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Coordenação editorial: Maristela Petrili de Almeida Leite Valentim Rebouças Lenice Bueno da SilvaEdição do texto: Marcelo GomesAssistência Editorial: Ana Lucia SantosTradução: Maria Luiza NewlandsPreparação de texto: Iraci Miyuki KishiCoordenação de Revisão: Estevam Vieira Ledo Jr.Revisão: Letras e Idéias Assessoria EditorialEdição de Arte e Projeto gráfico: A+ ComunicaçãoIlustração da capa e miolo. Rogério SoudSaída de filmes: Hélio P. de Souza Filho

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)Garner, AlanElidor : um mundo ameaçado pela escuridãoAlan Garner ; ilustrado por Rogério Soud ; traduzidopor Maria Luiza Newlands. — 2. ed. -- São Paulo :Moderna, 2006.Título original: Elidor1. Literatura infanto-juvenil I. Soud, Rogério III. Título.06-0675 CDD-028-5Índices para catálogo sistemático:Literatura infanto-juvenil 028.5Literatura juvenil 028.5

Originally published in English by Harper Collins Ltd under the title ElidorCopyright © Alan Garner 1965 The author asserts the moral right to be identified as the author of this work. Published by arrangement with Harper Colins Publishers Ltd.

Todos os direitos reservados no Brasil por Editora Moderna Ltda. Rua Padre Adelino, 758, Belenzinho, 03303-904 - São Paulo, SP Vendas e Atendimento: Tel.: (0__11) 6090-1500Fax: (0 11) 6090-1501www.moderna.com.br Impresso no Brasil, 2007

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SUMÁRIO

Rua da Quinta-Feira............................................................................11A tapeçaria de ouro............................................................................24Destruição total..................................................................................28Malebron.............................................................................................34O Monte de Vandwy...........................................................................38A balada do bobo da corte faminto....................................................45Propriedade da companhia.................................................................54Cabeça quente...................................................................................61Estátis.................................................................................................67Interferência.......................................................................................73A última pá de terra............................................................................83A caixa do correio...............................................................................88"Noite Feliz"........................................................................................95Os Altos Caminhos............................................................................100A prancheta......................................................................................108A radiolocalização.............................................................................122Espada-cortante e assento-de-ferro.................................................128Paddy................................................................................................136Ruínas...............................................................................................144A canção de Findhorn.......................................................................150

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A igrejaPrédio em ruínas, localizado na sombria Rua da Quinta-Feira.

Seu interior abriga a porta de entrada para Elidor.

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Os irmãos Nicholas, Helen, David e Roland:

deles depende o destino de Elidor.

Given e Frank:pais dos meninos.

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Malebron, o guerreiro.

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Findhorn, o unicórnio.

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"O menino Rowland na Torre Escura entrou..."

Rei Lear, William Shakespeare Ato 3, cena IV

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• 1 •

Rua da Quinta-Feira

udo bem — disse Nicholas. — Você já está cheio, eu sei. Eu também estou. Mas aqui está bem melhor do que lá em casa.— T

—Lá pelo menos deve estar menos frio — replicou David.—Pode até ser. Mas lembra como foi a última vez em que nos

mudamos? Jornais espalhados pelo chão, todo mundo sentado em caixas... Não, muito obrigado, prefiro ficar aqui mesmo.

—Estamos duros — disse David. — Não temos nem uma moedinha para uma bala. O que é que a gente vai fazer, então?

—Sei lá. Dê alguma idéia você.Estavam sentados num banco de rua atrás da estátua de Watt. O

escultor dera a ele uma expressão severa, mas os pombos faziam com que ele parecesse estar mais do que enjoado de Manchester.

— Podíamos ir outra vez brincar de subir e descer nos elevadores da Lewis — sugeriu Helen.

— Já cansei de fazer isso — respondeu Nicholas. — E, além do mais, já estavam de olho na gente; seríamos postos para fora.

— Que tal as escadas rolantes?—Não têm graça nenhuma com aquela multidão toda.—Então, vamos voltar para casa — retrucou David. — Ei, Roland,

chega de ficar dirigindo esse mapa!Roland estava um pouco adiante girando os controles de um

mapa de rua. Era uma máquina alta com painéis iluminados, quadrados e botões.

— Isto aqui é o máximo — disse ele. — Venham dar uma espiada.

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Estão vendo este cilindro aqui? É o índice de ruas; cada uma corresponde a uma letra e um número. A gente pode encontrar qualquer rua de Manchester. É fácil. Olhem só.

Roland girou um botão colocado ao lado do mapa e o índice rodou, um borrão sob o vidro.

—Deve ter uma porção de mecanismos sensacionais aí dentro — comentou Nicholas.

As palavras começaram a ficar legíveis e o borrão parecia piscar à medida que o cilindro rotativo perdia velocidade. Roland encostou o dedo no vidro.

— Vamos encontrar a rua que estou procurando quando ele parar.

O cilindro girou lentamente e os nomes das ruas passaram um a um, até que ele parou.

—Rua da Quinta-Feira — disse Helen. — Veja o seu dedo. Dez, sete L.

—Dez deve ser o código de endereçamento postal — falou Roland. — A gente gira o botão do mapa até o número sete ficar na mesma altura desses quadrados pintados de vermelho no vidro, e a Rua da Quinta-Feira é no quadrado L. Aquele ali.

—Não estou conseguindo achar — anunciou Nicholas. O mapa estava cheio de pequenas ruas, algumas tão curtas que o nome, mesmo abreviado, nem cabia no pouco espaço disponível. As crianças finalmente encontraram uma "Qu.-F." no meio das outras letras.

— Meio pequena, essa rua, não é? — observou David.—Que nome mais engraçado, Rua da Quinta-Feira — comentou

Roland. — Vamos até lá ver como ela é?—O quê?—Não é longe. Estamos em Picadilly, e a Rua da Quinta-Feira é

no final da Avenida Oldham, à direita. Deve ser fácil de achar.—Sabia que você ia inventar alguma maluquice — resmungou

Nicholas.— Vamos até lá — sugeriu Helen. — Por favor, Nick. Você e o

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David vão acabar brigando se não formos. Assim que encontrarmos a rua, voltamos para casa. E um pára de querer mandar no outro.

— Eu topo — afirmou David. — Por mim, tudo bem.— Ainda acho que é maluquice — repetiu Nicholas.— Você tem alguma sugestão melhor?— Ah, já que a idéia foi sua, Roland, então é você quem vai nos

levar. Acha que consegue descobrir como chegar lá?— Acho que sim. Vamos subir um trecho da Avenida Oldham e

depois cortar caminho pelas ruas de trás.A estátua de Watt ficou para trás. David e Nicholas estavam mais

bem-humorados agora que havia algo de objetivo a fazer.— É aqui que temos de dobrar — mostrou Roland depois de

algum tempo. — Vamos entrar nesse beco aí adiante.— Humm... — disse Nicholas. — Estou achando esse lugar meio

fedorento.As crianças nunca tinham estado nas ruas localizadas atrás das

lojas. A diferença era surpreendente.— Nossa! — exclamou Helen. — Todas aquelas vitrinas elegantes

e tapetes chiques na frente e isso aqui atrás mais parece um depósito de lixo!

Estavam numa ruela onde havia entradas de carga e descarga de mercadorias e depósitos iluminados por lâmpadas nuas, o meio-fio da calçada era baixo e arrematado com uma borda de metal e o ar estava impregnado de um cheiro de frutas estragadas e madeira barata de caixotes. Os exaustores lançavam um bafo quente e pesado nos rostos das crianças por meio de respiradouros repletos de fiapos de sujeira.

Depois de terem passado pela ruela, chegaram a um emaranhado de ruas imundas e cheias de gente, com velhas usando aventais feitos de saco, sentadas nos portais, e homens com chinelos vagabundos, sentados nos degraus. Os cachorros fuçavam entre os papéis amassados nas sarjetas; uma roda de bicicleta enferrujada estava caída sobre os paralelepípedos da rua. Numa esquina um

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grupo de garotos conversava com uma moça de cabelos enrolados com rolos de plástico de cores vivas.

— Não estou gostando disso, Nick — disse Helen. — Não é melhor voltarmos para a ruela?

— Não. Vão pensar que estamos com medo. Vamos dar a impressão de que sabemos para onde estamos indo, de que estamos cortando caminho, ou qualquer coisa assim.

Conforme iam passando, todos os olhos na rua voltavam-se para eles e, embora os olhares não demonstrassem interesse ou hostilidade, isso os deixou inseguros e fez com que andassem bem juntos. A garota da esquina deu uma risada, mas talvez por causa de alguma coisa dita por um dos rapazes.

Eles continuaram seguindo pelas ruas.— Talvez não tenha sido uma boa idéia — disse Roland. — Vamos

para casa?— Você está perdido? — perguntou Nicholas.— Não, mas.. .— E agora, o que será que houve por aqui? — indagou David.As ruas continuavam adiante, mas as casas estavam vazias e

destruídas.— Que coisa mais esquisita — estranhou Nicholas. — Vamos, está

parecendo que desta vez o Roland acertou.— Vamos voltar — disse Roland.— O quê? Logo agora que está começando a ficar interessante?

Não é este o caminho para a tal Rua da Quinta-Feira?— Bem... mais ou menos... é... acho que é.— Vamos, então.Não havia apenas uma ou duas casas vazias, mas muitas e

muitas delas, e ruas e ruas seguidas. Por toda parte, o mato crescia entre os paralelepípedos e entre as rachaduras das calçadas. Portas pendiam de dobradiças empenadas. Quase todas as janelas estavam fechadas com tábuas ou mostravam os dentes pontiagudos das vidraças quebradas. Somente algumas ainda tinham cortinas, que

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estremeciam quando as crianças passavam. Mas não havia ninguém à vista.

— Não parece um lugar mal-assombrado? — perguntou David. — A gente fala baixinho quase sem querer. E se não tiver mais ninguém em lugar nenhum da cidade, nem em Picadilly, quando a gente voltar para lá?

Helen olhou através da janela de uma das casas.—Esta sala está cheia de latas de lixo! — exclamou.—O que é aquilo escrito com giz ali na porta?—"Deixe a correspondência na casa número 4."—A casa número 4 também está vazia.—Eu é que não gostaria de ficar aqui à noite, e vocês? — indagou

Helen.—Continuo achando que alguém está nos observando —

comentou Roland.—Não é à toa — disse David. — Com todas essas janelas...—Estou sentindo isso desde aquela hora em que estávamos perto

do mapa em Picadilly — insistiu Roland —, e durante o caminho todo pela Avenida Oldham.

—Ah, deixa de besteira, Roland — replicou Nicholas. — Você está sempre imaginando coisas.

—Olhem só — disse David. — Já começaram a derrubar as casas. Talvez a gente veja uma equipe de demolição trabalhando. Eles fazem isso com uma bola de ferro enorme, que fica balançando, pendurada num guindaste.

Alguma coisa tinha mesmo atingido a rua onde se encontravam, pois só as fachadas das casas estavam de pé; o céu aparecia na parte de dentro das janelas e as escadas levavam a restos de paredes de cores diferentes.

No final da fileira de casas, as crianças pararam. As ruas continuavam pavimentadas, com calçadas e postes, mas não havia mais casas, só terrenos cobertos de montes de entulho.

—Onde é que foi parar a Rua da Quinta-Feira? — implicou

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Nicholas.—Ali — respondeu David.E apontou para uma placa de rua que se equilibrava sobre uma

pilha de tijolos. "Rua da Quinta-Feira."— Puxa vida, não é que você acabou mesmo nos trazendo até

aqui, Roland? — comentou Nicholas. — Este lugar foi todo demolido. Que coisa, hein?

— Lá está a equipe de demolição! — apontou Helen.Uma igreja erguia-se no meio dos escombros, isolada e escura.

Era uma construção vitoriana simples, com contrafortes nas paredes e janelas em ogiva, um telhado alto e muito inclinado, mas sem a flecha da torre. E, ao lado da igreja, havia uma escavadeira mecânica e um caminhão.

— Não estou vendo ninguém — disse Roland.— Devem estar dentro da igreja — lembrou Nicholas. — Vamos lá perguntar se podemos ver a demolição.

As crianças seguiram pelo que tinha sido a Rua da Quinta-Feira. Quando chegaram à igreja, porém, até Nicholas perdeu o entusiasmo, pois não se percebia qualquer som ou movimento em lugar nenhum.

— Se eles estivessem trabalhando, a gente estaria ouvindo, Nick. Já devem ter ido para casa.

David girou a maçaneta de ferro e empurrou a porta. Ouviu-se o eco dentro da igreja quando ele sacudiu a pesada fechadura, mas a porta parecia estar trancada.

— Eles não podem ter deixado todas essas máquinas aí — disse Nicholas. — Devem estar fazendo um lanche ou qualquer coisa parecida.

—O motor do caminhão ainda está quente — notou Roland. — E alguém deixou uma jaqueta lá dentro.

—E, além disso, a caçamba do caminhão está arriada. Eles ainda não acabaram de carregar toda essa madeira.

—Que madeira?—Pedaços de vigas e de assoalhos quebrados.

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—Vamos esperar, então — disse Nicholas. — Tem mais alguma coisa aí?

—Não. Ah, tem sim. Uma bola atrás da roda da frente.—Então pegue a bola e vamos jogar um pouco.Roland puxou uma bola branca de plástico, de futebol, que

estava embaixo do caminhão e, de repente, ficou imóvel.—O que foi?—Ouça — disse Roland. — De onde está vindo essa música?—Que música? Você está ouvindo coisas.—Não, escute só, Nick. Ele tem razão.Alguém estava tocando violino. As notas eram fracas e agudas,

numa canção cheia de tristeza. Havia um velho, um pouco longe das crianças, sozinho na esquina de uma rua, perto de um poste de iluminação quebrado. Estava malvestido e tinha na cabeça um chapéu todo amarrotado.

—Por que ele está tocando aqui?—Talvez seja cego — respondeu Helen. — Não é melhor dizermos

a ele onde está? Provavelmente está pensando que existem casas ao redor.

—Os cegos sabem dessas coisas pelo eco — lembrou David. — Deixe-o em paz; pode ser que ele esteja ensaiando. Ande logo, Roland! Estamos esperando!

Roland soltou a bola e chutou-a antes que tocasse no chão.Estava a uns vinte metros dos outros e chutou a bola para eles de

modo que ela quicasse antes no chão. Em vez disso, a bola subiu direto e passou por cima de suas cabeças, tão depressa que mal conseguiram acompanhá-la com os olhos. E ainda estava subindo a toda velocidade quando entrou pelo arco central da janela de um dos lados da igreja e espatifou o vidro.

David deu um assobio de admiração.—Na mosca, Roland! Quero ver você fazer isso de novo!—Psiu! — fez Helen.—Não faz mal. Não estão derrubando tudo mesmo?

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—Não chutei com tanta força assim — explicou Roland.—Ah, não!—Pode deixar — disse Helen. — Vou ver se encontro um jeito de

entrar lá.—Vamos todos — falou David.—Não. Fiquem aqui para o caso de a equipe de demolição voltar

— sugeriu Helen, e contornou a igreja, desaparecendo.—Sabia que você ia acabar quebrando uma janela — comentou

Nicholas.—Não fiz por mal, Nick, foi sem querer. Só chutei a bola e foi

como se ela tivesse voado sozinha.— Voado sozinha... — disse Nicholas. — Pronto, lá vai ele começar outra vez...— Mas é verdade! — protestou Roland. — Quando chutei, o... violinista parece que ficou tocando a mesma nota, sem parar. Você não escutou? Aquilo foi direto para a minha cabeça. E foi aumentando, aumentando, conforme a bola ia subindo, até que a janela se quebrou. Você não ouviu a música?

—Não. E não estou ouvindo nada agora. Nem estou vendo o seu violinista. Ele sumiu.

—Tem outra coisa estranha — continuou David. — Era só uma bola de plástico, mas partiu a moldura de chumbo da janela.

—Ah, com certeza foi por causa da força do chute do craque Roland — disse Nicholas. — Escute: seu violinista começou a tocar de novo.

A música era quase indistinta mas, embora a canção fosse a mesma de antes, agora tinha um ritmo insistente, como o de uma dança frenética, mais rápida, mais alta, até que as notas se fundiram em tamanha altura que pouco a pouco ultrapassaram a capacidade de audição humana. Por alguns instantes, ainda podiam perceber o som. E depois não ouviram mais nada.

—O que Helen está fazendo? — perguntou Nicholas. — Será que ainda não encontrou a bola?

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—Pode não ter conseguido subir e entrar — respondeu David. — Vou até lá para ver.

—E diga a ela para andar depressa — acrescentou Nicholas.—Está bem.Nicholas e Roland ficaram esperando.—Nunca imaginei que existissem lugares assim, e você, Nick?—Acho que é o que chamam de "remoção de bairros pobres" —

arriscou Nicholas. — Uma porção de casas foi bombardeada na guerra, sabe, e as que não foram estão sendo demolidas para abrir espaço para apartamentos novos. É por isso que todas aquelas ruas estavam vazias. Vão ser as próximas a ter casas derrubadas.

—Onde é que as pessoas ficam morando enquanto os apartamentos estão sendo construídos? — indagou Roland.

—Não sei. Mas você notou? Ali em frente, do outro lado, o conjunto de casas seguinte não está vazio. Talvez sejam aquelas as pessoas que vão morar nos apartamentos que vão ser construídos aqui. E então as casas daquele quarteirão vão poder ser demolidas.

—É o violinista outra vez! — exclamou Roland. O som estava distante, como antes, e rápido, impetuoso. — Mas não estou vendo o velho. Onde ele está?

—O que é que está acontecendo com você hoje, Roland? Pare com essa agitação! Ele deve estar por aí.

—Sim, mas onde? Estava ao lado do poste há um segundo, e é muito longe das casas. É impossível estarmos ouvindo a música sem conseguir vê-lo.

—Queria mesmo saber onde se meteram David e Helen — disse Nicholas. — Se eles não se apressarem, o pessoal da demolição vai voltar antes de encontrarmos a bola.

—Será que eles... estão bem?—Claro que sim. Estão é querendo nos tapear.—Podem estar entalados ou presos em algum lugar — comentou

Roland.Se isso tivesse acontecido, teriam gritado — argumentou

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Nicholas. — Não, estão é aprontando alguma. Espere aqui, pode ser que tentem sair de fininho. Vou dar um susto neles.

Roland sentou-se numa cadeira quebrada que parecia já fazer parte do ambiente. Estava sentindo frio. Então a música voltou.

Roland deu um pulo, mas não viu o violinista nem descobriu de que direção vinha o som.

— Nick!A música ficou mais fraca.— Nick! Nick!O terreno baldio dava a impressão de ser maior à luz do final de

tarde; o ar estava parado, as casas pareciam pintadas na penumbra. Eram tão estranhas e distantes quanto um litoral visto do mar. Bem longe, uma mulher empurrava um carrinho de bebê.

— Nick!Roland saiu andando com dificuldade em meio ao entulho para o

outro lado da igreja, onde encontrou uma porta aberta, pendurada nas dobradiças quebradas; duas tábuas tinham sido pregadas no portal para fechar a passagem. Roland esgueirou-se entre elas e entrou num corredor para onde davam vários quartos pequenos. De um cano rachado pingava água. O lugar cheirava a fuligem e umidade.

Nos quartos, não havia mais nada além daquelas coisas que sempre ficam para trás: um livro de matrícula da escola dominical todo mofado; uma Bíblia com capa de latão; uma fotografia amarelada da procissão de Pentecostes de 1909; um exemplar do manual de Kirton para combate ao alcoolismo, com uma dedicatória a John Beddowes, da Liga da Esperança de Pendlebury, datado de 1888; um pires quebrado; um pote de geléia esverdeado por dentro.

— Nick!Roland seguiu em frente e entrou na igreja.As tábuas do assoalho e as vigas tinham sido levadas embora,

deixando o chão de terra aparente; tudo o que podia ser removido havia sido arrancado, desde o chão até os tijolos. A igreja parecia

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uma caverna. Sobre a cabeça de Roland, as três janelas em ogiva do lado oeste reluziam como velas alaranjadas pela luminosidade do pôr-do-sol. A janela mais alta, do meio, estava despedaçada, e o vidro estava espalhado pelo chão. Entretanto, não havia sinal da bola.

— Nick! Helen! David! Onde é que vocês estão?A luz do crepúsculo pairava como uma névoa no interior da

igreja.Roland voltou para o corredor por onde entrara. No final, havia

uma escada. O corrimão tinha sido retirado mas os degraus ainda estavam no lugar.

— David! Nick! Desçam daí, parem de se esconder! Não estou gostando nada disso!

Ninguém respondeu. Os passos de Roland ressoavam nos degraus. No alto, havia dois quartos que davam para o patamar, ambos vazios.

— Nick!O eco encheu a igreja.— Nick!Em ondas sucessivas, sua voz espalhou-se e, misturado a ela,

veio um outro som. Era baixo e vibrante como o vento dentro de uma chaminé. Foi crescendo, ficando mais tenso, as paredes perderam a nitidez e o solo tremeu. O ruído vinha da estrutura da igreja, que pulsava com o som. Então, ele ouviu uma porta pesada se abrir e se fechar, e o ruído foi diminuindo até cessar completamente. Tudo agora estava quieto demais dentro da igreja, e ouviam-se passos sobre o entulho do corredor lá embaixo.

— Quem está aí? — perguntou Roland.Os passos chegaram à escada e começaram a subir.Quem é que está aí?Não tenha medo — respondeu uma voz.—Quem é você? O que é que você quer?Os passos ressoaram no alto da escada. Uma sombra projetou-se

no patamar.

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— Não! — gritou Roland. — Não se aproxime! O violinista surgira à porta.

— Não vou machucar você. Segure a ponta de meu arco e guie-me. Esta escada é perigosa.

Ele era curvo e magro. Mancava de uma perna, tinha uma voz de velho. Parecia não ter força nenhuma, e estava entre Roland e a escada. Estendeu o arco de seu violino.

—Ajude-me.—Está... está bem.Roland esticou o braço para pegar o arco mas, quando sua mão

chegou perto, sentiu um choque passar por seus dedos e correr uma luz até sua testa, entre os olhos. Foi como se uma cortina se levantasse em sua mente e, um segundo antes que caísse de novo, ele viu alguma coisa; mas foi tão rápido que só conseguiu perceber que havia um vazio onde antes vira algo.

— O que você viu?— Ver? Eu não... vi. Eu... veio pelos meus dedos... O que eu vi?

Umas torres... como se fossem labaredas. Uma vela no meio da escuridão. Um vento negro.

— Mostre-me o caminho.— Está bem.Roland desceu as escadas, um degrau de cada vez, meio

atordoado, agora sem sentir medo. De alguma forma, a igreja agora lhe parecia remota, e achatada e plana como um cenário de teatro. As únicas coisas reais eram o violinista e seu arco.

— Ouvi a sua música — comentou Roland. — Por que você estava tocando tão longe das pessoas?

— Eu estava perto de você. Você não é uma pessoa? — tinham chegado ao pé da escada e estavam pisando o chão de terra da igreja. — Dê-me o arco.

— Não posso ficar — disse Roland. O violinista, porém, colocou o violino no ombro. — Estou procurando minha irmã e meus dois irmãos... — o velho começou a tocar — . . . e tenho de encontrá-los

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antes que escureça... — era a dança frenética — ... e temos de pegar o trem. Que barulho é esse? Por favor! Pare com isso! Meus ouvidos não agüentam! Pare!

O ar absorvia o som do violino. Era o mesmo som que Roland tinha ouvido lá em cima, mas agora estava mais alto, subindo em ondas que faziam a igreja vibrar, e entravam pelo corpo de Roland e davam-lhe a impressão de estar enredado no som.

— Pare!— Agora, abra a porta!— Não posso! Está trancada!— Abra! O tempo está se esgotando!— Mas...!— Agora!Roland cambaleou até a porta, agarrou a maçaneta de ferro e

puxou-a com toda a força. A porta se abriu e ele saiu correndo pela rua, com a cabeça baixa, impelido pelo barulho. Mas não conseguiu chegar até a calçada do outro lado, pois as pedras do pavimento moviam-se sob seus pés. Virou-se para trás. A silhueta da igreja ondulou e desapareceu no ar. E ele estava de pé entre os rochedos de uma praia, e a música do violino perdia-se no quebrar das ondas do mar e no longo farfalhar da arrebentação.

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• 2 •

A tapeçaria de ouro

m penhasco erguia-se diante dele e, no alto, estavam as ruínas de um castelo. Ainda se sentia confuso por causa do ruído que abalara a igreja, mas os respingos da água fria do

mar acordaram-no.U

Roland caminhou ao longo da praia. O penhasco era uma pequena ilha separada da terra por um canal de espuma. Bem acima de sua cabeça, uma ponte levadiça unia os dois lados, e não havia outra forma de atravessar. Teria de escalar o penhasco, e depressa, pois mal tinha começado a procurar o melhor ponto para subir e uma onda já se arrastava pelas rochas. A maré estava subindo.

Havia uma inclinação nas rochas, em um dos lados, por onde era possível subir. Seria duro escalar: a altura era grande. O barulho do mar foi diminuindo aos poucos, não havia vento. O penhasco puxava-o para o espaço aberto, e ele achava que cada movimento tinha sido forte demais e que perderia o equilíbrio. Os tendões dos pulsos retesavam-se com a pressão das mãos em cada ponto de apoio. Sabia que não devia olhar para baixo mas, quando olhou para cima, todo o volume do castelo tombou lentamente sobre ele. Depois disso, concentrou o olhar apenas no que estava ao alcance de sua mão.

Os alicerces do castelo eram de alvenaria lisa e prolongavam-se até a muralha vertical. No entanto, havia uma saliência entre o leito de rocha e os alicerces por onde Roland se arrastou aos poucos até

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alcançar a ponte levadiça.As correntes que serviam para levantar a ponte haviam sido

arrebentadas, então ele usou uma delas para subir até a altura da casa do portão. A ponte levadiça não estava danificada, mas a casa do portão tinha desabado. Roland passou por cima dela e entrou no pátio.

O castelo possuía quatro torres, uma em cada quina das muralhas destruídas, e, no meio do pátio, havia uma enorme fortaleza. Era alta, com poucas janelas.

— Tem alguém aí? — gritou Roland.Não houve resposta. Roland passou pela porta da fortaleza e

entrou num amplo saguão com teto sustentado por vigas de madeira; era frio e estava mergulhado em penumbra. Havia rosas murchas espalhadas por todo o assoalho e o cheiro das flores deterioradas impregnava o ar.

Uma arcada em um dos cantos levava a uma escada em espiral. Ali, a luz entrava pelas fendas na parede, mas era tão pouca que a maior parte do tempo Roland teve de subir tateando no escuro.

O primeiro aposento era uma sala de armas, com as paredes cobertas de prateleiras contendo algumas espadas, lanças e escudos. Ocupava toda a extensão da fortaleza.

Roland tirou uma espada de uma das prateleiras. A lâmina estava afiada e bem lubrificada. Havia uma coisa estranha naquele castelo: embora estivesse em ruínas, os estragos pareciam ser recentes. As pedras caídas não tinham marcas do tempo e todas as janelas ainda conservavam restos de vidraças.

Roland pôs a espada de volta no lugar: era pesada demais para ele.

Continuou subindo as escadas até a porta seguinte. Abriu-a e viu uma sala vazia. Farrapos de tapeçarias pendiam das paredes como esqueletos de folhas mortas. Havia uma janela alta com três arcos em ogiva... e o vidro do arco do meio estava espalhado pelo chão. Do lado oposto da janela, diante da lareira, estava uma bola branca de

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plástico, de futebol.Roland segurou a bola com as duas mãos, da mesma maneira

como a pegara embaixo do caminhão. Era a mesma bola: trazia o desenho das costuras, as manchas de gasolina e a poeira vermelha dos tijolos.

Enquanto olhava para ela, ouviu um homem cantando. Não distinguia as palavras, mas a voz era a de uma pessoa jovem e a canção encheu Roland de um sentimento intenso em que se misturavam, ao mesmo tempo, tristeza e alegria.

"De onde será que está vindo?", pensou Roland. "Da sala de cima?"

Se ao menos conseguisse ouvir as palavras da canção... Ele tinha de ouvir, não importa quem estivesse cantando. Entretanto, quando se mexeu, a voz parou.

— Não — sussurrou Roland.A bola caiu de suas mãos e, durante um longo tempo, ele a ouviu

batendo lentamente no chão... batendo... batendo... descendo... rodando... até o som sumir.

"Ele deve estar lá em cima", pensou.Roland continuou a subir; Chegou à sala de cima, a última;

adiante, a curva da escada era mais iluminada porque dava para o topo da fortaleza.

Não tinha ninguém na sala. Porém, sob a janela havia uma mesa baixa de mármore branco e, caindo de uma de suas pontas, como se tivesse sido puxada com força para o lado, pendia uma tapeçaria tramada com fios de ouro.

Roland aproximou-se da mesa. Era bastante simples, a não ser pelo desenho de uma espada profundamente entalhada no mármore. Apanhou a tapeçaria dourada e estendeu-a sobre a mesa. A maneira como as dobras caíam revelava que a tapeçaria não havia sido tocada ou usada fazia muito tempo. O formato da espada destacava-se no tecido. Quando se voltou, Roland sentiu o castelo estremecer e a voz que cantava chegou até ele pela janela, distante, mas tão clara que

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percebeu trechos da letra.

Bela é esta terra em todos os tempos...

Sob brancas chuvas de flores...

— Ah, espere por mim! — gritou Roland. — Não vá embora!Subiu correndo as escadas e debruçou-se nas ameias da

fortaleza.

Ilha verdejante à sombra das estrelas.

Por toda parte, o mar e o ar confundiam-se numa luz acinzentada e as ondas pareciam dardos prateados na água. Uma estrada saía da ponte levadiça e seguia pelas colinas até uma floresta que cobria as primeiras elevações. Na estrada, afastando-se do castelo, Roland viu o violinista.

