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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO BOLAS DE PAPEL: Sociedade, gênero e território em contos de futebol argentinos VITOR LOURENÇO RODRIGUEZ SALGADO UFRJ Rio de Janeiro 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

BOLAS DE PAPEL:

Sociedade, gênero e território em contos de futebol argentinos

VITOR LOURENÇO RODRIGUEZ SALGADO

UFRJ

Rio de Janeiro

2018

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BOLAS DE PAPEL:

Sociedade, gênero e território em contos de futebol argentinos

Vitor Lourenço Rodriguez Salgado

Dissertação de Mestrado submetida ao

Programa de Pós-Graduação em Letras

Neolatinas da Universidade Federal do Rio

de Janeiro – UFRJ, como parte dos

requisitos necessários para a obtenção do

título de Mestre em Letras Neolatinas

(Estudos Literários Neolatinos).

Orientador: Prof. Doutor Ary Pimentel

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2018

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Bolas de papel:

Sociedade, gênero e território em contos de futebol argentinos

Vitor Lourenço Rodriguez Salgado

Orientador: Professor Doutor Ary Pimentel

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos

requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas

(Estudos Literários Neolatinos)

Examinada por:

_________________________________________________

Presidente, Prof. Doutor Ary Pimentel – PPGLEN - UFRJ

_________________________________________________

Prof. Doutor Miguel Angel Zamorano Heras – PPGLEN - UFRJ

_________________________________________________

Profa. Doutora Beatriz Resende – PPGCL - UFRJ

_________________________________________________

Prof. Doutor Paulo Roberto Tonani do Patrocínio – UFRJ, Suplente

_________________________________________________

Prof. Doutor Victor Manuel Ramos Lemus – UFRJ, Suplente

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2018

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Salgado, Vitor Lourenço Rodriguez.

Bolas de papel: Sociedade, gênero e território em contos de futebol

argentinos / Vitor Lourenço Rodriguez Salgado. - Rio de Janeiro: UFRJ /

Faculdade de Letras, 2018.

109f.; 31 cm.

Orientador: Ary Pimentel

Dissertação (Mestrado) – UFRJ / Faculdade de Letras / Programa de Pós-

Graduação em Letras Neolatinas, 2018.

Referências Bibliográficas: ff. 103-108

1. Relatos de futebol. 2. Narrativa argentina. 3. Questões de gênero. 4.

Eduardo Sacheri. 5. Claudia Piñeiro. I. Pimentel, Ary. II. Universidade Federal do

Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras

Neolatinas. III. Título.

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RESUMO

SALGADO, Vitor Lourenço Rodriguez. Bolas de papel: sociedade, gênero e território

em contos de futebol argentinos. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de

Janeiro, Faculdade de Letras, 2018. Dissertação de Mestrado em Literaturas Hispânicas.

O crescimento da produção de narrativas associadas ao futebol esboça a

consolidação de um campo literário que, cada vez mais, ganha destaque em meio aos

círculos da crítica acadêmica. Seu substancial desenvolvimento ao longo das décadas

expressa-se através do aumento da quantidade de obras por nomes reconhecidos como

Osvaldo Soriano, Eduardo Sacheri e Claudia Piñeiro, refletindo a legitimação do tema

na literatura e um rompimento maior com a comum banalização do futebol na esfera

intelectual. A partir da análise de elementos do universo da bola presentes nas narrativas

argentinas, seria possível observar uma série de práticas do cotidiano de torcedores e

torcedoras que se alinham de forma semelhante aos valores reproduzidos nas mais

diversas esferas da sociedade. Ademais, a leitura do jogo vivido pelos indivíduos

permite uma compreensão sobre as maneiras pelas quais sujeitos se reconhecem e se

representam no dia-a-dia, agenciando formas coletivas de estar-no-mundo.

Tangenciando questões relacionadas à discussão de gênero e aos expedientes afetivos de

subjetividades localizadas na tensão entre o microterritório, o nacional e o global,

operamos uma racionalização das ações no interior do esporte que se combinam na

produção de autores e autoras, dando a ver a composição do social em seus mais

variados aspectos. Por meio de contos de futebol argentinos, este trabalho procura

pensar as dinâmicas próprias à vida cotidiana de sujeitos e grupos sociais desde os

expedientes simbólicos do futebol representados na literatura.

Palavras-chave: relatos de futebol, narrativa argentina, questões de gênero, Eduardo

Sacheri, Claudia Piñeiro.

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ABSTRACT

SALGADO, Vitor Lourenço Rodriguez. Bolas de papel: sociedade, gênero e território

em contos de futebol argentinos. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de

Janeiro, Faculdade de Letras, 2018. Dissertação de Mestrado em Literaturas Hispânicas.

The growth in the production of narratives associated with football outlines the

consolidation of a literary field that, increasingly, starts to be highlighted in circles of

academic criticism. The substantial development over the decades is expressed through

the increase in the number of works by renowned names such as Osvaldo Soriano,

Eduardo Sacheri and Claudia Piñeiro, reflecting a legitimation of the subject in

literature and a greater break with a common banalization of football in the intellectual

sphere. From the analysis of elements of the universe of football, it is possible to

visualize a series of practices of the daily life of fans that are aligned specifically to

values reproduced in the most diverse spheres of society. In addition, the reading of the

game lived by the people allows an understanding on how the subjects recognize and

represent each other day by day, building collective forms of being-in-the-world. By the

reading of issues related to the discussion of gender and the affective processes of

subjectivation located in the tension between the microterritory, the nation and the

global, we operate a rationalization of the sport‟s phenomenons, combined in the

production of authors, giving to see the composition of the social at its most variety.

Through Argentine football narratives, this work tries to think the particular dynamics

of the daily life of individuals and social groups, as well as the symbolic records of

soccer represented in the literature.

Key words: football narratives, Argentine narratives, gender issues, Eduardo Sacheri,

Claudia Piñeiro.

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AGRADECIMENTOS

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio

financeiro durante os dois anos de pesquisa.

Ao Professor Doutor Ary Pimentel pela orientação, confiança e comprometimento em

todo o processo.

Aos professores Miguel Ángel Zamorano Heras, Victor Lemus e às professoras Silvia

Cárcamo e Beatriz Resende pelas diversas contribuições durante a pesquisa, assim como

pelo carinho com que sempre me receberam.

Ao Departamento de Letras Neolatinas da UFRJ, especialmente a Vladimir e ao

professor Antônio, por toda disponibilidade e atenção aos trâmites institucionais

relacionados à pesquisa.

A Thiago Carvalhal, pela parceira e pelos conselhos tranquilizadores.

A Gabriel Ponciano, pela escuta e presença de todas as horas.

À Renata Dorneles, pela amizade e pelas ricas discussões sobre feminismo.

Ao meu presente inesperado, Mariana Nunes, por aguentar minhas inquietudes durante

a escrita.

À minha irmã, Tayane Lourenço, e ao meu cunhado, Nilton Scher, pela força e amparo

afetivo.

À minha prima Fátima Elizabeth, por todo o entusiasmo compartilhado.

Aos meus primos Márcio e Luiz, por aliviarem a pressão nas horas difíceis.

À minha filha Malu, meu espelho e esperança.

À minha avó Djalma e ao meu avô Ademar, falecido durante o processo. Sem eles nada

seria possível.

E, por fim, agradeço pela perseverança e insistência da minha mãe, Márcia, meu maior

exemplo e porto seguro.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11

1. CAMPO ABERTO: entre a erudição e o popular .............................................................. 26

1.1. O popular representado: encontro entre torcedores e a literatura ...................... 30

2. AS DONAS DA BOLA .......................................................................................................... 40

2.1. Breve apresentação do quadro argentino contemporâneo ......................................... 41

2.2. Entre o público e o privado: driblando a desigualdade de gênero............................. 46

2.3.Representações na literatura: a voz das mulheres no futebol ..................................... 55

3. AS TRIBOS DA BOLA: descompassos entre o território e o Estado-Nação................... 72

3.1. Micronações de torcedores: futebol, nação e imaginário coletivo ............................. 75

3.2. Territorialidades: mapas simbólicos de torcidas no contexto argentino ................... 77

3.3. Torcedores em deslocamento: pertencimento, melancolia e performance ............... 81

CONCLUSÃO ......................................................................................................................... 101

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 104

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Em homenagem à memória do meu avô

Demar, flamenguista inconformado,

E para minha avó Didi, que assiste às

partidas todo domingo.

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“En un partido de fútbol caben infinidad de novelescos episódios”

Alejandro Dolina

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INTRODUÇÃO

Em uma crônica publicada em seu último livro, que leva o expressivo título El

fútbol, de la mano, Eduardo Sacheri reconhece que “muchos de nosotros usamos el

fútbol para muchas cosas importantes. Por ejemplo, para conocernos a nosotros

mismos” (2017, p. 14). Pouco mais de uma década antes, Franklin Foer já intitulava seu

importante obra com uma afirmação que a muitos poderia parecer pretensiosa: Como o

futebol explica o mundo. Numa imbricação dessas duas formas de ver o fenômeno

futebolístico como algo que nos ajuda conhecer a nós mesmos e ao mundo em que

vivemos, esta dissertação tem como tema a análise de aspectos sociais implicados nas

representações do futebol presentes na literatura argentina. Trata-se da percepção de que

o universo do esporte manifesta uma série de elementos relacionados aos costumes e

hábitos sociais que podem ser estruturadores de indivíduos e grupos. Algumas destas

características se fazem presentes não só pela prática esportiva, mas também se

manifestam na esfera literária de representação do esporte, constuindo um ponte entre o

campo das produções simbólicas e os espaços mais cotidianos nos quais os indivíduos

jogam, torcem, compartilham sentimentos, estruturam redes de memórias, constroem

identidades. Segundo Marc Auge, “el fútbol constituye un hecho social total porque

está relacionado con todos los elementos de la sociedad, pero también porque se puede

analizar desde diferentes puntos de vista” (1998, s.p., grifo nosso).

O olhar lançado aos temas e problemas, práticas e expedientes rotineiros de

sujeitos sociais, como, p. ex., torcedores e torcedoras, profissionais do esporte, amigos e

amigas de esquina ou de bar que se reúnem em encontros para disputar ou assistir às

partidas, juntamente com a pronlematização crítica das produções da imaginação

literária constituem os níveis basilares da discussão que desejamos pautar nessa

dissertação, isto é, a promoção do estudo da sociedade fundado nos modos de

representação de uma prática (“fato social total”) que nos permite ler distintas

dimensões do social. A ponderação sobre esses parâmetros tem como propósito a

racionalização de um espaço simbólico específico, o universo das quatros linhas e suas

múltiplas implicações sociais, que engendra rituais e práticas concretas na sociedade,

expressando diversos aspectos de organização da cultura. Desse modo, o resultado final

da nossa pesquisa apresenta-se sob a forma de um texto através do qual se busca ler a

sociedade por meio de um determinado locus literário ainda bem pouco explorado.

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Na segunda metade do século XX, vemos surgir no campo literário argentino um

número expressivo de narradores que passam a escrever relatos ficcionais cujo tema é o

futebol. Entre eles, poderíamos destacar os nomes de Pablo Rojas Paz, Roberto Jorge

Santoro, Osvaldo Soriano, Roberto Fontanarrosa, Juan Sasturain e Alejandro Dolina.

Com a chegada de novas gerações que deram continuidade a essa dimensão dos

diálogos entre literatura e futebol, observamos, já no século XXI, além do surgimento

de novos escritores que conjugam as duas paixões, a exemplo de Eduardo Sacheri e

Alejandro Parisi, a presença crescente da figura feminina em uma área tradicionalmente

dominada por homens. Entre as narradoras que passam a investir nessa temática,

poderíamos mencionar Liliana Hecker, Gabriela Cabezón Cámara, Selma Almada,

Esther Cross, entre tantas outras.

Observa-se já uma grande quantidade de produções por escritores e escritoras

reconhecidos pelo cânone e, gradualmente, os estudos sobre o tema vem ganhando

amplitude na crítica da literatura, a exemplo de Ignacio Martino, estudante da Faculdade

de Comunicação de La Plata, com o artigo “Fútbol y literatura: um pase entre líneas”

(2015), e Daniel Marroquín Botero, estudante da Faculdade de Ciências Sociais da

Pontifícia Universidade Javeriana de Bogotá, com a publicação “Los héroes del fútbol:

una nueva épica latinoamericana” (2010), que investem na discussão, propondo novas

formas de estudar o contexto social e o campo literário latinoamericano através da forte

marca cultural do futebol.

Na sociologia não faltam referências que tratem do vínculo entre futebol e

sociedade. Pablo Alabarces (2009) demonstra, com o aporte de Néstor García Canclini,

como as representações ligadas ao esporte, mediadas pelo mercado, podem transformar

o sentimento nacionalista em produto e os cidadãos em consumidores. Em outro

momento rico dessa linha de pesquisa, no livro Fútbol y patria (2007), o professor da

UBA e pesquisador do Instituto de Investigaciones Gino Germani contextualizará a

história argentina de acordo com os acontecimentos do mundo da bola, articulando

desde as sagas de equipes locais até os grandes momentos de comoção atribuídos às

conquistas e aos deslizes da seleção nacional. María Graciela Rodríguez (“The Place of

Women in Argentinian Football”, 2010) debate a dominação masculina dentro do

futebol, proporcionando uma crítica ao modelo hegemônico de masculinidade que

vigora nas arquibancadas. Ramón Llopis-Goig (2009) sinaliza a descentralização dos

nacionalismos frente ao crescimento das identificações com grandes clubes, como Real

Madrid e Barcelona, no nível global, sugerindo o desenvolvimento de um cenário pós-

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nacional no futebol. Alejandro Fabbri (2006) fará um mapeamento do modo como as

paixões clubistas se organizaram no território argentino. Willian Mendoza Gil (2016)

propõe uma leitura crítica do mercado global no qual o esporte se insere, partindo das

Olimpíadas de 2016 no Rio para convalidar a tese de que as representações midiáticas

de grandes espetáculos desportivos regulam e estruturam os comportamentos e

aspirações sociais dos indivíduos. Juan Villoro (2014), de maneira muito irreverente,

debaterá particularidades de jogadores, times e personagens históricos vinculados ao

futebol, com o intuito de explorar a dramaticidade característica do esporte. Por fim,

Richard Giulianotti (2002) delineia os marcos históricos e sociais sobre os quais o

futebol se construiu, ressaltando as problemáticas de classe social, industrialização e

popularização do jogo.

O impasse em relação às abordagens cruzadas de futebol e literatura representa

uma das inúmeras facetas do que no século XX irá se configurar como a tensão

hierárquica que opõe “alta cultura” e “cultura de massa”, numa época em que ainda se

falava de “cultura de elite” versus “cultura popular”, e a “cultura de massas” aparecia

como um mediador entre ambas. Dentre as principais observações sobre a aparição e o

desenvolvimento da cultura de massa, a dessublimação da arte é a que mais nos

interessa para o desenvolvimento deste estudo.

Walter Benjamin, em “A obra de arte na era da possibilidade de sua reprodução

técnica” (2017), dá um enfoque privilegiado às, até então, novas formas de produção e

reprodução do objeto artístico. Ao identificar que a obra de arte sofre uma perda de sua

aura a partir do momento em que pode ser reproduzida do modo inquantificável, isto é,

rompendo o caráter ritualístico da relação artista/obra que a mantinha na esfera do

sagrado, Benjamin privilegia os traços formais e os meios pelos quais esse novo modelo

se manifestava (2017, p. 18-19). A fotografia, o cinema e o rádio merecerão, nesse

momento, uma atenção particular, pois não se tratava apenas do conteúdo a ser

apresentado pela obra, mas dos modos inovadores de representação e, invariavelmente,

das diferentes maneiras de percepção que tais mudanças operavam.

Hoje a interação entre essas formas de cultura tornou-se cada vez mais dinâmica

e as estratificações que as situavam em espaços mais ou menos estanques já não se

sustentam. Esses câmbios se tornariam ainda mais significativos quando as novas

possibilidades de fazer arte não se detinham exclusivamente sobre seu próprio domínio,

aproximando a arte e a vida prática. O que até certo momento se demonstrou como

transformação técnica adquiriu importância maior na medida em que se compreendiam

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as modificações sociais dentro deste panorama. Desde o instante em que a arte adentra o

cotidiano, as variações recorrentes no âmbito artístico significam ao mesmo tempo a

construção de novas sensibilidades e, consequentemente, mudanças no social,

constituindo outros modos de perceber não só a arte, mas a própria realidade na qual se

insere, como sinaliza a leitura de Jesús Martín-Barbero sobre o teórico alemão. Segundo

ele: “a arte se fará „acessível ao povo como os parques‟, oferecida ao desfrute de todos,

introduzida na vida como um objeto a mais, dessublimado” (2015, p. 76).

Edgar Morin enriquece a discussão com ponderações substanciais sobre a

matéria de acordo com seu quadro semântico: “uma cultura fornece pontos de apoio

imaginários à vida prática, [e] pontos de apoio práticos à vida imaginária” (2011, p. 5).

Historicamente, só foi possível entender arte enquanto mais uma das formas

socializadas da cultura após ela ter descido de seu patamar sacralizado e ter se

incorporado ao solo da realidade do homem comum. Nesse sentido, vale ressaltar que

grande parte dos elementos que compõem a rede de significados da vida social estão

ligados diretamente às produções artísticas e aos veículos de informação. Morin encara

a cultura como algo fundamental para entender como a sociedade se reestrutura durante

e após os acontecimentos marcantes nos finais da década de 1960 no mundo todo. Para

ele, a cultura não é um código, mas uma série de intercâmbios de sentidos que

produzem arquétipos e estruturam a vida dos indivíduos sociais. De acordo com Morin:

“a cultura de massa é uma cultura: ela constitui um corpo de símbolos, mitos e imagens

concernentes à vida prática e à vida imaginária, um sistema de projeções e de

identificações específicas” (2011, p. 6). Dito de outro modo, a cultura de massa

entranha a vida social através da formulação de um imaginário comum que organiza os

sentidos de percepção da realidade.

Nesse sentido, a representação na literatura de temas que transitam entre o

popular e o massivo, no nosso caso, o futebol, nem sempre recebeu a devida atenção ou

respaldo acadêmico, impossibilitando muitas das vezes o desenvolvimento de estudos

substanciais.

Incluída também a crítica negativa que se sustenta sob as bases do juízo

canônico, dois fatores serão centrais para observar o menor valor atribuído pela

academia sobre a representação do universo futebolístico na literatura: 1) os aspectos

estético-formais (VILLORO, 2014) e 2) o processo civilizatório de construção do

Estado e das práticas sociais ligadas a ele (VILLORO, 2014; ELIAS & DUNNING,

1992).

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A respeito do primeiro ponto, inserido na discussão relacionada à particularidade

dos gêneros literários, Juan Villoro põe em questão a dramaticidade dos relatos

originados nos estádios e nas partidas disputadas entre duas equipes de futebol:

Cada cierto tiempo, algún crítico se pregunta por qué no hay novelas de

fútbol en un planeta que contiene el aliento para ver un Mundial. La

respuesta me parece bastante simple. El sistema de referencias del

fútbol está tan codificado e involucra de manera tan eficaz a las

emociones que contiene en sí mismo su propia épica, su propia tragedia

y su propia comedia. No necesita tramas paralelas y deja poco espacio a

la inventiva de autor. (2014, p. 22)

Como ponto de partida, o autor situa o futebol como uma espécie de gênero

narrativo que não se constitui suficientemente pela apresentação em campo, mas que

depende de uma narratividade sobre a qual se constrói na forma de relato. A

composição estética das representações do futebol derivaria dessa autonomia narrativa

própria ao esporte.

As partes que constituem o drama ou o próprio relato se enunciam prontamente a

partir do mundo da bola, que vive de seus próprios personagens, mitos e lendas. Para

ele, a literatura se encarregaria, portanto, de recontar o que já foi narrado em outro

universo. Daí a dificuldade proveniente da gênese formal. Uma estética construída por

cronistas e narradores de futebol, ainda que utilize ferramentas narratológicas, não se

enquadraria em definitivo no âmbito da literatura. No entanto, na passagem de um

campo a outro, aqueles que se propõem a escrever literatura sobre futebol são

capturados imediatamente pela estrutura formal que se fortaleceu tradicionalmente pelas

crônicas de jornais, pelos canais esportivos e pelo respaldo da cultura popular, mas

nunca pelo cânone da crítica literária. Não por acaso, em diversos trabalhos, incluindo

este, encontraremos uma manifesta demarcação nominal entre o que é literatura e o que

é literatura de futebol. A partilha do espaço literário não é certificada e, muitas vezes,

não é reconhecida.

Sob o segundo aspecto, Norbert Elias e Eric Dunning, em A busca da excitação

(1992), e o mesmo Juan Villoro, em Dios es redondo (2014), irão ressaltar, sob

diferentes perspectivas analíticas, os rastros do processo civilizatório no/através do

futebol e seus efeitos na sociedade e na literatura.

Elias e Dunning postulam que o futebol foi um dos instrumentos que ajudaram

na constituição dos estados modernos europeus e na reformulação dos costumes sociais.

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O crescimento do esporte em questão, a partir do século XIX, se deu paralelo ao

fortalecimento dos Estados Modernos e à expansão industrial, acarretando uma

transição de hábitos e práticas sociais por parte dos indivíduos. Tomando como base a

violência decorrente das relações ainda não plenamente mediadas pelo domínio estatal,

os teóricos assinalam que o controle das disputas através do esporte possibilitou a

pacificação dos conflitos e, posteriormente, “a monopolização do direito de utilização

da força física” (1992, p. 30). No bojo de um movimento que tem como propósito a

regulação das atividades sociais, a reprodução estrutural pela população do que se

experienciava através das condutas desportivas pacificadas agenciava novas formas de

interação na sociedade e deslocava o âmbito das pulsões para a excitação proporcionada

pelos eventos. O que se mantém paradoxal nessa elucidação do processo civilizatório é

exatamente a violência praticada pelos grupos de torcedores fanáticos, como as “barras

bravas” argentinas ou o hooliganismo, no caso inglês. O irracionalismo presente nas

manifestações de torcidas organizadas se choca com o conceito de civilização e

ressuscita no universo do futebol um espectro de barbárie, levado a cabo até o século

XXI.

Já Villoro, por uma via alternativa, ressalta os indícios não civilizatórios do

futebol. Diz ele que:

el fútbol le parecía menos intelectual que el tenis o el ping-pong porque

carecía de la intermediación de la raqueta. Sus movimientos ocurren en

bruto, sin pasar por un instrumento civilizatorio; además, prescinde de

las manos, fundamento de la cultura. El tenis presupone un desarrollo

histórico más complejo: la forma de llevar el score es un capricho de la

razón y las raquetas confirman el ingenio de una especie industriosa,

capaz de aprovechar tripas de gato. (2014, p. 60)

Na comparação bem humorada entre o tênis e o futebol, é feita uma leitura que

toma por base a industrialização e a cultura como marcos centrais para o

desenvolvimento da civilização. O uso dos pés para controlar a bola se contrapõe ao uso

das mãos, notadamente assinalado pelo manejo de objetos, diferença que revela a

distinção de uma cultura social/racional para uma natureza animal. A racionalização não

se exprime apenas no domínio de instrumentos, mas na própria capacidade industrial de

produção de bens, diferentemente do futebol onde, no âmbito doméstico ou amador,

pode ser usado no lugar da bola qualquer outro objeto que possibilite o jogo, quer seja

uma bola feita de trapos ou uma tampinha de garrafa. Isto é, não há exigência específica

que impossibilite a prática do esporte como entretenimento: “el deporte de las patadas le

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parecía un regreso a la temprana edad del hombre sin utensilios” (VILLORO, 2014, p.

60).

O estigma irracionalista faz com que se perpetue um rechaço evidente ou uma

desconfiança em relação aos temas do futebol na produção de textos literários. Ainda

que os atos de violência e o fanatismo de torcidas possam demonstrar certos pontos

contraditórios do processo civilizatório, escrever sobre futebol não exime ou inibe os

autores e as autoras de tratar sobre os temas universais relativos à sociedade sobre os

quais gira a esfera literária.

Assentando os dois pontos sobre o embate entre os defensores da “alta cultura” e

os que admitem a entrada da “cultura de massas” na literatura, o traço de distanciamento

teórico cria suas raízes no cerceamento do campo de investigação a partir do qual a

vertente estético-formal e a tradição civilizatória presente na evolução da escritura se

instalam hegemonicamente como cânone crítico-literário frente à emergência de novas

discussões que lutam por afirmação no cenário acadêmico-institucional.

As mudanças decorrentes da produção e do objetivo da produção das obras de

arte alteram o modo como operam os campos de estudo. Sem negar a importância da

tradição nas linhas de desenvolvimento teórico, parece-nos necessária a abertura para

pensar através das representações literárias temas que na sociedade desempenham uma

forte influência no modo de ver e agir socialmente.

Raymond Williams e Guy Debord assinalam substancialmente sobre a

dramatização do social e sua transformação em espetáculo.

Williams, ao investigar sobre o teatro inglês dos séculos XVIII e XIX, encontra

resíduos marcantes de transições acontecidas no passado londrino nas atividades

próprias ao século XX. Partindo do pressuposto de que a escrita foi naturalizada nas

sociedades modernas, ele aponta as novas relações sociais que se constituem de acordo

com a inserção da imaginação na vida cotidiana. Diante disso, a principal constatação é

a de que “o drama não é mais coextensivo ao teatro” (2014, p. 13). Primeiramente, ele

observa as diferenças entre textos para serem lidos em silêncio e textos para serem

encenados ou lidos em voz alta. O que se instala socialmente a partir da escrita tornar-se

“comum” é a transposição do efeito dramático da performance para a escrita,

coexistindo em ambas as esferas. Um texto de Shakespeare, que deveria ser reproduzido

através de montagens e atuações, passa a ser lido. Sem esquecer das desigualdades

econômicos-sociais que impossibilitam a democratização plena da aprendizagem de ler

e escrever, essa nova tendência propicia ainda um deslocamento da atividade do olhar

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(teatro) para a atividade da imaginação (escrita). Uma “escrita dramática” a ser

propriamente encenada, quando lida, desapropria o drama de seu lugar de origem e

passa a entranhar as teias da representação na modalidade escrita; o que designa,

portanto, a possibilidade de dramatização da vida prática do público leitor: “trata-se do

fato de que o drama, de modo bastante novo, é construído hoje no ritmo da vida diária”

(WILLIAMS, 2014, p. 14).

Em segundo lugar, no plano físico, Williams salienta que, para além do teatro,

muitas encenações dramáticas se realizam no cinema e na televisão. Poderíamos

acrescentar, junto a estes dois, as propagandas, os palcos musicais, a rádio (com uma

importância maior para o século XX) e os eventos esportivos. Desse modo, inclusa a

mudança de panorama decorrente da naturalização da escrita, há ainda a inserção

constante de representações dramáticas na prática do cotidiano. Dramatizar torna-se um

hábito e um costume, uma atividade própria a todos os indivíduos, desde o âmbito

privado até a esfera pública. O drama carregado de uma espécie de independência,

espalhando-se entre outros veículos de comunicação e de representação, incorpora o

sujeito, sua consciência e seu inconsciente, passando a designar não só uma prática

restrita à arte, mas sobretudo um meio através do qual os indivíduos interagem com a

sociedade. Transfigura-se numa forma de olhar social, individual, coletivo ou

institucional, que significa e produz leituras, constrói e destrói narrativas, cria e derruba

símbolos nacionais, envolve o real, ficcionalizando-o.

