpria, altura das provaes que o futuro nos reservava, assim como das que j experimentramos.

Era indispensvel a vantagem obtida sobre os paraguaios para que a realidade de nossa situao se fizesse, sem murmurao, aceita dos nossos soldados, distraindo-os da imprevidncia causadora de to premente momento. Fcil sem dvida achar pretextos para a falta de vveres, tendo as informaes dos refugiados podido iludir-nos acerca dos recursos da regio, mas a insuficincia de munies, logo em comeo de campanha, no podia deixar de constituir motivo de injustificvel censura pelo fato de que tudo de antemo devera estar calculado pelos nossos chefes, muito embora os exaltassem o entusiasmo, a paixo da glria e o amor da Ptria.

Quando, no dia seguinte, 8, o Sol se levantou lera um dia dos mais serenos) j estvamos em o