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• 3 •

Destruição total

uando Roland passou pela casa do portão, o violinista já estava próximo das árvores. Roland correu atrás dele. Por algum tempo, a estrada passava por restos carbonizados de

construções e campos infestados de urtigas. Os pés de Roland levantavam uma poeira espessa — ou seria cinza? — que abafava seus passos e grudava-se em seu corpo, tão seca que ele sentia a pele áspera. Moscas zumbiam à sua volta, andavam em seus cabelos e tentavam pousar em seus lábios. O céu estava carregado, no entanto a luz do dia tinha uma fixidez intensa que incomodava. O que o fazia seguir adiante não era mais o assombro ou a curiosidade, mas o desejo de não ficar sozinho.

Q

Até mesmo a canção tinha perdido seu encanto pois, agora que o velho reaparecera, Roland lembrava-se de quando ouvira a canção: era aquela que o violinista tinha tocado. Portanto, o que ele imaginava ser uma música ouvida em sonhos era apenas a repetição de uma melodia já conhecida.

Apesar de querer alcançar o homem, Roland sentia cada vez menos vontade de chegar à floresta. De início, não notara ali nada de sinistro além de uma impressão geral de melancolia e silêncio, e só quando se aproximou viu por que aquela floresta era diferente das demais: as árvores estavam mortas.

Roland olhou para trás, mas não tinha outro lugar para ir e, a

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distância, o castelo parecia um penhasco disforme e contorcido. Apanhou do chão um punhado de cascalho e esfregou-o no rosto. Machucava. Era de verdade. Ele estava mesmo ali. Não podia contar com mais ninguém.

Na floresta, a estrada reduzia-se a uma trilha irregular de lama que se desviava por onde o solo permitisse. Os cogumelos brilhavam na penumbra e o musgo pendia dos galhos como se fosse cabelo. Havia um silêncio de morte por toda parte, um silêncio ainda mais poderoso por causa dos ruídos que continha: a queda distante de árvores e as vozes das criaturas frias ocultas pelo nevoeiro, que se movia em farrapos ondulantes quando não havia vento. A madeira dos carvalhos transformava-se num líquido escuro quando se tocava neles.

Roland não saberia dizer quanto tempo vagou por ali, nem que distância percorreu, até que as árvores se espaçaram à beira de um pântano rodeado de rochedos. Não levara horas ou quilômetros para atravessar aquela floresta, e ele só fizera chapinhar de um atoleiro para outro, passar de um tronco podre para outro e torcer para que mais adiante o lamaçal acabasse.

Deu alguns passos trôpegos para longe das árvores e deixou-se cair sobre o capim. Não sabia mais onde era a estrada e estava sozinho.

• • •Quando abriu os olhos, Roland achou que nunca mais seria capaz

de se mexer. A umidade fria entranhara-se em seu corpo e prendia-o ao solo.

Virou-se de lado e sentou-se com esforço, a cabeça sobre os joelhos, gelado demais até para tremer.

Não sabia por quanto tempo tinha dormido, mas nada havia mudado. A luminosidade era a mesma de antes, o céu continuava parado.

Começou a caminhar colina acima na direção dos rochedos. Eram mais altos do que havia imaginado: uma formação cerrada de colunas

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de granito rachadas pelo frio e estriadas pelo vento. Assim mesmo, subiu como pôde pelas valas e pelos sulcos que o tempo tinha escavado. E chegou ao topo.

Ali, Roland viu-se na crista do monte, uma ampla elevação alongada que descia até uma planície extensa cujos limites perdiam-se na neblina. Não havia nada à vista: nenhuma cidade, nenhuma casa, nenhuma luz, nem um rolo de fumaça. Estava sozinho. Atrás dele, a colina ia dar na floresta, que ele não via onde acabava. A única prova de que alguém vivera um dia naquela terra estava ali, mas não servia de grande consolo. Um círculo de pedras em posição vertical coroava a colina. Eram pedras brutas, não trabalhadas e pesadíssimas: três vezes maiores do que um homem adulto e lisas como sílex. Erguiam-se do chão como punhos fechados. Roland dirigiu-se para o círculo, que tinha uns trezentos e cinqüenta metros de diâmetro, e, no meio, parou e olhou ao redor.

Do círculo, saía uma larga avenida ladeada de pedras que seguia pelo contorno da crista do monte, e essas pedras eram lâminas agudas, tão altas quanto as do círculo, porém finas e ameaçadoras. Iam diretamente para uma colina arredondada a um quilômetro de distância.

Se é que era possível, o ar ali estava ainda mais parado, tão parado que o silêncio parecia estar dentro de Roland. Ele evitava fazer qualquer barulho, temendo que o silêncio ainda assim não fosse quebrado.

Quantas pedras havia no círculo? Roland começou a contar a partir do lado esquerdo da avenida de pedras. Oitenta e oito. Ou será que deixara de contar uma delas bem no final? Tentou novamente: oitenta e cinco, oitenta e seis, oitenta e sete. É possível que seus olhos estivessem cansados, mas o tique-tique daquelas formas aguçadas, enquanto as contava, parecia estar fazendo as pedras se moverem — oitenta e quatro, oitenta e cinco, oitenta e seis, oitenta e sete, oitenta e oito, oitenta e nove. Só mais uma vez. Uma, duas, três, quatro, cinco... não. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete... o ar

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parado à sua volta dava-lhe uma sensação de surdez."Por que estou me preocupando em contar?", pensou."Você tem de ficar aqui até contar todas as pedras."— É, tenho... quem será que falou isso? — Roland olhou para trás.

— Eu mesmo. Acho que estou ficando maluco.O silêncio era tão completo que seu pensamento tinha soado

alto, como se fosse uma voz.— Vou dar o fora daqui.Roland saiu em disparada para fora do círculo, concentrado

apenas em alcançar o espaço aberto no alto da colina e sem perceber de início que estava correndo para a entrada da avenida de pedras. Deu uma guinada para uma brecha entre as pedras mas, à medida que se aproximava, a perspectiva parecia mudar, inverter-se, de modo que, em vez de se alargar, a brecha foi encolhendo. Não dava para passar por ali.

Roland mudou de direção, espantado por ter calculado mal... e lá ia ele de novo para a avenida. Oitenta e seis. Oitenta e sete. Oitenta e oito. Oitenta e nove. Noventa. Pedras não se movem. Há espaço bastante entre elas.

Fixou os olhos numa das brechas e partiu em sua direção.O espaço entre as imensas pedras era muitas vezes maior do que

a própria largura delas e, no entanto, quando Roland se aproximava, seu instinto dizia-lhe que não seria suficiente para ele passar. Desviava-se bruscamente o tempo todo, como se evitasse um obstáculo invisível no escuro. "Pedras... não... se movem. Dá... muito bem... para passar." Via que era possível passar mas, até a última pedra, encolheu-se e, no momento em que finalmente passou, sentiu subir um enorme grito mudo dentro de si.

• • •— Estou imaginando coisas — disse Roland.Assim que saiu de dentro do círculo, chegou a assustar-se com a

rapidez com que deixou de sentir medo, porque percebeu que as pedras voltavam ao tamanho verdadeiro.

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— Dá para passar com um ônibus entre elas!Seja como for, o ar estava menos sufocante agora, e nenhuma

das pedras se mexeu enquanto ele contava.— Oitenta e uma. Vou contar outra vez. Oitenta e uma. É isso

mesmo, certinho.Roland decidiu seguir a avenida de pedras até a colina. Dali a

visão seria melhor e talvez algo orientasse aquela sua caminhada sem rumo. Mas manteve-se a distância das pedras, andando logo abaixo delas, ao longo da crista do monte.

Pôde verificar em seguida que a colina, apesar de seu tamanho, não era parte da crista mas um monte artificial, totalmente circular e com a parte superior achatada.

A avenida terminava numa vala seca, ou num fosso, que rodeava a colina. Roland escorregou para dentro do fosso, correu pelo chão largo e começou a subir. A relva parecia vidro sob seus sapatos.

Do alto do monte, havia um ponto de referência lá adiante, na planície, bem longe.

"Uma pilha de pedras. Não...", pensou Roland, "... são torres... e muros. Tudo destruído. Outro castelo. Não adianta muito. E o que mais?"

Roland apertou os olhos e, em pouco tempo, achou que podia distinguir à esquerda uma forma mais substancial do que as nuvens que se deslocavam.

Um castelo. Negro. Destruição total."Tem de haver mais alguma coisa."A vista revelava apenas uma região árida, lúgubre. Planície,

floresta, mar, nada tinha vida. Até mesmo a luz perdera a cor, e Roland via tudo, sua pele, sua roupa, em tons de cinza, como uma fotografia em preto-e-branco.

Três castelos.Olhou para a direita. Ali, a escuridão era como a de uma

tempestade: impenetrável. Então... algo apareceu, sumiu, apareceu novamente.

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Uma luz. Numa colina. Muito fraca... como a luz de uma vela... que se apaga. Torres! Torres douradas!

Roland nunca soube dizer se realmente vira alguma coisa ou se aquilo tinha sido uma imagem em sua mente mas, enquanto se esforçava para enxergar através das brumas, sua visão pareceu concentrar-se e trazer o castelo mais para perto. Brilhava como se as pedras tivessem sido banhadas em luz, como se pedra pudesse ser âmbar. Havia pessoas andando junto às muralhas, metais reluziam. Então, as nuvens encobriram o castelo.

Roland estava de volta ao topo da colina, mas aquele lampejo em meio à névoa da planície levara embora seu cansaço, sua desesperança. Tinha sido como a voz cantando fora da fortaleza, como um raio de sol rasgando as nuvens cinzentas.

Na mesma hora, começou a caminhada em direção ao castelo. Desceu o monte, sentado, freando com as mãos. Agora, tudo ficaria bem. É, ficaria tudo bem. Aterrissou como se fosse um saco de batatas na base do monte. Ao lado de sua cabeça, quatro dedos de uma luva de lã saíam de dentro do musgo.

Quatro dedos de uma luva de lã espetados para cima, e o musgo crescera macio entre cada dedo sem deixar marcas neles.

Roland estendeu a mão e... a luva estava vazia. Tirou seu canivete do bolso e começou a cavar. Havia uma camada de raízes de apenas cinco centímetros sobre uma base de quartzo branco, e ele cortou e arrancou o musgo como se fosse um pedaço emaranhado de uma esteira. Saiu uma tira, um molde fibroso da luva, com quatro furos. Os quatro dedos e o punho da luva estavam soltos, mas o polegar estava enterrado no quartzo.

Roland procurou uma etiqueta com um nome na parte interna do punho da luva. E encontrou: Helen R. Watson.

Furou o musgo com o canivete, mas não achou nenhuma fenda no quartzo, nada que pudesse levantar. A luva estava incorporada à rocha. Não havia rachaduras nem irregularidades na superfície dura. O polegar estava mergulhado numa rocha lisa, sem qualquer falha, e

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o musgo a cobrira.Roland sacudiu a luva mas não conseguiu tirá-la do lugar. Puxou-

a com toda a força para todos os lados, porém ela começou a se retorcer sozinha, fazendo-o cair de joelhos. Ele lutava, mas a luva o arrastava para o chão, exausto, algemado à terra.

Ajoelhou-se, cabisbaixo, olhando para o quartzo: branco, frio, duro, liso. Entretanto, uma mancha estava crescendo no chão, sua própria sombra, cada vez mais negra. A luz estava mudando. E, pelo deslocamento da sombra, Roland viu que a luminosidade se aproximava, cada vez mais, vindo por trás dele.

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• 4 •

Malebron

ra um homem de cabelos louros. Usava uma capa dourada e trazia um escudo dourado em um braço. Tinha uma lança na mão, e a ponta da lança era como uma chama acesa.E

— Há luz em Gorias? — perguntou ele.— Ajude-me — pediu Roland —, a luva...— Há luz? — repetiu o homem.— A luva... — disse Roland. — Helen...Não conseguia pensar em mais nada, fazer mais nada. Sua

cabeça latejava, a colina girava. Estava caído sobre o musgo do chão. Lentamente, tudo se foi acalmando, como o sono quando vem, a luva deixou de ser aquela mão que o agarrava e ele conseguiu segurá-la. O homem estava imóvel, de pé, e voltaram à memória de Roland as palavras que tinha ouvido diante da mesa da tapeçaria de ouro. A mesa, o castelo, aquele homem: eram os únicos que ainda tinham o colorido da vida em toda aquela terra devastada.

O rosto do homem era magro, com as maçãs do rosto salientes, e seu cabelo ondulava como se um vento o agitasse.

—Quem é você? — sussurrou Roland.—Malebron de Elidor.—O que é Elidor? — perguntou Roland.—Há luz em Gorias?—Não estou entendendo — respondeu Roland.O homem começou a subir a colina, mas estava mancando.

Arrastava um dos pés. Não olhou para ver se Roland o seguia.

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— Você está ferido? — perguntou Roland.— As feridas não se curam em Elidor.— Encontrei um violinista — disse Roland. — Ele tinha uma perna

doente. Tive de ajudá-lo...— Agora que você veio — interrompeu Malebron —, não preciso

mais me esconder nem usar farrapos de mendigo. Olhe.Estavam no topo do monte. Ele apontou para a fortaleza em

ruínas a distância.— Lá está Findias, o Castelo do Sul. E a floresta, Mondrum, a mais

bela de Elidor.— Era você?! — espantou-se Roland. — Você?! Então, devia estar

me observando o tempo todo! Me deixou lá perto do penhasco e foi embora! E o que foi que fez com Helen? E com David e Nick? O que foi que aconteceu? — gritou Roland.

A voz dele não tinha nenhuma força naquela atmosfera, por isso Malebron esperou, não lhe dando atenção, até que Roland parou.

— E Falias, Murias — continuou —, os Castelos do Oeste e do Norte. Lá adiante, na planície.

Ele pronunciou os nomes dos castelos e da floresta como se fossem coisas preciosas, e não três garras negras e um pântano.

—Gorias, porém, no leste... o que você viu?—Eu... vi um castelo — respondeu Roland. — Era todo dourado...

e tinha vida nele. Depois, encontrei a luva. Ela...— Você conheceu a Floresta de Mondrum, e aquelas muralhas

destruídas — disse Malebron —, a terra cinzenta, o céu morto. Entretanto, aquilo que viu em Gorias brilhava outrora por toda Elidor, da Aveleira de Fordruim à Colina de Usna. Era assim que vivíamos, e não havia antagonismos entre nós. Agora, só em Gorias existe luz.

— Mas onde está...? — perguntou Roland.— A escuridão cresceu — disse Malebron. — Está sempre à

espreita. Não ficamos vigilantes e o poder da noite fechou-se sobre Elidor. Tínhamos tanta paz e bem-estar que não demos atenção aos sinais: uma colheita perdeu-se infestada por uma praga, uma

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primavera não veio, um homem foi morto. E, de repente, era tarde demais: guerra, cerco e traição, e a morte da luz.

—Onde está Helen? — insistiu Roland. Malebron ficou calado, depois disse em voz baixa:

—Um rei mutilado e um menino resmungão! Será possível?—Não sei do que está falando — replicou Roland. — Onde está

Helen? Essa luva é dela, e o polegar está preso na rocha.—Luvas! — exclamou Malebron. — Olhe à sua volta! Eu resisti e

matei, esperando que um dia você viesse. E você veio. Mas não me venha falar de luvas! Você vai salvar esta terra! Vai trazer a luz de volta a Elidor!

—Eu?—Você é a única esperança.—Eu? — indagou Roland. — Mas... não adianta. O que eu poderia

fazer?—Nada, sem mim — respondeu Malebron. — E, sem você, eu

morrerei. Sozinhos, estamos perdidos; juntos, traremos o amanhecer.—Tudo isso era como o castelo dourado que você cantava na

canção? O país inteiro? — perguntou Roland, com um gesto para a planície.

—Sim — confirmou Malebron.— .. . e sou eu que. . .—Você mesmo.Findias... Falias... Murias... Gorias. A Aveleira de Fordruim... a

Floresta de Mondrum... a Colina de Usna. Homens que se pareciam com a luz do Sol. A tapeçaria de ouro. Elidor... Elidor.

Roland pensou no cascalho que tinha esfregado no rosto. "Isto é de verdade, está acontecendo agora; estou mesmo aqui. E só eu posso fazer alguma coisa. Foi o que ele falou. Disse que posso trazer tudo de volta. Roland Watson, que mora em Fog Lane, número 20, Manchester. Quem diria! Quem diria, hein!"

—Como é que você sabe que sou capaz de fazer isso? — perguntou Roland.

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—Vi as provas de sua força — respondeu Malebron. — Sem essa força, você não teria sobrevivido e não estaria aqui, no coração das trevas.

—Aqui? — indagou Roland. — Mas isso aqui é só um morro...—É o Monte de Vandwy — informou Malebron. — A masmorra da

noite em Elidor. Tentou destruí-lo. Se você não tivesse sido forte, nunca teria saído do círculo de pedras. Mas você foi forte, e tive de esperar que provasse sua força.

—Não sei como um morro pode fazer tudo isso — refletiu Roland. — Não se pode lutar contra um morro.

—Não — concordou Malebron. — Estamos lutando contra o nosso próprio povo. As trevas não precisam ter uma forma. Usam as formas de outras coisas. Apoderam-se delas. Este monte e suas pedras são muito antigos, pertencem a um passado remoto, mas foram construídos para derramamentos de sangue e, assim, ficaram propensos ao mal.

Roland sentiu-se pequeno naquele monte, e um calafrio percorreu seu corpo.

—Preciso encontrar os outros primeiro — disse ele.—Não faz diferença — retrucou Malebron.—Faz sim, eles vão poder ajudar mais, são mais velhos. E tenho

de encontrá-los de qualquer maneira.—Não faz diferença — insistiu Malebron. — Escute. Você viu os

quatro castelos de Elidor. Cada um deles foi construído para guardar um Tesouro, e cada um dos Tesouros contém a luz de Elidor. Os quatro Tesouros são as sementes da chama que deu origem a toda esta terra. Mas Findias, Falias e Murias foram tomados e seus Tesouros estão perdidos. Você tem de salvar esses Tesouros. Só você pode salvá-los.

— Onde eles estão? — perguntou Roland. — Você disse que há quatro Tesouros, então onde está o outro?

—Sob minha guarda — respondeu Malebron. — A Lança de Ildana de Gorias. Três castelos foram destruídos, três Tesouros estão no

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monte. Gorias ainda resiste. Você irá a Vandwy e trará a luz de volta a Elidor.

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• 5 •

O Monte de Vandwy

Estavam ao pé do monte.— Como é que se entra aí? — indagou Roland.— Pela porta

—Que porta? Só estou vendo mato.—É por isso que você está aqui — explicou Malebron. — A porta

está escondida, mas você pode encontrá-la.—Como? — perguntou Roland.—Faça a porta aparecer. Pense nela. Force-a a aparecer com a

sua mente. O poder que, em seu mundo, é algo apenas fugaz, aqui é tão real quanto uma espada. Não temos nada parecido. Agora, feche os olhos. Consegue ver ainda o monte em seus pensamentos?

—Consigo.—Há uma porta no monte — disse Malebron. — Uma porta.—Que tipo de porta? — perguntou Roland.—Não faz diferença. Qualquer uma. A porta que você conhecer

melhor. Pense no contato de sua mão nela. No som que ela faz. A porta. A única porta. Precisa vir. Faça-a vir.

Roland pensou na porta da casa nova. Viu as pequenas bolhas na pintura, a portinhola de latão com a palavra "Cartas" destacando-se no metal polido. Ontem mesmo, tinha sido ele quem a limpara. Era estranho uma porta daquelas na encosta de uma colina.

—Estou vendo.—Está aí? É firme? Pode tocá-la? — indagou Malebron.

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—Acho que sim — respondeu Roland.—Então, abra os olhos. Ela ainda está aí.—Não. Só estou vendo um morro.—Ela está aí! — exclamou Malebron. — É uma porta de verdade!

Você a construiu com sua mente! Sua mente existe! Você pode ver a porta!

Roland fechou os olhos de novo. A porta tinha um pórtico de tijolos e havia ao lado uma trepadeira que subia pelo telhado de ardósia. Roland fechou os olhos com tanta força que começou a ver luzinhas coloridas dançando sob suas pálpebras, e todas elas tinham a mesma forma da entrada do pórtico. Não precisava mais pensar na porta: só via aqueles minúsculos arcos flutuantes e, atrás deles, imóvel, o pórtico de verdade, retangular, sólido.

— O monte precisa se abrir! Não pode ocultar a porta!— Sim — disse Roland. — Ela está aí. A porta. De verdade.— Então, olhe! Agora!Roland abriu os olhos e viu o desenho da porta impresso no

musgo, fantasmagórico naquela colina sombria. Enquanto olhava, o desenho tremulou e, sem chegar a mudar realmente, transformou-se em outra porta: pálida como a luz da Lua, cinzenta como a madeira do freixo; um arco quadrado e baixo, um dólmen de pedra formado por três lajes maciças — uma, horizontal, apoiada em duas outras, verticais. Sob a soleira havia um degrau esculpido com motivos em espiral que pareciam girar sem sair do lugar e pelo vão da porta vinha uma luz que se espalhava até os pés de Roland.

—A porta ficará aberta enquanto você a mantiver em sua memória — explicou Malebron.

—Você não vem? — perguntou Roland.—Não. Essa luz significa morte em Elidor. Não fará mal a você,

mas esteja preparado. Temos conhecimento de que há algo implacável aí dentro, apesar de não sabermos o que é.

O dólmen abria-se para um corredor que seguia em linha reta para dentro da colina.

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—Você vai ficar me esperando aqui? — certificou-se Roland.—Sim.—Estou com medo.Pensar em entrar por aquela abertura estreita na terra quase o

sufocava de aflição. Estaria cercado por rochas, entre paredes apertadas, e haveria uma enorme quantidade de terra acima de sua cabeça, por cima dele, pesando, esmagando-o. Seria esmagado pelas paredes. Chegava a sentir um gosto de terra na boca.

—Não consigo — disse ele. — Não consigo entrar aí. Quero que me leve de volta. Não tenho nada a ver com isso. Este mundo é seu, não meu, e tudo está morto.

—Não! — exclamou Malebron. — Gorias ainda vive! Mas o castelo dourado já era uma imagem enevoada namente de Roland, e seu fulgor estava distante demais para aquecer a lividez do monte.

— Procure outra pessoa! Não eu! Não tenho nada a ver com isso!—Tem, sim — disse Malebron. — Nossos mundos são diferentes,

mas estão ligados de várias maneiras misteriosas, e a morte de Elidor teria reflexos em seu mundo.

—Não me importo! Não tenho nada a ver com isso!—Tem, sim — insistiu Malebron. Sua voz era dura. — Sua irmã e

seus irmãos estão dentro do monte.Roland viu a luva caída, agora solta, perto das espirais cinzentas

do degrau.—Eles entraram no monte, um de cada vez — disse Malebron. —

O tempo tem outro ritmo aqui.—O que aconteceu com eles? — perguntou Roland.—Eles fracassaram. Mas você é mais forte do que todos eles.—Não sou, não.—Aqui, em Elidor, você é mais forte.—Tem certeza?—Muito mais forte. Você irá.—Está bem — concordou Roland.

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Agora que não tinha escolha, o pânico passara.— Leve esta lança — recomendou Malebron. — O último Tesouro

para a última tentativa. Vai ajudá-lo muito mais do que supõe sua lâmina.

Roland segurou a lança. Havia fogo circulando nas profundezas do metal e um arco-íris no gume afiado.

—Quais são os outros Tesouros? — perguntou Roland.—Uma espada, um caldeirão e uma pedra. Além deles, não confie

nem acredite em nada mais. E não pense duas vezes antes de usar a lança, pois é pouco provável existir algo em Vandwy que possa ser bom.

A luminosidade dentro do monte era esbranquiçada e suave, e parecia não vir de lugar nenhum, o que tornava o corredor indistinto, sem textura nem sombras. Não havia nada em que Roland pudesse concentrar o olhar. Às vezes, tinha a sensação de que não estava saindo do lugar; outras vezes, que tinha percorrido uma distância enorme, muito maior do que se tivesse atravessado o monte de um lado a outro. Quando olhava para trás, não enxergava a entrada em meio à luz densa.

Começou a perceber que havia um som, ou melhor, a lembrança de um som. Não era alto o bastante para ser ouvido, mas ele sacudia a cabeça de vez em quando para interromper o ritmo de cinco ou seis notas que se repetiam muitas vezes, como gotas d'água. E notou pequenas mudanças na textura da luz, quase como o tremular de um pedaço de seda, que acompanhavam o ritmo da beleza sem alma, cristalina, daquele som que ele não podia ouvir.

O corredor continuava. Roland já estava preocupado. Algo estava errado, ou então ele perdera toda a noção de rumo.

—Onde é que isso acaba? — falou em voz alta, mais para ouvir a própria voz do que para fazer uma pergunta. E então parou. Com as suas palavras, havia surgido uma breve falha na luminosidade, uma pequena mancha que desapareceu num instante.

—O fim do túnel — disse Roland.

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E surgiu novamente: um triângulo de luz, dentro da própria luz, um arco.

"O fim... do... túnel", Roland concentrou o pensamento naquela imagem com todas as suas forças e mais uma vez o arco apareceu, agora mais definido. "Fique... aí."

Já podia respirar normalmente sem que a imagem estremecesse e, à medida que Roland avançava, o arco se aproximava, cravado na pedra, e Roland passou por ele. Viu-se dentro de uma câmara arredondada, com o formato de uma colméia.

— Helen!Ela estava sentada com David e Nicholas no chão da câmara, os

três olhando para o alto.— Toque nele, Roland — pediu Nicholas. — Ouça o som que faz.— Quero ouvir outra vez — disse David. Suas vozes eram

monótonas e frias. Roland olhou para cima.Era a coisa mais delicada e mais maravilhosa que jamais vira.Na ponta de um fio que pendia do teto abaulado, estava um galho

de flores de macieira. O galho era de prata e as flores, de cristal. Os veios das folhas e das pétalas pareciam fios trançados de mercúrio.

— É lindo! — exclamou Roland.— Toque nas flores, Roland.— A gente ouve música quando toca nelas.— A música mais linda do mundo.— É lindo! — repetiu Roland.— Toque nelas.— Nas flores.— Toque.O galho estava tão imóvel que pareceu oscilar sob o olhar fixo de

Roland, e havia no ar uma fragrância de som, uma música que Roland mal podia ouvir, uma leve e evanescente harmonia de pétalas.

— Toque nelas, Roland.Se ele tocasse nelas, haveria música no ar, a música brotaria do

cristal, e ele ouviria...

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— Toque.Se pudesse alcançá-las... O galho estava mais próximo agora. Se

Roland ficasse na ponta dos pés e esticasse o braço para cima com sua lança...

Mas, quando Roland ergueu a lança, sua cabeça encheu-se de milhares de pontos de luz amarela e então, com a dormência do choque, baixou o braço.

— Toque nas flores, Roland.— Toquem vocês! — disse Roland. — Por que vocês mesmos não

tocam? Não podem?Olhou novamente para cima. O galho descia em sua direção

como se fosse uma aranha pendurada em um fio.— Vou tocar nelas! — exclamou, e brandiu a lança.O ar explodiu em sons discordantes, o estrondo de notas

desencontradas repercutindo nas paredes, despedaçando-se, morrendo, e tudo escureceu. Helen gritou, mas era a voz da própria Helen, não aquela voz sem alma de antes.

— Onde você está? — perguntou Nicholas.— Estou vendo uma luz — disse David.— É a minha lança — falou Roland. — Vou mantê-la levantada.

Vocês estão machucados?— Não, estamos bem — anunciou Nicholas. Correram todos na

direção da lança e agacharam-se em torno dela. — O que está acontecendo?

— Estamos dentro do monte — respondeu Roland. — Vocês não se lembram de nada?

— Dentro do monte? — replicou David. — É... os Tesouros. E Malebron. Mas tinha uma luz...

— Eu despedacei o galho de macieira.— Um galho de macieira em flor... estava olhando para ele. Pus a mão nele... e depois... não lembro mais... não consigo lembrar...— Os Tesouros... — interrompeu Roland — ... vocês encontraram

os Tesouros?

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— Não.— O que é aquilo? — perguntou Helen. — Ali.— E lá? — acrescentou David. — E ali do outro lado também?Pouco a pouco se haviam acostumado à luz produzida pela lança

e já conseguiam distinguir melhor a parede de pedra da câmara. Havia quatro arcos abertos. Um deles estava escuro: era a entrada para o corredor. Nos outros, porém, havia um brilho suave.

— Fico aqui tomando conta — decidiu Roland. — Vão vocês olhar o que são esses arcos.

— Aqui dentro é uma sala pequena — disse Helen.— Aqui também...Quando se curvaram para passar pelos arcos, suas sombras

adejaram pela câmara como se fossem morcegos. E, durante algum tempo, tudo ficou silencioso. Roland estava sozinho perto da entrada do corredor, segurando a lança erguida. Depois, as sombras começaram a mover-se outra vez em sua direção e, saindo dos arcos de pedra, lentamente, sem uma palavra, os outros três aproximaram-se e a escuridão fechou-se atrás deles.

Na mão de David havia uma espada desembainhada. A lâmina era como gelo puro e o punho, todo de jóias e fogo.

Nicholas segurava uma pedra brilhante, dourada, que parecia incandescente por dentro.

Helen vinha trazendo uma vasilha redonda: um caldeirão com a borda toda ornada de pérolas. E , à medida que ela andava, a luz ondulava e transbordava do caldeirão, correndo por entre seus dedos como se fosse água.

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• 6 •

A balada do bobo da corte faminto

as como é que passamos da igreja para o castelo? — perguntou David.— M

As crianças estavam sentadas perto de Malebron, na crista do monte, longe da colina redonda. O arco em forma de dólmen estava esverdeado de limo; as pedras da avenida estavam caídas e empenadas, como as estacas de uma cerca velha. Ainda havia nuvens deslocando-se sobre a planície, mas já se podia sentir o ar mais vivo, e as silhuetas de Findias, Falias e Murias delineavam-se douradas contra o céu, como se o nascer do sol estivesse próximo.— Não é fácil passar do seu mundo para este — explicou Malebron —, mas há lugares em que eles se encontram. A igre ja e o castelo, por exemplo. Ambos foram maltratados pela guerra e agora a terra ao redor deles estremece com a destruição. Foram desligados violentamente de seus mundos.— Mas o violino... e aquele som que ouvi... o que era aquilo? — perguntou Roland.— Todas as coisas têm o seu som, a sua nota própria, e podem responder a ela.