Há um exemplo interessante na peleja entre Argentina e Inglaterra na Copa do

Mundo de 1986 no México. Suas expectativas renderam todo o tipo de comentários da

mídia argentina e mundial. Essa partida foi jogada tanto no campo de futebol, quanto no

campo de batalha. O Estádio Azteca, localizado na Cidade do México, converteu-se

durante 90 minutos no cenário da guerra das Ilhas Malvinas. O que seria apenas um

jogo de copa transformou-se em um embate histórico de proporções heroicas em defesa

do nacionalismo argentino. Uma vingança simbólica por todas as mortes de jovens

soldados, causadas pelo Exército Inglês, na disputa pelo território insular. O tempo foi

deslocado para anos antes, as sensações do povo afloraram diante da possibilidade de

vencer a Inglaterra, os jornais incitavam analogias entre a partida e a guerra injusta.

Eduardo Sacheri, em um conto chamado “Me van a tener que disculpar”, escreve:

Son emociones que no nacieron por el fútbol. Nacieron en otro lado.

Enun sitio mucho más terrible, mucho más hostil, mucho más

irrevocable. Pero a nosotros, a los de acá, no nos cabe otra que contestar

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en una cancha, porque no tenemos otro sitio, porque somos pocos,

porque estamos solos, porque somos pobres. (2000, p. 16)

A ressignificação do espaço esportivo perpassa pelos desejos não consumados

na realidade das Malvinas, pela dificuldade no combate bélico, pelas frustrações

amargas experienciadas pelo povo desde a guerra. A dramatização da copa de 1986 para

os argentinos teve seu ponto mais alto quando o título foi conquistado; no entanto, esta

partida específica atrai mais os holofotes do que a vitória maior do campeonato. Nela

estavam desde os elementos mais enraizados no trauma histórico até as características

do universo da bola: Argentina com estilo mais fluído, demonstrando leveza e

atualidade; Inglaterra com uma formação mais rígida, presa à tradição e aos valores

conservadores de organização em campo. Todas essas matérias serviram como

ingredientes para compor o drama encenado dentro e fora de campo. Um que se traduzia

pelos dribles e pela raça de Maradona, ditando o ritmo do jogo, como aquele que

carregaria a esperança da vitória de uma nação inteira frente ao inimigo inglês; outro,

pela visão do povo, que diante da televisão ou com os ouvidos colados no rádio,

ajudaram a compor a representação ideal de uma partida que figurou como a revanche

que não foi possível nos campos de batalha. Esse evento fica registrado na história

argentina e reformula os níveis de consciência de um povo sobre ele mesmo, inaugura

novas lendas, outros mitos que compõem o imaginário social.

De maneira correlata, a crítica situacionista trouxe o conceito de “sociedade do

espetáculo” (DEBORD, 2003). A dramatização se vê atrelada à espetacularização de

seu conteúdo. A lógica mercantil penetra as mais diversas camadas sociais. Nas

produções e eventos de massa, há uma série de representações que não só mostram

mimeticamente as relações e os espaços sociais, mas que já contém o germe da

reprodução de costumes ali na situação e no objeto representado. O sujeito compromete-

se de tal modo com o espetáculo que se vê como parte dele ou, radicalmente, como o

próprio espetáculo. Nesse momento de autonomização, os sujeitos encontram-se

imersos na dinâmica do mercado, eles mesmos como parte da representação que

consomem e, dada certa limitação, como agentes, individuais e coletivizados, da vida

social, alternando gradualmente os níveis de demanda e as exigências pelas quais a

produção deve se orientar.

O espetáculo, compreendido na sua totalidade, é simultaneamente o

resultado e o projeto do modo de produção existente. Ele não é um

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complemento ao mundo real, um adereço decorativo. É o coração da

irrealidade da sociedade real. Sob todas as suas formas particulares de

informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto do

entretenimento, o espetáculo constitui o modelo presente da vida

socialmente dominante. (DEBORD, 2003, p. 15, grifo do autor)

Guy Debord, em tom crítico, sinaliza a mudança de panorama no qual a

sociedade se organiza, isto é, através da representação, do espetáculo que o mundo

ganha sentido material. Não é algo tempestivo ou substituível, é o lugar onde as

representações ganham autonomia e determinam o modo sobre o qual olhamos a

realidade. É o que se coloca mais próximo ao sujeito e o interpela de todos os lados. E,

dialeticamente, essa mesma prática mantém uma tensão com os níveis de enunciação do

discurso, ora repelindo-os, ora aceitando-os. Pode-se encontrar algo correlato no futebol

feminino. Uma clara demarcação masculina ainda existe majoritariamente no universo

da bola. Ainda assim, a entrada de mulheres nos gramados e nas torcidas é cada vez

mais frequente. Ainda que sofra inúmeras resistências, elas são combatidas com ataques

que tem por objetivo a despossessão do espaço e, principalmente, a destituição da

hegemonia masculinista no jogo. Esse fenômeno é exemplo de um movimento social

maior, que permite a abertura de novos campos de atuação e de representação feminina.

A produção se altera devido aos interesses dentro de determinado consumo. A demanda

já existia; agora, maior do que antes.

No Brasil, Roberto DaMatta liga diretamente a dramatização e o futebol. Ao

apropriar-se da noção de “drama social” (1982), inspirada nas obras de Victor Turner e

Max Gluckman, ele diz que “o futebol praticado, vivido e teorizado [...] seria um modo

específico – entre outros – através do qual nossa sociedade fala, apresenta-se, revela-se,

exibe-se, deixando-se descobrir” (1986, p. 105).

O futebol permite inúmeras relações metafóricas com a sociedade. Ele é

organizado a partir de uma reunião de códigos e valores já dispostos e negociados

socialmente, mimetizando os espaços jurídicos da lei, da guerra, do nacionalismo, da

diplomacia, da comunhão coletiva. Ao internalizar elementos provenientes do campo

social, ele regulariza condutas ético-morais, estrutura um sistema de arbitragem comum,

demarca grupos/equipes por meio de uniformes, exprime rivalidades antigas e inaugura

outras. Seu desenvolvimento se deu tanto no âmbito do esporte (instituições, estilos de

jogo, esquemas táticos, formas de treinamento) quanto no âmbito da representação.

Como aparato representativo, o futebol, além de produto, passa a funcionar como uma

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das esferas nas quais sentidos do social são gerados. Ele não se configura somente como

um entretenimento através do qual pessoas interagem entre si. Torna-se um espaço

positivo que gera a possibilidade de ascensão social para classes subalternas, uma cena

para o desenvolvimento de novas sociabilidades e relações afetivas, um lugar da paixão

e da excitação. Exprime-se, também, como um palco para conflitos territoriais, brigas de

torcidas organizadas, reprodução das desigualdades de gênero, em que a violência

surge, indiscutivelmente, surge como fator problemático. Sintetizado no pensamento de

DaMatta, o universo da bola funciona como uma das formas específicas através das

quais a sociedade se torna inteligível. Trata-se de um dos pontos de contato pelo qual

sujeitos entendem, pensam e integram a realidade.

Dessa forma, ao trabalharmos sob a hipótese de que a literatura de futebol é,

sobretudo, uma porta para o conhecimento dos expedientes normativos e costumeiros de

conjunturas comuns à vida prática e às estruturas hegemônicas, pretendemos pensar os

textos como alegorias do social.

Segundo Walter Benjamin,

Enquanto no símbolo, com a transfiguração da decadência, o rosto

transfigurado da natureza se revela fugazmente na luz da redenção, na

alegoria o observador tem diante de si a facies hippocratica da história

como paisagem primordial petrificada. A história, com tudo aquilo que

desde o início tem em si de extemporâneo, de sofrimento e de malogro,

ganha a expressão na imagem de um rosto – melhor, de uma caveira.

(2016, p. 176, grifo do autor)

O futebol apresenta-se muitas vezes como um campo hermético que tem como

alvo sempre a si próprio. Até mesmo quando se sinaliza uma leitura crítica para além

das quatro linhas que dividem o gramado, o olhar se vicia imediatamente pelas lentes da

bola, ressignificando todo o entorno a partir dos símbolos que fazem parte do universo

futebolístico, isto é, dar nova vida aos variados contextos nos quais o futebol é presente

– reinventar a história nacional e reintegrar a população diante de uma conquista de

Copa do Mundo, como foi o caso da Argentina em 1978 e 1986, assim como o do Brasil

em 1970, reconhecer heróis que estimulam o imaginário coletivo de uma determinada

comunidade ou constatar sobre ritualizações entusiasmadas que reformulam a percepção

das zonas onde uma torcida se concentra. As narrativas se encarregam muito bem do

levantamento destas perspectivas, esboçando sítios da linguagem e expressão de novas

subjetividades, isto é, predominam as representações simbólicas do futebol, revelando-o

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como redentor que opera uma flutuação de sentidos nos/dos espaços sociais. Uma rua

não é mais uma rua, uma via pela qual se transitam pessoas e veículos, que serve como

lugar de comércio, moradia etc.; ela se transmuta em uma arena de batalha, onde

crianças e adolescentes, pateando a esférica, disputam a fama dentro do bairro. O

futebol atua como o mediador destas relações semânticas.

Levando isso em consideração, sem pretensões de inaugurar correntes

metodológicas, entendemos a necessidade de expor os caminhos do nosso pensamento

para que fique clara a nossa intenção. Benjamin, ao desenvolver seus estudos sobre o

Barroco (1916), tira a alegoria das sombras na literatura, legitimando-a como

modalidade literária. Nos percalços dessa tradição, constituímos nossa leitura, fazendo

alguns ajustes em decorrência das nossas necessidades, sem contrariar a lógica dos

pensadores em questão. Através de manifestações simbólicas, condensadas na forma de

contos literários, delineamos a alegorização das obras, extraindo delas a sociedade

decaída que ali está representada. É dizer, como Idelber Avelar, que a alegoria “está

sempre „datada‟, ou seja, ela exibe em sua superfície as marcas de seu tempo de

produção” (2003, p. 14). Para chegar aos nossos objetivos, vemos necessária a

realização desse duplo movimento: reconhecer as ressignificações do espaços sociais e,

ao mesmo tempo, observar os níveis de reprodução a que os sujeitos se condicionam

dentro dessas mesmas conjunturas. Não é viável hoje entender a realidade por ela

mesma, sem a representação. Para compreendê-la, é necessário ir ao encontro dos

expedientes simbólicos e, em contrapartida, retirar deles os traços típicos sobre os quais

o social se encontra na forma de resíduo – sua forma alegórica. Talvez estejamos indo

em direção ao que Benjamin sugere quando ele diz: “a crítica é a mortificação das

obras. [...] não – como queriam os românticos – o despertar da consciência nas obras

vivas, mas a implantação do saber naquelas que estão mortas” (2016, p. 194). Não

podemos analisar o corpus apenas com as lentes do jogo, independente do movimento

externo a ele. É preciso que haja um processo complexo de intercâmbios entre os dois

horizontes: sociedade e representação.

Diante das problemáticas já apresentadas no decorrer desta apresentação, uma

última mais específica torna-se imperativa para fundamentar os pontos aqui articulados.

Anteriormente, trouxemos a ideia de que a cultura de massas funciona como uma vitrine

do modelo social hegemônico (costumes, hábitos, modos de agir e de pensar).

Decorrente disso, a crítica canônica, por sua vez, tende a desconsiderar, quando

representados pela/na literatura, os potenciais emancipatórios contidos no interior dessas

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discussões, caracterizando essas manifestações literárias como uma espécie de fruto

vulgar e de menor valor. Isso leva à constatação de que apenas na literatura de tradição

estético-formal, que dialoga com os estilos e trata dos grandes temas universais, há

validade da obra como uma obra literária. Nesse sentido, parece ter razão a crítica

quando estipula as condições para o reconhecimento de uma produção da literatura. No

entanto, esse aspecto de valor se estende ao âmbito do conhecimento, isto é, essa

literatura menor que trata de temas banalizados, cumprindo ou não os requisitos

formais, não tem nada a contribuir para a literatura, enquanto disciplina, e menos ainda

para tratar da sociedade. Nossa discordância se encontra neste exato ponto.

A cultura de massas, desde o século XX, é uma modalidade que apresenta todos

os pontos sobre os quais o social se manifesta. Lendo-a, podemos ao mesmo tempo ler a

sociedade. Associada à literatura, temos uma diversidade de novas obras que ora atuam

no âmbito da pura e simples reprodução dos valores disseminados nas esferas do

mercado, ora trazem consigo a crítica social da cultura desde a representação.

Antonio Candido, ao teorizar sobre os atributos e a função da literatura, explicita

que, além de construir-se formalmente e expressar emoções, visão de mundo dos

indivíduos, ela atua, sobretudo, como uma forma de conhecimento (2011, p. 179). A

noção pressupõe as diferenças acerca das aproximações da teoria sobre o texto literário.

Segundo o autor, a corrente estruturalista prioriza a forma e o conhecimento científico

ao se deparar com a análise textual, descartando por vezes o ponto de vista da obra em

relação à conjuntura histórico-social na qual ela é produzida, biografia do autor ou da

autora etc. A proposta do teórico é a de que se associem as três características para que

seja reconhecida na obra literária seu traço mais marcante: a capacidade de

humanização.

Em relação ao apreço formal, resumindo as posições já colocadas, é necessário

que a obra apresente marcas de desenvolvimento estético, tradicionais ou não, e que se

enquadrem no âmbito literário, mas a desqualificação de uma produção não deve se dar

exclusivamente por esse aspecto.

Quando partimos da literatura como expressão, damos enfoque principal ao

modo de percepção da realidade orientado por um viés subjetivo e, sob esta perspectiva,

a valorização do olhar sobre a realidade indica a determinação da representação sobre o

real. A objetividade do mundo se condiciona ao modo como essas relações são

percebidas pelo sujeito ou grupo. Os costumes, as crenças dão a medida para a

formulação da vida social diante deles. Ao ponderar sobre os objetos da narrativa, no

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nosso caso, o futebol e a sociedade, deveríamos observá-la segundo os parâmetros

designados pelo personagem ou pelo autor.

Na forma de conhecimento, a literatura adquire uma signifância maior frente ao

indivíduo. Por mais que a esfera literária comporte formas de expressão e que, por

diversas vezes, atue como uma ferramenta para a manifestação das culturas através de

grupos específicos, ela tem a capacidade, sobretudo, de apresentar modos de como a

sociedade se organiza e, na representação, evidenciar referências marcantes do mundo

dos personagens que se alinha diretamente com a face da vida cotidiana. Isso significa

dizer que há um ponto objetivo sobre o qual a obra se constrói e que é fornecido pela

sociedade na qual ela se constrói:

Sem procurar decidir, limitemo-nos a registrar as três posições e admitir

que a obra literária significa um tipo de elaboração das sugestões da

personalidade e do mundo que possui autonomia de significado; mas

que esta autonomia não a desliga das suas fontes de inspiração no real,

nem anula a sua capacidade de atuar sobre ele.1 (CANDIDO, s.d., p. 86)

Orientamo-nos pela interpolaridade entre a subjetividade e a objetividade

características e presentes nas obras literárias, decorrentes da expressividade subjetiva e

do conhecimento objetivo. Não nos atendo exclusivamente a nenhum dos dois

princípios, mas convergindo-os no interesse de estabelecer com clareza a situação na

qual se determina o espaço social a partir do universo do futebol, seus expedientes

simbólicos e as vías de imaginação coletiva, e, assim, contribuir para uma crítica

cultural.

A interação se dá de modo que não é suficiente para a investigação a

univocidade de um ou de outro elemento. Se pautarmos nossa leitura apenas na

percepção individual ou de grupos fechados, corremos o risco de nos esquivar dos

problemas sociais aos quais pretendemos endereçar grande parte da nossa escrita. Por

outro lado, se baseamos a crítica apenas no estatuto do conhecimento, retiramos o

potencial da obra e caímos no rechaço de qualquer singularidade. Ambos ligados

propiciam uma investida que dá a conhecer, através da exteriorização subjetiva, a

organização do mundo da bola, que traduz substantivamente a hegemonia moral e

estrutural da sociedade, ao mesmo tempo em que permite a realização de uma leitura

1Fonte: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/remate/article/download/8635992/3701. Acesso

em 28/07/2017.

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que não observa um caso contingencial, à parte, restringido a seu dominio exclusivo,

mas os pontos de interseção nos quais a realidade se orienta.

A teoria social reconhece, no futebol, processos simbólicos de grande

significado na formação cultural. A sociedade se estabelece inteligivelmente para os

indivíduos por meio de diversas práticas, eventos, espetáculos e representações

(midiáticas, literárias, cinematográficas), agrupando uma série de elementos que se

consolidam na forma de costumes, hábitos, modos de agir e de pensar. O futebol como

um desses espaços onde se constroem narrativas, personagens, ídolos e vilões não se

exclui enquanto um poderoso fator de composição social.

Enquanto forma de conhecimento, a literatura permite a análise de realidades

adequadas a modelos poéticos ou narrativos. O centro da questão pode não se colocar

diretamente sobre o fato essencial de narrar o futebol. No entanto, a literatura, através

do futebol, pode abrir uma nova porta para a discussão crítica de questões fundamentais

à cultura e à sociedade.

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1. CAMPO ABERTO: entre a erudição e o popular

Na América Latina, o apego das massas ao futebol manifesta um forte traço

cultural, evidenciando marcas específicas de sociabilidade e sensibilidade

individual/coletiva. Em muitos casos, é difícil estabelecer um limite bem definido sobre

as dimensões da influência do futebol na vida de sujeitos sociais. Em torno dele,

atuando como um centro gravitacional, existe uma órbita de subjetividades e diferenças,

envolvendo desde os mais pobres aos mais abastados, desde os mais apaixonados até os

aparentemente desinteressados. O futebol como componente estrutural da cultura

perpassa todas as esferas da sociedade, definindo espaços e práticas de acordo com seus

sistemas simbólicos, expressando através da linguagem um universo que não se

restringe ao estádio, mas que invade a casa aos domingos, promove ritualizações e a

formação de grupos, penetra o ambiente do trabalho, cria ditados populares, instiga o

entusiasmo na vida cotidiana, disponibiliza aos indivíduos a possibilidade de um

vínculo com algo maior, mais concreto e próximo. Como esporte popular, ele se

distanciou dos espaços intelectuais da sociedade, restringindo-se, muitas das vezes, às

áreas da comunicação (radialismo e televisão) e do Estado (como elemento de coesão

do sentimento nacional). Na contramão desse pensamento, Carlos Drummond de

Andrade afirma em meio á vitória do Brasil na Copa de 1958:

Essa vitória no estádio tem precisamente o encanto de abrir os olhos de

muita gente para as discutidas e negadas capacidades brasileiras de

organização, de persistência, de resistência, de espírito associativo e de

técnica. Indica valores morais e eugênicos, saúde de corpo e de espírito,

poder de adaptação e de superação. Não se trata de esconder nossas

carências, mas de mostrar como vêm sendo corrigidas, como se

temperam com virtualidades que a educação irá desvendando, e de

assinalar o avanço imenso que nossa gente vai alcançando na descoberta

de si mesma. (2014, p. 25)

Disputada na Suécia, a Copa de 1958 representou um abalo entre as perspectivas

eurocêntricas e as latino-americanas. Os europeus desenvolvidos se depararam com um

estilo de jogo mais fluído e artístico, praticado pela seleção brasileira de Pelé e

Garrincha, um futebol completamente distinto daquele marcado por altos níveis de

organização sistêmica das equipes europeias. Para Drummond, o futebol servia como

esse espaço simbólico em que se revelavam as capacidades brasileiras de vencer frente

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aos contextos de subdesenvolvimento. Mais do que isso, o futebol fornecia ao povo uma

via inteligível para a compreensão da própria identidade brasileira. O valor simbólico da

partida se situava nas características da seleção e de seus principais jogadores, nos

domínios particulares da técnica com a bola que, no gramado, significava o controle do

jogo, mas lidos desde outras esferas sociais representava o potencial de supremacia

brasileira diante das carências sociais.

Drummond já atentava para a leitura do jogo como algo que vai para além de

seus próprios limites, um constructo social complexo que, na cultura, desempenha um

papel determinante na formação identitária de sujeitos e grupos, ressaltando-se assim a

inteligibilidade do mundo através das lentes do futebol. Para além das questões

nacionais, as sensibilidades afloradas pelo esporte atingem o dia-a-dia de indivíduos.

Hilário Franco Jr. relembra uma passagem de Vinícius de Moraes, o qual:

afirmou certa vez que, “no Rio, a formação da identidade passa,

também, pela eleição de um time de futebol”. O poeta, fiel à sua

infância, escolhe o Botafogo de Futebol e Regatas. Não frequenta os

estádios. Não lê o noticiário esportivo. Não ouve as transmissões pelo

rádio. Mas, se perguntam seu time, afirma: “Botafogo”. Não se trata de

uma paixão, mas de uma senha para a cidadania‟. (FRANCO JR.,

2007, p. 210, grifo nosso)

As identidades produzidas a partir do futebol não se constituem de modo

isolado; elas convivem com aquelas mobilizadas pela nacionalidade, pelo trabalho, pela

família, pelo consumo etc. Mesmo quando a paixão pelo futebol ou pelo clube não faz

parte da vida de uma pessoa, o reconhecimento social do indivíduo nas circunstâncias

da vida prática no contextos latino-americanos depende, em certa medida, da escolha de

um time. O futebol reúne uma diversidade de códigos e costumes aplicáveis às rotinas

sociais. A frase “não torço para nenhum time” gera, por vezes, uma espécie de barreira

empática em relação ao enunciador, aparentando não estar integrado à lógica comum do

futebol que agrega milhares de afiliados. Os signos provenientes dessas relações

orientam modos de interação intersubjetiva, construindo identidades tanto de torcedores

(contínuas e extensivas) quanto de não-torcedores (descontínuas e circunstanciais).

Nessa medida, dois grandes poetas brasileiros ajudam a subverter a concepção

despolitizada e dessocializada que orientou grande parte das leituras sobre o futebol no

século XX, isto é, aquelas em que o esporte vigora como puro entretenimeto ou como

elemento de encanto alienante das massas.

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Os desencontros entre a esfera intelectual (crítico-acadêmica) e o futebol não são

recentes. Eduardo Galeano anota: “La mayoría de los escritores de América Latina

somos futbolistas frustrados” (1995, p. 6). A curta proposição do escritor uruguaio

sinaliza direta e indiretamente alguns pontos fundamentais relacionados à postura do

escritor e do intelectual diante de um tema que ainda está em vias de legitimação no

campo literário.

Frente ao contexto latino-americano, podemos afirmar que dificilmente as

sensibilidades individuais e coletivas conseguem evitar a interpelação das dinâmicas

que envolvem o jogo. Seja pelo mergulho radical na paixão pelo esporte ou, por outro

lado, pelo fato de qualquer indivíduo já estar imerso em um meio social no qual o

futebol atua perenemente, o poder simbólico das trocas realizadas entre os sujeitos

(torcedores e não-torcedores) exprime e, ao mesmo tempo, ajuda a estruturar costumes,

valores e rituais na vida prática. O futebol invade a vida dos indivíduos desde muito

cedo. Muitas das vezes não se trata de uma escolha, principalmente para os meninos,

nos quais o futebol funciona como um mecanismo de construção de masculinidades (Cf.

ARCHETTI, 2003) e elemento gregário na formação de grupos de amigos. Além de ser

uma atividade comum durante a infância, o futebol em diversos contextos atua como o

articulador central do contato interrelacional entre os indivíduos. Desde o gramado até

as arquibancadas, jovens, homens, mulheres, familiares interagem por intermédio de

uma partida disputada entre jogadores profissionais ou pelos próprios filhos e amigos.

Por mais que exista o estigma anacrônico de um rechaço intelectual pelo esporte

de massas, reforçado pela força de manipulação política e pela violência praticada nos

estádios, o escritor e o intelectual não estão isentos de serem interpelados pelas teias de

sentido do mundo da bola. Galeano sinaliza uma realidade muito comum na América

Latina, que demonstra a formação de sujeitos orientada por um imaginário coletivo

desenvolvido a partir do futebol. E, assim, afirma que, na América Latina, a profissão

de escritor não se separa das experiências construídas durante a vida pelo esporte. Mais

ainda, ele expande na literatura a possibilidade de criação de um novo modelo de

escritor, que irá representar outros tipos de sujeitos e, da mesma forma, irá representar-

se enquanto uma outra espécie de escritor.

A aproximação entre literatura e futebol se projetou como uma das vias de

transformação dos esquemas da tradição literária clássica. A imagem dominante do

escritor, como um ser recluso, distante observador do mundo, passa a conviver com a

ideia de um literato que transita entre as massas, que tira suas histórias do mundo

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simples das arquibancadas ou de uma simples partida entre clubes de várzea, constrói

narrativas atravessadas pela experiência do torcedor anônimo ou pelas práticas do

jogador mais bizonho. Um escritor que não esconde a identificação com os homens

comuns, com suas paixões e valores partilhados dentro desta verdadeira família que é a

torcida.

A formação da literatura de futebol na América Latina passa por autores como o

tucumano Pablo Rojas Paz, conhecido como “El Negro de las tribunas”, que já nos anos

de 1930 já se destacava com suas crônicas esportivas; pelos uruguaios Mario Benedetti,

Horacio Quiroga e o já mencionado Eduardo Galeano; mexicanos como o narrador

contemporâneo Juan Villoro; e até mesmo por nomes hoje canônicos como Jorge Luis

Borges e Adolfo Bioy Casares. No quadro argentino, o principal avanço nas produções

se deu, a partir da década de 1970, com a investida de Roberto Fontanarrosa, Jorge

Sasturain e Osvaldo Soriano. Outros nomes dessa mesma época, como Roberto Jorge

Santoro, Mempo Giardinelli e Alejandro Dolina, darão impulso às produções

futebolísticas e também passarão a incorporar o rol de grandes escritores da literatura de

futebol argentina. A partir do século XXI, ela torna-se mais populosa, concentrando

parte significativa da produção de referências da escrita contemporânea: Eduardo

Sacheri, Alejandro Parisi, Gabriela Cabezón Cámara, Ana María Shua, Martín Kohan,

Esther Cross, Selva Almada e Mariana Henríquez são alguns nomes em meio a uma

legião e narradores que surgem do diálogo rico e complexo entre literatura e futebol.

Durante sua construção, o campo da literatura de futebol se colocou em disputa

com a tradição canônica, estabelecendo trocas simbólicas que repercutiram na tensão

entre o popular e o intelectual no âmbito da produção literária. Conforme afirma Pierre

Bourdieu:

O campo de produção propriamente dito deriva sua estrutura específica

da oposição – mais ou menos marcada conforme as esferas da vida

intelectual e artística – que se estabelece entre, de um lado, o campo de

produção erudita enquanto sistema que produz bens culturais (e os

instrumentos de apropriação destes bens) objetivamente destinados (ao

menos a curto prazo) a um público de produtores de bens culturais que

também produzem para produtores de bens culturais e, de outro, o

campo da indústria cultural especificamente organizado com vistas à

produção de bens culturais destinados a não-produtores de bens

culturais (“o grande público”) que podem ser recrutados tanto nas

frações não-intelectuais das classes dominantes (“O público cultivado”)

como nas demais classes sociais. (2015, p. 105)

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Ainda hoje, podemos observar alguns conflitos na atmosfera intelectual para a

legitimação do futebol como tema próprio à literatura, ainda que suavizados pela

consolidação do campo por grandes autores. Trata-se de uma produção que está no

limiar entre os polos que demarcam a hierarquia das posições no campo intelectual, que

determinam a dignidade e o valor do tema diante da produção. A literatura de futebol

pressupõe não só o embate, mas o encontro de diferentes técnicas narrativas, desde as

crônicas desportivas e a narração das partidas até as mais sofisticadas estruturas

literárias, assim como a convergência da tradição erudita com a cultura popular. Em

grande medida, não é só o aumento da escrita de contos de futebol que o enaltece

enquanto uma das alas pelas quais a literatura transita e discute. O trabalho de escritores

e escritoras, já respaldados pela crítica e reconhecidos por suas obras, atua

significativamente para a legitimação do futebol nos meios literários da crítica e da

academia. Como diz Jacques Rancière, referindo-se à discussão benjaminiana sobre a

obra de arte e sua reprodutibilidade técnica: “para que um dado modo de fazer técnico –

um uso das palavras ou da câmera – seja qualificado como pertencendo à arte, é preciso

primeiramente que seu tema o seja” (2009, p. 48). Em outras palavras, para que a

produção vinculada à literatura de futebol seja legitimada, é necessário, primeiro, que o

futebol o seja enquanto tema literário.

1.1. O popular representado: encontro entre torcedores e a literatura

Grande parte dos relatos produzidos pela literatura de futebol no século XX se

colocava, principalmente, na posição de narrar a paixão de torcedores e as partidas em

seus mais preciosos detalhes, isto é, o futebol como sujeito da narrativa. Mais à frente,

já no século XXI, as narrativas englobariam discussões mais profundas, lidando

diretamente com diferentes problemáticas sociais – subalternidade, problemas de

gênero, xenofobia, disputas políticas nacionais e internacionais etc. –, caracterizando

um uso do futebol como mediador alegórico em tais representações.

Fica evidente na postura de certos escritores a afiliação e as homenagens à

paixão por um clube específico, como é o caso de Roberto Fontanarrosa, torcedor

fanático do Rosário Central, ou Osvaldo Soriano, que expressa seu o amor pelo San

Lorenzo de Almagro.

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A partir deste ponto, estaremos observando em alguns contos como o encontro

entre o popular e a esfera literária se dá mediante a representação de torcedores nos

espaços da bola. Para tanto, analisaremos dois contos de Fontanarrosa e um de Mempo

Giardinelli.

Em “El ocho era Moacyr” (2005), Fontanarrosa narra um encontro de amigos no

bar “El Cairo”, até o momento em que se incomodam com a presença de um indivíduo,

aparentemente deslocado em meio á cena: “El que tiró la primera piedra fue Ricardo,

apenas después de haberse ido el tipo. – Che... ¿quién es este coso?”

(FONTANARROSA, 2005, p. 54). O termo “coso” aqui se coloca como masculino de

“cosa” (“coisa”), isto é, a princípio o indivíduo não tem um nome, é uma coisa, algo que

não carrega humanidade, é de outro “mundo”.

O conto trabalha o não reconhecimento do sujeito entre um grupo específico de

torcedores. As marcas desse indivíduo silencioso surgem à medida que a desconfiança

dos amigos reunidos no bar cresce. Pouco a pouco, constroem-no de acordo com as

diferenças estabelecidas pela vestimenta, trejeitos e gestos: “lo veo muy fino”, “muy

delicado”, “medio trolo”, “de chaleco” (colete usado em trajes a rigor), “el tipo es serio,

es educado, es un tipo correcto”, “muy fino, muy fino. Demasiado”. As características

surgem na comparação da postura grupal em detrimento da postura elegante desse

outro, formuladas ora por uma masculinidade rudimentar, ora pelo aspecto elitista,

determinando nesse primeiro momento um apelido que reflete os sintomas de

estranhamento: “Sobrecojines” – literalmente, “sobre almofadas”. Uma série de traços

não compartilhados coletivamente naquele ambiente esboçam as fraturas na composição

da imagem do sujeito pelo grupo de torcedores.

O bar apresenta características definidas coletivamente pelo grupo que o

frequenta, tornando-se um espaço de interação interpessoal e de construção de

sociabilidades voltadas para o popular, como esboça a reação irônica de Belmondo: “No

se puede ser culto acá” (FONTANARROSA, 2005, p. 56). A diferenciação entre o

grupo de amigos e “Sobrecojines” se esboça tanto pelos valores coletivos quanto pelos

sentidos do espaço em que se encontram. Decorrente da primeira má impressão, a

imagem de “Sobrecojines” é construída como contraponto da imagem grupal, alteridade

absoluta em relação aos integrantes do grupo, como um estrangeiro em meio à estética

compartilhada e à ética dos freqüentadores do bar:

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En verdad, vestía bien, o al menos demasiado formal para el nível

medio, y participaba poco de las conversaciones. Asentía, a veces metía

algún bocadillo, sonreía a menudo, algo distante, mirando hacia la calle,

arreglándose la corbata a cada rato (era certo). Tomó notoriedade el día

que pidió un whisky. “Blenders” dijo, con pronunciación cuidada y

Moreira lo miró como si le hubiese pedido un plato asiático. “Mirá que

vale casi un palo, macho”, le había advertido el mozo, cosa que al tipo

pareció no inmutarlo. Y entre el sembradío de pocillos de café, vasos de

agua, alguna taza de te o mate y servilletitas de papel arrugadas, el

generoso vaso de whisky con hielo parecia un paquebote entrando a

puerto rodeado de remolcadores diminutos y oscuros.

(FONTANARROSA, 2005, p. 57)

O limitado contato interpessoal é ainda assim um forte gerador de desconfianças

e o motivador de um maior distanciamento, marcado por elementos que ganham

múltiplos sentidos: a escolha da bebida ou a forma como “Sobrecojines” se expressa

funcionam como um traço identitário incomum no espaço de “El Cairo”. O sujeito não é

reconhecido até que haja uma interseção de valores, gostos e afinidades com a

subcultura local. O silêncio do personagem reflete uma superfície que é significada de

um modo específico pelos amigos do grupo. Os olhares da coletividade carecem de

elementos para o reconhecimento do indivíduo enquanto sujeito, destacando-o,

individualizando-o como um corpo estranho.

Na sequência, a narração se concentra sobre o dia em que o grupo de torcedores

discute sobre futebol, relembrando escalações da equipe Rosario Central. Durante o

diálogo, surgem dúvidas sobre as posições, os números das camisas e os nomes dos

jogadores. Não chegar a concordar sobre o nome do jogador que usava a camisa 8 na

formação de um determinado ano. Nesse momento, o personagem intervém de modo

inesperado e sua fala provoca espanto entre os amigos: “– no... – corrigió

“Sobrecojines” –. Domingo Pérez es anterior, es de la época de Pepillo, el nueve ese

español que trajo River.” (FONTANARROSA, 2005, p. 60). A partir de então, trava-se

um encontro provocado por uma afinidade comum. A conversa segue e a partilha

identitária se consagra por intermédio do futebol. A paixão pela mesma equipe permite

a abertura ao diálogo e ao compartilhamento de experiências passadas. Ela opera a partir

da memória afetiva do grupo, da torcida e da equipe, provocando entusiasmo entre os

personagens, ao relembrar de uma partida marcante no estádio do rival, Newel‟s Old

Boys: “Ese partido contra el Real Madrid! – se entusiasmó el hombre [“Sobrecojines”]

–. En cancha de Ñul [Newel‟s Old Boys].” (FONTANARROSA, 2005, p. 61). O

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entusiasmo do personagem diante da paixão pelo clube evidencia um ponto em comum

com o grupo de amigos, quebrando as barreiras impostas pelos traços elitistas que

provocaram o rechaço inicial.

Nesse sentido, o conto encerra, mostrando o reconhecimento de “Sobrecojines”

enquanto sujeito, dando-se a conhecer pelo seu nome próprio “Rodolfo”. É na partilha

da memória e da paixão torcedora que as trocas entre o grupo e o personagem

possibilitam a interação plena entre as partes e o estreitamento dos laços:

Al día siguiente, cuando llegó el Colifa, Belmondo estaba hablando con

el Zorro y también estaban el Pitufo, Pochi, Oscar, el otro Oscar, el

Negro y el Chelo.

- No vino “Sobrecojines”? – preguntó el Colifa. Alguién contestó que

no.

- Quién es “Sobrecojines”? – dijo el Chelo.

- Rodolfo. Rodolfo creo que se llama. No, no vino.

- Buen tipo esse – dijo el Pochi.

-Buen tipo. (FONTANARROSA, 2005, p. 61)

No conto “19 de diciembre de 1971” (2005), Fontanarrosa narra a história do

“Viejo Casale” e de um grupo de barra bravas (torcida organizada argentina).

Torcedores fanáticos do clube Rosário Central, o grupo organiza o sequestro do velho, a

fim de que este, na condição de amuleto, possa assegurar a vitória do Central diante de

seu maior rival, o Newell‟s Old Boys. Ambas equipes têm sede na cidade de Rosario,

protagonizando diversos embates entre torcidas organizadas na disputa territorial pelo

reconhecimento do maior campeão. Enclausurado em casa por conta de complicações

cardíacas decorrentes de um infarto em meio a uma partida de futebol, “Viejo Casale” é

proibido pelo médico e pela família de frequentar os estádios.

O relato, narrado em primeira pessoa por um dos integrantes do grupo de

sequestradores, trabalha as concepções da mística no futebol, descrita pelo termo

“cábalas”, a esfera supersticiosa que compõe parte considerável da identidade de clubes

argentinos –amuletos, gurus, heróis, vilões, rituais, símbolos. A história contada serve

ao leitor como uma justificativa para as ações do grupo e, ao final, tem como desfecho a

morte do velho Casale em pleno estádio:

Sí, yo sé que ahora hay quienes dicen que fuimos unos hijos de puta por

lo que hicimos con el viejo Casale, yo sé. Nunca falta gente así. Pero

ahora es fácil decirlo, ahora es fácil. Pero había que estar esos dias en

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Rosario para entender el fato, mi viejo, que hablar al pedo ahora habla

cualquiera.

Yo no sé si vos te acordás lo que era Rosario en esos días anteriores al

partido. [...] Desde semanas antes ya se venía hablando del partido y la

ciudad era una caldera, porque eso era lo que era la ciudad!

(FONTANARROSA, 2005, p. 66)

Diante de elementos regulados pela paixão clubista, o narrador se coloca na

posição de traduzir o sentimento coletivo da torcida e as motivações para o sequestro.

No âmbito do futebol, as cores das bandeiras dos “canallas”, torcedores do Rosário

Central (amarelo e azul), e dos “leprosos”, torcedores do Newell‟s Old Boys (vermelho

e preto), pintam a cidade, ressignificando-a ora como espaço de conflito, ora como um

espaço harmônico de festa. A identidade torcedora muito se adequa a um modelo

autorreferencial, fechado em si mesmo, que leva ao reconhecimento dos aliados e dos

inimigos, reproduzindo a atmosfera simbólica da guerra. A cidade torna-se “una

caldera”, ressignificada pela ótica dos torcedores.

No conto, as duas equipes disputarão uma partida de semi-final de campeonato

e, nesse evento, foram depositadas todas as esperanças da torcida rosarista. Para eles,

não se tratava apenas de um jogo anterior à final; independente do clube que avançasse,

as glórias da conquista dessa partida específica já alterariam as dinâmicas no espaço da

cidade, gerando uma série de provocações entre as torcidas e a ascendência de uma

sobre a outra.

O velho Casale surge então como essa figura mística que poderia ser decisiva, o

elemento necessário para a articulação do real que garantiria as condições necessárias

para que Rosário vencesse a partida:

el viejo había dicho que él nunca, pero nunca, lo había visto perder a

Central contra Ñul [Newell‟s Old Boys]. [...] Era un privilegiado el

viejo y además, un talismán, querido, porque así como hay tipos mufa

que te hacen perder partidos adonde vayan, hay otros que si vos los

llevás es número puesto que tu equipo gana. No es joda. Y el viejo

Casale era uno de éstos, de los ojetudos” (FONTANARROSA, 2005, p.

70).

Nunca ao ter ido ao estádio, o velho presenciou uma derrota para o rival. Essa

constatação pelo grupo de torcedores levou à seguinte conclusão: “este viejo tiene que

estar en el Monumental contra Ñubel. No puede ser de otra forma. Tiene que estar”

(FONTANARROSA, 2005, p. 70). Os presságios identificados pelos amigos barra

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bravas sinalizavam a iminente vitória da equipe. As lógicas operadas pela “razão

torcedora” funcionam através de uma mística, quase religiosa, indicando uma

supervalorização das experiências vividas nos círculos mais próximos aos sujeitos.

Como sinaliza, Michel Maffesoli:

O desenvolvimento vertiginoso das grandes metrópoles (megalópoles,

seria correto dizer), que nos anunciam os demógrafos, pode somente

favorecer essa criação de „aldeias na cidade‟, para parafrasear um título

famoso. O sonho de Alphonse Alais realizou-se. As grandes cidades

transformaram-se em campos onde os bairros, os guetos, as paróquias,

os territórios e as diversas tribos que as habitam substituíram as aldeias,

lugarejos, comunas e cantões de antigamente. Mas, como sempre, é

necessário reunir-se em torno de uma imagem tutelar. O santo patrono

venerado e celebrado será substituído pelo guru, pela celebridade local,

pela equipe de futebol ou pela seita de modestas dimensões.

(MAFFESOLI, 1998, p. 61-62)

O clube desempenha essa função tutelar da qual fala Maffesoli na medida que

reúne indivíduos que podem experienciar as mesmas sensações, o mesmo sentimento,

sentindo-se ligados uns dos outros, partilhando conquistas, valores e costumes comuns,

construindo a versão de um “nós” que permite a identificação com o próximo. A

construção da torcida significa também a construção de uma identidade que opera no

cotidiano da vida da/na cidade. A história comum à torcida atua em conjunto com a

história individual do torcedor que vai ao estádio e acompanha todos os passos do time,

participando ativamente de suas conquistas:

El Colorado nos habló de los grandes ideales, de nuestra misión frente a

la sociedade, de nuestro deber frente a las generaciones posteriores, los

pendejos. Nos dijo que si ese partido se perdía, miles y miles de

pendejos iban a sufrir lãs consecuencias. Que para nosotros, y eso era

verdad, iba a ser muy duro, pero que nosostros ya estábamos jugados,

que habíamos tenido lo nuestro y que, de últimas, teníamos experiencia

en malos ratos y fulerías. Pero los pibes, los pendejitos de Central, ésos,

iban a tener de por vida una marca en sus vidas que los iba a marcar

para siempre, como un fierro caliente. Que las cargadas que iban a

recibir esos pibes, esas criaturas, en la escuela, los iban a destrozar, lês

iban a pudrir el bocho para siempre, iban a ser una o dos generaciones

de tipos hecho bolsa, disminuidos ante los leprosos, temerosos de salir a

la calle o mostrarse en público. Y eso es verdad, hermano, porque yo

me acuerdo lo que eran las cargadas en la escuela primaria, sobre todo.

(FONTANARROSA, 2005, p. 74)

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A radicalização da experiência do torcedor, no conto, aparece marcada por uma

preocupação que não se limita ao futebol, mas se expande ao campo social. A

problemática geracional e as provocações na escola compõem um cenário que coloca o

grupo de amigos na condição de salvadores da “pátria” rosarista. A constituição do

imaginário de torcedores se faz toda a partir dos significados simbólicos tecidos nas

tramas sentimentais do clube e de sua rede de apaixonados. Todos esses sentidos estão

presentes na vida cotidiana e potencializam a imaginação de sujeitos que se sentem

responsáveis por uma “causa” justa e coletiva. Nesse sentido, eles se veem como

agentes de um processo maior, orientados não só pela paixão, mas por todas as

repercussões que uma simples partida de futebol pode gerar no meio social. Como disse

Drummond: “O torcedor, na sua impotência, «joga» ainda mais que o jogador, e como

não tem bola alguma à sua frente, precisa socorrer-se de um esforço de imaginação de

que Paulinho [o jogador] está dispensado” (2014, p. 28).

Realizado o sequestro, todos seguem até o estádio e desfrutam da partida em sua

totalidade, expressando o entusiasmo coletivo. Durante o jogo, o estado de euforia do

velho preocupa os integrantes do grupo, temendo as consequências de seu ato. Ao final

da partida, o Rosário Central sai-se vencedor e o “Viejo Casale” tem seu fim

emblemático, representado por uma morte especial, digna de um torcedor rosarista.

Uma morte “canalla”, reforçando os traços identitários que compõem e sustentam a

mística de uma torcida: “Así, se tenía que morir, que hasta lo envidio, hermano, te juro,

lo envidio! Porque si uno pudiera elegir la manera de morir, yo elijo ésa, hermano! Yo

elijo ésa” (FONTANARROSA, 2005, p. 83).

Mempo Giardinelli, em “El hincha” (2008), conta a história de um torcedor

solitário, Amaro Fuentes, fiel à paixão pelo pequeno Club Atlético Vélez Sarsfield. Seu

amor pela camisa azul e branca constrói-se a partir da herança paterna – “Amaro estaba

seguro de haber aprendido a pronunciar esse nombre [Velez] casi simultáneamente com

la palavra «papá»” (GIARDINELLI, 2008, p. 187) e dos relacionamentos no bairro da

cidade de Ramos Mejía, que integra a Província de Buenos Aires, “cuando todo Ramos

era adicto al entonces Club Atlético Vélez Sarsfield” (GIARDINELLI, 2008, p. 187).

Ex-jogador amador do clube do coração, Amaro se vê obrigado a aposentar-se

do futebol ainda jovem, quando perde o pai, justo momento em que debutaria na

primeira divisão como jogador profissional:

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tuvo que empezar a trabajar y se enroló como grumete en los barcos de

la flota Mihanovich y dejó de jugar, con esse dolor en el alma que

nunca se le fue, aunque siempre conservó en su valija la camiseta con el

número nueve en la espalda, viajara donde viajara, por muchos años

[...]. (GIARDINELLI, 2008, p. 188)

Em uma de suas viagens, a embarcação para em Puerto Barranqueras durante a

rota Buenos Aires-Ciudad de Asunción, e Amaro, promovido a primeiro comissário de

bordo, decide instalar-se nas imediações do porto na cidade de Resistencia, localizada

na Província do Chaco, exercendo a função de carteiro no correio local: “miró

largamente esa camiseta, como despidiéndose de un muerto querido y decidió no seguir

viaje” (GIARDINELLI, 2008, p. 188).

O apelo emocional do personagem à imagem do pai e ao território de Ramos

Mejía se manifesta também no apreço pela camisa do clube. Ele não se despede do time,

mas de seu pai falecido e do bairro onde morava. O encontro de símbolos dá ao leitor as

informações sobre os elementos que constituem o quadro afetivo do personagem, que,

em outro solo, passa a experienciar a dor desde uma outra perspectiva: “desde entonces,

cada domingo implicó, para él, la obligación de seguir la campaña velezana”

(GIARDINELLI, 2008, p. 189). O reflexo da obsessão pelo clube, desde uma localidade

mais distante, postula-se quase como uma dívida pessoal que tem por objetivo manter

viva a herança deixada pelo pai, assim como sua memória. O desenraizamento

geográfico de Amaro não rompe os limites da subjetividade; ao contrário, reafirmam

ainda mais seus valores como torcedor do Vélez. Vale mencionar que Giardinelli, desde

a dedicatória, coloca em evidência a homenagem ao vínculo entre pai e filho: “A la

memoria de mi padre, que murió sin ver campeón a Vélez Sarsfield” (GIARDINELLI,

2008, p. 187).

Em Resistencia, a maioria das pessoas torciam para Boca Juniors ou pelo River

Plate, grandes campeões nacionais. Durante toda a sua vida na cidade, Amaro suportou

as provocações e brincadeiras feitas pelos amigos, acostumados a vencer: “Che, Amaro,

¿por qué no te haces hincha de Boca, eh?” (GIARDINELLI, 2008, p. 190), diz um deles

em tom de piada. Fiel á paixão, Amaro mantém sua posição e segue solitário em meio

ao ambiente repleto de torcedores de equipes vitoriosas, cultivando angústias e

insucessos seguidos.

Ainda que houvesse um cenário inóspito para um torcedor veleziano, o

companheirismo local era um fator preponderante nas relações entre as pessoas da

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cidade, ao reunirem-se no Bar La Estrella e ao reconhecerem os infortúnios de Amaro

enquanto torcedor: “Rodríguez [chefe dos correios], hincha de Boca y hombre

acostumbrado a saborear triunfos, se condolió de Amaro y le concedió una semana de

vacaciones para que viajara a Buenos Aires a ver la final del campeonato de primera B”

(GIARDINELLI, 2008, p. 192).

Depois de anos sem pisar na capital, quando chega ao bairro de Liniers onde

nasceu, Amaro se depara com uma outra cidade, “casi desconocida, ensanchada, más

alta, más cosmopolita que nunca y casi perdida aquella forma provinciana de los años

veinte” (GIARDINELLI, 2008, p. 192). As assimetrias entre o personagem e o espaço

onde foi criado são demonstradas no desenvolvimento do aspecto urbano da cidade de

Buenos Aires, marcando um descompasso temporal com as experiências que o sujeito

traz do passado. A constante, entretanto, na relação entre o sujeito e o território

mantinha-se pela presença do clube no cotidiano dos torcedores do bairro.

Vélez ganha a partida e ascende à primeira divisão do futebol argentino. Amaro

regressa à cidade da Resistencia, emocionado com a conquista, e ganha notoriedade

entre os companheiros:

Desde entonces, cada domingo, Amaro se transportaba imaginariamente

a Buenos Aires, era un hombre más en la hinchada, revivía la tarde del

triunfo, se acordaba del pibe García y lo veia dominar la pelota, hacer

fintas y acercarse a la valla adversaria. Y todas las tardes, en La

Estrella, cada vez que se discutía sobre fútbol Amaro recordaba [...].

(GIARDINELLI, 2008, p. 194)

O deslocamento físico proporcionou uma identificação coletiva com os

velezianos de Liniers. Assim, quando Amaro regressa, a memória recente das

experiências no bairro possibilita um encontro afetivo provocado pela imaginação. Por

um breve momento, o personagem pôde se sentir novamente como uma das partes do

corpo homogêneo que constitui a torcida, trocando provocações com os amigos de

Resistencia durante os encontros posteriores no bar Estrella.

Os anos se passaram e o Vélez mantinha-se na primeira divisão, ainda que sem

um título. Aposentado, “Amaro Fuentes se convirtió en un perfecto solitário, aferrado a

una sola ilusión y como desprendido del mundo” (GIARDINELLI, 2008, p. 194). A

vida monótona e vazia tinha como elemento suplementar a paixão pelo clube. A equipe

torna-se a referência de mundo, como foi o pai e o já desfeito bairro de infância. Em

1968, Vélez se consagra campeão na primeira divisão do futebol argentino e Amaro

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teve a oportunidade sua única de glória, ao sentir-se vitorioso como torcedor veleziano,

expressando a alegria com a conquista para todos de seu entorno em Resistencia:

Dio la tan jurada vuelta olímpica alrededor de la mesa, corrió hacia el

ropero, eligió la corbata con los colores de Vélez y su mejor traje y salió

a la calle, harto de ver todos los años, para esa época, las caravanas de

hinchas de los cuadros grandes, que recorrían la ciudad en automóviles,

cantando, tocando bocinas y agitando banderas. (GIARDINELLI, 2008,

p. 196)

Ao sair às ruas, todos os amigos aplaudem o entusiasmo de Amaro, uma partilha

maior que se experiência desde a afetividade de um grupo de amigos próximos, ainda

que torcedores de outras equipes. A rede de afetos proporciona a mescla identitária entre

torcidas. Nem Boca, nem River; Vélez sai campeão e os indivíduos partilham a vitória

do clube através da emoção do torcedor solitário: “hasta alguno gritó viva Vélez carajo

y Amaro ya no pudo contenerse y pidió al chofer que lo llevava hasta su casa”

(GIARDINELLI, 2008, p. 197-198). Logo após, o personagem de volta à casa se vê

diante da iminência de uma síncope provocada pelo entusiasmo. O reconhecimento dos

amigos e o título de campeão aguçam a emoção do personagem. Consumada a vitória, o

fim último a que o Vélez podia chegar, conforme o desejo de Amaro, consuma também

a vida do torcedor.

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2. AS DONAS DA BOLA

[...] torcedores, termo criado, a propósito, tendo

como inspiração as fãs do Fluminense que, na

histórica, tradicional e centenária arquibancada das

Laranjeiras, retorciam freneticamente seus lenços e

luvas brancas em desesperada aflição em meio às

encruadas pelejas no estádio. Sérgio Pardellas, Isto é, 2017.

O diálogo com a realidade histórica do futebol brasileiro, proposto por Sérgio

Pardellas, traz em si uma provocação sobre a contribuição das manifestações de

diferentes sujeitos na construção do universo simbólico do jogo. Ao longo do

desenvolvimento da mística e das marcas próprias ao mundo da bola, convencionou-se

pensá-lo como um campo exclusivo do sexo masculino, edificado e consolidado por

varões habilidosos dentro dos gramados e, fora deles, por torcedores dedicados às

paixões clubistas. Segundo Leda Maria da Costa, “é grande o grau de familiaridade que

muitos homens possuem com o futebol e isso faz com que tanto seu interesse quanto seu

conhecimento acerca desse esporte sejam tomados como uma espécie de segunda

natureza masculina” (2007, p. 3).