—Assim como uma taça de vinho tilintando?—Sim — afirmou Malebron. — E, quando a igreja respondeu ao

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som, passou a existir em dois lugares ao mesmo tempo: havia a igreja verdadeira e o eco dela mesma. No entanto, era mais do que apenas um eco, pois você abriu uma porta aqui, mas nenhuma porta se abriu em seu mundo.

—Você pode fazer isso sempre que quiser? — perguntou Helen.—Não. Só se encontra essa oportunidade por puro acaso. Em

terrenos desertos, em limites, fronteiras. Lugares que não são nem uma coisa nem outra, sem importância. São as portas de Elidor.

—Não é engraçado como as coisas acontecem? — observou Roland. — Vejam só: se não tivéssemos ido ao centro de Manchester hoje, se não tivéssemos feito aquela brincadeira com o mapa, se a turma da demolição não tivesse saído para lanchar... todas essas coisas bobas acontecendo exatamente na hora certa... e tudo acabando deste jeito.

As crianças olharam para os quatro Tesouros que reluziam em suas mãos: a espada, a pedra, a lança e o caldeirão.

—Um para cada um — disse David.—Sim — confirmou Malebron. E pegou o violino e o arco sob sua

capa. Trazia-os a tiracolo pendurados em um cordão onde também estava presa uma pequena sacola. Ele a abriu, tirou de dentro um embrulho comprido e começou a desenrolar as diversas camadas de um tecido fino impregnado de óleo, que tinha sido usado como impermeabilizante. Alisava cada uma das camadas e a colocava de lado antes de remover a seguinte.

Era um livro muito velho, feito de pergaminho. As folhas eram duras e grossas, lustrosas e enrugadas pelo tempo.

Malebron abriu uma das páginas do livro e mostrou-a para as crianças.

Nada do que acontecera até então a Roland comparava-se com a surpresa que teve naquele momento.

Olhava para uma página escrita numa língua que não conhecia. No alto da folha, havia uma gravura em que ele pró-prio aparecia, tendo Helen, Nicholas e David a seu lado. As

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figuras eram rígidas e parecidas com bonecos, com tudo fora de escala, mas era impossível não reconhecê-los. Estavam próxi-mos uns dos outros segurando os Tesouros, com uma expressão perplexa no rosto e os pés voltados para baixo. Perto deles, via-se uma colina redonda com um dólmen aberto na encosta e, ao lado, uma outra figura, menor do que as das crianças: Malebron. Com os braços abertos e segurando o violino numa das mãos e o arco na outra.

— Estamos até com os Tesouros certos — observou Roland. Na gravura, ele segurava uma lança; David, a espada; Helen, o caldeirão; e Nicholas, a pedra.

Malebron apontou para o texto escrito e leu:

E eles virão das ondas.E a Glória de Elidor passará com eles.E a Escuridão não findará.A menos que soe a Canção de Findhorn.Aquele que anda por Altos Caminhos.

— Quem foi que escreveu isso? — perguntou David. — E como é que ele sabia?

— Este livro foi escrito há tanto tempo — explicou Malebron — que só sabemos alguma coisa sobre ele através de lendas. Uma lenda conta que havia antigamente em Elidor um certo camponês, um débil mental, que costumava ter ataques. Porém, quando tinha esses ataques, falava com clareza, e dizia-se que era capaz de fazer profecias. Tornou-se tão famoso que foi levado para a corte do rei, onde afirmou que um dia morreria de fome cercado de fartura, o que de fato aconteceu: acabou sendo trancado numa despensa e ali morreu. Seja como for, suas profecias foram escritas neste livro, que se chama A balada do bobo da corte faminto.

Com o passar dos anos, era lido apenas por diversão, por

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seus absurdos. Entretanto, quando as profecias começaram a se cumprir, quando os primeiros vestígios da escuridão começaram a penetrar em Elidor, vi que não eram absurdos o que o livro contava, mas fragmentos confusos de um sonho, um sonho que nenhum homem normal suportaria sonhar, uma lembrança consciente do que viria a acontecer. Desde então, tenho me esforçado muito para descobrir a verdade escondida em A balada do bobo da corte faminto porque, sabem, eu ignorava tudo o que acabei de contar a vocês a respeito de nossos dois mundos. Precisei descobrir sozinho, fazendo experiências e refletindo, indagando o tempo todo: será que isso é verdade e, se é verdade, como é possível? Compreendem, então, o que sig-nificou para mim encontrar a nota certa que fazia a igreja res-ponder, ver Findias desmanchar-se no ar, entrar em seu mundo e ver vocês, que eu já conhecia há tanto tempo, correrem em minha direção em meio àqueles escombros?

— Foi como se tudo o que aconteceu antes levasse a isso — disse Roland. — Não dá para saber quando começou. Tudo trabalhando em conjunto, encaixando-se como os dentes de uma engrenagem. Quando girei o tambor com os nomes das ruas, eles tinham de parar naquele ponto exato...

Exatamente naquele momento, ele sentira que estava sendo observado.— Lembre-se, eu disse que os dois mundos estão interli-gados — completou Malebron. — E que o que vocês fizerem aqui irá refletir-se de algum modo, em algum momento, em seu próprio mundo.— Espere um pouco — pediu Roland. — Pode ler de novo aquele trecho do livro?

E eles virão das ondas.E a Glória de Elidor passará com eles.E a Escuridão não findará.

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A menos que soe a Canção de Findhorn.Aquele que anda por Altos Caminhos.

— Estamos aqui achando que já salvamos Elidor e que, agora que você recuperou os Tesouros, tudo vai acabar bem — disse Roland. — Mas o livro não está dizendo que as coisas agora vão piorar em vez de melhorar?— É verdade — concordou Malebron. — Não estamos no fim, mas no começo. Porém, com os Tesouros, podemos manter Gorias e sair dali para reconquistar os outros castelos. Então, teremos quatro ilhas de luz em meio à escuridão, e talvez alguns de nós um dia ainda vejam a Floresta de Mondrum cobrir-se de verde outra vez.— Quem é Findhorn? — perguntou Roland.— Ninguém sabe — respondeu Malebron. — Existem montanhas desertas no norte distante, nos confins do mundo, que antigamente se pensava serem habitadas por demônios.

Acho que essas montanhas é que são os Altos Caminhos citados no livro. Entretanto, ninguém mais se lembra de Findhorn nem da Canção e, agora que os Tesouros estão em segurança, posso ir à procura dele. Já provei a sabedoria do Bobo da Corte Faminto, e isso me dá coragem para tentar prová-la novamente.

Desceram a colina para a Floresta de Mondrum e seguiram por suas trilhas enlameadas na direção de Findias. O percurso pareceu a Roland muito mais curto do que quando o fizera sozinho, talvez porque Malebron soubesse aonde estava indo e os estivesse guiando diretamente para lá.

Os Tesouros rodeavam-nos com uma esfera de cor que avançava com eles, de modo que, ao se aproximarem de uma árvore, esta passava de cinzenta a avermelhada, depois adquiria as tonalidades pálidas do inverno até mergulhar novamente na luz mortiça da floresta quando eles se afastavam.

Só conseguiram ver Findias quando alcançaram o campo

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aberto abaixo da floresta, a cerca de oitocentos metros do cas-telo, mas, a essa distância, os contornos dourados não apare-ciam. Enxergavam-se, isso sim, suas ruínas, com todos os deta-lhes, como se as crianças e Malebron estivessem espiando por um buraco no vidro sujo de uma janela.

Quando estava quase chegando à ponte levadiça, Roland virou-se para olhar mais uma vez para Elidor.

— Malebron! Alguma coisa aconteceu... na crista do monte.A crista do monte só era visível acima das copas das árvo-

res, assim como o cone achatado do Monte de Vandwy, com a avenida que saía dele. Os blocos de pedra da avenida, que eles haviam deixado caídos e desarrumados, estavam outra vez eretos, pontiagudos, agressivos e ameaçadores. Enquanto olhavam, um feixe escuro, semelhante à luz negra de um holofote, projetou-se do monte.

— Corram! — gritou Malebron. — Fui orgulhoso demais, Vandwy recuperou-se do golpe!

O feixe descreveu um círculo, varrendo o céu e a terra e, antes que as crianças alcançassem a ponte levadiça, envolveu-as e prendeu-as sem possibilidade de fuga.

O ar ficou denso como a água. Arrastava-se pelas pernas e pelos braços, obstruía-lhes os pulmões e emitia uns filamentos escuros que as mãos não podiam sentir ou afastar, mas que pareciam arames espetando suas mentes enquanto seguiam ata-rantadamente.

— Pensem na luz do Sol! Em campinas, em flores de cores vivas! Pensem! Não deixem a noite penetrar em suas mentes!

Malebron andava ao lado das crianças, estimulando-as a ir adiante. Movimentava-se livremente, sem ser afetado pelas trevas.

— A força de vocês agora transformou-se em fraqueza! Vandwy enviou o Medo para que vocês dêem forma a ele! Todas as formas serão reais, assim como a porta era real! Não deixem

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que venham!Mas o medo já se havia instalado nas crianças: um entor -

pecimento que minava sua força de vontade. E logo começaram a ouvir na floresta a movimentação de seus perseguidores, que eles mesmos estavam criando com suas mentes.

Atravessaram a ponte lentamente. Aqueles poucos metros foram os mais longos de todo o percurso. Tão perturbada estava a visão das crianças pelos filamentos escuros do ar que de repente viram a ponte levadiça projetar-se para longe como um píer acima do mar, e o castelo transformar-se num pontinho distante para onde convergiam as linhas das tábuas do chão.

A ponte ficou mais alta e mais estreita. Depois, fez uma curva acentuada para a esquerda; em seguida, para a direita; então, para cima, de modo que não podiam andar; depois, para baixo, e estavam no alto de um precipício de madeira, sem coragem de sair do lugar; de repente, retorceu-se completa-mente, e eles acharam que seriam atirados pelos ares. Durante todo o tempo, Malebron lutava por suas mentes.

— A-ponte-é-segura! Vocês-não-podem-parar! Pensem! Andem!

Chegaram à casa do portão. Quando estavam entrando pelo pátio, um vulto saltou de dentro da floresta, algo que andava sobre duas pernas mas não era um ser humano, e atrás dele as árvores corriam e uivavam.

As crianças caíram no chão do pátio: o poder de Vandwy sobre elas tinha diminuído.— Levem os Tesouros! — exclamou Malebron.— Não! Você precisa deles!

— Nós estamos encurralados. Levem os Tesouros para o seu mundo, que fiquem guardados lá. Estarão em segurança. E, enquanto estiverem livres, a luz deles não morrerá em Elidor e poderemos viver.

— Venha conosco! — pediu Helen.

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— Não posso. Preciso vedar o portão. Não posso deixar que ninguém vá atrás de vocês pela fortaleza. Fiquem longe daqui, vão para o outro lado.— O que vamos fazer com os Tesouros? — perguntou Roland.— Somente guardá-los, nada mais. E, se por acaso fracas-sarmos aqui, a luz de Elidor pode continuar viva para, quem sabe, um dia acender-se novamente em outros mundos.

Malebron apoiou o violino no ombro e começou a tocar, a tocar cada vez mais rápido, até que as notas se fundissem numa só e penetrassem nas crianças, eliminando as trevas de suas mentes, arrebentando os fios de Vandwy com a dor. A fortaleza absorveu a nota do violino, a superfície de suas pedras perdeu a rigidez e enrugou-se como uma pele.

— Vão agora! — gritou Malebron. — Vão!As muralhas próximas à casa do portão já fervilhavam de

vultos.— Malebron!— Vão!As crianças passaram cambaleando pela entrada da forta-

leza. O chão tremia tanto que mal podiam ficar de pé, os dentes se entrechocavam, as paredes eram uma neblina de sons, o reboco caía do teto como se fosse neve. Uma abertura apareceu à frente, e uns foram puxando e empurrando os outros para chegar lá e passar entre duas tábuas cruzadas e pregadas nela, e correram, tossindo, sufocando, para fora, para o quarteirão demolido da Rua da Quinta-Feira.

A nota do violino ainda soava. Todos os tijolos da igreja abandonada estalavam, rangiam um de encontro ao outro. Jorrava poeira de cimento das juntas.

— Cuidado! — berrou Nicholas. — Está caindo! Todos os sons aumentaram até uma altura insuportável, as paredes arquearam-se para fora e a igreja ruiu com um gemido

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estrondoso de destruição.— Roland! Os Tesouros! O que foi que aconteceu com eles?Mas Roland estava com os olhos fixos no amontoado de

ruínas da igreja e não respondia.— Está tudo bem — disse ele afinal. — Está tudo bem.

Vamos poder esconder os Tesouros agora.As crianças ficaram paradas diante dos escombros enquanto

a poeira ia assentando. A tarde estava no fim. Lá longe, uma mulher passava empurrando um carrinho de bebê.

Roland tinha na mão um pedaço de barra de ferro. Nicholas, uma pedra de uma das arcadas da igreja. A espada de David eram duas ripas de madeira lascadas e presas por um prego. E Helen segurava uma velha xícara rachada com uma decoração na borda que imitava pequenas contas redondas.

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• 7 •

Propriedade da companhia

gente não poderia tomar conta dos Tesouros se ainda estivessem como eram antes — observou Roland.— A

As crianças ouviram vozes gritando. Vários homens tinham saído de uma loja na esquina da rua do terreno baldio e estavam correndo para a igreja. Mas ninguém se mexeu: não deveria ter nada a ver com elas.

— Eu pego vocês! Desta vez eu pego vocês!Os homens estavam pálidos de susto. O primeiro que chegou

agarrou Nicholas pela gola e sacudiu-o.— Cês tavam lá dentro? — gritou ele.— Solte a minha gola! — protestou Nicholas.— Qué me responder? Tinha algum de vocês lá dentro?— Chega, Paddy, já chega — pediu um dos homens, o maior deles. Usava um cinto de couro coberto de emblemas do Exército e parecia ser o capataz.— Pois muito bem, então — disse ele para todas as crianças. — Quero uma resposta clara. Algum de vocês estava lá dentro quando ela caiu?

— Não — respondeu Nicholas.O capataz suspirou de alívio e a cor voltou ao seu rosto. Agora já

podia ficar zangado.— Já avisei uma porção de vezes a vocês todos, a todos os

garotos daqui — frisou ele —, mas vocês não aprendem, não é? Só

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vão sossegar quando um acabar morrendo. Olhe aqui, isso vai acabar agora mesmo, é pra já. Tá parecendo que os pais de vocês não conseguem resolver este caso, então vamos ver o que a polícia vai fazer.

— É a primeira vez que a gente vem aqui...— Cale essa boca — ordenou o capataz. — Deixe de ser atrevido.— Ei, chefe — disse o irlandês que estava segurando Nicholas —, não é melhor dar logo uns tapas neles?— Não, Pad, isso é pouco, não adianta, não dá para ser bonzinho com esses garotos. Eles acham que ser bonzinho é ser bobo. E a gente tem de tomar alguma providência. Você já sabe o que é que vai acontecer quando um deles se machucar, não sabe? Vão dizer que foi uma "Grande Negligência da Firma", é isso que vão dizer, "Precauções Insuficientes", e outras besteiras assim. Como se fosse pouco o que a gente já tem de agüentar. Como se não bastasse o "Dano Intencional Comprometendo a Segurança da Equipe", os "Danos às Ferramentas e às Instalações da Empresa", "Furto", por aí vai. Ei, Jack, vai dando uma olhada por aí enquanto a gente resolve isso.— Tá bem — falou um garoto de boné xadrez na cabeça, calças jeans e uns sapatos de bico fino cobertos de lama.

Ele começou a conferir as ferramentas.— Tá tudo aqui. Ei, peraí! Alguém levou minha bola de futebol!— E aí, querem me explicar? — perguntou o capataz voltando-se

para as crianças.—Desculpe — disse Roland. — Está... está lá dentro.—Não diga — retrucou o capataz, irônico.—Dei um chute e ela entrou pela janela, aí fomos lá pegar.—Custou uma nota, aquela bola! — exclamou Jack.

— A gente está sem dinheiro aqui — explicou David —, mas podemos trazer depois.— Ah, é? Vou dar um exemplo do que vai acontecer com vocês, só um exemplo — disse o capataz. — Vocês com certeza também não

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devem saber nada sobre o chumbo do telhado que sumiu ontem de noite, não é?— Claro que não — respondeu Nicholas.— "Claro que não." Pois é, então depois a gente vê isso, não é? Agora, podem ir largando aí esses pedaços de sucata e me seguir. Vamos já pra polícia. Mão firme nesse grandão aí, Jack; ele deve ser o cabeça.— Não precisa — disse Nicholas. — Nós vamos com você. Vamos esclarecer tudo.— É isso aí — confirmou o capataz. — Agora vão largando essa tralha.— Não — protestou Roland.— Como é que é?— Nós não roubamos essas coisas. Elas são nossas.— Olhe aqui, garoto, eu não quero discutir — falou rispidamente o capataz. — Vocês vão pôr tudo de volta direitinho onde encontraram.— Essas coisas não são suas.— "Posse Ilegal de Propriedade da Companhia" — acusou o capataz —, além de "Invasão de Propriedade Particular" e "Dano Propositado". Não tem graça nenhuma, meu chapa.

Eram cinco homens, além de Jack. Eram fortes e de constituição pesada. Jack era o único que parecia ser capaz de correr bem.

— Lembra o que aconteceu com o galho de macieira? — Roland cochichou para Nicholas.— Hum... lembro — respondeu Nicholas.— Tem certeza?— Tenho.

— Agora! — berrou Roland, e girou a barra de ferro, primeiro para cima, acertando o cotovelo do irlandês, depois para baixo e para o lado, nas canelas de Jack, e saiu correndo.

Em meio à algazarra que se formou lá atrás, Roland ouviu o ruído pesado das botas dos operários no chão e ao mesmo tempo uns passos mais leves vindo atrás deles, mas logo o som das botas foi

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sumindo.— Continuem correndo! — gritou Helen. — Estamos todos aqui! E

os Tesouros também!As crianças pararam quando chegaram à primeira rua. Apenas

três dos homens tinham tentado pegá-los, mas desistiram e agora estavam voltando para perto do capataz, que agitava os braços para o irlandês e para Jack.— Espero que eles não estejam machucados — disse Roland. — Mas não tinha outro jeito, não é? Não dava para contar tudo a eles, vocês não acham?— Se você tiver juízo — acrescentou Nicholas —, não vai abrir a boca sobre isso para ninguém. Nunca; a não ser que queira ser internado num hospício.— Vocês acham que ele vai mesmo chamar a polícia? — perguntou Helen.

— Tenho minhas dúvidas — respondeu Nicholas. — Muito menos agora, que nos perderam de vista. Mas vamos em frente, só para garantir.

Já estava escuro quando as crianças chegaram à Avenida Oldham, e as calçadas estavam cheias de gente.

— Foi uma sorte termos vindo por este caminho! — exclamou Helen, desaparecendo por trás de uma porção de homens de terno e gravata e reaparecendo com sua xícara junto ao peito para evitar que fosse esmigalhada.

David e Roland tiveram menos trabalho com a barra de ferro e as ripas de madeira, exceto por alguns resmungos aborrecidos das pessoas que chegavam muito perto deles. Nicholas, porém, estava passando maus bocados com sua pedra, que apoiava ora em um lado dos quadris ora no outro, e seus lábios já estavam pálidos com o esforço de carregá-la.

A multidão diminuiu quando chegaram ao saguão da estação.— Vai chegar um trem daqui a dez minutos — avisou Helen.A multidão se dividia nos portões de acesso. Nicholas balançava o

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corpo, apoiando-se numa das pernas e equilibrando a pedra no joelho enquanto procurava as passagens no bolso.

— Tome, David — disse ele. — Segure as passagens. David entregou as passagens ao condutor, e tão entretido

estava este com seu perfurador que nem olhava para cima. Demorou um tempão para reparar em David.— O que é que está acontecendo aqui? — perguntou.— Essas são as nossas passagens — explicou David.

— É, estou vendo. Mas vocês não estão achando que vão viajar no trem nesse estado, ou estão?

As crianças olharam umas para as outras. Estavam cobertas de lama da Floresta de Mondrum, além do reboco, da fuligem e da poeira dos tijolos da igreja.

—Podemos viajar de pé — sugeriu David.—De jeito nenhum — replicou o condutor.—Mas nós pagamos.Uma fila impaciente estava se formando atrás deles. As pessoas

resmungavam, batiam com os pés, olhavam para os relógios.— Dêem o fora daqui — ordenou o condutor. — E levem esse lixo

com vocês. Não sei como têm coragem de tentar entrar. Tem um guarda ali perto da banca de livros. Será que vou ter de gritar por ele? Hein? Acho bom. Andem. Sumam daqui.

As crianças saíram da fila e passaram longe do policial.—— O que vamos fazer agora? — perguntou Helen.— Ir em frente até a plataforma onze — respondeu Roland. —

Podemos atravessar a passarela lá adiante, no final, e sair na nossa plataforma.

— Mas ninguém vai nos deixar entrar — lembrou Helen.— Ninguém vai nos ver — replicou Roland. — É a plataforma para

onde vão os caminhões de carga, e tem uma entrada para eles ao lado do portão de acesso.

— Mesmo assim vão nos ver.— Vão estar ocupados demais para ficar prestando atenção em

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tudo. Na próxima vez que um desses troles passar por aqui puxando sacos do correio, andem ao lado dele com a cabeça abaixada e, quando chegarem do outro lado, metam-se no meio da multidão.— Pronto — disse Roland, alguns minutos mais tarde. — Até que foi fácil.— Ele está com uma coragem! — caçoou Nicholas. — De onde veio isso assim tão de repente?— Você bem que ficou satisfeito com a coragem dele hoje à tarde — rebateu David.

— Já pensou na desculpa que vamos dar em casa para essa sujeira toda?— Nossa, ainda não — respondeu Nicholas. — A coisa está séria, hein? Tenho uma idéia: você e eu nos lavamos em um dos banheiros do trem e Helen e Roland no outro. Tem sempre dois banheiros no último vagão.— Tudo bem. Mas só vamos ter uns dez minutos para fazer isso.

Quando o trem chegou, as crianças entraram rapidamente no vagão traseiro e trancaram-se nos banheiros.— Não tem rolha para tapar o ralo da pia — advertiu Helen.— Torça uma toalha de papel e enfie no ralo — sugeriu Roland.

Havia muito pouco sabonete. Helen e Roland lavaram-se freneticamente, usando as toalhas de papel para tirar a lama. No entanto, apesar de ser áspero, o papel não era resistente. Des-pedaçava-se e grudava, cobrindo tudo com bolotinhas úmidas.

A velocidade do trem aumentou. As crianças eram jogadas para lá e para cá, contra as paredes do pequeno banheiro, esbarravam uma na outra e chocavam-se contra a pia, que jogava água nelas a cada solavanco. Mal havia espaço para se verem no mesmo espelho; logo estavam até os joelhos de toalhas de papel molhadas.

Em dez minutos, só o que conseguiram foi aumentar aquela aparência de selvageria. A pele estava limpa apenas em alguns pontos, contrastando com a sujeira da lama e da poeira.

Sob a luz do poste da estação, inspecionaram-se para ver como

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estavam. A casa deles ficava a apenas uns cinqüenta metros rua acima.— Em vez de melhorar, pioramos — comentou David. — Cada um vai ter de tomar pelo menos uns seis banhos.— Será que a gente vai conseguir ir até o banheiro sem ninguém nos ver? — indagou Roland.— Vamos tentar — disse Nicholas. — Mas vai ter briga de qualquer maneira. Não vai dar para esconder essas roupas.— Tomara que ainda não tenham tirado do lugar a chave do depósito de carvão — disse David.

Uma chave da casa ficava sempre guardada numa saliência acima da porta do depósito de carvão. Ainda estava lá. As crianças contornaram a casa até a janela da sala e ficaram ouvindo.

— A televisão está ligada — avisou David. — Estão vendo um daqueles filmes de faroeste de que papai gosta.

— Ótimo. Bem barulhentos.— Venham atrás de mim — disse Nicholas. — E vou trucidar o

primeiro que tossir.Enfiou a chave na fechadura e esperou até começar um tiroteio

para abrir a porta. Havia no ar um cheiro acre e úmido quando entraram. Nicholas tateou a parede procurando o interruptor da luz e o ligou com cuidado.

O chão do vestíbulo e os degraus da escada estavam cobertos de jornais. Toda a mobília já havia ido embora, e também o globo da lâmpada.

Nicholas fechou a porta e dirigiu-se para a escada, com os outros atrás. Já estavam começando a subir quando ouviram a mãe chamar de lá de dentro:

— Nick, é você?— Foi o interruptor! — exclamou David. — Sempre faz a imagem da televisão pular!— Continuem subindo — disse Nicholas; e, mais alto, para a mãe:

— Sou eu, mãe, já voltamos!

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Mas não adiantou. A porta da sala de estar se abriu e lá estava a senhora Watson, com milhares de peles-vermelhas sendo dizimados ao fundo.

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• 8 •

Cabeça quente

icholas já era bastante crescido para não ter juízo. O que é que ele tinha na cabeça, deixando os irmãos ficarem naquele estado? Será que não percebera que todas as

roupas já estavam nas malas e nas caixas para a mudança? Sua mãe tinha coisas demais para fazer. Será que não dava mais para acreditar que eles iriam se comportar direito quando saíssem sozinhos? E com certeza havia outras maneiras melhores ainda de passar o tempo do que ficarem andando pelas favelas como se fossem vagabundos.

NA televisão estava na sala vazia, no meio das caixas da mudança.

A caixa de papelão a ela destinada jazia aberta ao lado, no chão. O volume do som tinha sido diminuído no começo da briga e, como acompanhamento de fundo havia um contraponto abafado de tiroteio e carga de cavalaria. E, embora a imagem estivesse bastante ruim, os olhos de todos desviavam-se a todo instante para a tela mesmo nos piores momentos da descompostura.

— E que lixo é esse? — perguntou a senhora Watson.

— Umas coisas que... que nós encontramos — respondeu Roland.

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— E trouxeram para cá? Deus do céu, filho, o que é que falta vocês fazerem hoje? Levem essas coisas já para fora. Nem sabem de onde isso veio.

As crianças escapuliram para o banheiro enquanto a mãe abria as caixas à procura de mudas de roupas limpas.

No banheiro de casa, lavar-se foi muito mais fácil do que quando tentaram fazê-lo no trem, mas a lama e a poeira do reboco estavam tão impregnadas nos cabelos que foi difícil lavá-los.

— Onde é que vocês puseram os Tesouros? — perguntou Helen.— No depósito de carvão — respondeu Roland.— Como é que vamos enfiá-los no caminhão de mudanças amanhã?— Não vamos.— Mas não podemos deixá-los para trás!— Claro que não — disse Roland. — Só que esta casa vai ficar vazia pelo menos por um mês. Vamos esconder os Tesouros aqui e, quando encontrarmos um lugar seguro para eles na casa nova, voltamos para pegá-los.— Onde é que vamos escondê-los, então? — perguntou Helen.— No alçapão do nosso quarto — respondeu Nicholas.— Boa idéia — disse David. — Ninguém vai procurar lá dentro.

Na parede do quarto dos meninos, que ficava no sótão, havia uma portinhola que dava para o espaço entre as vigas do teto e o telhado. Era pequena demais para que um adulto entrasse ali sem ter um bom motivo.

— E quando mamãe se acalmar um pouco, talvez a gente possa contar tudo a ela; ou pelo menos pedir que nos deixe guardar os Tesouros em casa — ponderou Roland. — Vão melhorar se a gente fizer uma limpezinha neles.

—Não acredito muito nisso, não — replicou Nicholas. — Mamãe teve razão em ficar com a cabeça quente hoje, e tão cedo não vai esquecer o que houve. O que é que vamos dizer a ela? E quem é que

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vai contar? Se dissermos: "Mamãe, entramos numa igreja velha e saímos por um outro lado num lugar diferente, e essas coisas aqui são na verdade quatro Tesouros valiosos", o que é que vai acontecer? Você sabe como ela detesta mentiras.

—Mas isso é verdade — salientou Roland.—E você acreditaria se não tivesse acontecido com você?—Acreditaria... se eu confiasse na pessoa — respondeu Roland.—Bom, talvez você acreditasse mesmo — disse Nicholas. — Mas

uma pessoa normal não acreditaria.—Não podemos dizer que são para alguma coisa que um de nós

está fazendo na escola? — sugeriu Helen.—Mas aí não seria verdade.—Ah, Nick...—Você já tentou contar uma mentira à mamãe? — perguntou

Nicholas.—Então, o que é que vamos fazer?—Não sei — respondeu Nicholas. — Temos de dar um jeito nisso

sozinhos. Ninguém vai poder nos ajudar.

Com a confusão da manhã seguinte, foi fácil as crianças esconderem os Tesouros atrás da parede do quarto. Roland espre-meu-se pela portinhola e colocou-os entre duas vigas, onde não podiam ser vistos.

Por fim, a porta traseira do caminhão de mudanças foi fechada e as crianças seguiram de carro com seus pais à frente do caminhão.

A casa nova ficava a apenas dez quilômetros de distância. A senhora Watson referia-se a ela como uma casa de campo, o que realmente talvez tivesse sido cem anos antes, mas agora ficava num bairro residencial na periferia da cidade, e sua porta principal, com o pórtico, dava para um caminho de pedestres.

Era um chalé de tijolos com quatro cômodos e uma cozinha formando um anexo lateral, mas a senhora Watson tinha mandado construir um banheiro e mais um quarto em cima da cozinha. As

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velhas lareiras negras tinham sido raspadas e revestidas de cerâmica amarela, com exceção da lareira da sala, que o próprio senhor Watson havia forrado de tijolos crus.

A senhora Watson tinha procurado em lojas de antiguidades enfeites de arreios de latão para pendurar nas paredes e encontrara também três quadros com bordados em ponto de cruz, duas lanternas de carruagens antigas e um mapa do condado, colorido à mão e emoldurado, com data de 1622.

O chalé ficava perto da estação de trem, o que possibilitava ao senhor Watson ir para o trabalho em Manchester com facilidade, mas, ao mesmo tempo, por estar situado num bairro da periferia, havia campos abertos a menos de um quilômetro de distância. Era uma casa muito menor do que a que haviam deixado, mas a senhora Watson argumentava que valia o sacrifício para que as crianças pudessem crescer no campo.