No mundo contemporâneo, contudo, o futebol cresceu de diferentes formas. Nos

Estados Unidos da América, por exemplo, houve sempre a demarcação da esférica

como território das mulheres. A área tipicamente masculina se concentra em torno da

bola oval do futebol americano, em que saltam aos olhos as dimensões guerreiras e os

atributos da violência e da força na composição dos modos de jogo. Nos países do norte

europeu – Suécia, Noruega, Suíça, Alemanha –, a convivência no esporte entre ambos

os sexos se dá de forma integrada há gerações, podendo ambas as seleções nacionais,

masculina e feminina, provocarem apelo popular diante de suas conquistas. Em países

do Extremo Oriente como a China ou as duas Coreias, o futebol feminino reúne

milhares de torcedores e torcedoras nos estádios. Em outros como Inglaterra, Itália,

Espanha ou França, embora se tenha conservado em grande medida o futebol masculino

como referência maior, ampliaram-se consideravelmente as esferas de mercado e os

investimentos em segurança nos estádios, promovendo uma absorção não só de novos

torcedores, mas principalmente de torcedoras ao longo das décadas. Na América Latina,

de modo geral, o futebol ainda está construído sobre uma forte presença masculina. No

entanto, as mudanças decorrentes das problemáticas sociais, especialmente aquelas

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observadas pelos estudos de gênero e poder, vêm proporcionando alterações culturais

significativas tanto nas arquibancadas quanto nos gramados. Esse novo panorama não

se limita ao plano concreto das práticas vinculadas diretamente ao esporte. Ele se

estende também aos meandros da representação e possibilita a emergência de novas

subjetividades, isto é, torcedoras e jogadoras que, como alteridade dentro de um campo

hegemonicamente masculino, fazem ouvir suas vozes, contestam as estruturas

tradicionais e engendram a reconfiguração dos sistemas simbólicos do jogo e do próprio

campo literário.

Tanto o futebol como a literatura de futebol se consagraram primeiramente

através de seus expoentes masculinos. O crescimento da presença de mulheres neste

espaço simbólico engendra uma reconfiguração do campo social e literário, que permite

a expressão de novos modos de (auto)representação. Dessa maneira, diante da

conjuntura atual, os relatos femininos de futebol assumem uma fundamental

importância para a reformulação dos modos de representar os gêneros em sociedade,

reconhecendo da mesma forma o valor das mudanças no presente e as participações

históricas que foram silenciadas ou apropriadas pelo discurso masculino no decorrer do

desenvolvimento do universo do futebol. A literatura surge como um ambiente

extremamente favorável para atentar sobre as conexões entre as quatro linhas e as

dinâmicas do campo social.

Durante anos, a discussão sobre as mulheres e o futebol foi deixada de lado,

tanto por conta da discriminação quanto pelo conformismo perante as relações objetivas

consolidadas socialmente entre ambos os gêneros. Agora, há uma produção

consideravelmente maior sobre a temática, repercutindo na academia, no campo

editorial e nos leitores das camadas populares, que se dão a ver problematizando ambos

os espaços – literatura e futebol.

2.1. Breve apresentação do quadro argentino contemporâneo

Historicamente, percebeu-se o futebol como um espaço material e simbólico

cultuado, vivido e dominado por homens. Permeando os mais diversos espaços sociais,

o poder simbólico das relações estabelecidas a partir do jogo de bola implica um lugar

de reprodução e performance dos valores atrelados a um ethos de masculinidade. Em

estádios, praças, escolas, bares, observamos, de modo geral, o futebol como um meio

através do qual se determinam socialmente posições marcadas pelo gênero,

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estabelecendo-se quase sempre uma escala de valores que tem como referência de

superioridade a figura do “macho”.

María Graciela Rodríguez afirma: “el fútbol no es un territorio a conquistar: es

un territorio conquistado” (2005, p. 37). Ao se perguntar sobre a participação das

mulheres como torcedoras nos estádios, a teórica argentina propõe uma leitura

embasada na violência, mapeando as estruturas conservadoras sobre as quais se assenta

o futebol. As ações observadas por Rodríguez indicam um forte rechaço à presença

feminina nas arquibancadas, justificado tanto pela exposição ao perigo quanto pela

mística idealizada de uma paixão que só poderia ser compartilhada por homens. Por

outro lado, houve casos em que a resistência deu lugar à indiferença em relação ao

feminino, representado enquanto continuidade de um corpo masculino suscetível à

violência da torcida, isto é, a captura e consequente anulação da marca de gênero. No

primeiro momento, a mulher é representada como frágil, indefesa e incapaz de ter

interesses em comum com outros homens. No segundo, ocorre uma absorção de corpos

femininos pelos registros sociais que compõem o universo do futebol, reiterando ainda

mais os esquemas sobre os quais se organiza a lógica interna ao esporte. A partir de uma

série de entrevistas de torcedores e torcedoras, Rodríguez conclui:

Lo analizado hasta aquí permite inferir que tanto las representaciones

como las prácticas reproducen las gramáticas de producción [...]

pertenecientes al universo simbólico masculino, y que no aparecen

intenciones de prácticas que permitan habitar dominios culturales de la

masculinidad de otro modo que no sean los modelos definidos

culturalmente. (2005, p. 52)

As distinções sociais entre os gêneros sustentam modelos culturais, como também

viabilizam a representação de um universo lúdico estruturado a partir dos princípios

herdados do patriarcalismo, refletindo elementos característicos de um ethos masculino.

É preciso sublinhar, primeiramente, que um dos traços significativos para a

instalação do discurso das torcidas, segundo Rodríguez, é a falsa sensação da disputa do

futebol entre os gêneros:

Los propios valores masculinos que circulan al interior del campo

parecerían definir la ausencia de conflicto inter-géneros en tanto que el

eje nosotros-otros instalado en el discurso de las hinchadas se construye

no a partir del género sino a partir de la oposición del „macho‟ con

quien no posee esa condición” (2005, p. 37).

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O homossexual e a criança agem como a alteridade que designa a figura

masculina enquanto portadora de virilidade, maturidade e autonomia. A forte presença

do que Judith Butler (1996) chamou “heterossexualidade compulsória” proporciona,

tanto na sociedade quanto no futebol, a corroboração de uma hegemonia

heteronormativa.

No primeiro momento, a mulher não representa nenhuma ameaça a esse modelo

social. Ao contrário, acentua ainda mais a posição de domínio do “macho”. Esse aspecto

não se dá de forma arbitrária ou natural. Ele está associado diretamente aos níveis de

enunciação do discurso propagado e controlado pela masculinidade. As práticas de

torcedores operam na circunscrição do corpo feminino dentro das normas estabelecidas

a partir da heteronormatividade. A separação entre sexo e gênero, nesse contexto, não

fica clara. O sexo como norma sequestra as possibilidades da diferença de gênero

(BUTLER, 1996), impossibilitando o reconhecimento de outros sujeitos que não se

alinhem a estas posições. Além da mãe e da esposa, os modo de representar a mulher,

principalmente em estádios e espaços onde grupos se reúnem para assistir aos jogos,

tendem à hipersexualização do corpo feminino, projetando-se, dessa forma, a condição

necessária para o “reconhecimento” desse elemento estrangeiro num espaço destinado

exclusivamente a um público de torcedores homens. As performances associadas ao

gênero se resumem estritamente à norma indicada pelo sexo.

Nesse sentido, podemos lembrar da contribuição de Derrida ao trabalho da

filósofa americana, demonstrando que as repetições contínuas da expressão social de um

registro masculinizado naturalizam culturalmente modos de agir fundamentados dentro

de um padrão heteronormativo. O mercado e os meios de comunicação de massa terão

uma contribuição significativa na difusão do universo construído a partir do futebol. As

circunstâncias de enfoque televisivo, durante a transmissão de um jogo de campeonato,

na maioria das vezes refletem o reforço das imagens pré-determinadas de diferenciação

e reafirmação do “macho”. A esposa/mãe com a família na arquibancada, mulheres que

se adequam ao padrão de beleza instituído pela moda; as “belas da torcida”, modelos

que servem como um tipo de “mascote” ou adorno em treinos, jogos oficiais ou em

atividades de marketing extra-campo. Podemos presumir que as relações de sentido que

se interpõem nas camadas sociais através do futebol são estruturadas, não só pela

reprodução constante destas performances heteronormativas, mas sobretudo por meio

do “enquadramento” que serve como moldura a estas imagem:

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Quando um quadro é emoldurado, diversas maneiras de intervir ou

ampliar a imagem podem estar em jogo. Mas a moldura tende a

funcionar, mesmo de uma forma minimalista, como um embelezamento

editorial da imagem, se não como um autocomentário sobre a história

da própria moldura. [...] Uma determinada maneira de organizar e

apresentar uma ação leva a uma conclusão interpretativa acerca da

própria ação. (BUTLER, 2015, p. 23)

É curioso pensar que a postura radical de Rodríguez vigore ainda hoje, doze

anos após a publicação de seu artigo, tendo em vista as recentes mudanças na América

latina referentes à luta pela igualdade de gênero na sociedade através de coletivos nas

redes sociais e do ativismo feminista.2

Em março de 2017, uma matéria lançada pelo jornal Télam trazia como título a

declaração de Carolina García, gestora do projeto de gerenciamento de futebol feminino

pela AFA (Asociación de Fútbol Argentina): “El fútbol femenino en Argentina está en

decadencia y a punto de desaparecer”.3 Meses depois, uma outra notícia publicada pelo

jornal espanhol El País, em outubro de 2017, trazendo uma maior gama de dados e

informações sobre o mesmo assunto, apresentava um título que é o contraponto do

primeiro: “El auge silencioso del fútbol femenino en Argentina”4.

A tragicidade da primeira reportagem parece se confrontar com a promessa

emancipatória da segunda. No entanto, o denominador comum que se extrai do diálogo

entre as duas perspectivas é a possibilidade de vislumbrar as transformações inerentes

ao campo social. As duas matérias são a expressão da luta por igualdade de gênero

dentro do âmbito específico do futebol. Essa manifestação crítica quanto à

deslegitimação do futebol feminino – seja pelo registro da decadência de um fenômeno

ainda muito recente, seja pela chegada ao ápice silenciado – se reflete como o

intercâmbio de relações entre as demandas femininas dentro dos mais diversos espaços

sociais. Hoje, a luta pelo reconhecimento do futebol feminino, tanto na prática do jogo

quanto nas possibilidades de representação da mulher, é um dos níveis da luta feminista,

servindo não só como exemplo, mas como motivadora de ações coletivas. As duas

2 O fatalismo de Rodríguez encontra sua medida no modo como o futebol argentino foi articulado ao

registro hegemônico masculino. Por isso, talvez, a dificuldade de conceber em 2005, dado o contexto até

então pouco problematizado, uma via de transição no esporte que tende a desenraizá-lo de suas estruturas

do passado. Em 2017, é possível observar contingências que superam a malograda conclusão. 3Em:http://www.telam.com.ar/notas/201703/181669-el-futbol-femenino-en-argentina-esta-en-decadencia-

y-a-punto-de-desaparecer.html. Acesso em 15/01/2018. 4Em:https://elpais.com/deportes/2017/10/21/actualidad/1508539977_449618.html.Acesso em 15/01/2018.

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reportagens combinadas demonstram que o futebol, na atualidade, não se restringe

somente ao entretenimento ou às disputas nacionalistas. Sobretudo, o futebol, na

contemporaneidade, pode ser visto, de maneira muito mais evidente do que antes,

também como um espaço político de luta social.

Mesmo que ambas as matérias tratem sobre a mesma temática – a precariedade

das condições de treino e atividades das mulheres nos gramados, os baixíssimos salários

e a desproteção das jogadoras pela via institucional –, o modo como cada uma se

enuncia instiga a pergunta: estamos diante do fim ou do auge do futebol feminino na

Argentina?

O entrosamento entre as mulheres e a esférica é maior do que nunca. Ainda

assim, para os sujeitos femininos, esta parece continuar a ser uma atividade não

legitimada no contexto argentino. A liga de futebol feminino, criada em 1991, ainda não

encontrou vias concretas para a profissionalização das jogadoras. Não há investimentos

ou respaldo institucional da AFA. Em contraposição a outros países, como EUA, China,

Noruega, Suécia, onde o futebol já encontrou saídas para a inclusão definitiva da mulher

no mundo do futebol, a Argentina ainda mantém uma marca muito forte de descaso em

relação às equipes femininas. Enquanto de um lado do mundo observam-se estádios

lotados para assistir ao desempenho feminino nos gramados, nos “pagos” portenhos não

há sequer a menor adesão do público às partidas disputadas por mulheres. Ainda assim,

podemos contar, hoje, com alguns sites e blogs especializados que escrevem sobre a

prática feminina do esporte, como www.elfemenino.com.ar ou solofutbolfemenino.com.

Nas arquibancadas, por outro lado, o rechaço à presença da mulher na torcida

diminui gradualmente, dado o aumento do número de torcedoras indo aos jogos e

partilhando os espaços da bola. Trata-se de um movimento global que cresce a cada ano

em países que mantém uma postura masculina em relação ao esporte, como, por

exemplo, Brasil, Chile, Argentina, Espanha ou Itália. Franklin Foer, em seus estudos

sobre futebol e sociedade, lê a transição do caso inglês a partir das dinâmicas de

mercado:

As novas exigências transformaram a economia do esporte. Para

financiar a reconstrução de seus estádios, os antigos proprietários, na

maioria pequenos empresários que se fizeram por conta própria,

importaram montanhas de capital novo. Grande parte dele veio de

espertos investidores urbanos que percebiam que o futebol tinha um

mercado cativo gigante e sólidas fontes de lucro inexploradas. [...] O

plano funcionou perfeitamente. Um novo tipo de torcedor, mais

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abastado, começou a frequentar os jogos em estádios mais seguros e

confortáveis. Pela primeira vez, viam-se muitas mulheres nas

arquibancadas. (2005, p. 89)

Na Inglaterra, o futebol se associou rapidamente aos movimentos da classe

operária. Grandes clubes como Manchester United, West Ham e Arsenal cultivaram

suas tradições a partir das áreas industriais urbanas, absorvendo os valores turbulentos

dos trabalhadores manuais, ligados a elementos fortes das representações do masculino

como força, honra, entusiasmo e virilidade (FOER, 2005, p. 87-88; FRANCO JR.,

2007, p. 34). Combinados esses elementos, configura-se uma leitura convencional do

futebol como espaço da violência. De acordo com Foer, pode-se depreender que é na

decadência desse espectro de desordem, insegurança e paixões desenfreadas que o

futebol consegue conquistar novos públicos. Além disso, a produção de bens de

consumo se adequou às novas demandas femininas. Camisetas baby look, anéis com

escudos das equipes, chapéus, colares, adornos diversos tornaram-se itens acessíveis a

serem consumidos pelas torcedoras.

Na Argentina, a abertura do mercado consumidor se deu de forma semelhante,

colocando em oferta diversos itens para as mulheres torcedoras. Os estádios, por outro

lado, não sofreram tantas alterações no que se refere às manifestações de violência e à

pacificação dos conflitos pela via do lúdico. Barras bravas e torcidas organizadas ainda

ditam o ritmo da partida nas arquibancadas. Ainda assim, há uma transformação visível

de vários aspectos que caracterizavam a torcida, e um número considerável de mulheres

passa a integrá-las. Mais do que na Inglaterra, talvez, pode-se perceber, menos que uma

mudança nas perspectivas de mercado, e muito mais um câmbio cultural, motivador da

ressignificação das lógicas do espaço e das práticas a ele relacionadas. As dinâmicas da

cultura, atuantes sobre sítios masculinizados do futebol, promove gradualmente

alterações no panorama hegemônico, colocando em disputa visões de mundo

naturalizadas e outras que tendem a desconstruí-las.

2.2. Entre o público e o privado: driblando a desigualdade de gênero

As gêneses do descompasso entre o futebol e as mulheres remontam ao modo

como o esporte foi implantado e praticado socialmente no contexto latino-americano.

Fortalecido a partir de sua incorporação em um contexto no qual imperavam valores

tradicionais do estado patriarcal, o futebol se tornou rapidamente um operador de

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representações românticas do masculino – o bravo guerreiro, o herói – e do feminino –

as donzelas idealizadas, a mulher que cuida do lar e aguarda a volta do marido.

Eduardo Archetti aponta que, na Argentina, o ludopédio cumpriu um papel

histórico fundamental ao consolidar parte do imaginário coletivo a respeito do

sentimento nacionalista, vinculando-o diretamente às representações de masculinidades

(Cf. ARCHETTI, 2003). Atentando para as disputas por hegemonia frente ao

colonialismo e ao imperialismo na Argentina, ele tenta observar como o futebol e o

desenvolvimento de um “estilo de jogo” tipicamente nacional pôde ajudar na transição

de uma masculinidade orientada pelo estigma aristocrático-burguês dos ingleses até uma

forma masculina que representasse a mestiçagem, caracterizando a pluralidade de

identidades presentes na cultura argentina:

el primer fútbol fue inglés o británico [...] y sólo después del proceso de

transformación histórica pasó a ser criollo. El fútbol argentino real, a la

manera criolla, fue hecho por italianos, españoles y la población nativa

masculina. Aun así, el período pionero es considerado positivo ya que

los valores ingleses de caballerosidad dominaron e impregnaron el

espíritu del juego. (ARCHETTI, 2003, p. 83)

Mesmo sendo um esporte com tendências da modernidade, que transforma a

Argentina em “un actor importante en la historia mundial moderna del deporte”

(ARCHETTI, 2003, p. 38), o futebol, em sua origem, consagra uma espécie de narrativa

neorromântica nacionalista que estereotipa homens e mulheres nos polos mais

antagônicos e desiguais. O código cavalheiresco atua como elemento que distingue e

determina os papéis sociais de cada gênero. As histórias construídas através do jogo, até

então concentradas nos estádios, nas rádios e, principalmente, no Estado, funcionavam

como reguladores e demonstrativos de valores sociais a serem reproduzidos

ostensivamente.5 As personalidades construídas a partir destas referências assinalavam

uma oposição entre o público, área de atuação masculina, e o privado, área de atuação

feminina. Archetti ajuda a compreender que, durante os anos de formação nacional, a

5Atualmente, o futebol não perdeu essa função, ela mantém-se presente, suavizada, sugestiva. Por vezes,

os eventos mostram, através de jogadores, exemplos a serem seguidos, como os dois maiores expoentes

da atualidade: o português Cristiano Ronaldo e o argentino Lionel Messi. Em diversas ocasiões, há a

exposição da figura desses jogadores, realizando atos filantrópicos e ações positivas dentro e fora de

campo. No entanto, hoje, a grande mudança se dá nos usos do esporte por diferentes agentes coletivos e

individuais da sociedade, ora descaracterizando o poder midiático, ora apropriando-se dele para suas

reivindicações. Podemos dizer que houve uma descentralização da força do Estado e da mídia, ainda que

mantenham, majoritariamente, sua influência na construção de narrativas.

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mulher não foi só excluída das relações inerentes ao futebol, mas foi representada como

a figura matriarcal que dava estabilidade à célula familiar, tendo como campo de

atividade principal a esfera do lar. Baseando-se na teoria de George Mosse sobre as

relações entre nacionalismo e sexualidade na Europa Moderna, o sociólogo argentino

diz:

la maternidad pasó a ser esencial y la paternidad, menos relevante; la

virilidad, más importante que la paternidad. El Estado intentaba que las

mujeres de clase media no formaran parte de la vida activa fuera del

hogar como modo de impedir que enfrenten una época turbulenta y

peligrosa. (ARCHETTI, 2003, p. 159)

As relações sociais entre os gêneros, determinadas sob a influência das guerras

no continente europeu em princípios do século XX, encontrou uma continuidade em

solo latino-americano. A formação social argentina, orientada pela presença inglesa,

colocou em circulação nacionalmente modelos para a classe média que positivaram a

masculinidade a partir de elementos marcadamente antagônicos em relação ao feminino

e que, paradoxalmente, se integravam pelas diferenças entre as práticas comuns a cada

sexo. A representação mais romantizada do feminino era necessária ao discurso

masculino, para legitimar-se em meio aos conflitos locais e mundiais como parte

indispensável de um projeto nacional (ARCHETTI, 2003, p. 159).

Eric Hobsbawm, considerando outros parâmetros, lê o papel das mulheres na

sociedade inglesa, durante o período que anteceder à Primeira Guerra Mundial (1870-

1914), colocando ênfase na emancipação feminina na esfera pública:

Em suma, já perto do fim do século XIX registramos uma distinta

tendência na Europa e na América do Norte a tratar mulheres como

pessoas no mesmo sentido de sociedade burguesa, análogas a homens, e

portanto análogas também como realizadoras em potencial. Isso se

aplica muito a um campo significativamente simbólico como o esporte,

que naquela época começava a se desenvolver. (HOBSBAWM, 2013,

p. 124)

O aporte do historiador inglês ajuda a compreender as tensões existentes ao

longo do processo histórico de formação social nos Estados europeus e, assim, elucidar

contradições importantes que envolvem os primeiros passos da sociedade moderna em

relação aos vínculos entre os regulamentos estatais, a institucionalização do futebol e

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seus reflexos nas diversas camadas sociais. Se nos pautarmos pelas diferenças entre as

classes operárias e as classes média e alta nos anos anteriores à Primeira Guerra,

encontraremos algumas descontinuidades referentes à divisão do espaço público entre

homens e mulheres.

Enquanto a mulher trabalhadora já botava seus pés na fábrica, a mulher de classe

média/alta encontrava-se ainda refém do estereótipo de fragilidade e subalternidade,

mantendo-se sob a proteção masculina, reclusa na casa ou em espaços específicos de

convívio e entretenimento da alta sociedade (country clubs, salões de festas, teatros

etc.), distantes das tensões, prazeres e ameaças externas. No entanto, é já nesse

momento que socialmente se experienciam mudanças mais profundas a respeito da

participação ativa de mulheres nas áreas profissionais da educação, das artes (música,

teatro, literatura, artes plásticas) e do jornalismo (HOBSBAWM, 2013, p. 130). Ainda

que houvesse uma disparidade entre as possibilidades de acesso das classes mais baixas

à universidade e à alta cultura da época,6 é fundamental notar que a qualidade da

agência feminina na esfera pública ainda estava muito presa às propriedades da

instrução, isto é, à passagem de valores familiares e à conquista de capital cultural.

De acordo com essa proposta, podemos ler o que Gayatri Spivak chamou

“heteronormatividade reprodutiva”7 (2012, tradução nossa) como o fundamento no qual

se baseia a distinção de atividades relacionadas ao gênero dispostas socialmente durante

o processo de formação nacional (2012, p. 278-279). Dessa forma, a constituição de

representações da mulher como a mãe, devota esposa e dona do lar implicaria uma

reclusão doméstica voltada para a educação dos filhos e organização da casa, frente a

uma intervenção social super ativa do homem. Em contrapartida, podemos observar

que, na passagem para a esfera pública, essas imagens estariam presentes enquanto

6 “Embora a infiltração de mulheres na esfera pública não esteja, em tese, confinada a nenhuma classe

particular, na prática estamos falando, quase exclusivamente, de mulheres de classes alta e média, sendo

exceção significativa, como sempre o campo do entretenimento. A bem dizer, todas as outras formas de

atividade, profissional ou não, nas quais as mulheres tinham probabilidade de se tornar publicamente

conhecidas, dependiam de tempo livre, recursos materiais e escolaridade, isolada ou conjuntamente. Essas

vantagens simplesmente não estavam ao alcance da maioria das mulheres das classes trabalhadoras”

(HOBSBAWM, 2013, p. 124-125). 7 No original: “reproductive heteronormativity (RHN)”. “As I was growing up, then, I realized that

nationalism was related to RHN as a source of legitimacy. As I moved to the United States and became

active around the world, I realized that the alibi for transnational agencies –backed explicitly by

exceptionalist nationalism(s) – was nationalism in the developing world. Gender was an alibi here even

for military intervention in the name of humanitarian intervention” (SPIVAK, 2012, p. 279).

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resíduos na ação profissional feminina, reforçando um aspecto normativo da mulher

associado diretamente à difusão dos valores nacionais.

O discurso institucional, os códigos legais e as diretrizes estatais, dessa forma,

ao serem reformulados, não alteram imediatamente a cultura ou a moralidade da

população em grande escala. Se tomarmos como exemplo a luta feminista, apenas na

segunda metade do século XX, com a atmosfera crítica provocada pelas manifestações

de 1968, o mundo pôde se defrontar com movimentos sociais de grande relevância. Nos

EUA e na Europa, a luta de universitárias e da classe intelectual pela igualdade da

mulher no âmbito do trabalho, pela legalização do aborto e pelo controle do próprio

corpo, contestando o cristianismo dominante, surgiu com grande efeito de choque na

sociedade, obrigando o Estado e suas instituições a dobrarem-se diante das novas

demandas populares. No entanto, a moral carregada dos velhos valores patriarcais não

se exauriu como poderíamos imaginar. Houve duras resistências das alas conservadoras

por todos os lados, desde a população até as mais altas esferas da política nacional. O

acesso ao trabalho era marcado por um contexto em que a grande maioria das mulheres

assumia posições subalternas nas empresas, além da jornada dupla ao voltar para casa e

encarar sozinha as funções no lar. Outro fator que merece destaque nesse período mais

recente foi o alto número de feminicídios e a crescente violência de gênero, com crimes

que, embora previstos em lei, passaram impunemente diante das autoridades. Havia

ainda uma preponderante regulação das ações e do corpo feminino por meio de

determinações do discurso patriarcal e da moral cristã. O descompasso entre a

institucionalidade e a moral atrasou a plenitude de muitas conquistas, em decorrência

dos rastros sociais deixados pelo passado nas práticas e no plano simbólico do discurso.

A promulgação de leis, bem como a conquista de um lugar de mais independência

pública por parte da mulher consagraram um embate que se estenderia por gerações até

os dias de hoje. A moral patriarcal reagiu e ainda reage em diversos aspectos, mas um

dos grandes saldos da luta feminista foi instalar uma nova tendência de pensamento na

sociedade, afirmando um lugar de fala a partir do qual se promovem embates que

acabariam por desestabilizar muitas posições hegemônicas. Isso possibilitaria, tomando

como empréstimo as palavras de Jesús Martín-Barbero:

pensar o processo de dominação social já não como imposição a partir

de um exterior e sem sujeitos, [...] ela [hegemonia] se faz e desfaz, se

refaz permanentemente num “processo vivido”, feito não só de força

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mas também de sentido, de apropriação do sentido pelo poder, de

sedução e de cumplicidade (2015, p. 112).

Quer dizer, por mais que os velhos traços da moralidade masculina continuem

presentes e ainda representem a base principal sobre a qual a sociedade se sustenta,

desponta um novo cenário no qual se afirmam novas forças hegemônicas. Outras

vertentes se instalam através da ação de agentes femininos, colocando em xeque

posturas históricas que tendem a reproduzir a desigualdade de gênero, ajustando-se

agora, conforme os novos tempos e novas agências, às lutas e conquistas das mulheres.

A desestabilização que deriva do embate pela hegemonia e os discursos

reconfiguradores da ação de novos sujeitos sociais (e sujeitas, por que não?) são

imprescindíveis para estremecer as bases das relações entre os gêneros na sociedade.

No contexto argentino, as grandes transformações sociais acerca das distinções

de gênero entre o público e o privado ocorrem em grande medida no primeiro governo

de Juan Domingo Perón. Em 1944, ainda como Secretário do Trabalho e Segurança

Social, ele já havia inaugurado a “División del Trabajo y Asistencia de la Mujer”,8 mas

foi em 1947 que a lei 13.010 outorgou às mulheres todos os direitos político-sociais,

tendo como uma figura central na luta por sua aprovação Evita Perón, esposa do futuro

presidente argentino. Popularmente aclamada, Eva Perón tornou-se uma personagem

8Atentamos para o desenvolvimento das fases de Perón, diante das novas demandas e preocupações com

os direitos das mulheres na vida político-social e na esfera do trabalho. No momento em que se instaura a

nova divisão, ele afirma: “dignificar moral y materialmente a la mujer equivale a vigorizar la familia.

Vigorizar la familia es fortalecer la Nación, puesto que ella es su propia célula. Para imponer el

verdadero orden social, ha de comenzarse por esa célula constitutiva, base cristiana y racional de toda

agrupación humana” (VÁZQUEZ, 2007, s.p., grifos nossos). No ano seguinte, em 1945, durante o seu

pronunciamento na Câmara do Deputados sobre o debate Pró-sufrágio feminino, ele diz: “Soy un

convencido de la necesidad de otorgar a la mujer los derechos políticos y apoyo con toda la fuerza de mi

convicción el propósito de hacer esto una realidad argentina. Es necesario dar a nuestra Constitución su

plena aplicación dentro de las formas democráticas que practicamos; y debemos una reparación a esa

Constitución, mutilada en lo que se refiere a la mujer…En síntesis, soy partidario de otorgar el sufragio a

la mujer, porque no hay ninguna razón que se oponga a que esto llegue a concretarse en una realidad”

(VÁZQUEZ, 2007, s.p.). Enquanto a discussão centrada no trabalho, em 1944, partia da célula familiar

como elemento motivador, o ponto político daquela exaltada em 1945 previa uma conclusão já muito

destacada dos argumentados fundadores do nacionalismo. Por fim, em 1946, já tendo sido eleito

Presidente da República Argentina, observamos Perón enaltecendo a partipação pública e popular das

mulheres em sociedade: ”La creciente intervención de la mujer en las actividades sociales, económicas,

culturales y de toda índole la han acreditado para ocupar un lugar destacado en la acción cívica y política

del país. La incorporación de la mujer a nuestra actividad política, con todos los derechos que hoy sólo se

reconocen a los varones, será un indiscutible factor de perfeccionamiento de las costumbres cívicas.

Oportunamente tendré el honor de elevar a la consideración de vuestra honorabilidad un proyecto de ley,

estableciendo el voto y demás derechos políticos de la mujer” (VÁZQUEZ, 2007, s.p.). Trechos extraídos

de: http://www.evitaperon.org/evita_peron_instituto-es.htm. Acesso em 23/01/2018.

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icônica na história argentina, participando das lutas sociais de trabalhadores e

trabalhadoras durante o primeiro mandato de Perón, inaugurando na cena política a

participação das mulheres de origem popular e da classe trabalhadora nas lutas por

lugares de poder em distintos âmbitos da sociedade. Eva se apresentava como uma

defensora radical dos direitos dos homens e mulheres do povo, subordinando seus

interesses aos interesses das multidões que davam suporte ao peronismo. No lugar de

uma primeira dama passiva, resguardada em sua posição de adorno ao lado do marido,

ela se construiu enquanto uma agente popular que desafiava os limites entre o público e

o privado. Durante a viagem a varios países europeus que fez em 1947, ela declara:

“este siglo no pasará a la historia con el nombre de Siglo de las Guerras Mundiales...

sino con otro nombre mucho más significativo: Siglo del Feminismo Victorioso”

(VÁZQUEZ, 2007, s.p.). A preocupação com a integração das mulheres nas ações

cívicas e políticas, principalmente por meio do trabalho e do direito ao voto, atuou

como o roteiro principal de seu legado na história nacional argentina. Evita, mais do que

Perón, foi a grande responsável por instauração tanto no plano das leis quanto em

muitas práticas do poder de uma abertura do círculo público na Argentina para as

mulheres, reconfigurando o cenário junto às forças subalternas.

Um exemplo dos reflexos contemporâneos dessa reconfiguração do campo

social a médio prazo encontra-se na imagem, também extremamente popular, de

Cristina Kirchner, ex-presidenta da Argentina. Numa escalada pelo Congresso Nacional,

Cristina chega à presidência em 2007 depois do segundo mandato de seu marido, Néstor

Kirchner, contando com uma popularidade ainda maior que a do marido. Já em pleno

século XXI, podemos encontrar a persistência de certas marcas que retomam a

discussão quase em sentido anacrônico. Cristina Elisabet Fernández de Kirchner,

durante o período em que foi deputada e senadora manteve seu nome de casada

completo, incluso o “de”, que na cultura hispânica denota posse e é bastante

significativo da condição de dependência da mulher no estatuto matrimonial. Cristina

era filha de Eduardo Fernández e Ofelia Wilhelm. Tinha, portanto, como nome de

solteira uma composição dos sobrenomes das famílias do pai e da mãe: Cristina Elisabet

Fernández y Wilhelm. Ao casar-se, perde o sobrenome da mãe e carrega os sobrenomes

de dois homens (pai e marido), incorporando também a preposição “de” como marca de

posse ainda vinculada ao resíduo patriarcal daquela sociedade. Com sua ascensão no

congresso e respaldo popular, chega à presidência como sucessora de Néstor. Nesse

momento, abandona o registro nominal que denota uma posição subordinada e

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ressignifica sua identidade, fazendo-se chamar Cristina Kirchner. As marcas da

conquista de um novo lugar na linguagem refletem e, de modo igual, ressignificam as

contingências sociais. Por mais que o sobrenome do marido permaneça, há uma

negociação política em jogo que se consuma na união familiar de ambos, no

fortalecimento das alianças partidárias e, principalmente, na ausência do signo de

dominação masculina, explicitada na preposição “de” indicando uma relação de posse.

Grandes personagens canonizados na história argentina engendraram

ressignificar o sentido de família e, consequentemente, de seus membros. Tanto Eva e

Juan Domingo Perón quanto Cristina e Néstor Kirchner reformulam o sentido familiar

não como o domínio do homem sobre a mulher, mas no exemplo da comunhão de

ambos com objetivos políticos mais amplos. Durante a ditadura militar, compreendida

entre os anos 1976-1983, pôde-se observar uma nova interpretação da palavra mãe.

Dezenas de mulheres que tiveram seus filhos presos, sequestrados, assassinados e

desaparecidos organizaram-se no movimento conhecido como “Madres de la Plaza de

Mayo”. O ingresso das mães na vida pública e política tem um sentido dramático no

cenário argentino, imbricando o rechaço à violência do Estado ditatorial até a formação

de agências adequadas aos novos cenários históricos, nos quais a mulher assume um

papel de sujeito.

Resta a impressão de que a confrontação dos códigos sociais e da cultura comum

chegou atrasada ao futebol. Diante de cenários de disputa nos quais as mulheres se

projetam desde a década de 1940, colocando em pauta as lutas por igualdade de gênero,

o futebol ainda como um dos palcos em que se encenavam as performances mais

ancestrais sobre masculinidade e feminilidade, apresenta-se por muito tempo como algo

imutável, incontornável, resistente às mudanças. O que se torna patente nas disputas

feministas e nas representações operadas por mulheres no universo da bola, na

contemporaneidade, é o potencial de leitura das situações do presente que cumprem um

papel social decisivo na ativação de novos lugares da subalternidade. Desde a

mundialização desse esporte, é comum observarmos um grande apelo ao universo

feminino durante as copas do mundo, integrando toda a nação que torce em casa e nos

estádios para a seleção nacional. A nação é convocada, recalcando-se, por um momento,

as marcações e estratificações de gênero.

Já na esfera dos clubes, os sinais que fundam as distinções de gênero

apresentam-se na própria estrutura do jogo.

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Domingo é o dia preferencial em que a coletividade assiste às partidas dos

campeonatos nacionais. Por mais que haja partidas em outros dias da semana, o

domingo ainda é a marca principal do entretenimento futebolístico no mundo ocidental,

orientada especialmente pela herança do cristianismo. As características histórico-

sociais presentes no futebol demarcam uma microestrutura que reflete a sociedade como

um todo. Isso não significa observar no futebol contornos maiores do que ele possui,

mas indica normas sociais que estão entranhadas na lógica com a qual experienciamos o

mundo. A palavra domingo tem como origem etimológica a raiz latina domus, que

significa propriamente casa. No entanto, dessa mesma raiz derivaram outras palavras

que compõem substancialmente a coerência e as incoerências do futebol – domínio,

dominador, dominus (o Senhor), o título de Dom aplicado a senhores da nobreza, o dom

em seu sentido de qualidade natural específica de alguém e doméstico (o domínio da

casa). Toda a composição do mundo da bola se dá de acordo com as regras, o juízo, a

sensibilidade, as dinâmicas e a lógica vigente nas sociedades formadas pelo cristianismo

ainda como ideologia dominante e pelo nacionalismo do início do século XX. Domingo

não era só o dia de ir à igreja para assistir à missa e ouvir sermões sobre a paixão de

Cristo; sobretudo, domingo é o dia de ir para o estádio, para o bar, ligar a televisão,

ritualizar a paixão (já não de/por Cristo, mas por Pelé, Maradona, Romário, Riquelme,

Messi, Carlitos Tévez, Ronaldo Fenômeno), ouvir não um sermão, mas a narração de

um guru do esporte como Galvão Bueno ou Víctor Hugo Morales, locutor que

descreveu de forma emocionada os gols de Maradona contra a Inglaterra na Copa de

1986.

As marcas da religiosidade e da formação nacional sustentam de forma muito

poderosa tanto as estruturas do jogo quanto as distinções de gênero diante da marca

patriarcal do discurso masculino. No entanto, ainda que esses traços específicos

permaneçam, vemos os gramados serem pisados não só por deuses e heróis, mas por

deusas e heroínas (Marta, brasileira eleita melhor jogadora do mundo pela FIFA quatro

vezes; Carli Lloyd, jogadora estadunidense; Amandine Henry, francesa; Alexandra

Popp, alemã). Temos nas arquibancadas não só os seguidores de um clube, mas as

devotas de uma paixão. A ascensão das mulheres no futebol é uma realidade que cresce

mais a cada dia, acompanhando o desenvolvimento social da disputa pela

democratização dos mais variados espaços controlados, quase exclusivamente, pela

masculinidade, a romper os limites da norma comum e a conquistar espaço, inclusive,

no campo literário.

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2.3.Representações na literatura: a voz das mulheres no futebol

A literatura como campo de fricção (e que absorve em suas formas e temas as

fricções do social) não se apresenta totalmente desvinculada dos interesses e paixões

associados ao esporte. Em função disso, durante o século XX na América Latina, houve

uma popularização do futebol no universo da cidade letrada, com a crescente difusão de

romances, contos e crônicas que abordaram o mundo das quatro linhas e de seus

torcedores a partir de uma perspectiva literária ou jornalística, com destaque para nomes

como Roberto Fontanarrosa e Osvaldo Soriano, na Argentina, Mario Benedetti e

Eduardo Galeano, no Uruguai, Nelson Rodrigues e Mário Filho, no Brasil. Observa-se,

porém, que o tema continua sob o domínio da enunciação masculina.

No futebol, como fora dele, as representações femininas foram

predominantemente construídas por homens e respeitavam, quase em sua totalidade, a

lógica do patriarcalismo das relações sociais reproduzidas no âmbito da família e do

jogo da bola. Lembrando o conto “El cuadro de Raulito”, de Eduardo Sacheri, publicado

no livro Esperándolo a Tito y otros cuentos, no ano 2000, temos a figura da mulher

como mãe, assumindo um papel secundário frente aos conflitos e afetos estabelecidos

entre pai e filho diante da fidelidade a um clube. Fora do foco narrativo, a mãe é uma

personagem observadora que não se envolve ou intervém diretamente na paixão

futebolística, atuando apenas na mediação das vicissitudes familiares:

Cuando su mujer salió al patio, extrañada de que su marido siguiese al

sereno en el atardecer frío del otoño, lo encontró llorando a él también,

pero unas lágrimas gordas, densas, de esas que abren surcos pegajosos

en su camino, de esas que uno llora cuando está demasiado feliz como

para sencillamente reírse.

–¿Se puede saber qué les pasa? –preguntó la mujer, confundida. El la

miró, sin preocuparse siquiera de ocultar sus lágrimas–: Hace rato que

el Raulito entró a su pieza y dio un portazo, y me dice que no quiere que

entre, y se lo escucha llorar y llorar como loco. Y ahora salgo y te veo a

vos también moqueando. ¿Me querés explicar qué cuernos pasa?

El hombre la consideró con benevolencia. ¿Qué otra cosa podía hacer?

¿Intentar explicarle? ¿Cómo? Se conformó con mirarla, mientras seguía

sintiendo el fluir del tiempo en el gotero de cristal de ese momento

indestructible.

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–Seguro que le ganaron a River y vos lo cachaste al chico, ¿no? Seguro

que te la agarraste con el nene, ¿no? –Ella lo miraba con gesto de severo

reproche.–Semejante grandulón, ¿no te da vergüenza?

–No, Graciela, no le hice nada. Si River ganó tres a dos. Al chico no le

dije nada, te juro –respondió con calma, desde la cima de su paz

reconquistada.

–Pero entonces no entiendo nada. ¿Me decís que ganó River, y el nene

está llorando como loco encerrado en la pieza?

–Sí, Graciela. Ganó River. Pero el pibe no es de River, Graciela. – Y se

sintió reconciliado con la vida, eufórico, agradecido, emocionado;

dueño legítimo y absoluto de las palabras que iba a pronunciar. Después

se incorporó, porque cosas así se dicen de parado: – Lo que pasa es que

el Raulito es de Huracán, Graciela. ¡De Huracán! (SACHERI, 2000, p.

44-45)

O conto narra o momento em que pai e filho assistem a uma partida de futebol.

O pai torce para o Huracán e o filho para o River Plate. Convencido pelo tio, Raulito se

decide pelo time maior (River) e não sofrer com as derrotas de uma equipe que há anos

não conquista um título (Huracán). Com isso, quebra a tradição paterna da herança do

amor por um clube, que vai passando de geração em geração. O desenlace se dá durante

a partida entre as duas equipes, quando o Huracán sofre uma derrota de 3 a 2 para o

River, e o filho, ao invés de alegrar-se, vai para o quarto banhado em lágrimas. O trecho

citado é o desenlace no qual se traduz a felicidade do pai ao perceber que o vínculo

entranhável entre pai e filho passa também pelo futebol. Desse contexto a mãe é

excluída tanto por conta de seu desconhecimento do resultado do jogo quanto pelo fato

de manter-se ou ser vista como um sujeito que se mantém alheio ao universo do futebol.

Esse não pertencimento a um campo tido como tipicamente masculino se expressa na

reflexão do narrador sobre os pensamentos do marido (“¿Qué otra cosa podía hacer?

¿Intentar explicarle? ¿Cómo?”). Essa dimensão que associa futebol a um ethos de

masculinidade ainda é muito forte no imaginário que se constrói em torno dos relatos de

futebol. Na passagem citada, a percepção da mulher é antagônica a do homem no que

diz respeito ao amor pelo clube. Esse sentimento que estaria na base da identidade

masculina soa como uma tolice, como algo menor, para a mulher. Quem lê o conto pode

perceber desde as primeiras linhas a importância do sentimento de filiação ao clube

através das palavras do narrador, que explica e racionaliza até certo ponto as

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manifestações emocionais dos personagens durante a partida e finaliza com o diálogo do

casal.

Sacheri, um apoiador e entusiasta do futebol feminino e da produção de

escritoras na literatura de futebol, retrata um universo dominante durante seus anos de

infância. Em 2014, quando lança Papeles en el viento, ele propõe uma representação

não muito comum no universo masculino da pelota. O livro, em síntese, trata do amor

pelo clube que o pai deixa para sua filha, desenvolvendo desde a infância um constructo

social da mulher desvencilhado das corriqueiras trocas estritamente masculinas no

futebol. Assim, percebemos pelo olhar de uma personagem feminina durante seus anos

de crescimento como esse esporte se fortalece afetivamente em sua memória,

possibilitando, desde a esfera ficcional, uma atmosfera de enunciação que se tornaria

visível social e literariamente ao absorver a atuação cada vez mais decisiva das

mulheres.

Na virada do século XX para o XXI, há uma renovação dos narradores que

buscam abordar o futebol através da literatura, juntamente como movimento que ficaria

conhecido como Nova Narrativa Argentina (NNA), e, com isso, a entrada de mulheres

no circuito da produção de relatos de futebol surge também como um aspecto notável de

reestruturação do campo literário. Em 1997, Roberto Fontanarrosa organizou Cuentos

de fútbol argentino, e trazia no prólogo a seguinte observação:

La editorial nos ha prometido que todos podremos lucirnos, ya que este

maravilloso grupo humano es como si fuera una gran familia. Tanto

que, vale consignarlo para evitar sorpresas, queridos aficionados al viril

deporte del balompié, Inés Fernández Moreno, Liliana Heker y Luisa

Valenzuela han sido aceptadas en el plantel siendo, como sus nombres

lo indican, mujeres. Bellas literatas que acceden a este mundillo

supuestamente de hombres cabalgando en el crecimiento del fútbol

femenino y en la innegable pasión que alberga en el corazón de toda

niña argentina. (2003, p. 12)

Três autoras com respaldo da importância já conquistada na cena literária

argentina faziam parte da seleção escalada pelo organizador da antologia. Nesse

primeiro momento, o antólogo ainda se apresenta como o mediador das relações de uma

grande família viril, ambiente masculino tão pouco frequentado por mulheres que a

presença das três exceções poderia provocar surpresa. O aviso aos “queridos aficionados

al viril deporte del balompié” sinalizava um novo panorama, uma mistura de referências

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de gênero, trazendo consigo outras subjetividades que chegaram para dividir o território

não só do futebol, mas também da escrita literária de futebol. O convite se traduz na

intenção de desbordamento do campo literário ligado ao futebol, seguindo o percurso

inicial da onda de crescimento do interesse do público feminino pela esférica. Isso se

tornaria cada vez mais frequente com o decorrer dos anos.

Em 2008, na coletânea de contos De puntín, organizada por Diego Grillo

Trubba, dez nomes femininos aparecem no plantel de contistas da nova geração de

narradores da NNA que escrevem sobre futebol: Lucía Marroquín, Romina Doval,

Alejandra Zina, María Sol Porta, Selva Almada, Agustina Arias, María Molteno, María

Fasce, Mariela Ghenadenik e Celia Dosio.

Esse processo de conquista de espaço foi num crescendo, até que em 2014, foi

publicada pela editora El Ateneo, a antologia de contos de futebol feminino Las dueñas

de la pelota, organizada por Claudia Piñero, reunindo apenas escritoras. Os textos

reunidos têm como intuito narrar eventos relacionados ao mundo futebolístico, tratando

de assuntos que vão desde o espaço da casa, as formações familiares e o relacionamento

afetivo com o esporte, até a construção de cenários da profissionalização de jogadoras.

Muitas narradoras integram a antologia já a partir de um lugar de consagração bem

como de um vasto currículo de publicações, como é o caso da própria Claudia Piñeiro,

de Esther Cross e Ana María Shua. Outras são jovens autoras, ainda que algumas já

contem com um considerável reconhecimento no campo literário, a exemplo de

Gabriela Cabezón Cámara e Selva Almada.

Las dueñas de la pelota assinala uma espécie de resolução da passagem de

estágios da literatura de futebol. O primeiro momento puramente masculino (1970-

1990); o segundo, já na transição para o século XXI, surge marcado pela tímida

participação feminina ainda mediada por homens; e um terceiro momento no qual tanto

a organização quanto a seleção é composta exclusivamente por autoras. O prólogo de

Claudia Piñeiro reflete muito bem as relações até então dadas no seio da bola e concede

a Fontanarrosa uma menção honrosa, ainda que crítica, como forma de reconhecimento

à sua importância na transformação do marco inaugural:

Hasta ahora, todos hombres. El fútbol es territorio de hombres. Y, si una

mujer se atreve a pisar ese territorio, deberá soportar la desconfianza, la

subestimación y una cierta molestia por participar de una fiesta a la que

no fue invitada. En la recordada antología Cuentos de fútbol argentino,

publicada en el año 2003, hay dieciséis autores hombres y tres autoras

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mujeres. Fontanarrosa lo destaca con su gracia habitual en un párrafo

del prólogo que antecede a la antología (…).

En medio de este clima inhóspito, aparecemos en la cancha nosotras,

catorce jugadoras dispuestas a embarrarnos en textos relacionados con

el fútbol, deporte que muchas veces nos apasiona, pero en el que tratan

de hacernos creer que estamos de prestado. Todas mujeres. Con un

director técnico varón, Marcos Mayer. (PIÑEIRO, 2014, p. 12-13,

grifos da autora)

Piñeiro afirma que, nos níveis discursivos do futebol, “tratan de hacernos creer

que estamos de prestado”, como se fosse um momento transitório, contingente, pouco

expressivo e efêmero, uma fase que passará rapidamente. Ela mostra que não. O

ingresso nos gramados e nas torcidas estabelece um movimento paralelo ao entrar no

campo literário futebolístico. As escritoras reformulam as representações da bola, do

feminino e de si mesmas, esboçam em contos os vínculos que possuem com o mundo da

bola, exaltam questões de gênero pertinentes à sociedade e reforçam a possibilidade de

se reconhecerem e serem reconhecidas subjetivamente dentro deste espaço inóspito.

O prólogo continua e Piñeiro revela parte de sua ligação com o esporte:

Desconozco cuál habrá sido la relación personal de cada una de las

escritoras que integran esta antología con el fútbol. La mía fue muy

estrecha. Vengo de una familia donde el fútbol tenía un lugar central.

Mi hermano, mi padre y yo éramos los tres de Independiente. A mi

hermano lo entrenaron mis tíos desde los cinco años. En el patio de

tierra que separaba mi casa de la de ellos, mis tíos lo ponían en un arco

de tamaño excesivamente grande para él y pateaban a matar. Lo hacían

tan fuerte que yo creía que lo iban a terminar lastimando, y cada tanto

me quejaba. Pero mi hermano me hacía callar, para él cualquier

pelotazo era poco, siempre pedía más. Los domingos se escuchaba

fútbol en la radio. Y si la televisión transmitía cualquier partido, del

equipo que fuera, se veía en el único televisor que había en la casa, no

importaba con qué programa compitiera. Mi hermano terminó siendo un

gran jugador aficionado de fútbol. El padre de mis hijos también lo es.

Mi pareja es fanático de Racing, pero a esta altura de la vida he asumido

que ciertos defectos del otro no pueden modificarse, y la pertenencia a

un club no puede modificarse sin el oprobio de ser considerado un

traidor. Veo poco fútbol, pero sé qué es la ley del off side, aunque me

gusta más decir orsai. Lavo las camisetas y los botines embarrados que

traen mis hijos todos los fines de semana. Y las vendas, y las medias, y

los pantalones cortos. Conservo en mi álbum de fotos una en la que

estoy con Ricardo Enrique Bochini, el Bocha. En fin, entre tanta

anécdota, seguramente hay material para escribir varias historias donde

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aparezca el fútbol. Siempre que, además de este deporte, la historia

encierre un conflicto, personajes con carnadura, un tono singular, un

lenguaje a explorar, habrá cuento de fútbol para ser contado.

Por eso esta selección, para encontrarnos con plumas femeninas que le

den al deporte nacional un punto de vista peculiar, un sonido diferente,

palabras que lo cuenten de otro modo. (PIÑEIRO, 2014, p. 13-14, grifos

da autora)

Em tom familiar, o futebol cresceu na vida da escritora e tornou-se um elemento

presente em sua vida. No entanto, a afetividade e a importância do esporte se

desenvolveram de forma desigual em comparação ao irmão. A prática do jogo se

concentrava na figura masculina, enquanto ela de fora observava a reprodução violenta

que os tios desempenhavam ao dar chutes a gol. Enquanto ela se incomodava, o irmão

desejava aquela atmosfera, uma forma de educação que ratifica os valores da virilidade,

da força e da distinção entre os gêneros. Por mais que durante sua vida as transmissões

de futebol fossem constantes, que houvesse fotos com ídolos do Club Atlético

Independiente, ela na fase adulta assume: “veo poco fútbol”, muito pelo fato de que esse

esporte, mesmo presente nas suas memórias tenha encontrado prazo de validade logo na

infância. Por isso, é tão emblemática a referência sobre a lei do off side, que no Brasil

chama-se “impedimento”, uma forma mais clara de traduzir o descompasso entre o

futebol e as mulheres.

Diante de todo esse cenário, ela não se aparta da posição da mulher como dona

de casa, lavando as roupas dos filhos, marcando unilateralmente a responsabilidade

desse papel na casa, dissociado do marido. Entretanto, observa-se no discurso de Piñero

toda uma atmosfera gerada pelos valores praticados no esporte. Com o tom humorístico,

ela questiona a paixão de seu companheiro pelo Racing de Avellaneda (rival histórico e

territorial do Independiente): “Mi pareja es fanático de Racing, pero a esta altura de la

vida he asumido que ciertos defectos del otro no pueden modificarse”. E compreende o

alto nível de traição implicado no ato de ousar trocar de equipe.

Por fim, o último trecho é de suma importância e define de forma precisa o

potencial de alteração no discurso do futebol a partir da representação, contado por

vozes femininas, deslocadas e muitas vezes à margem em relação à condição masculina

desde a origem do esporte moderno. Novas vozes, outras visões e outros estilos de

contar o que já foi contado são os motores e os produtos desse panorama que está se

constituindo cada vez com mais força e presença nos diversos espaços sociais.

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Vale ressaltar, que muitas das produções femininas nesse momento inicial não se

confinarão somente à reprodução do discurso futebolístico ou fugirão do estigma

patriarcal, através do qual as mulheres são representadas. Muitas histórias são escritas

como relatos de experiências vividas através do futebol, descrevendo e problematizando

as vias de construção das diferenças entre homens e mulheres na família, na sociedade e

no gramado. Ao mesmo tempo, diversos contos têm ainda como foco principal a figura

masculina, em seu valor familiar afetivo, em seu potencial opressor ou como aquele que

vive inteiramente o futebol, como Liliana Heker em “La música de los domingos”

(2003). A narradora aborda a história de seu avô, personagem amargo e carrancudo, e se

coloca na posição de leitora da situação. Diante dos acontecimentos do conto, a parcela

masculina da família atua ativamente das dinâmicas vinculadas ao futebol, enquanto as

mulheres se colocam como participantes passivas, observadoras dos eventos que

ocupam o centro da cena.

Tendo isso em vista, observaremos em três contos específicos as questões até

aqui levantadas.

Em “Matosas”, de Esther Cross, podemos analisar particularmente as questões

referentes à construção da personagem “Gorda Matosas”, símbolo histórico da torcida

do River Plate. Em “Fútbol era el de antes”, de Ana María Shua, buscamos delinear o

modo como a relação das mulheres com o futebol pode se dar a partir de outros pontos

de enunciação. Por fim, em “La guacha redonda”, de Gabriela Cabezón Cámara, temos

como enfoque principal a leitura dos dramas pessoais de uma jogadora de futebol

profissional.