A primeira coisa que Roland viu quando o carro entrou na rua foi o pórtico da casa.

Por um instante, pensou que algo fosse acontecer. O pórtico não combinava mais com aquele lugar: agora, pertencia a Elidor. Vira-o com tanta clareza no monte que, comparado com o outro pórtico, este, agora, parecia apenas uma cópia desbotada. E se, quando abrissem a porta, houvesse ali um corredor iluminado por uma luz mortiça...

— Cá estamos — disse a senhora Watson. — Sejam bem-vindos, todos vocês.

Havia jornais no chão, mas aquele cheiro desagradável já estava indo embora.

Estabeleceram uma base na sala próxima à cozinha, que era a sala de jantar, segundo a senhora Watson, mas as crianças diziam que era a sala do meio. A escada ficava em um dos seus lados com a despensa embaixo.

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Os móveis foram descarregados na sala de estar, onde ficava a porta da frente, sem vestíbulo, que se abria para o pórtico e dava diretamente para o caminho de pedestres.

No fim do dia, já era possível ter uma mesa onde comer, podiam ver televisão e dormir.

As crianças foram cedo para a cama. A escada dava acesso direto ao quarto dos meninos, e por isso resolveram reunir-se no quarto de Helen, que, por ser novo, tinha uma porta que fechava bem.

— É melhor decidir logo o que vamos fazer para manter os Tesouros em segurança — recomendou Roland.— Vamos guardar tudo numa caixa de chumbo e enterrá-la — disse Nicholas.— Não, tem de ser um lugar onde possam ser apanhados rapidamente — explicou David —, caso Malebron precise deles de volta a qualquer momento.— Não acho que ele vá precisar mais deles — replicou Nicholas. — É melhor encararmos a realidade desde já. Vocês viram aquelas coisas que saíram da floresta e estavam subindo pelas muralhas. Ele não deve ter tido a menor chance.

—Também pensei nisso no começo — disse Roland. — Mas acho que deve ter tido, sim. Você reparou uma coisa em Malebron quase no fim? Ele não estava assustado, nem horrorizado, estava era animado; como se o mais importante de tudo fosse nos mandar para cá por aquela porta.

—É isso mesmo — concordou Helen. — Ele não estava nem um pouco preocupado consigo mesmo; queria, na verdade, que os Tesouros ficassem em segurança.

—Não sei — refletiu Roland. — Ele disse que era o Medo que estava saindo do monte e que nós é que estávamos dando forma a todas aquelas coisas com a nossa imaginação. Bom, ele tinha razão, porque eu já tinha visto algumas delas antes.

—Ah, você, com toda a certeza! — zombou Nicholas.

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—Aquele pássaro com braços — disse Roland — e aquela coisa com o rosto no meio do peito estão naquelas gravuras da sala de arte da minha escola. Vocês sabem quais são: aquelas em que todo mundo está sendo jogado no inferno.

—E você viu aquele magro e alto coberto de cabelo, aquele com um nariz comprido? — perguntou Helen. — Lembro de ter sonhado com ele quando era pequena, quando tomei um susto com o casaco de pele de raposa da mamãe.

—Aonde é que vocês querem chegar? — quis saber David. — Estão querendo dizer que aquelas coisas só eram de verdade enquanto estávamos lá, com medo delas?

—E que assim que fôssemos embora de Elidor todas elas desapareceriam? — completou Helen.

—Acho que sim — respondeu Roland.—Espero que sim — disse Nicholas. — Mas é provável que a

gente nunca consiga descobrir.

— E o que é que a gente vai fazer com os Tesouros? — indagou David. — Que tal arranjar um lugar especial para eles, um lugar secreto, que ninguém mais saiba qual é?— Não acho muito bom — duvidou Roland. — Se ficarem longe de nós, nunca vamos saber se estão em segurança.— Seria mais fácil convencer a mamãe se tivéssemos uma espada de verdade para mostrar a ela — observou David —, e não duas varetas de pau.— Mas você não notou? — perguntou Roland. — Quando estamos segurando os Tesouros, sentimos a forma verdadeira deles. Só por fora é que parecem ferro-velho.— Ah, não sei, não — disse Nicholas. — A sua lança pode ser diferente, mas uma pedra é sempre uma pedra quando se tem de andar com ela para cima e para baixo.

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• 9 •

Estátis

oland decidiu ir buscar os Tesouros ao fim da primeira semana no chalé. Todas as sextas-feiras, ele trazia suas roupas de ginástica da escola para casa numa mochila, na

qual haveria espaço mais do que suficiente para a xícara e a pedra, e os outros Tesouros ele poderia carregar sem problemas.

RTeria de ser Roland porque ele era o único que ia para a escola

de trem. Desceria na estação que ficava perto de sua antiga casa, pegaria os Tesouros e tomaria o próximo trem para casa.

Era esquisito descer na estação com os passageiros de sempre — outras crianças da escola e homens de negócios já velhos e ricos o bastante para saírem do escritório às três e meia da tarde —, correr escada abaixo e, em vez de encontrar a luz do vestíbulo acesa através do vidro da porta da frente, ver as janelas vazias e uma placa com um cartaz de Vende-se atrás da cerca da casa.

Quando Roland abriu o portão, percebeu o quanto certas coisas que faziam parte da sua vida não haviam mudado junto com ele para o chalé. Como os sons próprios que uma casa tem: o ruído daquele portão, de seus passos no caminho da entrada. Não importa para onde fosse, nunca levaria aquilo com ele. Contudo, já havia algo de diferente na casa depois de apenas uma semana de ausência. Roland sentia uma espécie de desconforto por estar ali, quase que uma inquietação, e, quando chegou à porta, a sensação tornou-se de repente tão forte que sua nuca latejou e as palmas das mãos

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formigaram.

Era uma sensação muito próxima do medo, no entanto Roland não estava com medo... então, a porta se abriu à sua frente assim que enfiou a chave na fechadura.

Havia um homem de pé na penumbra do vestíbulo.

— O que é que você quer, filho? — perguntou o homem, com o sotaque duro e monótono de Manchester.

— Na... nada — respondeu Roland.

O homem estava usando um macacão e carregando material elétrico. Assim que Roland notou isso, ficou mais tranqüilo.

— Eu morava aqui. Mudamos de casa na semana passada e voltei para pegar umas coisas.

— Que coisas?— Ah, só umas bobagens.

— Por acaso você é um desses fanáticos por rádio? — indagou o homem. — É muito perigoso mexer no que a gente não conhece bem, sabe. Você pode acabar se machucando.— Ah, não — disse Roland. — Meu irmão é quem gosta, e meu outro irmão tem um equipamento de som, mas eu não sou muito bom nisso.— Sei... — resmungou o homem. — Tem alguma coisa estranha por aqui... que tem, tem.— Que coisa estranha? O que é que está acontecendo? — perguntou Roland.

— Bom — respondeu o homem —, a semana inteira não paramos de receber reclamação dessas ruas por aqui sobre interferência no rádio, na televisão e numa porção de outras coisas. Choveu reclamação. E aí eu e o meu colega viemos pra cá hoje à tarde com o nosso detector, e o sinal que a gente recebe desta casa não dá pra ter dúvida. Tem alguma coisa aqui que tá interferindo em tudo que é freqüência e em um monte de outras coisas, pode apostar.

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— Mas o relógio da eletricidade foi desligado — disse Roland.— Eu sei — confirmou o eletricista. — Tive de ir buscar uma chave com o corretor de imóveis e dei uma olhada no disjuntor e nos fios. Não é isso, não; é como se tivesse um gerador trabalhando aqui a todo vapor; e põe vapor nisso.— Dá para saber de que parte da casa vem? — perguntou Roland.— Que nada. É forte demais. As agulhas dos aparelhos batem no máximo e ficam malucas assim que a gente liga eles. Vamos ter de voltar amanhã de manhã e tentar de novo. Pode ser que seja só uma esquisitice passageira, mas eu duvido.

Virou a cabeça e olhou para a escada.

— E vou dizer uma coisa pra você: esta casa tá cheia de estátis.— De quê?— Estátis: eletricidade estática. E vou dizer outra coisa: não posso fazer terra pra descarregar ela! Já pensou? Onde é que já se viu uma coisa dessas?— Eh... ah, é? — balbuciou Roland.— Já imaginou? Não posso fazer terra! — repetiu o eletricista. — E agora?

— Nossa! — exclamou Roland, já que o homem parecia insistir numa resposta.— Nunca vi uma coisa assim, nunquinha. É de endoidar qualquer um.

A caminhonete dos eletricistas foi embora no lusco-fusco do anoitecer, deixando Roland sozinho no vestíbulo da casa. O eletricista aconselhara-o a não acender a luz, por precaução, porque podia haver algum defeito nas conexões elétricas que ele não tivesse descoberto. Mas Roland não pretendia ser visto, por isso tinha levado uma lanterna consigo.

O ar no interior da casa estava tão seco que fazia ruído quando ele se movia. Uma faísca azul estalou ao apoiar-se no corrimão enquanto subia as escadas, e teve a impressão de que seu cabelo

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estava todo arrepiado. Cada vez que tocava em alguma coisa, produzia faíscas.

"Deve ser a eletricidade de que ele estava falando", pensou Roland.

Foi para o sótão. Os lábios e a boca de Roland formigavam com a doçura metálica do ar. Mas pensou que aquilo talvez estivesse acontecendo porque estava na parte de cima da casa. Ajoelhou-se para abrir o alçapão.

Havia um forte cheiro de ozônio no espaço sob o telhado. Os Tesouros estavam exatamente como os havia deixado. Roland contorceu-se para passar pela portinhola e entrou para pegá-los, apoiando-se de lado nas vigas para não furar o gesso do teto que ficava entre elas.

A poeira fina que cobria tudo não se levantava quando ele a tocava. Estava tão carregada de estática que se agarrava nele como se fosse pêlo. Roland tinha a sensação de que estava rastejando por cima de um animal.

Veio trazendo os Tesouros aos poucos, de uma viga para outra, passando-os depois para dentro do quarto e arrastando-se para fora em seguida. Embrulhou a pedra em sua camiseta de jogar futebol e a xícara numa toalha; depois, virou-se para fechar o alçapão. E, à luz da lanterna, viu a sombra de dois homens na parede do sótão.

Depois do primeiro sobressalto de terror, Roland não se mexeu. Via cada detalhe da pintura da parede, ouvia cada som dentro da casa e da rua lá fora. Mal respirava; sua cabeça trabalhava tão depressa que cada segundo se multiplicava por dez.

As sombras não eram de ninguém que estivesse dentro do quarto. Era pequeno e vazio demais para alguém estar ali sem ser visto. E eles teriam de estar entre a luz da lanterna e a parede para que suas sombras se projetassem.

"Este quarto era meu. Não há nada aqui para me assustar. Não

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são sombras, são marcas na parede. De umidade, porque a casa está vazia."

Aproximou-se. O tamanho das sombras permaneceu o mesmo. Sombras achatadas na parede: imóveis, pontiagudas e negras.

"É uma ilusão de ótica. Vou fechar os olhos e contar até dez. Ou então é por causa da eletricidade estática. Uma esquisitice passageira, como disse aquele homem."

Roland fechou os olhos mas ainda continuava a ver as duas figuras, desta vez como se fosse um negativo: amarelas, contra o fundo negro de suas pálpebras. Abriu os olhos: preto sobre amarelo. Fechou-os: amarelo sobre preto. Tão nítidas quanto antes. Sacudiu a cabeça, os homens sumiram e depois reapareceram. Virou a cabeça devagar para um dos lados e voltou à posição anterior.

Via as sombras com os olhos fechados somente quando estava de frente para a parede.

Roland abriu os olhos e apagou a lanterna. Na escuridão do sótão, as sombras amarelas adquiriram tamanho natural. O ar estava fervilhando de minúsculas faíscas, mais concentradas na silhueta das sombras, como partículas de ferro atraídas por um ímã.

Agora, a força do quarto parecia manter a cabeça de Roland numa mesma posição, de modo que ele não conseguia desviar os olhos. Uma dormência espalhava-se por seus braços e suas pernas e, em sua mente e à sua volta, sentia ou ouvia um ruído alto, estridente, intenso, e as faíscas fundiram-se e transformaram-se numa chama azul que contornava as duas sombras.

Roland obrigou-se a acender a lanterna, mas essa chama ainda assim aparecia, mesmo com a lanterna acesa, e a cor negra das sombras parecia mais sólida do que a própria parede. As sombras estavam ficando independentes da parede, sendo recortadas pela chama azul. Surgiam ao mesmo tempo na frente e atrás da parede. Estavam deixando de ser apenas sombras e transformando-se em buracos negros no ar, buracos no espaço.

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Roland percebeu que, se continuasse a olhar por mais um minuto que fosse, alguma coisa irreversível iria acontecer e, pelo fato de estar olhando, ele seria a causa.

Recuou rapidamente, saiu do sótão e desceu correndo as escadas. Um fogo frio acendia-se à sua volta no ar. Desceu os últimos seis degraus e chegou ao vestíbulo sentindo todo o peso da casa oprimindo sua cabeça. Abriu a porta da frente e disparou pelo caminho da entrada sem se virar para olhar. Atrás dele, a porta se fechou com estrondo, que ecoou pela casa vazia e silenciosa.

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• 10 •

Interferência

uando já estava no trem, é claro que encarou tudo de outra maneira. No compartimento bem-iluminado e no meio de outras pessoas, concluiu que há sempre uma explicação

lógica para tudo. Sabia que a estática podia produzir efeitos estranhos e o eletricista tinha dito que a casa estava carregadíssima. Assustara-se porque havia visto sob uma luz muito fraca algo que devia ser bem comum na claridade intensa do dia. "Pare com isso, Roland. Você está sempre imaginando coisas." A frase já era uma piada na família.

Q

Quando chegou em casa, Roland pôs os Tesouros numa prateleira alta na garagem, onde ninguém os notaria até que pudessem ser escondidos em cima do banheiro, entre o teto e o telhado da casa.

A essa altura, quase todo o medo havia passado. Saiu da garagem, encaminhou-se para casa, fechando a porta da cozinha ao entrar, tudo isso bastante rápido, mas já sob a impressão de que o que vira estava ficando muito confuso. Não tinha mais certeza de que as sombras eram realmente sombras; poderiam ser irregularidades na superfície da parede que a luz da lanterna destacara, ou qualquer efeito da poeira e da estática combinadas.

Sexta-feira era o melhor dia da semana. Depois do lanche, os deveres de casa podiam esperar: a primeira nuvenzinha cinzenta de preocupação relacionada a eles só apareceria depois da manhã de domingo. Tinham uma noite inteira pela frente para se divertir.

As crianças se lavavam enquanto a mãe colocava num carrinho

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os sanduíches e o bolo da refeição da noite. O senhor Watson saiu de carro e comprou uma caixa de chocolates para comemorar a primeira semana deles no chalé. Quando voltou, foi buscar carvão no depósito do lado de fora da casa e acendeu a lareira.

— Você trouxe os Tesouros? — perguntou David a Roland.— Trouxe, estão na garagem.

— O que vai passar hoje na televisão, Frank? — perguntou a senhora Watson da sala de estar.— Estou vendo agora, querida — respondeu o senhor Watson.— Você sabe alguma coisa sobre eletricidade estática? — indagou Roland.

— Um pouco — disse David.— Tinha um eletricista lá na casa. Contou que fizeram uma porção de reclamações. Disse que a casa estava cheia de eletricidade estática e...— Vai ter um circo... e uma peça de teatro... e patinação no gelo — disse o senhor Watson.

— Ah, ótimo! Andem, crianças! O circo vai começar daqui a pouco. E vai ter teatro e patinação no gelo.

— ... e que parecia que tinha um gerador ali...— Está bem, mamãe! Estamos indo! — exclamou David. — Um

gerador não produziria estática.— Mas tinha faíscas por todo lado... azuis, pequenininhas...— Não faz mal — interrompeu Nicholas. — Deixa isso para lá.

Papai já ligou a televisão.A família instalou-se perto da lareira. A caixa de chocolates

circulou de mão em mão, a senhora Watson posicionou seu banquinho para descansar os pés, o senhor Watson limpou as lentes dos óculos com uma flanelinha especial impregnada de silicone. Todos estavam sentados à espera.

A primeira coisa que aconteceu foi a televisão dar um uivo eletrônico quando a ligaram, um uivo que subiu de tom até lembrar o rangido de uma faca entre os dentes, depois diminuiu e se estabilizou

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em algo semelhante a um grito desesperado.— É o som da sintonia — disse a senhora Watson.— Não está parecendo, não — discordou David.

— Desligue um pouco, Frank, até que ela esquente — sugeriu a senhora Watson. — Aí vai funcionar direito.

O grito foi diminuindo e converteu-se num cacarejo.— Não é o som da sintonia — declarou David.A televisão piscou e, por um segundo, viram a cabeça e os

ombros de um locutor. Em seguida, foi como se uma motocicleta tivesse passado por cima do rosto dele, deixando a marca das rodas na tela e arrastando o nariz e as orelhas do homem para o lado.

— É o contraste, Frank.O senhor Watson levantou-se contrariado de sua cadeira e

começou a mexer nos controles. Encontrava-se perto demais da televisão para ver se estava resolvendo o problema. Parecia que chovia dentro do estúdio.

— Melhorou — alegrou-se a senhora Watson. — Não! Você mexeu demais! Volte. Ah, não adiantou. Tente para o outro lado.

A tela mudava de um prateado ofuscante para um negrume total atravessado por meteoritos.— Posso tentar, papai? — pediu David.— Não atrapalhe — disse a senhora Watson. — Seu pai sabe o que está fazendo. Agora. Aí. Aí, melhorou.

Ainda estava chovendo, mas já dava para ver alguns cavalos galopando em torno do picadeiro de um circo.

O senhor Watson voltou para a cadeira. Nesse momento, a imagem começou a subir e outra igual veio atrás. Era uma tira comprida e vagarosa de imagens: plop, plop, plop.

— Perdeu o vertical — disse David.O senhor Watson atravessou pesadamente a sala e girou outro

botão com uma irritação contida. As imagens passaram mais devagar. O senhor Watson respirava com força sobre os bigodes. A imagem parou, mas fora do lugar havia uma faixa preta no meio da

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tela; na parte de cima, cascos de cavalos galopando; e na de baixo, cabeças de cavalos e enfeites de plumas balançando.

— Bem devagar — instruiu a senhora Watson. — Está quase, está quase. Ah, foi demais!

A imagem misturou-se, formando um pontilhado. O senhor Watson girou o botão nas duas direções mas não adiantou. Mexeu em todos os controles separadamente e ao mesmo tempo. Ligou e desligou a televisão uma porção de vezes. Tentou outros canais. Nada funcionava.

— Ah, deixa para lá — disse a senhora Watson. — Tinha de acontecer isso logo na sexta-feira.

— Não se preocupe — disse o senhor Watson. — Amanhã de manhã vou telefonar para a assistência técnica bem cedo.— Mas e agora, o que é que nós vamos fazer?— Tem o jornal de hoje, querida, se você quiser dar uma olhada...— Ah, está bem... obrigada.

A senhora Watson pegou o jornal e esforçou-se para lê-lo. A cada minuto, ela virava as páginas com impaciência e batia nelas para colocá-las no lugar como se fossem responsáveis pelo defeito na televisão.

O senhor Watson ficou sentado em sua cadeira com os olhos fixos no fogo da lareira.

David e Roland trouxeram livros de lá de cima para ler.Nicholas começou a remexer numa pilha de revistas.Helen rabiscava a capa de uma das revistas, desenhando um

bigode, uma barba e óculos na fotografia de uma artista de cinema.— Que silêncio! — exclamou ela.— Vou ligar meu rádio — disse Nicholas.— Boa idéia — concordou a senhora Watson. — Traga o rádio para baixo, Nick. Vai ser bom escutar um pouco de música enquanto estamos lendo.— Acho que vou experimentar ligar a televisão outra vez — comentou o senhor Watson. — Nunca se sabe.

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— Não — replicou a senhora Watson. — Só vai fazer você ficar de mau humor. Vamos ouvir rádio e depois trago o lanche. Até que vai ser bom dormir cedo hoje. Foi uma semana muito cansativa.— Você andou mexendo no meu rádio? — perguntou Nicholas da porta. Estava olhando para David, e seu rosto estava vermelho de raiva.— Para que iria querer pegar esse rádio insignificante se montei um rádio de verdade só para mim? — defendeu-se David.— Alguém mexeu — insistiu Nicholas. — Foi algum de vocês dois?— Eu não fui — respondeu Roland. — O que houve com ele?— Ouça — disse Nicholas, apertando o botão de seu rádio portátil. Um chiado intenso aumentava e diminuía e havia uns estalidos ao fundo que abafavam a transmissão. — Faz o mesmo barulho em todas as estações. Estava funcionando hoje de manhã. Quem foi que estragou meu rádio?— Espere um minuto — pediu David. Pôs o livro de lado e correu escada acima.— Juro que não mexi no seu rádio — disse Helen.— Ninguém entrou no seu quarto o dia inteiro, Nick — comentou a senhora Watson.— Então, é o segundo enguiço de hoje — concluiu Nicholas. Jogou-se na cadeira e abriu uma revista com um repelão.— Meu rádio também está enguiçado! — gritou David do andar de cima. — Deve ser uma tempestade magnética.— Será que foi por isso que a televisão enguiçou? — perguntou a senhora Watson.— Não — respondeu David. — Não tem nada a ver uma coisa com a outra.

Ninguém sossegava muito tempo na mesma posição. Não era natural ficarem todos juntos e quietos na mesma sala.

Havia uma tensão no silêncio, como se um relógio tivesse parado.O senhor Watson folheava um catálogo de jardinagem. Assobiava

baixinho, mas logo parou.

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Cada pequeno movimento fazia alguém se dispersar daquilo que estava fazendo e cada som era irritante. Então, em meio ao silêncio, ouviu-se o ruído de um motor de carro. Deu um soluço com um dos cilindros, hesitou, e os outros cilindros começaram a funcionar em seguida. O senhor Watson abaixou o catálogo.

—É o nosso carro — afirmou ele. — Bobagem, Frank.—Estou lhe dizendo, é o nosso carro!Puxou a cortina que protegia a porta de entrada das correntes de

ar, abriu o trinco e saiu correndo de pantufas para a calçada.— Frank! Você vai se resfriar!Todos saíram atrás do senhor Watson e deram com ele parado

diante da porta trancada da garagem. Lá dentro, percebia-se o ruído do motor do carro, quase morrendo.

— Vá buscar uma lanterna e a chave, Nick — pediu o senhor Watson.

O motor pegou outra vez.— Quem pode ser? Como ele entrou aí? — quis saber a senhora Watson.— Não sei, meu bem — respondeu o senhor Watson. — É muito estranho.

—Talvez seja um fantasma — observou David.—David! — repreendeu-o a senhora Watson.—Ah, meu Deus! Será que é? — alarmou-se Helen.

— Claro que não. Está vendo o que é que acontece quando você diz essas bobagens, David?— Desculpe, mamãe — arrependeu-se David. — Estava brincando.

Mesmo assim, depois que Nicholas trouxe a chave e o senhor Watson destrancou a garagem, todos sentiram um arrepio na espinha quando a porta foi aberta.

O carro estava envolto em uma névoa de fumaça que vinha do escapamento. Não havia ninguém na garagem. A ignição estava desligada e a chave estava no bolso do senhor Watson. Ele sentou-se no banco do motorista e, com a testa franzida, olhou para o painel.

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— Bom... — disse ele, tentando compreender. — Ah...— O que foi, papai? — perguntou Nicholas.— Não desliguei o afogador.

O senhor Watson apertou um dos botões. O motor parou.— Devia estar deixando passar um pouco de gasolina, que fez o motor pegar — explicou ele. — Pronto, agora todos para dentro que aqui está muito frio! O mistério está resolvido! Vamos!— Mas, papai — Roland ouviu David dizer enquanto ajudava o pai a fechar a porta da garagem —, mesmo assim, seria preciso virar a chave na ignição para o motor pegar, não é?

Se o senhor Watson respondeu, Roland não ouviu.Com a história do carro, meia hora se passara. Era bom vir do

escuro lá de fora e voltar para perto do fogo. Reuniram-se todos ao redor da lareira para aquecer as mãos e conversar sobre a apreensão que tinham sentido diante da porta fechada da garagem.

Mas o calor do fogo dispersou-os para suas pequenas ilhas particulares na sala. O senhor e a senhora Watson ficaram sentados em suas poltronas, um de frente para o outro. David e Roland, sem sapatos e cada um lendo um livro, competiam por um espaço no sofá. Nicholas estava sentado num pufe de couro lendo as colunas de anúncios de todas as revistas. Helen desenhava cabeças de perfil voltadas para a esquerda. Nunca conseguia desenhá-las voltadas para a direita. A noite ia se escoando devagar.

— Ouça! — exclamou a senhora Watson. — O que foi isso?— Não estou ouvindo nada — respondeu o senhor Watson.— É lá em cima.

A família inteira parou para escutar.— É mesmo — confirmou Helen. — É... uma espécie de zumbido.— Então cale a boca um minuto — ordenou David. — Não estou ouvindo... Ah, é mesmo...— Vá ver o que é, Frank — pediu a senhora Watson. — O aquecedor de água pode não estar ligado direito.— E depois podemos lanchar? — perguntou o senhor Watson. —

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Não seria mau fazer uma boquinha.Seus passos lentos e pesados faziam a escada ranger.

— O que será que seu pai está fazendo há tanto tempo lá em cima? — indagou a senhora Watson depois de vários minutos. — Será que foi se deitar? Seria bem do feitio dele.— Não — replicou Roland. — Está vindo aí. E o barulho está mais alto também.

O senhor Watson desceu tão devagar quanto tinha subido. Parou à porta da sala. Seu rosto tinha uma expressão de incredulidade total. Em uma das mãos, segurava seu barbeador elétrico. O barbeador estava funcionando, apesar de o senhor Watson estar com a ponta solta do fio na outra mão.— É o meu barbeador — declarou ele.— Ué, e não dá para fazer esse barbeador parar? — perguntou a senhora Watson. — Por que você não o desliga?— Já está desligado. Funciona na tomada.— Ora, não é possível, Frank! Ele não está ligado em nada. Deve haver um jeito de desligar.— Não há, meu bem. Só funciona ligado na tomada.— Então, o que está acontecendo com ele agora?— Não tenho a menor idéia, meu bem.

O senhor Watson pôs o aparelho sobre a mesa. A vibração fazia o barbeador girar como se fosse a cabeça de uma tartaruga.— Estava dentro do estojo dele em cima do armário de remédios. Quase caiu de lá. Levei um tempão para conseguir pegar o danado.— Muito estranho, não é? — observou Nicholas. — A energia deve estar vindo de algum lugar, a não ser que ele esteja com defeito.— O barbeador não está com defeito nenhum — retrucou David. — Está funcionando perfeitamente.

— Não estou gostando nada disso — disse Helen. — Parece que ele está... vivo.

— Está mal-assombrado.— David! — exclamou a senhora Watson. — Não quero que você

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fique botando essas idéias na cabeça dos outros! Você sabe muito bem que sempre costuma existir uma explicação bem simples para tudo. É evidente que tem alguma coisa errada com esse barbeador. Vamos levá-lo amanhã para uma oficina especializada e mandar um eletricista verificar o que há com ele.

—Vou embrulhar numa toalha e colocar num lugar qualquer — resolveu o senhor Watson —, senão vamos ficar malucos com esse barulho. Ora, vejam só, eu jamais poderia imaginar...

—Bem, agora que todos nós nos levantamos, vamos lanchar — sugeriu a senhora Watson. — Roland, quer fazer o favor de trazer o carrinho com as xícaras e os pratos? Vou pôr a água da chaleira para ferver.

—Mamãe pode dizer o que quiser, mas eu ainda acho tudo isso muito esquisito — murmurou David.

—David, chega — pediu o pai.—Mas é verdade, papai. Não há outra explicação. As coisas não

começam a funcionar sozinhas. É preciso algo que...Um grito da senhora Watson interrompeu-os. Correram para a

cozinha e encontraram-na de olhos fixos no liqüidificador, que rodopiava a toda velocidade.

—Desliguem isso aí! — gritava a senhora Watson.—Está desligado, mamãe — esclareceu Nicholas, e tirou a

tomada da parede para ter certeza. O liqüidificador não parou.—Ele... começou a funcionar sozinho — falou a senhora Watson.

— Eu nem estava perto.— Agora acredita em mim? — perguntou David. Como se lhe

desse razão, o tambor da máquina de lavarroupa começou lentamente a rodar por trás de sua porta de

vidro.— Não é nada, querida — disse o senhor Watson. — Deve haver

um defeito no fornecimento de energia. David, vá desligar a chave de luz e vamos ver o que acontece.

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David abaixou uma alavanca na caixa de luz e todas as luzes da casa se apagaram. Mas o liqüidificador e a máquina de lavar roupa continuaram a funcionar no escuro.

— Muito bem — disse o senhor Watson. — Ligue a chave novamente para acender as luzes.

O lanche não foi dos melhores. A senhora Watson estava preocupada, mas o senhor Watson disse que não havia nada a fazer por enquanto e que todos deveriam tentar dormir. Não era um defeito no fornecimento central, por isso não havia perigo. De qualquer forma, traiu-se ao colocar em seu quarto uma cama de armar para Helen. Ninguém queria ficar sozinho.

De início, os meninos tentaram conversar quando já estavam deitados em suas camas, mas o pai chamou a atenção deles, pedindo-lhes que fossem dormir. Assim, ficaram acordados pela noite afora escutando o barulho das máquinas. Às duas da manhã, o liqüidificador queimou. Mas o tambor da máquina de lavar roupa continuou rodando. As crianças e seus pais permaneciam de olhos abertos, fixos no escuro.

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• 11 •

A última pá de terra

que é que você estava resmungando ontem à noite, Roland, antes que o papai mandasse você calar a boca? — perguntou Nicholas.— O

— Sei qual é a causa disso tudo — disse Roland. — São os Tesouros.