O conto de Esther Cross narra o episódio em que Matosas, biograficamente

Haydée Luján Martínez, líder da torcida do River durante boa parte do século XX, se

encontra internada num hospital à beira da morte. De todos os traços da personagem

apresentados pela narradora, os que nos interessam são aqueles que permitem, de algum

modo, o reconhecimento dela por parte de um amplo grupo de torcedores: “había

bancado diecisiete años malos com River, levantando la moral de hinchas y plantel”

(CROSS, 2014, p. 28).

Relacionando elementos vinculados ao gênero masculino e feminino, Matosas se

alinhava ao discurso hegemônico do “macho”: “posaba de mocasines, medias tres

cuartos, casaca, gorrito de pescador” (CROSS, 2014, p. 25). Em um primeiro momento,

poderíamos pensar numa breve alteração dos parâmetros de determinação de gênero no

estádio, assumindo que há uma mulher no comando de uma torcida formada

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basicamente por homens. Levando em consideração as características físicas e as

atitudes de Matosas, podemos ter uma noção melhor da maneira como ela conquistou o

respeito dos homens. Fora dos padrões de beleza e dona de um temperamento que

desafiava a tudo e a todos em nome da paixão ao clube, ela não se colocava discursiva e

performaticamente enquanto mulher no estádio. A performance masculina associada à

personagem reflete o modo como as representações no futebol requerem uma encenação

do “macho”, ainda que assumida por um sujeito feminino.

O âmbito performático não se reduz aqui somente à atuação social tempestiva.

Ao contrário, indica a presença de códigos que constroem os sentidos do espaço e, na

mesma medida, possibilitam que o lugar ganhe autonomia, a partir das inscrições

subjetivas, determinando e moldando os indivíduos que nele participam. Essas

impressões transbordam seus limites de leitura na medida em que deixam de se vincular

apenas à subjetividade e passam pela transformação objetiva da realidade nos estádios,

bares, ruas etc., isto é, pela caracterização do espaço dada pelas performances, é

possível experienciar um cenário que se entende e estrutura de acordo com traços

específicos vinculados à masculinidade e neles se assenta enquanto algo inteligível.

Assim como a performance do “macho” está diretamente ligada à área do

futebol, a encenação da “mulher vulnerável” ocorre de modo que os homens

sobressaiam frente à fragilidade feminina. Este modelo de teatralidade repetido

continuamente estabelece não só as bases para as reproduções de masculinidades no

esporte, mas salienta modos de agir que, enraizados, não cessam de entranhar-se no

tecido social. É o efeito e a condição para a perpetuação do poder hegemônico

heteronormativo que, por meio da estética, eterniza e naturaliza posições sociais,

determinando seus atores e coadjuvantes.

As apropriações do corpo se dão na medida em que não há a possibilidade de

sexualização da imagem e, consequentemente, não há a possibilidade do

reconhecimento enquanto mulher. O que era visto pelos outros em campo e na torcida

era mais um torcedor em meio aos outros. Por outro lado, podemos assumir, na mesma

linha em que colocamos acima, a figura materna que cuida dos jogares e amantes do

clube, aquela que se entrega inteiramente à maternidade. A captura do corpo reflete uma

mudança comportamental que se adequa às exigências para ser um torcedor.

O que o conto nos traz de importante se coloca imediatamente no título:

“Matosas”. Esther Cross retrata a personagem sem a intervenção do significante

“gorda”, utilizado como demarcação antagônica do padrão estético de beleza: “– es un

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ícono de la deformidade, tanto que para insultar dicen estás como la Gorda Matosas, y

en realidad no es tan gorda” (CROSS, 2014, p. 24). Não se trata de uma marcação

natural, definitiva ou imutável, sequer de uma possibilidade exclusivamente masculina;

há, sim, a evidência do “macho” no controle da enunciação do discurso proveniente do

futebol e, decorrente disso, uma tentativa de remover as marcas de significado que

mantêm Matosas num lugar que, a princípio, pode ser lido como privilegiado. Todavia,

segue como mais uma das representações que não dizem respeito à mulher enquanto

sujeito, mas à mulher como objeto capturável e reconhecível.

O nome dado pela torcida diz respeito a um registro que marca a ausência do

padrão de beleza com o adjetivo “gorda”, para legitimar a participação de um corpo que

ali não se inscreve como feminino. Ao remover as marcas de gênero da mulher

desejável, frágil e indefesa, a torcida inclui Matosas no discurso hegemônico, não como

diferença, mas como mais um agente de reprodução discursiva. A autora sublinha isso

muito bem, desde o início, com a retirada do adjetivo, enfatizando que a proposta do

conto é reconhecer a personagem enquanto mulher que participou ativamente de uma

torcida organizada. Com essa medida na contra mão da narrativa hegemônica, a autora

procura restabelecer uma subjetividade que, mesmo no encontro de elementos de gênero

variados, representa-se como uma figura feminina. Nesse sentido, o registro do

nome/apelido atua como fator fundamental para designar o lugar de enunciação e para

determinar como a personagem é representada na intermitência entre os discursos:

El verdadero nombre de la diosa espiritual y física de la hinchada

millonaria había quedado oculto, todo ese tiempo, por su alias, Gorda

Matosas, que con los años se había convertido en su auténtica identidad.

La Gorda había absorbido el nombre de un famoso jugador de los

sesenta, que le había regalado su casaca para darle el gusto. De tanto

verla con el 6 y el nombre Matosas en la espalda, terminaron por

llamarla Gorda Matosas. Estaba ingresada en el hospital como Haydée

Martínez, su nombre en los documentos, pero respondía al nombre de

Gorda Matosas. (CROSS, 2014, p. 22)

Esse mesmo apelido, por outro lado, surge como a própria identidade. Ela

mesma não se reconhece propriamente no prenome e sobrenome que aparecem nos

documentos e, possivelmente, na forma como os próprios familiares a chamam:

Haydée. Sua família, enfim, é o River Plate. Simbolicamente, Matosas se envolveu de

tal modo com o futebol que passou a confundir a própria vida com a vida do clube, ela

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atuava como um elemento de coesão e entusiasmo entre os jogadores e os torcedores. O

sentido de pertencimento à torcida do River foi construído acompanhando uma série de

eventos e partidas em que ela acabou por destacar-se como a heroína, desafiando os

rivais de outros clubes. Suas ações implacáveis despertaram respeito entre os

aficionados, como relata a fala de um motorista ao longo do conto:

– y la gordita se lo baja al rival. Les hace señas de pito corto – dijo el

remisero, haciendo la mímica –. Cuando le cantaban “La Gorda, la

Gorda, la Gorda adonde está/la busca San Lorenzo para cogérsela”, no

llamaba a la policía ni a Defensa de la Víctima, como harían esas

huecas, se paraba en el borde de la tribuna, y se cacheteaba las nalgas,

desafiante. Qué Maestra. Durante años fue la encargada de largar los

canchos en el césped, cuando jugábamos con los ídem. Es una gran tipa,

una gran hincha y una gran gorda. (CROSS, 2014, p. 27)

Esther Cross, ao homenagear a histórica torcedora do River Plate, retira da

invisibilidade o potencial de contribuição das mulheres no futebol, desarticulando em

certos graus a lógica hegemônica masculina através da narrativa. Por mais que, Matosas

tenha sido um símbolo capturado pelo discurso do “macho”, ela surge como uma lenda

feminina entre os apaixonados pelo River Plate e, através da narração da autora, torna-

se viável a representação dessa personagem, sinalizando as características do estigma

masculinizado do futebol, assim como os caminhos que tendem a desviar-se dele.

O conto de Ana María Shua, narrado em primeira pessoa, se baseia num

intercolegial de futsal disputado por jovens alunas. Ao tratar de um cenário mais

familiar que desportivo, ganha importância a participação da mãe em detrimento do pai

no acompanhamento da filha aos eventos de sua formação escolar. Na torcida, os

homens ganham destaque em destaque na figura de um pai que desempenha o papel do

torcedor violento, ao xingar a filha que, segundo ele, vem jogando mal.

Destacamos de início dois pontos de afirmação de enunciadoras femininas: 1) a

própria narração da mãe de Florcita, juíza da disputa, marcada pelo registro feminino

desinteressado que vê o futebol como algo incompreensível; 2) e a fala de “Rubia” que

“miraba el partido com una paz que me hacía pensar en mi profe de tai-chi” (SHUA,

2014, p. 36). Mãe de uma das jovens que integravam um dos times, esta dedica-se a

explicar à narradora as regras e os processos relacionados à dinâmica futebolística.

A conversa entre as duas personagens flui no sentido de instruir a narradora

acerca das regras e do ambiente do esporte. A marca do conhecimento sobre o jogo não

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passa pela figura masculina em nenhum momento, sendo “Rubia” um ponto de

enunciação que expõe racionalmente alguns dos elementos que tornam o futebol

compreensível. A narradora, desentendida do assunto, ouve atentamente e opina sobre

os lances da partida. É nesse breve momento em que há uma reformulação das relações

entre futebol e mulheres no sentido em que o olhar técnico e afetivo não depende da

figura masculina:

-Miré el partido con toda concentración, tratando de entender y de no

perderme nada. En una de esas mi hija toca el silbato y le saca dos

tarjetas a una piba que hizo faul, que ahora se dice “falta”. Yo hasta

tarjeta amarilla sabía y tarjeta roja también, pero ¿las dos juntas?

-Tarjeta azul.

- ¿Tarjeta azul? – Para mí, rojo con amarillo daba anaranjado.

- La echan, pero el equipo no se queda con cuatro, puede poner una

reemplazante.

La rubia me explico también, con mucha paciencia, qué significaba

tocar una vez el silbato, cuándo se tocaban dos y cuándo tres.

En eso dos chicas chocaron y uno de los padres se puso a gritarle a mi

Florcita.

- Falta Juez! Es faaaaaaalta, cobrala, cobrá la falta!

-No es falta – me explico mi nueva amiga-. Se chocaron los hombros

sin querer y las dos iban mirando para el mismo lado. Y al juez no se le

grita. Ni desde la hinchada. (SHUA, 2014, p. 37-38)

O desconhecimento sobre o jogo é potencializado pela mudança de modalidade

do futebol de campo para o de quadra. “Rubia” sela um companheirismo imediato com

a narradora, que se dispunha fazê-la a compreender pouco a pouco o que se passava na

partida e a função de sua filha, a juíza. A função de mãe que acompanha a filha ou os

filhos aos jogos aparece como marca principal. A experiência da narração perpassa os

estágios mais comuns e naturalizados da prática feminina ante o futebol ao mesmo

tempo que os ressignifica. Duas mulheres conversando sobre o jogo: uma é detentora de

informação e a outra uma neófita no mundo do futebol. As oposições entre os pais e as

mães ficam a cargo do entusiasmo e da exaltação incontida diante das pequenas

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jogadoras de 9 e 10 anos. A transposição dos valores comuns ao esporte profissional

para uma partida joga por crianças ocorre de modo desproporcional, quando alguns pais

tendem a gritar com a juíza e com as filhas jogadoras durante toda a partida.

Embebida de um contexto que denuncia os benefícios de homens em relação às

mulheres no futebol, a narrativa enaltece os reflexos sociais e familiares decorrentes das

práticas entre pai e filha. Há uma história secundária contada pela “Rubia”, que ascende

à condição de história principal por conta de seu conteúdo dramático e alegórico

relacionado à situação de gênero no futebol. Antonella, personagem da segunda história

e amiga dos tempos em que a “Rubia” jogava seu próprio torneio interclasses na escola,

sofre com as exigências do pai, desejoso de que um dia ela viesse a se tornar jogadora

profissional: “el padre no le tenía ningún respeto al fútbol cinco [futsal], decía que era

para minas y maricones, él queria que su hija jugara fútbol de verdad” (SHUA, 2014, p.

40). Ainda que haja o interesse na participação da filha no universo do futebol, a marca

deixada pelo pai fomenta ainda mais o discurso heteronormativo. Novamente,

encontramo-nos em um espaço que reproduz todas as disfunções e descompassos entre

um poder hegemônico e as dimensões subalternas.

Não obstante, a história se desenvolve no campo dos traumas gerados pela

presença incisiva do pai, o que acaba por constranger a filha. “Rubia” dá a entender que

para o pai era uma insatisfação constante o fato de ter uma filha mulher e que todos os

seus esforços dedicados à educação de Antonella se voltavam para a masculinização das

relações entre ambos. O afeto entre os dois convergia no amor por um clube: “el fútbol

le encantaba, eran hinchas de River” (SHUA, 2014, p. 39). O que se postula numa dupla

medida é como, nesse caso, o futebol desempenha uma mediação que fornece os

códigos para demonstrar as instabilidades familiares relacionadas à disparidade entre os

gêneros. O futebol mantém o aparente vínculo afetivo e, contraditoriamente, os

impasses entre pai e filha. Ao participar de um teste para fazer parte das categorias de

base do River, Antonella fracassa e vê o desapontamento de seu pai:

Imaginate que después del fracaso no le habló a la chica durante varias

semanas. Decía que había jugado mal a propósito para darle un

disgusto. Ella estaba destruida, andaba llorando por los rincones. Para

hacerla corta, cuando Antonella cumplió dieciocho años, decidió

operarse. Quería ser varón. (SHUA, 2014, p. 42)

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As ações praticadas pelo pai tem como efeito a mudança de sexo da filha. A

crítica central do conto se baseia especificamente no poder que opera o discurso do

“macho” sobre os corpos das mulheres. “Rubia”, nessa passagem, deixa claro que

Antonella não se viu numa situação de escolha. O traço subjetivo da personagem é

sublimado pelos desejos do pai, em busca da cumplicidade de um igual. A cena não diz

respeito à vontade individual e ao autorreconhecimento da personagem enquanto

homem, mas ao problema familiar que pressupõe a estabilidade das relações definidas

exclusivamente nos termos da masculinidade:

-¿Pero ya tiraba para ese lado? Digo... no sé... ¿le gustaban las mujeres?

-Y, algo de eso había. La madre no estaba de acuerdo, trató de

impedirlo por todos los medios. Decía que la pobrecita quería ser

hombre porque la única manera de conquistar el amor de su padre era

convertirse en el hijo varón que él siempre había deseado. [...] El padre

estuvo de acuerdo y la ayudó a viajar a los Estados unidos. Volvió

hecha un muchacho con toda la barba. Antonio en vez de Antonella.

(SHUA, 2014, p. 43)

Para ser reconhecida pelo pai, Antonella se vê na obrigação de converter-se em

homem.

-¿y cómo le fue? – le pregunté a la rubia.

-Peor que nunca. Imaginate, si como mujer no era muy buena jugando

al fútbol, cuando empezó a jugar con otros hombres resultó un desastre.

Pero en cambio, como hijo, tenés que ver. No existió sobre la tierra un

hijo tan amoroso y dedicado. Cuando su papá se enfermó, estuvo día y

noche al lado de él hasta que le cerró los ojos. Y te aseguro que el

energúmeno no se lo merecía. (SHUA, 2014, p. 44)

Shúa parte das trocas simbólicas para uma representação da performance que

indica materialmente a dominação masculina sobre os corpos femininos. A

radicalização da performance se traduz no momento em que não é mais necessário atuar

como um homem; é preciso ser um homem.

Em “La guacha redonda”, de Gabriela Cabezón Cámara, a narração se concentra

em contar a ascensão e o declínio de Selena, personagem ficcional que atua como a

melhor jogadora argentina de todos os tempos: “La Maradona del Ceamse” (CABEZÓN

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CÁMARA, 2014, p. 89). O conto inicia colocando o acento sobre a construção mítica

da personagem:

Era una guacha redonda: ella no fue dada a luz, sino escupida en el

barro y rebotó un par de veces antes del primer berrido; así aprendió a

proferir sus famosos alaridos y empezó a considerar el mundo como un

espacio en el que sobrevivir era cuestión de rodar sin despegarse del

piso y en el piso no había más que la basura más pobre, la otra la

levantaban, la comían, la tejían, la cosían para vestirse, la vendían en

sus carros, la usaban para vasitos o para darse calor cuando había helada

en la villa. El mundo era barro hediondo, un pantano nauseabundo

donde, si pisabas fuerte, saltaba fuego de abajo; ella nació dada a tierra

en unos lotes tomados al basural del Ceamse en los bordes bonaerenses.

(CABEZÓN CÁMARA, 2014, p. 85-86)

O começo da história é muito emblemático. Ressalta os aspectos de

subalternidade da personagem Selena, vivendo em uma região industrial nas margens de

Buenos Aires. Filha de mãe prostituta e de pai desconhecido, ela vive com quatro

irmãos em um cômodo minúsculo. A construção da personagem estruturada pela autora

demonstra uma relação metafórica entre o sujeito e o espaço onde vive. A comparação

do mundo de Selena com “un pantano nauseabundo” traduz a dura realidade na qual ela

vive e, da mesma forma, o modo como sua mentalidade se desenvolve diante da vida. A

acepção do termo “redonda” indica expressivamente uma metáfora com uma bola de

futebol e com o globo terrestre, a bola como tradução do mundo, isto é, a vida para ela

viria a se tornar o próprio futebol: “Y la guachita rodaba, aprendió a sobrevivir con

dinámica de esfera, a avanzar sin apoyar nunca más que un solo punto aprovechando

muy bien las subidas y bajadas del terreno que pisaba” (CABEZÓN CÁMARA, 2014,

p. 86). Perto de casa, havia um campinho onde jogavam os meninos do bairro e foi

então que teve seu primeiro contato com a bola: “como la luna y la tierra, se le armó con

el balón relación gravitatoria; la atrajo el cuerpo redondo y ella se satelizó” (CABEZÓN

CÁMARA, 2014, p. 87). A íntima relação reflete um universo em que o futebol não se

dissocia da formação subjetiva de Selena, naturalizando os sentidos do jogo e a

percepção do sujeito. O significado de mundo se conecta com os sentidos desenvolvidos

desde o futebol, Selena como alegoria da situação de jogadores e jogadoras subalternos

que veem no esporte a possibilidade de ascensão social (a exemplo do próprio Diego

Armando Maradona) e, principalmente, do mundo organizado sobre a mística do

futebol.

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As referências temporais do conto situam a narrativa em uma Argentina que

encara os primeiros anos do Peronismo, período marcado por um desenvolvimento

sócio-econômico dos grupos menos privilegiados, o que se refletiria na situação precária

da família de Selena e na vida do conurbano de modo geral: “La cosa mejoró un poco

cuando llegó el peronismo y entonces, por cada uno de sus [da mãe da personagem]

cinco hijos menores, era menor ella misma [Selena], la madre recibió plata para

comprarles arroz y de vez en cuando bofe” (CABEZÓN CÁMARA, 2014, p. 88).

Assim, Selena pode participar de seu primeiro torneio: “a los siete años ya era goleadora

de su escuela. A los ocho se ganó una medalla dorada en el Campeonato Evita. A los

nueve su mamá, que ya tenía veintitrés, la iba a ver jugar de diez” (CABEZÓN

CÁMARA, 2014, p. 88). De poco a poco, a trajetória da personagem ganha destaque,

desenvolvendo sentidos de pertencimento maior no seio da família e gerando o respeito

dos amigos da comunidade: “los pibes la visitaban y le llevaban ofrendas y ella se tatuó

sus nombres en la pancita de nena y mostraba los tatuajes cada vez que gritaba gol”

(CABEZÓN CÁMARA, 2014, p. 89). A personagem é representada como uma pequena

deusa, crescendo em meio às conquistas e à expressão de sua sensibilidade durante as

partidas. Seu aspecto, por outro lado, se assemelhava ao de um menino:

[...] la empezó a decir la prensa que reparó en su figura de nenito con

rulitos: resistirse a ser mujer en la forma en que lo eran su abuela, tías y

madre era parte de su ser blindada como una esfera, quién iba a elegir el

sino de ser la paria de la paria. Selena no. Progresaba y con ella su

mamá y también sus hermanitos que iban todos a la escuela [...].

(CABEZÓN CÁMARA, 2014, p. 89-90)

Selena surgia como uma nova subjetividade em meio à cena do conurbano, não

aceitando a subalternidade que definia as outras mulheres da tribo. Diante do sofrimento

dessas mulheres, resiste ao suposto destino e luta para melhorar a situação familiar,

atuando como uma figura exemplar. A emancipação através do esporte possibilita a

ascensão social e os reflexos da diferenciação entre Selena e suas familiares não se dão

tão somente na leitura do domínio da masculinidade, mas sobretudo na chance de alterar

os padrões que ali estão dados. Selena cresce e se diferencia daqueles e daquelas que

estão a sua volta. Ela é o motor, o dínamo e a possibilidade de transformação em

direção a esse novo mundo desenhado esfericamente de acordo com a ressignificação do

universo da bola pelo feminino.

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A transição de atmosfera no conto se dá no momento em que a “guachita”

recebe um convite para estudar e jogar futebol nos EUA, onde “gol se gritaba igual que

en la cancha de la villa” (CABEZÓN CÁMARA, 2014, p. 92), ressaltando o apego

territorial de suas raízes com os afetos deixados na Argentina. Instalada em Dallas, ela

passou a receber um salário maior que permite melhorar o padrão de vida da família no

conurbano, possibilitando inclusive a mãe reforme o apartamento e abra seu próprio

salão de beleza. Uma reviravolta instala um evento traumático na vida de Selena. Uma

das fábricas de armamentos militares da região explode e no acidente é destruída toda a

região onde ela morava. Mãe, avó, tias, irmãos e amigos, todos morrem em decorrência

da fatalidade. Nesse momento, ela entra em uma espiral de sofrimento, desejando nada

mais do que a vingança contra aqueles (industriais e governantes) que a levaram a

perder todos os vínculos afetivos. É importante lembrar que se Selena constituía o

mundo sobre o qual a família e a comunidade se espelhavam, isto é, viviam suas

derrotas, suas vitórias e suas mudanças juntamente à personagem, o contrário acabará

por ser verdade. Para Selena, o mundo não se sustenta sem as partes que nele/nela

faziam sentido. Tudo rui ao passo que o território e todos os elementos que o formaram,

enquanto espaço afetivo, se desmontam. Sua pátria era um pedaço de terra em Ceamse,

juntamente com sua família e seus amigos. Sua pátria já não mais existia. O que

vinculava o país e a pátria ao sujeito era a localidade na qual tinha vivido e que ainda

era cultivada em sua memória afetiva. A Argentina havia se tornado “ese lugar siniestro

donde los pobres volaban” (CABEZÓN CÁMARA, 2014, p. 95-96). Posteriormente, a

personagem se afilia a um grupo radical conservador norteamericano e desenvolve seu

plano de vingança com vistas a praticá-lo durante as Olimpíadas, a ser realizada em

Buenos Aires.

Selena deixa de ser a jogadora apaixonada, para quem o futebol era algo natural,

para se tornar um “genial Robocop”, que “avanzaba por la cancha como avanza por Irak

un regimento marine” (CABEZÓN CÁMARA, 2014, p. 95). Durante a partida, estavam

presentes nas arquibancadas todos os políticos mais influentes da nação, uma guarda

militar e a polícia. Ela entra em campo com o corpo repleto de bombas por baixo do

uniforme. Marca três gols e quando vê todos no estádio gritando, emocionados com a

vitória, aperta o botão que aciona os explosivos: “volaron todos, subieron más alto que

el obelisco y llovieron sus cenizas sobre Madero y la Boca. Selena se disgregó en una

esfera perfecta en el cielo bonaerense y el viento se la llevó hasta ser nada de nada o

hasta orbitar para siempre sobre el río de la Plata” (CABEZÓN CÁMARA, 2014, p.

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96). A vingança se concretiza com o fim de dois mundos: um representado pelas elites e

forças policiais do país; outro mais particular, mais concreto, próximo àqueles que

viveram junto a Selena, ela mesma a maior expressão dessa rede de significados

formadores do território de Ceamse e do conurbano. A orfandade referida no título e

durante todo o conto se resume no momento em que ela perde tudo e a todos. há dois

níveis de subalternidade em jogo: ter nascido pobre e ser mulher. Os conflitos do conto

refletem ao mesmo tempo as elites industriais, tidas por Selena como responsáveis pela

explosão de Ceamse, e a lógica hegemônica masculina, retratada pelo futebol e pelas

figurações das familiares submetidas a uma posição inferior. Relatando de forma épica a

trajetória de uma personagem inserida em dinâmicas complexas na sociedade, Gabriela

Cabezón Cámara surge como um dos grandes exemplos na produção literária

contemporânea que representa a mulher no futebol na condição de mito, ascendente e

caído.

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3. AS TRIBOS DA BOLA: descompassos entre o território e o Estado-Nação

Durante grande parte do século XX, o Estado-Nação foi o principal produtor de

narrativas do futebol. Por mais que muitas delas tenham sido geradas através de outros

operadores – mídia, torcedores e cronistas –, a unidade representada pelas seleções

dentro dos gramados age como um poderoso simulacro nacional, estimulando a

comunhão do povo. O panorama contemporâneo, ao seguir uma tendência de

diversificação dos produtores de discursos, inclusive aqueles que, no campo intelectual

e artístico, integram especificamente a literatura sobre futebol, reflete um cenário de

pluralidades em que a nação ora é questionada, ora é acionada em toda sua força

agregadora.

Richard Giulianotti, em Sociologia do futebol (2010), aponta que, após as

décadas de 1970 e 1980, o futebol mundial sofre uma série de alterações na sua

estrutura socioeconômica, caracterizando um momento de pós-modernização do

esporte:

A desindustrialização fraturou o elo das classes operárias com clubes de

subúrbios. A televisão passou a dominar as finanças e a administração

das ligas de futebol e de seus clubes membros. As maiores nações

beneficiaram-se, importando jogadores de todo mundo, enquanto as

menores tornaram-se dependentes das transferências externas. A

circulação global do trabalho e das ideias começou a solapar as

“tradições”, aumentando a mistura dos estilos de jogos.

(GIULIANOTTI, 2010, p. 52)

Tais mudanças no cenário das metrópoles projetaram não só um novo panorama

no futebol, mas engendraram modificações em grande parte das dinâmicas

socioculturais implicadas. Tendo como base o cenário inglês, Giulianotti assinala certas

rupturas com a tradição moderna do jogo. Os vínculos classistas e territoriais passaram

por disjunções na medida em que os investimentos em escala global avançavam. A

ampliação das redes de transmissão dos jogos, o crescimento do mercado da propaganda

e a maior quantidade de acionistas dos clubes dilataram a rede afetiva do futebol nas

esferas sociais. Rapidamente, as equipes ganharam um destaque tão marcante quanto as

seleções nacionais e potencializaram seus níveis de identificação com o público. Clubes

como Juventus e Milan, na Itália, Real Madrid e Barcelona, na Espanha, e Manchester

United, na Inglaterra, superam os limites das fronteiras nacionais e agregam uma gama

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de torcedores e torcedoras por todo o mundo. Talvez o lema “más que un club” (“Mais

que um clube”), associado à equipe catalã do Barcelona, seja a expressão maior do

modo como um time pode mobilizar uma ampla rede de domínio representativo. Muitos

desses times não se restringem a sua condição local e extrapolam seus sentidos,

figurando, por vezes, como ativos representantes de suas próprias nações em

competições internacionais e, em outras, como seleções independentes da sua origem,

aglomerando jogadores de inúmeras nacionalidades diferentes.

As problemáticas provenientes da reformulação do futebol no final do século

XX demonstram o surgimento de subjetividades híbridas, torcedores que se afiliam

emocionalmente a um clube de cada país, vendo campeonatos nacionais e

internacionais. Se afunilarmos ainda mais a leitura, podemos encontrar dentro de um

contexto nacional, torcedores que possuem um clube de afiliação local e, ainda assim,

optam simultaneamente pela escolha de uma equipe maior, que trará mais resultados

positivos e, consequentemente, mais alegrias. Na Argentina, por exemplo, há casos de

torcidas pequenas, como as do Sportivo Belgrano e Atlético Tucumán, que mantém sua

fidelidade ao clube; no entanto, muitos dos aficionados por futebol, escolhem torcer

para alguma equipe de representação no território nacional, como o Boca Juniors ou o

River Plate.

Muitas dessas manifestações se colocam no universo de impasses onde se

tensionam os limites do nacional e do microterritório. Ainda que a tendência, hoje, seja

a do futebol global, em espaços como a Argentina os torcedores mantêm inúmeros

vínculos locais de afetividade, negociando e alternando sentimentos entre a nação e o

clube.

Nesse sentido, com a emergência de novas formas de sujeitos torcedores e as

relações fragmentárias decorrentes do proceso de globalização, como entender o diálogo

entre narrativas de futebol e a ideia de nação? Em que ponto se elaboram novos

sentidos do nacional a partir de relatos locais? Segundo Homi Bhabha: “os embates de

fronteira acerca da diferença cultural têm tanta possibilidade de serem consensuais

quanto conflituosos; podem confundir nossas definições de tradição e modernidade”

(1998, p. 21). O objetivo deste capítulo é a de investigar essas possíveis confusões e,

por consequência, ressemantizações das quais o teórico indiano fala.

Diante de contextos globais em que os deslocamentos e a fragmentação social

indica, ao mesmo tempo, uma fragmentação identitária, a unidade de pertencimento

pretendida pelo Estado-nação moderno se dilui frente à emergência de grupos de

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sujeitos estruturados a partir de traços muito particulares ancorados no microterritório.

Segundo Stuart Hall, “as identidades modernas estão sendo „descentradas‟, isto é,

deslocadas ou fragmentadas” (2006, p. 8). O sociólogo jamaicano projeta, por

intermédio dessa rápida citação, um quadro que envolve não só fatores constituintes de

uma pós-modernidade que avança, mas retoma dialética e muito sutilmente a tradição

moderna para marcar as diferenças que se acentuam entre as duas perspectivas. Ao

ressaltar a condição fragmentária das identidades, ele expõe estruturas que, na

Modernidade, são tomadas por um universalismo que procura assimilar política e

ideologicamente as inúmeras partes que a compõem.

No processo de transição de uma era para outra, a característica da

universalidade se reveste de uma nova roupagem conceitual dada pela pluralidade que

reflete um cenário de fragmentação do sujeito e cisão entre espaço e tempo que redefine

formas de se lidar com a sociedade, determinando os estágios evolutivos do processo de

globalização. Novos modos de se relacionar, muito marcados pela negociação de

elementos culturais descolados da localidade de sua origem, reformulam as condições

do sentido de “estar-no-mundo”, sendo necessário realizar, além da análise materialista

associada aos contatos “face-a-face”, um apuramento do campo simbólico ao qual se

associam os intercâmbios identitários provenientes do distanciamento entre espaço e

tempo: “as relações que antes se faziam „aqui e agora‟, conjugadas num mesmo tempo-

espaço, podem ser espacialmente dissociadas, „desencaixadas‟, para se „reencaixarem‟

em outra configuração e/ou escala espacial” (HAESBAERT, 2014, p. 160). Valendo-

nos desse argumento, não pretendemos ler os contrastes entre uma Modernidade e uma

Pós-Modernidade cronologicamente marcadas por um antes e um depois bem definidos.

Ao contrário, pretendemos ver como elementos presentes em manifestações de

subjetividades já inseridas no âmbito pós-moderno podem emergir no interior de uma

Modernidade radicalizada, na tentativa de não sugerir a sobreposição espaço-temporal

de uma em relação à outra, mas analisar a coexistência de valores que promovem

embates e tensões na esfera social, além de sinalizarem o processo de transformação de

um modelo sólido em líquido:

En la actualidad, las pautas y configuraciones ya no están

“determinadas”, y no resultan “autoevidentes” de ningún modo; hay

demasiadas, chocan entre sí y sus mandatos se contradicen, de manera

que cada una de esas pautas y configuraciones ha sido despojada de su

poder coercitivo o estimulante. Y, además, su naturaleza ha cambiado,

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por lo cual han sido reclasificadas en consecuencia: como ítem del

inventario de tareas individuales. En vez de preceder a la política de

vida y de encuadrar su curso futuro, deben seguirla (derivar de ella), y

reformarse y remodelarse según los cambios y giros que esa política de

vida experimente. El poder de licuefacción se ha desplazado del

“sistema” a la “sociedad”, de la “política” a las “políticas de vida”...o ha

descendido del “macronivel” al “micronivel” de la cohabitación social.

(BAUMAN, 2004, p. 13)

O trecho de Zygmunt Bauman citado acima expõe um panorama fluidificado nas

tensões entre individual e coletivo, macro e microníveis, Estado e sociedade, permitindo

observar uma mudança nas concepções fundamentalmente difundidas por uma

Modernidade sólida. O que ocorre é uma problematização de questões a partir de

sintomas sociais que figuram um outro registro político, histórico e identitário, um

modo através do qual grupos de sujeitos agem e se reconhecem na contramão de

padrões convencionados. A pluralização das relações e das estruturas sociais refletem

identidades fragmentadas, “não evidentes” e “não determinadas”, enquadrando-se no

modelo “neotribal” de Michel Maffesoli: “É neste quadro que se exprime a paixão, que

as crenças comuns são elaboradas, ou, simplesmente, que se procura a companhia

„daqueles que pensam e que sentem como nós‟” (MAFFESOLI, 1998, p. 18-19).

Elementos materiais, simbólicos e afetivos compartilhados promovem o sentido de

pertencimento a uma comunidade na qual sujeitos se identificam, compondo grupos

sociais que se destacam da concepção de sociedade identitariamente homogênea. Nesse

sentido, não caberia aqui pensar a partir do unitarismo, mas sim desde as diferenças que

expressam culturalmente uma descontinuidade dentro destes cenários de torcedores

onde o clube ocupa o primeiro lugar.

3.1. Micronações de torcedores: futebol, nação e imaginário coletivo

Ao falarmos de futebol e literatura na Argentina, colocamos em pauta uma

discussão sobre os relatos nacionais. Ramón Llopis Goig (2009) entende o futebol,

assim como alguns outros esportes, como um dos grandes mecanismos que ajudaram na

formação do Estado-Nação enquanto “comunidade imaginada” (ANDERSON, 2008). O

desenvolvimento da identificação atrelada à nação estaria fortemente ligado às

representações de equipes que a simbolizam: “como espectáculo de masas, se constituyó

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en una esfera pública ritualizada, en la que se generaban representaciones acerca de lo

nacional” (LLOPIS GOIG, 2009, p. 8, grifo do autor).

Gayatri Spivak, propondo uma alternativa, vinculará à imaginação um poder

particular de alternar as esferas de significado que envolvem a formação do nacional.

Ancorada numa proposta que tem como objetivo a “destranscendentalização do

nacionalismo” (2012, p. 291), Spivak procura rever os mecanismos de Estado que

atuam na construção de uma identidade e de um sentido de pertencimento associados ao

território da nação. Para ela, o processo estaria invertido, isto é, a identificação

territorial derivaria do discurso nacionalista. Haveria uma naturalização do ser nacional

que antecederia qualquer outra conexão particular entre sujeito e território. Os afetos

territoriais, as amizades, a união do povo são constituídos no plano discursivo da nação

para que depois seja possível observar na prática social os reflexos da integração

comunitária. A crítica reside exatamente no ponto em que os vínculos de pertencimento

entre sujeito e território seriam formados anteriormente à ação de coesão nacionalista.

Os nacionalismos, ao se apropriarem das relações de afeto partilhadas por sujeitos em

um mesmo solo, “privativas não-derivadas”, segundo Spivak, naturalizam a identidade

nacional e desconsideram as diversidades culturais dentro do espaço do Estado-Nação.

Ao falar de uma “destrancendentalização do nacionalismo”, o que se pretende é destituir

o Estado-Nação de seu mecanismo homogeneizante, tal como ele se manifesta na

construção de alteridades, na tentativa de devolver aos sujeitos a possibilidade de reler,

revisar e redefinir a nação a partir das diferenças expressas através das microlocalidades

e microlocalizações, isto é, a Nação como algo que reúne diferenças ao invés de apagá-

las.

No decorrer do século XX na América Latina, com a emergência dos meios

massificados, a instauração de um modelo nacional como projeto associado ao Estado

reiterava uma unidade que hoje já não se mantém com a mesma força. Pensando o

cenário argentino, Pablo Alabarces (2009) ressalta que, durante o peronismo, houve

uma gama de relatos nacionalistas ligados a uma pluralidade de vozes que reforçavam o

papel do Estado como narrador e, ao mesmo tempo, explicitavam o desbordamento

dessas narrativas que escoavam através do jornalismo e do cinema de massas. Em

síntese, esses dois fatores se associavam, mas não se sobrepunham; agiam

cooperativamente.

Os processos que construíam a identificação com o nacional se davam através do

poder de reunião implementado pelo Estado e paralelamente por meio dos veículos que

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dispunham do acesso aos instrumentos de produção de narrativas nos meios de

comunicação, “la idea de construir una nación que incluye antes que expulsa”

(ALABARCES, 2009, p. 143). A mudança de panorama, com as ditaduras e seus

censores, reverberou uma desapropriação da autonomia narrativa dos meios de

comunicação massas, provocada pela submissão coercitiva à ideologia do Estado, como

o grande produtor do relato nacional. O que observamos hoje, no século XXI, com a

fragmentação das relações em cenários globalizados, é a diluição dessa ideia de nação,

uma vez que se encontra, em parte, desassociada de seu principal operador: o Estado;

além de não abarcar, dentre todas as manifestações intersubjetivas, o potencial para

reunir as diferenças culturais e transformá-las em sentimento de coletividade, servindo à

pátria. Vale ressaltar que a perspectiva de Llopis Goig e Alabarces mescladas ao

“neotribalismo” de Michel Maffesoli, possibilita enxergar contextos sociais compostos

por indivíduos que partilham valores, códigos e uma memória grupal desvinculada de

características fundamentalmente ligadas e veiculadas pelo Estado-nação. No âmbito do

futebol, a paixão por um clube, os ritos particulares praticados por grupos de torcedores,

rotinas de bar, encontros na esquina ou no estádio, reuniões de amigos de pelada

superam o fator meramente descritivo das atividades e assinalam dinâmicas de interação

e espaços de convívio e pertencimento, como o bairro, a localidade que pressupõem

maneiras de organização específicas destes determinados microcosmos ou, como

poderíamos chamá-los, destas determinadas micronações.

3.2. Territorialidades: mapas simbólicos de torcidas no contexto argentino

A conexão entre as comunidades de indivíduos que se identificam a partir do

futebol e o território do bairro é uma característica muito presente no contexto social

argentino. Alejandro Fabbri sinaliza: “El amor a un club llega de pequeño, por

gravitación familiar, de los amigos o de la zona donde uno vive” (2006, p. 13 apud

PIMENTEL, 2014, p. 34). As relações desenvolvidas no âmbito local e doméstico entre

familiares e amigos estruturam esse primeiro momento de territorialização do afeto e

construção identitária do indivíduo (PIMENTEL, 2014). Embora a questão do território

esteja, não raro, relacionada ao Estado-Nação, às suas fronteiras e a seus níveis de poder

e influência, a territorialidade desses grupos atua na dimensão posta por Marcelo Lopes

de Souza, como “algo gerador de raízes e identidade: um grupo não pode mais ser

compreendido sem o seu território, no sentido de que a identidade sócio-cultural das

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pessoas estaria inarredavelmente ligada aos atributos do espaço concreto (natureza,

patrimônio arquitetônico, „paisagem‟)” (2001, p. 84). Diante de traços sociais bem

marcados pelo território, a produção do discurso nacionalista, “como um mosaico

orgânico e harmônico de „regiões‟ singulares” (2001, p. 84), torna evidente a proposta

de unidade ideológica do Estado-Nação, veiculada por uma carga simbólica que vincula

a materialidade do território à ideia de nação. Em outras palavras, território atuaria na

maioria das vezes como sinônimo de “território nacional”:

A ideologia [de Estado] não é ideologia, ou seja, um conjunto de ideia e

valores relativos conforme a classe ou o grupo. É cultura nacional, amor

à pátria etc., e a identificação se daria entre todo um “povo” (visto como

se não houvessem classes, grupos e contradições internas) e “seu”

Estado. A territorialidade do Estado-Nação, tão densa de história, onde

afetividade e identificação (reais ou hiperbolizadas ideologicamente)

possuem enorme dimensão telúrica – paisagem, “regiões de um país”,

belezas e recursos naturais da “pátria” -, é naturalizada [...]. (SOUZA,

2001, p. 86, grifo do autor)

Assim, o que se apresenta, em detrimento do nacionalismo de Estado, é o

sentido de pertencimento compartilhado dentro de um mesmo (micro)território, que

desempenha um papel primário na construção da identidade e do imaginário de grupos.

Nas narrativas de futebol na Argentina, o cenário não é diferente. Há um forte vínculo

com o bairro, com o campinho, com a esquina, que atuam como elementos de

identificação entre os sujeitos representados. Nesse sentido, ao avaliarmos o potencial

contido no território como fator identitário, são válidas algumas considerações sobre as

formas de organização afetiva de indivíduos no contexto social.

É importante deixar clara a proposta de leitura não isolada destas manifestações

identitárias, isto é, mesmo se tratando de grupos autorreferenciais, voltados de si para si,

não é nosso objetivo observá-los de maneira excludente, mas, ao contrário, reforçar o

cuidado das tensões que existem entre os níveis micro e macrossocial. Esses grupos

partilham valores e códigos em comum que se colocam em contato direto com a

sociedade, não sendo possível ignorar as referências externas com as quais dialogam. As

dinâmicas internas a essas pequenas nações se fundam sob o selo de um imaginário

comum e compartilhado, uma memória estabelecida através de práticas da tribo que se

expressa culturalmente na medida em que se imagina e se reconhece transcendendo a

ideia nacionalista: “mi equipo es más importante que cualquier selección”

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(ALABARCES, 2009, p. 141). A imaginação tem uma forte presença na constituição

coletiva de grupos, demonstrando outras possibilidades de identificação social

paralelamente à instaurada pelo Estado-Nação. O antropólogo Arjun Appadurai reforça

essa ideia que entende “la imaginación como práctica social” (2001, p. 44-45):

Ya no estaríamos hablando ni de mera fantasía (opio de las masas cuyo trabajo

real se hallaría en otra parte) ni de un simple escape (de un mundo definido,

sobre todo, por propósitos y estructuras más concretas) ni de un pasatiempo de

elite (irrelevante en relación con la vida de la gente común) ni de mera

contemplación (irrelevante en relación con las nuevas formas del deseo y la

subjetividad). La imaginación se volvió un campo organizado de prácticas

sociales, una forma de trabajo (tanto en el sentido de realizar una tarea

productiva, transformadora, como en el hecho de ser una práctica culturalmente

organizada) […]. (2001, p. 45)

Esquecendo as conotações negativas ligadas ao termo imaginário – “irreal”,

“falso”, “fantasioso”, “supérfluo” –, podemos traçar um viés de abordagem que salienta

os reflexos da prática do cotidiano de indivíduos atrelada à forte relação imaginada

estabelecida coletivamente. É comum observar, pelos bairros de Buenos Aires, sujeitos

realizando tarefas rotineiras com as camisetas de seus times do coração. Isso representa

não só uma ligação entre o sujeito e um time de futebol, mas um traço social que

evidencia uma demarcação territorial dada pela presença da quantidade de camisas do

mesmo time em uma mesma região. A área que envolve os bairros de Boedo, Almagro,

Parque Chacabuco e Bajo Flores tem a marca do Club Atlético San Lorenzo de

Almagro (CASLA), em Avellaneda dominam o Racing Club e o Independiente, na

cidade de Rosário (Santa Fe), o Rosário Central e o Newell‟s Old Boys. Os exemplos

são inúmeros. Todas essas áreas guardam imaginários que envolvem o pertencimento

destas torcidas. Cada um desses grupos tem, em seu cotidiano, uma grande presença do

futebol na constituição de suas práticas sociais e no processo de reconhecimento

identitário, levando a definir quem faz e quem não faz parte do bairro, da comunidade,

bem como quem é estrangeiro àquela micronação.

Bauman irá descrever dois estágios através dos quais o Estado fundava suas

fronteiras a partir do mapeamento cartográfico do território: “anteriormente, era o mapa

que refletia e registrava as formas do território” (1999, p. 42). Em um primeiro

momento, o desenho geográfico, segundo a perspectiva da tradição moderna, dado de

forma mimetizada em relação à realidade, representava os limites territoriais a que

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estava circunscrito o Estado-Nação. As fronteiras concretas eram transferidas

graficamente para o mapa, que exercia uma função espelhada do espaço para ajudar a

compreender sua própria inexatidão. Em um segundo momento, destaca Bauman, com a

radicalização do processo, as esferas de controle do Estado anteviram uma opção na

qual o território não se colocava mais como um elemento do qual dependia a

cartografia. O que antes se formulava através da realidade concreta, agora se

remodelava a partir do mapa. O mapa serviria como referência para a reestruturação dos

espaços que, imperfeitos, deveriam se adequar cada vez mais precisamente às

representações cartográficas: “agora, era a vez do território se tornar um reflexo do

mapa, ser elevado ao nível da ordenada transparência que os mapas se esforçavam por

atingir. Era o próprio espaço que devia ser remodelado ou modelado a partir do nada à

semelhança do mapa e de acordo com as decisões dos cartógrafos” (BAUMAN, 1999,

p. 42). Esse movimento de controle cria espaços na mesma medida em que exclui

outros, segmenta o território em partes estratégicas e supérfluas e pode desapropriar

sujeitos da relação identitária que mantém com o solo, a exemplo de remoções e

desapropriações de lares nos processos de reestruturação urbana. A inversão de posições

que mostra a construção da realidade espacial através da representação, quando

articulada pelo Estado neste grande processo de unidade nacionalista indiferente à

diversidade cultural que os espaços abrigam, pode assumir um caráter de extrema

perversidade, principalmente, por não reconhecer, dentro das características do

território, marcas que sujeitos ajudaram a construir e com as quais se identificam.

Quando se observa no contexto argentino, a forte conexão estabelecida entre

moradores de um determinado bairro e a influência de um clube, não se considera

apenas a presença de uma torcida concentrada, majoritariamente, num dado espaço. Não

seria apenas dizer: “estamos em Boedo, área característica do Club Atlético San

Lorenzo”. Não se trata somente de identificar a torcida através do território. Uma área já

demarcada que contempla inúmeros torcedores do mesmo time, uma área determinada

pelo Estado como bairro que tem suas fronteiras anteriormente prescritas, um lugar no

qual estes torcedores foram se reunindo. Pensar a formação territorial do bairro na

Argentina pode se dar na mesma medida em que se fundam os times de futebol. Um

time se estabelece num bairro específico, constrói sua história, um nível de

pertencimento entre sujeitos, ganha títulos, se enraíza cada vez mais àquele lugar até

chegar ao ponto em que a camisa atua como componente de construção do território. A

referência territorial passa a atuar juntamente com a referência do clube. O território é

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modelado a partir do imaginário compartilhado pelos indivíduos que ali moram, atuam

socialmente e partilham a mesma filiação a um clube. O que se observa é um mapa

formado pelas cores de times de futebol, uma cartografia imaginada:

existe otra historia, más sencilla, menos heroica, que tiene que ver con

los hechos de todos los días, con las ilusiones y esperanzas de cambiar

algo para mejor. […] Eso fueron los cientos de clubes de fútbol que

nacieron a finales del siglo XIX, a principios del siglo XX o inclusive

más cerca de nuestro tiempo. Eso fueron las miles de manos que se

levantaron para imaginar nombres y apodos, para construir canchas y

generar amistades y enemigos para siempre. […] ¿Qué sería de

Avellaneda sin Racing e Independiente? ¿Y de La Boca sin su club

emblemático? ¿Parque Patricios sin Huracán o Boedo sin San Lorenzo?

¿Rosario sin Central ni Newell's? Seguro, pero seguro, que tendrían

menos color, menos alegría, menos magia. (FABBRI, 2006, p. 12)

As aparentes características da associação entre território e clube se salientam

pelos torcedores que ocupam o espaço, assim como pelo espaço que carrega traços

marcantes das torcidas, gerando raízes formadas a partir do afeto, da paixão e da história

do clube ligado ao bairro. Com a globalização, essa relação tende a perder parte da sua

força, embora se mantenha ainda muito imbricada no cenário argentino. Dessa maneira,

o mapeamento do território e as práticas sociais de sujeitos que pertencem a essas

localidades se agrupam para dar forma a comunidades afetivas.

3.3. Torcedores em deslocamento: pertencimento, melancolia e performance

No ano 2000, Eduardo Sacheri, em sua primeira edição de contos de futebol,

publica “Esperándolo a Tito”. O conto mostra, de maneira geral, as relações de afeto

entre memória, amizade e território, ao narrar a história de uma partida disputada por

um grupo de amigos que aguarda com todas as esperanças a volta de um dos integrantes

que foi jogar profissionalmente na Europa.

A narração, mediada em primeira pessoa por Carlos, um dos integrantes do

grupo em foco, apresenta os momentos anteriores ao início da partida entre dois times

amadores que guardam o hábito de disputar peladas desde a infância. Torna-se visível,

já no título e nas primeiras linhas, a angústia da espera por Tito, jogador de futebol

profissional contratado ainda muito jovem por um clube europeu: “yo lo miré a José,

que estaba subido al techo del camión de Gonzalito. Pobre, tenía la desilusión pintada

en el rostro, mientras en puntas de pie trataba de ver más allá del portón y de la ruta.

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Pero nada: solamente el camino de tierra, y al fondo, el ruido de los camiones”

(SACHERI, 2000, p. 7, grifo nosso). O sentimento de apreensão não é em vão. Desde a

despedida de Tito, considerado o melhor jogador do grupo, não conquistaram uma

vitória sequer: “no quiero que este año vuelvan a humillarnos como los últimos nueve

años” (SACHERI, 2000, p. 7). “La rabia y la impotencia” são grandes entre os amigos

que, durante a espera, escutam todo tipo de provocação do time adversário. A tribo aqui

representada pelo grupo de Carlos encontra-se fragilizada pela ausência de um laço que

os une: Tito, que os torna completos, praticamente invencíveis. O próprio narrador irá

ressaltar, em dado momento, que a aceitação do desafio ocorreu depois de muitas

negociações, pois havia uma descontinuidade em relação aos elementos que davam o

sentido de união a estes sujeitos: “que profesionales no sirven, que solamente con los

que viven en el barrio. Según vos, ni yo [Carlos] que me mudé al Centro podría haber

jugado” (SACHERI, 2000, p. 8). Neste trecho, fica clara a importância do território nas

relações de pertencimento desta micronação. A memória afetiva dos amigos do bairro

ao mesmo tempo em que relativiza o deslocamento de Carlos e de Tito, permite que os

laços sejam refeitos a partir do contato face-a-face promovido pelo desafio que estão

prestes a enfrentar juntos. Até então, a esperança de que Tito volte é mesclada com uma

forte dose de ceticismo frente à longa viagem da Europa para a Argentina: “en serio

pensaste que nos íbamos a tragar que el punto ése iba a venirse desde Europa para jugar

al desafio?” (SACHERI, 2000, p. 8), diz Bebé, um dos amigos, a Carlos. Trata-se aqui da

interseção entre o poder simbólico das relações entre os amigos, dado pela memória dos

momentos compartilhados, dos gostos em comum, e também da necessidade material a

que está atrelada a construção do imaginário do grupo pelo território. Há uma

demarcação clara, a partir dos trechos já referidos, do lugar dos personagens no que diz

respeito às dinâmicas sócio-espaciais nas quais se inserem. Aprofundando a análise do

deslocamento que envolve o personagem de Tito, lidamos com duas questões

importantes: territorialização e desterritorialização.

No que tange à questão do Estado-Nação, Rogério Haesbaert irá definir muito

bem o papel estatal na territorialização dos sujeitos que vivem num mesmo solo

nacional: “O Estado nação surge para promover tanto uma territorialidade, no sentido de

controle do acesso, quanto no sentido de classificar e mesmo nomear as pessoas

conforme seu lugar de nascimento” (2014, p. 89).

Deleuze e Guatarri, com os quais Haesbaert dialoga, já sinalizam outra

característica predominante na ação do Estado direcionada ao espaço: “longe de ver no

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Estado o princípio de uma territorialização que inscreve as pessoas segundo sua

residência, devemos ver no princípio de residência o efeito de um movimento de

desterritorialização que divide a terra como um objeto e submete os homens à nova

inscrição imperial, ao novo corpo pleno, ao novo socius” (1976, p. 247). Tomando

como princípio que não há desterritorialização, sem que haja posteriormente um

movimento de reterritorialização (HAESBAERT, 2014), as comunidades de sujeitos,

ainda que sobre a pressão e o controle do Estado, ao serem redefinidas e realocadas

espacialmente, passariam por uma readaptação ao novo solo, onde seriam construídas

novas relações de pertencimento com o espaço.

Dessa forma, estabelecendo ambos os processos, territorialização e

desterritorialização, como movimentos característicos ao Estado, pode-se compreender

que o território se funda de acordo com as açõese dos poderes simbólicos associados à

divisão espacial. A forte relação que sujeitos estabelecem com o espaço, ao se

reterritorializarem, promove uma identificação localizada na própria comunidade. No

conto, a angústia que acomete cada um dos integrantes do grupo que espera por Tito,

aquele que completa o grupo e pode fazer a diferença na partida, reflete a grande carga

de importância associada ao comprometimento com a tribo. O que importa é que ele

cumpra aquilo que prometeu a Carlos quando disse que apareceria para quebrar o jejum

de nove anos sem vitórias. A promessa feita à tribo é fundamental e o rompimento do

acordado pode acarretar na ruptura completa do vínculo estabelecido com aquela

microssociedade estruturada em torno do futebol: “esa noche decidí que, si después me

llamaba para decirme que el partido de allá era demasiado importante y que por eso no

había podido cumplir, yo le iba a decir que no se hiciera problema. Pero lo tenía

decidido: chau Tito, moríte em paz” (SACHERI, 2000, p. 10, grifo nosso), diz Carlos ao

refletir sobre uma partida na qual Tito deveria jogar pelo clube que representa, o que

impediria de realizar a viagem a Buenos Aires para jogar com os amigos do bairro onde

cresceu. Tendo sido apresentada a problemática que envolve territorialização e

desterritorialização, tratemos agora especificamente da situação do personagem Tito

como elemento mediador através do qual a globalização afeta a pequena comunidade de

amigos.