A senhora Watson tinha ido para a cama com dor de cabeça. Tinha posto chumaços de algodão nos ouvidos para não ouvir o barulho da máquina de lavar roupa. O senhor Watson estava tendo dificuldades para encontrar um eletricista: ou os telefones estavam ocupados ou era obrigado a dar longas explicações.— Não sei como estão fazendo isso — comentou Roland —, mas estão. Malebron disse que ainda continuariam sendo uma fonte de luz para Elidor mesmo que estivessem aqui, portanto devem estar gerando alguma coisa.— Geradores! — exclamou David. — É isso mesmo! Os Tesouros podem estar fazendo isso! Roland, você tem razão! Se é como Malebron falou, os Tesouros devem estar gerando energia. E se essa energia estiver atingindo uma certa amplitude de freqüência, pode alterar a recepção das televisões e dos rádios... e ligar os motores elétricos!— Quer dizer que enquanto eu estiver tomando conta de uma pedra não vou poder ouvir meu rádio? — perguntou Nicholas.— Depende da amplitude da energia — respondeu David. — Mas

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provavelmente não vai poder mesmo.— Isso explica o que aconteceu quando fui buscá-los — disse Roland. — O eletricista que estava lá e toda aquela estática.— O eletricista faz sentido — concordou David. — Mas os geradores não produzem eletricidade estática. E, se os Tesouros são geradores...— Tem uma porção de se nessa história — disse Nicholas.— É, mas temos de fazer alguma coisa depressa — concluiu Roland. — Desse jeito, não vamos conseguir esconder os Tesouros por muito tempo. Vão acabar sendo encontrados e tirados de nós. Se a gente não der um jeito de acabar com a interferência que eles estão causando, aposto como hoje mesmo aparece por aí uma outra turma de eletricistas.— A única solução é tentar isolar a eletricidade que eles estão gerando — argumentou David. — Se a gente colocasse os Tesouros numa caixa de metal e a enterrasse, isso iria bloquear a maior parte da interferência caso essa energia seja semelhante à eletricidade; e deve ser, mesmo em Elidor.— É exatamente o que eu disse desde o início — constatou Nicholas. — Cavar um buraco e enterrar esses Tesouros. É uma chatice eu não poder ouvir música. Além disso, estamos parecendo uns patetas arrastando essas coisas para lá e para cá: você e Roland brincando de soldadinho com uns pedaços de ferro e de madeira, Helen fingindo que está num aniversário de boneca, e eu, ora bolas, por que é que estou tomando conta de uma pedra como se fosse uma jóia da coroa?

—Mas Malebron confiou em nós para tomar conta deles — lembrou Roland. — Não podemos fazer isso com ele. E Elidor...

—Você às vezes me tira do sério, sabia? — disse Nicholas. — Tira mesmo. Tudo bem, eu fiquei tão impressionado quanto você quando aconteceu. Mas que lugar é aquele se a gente for pensar bem? Em que é melhor do que o nosso mundo? Só tem lama, poeira e pedras. Está morto, acabado. Foi o que o próprio Malebron disse. E você

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deveria pensar um pouco mais a respeito dele próprio também. Será que ele se importou conosco, no que seria de nós, ou só queria encontrar seus Tesouros? Fez a gente entrar naquele monte, um marchando atrás do outro, mas ele mesmo não quis entrar. Que direito ele tem de nos fazer passar o resto da vida feito... feito galinhas chocas?!

—Mas você viu Malebron — alegou Roland. — Como pode ter esquecido como ele era?

Nicholas encolheu os ombros.—É... — hesitou. — É... ora, tudo bem, não estou dizendo que ele

fosse ruim. Só acho que foi um pouco egoísta.—Chega, parem de discutir — pediu Helen. — Olhe aqui, Roland,

se o David estiver certo, a idéia de Nick é a melhor, mesmo que você não goste dos motivos dele.

—Que barulheira é essa? — perguntou o senhor Watson. Não o tinham ouvido chegar por causa da máquina de lavar roupa. — Vocês sabem que sua mãe está com dor de cabeça.

—Desculpe, papai — disse David. — Arranjou um eletricista?— É tudo muito estranho — respondeu o senhor Watson —, mas

todos os eletricistas com quem falei disseram que receberam chamados à noite e nenhum deles pode vir agora, só à tarde.— Então, não fomos só nós.— Isso está insuportável — reclamou o senhor Watson. — A coitada da sua mãe não dormiu nada essa noite. Vou agora mesmo até a companhia de eletricidade insistir para que façam alguma coisa imediatamente. Isso não pode continuar assim.— Podemos cavar no jardim, papai? — perguntou Helen.— Podem, podem fazer o que vocês quiserem — disse o senhor Watson —, contanto que não incomodem sua mãe. Ela pegou no sono.— Vamos ter de enterrar os Tesouros — falou David logo que o pai saiu. — Se são eles que estão causando toda essa confusão, o pessoal da eletricidade, ou quem quer que seja, vai encontrá-los. É o

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único jeito, Roland.— David e eu começamos a cavar primeiro, depois é a vez de vocês dois — decidiu Nicholas. — Vamos ter de cavar bem fundo, e papai nem vai perceber se voltar antes que a gente acabe.

Helen e Roland foram para o andar de cima da casa e voltaram com quatro sacos plásticos para colocar os Tesouros. Foi difícil tirar o ar de dentro dos sacos para que ocupassem o menor espaço possível. Helen fechou-os com elásticos de borracha e depois amarrou-os com barbante. Roland encontrou uma lata de lixo velha no meio do entulho que tinha sido retirado do chalé e estava amontoado num canto do jardim esperando para ser removido.

Os Tesouros não tinham mudado de aparência: uma pedra, uma barra de ferro, duas ripas de madeira e uma xícara. Roland colocou-os dentro da lata de lixo e prendeu a tampa amarrando-a com um pedaço de fio, uma das sobras do rádio de David.

Quando Helen e Roland entraram no buraco para continuar a cavar, este chegava à altura do peito deles. Os lados eram formados por camadas de terra salpicada de pontinhos, mais escuras no alto, mais claras e arenosas no fundo, com veios escuros compostos de raízes mortas. Havia cacos de louça azul e branca misturados à terra.

— Você já notou como isso é interessante? — perguntou Helen. — Em qualquer lugar que se cave um buraco, aqui na Inglaterra, há sempre milhões de cacos de louça. Era a mesma coisa na outra casa. As pessoas devem jogar louça fora há séculos.

O buraco já chegava à altura da cabeça dos dois, que estavam cavando quase só na areia e mal podiam erguer e esvaziar a pá no monte que se formara em volta do buraco.

—Já está bom — disse David. — É o melhor que podemos fazer por enquanto. Dêem a mão que vamos puxar vocês para fora.

—Está certo — concordou Helen. — Vou mandar para cima a última pá de terra... oh!

Ela tinha enfiado a pá na areia e batido em alguma coisa que se quebrou. Helen ajoelhou-se e pegou vários fragmentos de cerâmica.

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— Ah, acho que era um vaso inteiro! — exclamou ela. — E eu o quebrei. Olhe só, Roland. Ah, não é lindo?

Limpou um dos pedaços com a mão. A cerâmica era de um marrom-cremoso, com um matiz azulado na camada vitrificada, e viam-se a cabeça e as patas da frente de um unicórnio delineadas em vermelho-escuro.

— Nossa, deve ter séculos de idade — comentou Roland.—Vou colar os pedaços — disse Helen. — Ah, que pena ele ter se

quebrado todo! Daria qualquer coisa para não ter batido nele com a pá!

—Vão nos pegar em flagrante se vocês não andarem depressa — alertou Nicholas.

Helen e Roland foram puxados para fora do buraco e a lata de lixo foi colocada lá dentro. Empurraram a terra de volta com a pá e com chutes, depois a achataram batendo com os pés na superfície.

— Pronto — disse Nicholas.Quando entraram na cozinha para limpar as mãos, a máquina de

lavar roupa tinha parado.

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• 12 •

A caixa do correio

s eletricistas vieram, examinaram a casa e foram-se embora. O senhor Watson fez um canteiro de flores no lugar onde os Tesouros estavam enterrados. Passou-se um ano.O

E, durante todo esse tempo, Roland evitou passar pela porta da frente. Achava que nunca estaria inteiramente seguro de que aquela porta era de fato a entrada e a saída do chalé. Tornou-se uma mania, como andar equilibrando-se no meio-fio da calçada.

Helen colou o vaso que havia encontrado no buraco. Era uma espécie de jarro grande e quebrara-se em cinco pedaços. Passou horas juntando e colando os cacos. Quase chorava quando pensava no que tinha feito. O jarro ficara enterrado tanto tempo e, se tivesse tido um pouco mais de cuidado, ainda estaria inteiro. Agora era tarde, nunca mais seria o mesmo.

O unicórnio erguia-se sobre as patas traseiras abaixo do bico do jarro, com o movimento interrompido e imobilizado em seu ponto mais alto. "Mais um instante", pensava Helen, "e ele teria ido embora."

Não apresentava nenhum outro motivo decorativo a não ser duas linhas escritas em grossas letras negras sob a figura do unicórnio:

De homem nem hum sou captivo senão da donzela sem par—O que quer dizer isso, papai? — perguntou Nicholas.—Não sei bem — respondeu o senhor Watson. — É uma espécie

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de poesia; talvez seja o lema de uma família, qualquer coisa parecida com aquele lema escocês: Será ferido quem tentar minha captura.

—O que é uma donzela sem par? — indagou Roland.—É difícil explicar. É melhor vocês procurarem no dicionário.—Você caprichou no conserto do vaso, Helen — comentou a

senhora Watson. — Nem dá para ver as emendas.—Mas eu sei que elas existem — disse Helen.O ano foi passando. Era uma tarde sombria de domingo. Helen e

Nicholas tinham saído para dar uma volta de bicicleta. David e Roland estavam sentados à mesa na sala do meio, revendo a matéria da escola daquele semestre. Pela janela, viam o pai e a mãe no jardim. O senhor Watson plantava umas mudas de roseira.

Roland tentava concentrar-se em seu livro de História. Tinha de ler vinte páginas e descobriu que estava prestando mais atenção ao número da página do que ao texto escrito nela. As palavras do livro acabaram transformando-se num batalhão em movimento e sua mente desviou-se delas, primeiro para a toalha da mesa e depois para a janela. Viu que David desenhava nas margens de seu caderno.— A revisão é a pior época do semestre, você não acha? — reclamou Roland. — A gente pensa que sabe tudo, mas não sabe... e não consegue assimilar porque já ouviu aquilo tudo antes e acha tudo batido e sem graça.— Não consigo me acostumar a não ter um jardim na frente de casa — comentou David. — Cada vez que alguém passa pela calçada eu acho que está vindo para cá. E essa porta está me deixando maluco.— Ah, é? — perguntou Roland. — Por quê?— Não pára de zumbir — respondeu David. — Você não notou? Deve ser o tráfego que faz essa porta vibrar. Com esse zumbido e a calçada tão perto da casa não dá para pensar direito, nem aqui dentro.— Esse pórtico, essa entradinha coberta aí antes da porta, nunca me agradou — disse Roland. — Foi por ele que eu entrei no monte, e

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desde então parece que não combina com esta casa.— O quê? — perguntou David. — Entrou onde?— No monte — respondeu Roland. — Em Elidor.— Ah, sei — disse David.— Que "Ah, sei" é esse? — Roland estava irritado. — Será que você já esqueceu? Em Elidor, David, em Elidor!— Tudo bem — concordou David. — Não precisa gritar para a rua inteira ouvir.— Elidor — insistiu Roland. — Por que é que não se pode mais falar sobre isso? Você e o Nick sempre mudam de assunto quando eu começo a falar sobre Elidor.— Nós dois achamos que você deveria deixar um pouco de lado essa história de Elidor — justificou David.— Você ficou maluco! — exclamou Roland.— Calma, Roland — disse David —, a gente já andou falando sobre isso.— Não me lembro, não — falou Roland.— O Nick disse que você ia ficar nervoso e ia acabar saindo briga, por isso não contamos nada a você.— O engraçadinho do Nick! — exclamou Roland. — Isso e bem típico dele! Muito obrigado!— Está vendo só? — observou David. — Você já começou a gritar.— Mas você está querendo fingir que isso não é importante — falou Roland. — Será que não liga mais para nada daquilo, Malebron e os Tesouros, o castelo dourado e... e... o resto todo?— Roland, escute aqui — começou David —, o Nick não é tão burro assim quanto você pensa. Uma porção de coisas que ele diz até que fazem sentido, mesmo que nem sempre eu ache que ele tenha razão.— E o que é que ele diz, então? Que Elidor não existe, que a gente estava sonhando?— Mais ou menos — respondeu David.— Ele está de miolo mole.

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— Não, ele tem pensado no assunto mais do que nós todos — explicou David. — E andou lendo uns livros. Disse que pode ter acontecido o que ele chama de "alucinação coletiva", talvez por causa do choque, depois que a igreja quase caiu em cima da gente.— Quer dizer que aquela lama toda que tivemos de tirar do corpo também foi uma alucinação coletiva — ironizou Roland.— Pois é, eu sei — disse David. — Mas acho que ele pode ter razão sobre os Tesouros. Faça um esforço para lembrar.

Quando a igreja balançava toda a nossa volta e não podíamos ver o que fazíamos, e caíamos para um lado e para outro, e tudo sacudindo tanto que nem sabíamos onde estávamos, isso foi verdade ou não foi?— Acho que sim.— Bom — continuou David —, mesmo que estivéssemos segurando os Tesouros de verdade, eles poderiam ter caído das nossas mãos e nós poderíamos ter agarrado aquelas outras coisas sem perceber.— Eu não agarrei — protestou Roland.— Mas é possível — disse David.— Se você é capaz de acreditar nisso, pode também acreditar nos Tesouros — argumentou Roland. — E como é que você explica o que aconteceu depois? A televisão, o barbeador do papai e a sua teoria sobre os geradores?— É, aquilo foi meio esquisito, mesmo — concordou David. — Mas pode ter sido só uma coincidência. E, de qualquer maneira, isso já foi há muito tempo. E nunca mais aconteceu nada.— Mas aí é que está! — exclamou Roland. — Foi porque enterramos os Tesouros! Se eles forem desenterrados, vai começar tudo de novo!— Não acredito muito nisso, não — disse David. — Agora que papai fez seu canteiro de flores premiadas naquele pedaço do jardim, quem mexer ali está praticamente morto.

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David e Roland olharam para o jardim. Roland ia continuar o que estava dizendo, mas o que viu ali o fez parar.

O senhor Watson encontrava-se agachado a pouca distância da muda de roseira que tinha acabado de plantar. Havia outras por perto com as raízes envoltas em sacos. Com muita cautela, como se fosse um boxeador, aproximou-se de lado do canteiro. Estendeu uma das mãos e encolheu-a. Aproximou-se, e mais ainda... depois pulou para trás como se a planta o tivesse mordido. As crianças viram-no fazer isso duas vezes, e então largaram os livros e correram para o jardim.

— O que foi, papai? — perguntou David.A essa altura, a senhora Watson já se aproximara do marido e os

dois olhavam atentamente para a muda de roseira.— É essa Senhora A. R. Barraclough — respondeu o senhor Watson. — Está me dando choques.— Choques?!— Não é bem um choque, mas ela faz um barulho quando tento tocá-la, e aí sinto uma espécie de alfinetada na mão.

— Seu cabelo está todo arrepiado também, Frank — comentou a senhora Watson. — Que interessante! Olhem só, David e Roland, deve estar vindo uma tempestade por aí — ela pôs a mão perto da roseira e todos ouviram um estalido seco.

— Tome cuidado, querida — alertou o senhor Watson.— Não tem problema, papai — disse David. — Isso é eletricidade

estática.Roland correu por todo o jardim encostando a mão em arbustos,

árvores, muros e cercas.— Aqui está normal — avisava ele. Voltou para o canteiro de flores e estendeu a mão. Um estalo. — É só aqui — e olhou fixo para David.— Vá depressa lá dentro ver se os copos estão caindo, Roland — pediu a senhora Watson. — Tomara que o temporal não pegue Helen e Nick no caminho.

Roland entrou em casa. Tinha o rosto afogueado e a respiração

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acelerada.O barômetro estava pendurado na parede da sala de estar.O ponteiro posicionava-se um pouco acima de onde estivera no

dia anterior.— Coincidência! — exclamou Roland. — Pois sim!Enquanto examinava o barômetro, a porta da frente estremeceu,

ressoando com um zumbido curto, não muito alto, mas perceptível. Roland ouvira aquele ruído diversas vezes antes, contudo somente naquele momento, depois da reclamação de David, o som incomodou-o.

A porta zumbiu de novo, dessa vez com um som mais prolongado. Roland afastou-se do barômetro e, quando passou pela porta, ouviu os passos de alguém no pórtico. Não havia como se enganar. O chão da calçada produzia um som, o pórtico outro. O chão de pedra do pórtico gerava um eco surdo entre as paredes de tijolo. Alguém havia entrado no pórtico.

Sem esperar que batessem, Roland abriu a cortina. Na parte superior da porta, a fenda vertical da caixa do correio estava aberta e, através dela, Roland viu um olho.

Ele puxou a cortina de volta e a segurou. Ouviu um leve movimento. A maçaneta da porta foi virada para os dois lados e a porta deslocou-se contra a fechadura. Ouviu também a respiração de alguém.

— Quem está aí? — perguntou Roland. Ninguém respondeu. A porta continuava a zumbir. Roland disparou para o jardim.

— Tem alguém querendo entrar pela porta da frente! — berrou.Era tão evidente que Roland estava assustado que o senhor

Watson largou a pá e contornou correndo a casa em direção ao caminho de pedestres. Helen e Nicholas vinham chegando em suas bicicletas e aproximavam-se da calçada.

— Quem está lá no pórtico? — perguntou o senhor Watson.— Não vi ninguém — respondeu Nicholas. O pórtico estava vazio, a rua também.

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— Por quê? O que houve?— Alguém olhou pela fenda da caixa de correio e tentou abrir a porta — disse Roland. — Agora mesmo: meio minuto atrás.— Não pode ser — disse Helen. — Estávamos vindo sem pedalar para ver quem chegaria mais perto de casa sem encostar os pés nos pedais. Levamos um tempo enorme para descer a rua.— Não havia ninguém em nenhum lugar perto de casa — observou Nicholas.— Claro que havia! — exclamou Roland. — Eu ouvi e, quando abri a cortina, tinha um olho lá olhando para mim!

— Quem é que iria querer fazer isso? — indagou Nicholas. — Não dá para ver nada, só a cortina.

— Era você tentando assustar o Roland, Nick? — perguntou o senhor Watson.

— Eu? Eu, não!— Porque, se era você, eu já disse antes que não quero que faça

mais isso. Você está grande demais para ficar inventando esse tipo de brincadeira boba.

— Mas não era eu, pai!— Muito bem, então — disse o senhor Watson. — Mas não quero que isso aconteça outra vez, é só.— Tenho certeza de que vi uma pessoa! — exclamou Roland. — Eu vi!

— Agora vamos entrar, Roland — determinou a senhoraWatson. — Você sabe muito bem que o seu pior inimigo é você

mesmo.— Mas, mamãe, eu vi alguém, é verdade!— Não duvido — disse a senhora Watson. — Só que não pode

deixar sua imaginação tomar conta de você. O problema é que você é tenso demais. Vai acabar doente se não tomar cuidado.

Afinal, descobriu-se que Roland estava com febre alta. A senhora Watson deu-lhe uma aspirina e colocou-o na cama, fez um chá para ele e ficou sentada a seu lado até ter certeza de que estava mais

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calmo.Quando os outros foram dormir, pediram a eles que não fizessem

barulho para não acordar Roland. Subiram na ponta dos pés sem acender a luz.

— Pode ir entrando, turma — disse Roland.

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• 13 •

"Noite Feliz"

a manhã seguinte, a estática havia-se dissipado. O canteiro de rosas parecia normal. Naquela época do ano, devido aos dias muito curtos do inverno, já estava escuro quando as

crianças voltavam para casa, portanto a única oportunidade de Roland inspecionar o jardim era depois do café da manhã. Segunda, terça e quarta-feira passaram e nada aconteceu. Ele procurava pretextos diferentes para sua investigação de modo que ninguém soubesse o que fazia. Trazia carvão, carregava cinzas da lareira para fora ou jogava comida para os passarinhos. Observou que as migalhas que caíam perto do canteiro eram sempre as últimas a serem levadas, e que os pardais e os estorninhos nunca se reuniam ali para brigar por pedacinhos de alimento como faziam no resto do jardim. Um pássaro só deu uma rasante ali para pegar a comida e a disputa só começava quando ele se afastava do canteiro de rosas.

N

Na quinta-feira, Roland tomava café da manhã quando a senhora Watson jogou um pedaço de torrada queimada pela janela. A torrada caiu no caminho da entrada e lá ficou sem ser tocada. Roland viu um passarinho voar de uma chaminé para o jardim mas, no meio do caminho, deu uma freada no ar, disparou para o lado e voltou para a chaminé, onde pousou, eriçando as penas e agitando a cabeça. Minutos depois, tentou novamente com o mesmo resultado. Nenhum outro passarinho se aproximou mais.

Logo que pôde, Roland foi para o jardim. Havia uma porção de

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passarinhos no pomar da casa vizinha, do outro lado da cerca, mas não se ouvia um pio sequer. Roland atravessou o caminho e, quando chegou perto do canteiro de rosas, o cabelo de sua nuca começou a eriçar-se e as palmas de suas mãos formigaram.

Na escola, antes da última aula, Roland levou sua capa de chuva para dentro da sala, de modo que pudesse sair assim que a campainha tocasse. Cortou caminho através do campo de esportes, correu um quilômetro até a estação e pegou o trem que saía meia hora antes daquele que tomava habitualmente. Quando entrou, estatelou-se dentro da cabina. A camisa estava fora das calças, amassada, as dobras pegajosas grudando-se em suas costas. Tinha a sensação de que iria explodir com o calor que fazia ali dentro. Mas chegaria em casa antes de escurecer.

As lâmpadas dos postes estavam acesas quando subiu a rua vindo da estação. Arrancava folhas das cercas enquanto passava. E lia os nomes escritos na frente das casas: Ivanhoé, Fern Bank, Strathdene, Rowena, Trelawney. Casas de pessoas respeitáveis divididas por arbustos floridos, cada uma com seu pequeno gramado. Dois dias antes, a primeira árvore de Natal já aparecera numa janela da frente e agora havia uma em cada casa, todas maiores do que a primeira árvore.

Whinfield, Eastholme, Glenroy, Orchard Main."O que poderia acontecer de mau aqui?", pensava Roland. "Até

os cogumelos são feitos de concreto. Só que é a nossa casa que tem o pórtico..."

Parou diante do pórtico, aspirando o perfume das folhas que havia arrancado dos arbustos e que se achavam enroladas em seus dedos. O nome de sua casa estava entalhado num pedaço envernizado de tronco de madeira, pendurado por duas correntes no arco do pórtico. Parafusada na porta havia uma placa que dizia: Aqui moram Gwen e Frank Watson, seguia-se uma guirlanda de flores e, abaixo, Com Nicholas, David, Helen e Roland. Ainda assim o pórtico não combinava com o resto.

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"Isso aí só piora tudo", pensava Roland. "Eles vão saber que nos encontraram."

Foi ao jardim. Não estava sentindo nada. Guardou os livros da escola antes de voltar ao canteiro de rosas. Pôs a mão nos galhos, afundou os dedos na terra, andou à volta do canteiro.

"O que faz aquilo surgir? Será que são os Tesouros? Se são, por que não acontece o tempo todo?"

Quase não havia mais luz a não ser por um resto do reflexo do sol no céu claro. O solo estava começando a endurecer com o frio. Então, quando Roland estava no meio de sua procura, sentiu a eletricidade estática vindo tão subitamente como se um botão tivesse sido ligado. E, ao olhar para o canteiro de rosas, viu as sombras de dois homens de pé.

Estavam imóveis, como na parede do sótão. Sombras planas. Mas não se projetavam sobre nada sólido, eram sombras pairando no ar.

Roland recuou para o caminho e as sombras permaneceram no lugar onde estavam. Andou para o lado bem devagar contornando a casa. As sombras estreitavam-se em perspectiva quando ele ficava num ponto que fazia ângulo reto com elas, então desapareciam até ele se deslocar para um outro ponto adiante. Eram visíveis de frente e de costas, e Roland não via através delas. No entanto, eram bidimensionais: não tinham profundidade. Vistas de lado, não se enxergava nem uma linha de escuridão.

Roland aproximou-se do canteiro. Sentia-se ao mesmo tempo assustado e excitado com a presença das sombras.

— Fiquem onde estão — disse ele. — Não saiam daí. Eles vão ter de me escutar depois disso. Não saiam daí até que os outros venham.

Sua garganta doía, e a dor passou para os músculos do pescoço, lançando uma pontada para sua testa. O ar cintilava com pontinhos de luz, as sombras brilhavam como tinta escura. O pescoço de Roland perdia rapidamente a mobilidade. Lembrou-se de como tinha sido no sótão, de como ficara olhando até quase ser tarde demais. Olhar para as sombras desencadeava alguma coisa, e agora estava começando o

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som estridente. Desistiu de provar que tinha razão. Era perigoso demais. Precisava sair dali enquanto pudesse.

Com muito custo, cruzou o jardim na direção da casa. Sentia como se houvesse bolhas de ar nos seus joelhos e quadris e o chão nunca estivesse onde ele imaginava estar.

—Seu chá está pronto — chamou a senhora Watson quando ouviu Roland entrar na cozinha.

—Obrigado, mamãe, já vou — disse ele.Eram oito horas da noite e a família preparava-se para ver

televisão. O senhor Watson tinha-se instalado na sala uns dez minutos antes e, quando a senhora Watson e as crianças foram juntar-se a ele, ficaram surpresos ao ver que ainda não havia sido ligada.

—O que houve, Frank? — perguntou a senhora Watson.— Nada. Estou escutando as crianças cantando canções de Natal

na rua. São as primeiras que aparecem este ano.Ouviam-se vagamente vozes finas cantando ao longe.— "Noite feliz" — disse o senhor Watson. — Minha favorita.— Ouvi essas crianças cantando três semanas atrás — comentou

a senhora Watson. — Começam mais cedo a cada ano.— Qualquer dia desses — continuou o senhor Watson —, vão

começar no início de novembro, na festa de Guy Fawkes, para arrecadar logo o dinheiro todo de uma vez só.

— Vamos ligar a televisão, papai? — perguntou Nicholas.— Daqui a pouco — respondeu o senhor Watson. — Daqui a

pouco. Vamos entrar no espírito natalino. Não é toda noite que se podem ouvir canções de Natal e, já que vamos ter de pagar por elas, vamos aproveitar. Acho que estão na casa da senhora Spilsbury. Os próximos somos nós.

Quando ele acabou de falar, ouviram o ruído de pés andando no pórtico.

— Oh, não é possível — disse o senhor Watson —, já? É um pouco demais querer receber por algo que nem ouvimos direito. Saiam daí!

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Queremos ouvir "Noite feliz" perto da nossa janela, ou vocês não ganham nem um centavo! — piscou para os outros. — Vou reclamar no sindicato de vocês!

Ouviram outra vez o ruído dos pés e a maçaneta da porta sendo sacudida.

— Que moleques! — reclamou o senhor Watson. — Podiam ao menos ter a delicadeza de bater. Vão embora! Sumam!

Uma pausa. Então ouviram passos na calçada, uns resmungos cochichados e, em seguida, ainda cochichando: "Prontos? Um, dois, três", e várias vozes em tons diferentes começaram a cantar "Natal branco". Antes de chegarem ao fim do primeiro verso, ouviu-se uma leve batida na porta.

—Agora, sim — sorriu o senhor Watson, e abriu a porta.—Feliz Natal — disse o garotinho que estava no pórtico

estendendo uma caixa para o dinheiro. — E feliz Ano Novo.—Ora, ora, vocês não podiam ter se comportado assim na

primeira vez? — perguntou o senhor Watson. — Não precisavam ter sacudido a porta daquele jeito. E eu pedi que cantassem "Noite feliz".

O menino olhava para ele de boca aberta, sem entender.—Como assim, moço? Nós só chegamos agora, estávamos lá

adiante, na rua. Ninguém sacudiu sua porta.—Ora, ora, faça-me o favor — disse o senhor Watson. — Ouvi

muito bem vocês fazendo gracinhas aqui na entrada da casa.—Nós nem...—Muito obrigado! — agradeceu o senhor Watson.—Nós não...—Eu já disse muito obrigado. Agora escute aqui, só queria que

vocês cantassem o que pedi, "Noite feliz", e que parassem de sacudir a minha porta. Não é pedir demais, é?

Ninguém sacudiu sua porta, moço — insistiu o menino. — Nem estávamos perto da sua casa.

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• 14 •

Os Altos Caminhos

oland não falou nada a respeito das sombras. Quando as outras crianças chegaram em casa, ele não teve coragem de ir lá fora outra vez. Percebeu, também, que Nicholas só se

convenceria se ele próprio visse as sombras e, na manhã seguinte e durante o sábado inteiro, não houve nenhuma descarga de estática no jardim.

R—Seria bom se você desse uma olhada na porta da frente, Frank

— sugeriu a senhora Watson no sábado, na hora do lanche. — Ela trepida cada vez que passa um carro na rua. Faz um barulho que dá nos nervos. Mal consegui costurar em paz à tarde. Piorou muito ultimamente.

—Está bem, querida — concordou o senhor Watson. — Vou ver se dou um jeito nela amanhã de manhã. Os parafusos podem não estar bem apertados.

—Ah, e você devia ter dado dinheiro àqueles meninos ontem à noite em vez de ficar fazendo sermão. Eles entraram e saíram desse pórtico o dia inteiro. Acho que deve ter sido a maneira que encontraram para dar o troco.

—Expliquei a eles que era uma questão de princípio — disse o senhor Watson. — Mas o que é que eles andaram fazendo agora?

—Ah, ficaram arrastando os pés, girando a maçaneta, abrindo a portinhola da caixa do correio, coisas assim.

—E você não pediu a eles que parassem? — perguntou o senhor

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Watson.—Eles são rápidos demais. Fogem e desaparecem assim que

ouvem o barulho das argolas da cortina sendo aberta. Desisti na segunda vez. Vão se cansar logo quando perceberem que não damos bola para eles.

— Ou vão inventar alguma travessura pior — continuou o senhor Watson. — Minha mãe quase morreu de susto quando uns mal-educados jogaram bombinhas pela caixa de correio dela. Ainda por cima podiam ter posto fogo na casa. Nada disso, vamos acabar já com essa brincadeira.

— Escutem — disse Nicholas. — Lá estão eles de novo. Quer que o David e eu vamos lá juntos dar um susto neles?

— Claro que não — respondeu o senhor Watson. — Vou resolver este caso de uma vez por todas. Vou dar a volta e surpreender esses garotos pelas costas. Continuem conversando normalmente aqui dentro.

— Não vá fazer nenhuma bobagem, Frank — disse a senhora Watson.

O senhor Watson saiu pela porta dos fundos. Enquanto isso, as crianças e a mãe escutavam o barulho dos pés andando no pórtico.

— Pelo jeito, parece que tem muita gente aí — comentou David. — Espero que não aconteça nada com papai.

— Deixe de ser bobo — replicou Nicholas. — Aquele garoto que estava recolhendo o dinheiro tinha só uns oito ou nove anos. Ainda acho que deveríamos ir lá e acabar com eles. Papai só vai fazer o sermão de sempre e mais nada, além de perguntar os nomes e endereços deles. E você acha que eles são tão idiotas assim para dizer a verdade?

A porta dos fundos se abriu e o senhor Watson entrou batendo os pés.

— Tarde demais! — exclamou. — Nem sombra deles!— Não é possível, Frank, estávamos ouvindo daqui o barulho que

faziam o tempo todo que você ficou lá fora — surpreendeu-se a

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senhora Watson. — Não pararam nem um minuto. Tem certeza de que não viu nada?

— Gwen, minha querida — respondeu o senhor Watson —, a luz do poste que fica do outro lado da rua ilumina direto o nosso pórtico. Eles devem estar se escondendo detrás dos portões, mas eu é que não vou ficar brincando de gato e rato com esses garotos, é isso mesmo que eles querem.

— Não estão se escondendo, Frank. Você não escutou o que eu falei. Ficaram esse tempo todo no pórtico, e estão lá neste momento.

— Ah, é? Ora, vejam só!A portinhola da caixa do correio bateu, fechando-se.— Mas isso já é um abuso!O senhor Watson estava pálido de tanta indignação.— Vamos resolver isso agora mesmo! Se eu abrir a porta de

surpresa, vou pegar todo o mundo dentro do pórtico. Vamos ver qual é a graça dessa brincadeira, então!

— Não, papai! — afligiu-se Roland. — Não faça isso. Por favor, não faça isso.

O senhor Watson franziu a testa para Roland, pedindo silêncio, e pôs a mão na maçaneta, com cuidado para não tirar do lugar as argolas de latão que prendiam a cortina. A maçaneta girou. O senhor Watson escancarou a porta.

— Peguei vocês!— Papai! Não!Roland tentou alcançar o pai para detê-lo, mas enroscou-se na

cortina.O senhor Watson estava empurrando a porta com força contra a

parede interna do pórtico.— Agora chega — disse ele. — Agora chega.Quando ele relaxou a pressão, a pesada porta de carvalho voltou

com toda a força, atirando-o no chão da sala. A porta bateu com estrondo e o senhor Watson caiu sobre Roland arrancando a cortina, que despencou sobre os dois.

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Nicholas correu em direção à porta.— Não, Nick, fique aqui! — ordenou a senhora Watson. A porta

tinha se fechado com uma brutalidade que chegava a assustar.Tiraram a cortina de cima do senhor Watson. Ele estava sentado

no chão com o nariz sangrando, atordoado. Um dos olhos estava inchando e começando a se fechar.

— Selvagens, arruaceiros danados!— Você estava procurando encrenca — disse a senhora Watson

enquanto colocava compressas no olho dele. — Nem sabe se são de uma daquelas gangues de adolescentes das casas populares...

— Você disse que eram os cantores de músicas de Natal.— Sei que disse, só que não eram, você não viu? Meninos de oito

anos não teriam feito nada disso, não é? Roland, saia dessa janela. Vai atiçar esses desordeiros, vão querer inventar mais alguma coisa se estiverem por perto. Ignore a existência deles e logo vão perder o interesse.

Roland olhava para os galhos das árvores, que se curvavam como tentáculos em torno da lâmpada do poste. A rua brilhava. Entretanto havia notado muito bem, quando se aproximara de seu pai perto da porta, que tudo estava escuro lá fora, a não ser pelo clarão de uma fogueira acesa nas proximidades.

• • •

Eram três horas da manhã quando Roland desceu as escadas. Restos de brasas de carvão estalavam na grade da lareira e o relógio tiquetaqueava com aquela batida dupla que Roland nunca ouvia durante o dia. A porta da frente estava vibrando, embora àquela hora só passassem caminhões na estrada principal, a meio quilômetro de distância dali.

Sabia que era ele quem tinha de fazer alguma coisa. Daí em diante, tratava-se de agir, não apenas de sentir curiosidade.

Tentou escutar algo perto da cortina. Tinha desligado a lanterna e prendera-a no bolso de seu pijama. Não ouvia nenhum movimento ou

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respiração no pórtico, de modo que passou cautelosamente para o espaço entre a cortina e a porta. O silêncio continuava, quebrado apenas pelo leve crepitar da lenha. Roland sentia o cheiro da cortina e uma leve corrente de ar envolvendo-o. O capacho áspero da porta espetava-lhe os pés. Roland ergueu-se cautelosamente e olhou com um dos olhos pela fenda entre a dobradiça e a moldura da caixa do correio.

Agora que a sala estava no escuro, Roland podia enxergar bem a penumbra de Elidor.

Não conhecia aquele lugar. De seu limitado ângulo de visão, só via montanhas: picos, despenhadeiros, neve e rochedos negros e pontiagudos como facas voltadas para cima. O pórtico parecia estar no alto de um penhasco ou de uma crista escarpada de montanha. Roland sentia o vazio de um abismo atrás dele, na sala. Na encosta da montanha adiante, havia um acampamento com várias barracas, de onde saía um grupo de caçadores por uma trilha que serpenteava e passava pela porta. Os homens cavalgavam veados e levavam lanças nas mãos, alguns deles carregavam arcos e flechas às costas. Cães caçadores de lobos corriam à frente deles. Perto do pórtico, havia um grupo de soldados abrigado entre as rochas. A mesma fogueira que Roland vira antes tinha um brilho pálido e sem cor. Ao lado dela, estava um soldado agachado segurando uma lança.

Um cão aproximou-se e cheirou o pórtico, mas foi chamado de volta com aspereza. Os cavaleiros olharam para a porta quando passaram por ela. Um deles falou com o homem próximo da fogueira, que se levantara. Ele sacudiu a cabeça e apontou com a lança para o acampamento lá embaixo.

Nesse instante, a porta parou de vibrar e a cena desapareceu. Roland olhava para a noite de seu mundo e ouvia apenas os caminhões passando ao longe.

Pousou os calcanhares no chão. O homem era uma sentinela: guardava o pórtico. Tinham-no encontrado. Sabiam que ali era uma passagem. Viriam quando estivessem preparados.

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"A culpa é minha", pensou Roland. "Fui eu quem causou tudo isso. O que é que vou fazer agora?"

A porta zumbiu outra vez. Roland ficou outra vez nas pontas dos pés.

Apesar de se terem passado apenas alguns segundos, em Elidor o tempo provavelmente transcorrera mais depressa. A fogueira era maior e a sentinela era outra. O homem andava de um lado para o outro para se manter aquecido.

"Deve estar gelado aí fora", pensou Roland. "Por que será que precisam de um acampamento tão grande? Não podem ficar vivendo aqui em cima o tempo todo: só há pedras e neve a centenas de metros de altitude. Altitude. Alto. Altos Caminhos. Aquele que anda por Altos Caminhos... Findhorn... É isso: a Canção de Findhorn. Malebron ia procurar Findhorn. Falou sobre montanhas. Então, eles também estão procurando!"

Era impossível que aquele fosse o acampamento de Malebron. Aqueles homens exibiam a mesma nobreza de porte que ele, a mesma maneira de vestir, mas só Malebron tinha estado envolto pela luz dourada. A beleza deles era a beleza do aço, com todos os traços duros, como numa gravura.

"Oh, o que é que vou fazer agora?", pensou Roland.A sentinela se deteve e olhou para a caixa do correio como se

tivesse ouvido Roland falar. E veio em direção à porta.Roland deslizou para baixo o mais que pôde. Ouviu o som

conhecido de passos no pórtico e uma mão abriu a portinhola da caixa do correio. A maçaneta girou, a porta deslocou-se contra a fechadura... ruído de pés... e silêncio. Quando Roland tomou coragem para olhar novamente, a sentinela estava curvada sobre o fogo, mexendo a comida em um caldeirão.

"É minha culpa. Fiz isso acontecer. Fiz isso acontecer."A solução calou seus pensamentos: "Preciso desfazer tudo".Roland fixou os olhos no pórtico."Vá embora. Desapareça. Dê o fora. Suma daqui."

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O pórtico não lhe deu ouvidos. Roland tentou expulsá-lo dali com sua vontade e não pensar em nada, mas não conseguia imaginar o nada: não tinha nenhuma forma para criá-lo em sua mente. Sentiu-se muito fraco, como se estivesse empurrando os tijolos com suas próprias mãos.

A sentinela estava inquieta e de vez em quando vinha até a porta."Pense", disse Roland a si mesmo. "Pense.""Como é que uma casa cai? Não basta dar-lhe um empurrão. A

igreja... O que é que havia acontecido primeiro? A argamassa entre os tijolos esfarelando-se! Era isso. Tijolos não ficam de pé sem argamassa."

Fechou os olhos e visualizou o arco do pórtico em sua mente. Quando a imagem estava fixa, concentrou-se nas juntas dos tijolos. Argamassa cinzenta. Solta. Seca. Desfazendo-se.

"Ah, vamos lá. Vamos lá."Roland escutou um som, um sussurro como o da chuva caindo

sobre as folhas. Ouviu-o novamente. Uma poeira fina começava a flutuar pelo pórtico.

"Vamos lá, seu pórtico! Você não é todo de verdade. Você é um eco. Não é todo sólido. Vamos lá, seu eco!"

A argamassa desmanchou-se com mais rapidez. Ele não se atrevia a abrir os olhos e, embora a poeira agora se espalhasse menos, não parava de cair. Forçou sua mente como uma broca entre os tijolos do pórtico de Elidor.

A sentinela deu um grito, mas Roland só interrompeu sua concentração para ver que o homem percebera o que estava acontecendo e correra para o acampamento.

"Vamos! Quebre! Vamos lá! Mais!"Um tijolo caiu, e outro, uma rachadura serpenteou para o teto."É isso aí!"Concentrou-se na rachadura, abrindo-a, rasgando-a. Era mais

fácil. Os tijolos caíam. Se conseguisse abalar o teto, o peso das telhas de pedra derrubaria tudo. Agora, porém, ele fazia um esforço

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extremo, a lâmina de sua mente perdera o fio e cada golpe custava-lhe mais energia para atingir o alvo. Muitos homens vinham subindo às pressas do acampamento. Roland soluçava, gemia e esmurrava a esmo o pórtico com toda a sua vontade.

Os homens vinham trazendo machados de cabos duplos, e o primeiro deles arremessou o machado contra a madeira. A casa ressoou como um tambor. O machado foi arrancado da porta, levantado e lançado contra ela outra vez. Roland reuniu suas forças e investiu às cegas. Toda a sua energia irrompeu, jorrou, precipitou-se. Depois veio um grande vácuo e, dentro desse vácuo, o pórtico começou a cair.

O machado golpeou a porta pela terceira vez, mas a lâmina só produziu um som amortecido, e na quarta vez não produziu som nenhum. Os homens gritavam em silêncio, o pórtico perdeu a nitidez. Além dos picos das montanhas, dois fachos de luz amarela relampejaram no céu negro, um mar de trevas. A sombra de outro pórtico cobria os tijolos como uma pele, mas aparecia inteira onde o arco estava partido. O homem dava machadadas na porta sem conseguir atingi-la, e saltou para longe quando o teto e as paredes desabaram com estrépito e Elidor foi tragada pelo clarão dos faróis de um carro que vinha entrando na rua. Os dois fachos de luz amarela tremeluziram entre as árvores e refletiram-se por um momento na parede do pórtico. Roland encostou-se na porta e escorregou até o chão. Sentiu a madeira fria, gelada, de encontro à testa.

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• 15 •

A prancheta

telefone tocou quando o senhor Watson estava tomando o café da manhã.O

— Eram os Brodie — disse ele quando voltou à mesa do café. — Vão dar uma festa para os dois filhos deles no dia vinte e nove e convidaram os nossos. Vão mandar o convite pelo correio, mas John Brodie queria saber agora mesmo para marcar a data. Vai ser uma noite de festa só para vocês — dirigindo-se às crianças —, para compensar a de sua mãe e eu, que vamos só os dois à festa do Ano Novo dos Greenwood.

— Ainda não tenho muita certeza se eles devem ir — objetou a senhora Watson. — São muito crianças para ficarem sozinhos.

— Já são bem grandinhos para tomarem conta de si mesmos — replicou o senhor Watson. — É ou não é?

—Mas temos mesmo de ir a essa festa? — reclamou Nicholas.—Claro — respondeu o senhor Watson. — Vai ser divertida. E os

Brodie são muito simpáticos. Devíamos ter mais contato com eles.—Mas nem conhecemos os filhos deles — disse Nicholas,

contrariado. — Estou achando que vai ser uma chatice. Não agüento aquela obrigação de trocar presentes.

—Agora já aceitamos — ponderou o senhor Watson. — li vai até as onze e meia, por isso acho que vai ser quase como uma festa de adultos.

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— Ah, que droga — queixou-se Nicholas.—Não posso esquecer de mandar um cartão de Natal para eles —

observou a senhora Watson.David vinha entrando.— Papai! Você já viu a porta da frente? Está toda arrebentada!Havia três talhos na porta. Dois deles tinham uns três centímetros

de profundidade, mas o terceiro era apenas uma mossa, como se tivesse sido feito com menos força do que os outros.

— Achei que tinha ouvido umas batidas durante a noite — disse a senhora Watson —, mas devo ter virado para o lado e continuado a dormir.

— Mas isso é vandalismo! — esbravejou o senhor Watson. — Estamos sendo perseguidos. Não dá para tolerar. Francamente, do que as pessoas são capazes só para dar vazão ao seu rancor! Que absurdo, isso deve ter sido feito com um machado!

— É o que acontece quando há conjuntos de casas populares num bairro decente — argumentou a senhora Watson. — Não deviam deixar que construíssem esses conjuntos no campo. As pessoas não vão ficar diferentes só porque saíram da cidade. E sabe-se lá o quanto isso desvaloriza as outras casas.

— É puro vandalismo — repetiu o senhor Watson.Mais tarde, porém, ele tapou os cortes com uma massa feita com

pó de madeira e apertou os parafusos da porta, o que aparentemente fez as vibrações cessarem.

— Sabia que uma boa chave de fenda resolveria o problema — declarou ele, satisfeito.

• • •

O temido dia da festa aproximava-se. Os Brodie moravam numa casa ampla que, em outros tempos, ficava isolada no meio do campo e agora estava rodeada por um novo bairro residencial, parte de um projeto urbano do governo local. Seus dois filhos estudavam em colégios internos.

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— Vai ser um chove-não-molha — resmungou Nicholas quando saíram de casa naquela noite.

— Ah, acho que não — replicou o senhor Watson. — O gelo está firme, o céu está claro. Acho que vai ficar assim pelo menos por uns dois dias. O barômetro está bem estável.

— Estou falando da festa — explicou-se Nicholas.Jennifer e Robert Brodie receberam os Watson formalmente à

porta. Havia mais uns dez convidados e serviram-lhes salada de frutas. Organizaram brincadeiras e jogos "para quebrar o gelo", como passar uma caixa de fósforos de um para o outro equilibrando-a no nariz, misturar os sapatos das meninas e ter de descobrir quem eram as donas.

Depois, ligaram um aparelho de som e eles dançaram. Entretanto Helen era a única dos quatro que sabia dançar. Nicholas tinha tido apenas duas aulas, o que tornava o seu aborrecimento ainda maior. As brincadeiras continuaram durante a dança, com variações que iam desde a Dança das Cadeiras até o Jogo de Prendas. Os que ficavam sem par tinham de dançar com uma vassoura.

Às nove horas, foram para outra sala, onde seria servido um jantar. Houve um jogo com cartões e nomes para decidir quem se sentava em que lugar, mas Nicholas roubou tanto que os Watson ficaram juntos e numa das extremidades da mesa.

—A festa está o máximo! — exclamou Helen.—Ainda faltam duas horas e meia para acabar... — disse David.—Será que não podemos ir embora agora? — perguntou Roland.Mas a comida estava boa. Os filhos dos Brodie chamavam o pai

de Jo-jo e ele contou histórias engraçadas o tempo todo. Então, todos começaram a puxar canudos de papelão embrulhados que se arrebentam quando estirados pelas pontas e que têm dentro brinquedos pequenos ou brindes. Roland puxou o dele com Helen. Desenrolou um chapéu de papel, leu sua frase da sorte e sacudiu o canudo para ver se estava vazio. Algo caiu sobre a mesa.

—O que houve, Roland? — estranhou David. — Está se sentindo

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mal?—O que você ganhou? — perguntou Roland.— Um chapéu e uma frase da sorte; o mesmo que você.— E o que mais?—Só uma daquelas porcarias que sempre vêm dentro e não

servem para nada.—O que é?—Parece um prendedor de gravata, sei lá... uma espécie de

espada de plástico cor-de-rosa. Está escrito Hong Kong atrás.—Eu ganhei uma lança — disse Roland.—O meu é uma tacinha de plástico — informou Helen.—E você, Nick? — perguntou Roland.—Por favor, Roland! — pediu Helen. — Pare com isso!—O que veio para você? — insistiu Roland.— Calma, Roland — respondeu Nicholas. — Vão pensar que você

ficou maluco.— Quero saber o que você ganhou além do chapéu e da frase da

sorte!— Ah, isso — mostrou Nicholas. — Um tijolo cor-de-rosa. Quer

para você?— Um tijolo, não, o que você ganhou foi uma pedra, não foi?— Ah, pelo amor de Deus, Roland! De novo, não! E, além do mais,

não é um tijolo, é um dado. E muito malfeito, por sinal. Os pontinhos nem são coloridos.

— Tem o formato de uma pedra; poderia ser de pedra mesmo que fosse um dado — argumentou Roland.

— Mas não é, é feito de plástico, como todos os outros brindes.— Isso é forçar demais a barra, Roland — David impacientou-se.

— Ou você acha que Malebron iria mandar lembranças feitas em Hong Kong para nós?

— Não sei muito bem o que acho...— Está-se vendo — disse Nicholas.— ... mas não é uma coincidência.

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— Claro que é uma coincidência — rebateu Nicholas.— Então, se for — continuou Roland —, é porque coincide com

alguma coisa. Ou então não seria coincidência. E essa coincidência é com os Tesouros. Torna os Tesouros mais reais.

David ficava vesgo, fazia caretas, zombando de Roland.— Não dá mais para brincar com isso agora! — exclamou Roland.

— Está tudo ligado. Foi o que Malebron disse. Mesmo que isto seja um brinde de Natal, também é parte de alguma outra coisa, não há como escapar.

— Ah, cale essa boca — disse Nicholas.— Todo mundo está feliz aqui nesta ponta da mesa? — perguntou

o senhor Brodie, surgindo por trás do ombro de David. — Querem mais alguma coisa? Mais pudim, salada de frutas?

— Não, muito obrigado, estamos satisfeitos — respondeu Nicholas.

Roland passou o resto da noite confuso e perturbado, o que o afastou da rodada de jogos e danças que se seguiu. Por volta de onze horas, estavam todos cansados de dançar e ninguém conseguia mais inventar nenhuma outra brincadeira diferente. Ficaram sentados pela sala, desanimados, e tudo indicava que a última meia hora de festa seria arrastada e sem graça.

— Já sei — disse Jennifer Brodie. — Vamos fazer uma sessão espírita! Como a que fizemos no último Natal! Por favor, Jo-jo!

— Boa idéia! Vamos! — entusiasmaram-se os outros.— Está certo — concordou o senhor Brodie. — Mas depois não me

digam que estão com medo. É só uma brincadeira de salão, não se esqueçam. Não é nada sério.

— Que sessão é essa? — perguntou Helen.— É para falar com fantasmas, espíritos, essas coisas — explicou

Nicholas.— Estou fora — esquivou-se Roland. — Esse negócio deve ser

meio arrepiante.— Vamos lá — insistiu David. — É Natal. E ele falou que é só uma

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brincadeira, você ouviu.— Podemos usar a prancheta da vovó? — Jennifer pediu à mãe. —

Fica mais divertido, e nem foi guardada ainda porque você usou na sua festa de ontem à noite.

— Só se você tiver cuidado com ela, querida — disse a senhora Brodie.

— Pode deixar, mamãe.Houve uma conversa em voz baixa entre o senhor e a senhora

Brodie junto à porta, mas Roland só ouviu trechos de frases como: "... se eles fossem mais velhos... rabiscos... nada que possa assustar..."

— Nossa avó era espírita — comentou Robert Brodie. — E tinha essa prancheta para receber mensagens do vovô. A única coisa que ele dizia era: "Enterrem-me embaixo do rio".

— E vocês enterraram? — perguntou Nicholas.— Embaixo?! De que jeito? — respondeu Robert.A senhora Brodie voltou trazendo uma pequena prancha em

formato de coração com um lápis espetado num buraco que havia na ponta. Tinha também rodízios fixos na parte de baixo para que pudesse movimentar-se em qualquer direção.

— Vou explicar como se faz — começou Jennifer. — Nós todos nos sentamos ao redor da mesa e uma das pessoas põe a mão direita bem de leve sobre a prancheta, que anda sobre o papel com essas rodinhas aqui. Como o lápis está encostado no papel, surge o que é chamado de Escrita Automática. Só que a pessoa que estiver com a prancheta não pode olhar o que está fazendo porque não é ela quem está escrevendo. É alguém do Outro Lado.

— Ah, mas isso é moleza — caçoou Nicholas.— Não é, não — discordou Jennifer. — Se você tenta escrever de

propósito, a prancha desliza e você não consegue. E agora, quem é que vai começar?

— Acho que já está na hora do nosso Roland aqui mostrar suas qualidades — disse o senhor Brodie. — Ficou muito quietinho a noite toda.

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— Eu, não — manifestou-se Roland.— É só uma brincadeira — explicou Robert.Roland foi empurrado até a mesa, onde a prancheta tinha sido

colocada sobre o avesso de um rolo de papel de parede.— As letras aparecem grandes — continuou Jennifer —, por isso

você precisa ter bastante espaço. Apóie bem de leve as pontas dos seus dedos sobre a prancheta... isso. Agora, fiquem todos sentados quietos. Ninguém pode falar. Não pensem em nada. E se a prancheta andar, Roland, não olhe para ela. É melhor ficar com os olhos fechados o tempo todo. Deixe que eu falo quando for preciso. Tudo certo. Vamos começar.

Sentaram-se todos ao redor da mesa. Silêncio completo era impossível. Algumas das meninas começaram logo a dar risadinhas.

— Psiu! — fazia Jennifer a cada instante.— Meu braço está ficando dormente — reclamou Roland.— Posso descansar um pouco?

— Não — respondeu Jennifer. — Pssiu! Passaram-se dois minutos, e Jennifer pigarreou.— Há alguém aí? — perguntou ela, olhando para o teto.— Há alguém aí?A prancheta deslocou-se subitamente, como se Roland tivesse

uma cãibra no braço, e o lápis produziu uns rabiscos ilegíveis no papel de parede.

— Há alguém aí? — insistiu Jennifer, balançando a cabeça na maior excitação e fazendo um sinal de positivo com o polegar.

A prancheta escreveu alguma coisa novamente.— Quem é que está aí?A prancheta moveu-se sobre o papel, fazendo voltas como

alguém que está aprendendo a escrever.— Nada mau, Roland — disse Nicholas.— Não estou fazendo nada.— Psiu! — repetiu Jennifer. — Quem é?

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— Meu braço ficou gelado — avisou Roland. — Não estou sentindo mais nada.

— Se você falar, vai estragar tudo — replicou Jennifer. — Olhem!

— O que está acontecendo? — perguntou Roland.

Helen deu um gritinho agudo. — Rá, rá, rá — fez Nicholas.

— O que você quer? — perguntou Jennifer. O lápis moveu-se.

— O que é isso? — indagou Jennifer, num tom meio teatral.— Uma ameba — brincou David.

— Não estou entendendo — disse Jennifer.

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O lápis rabiscou outra vez.

E, em seguida,

— Ainda não estou entendendo — insistiu Jennifer. — Por favor, explique melhor.O lápis correu sobre o papel.

E então escreveu,

— Findhorn! — exclamou Helen.— O quê? — espantou-se Roland. — O quê?A prancheta imediatamente deslizou para longe.— Eu escrevi isso aí? Findhorn? Malebron? Desenhei esse

unicórnio?— Ah, você não devia ter parado! — lamentou Jennifer. — Estava

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indo tão bem!— Agora chega — disse o senhor Brodie.— Ele está querendo nos falar sobre Findhorn! — explicou Roland.

— A Canção de Findhorn, lembram? Quer dizer que Findhorn é um unicórnio! Ele tinha de continuar tentando...

— Tudo bem, Roland, estava ótimo — disse Nicholas. Os outros convidados estavam espantados, olhando para Roland. — Sua letra é um horror, mas você sempre desenhou bem. Se treinasse, desenharia melhor ainda.

— Não fui eu! Experimente você agora!— OK — disse Nicholas, concordando. — Vou experimentar.E apoiou os dedos na prancheta como Roland havia feito.— Vá em frente, quero ver, escreva o seu nome aí!— OK, OK. Fique frio.Por mais que tentasse, porém, Nicholas não conseguia controlar a

prancheta. Ela girava de um lado para o outro. Um dos meninos deu uma risada.

— Chega, devolva para mim — pediu Roland. — Ele pode estar querendo dizer mais alguma coisa. Ande, passe isso para cá, rápido!

— Ahn... Acho que por hoje chega, não é, pessoal? — interferiu o senhor Brodie. — Já são onze e meia, sabiam?

Falou com um tom enérgico, e a senhora Brodie levou embora a prancheta. Todos começaram a pegar seus casacos no vestíbulo e dizer obrigado. Alguns estavam esperando pelos pais, outros iam ser levados para casa pelo senhor Brodie. Ele acendeu a luz de fora e, quando abriu a porta para sair e trazer o carro para a frente da casa, uma névoa branca e sinuosa penetrou no vestíbulo.

— Ah, meu Deus, que amolação — reclamou a senhora Brodie. — Não vai ser muito agradável dirigir com essa neblina. Vocês, que não vão com John, tirem os casacos, talvez seus pais ainda demorem um pouco. Ligue o som, Jen, vamos dançar outra vez.

—Acho que chegamos em casa mais depressa se formos a pé, vocês não acham? — sugeriu Nicholas. — Não é longe.

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—Tem razão — concordou David. — É mesmo, não podemos ficar mais, muito obrigado assim mesmo.

—Podemos telefonar para casa para dizer ao papai que ele não precisa vir? — perguntou Nicholas.

—Claro — respondeu a senhora Brodie. — Se têm certeza de que preferem ir a pé...

Nicholas correu para o telefone.— Alô, papai? É o Nick. Olhe, não precisa vir nos buscar, vamos a

pé. Não, estou falando sério, vamos levar o mesmo tempo que você levaria para chegar aqui. Fica muito mais perto se entrarmos pelo bairro novo e subirmos por Boundary Lane, aquele caminho que passa ao lado das hortas, sabe qual é? Claro que sei como ir. Está bem, eu peço uma lanterna emprestada. Certo. Vamos estar chegando aí em mais ou menos meia hora.

Emprestaram-lhes de fato uma lanterna, mas as crianças descobriram que não precisavam dela. A névoa estava baixa, junto do chão, e podiam enxergar perfeitamente as copas das árvores, as casas e a Lua brilhando.

— Qualquer coisa é melhor do que ter de dançar outra vez — observou Nicholas enquanto se afastavam da casa. — Gostei de ver, Roland. Você acabou com aquela chatice direitinho. Nosso amigo Jo-jo pensou que você ia ter um ataque.

Roland não respondeu.— Como é que você pegou tão depressa o jeito de mexer com

aquela prancheta? — perguntou Nicholas.— Cale a boca! — revidou Roland.— Você fez o quê?— Eu disse cale a boca.— Ah, está bem.Caminhavam em silêncio. A rua asfaltada do bairro novo era fácil

de seguir, a não ser quando se bifurcava ou quando surgia um cruzamento. Perto dos Brodie, as construções estavam quase prontas. As janelas de cima das casas já haviam levado a primeira

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demão de tinta branca. Mais adiante, porém, as janelas não passavam de buracos vazios e o luar entrava pelas estruturas dos tetos sem telhas. Depois disso, dos dois lados só havia neblina, e a rua atravessava o que ainda era apenas campo aberto.

— Você desenhou um... um unicórnio lindo, Roland — comentou Helen afinal. — Igualzinho ao do meu vaso.

— Eu não desenhei coisa nenhuma — negou Roland.— Ah, deixe disso, Roland — replicou Nicholas.— Foi Malebron quem desenhou — replicou Roland. — Ele estava

tentando nos dizer alguma coisa e você interrompeu.— Escute aqui — Nicholas irritou-se —, já está na hora de você

crescer. Posso explicar o que foi que houve? Você está com essa história de Malebron na cabeça. Tudo bem, você não imitou Malebron de propósito. Você escreveu inconscientemente, e desenhou o unicórnio porque a Helen encontrou o vaso quando vocês dois estavam cavando aquele buraco no jardim. É assim que a cabeça das pessoas funciona. Se tivesse lido sobre isso nos livros, iria descobrir num instante que o seu problema mesmo é miolo mole.

— Ora, cale essa boca! — rebateu Roland.A rua terminava perto de um acesso sobre uma grande cerca viva

feita de galhos, uma passagem alta formada por degraus e um portão que dava para o caminho ao longo de uma série de hortas. O caminho tinha uma cerca de madeira de castanheiro de um lado e uma cerca viva do outro. Estendia-se por um trecho de terra de ninguém entre duas áreas construídas e saía na rua em que os Watson moravam. Num determinado lugar, uma ponte de dormentes de estrada de ferro cruzava um pequeno rio.

O caminho era tão estreito que as crianças tinham de seguir de duas em duas. A noite estava profundamente silenciosa.

— Cuidado com a ponte — advertiu David. — Não tem parapeito. Estamos quase...

O som do ar sendo rasgado como um pano atingiu-os subitamente, um som terrível que estalava com a força de um raio,

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como se o céu se partisse ao meio, e de dentro desse som veio o tropel de cascos galopando. Sem aviso, sem sinal de aproximação. Os cascos estavam lá, na neblina, perto das crianças, bem à frente delas, vindo para cima delas, furiosos.

— Cuidado!Atiraram-se para os lados de encontro às cercas enquanto um

cavalo branco saído do luar lançava-se impetuosamente entre eles cortando a névoa. Era todo crina, cascos e espuma, e eles o ouviram galopar pelo caminho e saltar a passagem sobre a cerca para o campo do outro lado.

As crianças ficaram alguns segundos agarradas umas nas outras.— Estão todos bem? — perguntou Nicholas.— Estamos.— Rasguei meu casaco.— Essa foi por pouco — suspirou David. — Só ouvi quando ele

começou a correr pela ponte, e vocês?— Provavelmente fugiu da escola de equitação — disse Nicholas.— Estava sem sela — observou David.— Deve ter escapulido da cocheira sem ser visto — acrescentou

Helen. — Não iriam deixar um cavalo do lado de fora no inverno.— É — concordou Nicholas. — E viram o estado dele? Deve ter se

emaranhado em alguma cerca de arame farpado.— Mas não era uma beleza? — perguntou David. — Que crina

enorme!Atravessaram a ponte e continuaram andando em direção à rua.— Fiquei com medo — admitiu Helen. — Mas o pobre do bicho

devia estar mais assustado do que eu.— Não tinha como parar — disse Nicholas. — Se não tivéssemos

saído do caminho, as patas dele poderiam ter nos estraçalhado. Não contem nada para mamãe e papai, vão ter um ataque do coração se souberem.

— Puxa, meu coração foi parar na boca — falou David.— A cauda dele bateu no meu rosto — comentou Helen.

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— Engraçado como ele parecia maior — refletiu Nicholas. — Por causa do luar e também por estar num caminho estreito.

— Tomara que não esteja sentindo nenhuma dor — disse Helen. — Pode ser que faça mais estragos se ainda estiver assustado.

— Quase nos matou — observou David.— Foi, mas fiquem de bico calado — advertiu Nicholas. Já estavam

na rua. — Arrume um pouco a roupa e o cabelo, Roland. Não podemos dar a impressão de que levamos uma surra.

Roland, porém, vinha devagar, lá atrás, no meio da rua.— Venha, Roland, ande aqui junto da gente!— Por que é que vocês estão falando desse jeito? — gritou

Roland. — Todo mundo viu! Por que é que vocês estão fingindo? Todo mundo viu o chifre na cabeça dele!

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• 16 •

A radiolocalização

amos dar uma volta? — convidou David. Era a primeira vez que um dos irmãos falava com Roland naquele dia. Nicholas tinha saído para

andar de bicicleta. Helen arranjara pretextos para ficar perto da mãe, dentro de casa, e David estivera às voltas com seus livros sobre radiofonia.

— V— Está bem — assentiu Roland.Desceram a rua e entraram em Boundary Lane. Atravessaram a

ponte, e então David voltou um pouco. E parou. Depois, cruzou a ponte novamente.— OK, Roland, você venceu — disse ele.— Hein? — Roland surpreendeu-se. — Venci o quê?

— Sei o que você está sentindo — disse David —, mas não adianta ficar emburrado. Agora, as coisas estão ficando sérias.— Por que só agora?— Tudo bem, sempre estiveram.

— Então, por que você só mudou de idéia hoje, e não ontem? — questionou Roland.

— Bem, para começar — disse David —, porque o chão está cheio de marcas de cascos deste lado da ponte e do outro não tem nenhuma. Até o Nick teria de reconhecer que isso é uma prova. O unicórnio surgiu exatamente daqui.— Então era mesmo um unicórnio? — perguntou Roland.— Claro que era — respondeu David. — E vamos ter de tomar

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alguma providência. Estou ficando com um medo danado.— Achei que você pensasse o mesmo que o Nick.— Eu até gostaria — disse David. — Mas tem uma coisa que não combina; está me incomodando há semanas. É aquela eletricidade estática. Porque, veja só, mesmo admitindo que os Tesouros sejam de verdade e estejam gerando energia, a estática não deveria estar lá. E, além disso, ela vai e vem.— Como é que você sabe? — indagou Roland.— Ah, porque tenho feito experiências desde que o papai plantou as rosas. Tem estática ali quase todo dia, de manhã cedo ou à tardinha.— Você nem me contou!— Não queria contar nada — disse David. — De qualquer maneira, acho que sei o que está causando a estática. Eles estavam procurando os Tesouros em Elidor e acabaram encontrando.— Você acha que já encontraram?— Acho. É muito simples: é o mesmo que conseguir a radiolocalização de um transmissor. Se você tiver dois receptores afastados um do outro e eles captarem de que direção vem um sinal, só precisam depois traçar as duas linhas num mapa; o ponto onde as linhas se cruzarem é onde está o transmissor.— E daí?— Bem, se os Tesouros estiverem gerando energia, e essa energia estiver entrando em Elidor, é possível fazer a radiolocalização deles em Elidor. E sabe o que deve estar acontecendo? Eles devem ter feito a radiolocalização e, quando foram ao lugar onde as linhas se cruzam, não encontraram nada lá! Podem estar apontando para um lugar qualquer no chão, no ar ou seja lá onde for e dizendo: "Os Tesouros estão ali", mas não podem pôr a mão neles!— Você está querendo dizer que eles podem ter encontrado o lugar em Elidor que coincide com o nosso jardim mas não conseguem atravessar para cá?— Exatamente. Então, o que é que eles estão fazendo agora?

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Continuam procurando os Tesouros e mandando energia para o mesmo ponto, como se quisessem arrombar um cofre. E aquela carga enorme de energia vai-se acumulando; e uma parte dela vaza até aqui sob a forma de eletricidade estática!— Se é como você diz, pode ser — disse Roland. — Mas será que eles têm aparelhos para fazer isso? Não acho muito provável naquele lugar.— Não sei — respondeu David. — De alguma forma eles estão conseguindo.— Será que podem fazer isso com a mente? — perguntou Roland. — Parece que lá isso é comum.— Uma espécie de telepatia? — arriscou David. — É, pode ser, por que não? Só seria preciso ter duas pessoas para estabelecer a radiolocalização e...— Duas pessoas? — espantou-se Roland. — Você já viu alguma coisa lá, perto das rosas?— Não — respondeu David. — Só notei aquela estática.— Escute aqui — disse Roland —, temos de provar aos outros de uma vez por todas que isso está acontecendo; e tem de ser agora, enquanto ainda estão nervosos com o que houve ontem à noite. Se eu mostrar a você que a sua teoria está certa, você explica ao Nick e à Helen como ela funciona?— Explico, claro. Mas é só uma idéia. Os detalhes podem estar errados.— Vamos lá.

Voltaram correndo para casa.— O que é que você vai fazer? — perguntou David.— Não interessa — respondeu Roland. — Na hora, você vai ver. É melhor ninguém saber de nada antes para o Nick deixar de falar tanto sobre alucinações.

Nicholas estava lubrificando a bicicleta quando os dois chegaram ao chalé. David entrou para chamar Helen. Ela veio com uma cara meio apreensiva. A tarde estava no fim, já começava a escurecer.

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— O negócio é o seguinte — começou Roland —, vamos falar sobre o que aconteceu ontem.— Eu não quero falar sobre esse assunto — retorquiu Nicholas.— Por quê?— Porque não quero, ora, só isso.— Por que você faz tanta questão de achar que Elidor não existe de verdade? — perguntou Roland.— Se essa conversa fiada durar mais um minuto, vou acabar dando uns tabefes em você — ameaçou Nicholas.— E você, Helen? Também acha que nós todos inventamos Elidor?— Ah, Roland, por favor, não vamos brigar mais por causa disso!— É isso mesmo, acho uma bobagem a gente continuar discutindo desse jeito — disse Nicholas. — Cada um pode pensar o que quiser, o que interessa é que estamos aqui, agora, e os Tesouros, se é que são mesmo Tesouros, estão enterrados debaixo do canteiro de rosas e Elidor está liquidada. Acabou-se.— É aí que você se engana, Nick — objetou David. — Elidor pode ter acabado para você, mas nós não acabamos para Elidor.— De que lado você está? — Nicholas impacientou-se.— Não existe mais essa questão de lados — disse David. — Desde ontem à noite.— Tenho uma explicação para aquilo também — declarou Nicholas.— E para isso aqui, você tem uma explicação? — Roland aproximara-se do canteiro de rosas e estendera a mão para um dos galhos. Todos ouviram o estalido e viram a faísca saltar.— Só desta vez, Nick — pediu David. — Escute o Roland só desta vez. Se não se convencer, prometo que não vamos mais falar sobre o assunto.— Ah — disse Nicholas —, faço qualquer negócio por um pouco de sossego. O que é que ele vai inventar agora?— Não sei.

Mais uma vez, Roland havia sentido a carga elétrica tão

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repentinamente como se um botão tivesse sido ligado, e posicionou os irmãos no gramado, todos juntos, virados para o ponto onde as sombras tinham aparecido.— Estão sentindo a eletricidade estática? — perguntou.— Não estou gostando — balbuciou Helen. — Estou toda arrepiada.— Olhem para o canteiro de rosas. Fiquem olhando.— Tem certeza de que sabe o que está fazendo? — perguntou David.— Meu pescoço está doendo — reclamou Helen.— Não se mexa. Continue olhando — disse Roland. — Droga, onde elas estão? Precisam aparecer. Nick precisa ver...— É só a eletricidade estática — protestou Nicholas. — Já aconteceu antes.— Pensa que eu não sei! — exclamou David. — Só que está ficando cada vez mais forte. Meu corpo todo está formigando. A gente deve estar numa espécie de campo de energia.

"Só mais uma vez e nunca mais. Na última vez, foi tão forte quanto agora. Elas têm de vir. Têm de vir, têm de vir... Isso!"

— Pronto! Olhem!As duas sombras estavam junto do canteiro de rosas.

— Seu maluco! — gemeu David. — Olhe só o que você fez! É a radiolocalização!— Mas é o que eu faço sempre — explicou Roland. — E agora, Nick? Vamos lá, olhe bem. Você pode até andar em torno delas.

Da garganta de Nicholas saiu um som abafado.— Será que é uma das suas alucinações, hein? — perguntou Roland, e tentou virar a cabeça para ver como Nicholas estava reagindo. Mas os músculos de seu pescoço estavam travados. As sombras escureceram mais.— Não consigo me mexer! — queixou-se Helen. — Não consigo me mexer! Ai, meu pescoço!— Não tem problema — disse Roland. — Elas vão embora se a

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gente sair daqui.— Seu cretino! — insultou David. — Elas estão nos usando! Fechem os olhos! Não olhem!— Ainda estou vendo! Dentro da minha cabeça! — gritava Helen.

O ar sibilou. As sombras eram poças negras contornadas de luz, não estavam mais no jardim, em lugar nenhum, em espaço nenhum, não tinham mais profundidade nem fim.

— Não foi de propósito — justificou-se Roland. — Só queria mostrar a vocês... para vocês saberem...

Mal podia falar, um entorpecimento ia tomando conta dele. Suas forças estavam sendo sugadas.

— Não dá para você parar com isso? — choramingou Helen. — Oh, olhem, olhem!

Um ponto branco aparecera no meio de cada sombra, estremecendo como o foco de luz de uma lanterna. Os pontos cresceram, diminuíram de intensidade, modificaram-se, solidificaram-se e transformaram-se nas formas em expansão de dois homens, rígidos como bonecos, vindo rapidamente em direção às crianças. Igualaram-se ao contorno das sombras e começaram a inflar como bolhas na superfície delas. À medida que se aproximavam, sua velocidade aumentava; lançaram-se repentinamente contra as crianças, encheram as sombras, encobriram-nas e, naquele instante, perderam a rigidez e entraram no jardim os dois homens saídos de Elidor.

Estavam vestidos com túnicas e capas e seguravam lanças. Traziam os escudos às costas. Estavam atônitos, como se tivessem acordado no meio de um sonho. Então, ambos olharam para baixo, para o pedaço de chão entre eles, onde estavam enterrados os Tesouros.

Não havia mais estática no ar e a influência magnética sobre as crianças desaparecera.

Os homens ergueram a cabeça, olharam para o jardim à sua volta, saíram correndo pelo gramado e saltaram por cima da cerca

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para o pomar do vizinho. Helen, David e Roland não se mexeram, mas Nicholas saiu atrás dos homens. Agarrou umas pedras no chão e atirou-as freneticamente nas árvores. Estava soluçando.

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• 17 •

Espada-cortante e assento-de-ferro

ocê é doido varrido — disse David. — Precisa ser internado num hospício.— V

— Não sabia o que era — desculpou-se Roland. — E vocês não me escutavam. Tinha de mostrar a vocês. A culpa não é só minha, é do Nick também.

—Estava com tanta vontade de mostrar que tinha razão que faria qualquer coisa, não é? — David estava zangado.

—Não adianta perder tempo com conversa mole — interrompeu Nicholas. — Agora o negócio é decidir o que fazer.

—Não podemos fazer nada — reclamou David. — Esse pivete maluco já fez tudo. O melhor é entregarmos logo esses Tesouros antes que um de nós leve um golpe de espada pelas costas.

—Olhe aqui, eu só estava querendo que me deixassem em paz — disse Nicholas. — Achei que se esquecêssemos essa história de Elidor não teríamos mais problemas. Está certo, admito que a culpa também é minha, não é só do Roland. Minha tática não funcionou. Alguém tem uma melhor?

Ninguém falou nada.— Então, o que é que vocês acham disso? — perguntou Nicholas.

— Não dá mais para fingir, então vamos fazer o inverso: vamos enfrentar a situação e acabar com eles primeiro, antes que eles acabem com a gente.

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— Mas eles têm espadas — observou Roland.Não foi isso o que eu quis dizer — explicou-se Nicholas. — São os

Tesouros que eles querem, certo? Não estão muito interessados em nós.— Você não pode dar os Tesouros a eles! — protestou Roland. — Não pode deixar Elidor morrer assim! Não pode! É a coisa mais importante que existe!— Se achasse que isso resolveria o problema — argumentou Nicholas —, entregaria os Tesouros, com toda a certeza. Mas aqueles dois continuariam aqui, e os Tesouros também. Quando saíram daquelas sombras, também não tinham a menor idéia de onde estavam, exatamente como nós, quando chegamos a Elidor. Se não encontrarem o caminho de volta com os Tesouros, virão outros atrás deles. Mas, se os Tesouros forem para Elidor, vão nos deixar em paz.— Ótimo — disse David. — E como é que você vai fazer os Tesouros irem para Elidor?— Sei lá! — respondeu Nicholas.— Malebron está perdido — comentou Roland.— Problema dele — replicou Nicholas. — Ninguém nos pediu para fazer isso.— O Nick tem razão — concordou David. — Não podemos manter os Tesouros escondidos nem podemos lutar por eles.— E o unicórnio? — perguntou Helen.

— É o que estou dizendo — explicou Nicholas. — Quando se começa a mexer com essas coisas, nunca se sabe como é que vão acabar. Se não andarmos depressa, daqui a pouco metade de Elidor vai estar dentro do nosso jardim.— Mas aquele era Findhorn — alegou Roland. — Está sendo perseguido. Vocês viram aqueles cortes no lombo dele. Teve de entrar no nosso mundo para escapar. Querem matar Findhorn antes que Malebron o encontre. Malebron estava tentando nos dizer. Tem alguma coisa que ele quer que a gente faça.— Vai ficar querendo — disse Nicholas.

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Na manhã seguinte, ficou evidente que não havia muito tempo a perder. Durante a noite, algumas telhas de ardósia do depósito de carvão tinham sido retiradas e o canteiro de rosas estava cheio de fragmentos. Haviam sido usadas como pás para cavar, mas o solo congelado as quebrara.

A senhora Watson ficou ocupada demais o dia inteiro e não percebeu nada. À tarde tinha hora marcada no cabeleireiro e depois ia ao encontro do senhor Watson em Manchester. Os dois iam jantar com amigos antes da festa de Ano Novo, que seria realizada num grande hotel no centro da cidade.— Qual vai ser o próximo passo? — indagou David.— Eles devem voltar hoje à noite com alguma outra coisa para desenterrar os Tesouros — respondeu Nicholas. — Não vai ser difícil encontrarem. Tem um monte de barracões de ferramentas de jardim nas casas por aqui. Mas acho que não corremos nenhum perigo durante o dia. Eles vão ficar escondidos até que escureça.— Então, primeiro nós desenterramos os Tesouros, não é? — perguntou David.

— É. Temos mais ou menos uma hora para fazer isso depois que mamãe sair e antes de começar a esfriar demais.— O que papai vai dizer quando vir a bagunça que vai ficar o jardim?

— Não precisa ficar uma bagunça — disse Nicholas. — Podemos replantar as roseiras e, quando estivermos cavando, jogamos a terra em cima de uns plásticos grossos.

Helen fez um esboço do canteiro e etiquetou as roseiras para que pudessem ser replantadas no mesmo lugar. As ferramentas e os plásticos grossos foram preparados.— Vocês têm certeza de que podem cuidar de tudo sozinhos? — perguntou a senhora Watson. — O jantar está pronto na geladeira. E façam o favor de ir para a cama cedo, ouviram? Nada de ficarem a noite inteira acordados vendo televisão; e peguem lá fora o carvão

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para a lareira antes de escurecer; e não esqueçam de colocar a grade de proteção da lareira depois de acender o fogo. O número do telefone do hotel está no bloquinho.— Pare com essa agitação, mamãe — disse David. — Vamos ficar bem.— Você vai acabar perdendo o trem — advertiu Nicholas.— Ah, meu Deus! Já está na hora? Nem sei se tanta confusão vale a pena. Só estou indo porque seu pai faz muita questão.— Até logo, mamãe — despediu-se Helen. — Divirta-se bastante.

Acompanharam a mãe com os olhos até ela dobrar a esquina da rua.

— Ufa! — deixou escapar Nicholas.E cavaram em turnos alternados sem interrupção.Os nós no pedaço de fio que prendia a tampa na lata de lixo

enterrada tinham inchado, e eles tiveram de esperar enquanto David subia e remexia suas coisas à procura de um alicate próprio para cortar fios. Os sacos plásticos estavam embaçados quando os tiraram de dentro da lata de lixo, mas os

Tesouros não pareciam ter sido afetados depois de um ano debaixo da terra.

As crianças jogaram a lixeira de volta no buraco e achataram a terra com os pés depois de enchê-lo. As roseiras ficaram só um pouco tortas.

—Acho que devíamos pôr os Tesouros embaixo das nossas camas só por esta noite — sugeriu David depois do jantar — e ver se nos livramos deles amanhã.

—Sim, mas de que jeito? — perguntou Nicholas.— Pois é... — hesitou David. — Estamos com um tremendo

abacaxi na mão. Tem algum plano brilhante, Roland?Roland balançou a cabeça. David ligou a televisão.— E tem de ser amanhã — acrescentou ele. — Lembram disso?Assim que a televisão foi ligada, começaram com os assobios e

apitos estridentes e, quando a imagem surgiu, era toda um

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ziguezague em preto-e-branco.— Daqui a pouco, o barbeador do papai vai começar a funcionar também. Vai ser uma noite divertida.— Eles parecem tão inofensivos, não parecem? — comentou Helen. — Esta xícara, por exemplo, é tão feia! Não tem nada a ver com o caldeirão todo enfeitado com pérolas e cheio de luz.

— Mas você consegue sentir que ainda é um dos Tesouros, não é? — perguntou Roland. — Eles continuam os mesmos.

— É, acho que você tem razão — concordou David. — A espada de verdade e estes dois pedaços de madeira passam a mesma sensação. Isso não mudou.— Vamos experimentar? — propôs Helen. — Vou buscar uma xícara comum na cozinha e ver se tem alguma diferença.— Assim não dá! — protestou Nicholas. — Será que todo mundo endoidou? Pronto! E aposto que foi a melhor louça de mamãe!

Tinham ouvido uma xícara espatifar-se no chão da cozinha. Helen entrou correndo na sala do meio e bateu a porta atrás de si.

— Eu... eu estava pegando uma xícara — explicou ela — na prateleira, e alguém... alguém mexeu no trinco da porta dos fundos; ele subiu... e desceu. Se não visse, não teria percebido; não fez barulho nenhum.— A porta está trancada? — perguntou Nicholas.— Está.— Mas você deve ter ouvido alguém vindo pelo lado da casa.— Não, não ouvi. Ninguém. Mas alguém tentou abrir o trinco. E eu não ouvi nem um barulhinho sequer.— Eles sabem que estamos com os Tesouros — observou David. — É óbvio. Descobriram logo.

— Esperem um minuto — pediu Nicholas. — Calma.— Disque o número de emergência — sugeriu David. Antes que

ele pudesse dizer mais alguma coisa, escutaramo som de vidro quebrado na sala do meio.— Saiam da frente! — berrou Nicholas.

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Empurrou Helen para o lado e escancarou a porta. Uma das vidraças havia sido quebrada e um braço magro tateava à procura do trinco do lado de dentro. O telefone estava no parapeito da janela.

Nicholas agarrou o atiçador da lareira e bateu com ele no braço. Ouviu-se um uivo de dor e o braço sumiu com um movimento brusco.

— Todo mundo aqui, rápido! — ordenou Nicholas. — Empurrem o aparador de louça para lá! E a outra janela! Vamos empilhar as cadeiras sobre a mesa na frente dela!

— E a cozinha? — perguntou David.— Esqueça. Lá só tem a janela basculante, que é muito estreita. Agora peguem seus casacos e a mochila e levem para a outra sala. Andem depressa! Vou apagar a luz daqui.— Nick, o que é que vamos fazer? — indagou Helen quando estavam todos juntos na sala de estar.

— Fique quieta um minuto — pediu Nicholas. Aproximou-se da porta da frente e escutou junto à cortina.

— Um deles está no pórtico. Vão entrar de qualquer maneira, a gente não vai ter como impedir. O aparador e as cadeiras só vão servir para retardar um pouco a entrada deles. Temos de sair daqui. Se formos para uma rua bem-iluminada e com muita gente, vamos estar mais seguros. Eles não vão correr o risco de serem apanhados.

— E para onde é que vamos?— Para qualquer lugar, não faz diferença. Nicholas pôs a pedra

dentro da mochila.— Pronto, agora me dê sua xícara — disse ele para Helen. — Tem

espaço aqui.— Não — replicou Helen. — Eu mesma levo. Prefiro.

— Você é quem sabe. Agora, prestem atenção. Alguém tem dinheiro?— Ainda tenho um pouco do que ganhei no Natal — respondeu Roland.

— Eu também — acrescentou Helen.— Primeiro, como é que vamos sair? — perguntou David.

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— Esse aí vai ser esmagado atrás da porta — explicou Nicholas. — Como o papai fez, só que melhor. Vamos esperar até que o outro encontre um jeito de entrar e, quando ele estiver passando pelos móveis, nós achatamos este daqui contra a parede do pórtico e saímos correndo. Cuidado para ninguém tropeçar na cortina.

— Lá vem ele — avisou David.O aparador caiu de frente no chão.

— Prontos?— A porcelana favorita da mamãe... — lamentou-se Helen.

Ouviu-se o som de passos pisando em cacos, de vidro tilintando outra vez e então alguém caiu pesadamente sobre o aparador.

— Agora!Nicholas puxou o trinco. Todos juntos, arremessaram os ombros

contra a porta, que se abriu com violência. Sentiram a resistência de um corpo preso entre a porta e a parede do pórtico. Um homem gritou. As crianças já estavam em disparada pelo meio da rua, seus pés batendo tanto na superfície lisa que as pernas chegavam a arder.

Roland olhou para trás e viu uma figura sair depressa do pórtico, passar sob a luz do poste e refugiar-se na escuridão da cerca viva que ladeava a calçada.— Eles estão vindo!— Armem um escândalo! Façam as pessoas saírem de casa!— Socorro!— Socorro! Helen gritava.— Socorro! Socorro!

Os moradores iam apagando as luzes pela rua afora.— Socorro! Socorro!Havia visitas saindo de uma das casas, mas voltaram e a porta foi

fechada. Do outro lado do vidro canelado, a silhueta irregular de um homem estendeu um braço para fechar a tranca.

— Por favor, ajudem!As árvores de Natal nas janelas da frente desapareciam por trás

de cortinas puxadas às pressas.

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— Seus desgraçados, imprestáveis! — berrava David.— Não parem!

As crianças corriam sob os clarões dos postes de rua e às vezes entreviam uma sombra, às vezes um vulto alto; a escuridão era sempre muito grande. Quando dobraram a esquina, a claridade branca da estação de trem lá adiante parecia a de um santuário. Foram com tudo em direção àquela massa de vidro e concreto como se o perigo que vinha lá atrás, o perigo da espada-cortante e do escudo-de-ferro, pudesse ser neutralizado pelo brilho do néon.

Acotovelaram-se para passar pelo acesso à plataforma. Um trem estava quase saindo; o carregador acenava para o guarda e, quando viu as crianças, abriu uma porta.

— Entrem, entrem, vamos lá, seus apressados.O impulso da corrida era tanto que o carregador praticamente só

precisou desviá-los com o braço para dentro da cabina, um depois do outro, como dominós caindo.

— Na hora!O trem deslizou para fora da estação e acelerou a marcha.

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• 18 •

Paddy

— Na hora — disse David. — Na horinha! Fácil, fácil!— Fácil demais — acrescentou Roland.— O que é que você está querendo dizer? Roland fez uma careta.

—Fácil demais... sei lá.—Pois eu achei que não ia dar para escapar — comentou Helen.

— Já estava sentindo uma daquelas espadas em mim. Só pensava assim: é agora.

—Tivemos sorte — observou Nicholas.—É, pois é , tivemos sorte mesmo — concordou Roland —, não

foi?—Até onde vamos? — perguntou David.—Até o fim da linha — respondeu Nicholas. — Para o centro de

Manchester. É mais seguro.—É melhor contarmos tudo para papai e mamãe — aconselhou

Helen.—Só quero ver — disse Nicholas. — Vamos dizer que alguém

arrombou a casa e tivemos de cair fora. O estrago lá dentro vai provar que não estávamos mentindo.— Enquanto isso, fazemos o quê? — indagou David. — Eles ainda têm o resto da noite para roubar os Tesouros. A que horas termina a

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festa?— Uma da manhã.— Certo. É melhor não fazer nada por enquanto. Temos de encontrar papai e mamãe na saída da festa, e o estardalhaço todo só deve acabar, no mínimo, lá pelas três horas. Com um pouco de sorte, nem vamos para a cama esta noite.

Pagaram as passagens no terminal e desceram a longa ladeira que ia da estação até a cidade. As ruas estavam brilhando com as luzes e a decoração das festas de fim de ano. As pessoas caminhavam animadas em grupos alegres e barulhentos.

— Precisamos entrar num lugar barato para não sentirmos frio enquanto esperamos — disse Nicholas. — Vamos para um café.

Sentaram-se num bar com mesas de ferro batido e decoração de bambus e plantas tropicais. Um alto-falante tocava sem parar músicas sul-americanas que eram, a todo instante, abafadas pelo jato barulhento da máquina de café. Os quatro ficaram sentados ali durante uma hora e pediam mais café quando a garçonete olhava fixamente para eles.— Neste ritmo, a conta vai sair cara — comentou Nicholas.— Ainda estou tensa — queixou-se Helen. — Tenho a impressão de que todos estão nos observando, mesmo sabendo que não estão.— Eu também — disse David. — E devíamos sair daqui. Não estamos tão seguros assim. De nossa casa até aqui, no centro de Manchester, são umas três horas de caminhada; vamos supor que aqueles dois levem mais uma hora para se desviarem das pessoas no caminho. Portanto, devem chegar dentro de mais ou menos duas horas. Vão localizar os Tesouros onde quer que a gente esteja. A única coisa a fazer é ficar em movimento para que eles não consigam determinar a nossa posição com tanta facilidade.

— Já sei! — exclamou Roland. — Vamos andar de ônibus. Se mudarmos de lugar o tempo todo, eles nunca vão nos encontrar.

—Isso mesmo — concordou David. Terminaram de beber café e foram para a rua.

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— Qual deles? — perguntou Helen. — Tem uma porção.— Qualquer ônibus serve — disse Roland. — O primeiro que

parar. Aquele! O número 76!Correram pela calçada até o ponto de ônibus.— Na frente — indicou o cobrador, um antilhano. — Tem lugar na

frente.As crianças sentaram-se nos dois primeiros bancos atrás do

motorista. Nicholas pôs a mochila no colo.—Este ônibus vai para onde? — perguntou David.—Parque Brookdale — respondeu o cobrador.— Quatro passagens até lá, por favor — pediu Nicholas. O ônibus

seguia devagar pelo centro da cidade. O tráfego eraintenso e as pessoas andavam pelo meio da rua, mas logo o

brilho do Natal foi ficando para trás. O ônibus estava passando por um bairro cheio de oficinas, bares e lojas de produtos baratos.— Este lugar aqui é meio sinistro, não é? — observou David.— Ainda não percebeu onde estamos? — replicou Roland. — Acabamos de sair da Avenida Oldham. Estamos perto da Rua da Quinta-Feira.

O ônibus parou no ponto.— Vamos logo, minha gente — disse o cobrador para os passageiros que entravam. — Sentem dos dois lados.— E fooi meesmo... um pedacinho do paraíso... que caiiu... do céu um diaaa!

Alguém cantava alto e com voz enrolada no ponto de ônibus. As crianças o procuraram com os olhos e viram o cobrador ajudar um irlandês grandalhão a subir os degraus do ônibus. Ele tentou segurar a barra de metal do teto mas não acertou e despencou pesadamente no banco traseiro. Usava um casacão do Exército e tinha bebido bastante.

— Cara, cê começou a festejar cedo o Ano Novo, hein? — disse o cobrador.— Legal — respondeu o irlandês.

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— Vai pra onde?— Pra casa.— Não sei onde fica. Diga aí.

—Ballymartin, County Down — o irlandês olhava fixamente para a frente. — Tem uma veelha estraada que eu vou seguir até o fiiim — cantava ele — para um lugar que é o céu para miiim... É simples e beem pequeniino mas é a terra encantaada em que eu fui meniiiinooo...— Não estamos indo pra lá, não, cara. Serve o Parque Brookdale?

O irlandês estendeu uma moeda entre os dedos. O cobrador pegou o dinheiro e pôs a passagem e o troco no bolso do homem.

Os outros passageiros procuravam ignorá-lo. Ficaram de repente muito interessados em seus jornais, nos anúncios do ônibus ou em olhar pela janela.

O irlandês pendurou-se no encosto do banco da frente.—Ei, moça — chamou uma mulher sentada ali. Ela imobilizou-se,

fria.—Legal — disse o irlandês, e começou a cochilar.A mulher mudou de lugar, foi mais para a frente. Na mesma hora,

o irlandês levantou-se cambaleando e sentou-se na ponta do banco vazio. Seu ombro ocupava toda a passagem central. Inclinou-se para a frente e cutucou o braço do homem sentado à sua frente.

—Ei, chefe...David engoliu em seco.—Não olhem! — cochichou para os outros. — Não deixem que ele

veja a cara de vocês! É ele! O Paddy, da turma da demolição!—E ainda por cima nós estamos com os Tesouros! — exclamou

Helen. — Ele vai nos matar!—Já deve ter esquecido — disse David. — Faz mais de um ano, e

ele está num pileque daqueles...—Se eu tivesse levado uma pancada de alguém com uma barra

de ferro, nunca mais esqueceria a cara da pessoa — observou Nicholas. — Baixe a cabeça, Roland.

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Paddy tentou outra vez.— Ei, chefe. Tem aí um papelzinho pra eu escrever? O homem

afastou o braço.— Ôôô, quem sabe será por muuito teempo — cantava Paddy —,

quem sabe será pra seempree...!O homem levantou-se e passou por ele empurrando-o para o

lado.—Irlandês desgraçado! — xingou.—Legal — disse Paddy, e mudou-se de novo para o banco

seguinte.—Olha aí, cê tá querendo um papel? — perguntou o cobrador. —

Toma aqui. — Arrancou duas folhas de um caderno e deu-as a Paddy.— Tá é bom, gente-fina — disse Paddy. Procurou nos bolsos, pescou um toco de lápis no fundo de um deles e concentrou-se em tentar escrever sobre o joelho com o ônibus balançando.— Parque Brookdale! — gritou o cobrador.

O ônibus parou, o motorista desligou o motor. O cobrador desceu e fez a volta para falar com o motorista. Paddy e as crianças eram os únicos passageiros que restavam.— Vamos fugir correndo? — sugeriu David.— Nem pensar — replicou Nicholas. — Não dá para passar por ele.— Ei! — chamou Paddy. — Cês tão aí, é? — apertou os olhos para tentar focalizar as crianças, ergueu-se com esforço, endireitou o corpo e desabou novamente no banco à frente de Nicholas.— Ei, cara — disse —, dá pra me ajudar com esta carta aqui?— Ahn... sim, claro que dá — respondeu Nicholas.— Não é que eu seja analfabeto, não, sabe como é? Sei escrever carta muito bem, pode ter certeza. Mas é que eu tive uma noite daquelas. Daquelas!

Paddy não os reconhecera.— É, claro. O que é que você quer que eu faça? — Nicholas relaxou a mão que apertava a mochila.— Quero pedir demissão — disse Paddy. — Ah, eles nunca mais

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vão ver a minha cara, nem pintada. É minha carta de demissão. Se eu for dizendo pra você o que eu quero, você escreve? Hum... éé...: "Para o capataz. Prezado senhor... Prezado senhor." Ééé... Cê já escreveu?

— Já — confirmou Nicholas.— Bom, então... "Prezado senhor." Ah, foi uma noite daquelas.— Ponho isso na carta? — perguntou Nicholas.— Hein? Ah, não, isso não. "Prezado senhor, estou mandando por

meio desta a minha demissão"... é, ficou bom, ficou bom... "a minha demissão, eu não volto mais porque isso não é lugar pra um homem temente a Deus assinado senhor Patrick Mehigan."

— Quer assinar? — perguntou Nicholas.— O quê? Ah, não. Não precisa. Pode deixar assim mesmo,

amigão.Paddy pegou a carta, dobrou-a e ficou olhando para ela em

silêncio. Nicholas estava prestes a fazer um sinal para eles saírem de fininho quando Paddy falou.— Eu tô bêbado?— Hein? — hesitou Nicholas.— Eu perguntei se tô bêbado.— Ehh... pode ser; um pouco.— Também, não é à toa — explicou Paddy. — Depois de ver cavalo com chifre, qualquer um ia acabar bêbado.— O quê? — perguntou Roland. — Onde? Onde é que você viu esse cavalo?— Oi, minha gente... — disse Paddy. — Puxa, que noite danada...

Roland remexia-se, agitado, no banco do ônibus.— Quando foi? Foi hoje? Aqui?— Desista, Roland — disse David. — Ele não está prestando atenção em você. Ei, Paddy, conte pra gente. A gente quer ouvir.

—Arrá! Cês não iam acreditar.—Nós acreditamos, sim. Juro. Por favor, Paddy, conte.

— Então tá bom — concordou Paddy. — Cês tão sabendo que esse

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trabalho não dá pra encher barriga de ninguém e que a gente de vez em quando tem mais é que fazer uns extra por fora, tá me entendendo? E então eu voltei lá de noite pra pegar uns restinho de chumbo que fica largado lá pelo chão. E tem um pátio onde eu tinha guardado uns pedaço de chumbo debaixo de uma banheira velha, sabe? E aí eu entrei lá... e tava lá aquele cavalo todo branco, com aquele baita chifre na testa que só vendo pra acreditar. Bom, quando ele deu comigo, disparou sem nem ligar se eu tinha saído do caminho ou não, passou por mim feito um foguete, que eu até caí de costas no chão. Pronto, foi isso. Já sei que cês vão achar que é mentira minha.— Não, a gente acredita, sim — afirmou Nicholas. — A gente acredita em você.

— Acredita nada — retrucou Paddy. — Nem eu acreditei. Meteu a mão no bolso do casaco e tirou uma carteira.

— E quando eu tava depois no bar pra me recuperar um pouco, né, achei isso preso no botão da roupa.

Abriu a carteira e, entre dois envelopes amassados, havia alguns fios de cabelo.

As crianças nunca tinham visto nada semelhante. Os fios não eram brancos nem prateados. Eram feitos de pura luz.

Roland prendeu a respiração.— Posso pegar? — perguntou.—Ah, não — respondeu Paddy, recuando. — Não vou deixar

ninguém botar a mão neles. Deve dar azar. Tomei uns copos pra ver se eles iam embora, mas eles não foram. Dou uma espiada depois de cada copo mas eles continuam aí. Nossa, que noite danada.

—Ei, tão esperando alguma coisa? — indagou o cobrador. — Aqui é o fim da linha, pessoal.

—Vamos fazer o percurso de volta — explicou Roland.—Vocês é quem sabem — disse o cobrador. — E ele, vai para

onde?—Pra minha casa em Ballymartin — respondeu Paddy. — Eu é

que não fico mais aqui.

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—Queremos descer onde ele entrou — pediu Roland, estendendo o dinheiro das passagens.

—Espere um minuto... — interveio David.—OK — disse o cobrador. E pegou o dinheiro do bolso do casaco

de Paddy, metendo lá dentro outra passagem.—Legal — falou Paddy, e começou a ler sua carta. Estava de

cabeça para baixo, mas ele a contemplava, admirado.O ônibus deixou-os na esquina de uma rua mal-iluminada. Paddy

parecia sentir-se melhor com o passeio de ônibus.—Vai nos mostrar onde viu o cavalo? — perguntou Roland.—Eu, não — respondeu Paddy.—Espere aí, Roland — disse David.—Por favor — insistiu Roland.—Só vou mostrar o caminho pra vocês, mas não vou mais lá, não.—Nem eu — acrescentou Helen.Andaram até a esquina seguinte e Paddy parou instintivamente

junto à porta de vidro de um bar.— Se vocês entrarem na outra rua ali adiante — indicou ele —,

vão tá pertinho.Já não estava prestando muita atenção neles, atraído pelo som

de um piano e de risadas que vinham do outro lado da porta.— Eh... acho que vou entrar e tomar um trago pra espantar o frio

— comentou ele. — Foi uma noite desgraçada.Empurrou a porta e entrou. O barulho do bar espalhou-se pela rua

e ele desapareceu no meio dos rostos, da fumaça, do calor e da algazarra do bar. A porta fechou-se.

As crianças ficaram paradas na esquina. Diante delas, a rua parecia um túnel. Os postes estavam apagados; as casas, vazias.

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• 19 •

Ruínas

oincidência — resmungou Roland. — É só o que vocês sabem dizer! Coincidência. Já estou cheio de ouvir isso!— C

— Se você pensa que nós vamos ficar perambulando por este lugar horroroso — replicou David —, está muito enganado.— Mas, se a gente encontrar Findhorn, vai ficar tudo bem — ponderou Roland.— Estou morrendo de medo — disse Helen.— Ontem você já nos meteu numa encrenca enorme com essas suas idéias de jerico — reclamou David. — Nós não vamos, nem se discute.— Ah, vamos, sim! — rebateu Roland, e disparou pela rua escura afora.— Roland! Volte aqui, seu teimoso, seu destrambelhado! Volte!

As vozes foram ficando distantes."Agora eles vão ter de vir de qualquer maneira! Não vão ter

coragem de me deixar sozinho!", pensou.Correu pelas ruas mais largas até seus olhos se acostumarem

com a escuridão. A Lua tinha surgido e o reflexo das luzes da cidade clareava o céu. Entrou por pequenas travessas, correndo às cegas, passou por cruzamentos, terrenos baldios cheios de entulho e outras ruas.

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"A gente se encontra quando eles estiverem por perto. Vai ser fácil, vão estar chamando por mim."

A barra de ferro era pesada. Carregava-a pendurada para baixo, e o peso dela em seu braço estendido começava a fazer seu ombro doer. Roland parou e ficou escutando. Havia apenas o ruído da cidade, um ruído surdo e constante igual ao silêncio.

Entrara na área demolida. Os esqueletos dos telhados formavam desenhos fragmentados contra o céu.

Agora, cansado, Roland sentia-se menos seguro de si. Naquela hora, porém, tinha sido a única coisa a fazer. Ao olhar para os três rostos obstinados, viu que não adiantava mais discutir. Não era mais uma questão de incredulidade. Eles agora acreditavam nele, mas estavam assustados. E Roland também.

O silêncio das ruas era completo. Seus passos ecoavam nas pedras do calçamento. Estava cercado pelas ruínas. As portas e janelas olhavam para ele; havia móveis abandonados agachados no meio do entulho. Uma lata caiu retinindo de uma pilha de tijolos meio escondida pela sombra de um prédio.

— Ei! — Roland gritou. — Estou aqui!Ninguém respondeu.Roland foi andando. A dificuldade é que as ruas nunca permitiam

que enxergasse mais longe. O local era um labirinto de ângulos retos. Mesmo que os irmãos estivessem por perto, ele não os encontraria, e não queria chamar por eles outra vez.

Roland procurou um lugar onde pudesse subir com segurança e encontrou uma escada numa parede interna exposta de uma casa. O último degrau era o ponto mais alto que restava na casa; tudo o que ficava acima dele, inclusive o chão do quarto, havia sido derrubado.

Roland experimentou para ver se a escada agüentava seu peso; era firme, e então ele subiu.

Via as ruas um pouco melhor lá de cima. Atrás dele havia uma dupla fileira de quintais nos fundos das casas. Uma passagem ladeada de muros estendia-se entre as duas fileiras e, vista do alto,

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parecia uma rachadura."Eles vão acabar aparecendo mais cedo ou mais tarde", pensou

Roland. O melhor era não sair dali.Sentou-se no alto da escada sob a luz da Lua. O frio era intenso.

Os telhados e as pedras do pavimento cintilavam. Roland sentiu-se melhor. As ruas não lhe davam mais aquela sensação de ameaça; em vez disso ele sentia a quietude de alguma coisa em suspenso, como se fosse ficar para sempre ali, sentado ao luar.

Entretanto, o frio começou a doer dentro dele. Lembrou que os outros talvez tivessem decidido ficar esperando em algum lugar até que ele aparecesse.

Aquele pensamento preocupou-o, e ainda estava resolvendo o que fazer quando o unicórnio surgiu no fim da rua.

Vinha num trote acelerado e virou-se subitamente num dos cruzamentos, sem saber para que lado ir. E veio na direção de Roland.

Roland continuou sentado no alto da escada, acima da rua, e viu o unicórnio passar à sua frente; mal se atrevia a respirar.

De vez em quando o unicórnio se desviava para um dos lados e hesitava diante de entradas e de aberturas nos muros. Parava na soleira de uma casa, uma das patas levantada, mas sempre meneava o corpo e prosseguia pela rua afora.

Sua crina ondulava como um rio ao luar; a ponta de seu chifre cintilava como o fogo das estrelas. Roland estremecia com o esforço de olhar para ele. Queria fixar para sempre cada detalhe em sua mente, queria que restasse sempre aquela lembrança, não importando o que acontecesse depois.

O unicórnio entrou na rua seguinte e Roland perdeu-o de vista, até que ouviu o barulho dos cascos no entulho, e lá estava o longo pescoço movendo-se entre os muros da passagem que dividia as fileiras de quintais.

Roland desceu a escada depressa, o mais silenciosamente que pôde, e tentou achar o caminho para o quintal por dentro da casa

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escura. Pulou o muro da passagem quando o unicórnio havia acabado de percorrê-la. Roland foi atrás dele.

A passagem terminava num pátio quadrado com chão coberto de terra e cinzas e totalmente cercado de muros. O unicórnio ouvira Roland aproximar-se e estava esperando, alerta, no meio do pátio. Ficaram ambos imóveis, um observando o outro.

— Findhorn. Cante... Findhorn.Estava a cinco metros de distância do unicórnio. As narinas do

animal dilataram-se.— Cante, Findhorn.O unicórnio bateu com a pata no chão e suas orelhas baixaram

até ficar encostadas na cabeça. Roland estacou.— Você tem de cantar! Tem de cantar!Quando deu um passo à frente, o chifre mergulhou em sua

direção. Roland desviou-se para um dos lados e o unicórnio passou num meio galope a caminho da passagem.

— Não! — gritou Roland, e correu atrás do unicórnio. — Espere! Não pode ir embora!

Alcançou-o e tentou fazê-lo mudar de rumo.— Ei! Ei! Ei! — agitava os braços levantados. O unicórnio parou.

— Para trás!Roland viu-o novamente baixar a cabeça e esquivou-se a tempo.

Apesar disso, o unicórnio não continuou a investida e voltou-se para a passagem.

— Espere! — Roland bloqueou o caminho. — Findhorn! Cante! — e agitou a barra de ferro, a lança de Malebron, diante da cara do animal.

O corpo prateado ficou negro contra o céu quando o unicórnio empinou e golpeou os cascos contra o chão. Roland atirou-se para o lado e os cascos lançaram uma chuva de terra gelada sobre ele. Roland caiu e tentou desordenadamente se proteger.

— Não, Findhorn!Mas o unicórnio atacava-o, cruel e impiedoso, sem parar,

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levantando cinzas e terra. Só a agilidade de Roland o salvava. Cascos, chifre, dentes, sem parar.

Não terminaria nunca, não havia como escapar. Roland sentiu medo. Correu para o muro.

— Pule!Ouviu uma voz e, através do suor do rosto, viu um corcunda de

joelhos no largo acabamento de pedra do muro.— Segure aqui! — havia um braço estendido. Ele pulou, segurou-o e subiu para o alto do muro, sendo arrastado e agarrando-se à parede ao mesmo tempo.— Você não aprende nunca, hein? — disse Nicholas.

A pedra dentro da mochila presa às suas costas quase o desequilibrara quando Roland se pendurara em seu braço. Ficaram parados um junto do outro, sem coragem de se mexer, enquanto o chifre do unicórnio faiscava lá embaixo.— De onde você veio? — perguntou Roland, arfando.— Estava na rua do outro lado e ouvi sua gritaria.— Temos de fazer o Findhorn cantar — disse Roland. — É o único jeito de salvar Elidor. É para isso que estamos aqui.— O quê? — zombou Nicholas. — Cantar? Ora, conte outra piada!— Ele precisa cantar, tem de cantar. Está assustado. Não é para menos.

O unicórnio andava para a frente e para trás, perto do muro.— Não acho que esteja assustado coisa nenhuma — replicou Nicholas. — Quer mais é acabar com a gente.— É porque ele viu a lança. Pensa que está sendo perseguido outra vez. Olhe só aquelas cicatrizes todas no flanco dele.— Ele não desiste, não é? — disse Nicholas. — Ainda bem que não temos de descer lá.— O pior é que eu tenho — falou Roland. — Deixei cair a lança quando pulei.— Então, está resolvido — concluiu Nicholas. — A gente vai ter de se arranjar só com três Tesouros. Mas por que será que esse

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unicórnio veio parar exatamente aqui?— Está tentando voltar, acho — supôs Roland. — Ele sabe que um dos acessos para o outro lado é aqui. Fiquei observando como ele agia quando estava vindo pela rua.— Você viu David e Helen?— Não — respondeu Roland. — Não estavam com você?— Nós nos perdemos uns dos outros quando atravessávamos um daqueles terrenos bombardeados na guerra.— Ah.— Está vendo, você acabou nos colocando de novo numa baita confusão — observou Nicholas.

— Temos de encontrar os dois — afirmou Roland.— Grande novidade! Quer me dizer onde eles estão agora? —

Nicholas fez com o braço um gesto largo que abrangia a cidade inteira.

A fileira de casas onde eles se encontravam ficava no limite da área de demolição. Do outro lado do lugar onde estava o unicórnio, estendia-se o espaço aberto dos terrenos baldios.

Roland passou os olhos por aquela paisagem fria. E teve um sobressalto, quase caiu do muro.

— Lá! — apontou ele. — Lá estão eles!Dois vultos vinham correndo juntos para as casas.— Puxa, graças a Deus! — suspirou Nicholas. — Ei! David! Helen!

Estamos aqui.— Oi! — gritou uma voz.— É o David! — exclamou Roland. — Ele está na rua!

— Então, quem são aqueles dois? — perguntou Nicholas. Àquela altura, porém, os vultos já se achavam próximos o bastante para Nicholas e Roland verem suas capas e o brilho da Lua em suas lanças no meio das ruínas.

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• 20 •

A canção de Findhorn

A cabeça de David apareceu na janela dos fundos de uma casa.— Quer dizer que você afinal conseguiu agarrar o pestinha — disse. — Onde é que ele estava?

—Suba aqui, depressa — mandou Nicholas.—Vou torcer o seu pescoço qualquer dia desses, Roland —

reclamou David. — Helen está com vocês?—Não. Feche essa matraca e venha aqui para cima, rápido! —

disse Nicholas.David pulou do parapeito da janela para o quintal e escalou uma

pilha de entulho que estava acumulada junto ao muro. Roland e Nicholas estenderam as mãos e puxaram-no para cima do muro.

—Por que é que vocês estão aqui? — perguntou David. — Minha nossa!

Ao olhar para baixo, dera de cara com o unicórnio.—E ainda tem mais — acrescentou Nicholas. — Já viu quem está

chegando aí?Os dois homens aproximavam-se do limite entre os terrenos

baldios e a área de demolição e vinham direto para onde os meninos estavam.

—Feliz Ano Novo — saudou David. — Vamos rápido para o outro lado do pátio, por cima deste muro.

—Não posso deixar a lança para trás — disse Roland.—Vai ganhar logo uma lança só para você se a gente não sair

daqui depressa — replicou Nicholas.

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Começaram a deslocar-se ao longo do muro. Findhorn acompanhava-os lá embaixo.

—Roland quer que ele cante — caçoou Nicholas. — E aí todo mundo vai poder ir para casa.

—Vocês são uns loucos desvairados, mesmo — resmungou David.—Mas ele tem de cantar — insistiu Roland. — Estava naquele

livro: "E a Escuridão não findará. A menos que soe a Canção de Findhorn". É uma profecia. Ele tem de cantar!

Não, não tem coisa nenhuma — retrucou David. — "A menos que" não quer dizer que ele vá cantar. Nem quer dizer que ele seja capaz de cantar. Imagine só, um unicórnio cantar... Desce daqui e vamos ver quem é que vai cantar!

—Tomem cuidado — Nicholas advertiu. — Eles estão aqui.Os homens estavam no muro, do outro lado da quina do pátio.David sacudiu a espada de ripas de madeira.—Tesouros! Pedaços de pau vagabundos!—Estão passando por esta casa e pelo quintal — disse Nicholas.—E se a porta estiver trancada? — perguntou David. — Algumas

delas estão.—Espere — falou Roland. — Eles viram Findhorn.E o unicórnio tinha visto os homens. Afastou-se do muro com

uma guinada para o centro do pátio, bufando, rompendo a terra com os cascos, erguendo o chifre, cheio de fúria.

Os homens desprenderam os escudos das costas antes de pularem para dentro do pátio.

—Eles querem matar Findhorn para ele não cantar! — gritou Roland.

Os homens se separaram. Atiraram as lanças de longe e depois avançaram com as espadas.

Os homens chegaram mais perto. Findhorn balançava a cabeça, sem se decidir qual deles mataria primeiro. Eles curvaram-se, preparando-se para o combate. E Findhorn lançou-se sobre eles. O homem que ele atacou não revidou mas saltou para o lado, o outro

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investiu contra Findhorn, desferindo-lhe um golpe que lhe rasgou a anca de alto a baixo e, quando Findhorn girou, rápido como um chicote, o primeiro homem feriu seu flanco. Essa foi a estratégia deles contra o unicórnio, impedindo-o de levar avante seu ataque. Os homens moviam-se à sua volta como se fossem cães de caça. Do alto do muro, parecia que eles estavam lutando com um feixe de relâmpagos.

—Aonde você vai? — perguntou Nicholas. Roland estava se afastando por cima do muro.

—Não se preocupe.—Até parece. Volte já aqui.Roland começou a correr, com os braços estendidos para não

perder o equilíbrio. Ouviu Nicholas sair atrás dele mas não se virou. Queria encontrar o lugar onde tinha subido no muro.

Os homens tentavam encurralar Findhorn num dos cantos do pátio. A barra de ferro estava caída na terra. Roland sentou-se na beirada do muro. Um dos homens viu a barra e gritou. Deixou o unicórnio e correu para pegar o Tesouro. Roland apoiou a barriga no muro, pendurou-se nele e pulou.

Caiu na parte sombria do muro, perto da luta. O homem pegou a barra de ferro e avançou para ele. Nicholas estava sobre o muro, mas a altura era grande demais, e Roland estava indo ao encontro do homem.

Nicholas escorregou para o quintal do outro lado do muro. Forçou para cima a pesada tranca de ferro que fechava a porta. Ela saiu do lugar. Então abriu a porta, desviou-se do unicórnio e da espada e correu para Roland. O homem aproximava-se dele com o Tesouro na mão mas Roland não parava. Ele gritava e estendia os braços para a lança de Malebron enquanto corria, sem pensar, sem se importar com o perigo, querendo apenas tomá-la do outro, que avançava, firme, preparando a estocada.

Nicholas pegou Roland pelo pescoço com um dos braços e agarrou-o pelos cabelos com a outra mão. Puxou-o para trás e

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aproveitou o impulso de seu desequilíbrio para arrastá-lo em direção à porta. O homem continuou avançando, porém Nicholas não olhou para ele: seus olhos estavam fixos na porta aberta no muro. Os calcanhares de Roland cavavam sulcos negros na terra mas ele não conseguia fazer seu irmão parar. Caíram os dois no chão. Nicholas fechou a porta com um chute e prendeu a tranca no seu encaixe. Um grito de advertência perdeu-se em meio ao barulho de cascos, um berro soou ainda mais alto e a madeira da porta foi perfurada por um chifre, acima da cabeça de Roland.

O chifre recuou, fazendo a madeira gemer; algo pesado desabou contra o outro lado da porta.

David estava em cima do muro, olhando para dentro do pátio.— Ele não teve a menor chance de escapar. O chifre entrou direto

nas costas dele.Roland e Nicholas subiram para junto de David. Enquanto

Findhorn se soltava da porta, o outro homem apanhara a barra de ferro e estava fugindo para a passagem. Não podia enfrentar o unicórnio sozinho.

Findhorn precipitou-se atrás dele.— A Helen! — exclamou David. — O homem está com a lança!— Não se esqueça disso, Roland — observou Nicholas —, estou avisando, não se esqueça disso.

O unicórnio estava lá na frente, por isso saíram correndo da passagem para a rua achando que só o veriam de relance em alguma esquina. Mas quase se chocaram com ele.

Dispersaram-se em busca de um lugar onde pudessem se proteger.

O unicórnio galopava de um lado para o outro na rua, o corpo ferido, cor de prata e negro.

— Ficou louco de raiva! — berrou David.— Ainda está sentindo o cheiro do homem — comentou Nicholas. — Ele pode estar escondido por aqui.— Nem parece de verdade! — exclamou David. — É só fogo e ar!

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Findhorn volteava nas patas traseiras, suas narinas fumegavam no frio da noite. E Helen surgiu na esquina. Parou no meio da rua quando viu o unicórnio. Segurava a xícara com as duas mãos.

— Helen! Cuidado! Procure um lugar para se esconder!Findhorn desceu pela rua como uma ventania de labaredas.

Helen parecia incapaz de se mover.E então Findhorn refreou aquela corrida desabalada, recuou

espantado e parou. Levantou a cabeça e andou com delicadeza na direção de Helen. E, quando a alcançou, esqueceu todo o seu furor, ajoelhou-se e deitou-se no chão à sua frente. Ela também se ajoelhou, então ele pousou sua enorme cabeça no colo de Helen.— Não se preocupe — Roland avisou com voz branda. — Ele não vai machucar você.— Eu sei — disse Helen.

Roland saiu do lugar onde se escondera e foi caminhando pela rua. Nicholas gritou-lhe alguma coisa mas ele não escutou.

— O que é isso, Roland? — perguntou Helen. — O que houve?Ela olhava Findhorn nos olhos.— "De homem nenhum sou cativo a não ser da donzela sem par"

— sussurrou Roland.Helen começou a chorar silenciosamente.

— Eu quebrei a figura dele no vaso — ela disse.— Cante, Findhorn — suplicou Roland. — Cante, por favor.

O unicórnio fitava Helen e, pela primeira vez, Roland encontrou seu olhar. O que viu, não saberia dizer com palavras. Era intenso demais para que pudesse explicar.

— Findhorn, Findhorn, você precisa cantar. Não vai acontecer nada de ruim se você cantar. Ninguém vai machucar você. Ninguém. O perigo vai acabar. Por favor. Cante.

Ouviu David e Nicholas chegarem e ficarem de pé atrás dele. Findhorn não se mexia. Toda a sua força estava adormecida.

— Você pode salvar Elidor. Sei que pode. Agora eu sei. Cante, Findhorn.

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Um tijolo espatifou-se na rua. De um dos lados, só as fachadas de uma fileira de casas na ladeira permaneciam de pé, e o homem vinha andando lá em cima com a barra de ferro, a lança, levantada. Atrás dele, as luzes da cidade avermelhavam o céu.

David e Nicholas cercaram o unicórnio para tentar protegê-lo, mas não podiam fazer mais nada.

— Cante! Vai ser tarde demais!Findhorn fez um esforço, quase como se quisesse falar, mas não

podia, não conseguia.O homem parou para equilibrar-se e atirar a lança.— Cante, Findhorn, cante!Helen abraçava a cabeça dele e acariciava a cabeleira feita de

luz.— Levante! — gritou Roland. — Levante, Findhorn! Corra! Oh,

Findhorn! Findhorn! Não!A lança desceu sibilando, a barra de ferro penetrou entre as

costelas do unicórnio até o coração. O pescoço alvo arqueou-se, a cabeça ergueu-se para as estrelas e ele cantou uma canção cheia de fogo infinito que ressoou além das ruas, da cidade, das frias colinas e do céu. Os dois mundos estremeceram com a canção.

Um brilho intenso cresceu nas janelas da fileira de casas e, naquela luz fulgurante, surgiram Elidor e seus quatro castelos dourados. Por trás de Gorias, o resplendor do sol nascente rasgando as nuvens pouco a pouco enchia de cores a vastidão dos campos. Os riachos dançavam, os rios corriam livres e todo o ar luminoso era fresco e novo. Mas uma névoa estava cobrindo os olhos de Findhorn.

Roland pegou a barra de ferro e puxou-a. Sentiu o atrito contra o osso. Puxou-a mais.

— Agora! — bradou Nicholas. — Agora é a nossa chance! Devolvam os Tesouros agora!

Arrebentou as tiras da mochila para pegar a pedra.Roland puxou mais um pouco a barra de ferro. Soltara-se do osso,

e deslizou para fora da carne do unicórnio.

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A Canção de Findhorn continuava, cheia de beleza e terror.Roland olhou pelas janelas para Elidor, lá longe. Viu a figura alta

no topo das muralhas de Gorias, a capa dourada ondulando. Viu a vida ressurgindo na terra, da Floresta de Mondrum às montanhas do Norte. Viu a manhã nascendo.

Não era o bastante.— Sim! Tome os Tesouros!Roland gritou de aflição e, tirando a xícara de Helen, lançou-a

junto com a barra de ferro na direção das janelas. Nicholas e David atiraram também a pedra e a espada de pau. Os quatro Tesouros atingiram as janelas ao mesmo tempo, as vidraças relampejaram e, por um instante, pedra, espada, lança e caldeirão pairaram no ar com o esplendor de suas formas verdadeiras, quase um efeito dos estilhaços do vidro e da luz dourada.

A canção extinguiu-se.Estavam sós diante das janelas, entre as ruínas de um bairro

pobre.

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