Em decorrência das dinâmicas pertinentes ao avanço das linhas do mercado

internacional, o esporte (no caso, o futebol em particular) adquire uma participação

fundamental nos movimentos orientados pelos investimentos transnacionais. William

Mendoza Gil irá expor que “sin duda, el deporte profesional se ha convertido en la

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nueva economía, en el modelo perfecto de globalización, se trata de la implantación de

un único patrón deportivo impuesto, cuyo basamento fundamental, objetivo y

denominador común es la rentabilidad” (2016, p. 93). A globalização, ao fomentar a

projeção de novas subjetividades e formas de compreensão de mundo, também

reproduz, pelo viés econômico, uma fragmentação dos investimentos e do mercado que

desvincula o Estado-nação de seu papel interventor. Além disso, David Harvey sinaliza:

Desde mediados de la década de 1980 la política urbana neoliberal (aplicada,

por ejemplo, en toda la Unión Europea) concluyó que la redistribución de la

riqueza a las barriadas, ciudades y regiones menos aventajadas era inútil, y que

los recursos debían canalizarse por el contrario hacia los polos de crecimiento

«empresariales» más dinámicos. Una versión espacial del «goteo» se encargaría

de resolver, en el proverbial largo plazo (que nunca llega) esas latosas

desigualdades regionales, espaciales y urbanas. (HARVEY, 2013, p. 54)

O espaço do bairro no conto é apresentado sob a forma de um lugar precarizado,

marcado pela saída de alguns e permanência de outros. Enquanto a saída de Carlos e

Tito se dá num movimento de ascensão da margem para o centro, a situação dos outros,

podemos dizer, se mantém estagnadas, distantes dos processos mais dinâmicos da

globalização. Os fluxos de capital globalizado, decorrentes da abertura de mercado e do

rompimento das fronteiras mercantis, atuam num caráter desterritorializador, econômica

ou culturalmente falando: “a desterritorialização seria da própria „natureza e essência‟

da acumulação do capital, sem ligação com uma „pátria‟” (HAESBAERT, 2014, p.

150). A desterritorialização do capital, como se constata nas inúmeras negociações entre

clubes e jogadores, indica ao mesmo tempo um sujeito deslocado de seu lugar de

origem, a exemplo de Lionel Messi, Carlitos Tevez e Gonzalo Higuaín. Eduardo

Sacheri possui, em um de seus artigos para a revista El Gráfico, uma passagem que

muito ajuda a exemplificar este aspecto:

nuestros jugadores se fueron. Masivamente, se fueron. Cada vez más chicos, se

fueron. Y generaron un extrañísimo fenómeno, que a los viejos nos asombra,

casi diría que nos confunde. Emigraron masivamente y se juntaron con otro

montón de brasileños, nigerianos, camerunenses, colombianos… Mixturados

con los europeos, que también empezaron a mezclarse, hicieron nacer esta

especie de selecciones multinacionales en las que se han convertido algunos

clubes españoles, italianos, ingleses, alemanes, franceses (2014, s. p.)

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O ponto aqui não é estabelecer um juízo de valor sobre os interesses de

jogadores que viajam para o exterior na busca de maiores salários, reconhecimento

internacional e grandes títulos. O intuito é analisar como as relações estabelecidas a

partir da globalização provocam o fenômeno que Haesbaert chamará de

“multiterritorialidade” (2014). A situação do personagem de Tito e dos incontáveis

jogadores que deixam a América Latina para jogar na Europa ou em outras partes do

mundo implica um processo de reterritorialização do sujeito que vive em terras

estrangeiras. Ainda que o deslocamento se dê de maneira necessária, partindo do

princípio que o sujeito estabelece vínculos identitários e de significação com o espaço, o

personagem estrutura suas bases, ao viver no exterior, na mesma medida em que grupos

“constroem seus (multi)territórios integrando, de alguma forma, num mesmo conjunto,

sua experiência cultural, econômica e política em relação ao espaço” (HAESBAERT,

2014, p. 341).

No entanto, mesmo do outro lado do oceano Atlântico, Tito se mantém fiel aos

valores do grupo com o qual partilhou diversas experiências na infância, assegurando

aos seus integrantes que regressaria para jogar essa partida que tem como objetivo a

recomposição grupal para interromper uma sequência de derrotas. Para a tribo, o valor

estabelecido através do companheirismo gera um sentido de pertencimento que não se

relaciona com as obrigações contratuais, referentes a um clube internacional.

Como os jogadores vendidos para clubes europeus ainda meninos, como os

casos referidos por Sacheri, Tito vai embora muito cedo e deixa a comunidade de

amigos: “cuando le hicieron el primer contrato profesional, a los 18, y lo acostaron con

los premios, lo acompañé yo a ver a un abogado de Agremiados y ya no lo madrugaron

más, y cuando lo vendieron afuera yo todavía no estaba recibido, pero me banqué a pie

firme la pelea con los gallegos que se lo vinieron a llevar, y siempre sin pedirle un

mango” (SACHERI, 2000, p. 11, grifo nosso). Em oposição ao cenário global, marcado

pelas transações e lógicas de mercado, na microlocalidade do campinho, as relações da

tribo representada no conto aparecem marcadas pelo afeto e pela amizade, como se pode

constatar através de diferentes momentos do relato. Os laços correspondem a valores

que não envolvem transações econômicas ou qualquer benefício material:

y siempre sin pedirle un mango. […] Nunca lo hicimos por nada, nos bastó el

orgullo de saberlo del barrio, de saberlo amigo, de ver de vez en cuando un gol

suyo, de encontrarnos para las fiestas. Lo hicimos por ser amigos, y cuando él,

medio emocionado, nos decía «muchachos, como cuernos se los puedo pagar»,

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nosotros que no, que dejá de hinchar, que para qué somos amigos, y el único

que se animaba a pedirle algo era Josesito, que lo miraba serio y le decía «mirá,

Tito, vos sabes que sos mi hermano, pero jamás de los jamases se te ocurra

jugar en San Lorenzo, por más guita que te pongan no vayas [...]. (SACHERI,

2000, p. 11, grifo nosso)

Ainda que o relato se estruture a partir do processo global no qual Tito se insere,

os traços de identificação do grupo de amigos se mantêm porque foram construídos a

partir de códigos da infância, enraizados através do território e da memória

compartilhada. O que vale destacar é exatamente o poder vinculado pelo afeto, pelo

sentido de estar-no-mundo coletivamente com toda a tribo reunida.

Ao passo em que a angústia dos personagens aumenta, a esperança se converte

aos poucos em decepção. Impossibilitados de esperar ainda mais pela chegada do

companheiro, com o início da partida já atrasado, decidem que é hora de dar o ponta-pé

inicial, sabendo que dali não sairia nada muito positivo. Enquanto Bebé cumprimentava

o árbitro: “siempre había tenido la teoría de que olfear a los jueces le permitía luego

hacerse perdonar un par de infracciones” (SACHERI, 2000, p. 12), eis que, no mais

otimista dos finais, Tito surge à sombra do caminhão de Gonzalito parado à entrada do

campo:

Pero justo ahí, justo en ese momento, [...] me di cuenta de que pasaba algo. [...]

Aunque lo tenía [a Ricardo, goleiro do time adversário] lejos, lo vi pálido, con

la boca entreabierta, y empecé a sentir una especie de tumulto en los intestinos

[...] que no fuese verdad que el Bebé estuviera dándose vuelta hacia Ricardo,

como pidiendo ayuda; que no fuera cierto que el otro siguiera con la vista

clavada en un punto todavía lejano, todavía a la altura del portón de la ruta,

todavía adivinando sin ver del todo a ese tipo lanzado a la carrera con un bolsito

sobre el hombro gritando aguanten, aguanten que ya llego, aguanten que ya

vine, y como en un sueño el Tanito gritando de la alegría, y llamándolo a

Josesito, que vamos que acá llegó, carajo, que quién dijo que no venía […] y yo

[…] aún indeciso entre cruzarle la cara de un bife por los nervios y abrazarlo

contento, y Tito por fin saliendo del tumulto de los abrazos postergados […]”.

(SACHERI, 2000, p. 12)

Depois de uma série de desculpas e afagos, Tito, Carlos e os outros que

compõem a comunidade seguem para uma revanche que reivindica uma vitória depois

de nove anos. O êxtase é tão grande entre os amigos que se perdem na atemporalidade

da memória compartilhada, esquecendo o “aperto” pelo qual passaram há pouco tempo:

“el cosmos desde el caos, los amigos cumpliendo, cerrando círculos abiertos en la

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eternidad, cuando uno tiene catorze y dice „tá bien, te acompañamos, así no te dá

miedo”. Nos moldes do que dirá o historiador Ernest Renan em sua conferência “Que é

uma nação?” (“Qu'est-ce qu'une nation?”), retomada por Benedict Anderson ao escrever

Comunidades imaginadas (2008): “Ora, a essência de uma nação está em que todos os

indivíduos tenham muito em comum, e também que todos tenham esquecido muitas

coisas.” [“Maintenant, l'essence d'une nation est que tous les individus ont beaucoup de

choses en commun, et aussi que tous ont oublié beaucoup de choses.”] (RENAN, 1997,

p. 162).

No livro Lo raro empezó después, Eduardo Sacheri publica seu conto “El golpe

del Hormiga”. Escrito nas bases de uma narrativa lacunar, o conto não entrega seu

conteúdo até que seja dado o apito final da última linha. No texto, o autor faz duas

homenagens: uma ao Club Atlético San Lorenzo de Almagro e outra a Osvaldo Soriano,

um dos grandes escritores argentinos que produziram com maestria relatos de futebol,

além de uma das maiores referências da torcida azulgrana.9 O relato explora os

diferentes níveis de pertencimento a que está ligado um grupo de amigos, torcedores do

San Lorenzo, e ressalta o poder da territorialidade associada ao bairro e ao histórico

estádio desta equipe de futebol.

Através de uma narrativa que expõe a loucura a que sujeitos torcedores podem

cometer em nome do time do coração, um grupo de amigos planeja um golpe que tem

por objetivo trazer de volta a glória dos tempos passados ao clube. “Veinte años, carajo!

Veinte años! Qué me decís a eso? Querés que me quede así, sin hacer nada?”

(SACHERI, 2008, p. 63), são as palavras de Hormiga, personagem principal, que abrem

o conto. A princípio, o leitor desavisado não se dá conta do que motiva a reclamação de

Hormiga logo em suas primeiras palavras. “Veinte años” é o período (1974-1994) que o

San Lorenzo passou sem ganhar um título sequer em campeonatos nacionais ou

internacionais. A informação simplória pode não significar absolutamente nada para

aqueles que não compartilham a paixão pelo clube; no entanto, para os torcedores, essa

espera tem um valor muito mais importante do que se imagina e, como o personagem

9 Azul e vermelho são as cores da camiseta do San Lorenzo, equipe também conhecida popularmente

como El Ciclón. Com esse binômio, “Azul Grana”, um torcedor do Ciclón batizou a sua filha,

demonstrando que o amor pelo clube não tem limites: “Que la pasión por el fútbol no entiende de

racionalidad ni de límites no es algo nuevo por estas tierras. Pero lo que hizo Rubén Darío Álvarez puede

ver considerado una verdadera prueba de amor hacia el club de sus amores. El hombre, fanático de San

Lorenzo de Almagro, tuvo una hija y no se le ocurrió mejor idea que homenajear su pasión bautizándola

como Azul Grana, en homenaje a los colores del Ciclón. Así lo publicó la cuenta oficial del club en

Twitter, que subió una imagen del carnet de la beba, con el nº de socia 167336-0.‟ Diario Uno,

25/02/2015.

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demonstra, não é possível aceitar passivamente essa agonia, que por trás esconde parte

da história político-social argentina.

Envolto por um clima sombrio, numa “reunión de desquiciados”, o grupo escuta

a proposta de Hormiga que tem como base invadir um estabelecimento privado para

roubar algo de valor: “Toda la situación es ridícula. Y ellos son ocho boludos. Eso es lo

que son. Los ocho reunidos en esa habitación oscura, con la lámpara sobre la mesa

como si fuera un garito o un aguantadero de película mala, y ellos una banda de chorros

planeando al asalto del siglo” (SACHERI, 2008, p. 64, grifo nosso), diz o narrador a

partir das impressões de Bogado, personagem que mais se opõe ao “proyecto de locos”

do Hormiga.

Num primeiro momento, o foco recai sobre o embate entre Hormiga e Bogado,

enquanto os outros seis amigos assistem de forma passiva sem se dispor a investir

efetivamente no plano. A argumentação do Hormiga, estruturada a partir dos sacrifícios

que ele próprio vem fazendo para crias as condições de execução do plano, reforça a

ideia de dedicação motivada pela paixão clubista, uma paixão que não o envolve

isoladamente, mas que envolve a todos os integrantes do grupo:

primero: lo vengo estudiando desde hace dos años. Dos años. […]

Segundo: conseguí ese laburo de vigilancia nada más que para eso […].

Tercero: me parlé cincuenta veces al supervisor para que me mandase a

controlar el sector ese, porque si me mandaban al depósito o al

estacionamiento me cagaban, y se iba todo el asunto a la mierda.

(SACHERI, 2008, p. 64)

Bogado, ainda consciente de que nada daquilo poderia dar certo, explicita mais

adiante: “no es el único trabajo que el Hormiga puede hacer, ni el mejor pago. […]

Hormiga, además de todo, es derecho como una estaca. Pero contestó que no, que no

podía dejar „aquello‟ sin terminar” (SACHERI, 2008, p. 67). O nível de loucura

associado à paixão pode mover indivíduos a realizarem as coisas mais incomuns, pode

motivar um indivíduo “derecho como una estaca” a colocar em prática um plano que

pode, muito bem, levar todos eles à prisão. No entanto, tampouco Bogado, o mais

racional e o mais bem sucedido de todo o grupo, podia “dejar „aquello‟ sin terminar” em

nome do sentido de pertencimento à nação de torcedores. Conforme assinala Juan

Villoro:

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Una vez elegido el club que determina el pulso de la sangre, no hay

camino de regreso. Aunque se mencionan ejemplos en los que el

raciocinio ha intervenido para mudar de entusiasmos, el fanático de raza

no recusa a los suyos, así reciban golizas de escándalo. Es posible que

el fútbol represente la última frontera legítima de la intransigencia

emocional […]. (2014, p. 18)

Villoro descreve traços muito marcantes na composição de uma torcida,

formulados a partir do sangue e da emoção (como veremos mais à frente, a terra

também fará parte dessa articulação). A tribo anda paralelamente à relação imaginada

que tem em relação à sociedade. Suas práticas refletem códigos ético-morais que

destoam do âmbito macrossocial e se envolvem cada vez mais profundamente no

sentido que determinado grupo funda. A esfera de pertencimento suprime qualquer tipo

de respeito às normas legais. Hormiga não se preocupa em ser preso por invadir e

depredar um patrimônio privado. A reconfiguração desses valores se dá através do

âmbito localizado: no círculo de amigos e na torcida, eles ganham novo sentido, sendo

muito mais valioso para os integrantes desse grupo qualquer coisa que tenha a ver com a

história e a memória do San Lorenzo. É uma mística que tem sentido para a nação

torcedora. O narrador expressa o modo como esse afeto se dá entre os personagens,

ressaltando mais uma vez o ponto de vista de Bogado:

Bancarse un laburo mal pago, con jefes hijos de puta, con unos francos

rotativos de porquería, para darle de comer a la familia, Bogado lo hace

sin dudar un instante y lo mismo cualquiera de los que están reunidos

alrededor de la mesa. Pero acá no se trata de alimentar a la familia, sino

de algo distinto. El Hormiga hace eso por un amor diferente, que la

mayoría seguro que no entiende. Pero Bogado sí, y los otros también, la

puta madre. Y por eso Bogado intuye que al Hormiga no hay con qué

darle, y mientras intenta pincharle el globo se siente un sicario indigno

y un traidor. (SACHERI, 2008, p. 68)

A polaridade entre Hormiga e Bogado reproduz a dicotomia “loucura x razão”.

Bogado, ao tentar traduzir em termos compreensíveis as ações do Hormiga, faz um

esforço vão de impor a razão em um terreno controlado pela paixão, elemento central

que forma a comunidade imaginada em questão, motivo pelo qual se sente um traidor.

Trair o afeto compartilhado significa trair a micronação a que pertence, quer dizer não

só comprometer plano, mas fragilizar o sentimento que mantém a unidade do grupo. A

impropriedade da dimensão racional a qual Villoro faz menção pode ser exemplificada

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através dessa passagem. A escolha de um clube não se explica pelo potencial de

angariar vitórias, por ter os melhores jogadores, por ter maior poder econômico, por ter

a maior torcida. Não se explica por qualquer fim objetivo e racional que anteceda ao

vínculo passional. Algo semelhante propõe Maffesoli (1998) quando pensa as relações

da tribo que não se dão no âmbito teleológico. A paixão partilhada independe de

qualquer justificativa. Quando Bogado tenta impor-se através da lógica ao plano de

loucos do Hormiga, compromete-se não o indivíduo, mas o coletivo da torcida que está

presente na fala e no projeto do Hormiga.

Nesse sentido, embora haja uma grande dificuldade de convencer os integrantes

do grupo a realizarem o golpe, em um dado momento todos sucumbem ao dever que

têm perante a comunidade: “veinte horas después están todos, excepto el Hormiga, en

un baño de hombres, embutidos en dos retretes contiguos” (SACHERI, 2008, p. 70).

Agora, num segundo momento do conto, todos, já persuadidos, se encontram no interior

do estabelecimento, à espera do sinal do Hormiga, para dar sequência ao plano.

A partir de agora, faz-se necessário estabelecermos algumas referências

históricas a partir das quais o conto se estrutura. Retomando o ponto de partida da

narrativa, os vinte anos sem títulos do San Lorenzo tem como pano de fundo a cena

ditatorial argentina. Os anos de glória que antecederam o último título nacional da

primeira divisão na temporada de 1973-1974 foram seguidos por uma má administração

da presidência do clube. Nos anos de 1974 a 1979, endividamentos e uma profunda

crise na diretoria fizeram com que o San Lorenzo fosse obrigado a vender seus terrenos

para o governo militar. A grande perda histórica foi o estádio emblemático, localizado

em Boedo, conhecido como “El Viejo Gasómetro”, que operava a ligação entre o

território e a identidade da torcida: “el Brigadier Cacciatore quiso aprovecharse de la

situación de debilidad de San Lorenzo. Los terrenos del Gasómetro eran muy golosos y

comenzó una auténtica maniobra de expropiación sin precedentes, ante la que nada

pudieron hacer los hinchas cuervos”.10

Em 1979, já há muito consolidado o golpe de

estado de 1976, o Viejo Gasómetro sediou seu último jogo: Boca Juniors e San

Lorenzo, terminando em um empate de dois a dois. Depois disso, dois anos sem uso do

estádio marcaram ainda mais a torcida dos “cuervos” que carecia de um solo. Com a

promessa de se tornar um grande centro comercial, posteriormente, em 1981, o estádio

foi vendido definitivamente à rede francesa Carrefour, para a construção de um

10

Disponível em: http://www.somoscuervos.com.ar/wiki/el_viejo_gas%C3%B3metro,_el_

canalla_cacciatore_y_carrefour. Acesso em: 15/01/2018.

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hipermercado, um pequeno exemplo que reflete os interesses do regime em promover a

abertura de mercado na Argentina e o ingresso na globalização. Durante um período de

vinte anos, o San Lorenzo dividiu canchas com outros times, como Huracán e Velez

Sarsfield, não ganhou um título sequer e ainda foi rebaixado para a segunda divisão do

campeonato nacional, retornando à primeira em 1982. A expropriação do estádio pelo

governo ditatorial proporcionou um sentimento de grande mal-estar entre os torcedores,

jogadores e, consequentemente, moradores do bairro de Boedo e das imediações. A

nação azulgrana, desde esse fato, é marcada pelo desejo de volta a Boedo, a seu antigo

lar, imbuída de um tom muito saudosista e melancólico. A identificação com o território

se perdeu num processo desterritorializador operado pelo Estado, nos moldes de

Deleuze e Guatarri, já mencionados anteriormente.

O conto de Sacheri, ambientado no ano de 1994, cria uma alegoria com o

objetivo de revisar a história não só de um clube, mas também a história da Argentina,

seus caminhos e descaminhos a partir da ditadura de 1976. O golpe articulado por

Hormiga representa uma reação ao amargor da derrota histórica sofrida pelo clube, uma

tentativa de recuperação de algo precioso que ficou encoberto por camadas de história.

O grupo de amigos não invade um lugar qualquer. O alvo do bando é o hipermercado

Carrefour, construído sobre o Viejo Gasómetro, outrora reconhecido como o “Wembley

Porteño”. A característica alegórica da construção narrativa de Sacheri evidencia a luta

de uma torcida representada por um grupo de amigos que travam um embate simbólico

com a história. A materialidade da inscrição narrativa se dá na mesma medida em que se

encara a representação do conto como esse resíduo histórico do mal-estar que se

arrastou durante vinte anos na memória de toda nação de torcedores.

Com o plano já em curso, dentro do hipermercado, a narração irá expor um traço

fundamental da relação de Bogado com o território. Ao seguirem para o local designado

por Hormiga, Bogado percebe onde se encontram e, nesse exato momento, entende a

grandiosidade da ação que estão prestes a concretizar:

Es entonces cuando reemprenden la marcha y Bogado ve unas cuantas

baldosas del piso frente a sí que, como si una llamarada súbita lo

hubiese incinerado en el fuego de la revelación, toma conciencia del

sitio en que se encuentra. No ha vuelto ahí en todos esos años, tan

grandes son el dolor y la nostalgia. Otros sí han vuelto. Se lo han

dicho. Pero él nunca fue capaz. No ha querido siquiera pasar por la

calle ni por el barrio. Y ahora está ahí. Ahí metido. (SACHERI, 2008,

p. 73, grifo nosso)

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A revelação de Bogado se dá ao mesmo passo em que reconhece a entrada não

no Carrefour, mas no espaço mais importante para os cuervos, el Viejo Gasómetro. A

invasão do hipermercado pressupõe uma volta ao antigo lar, ao território que guarda

ainda todas as marcas do passado glorioso do Club Atlético San Lorenzo de Almagro.

Essa tensão reforça a sobreposição da imagem do hipermercado à do estádio. Aqui e nos

momentos que se seguem, Bogado não tem mais dúvida alguma sobre a legitimidade e

pertinência do plano. A representação alegórica, que permite a leitura do drama social

pelo qual passa esse grupo de amigos, demonstra o vínculo territorial associado à paixão

pelo clube. A experiência do personagem ao reconhecer o solo implica um mal-estar

que se apresenta no modo de narrar e na atuação expropriadora do Estado. Essa

dinâmica, na qual se insere Bogado, pode expressar o incômodo de diversos outros

torcedores. A mudança de domicílio para outro bairro, a tentativa de evitar o contato

com o território ao qual se vincula a micronação, agora afetado diretamente pela ação

do governo militar, como resíduos de outro tempo. O deslocamento do estádio de

Futebol da zona de Boedo para os arredores da favela (villa) 1-11-14, como resultado de

um movimento desterritorializador do Estado-Nação, pode indicar uma experiência que

muito se assemelha ao exílio. A angústia de torcedores que, muitas das vezes, podem

guardar a mesma nostalgia de Bogado (“No ha vuelto ahí en todos esos años, tan

grandes son el dolor y la nostalgia”) remetem aos processos de controle social e

reordenamento do espaço urbano agenciados pelas ditaduras na América Latina,

manifestados concretamente através da venda do Velho Gasômetro a uma rede de

supermercados global.

O relato de Eduardo Sacheri, marcado por uma melancolia profunda, permite

uma leitura através deste personagem que pode se estender até outros torcedores e pode

remeter a outro contexto de exílio: “Otros si han vuelto. Se lo han dicho. Pero él

[Bogado] nunca fue capaz. No ha querido siquiera pasar por la calle ni por el barrio”.

Enquanto para outros a dor se deu de forma diferente, em Bogado há uma melancolia e

uma resistência marcadas pelo distanciamento espacial que preserva, nostalgicamente, a

memória associada ao Velho Gasômetro, às lembranças afetivas relacionadas aos rituais

da torcida e ao grupo de amigos. Considerando que há uma inscrição territorial na qual

se insere o imaginário da micronação de torcedores, é possível ler, através da figura de

Bogado, os efeitos da ação de expropriação do estádio como uma dinâmica social que

promoveu a saída de torcedores do bairro, da mesma forma que inviabilizou o

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permanência de milhares de argentinos no seu país, por não conseguirem lidar

diretamente com o fato de não terem mais o solo político-social com o qual se

identificassem e no qual se arraigasse sua existência cotidiana. Acabaram expandindo as

suas redes para outros lugares. A construção do segundo estádio marcará a história do

clube. O Novo Gasômetro será inaugurado em 1993, na área de Bajo Flores. Embora a

construção de um novo estádio, recomponha em parte a perda, a torcida jamais se

esquecerá do antigo espaço, alimentando por décadas o sonho de “volver a Boedo”. Em

frente ao Carrefour da Avenida La Plata um grande grafite diz “Ya hicimos dos

canchas. Vamos a hacer la tercera”. Do outro lado da rua, letras azuias e vermelhas

reivindicam: “Para Boedo lo que es de Boedo”. Em Dezembro de 2015, finalmente é

firmado com a rede Carrefour um acordo multimilionário que recupera a área, levando

os torcedores ao delírio. O Natal desse ano foi uma festa há muito adiada.

Em 1994, o San Lorenzo conquista o título nacional, depois de vinte anos. O

conto reconstrói a longa espera de toda a torcida através do grupo de amigos que

protagoniza a ação e planeja roubar do Carrefour algo que lhe foi tirado: “ahora sí,

muchachos. Ahora van a ver. Ahora se nos da. Es cuestión de sacar de acá y poner allá,

en el Bajo. Se acabó la malaria, van a ver, se los juro” (SACHERI, 2008, p. 75), diz

Hormiga exaltando a conquista que se aproxima. “Y Bogado siente, mientras golpea

frenético el cemento, que es verdad, que es cierto, que esta vez se corta el maleficio, y

que son ellos los ángeles custodios del milagro” (SACHERI, 2008, p. 75). Abrindo um

buraco no piso do supermercado e quebrando o cimento que se colocava entre eles e o

objetivo do plano, Hormiga aponta a lanterna para o buraco:

Una masa cenicienta y blanda yace bajo los restos de los escombros. No

pueden controlarse. Se lanzan al unísono a escarbar con las manos

desnudas, unos sobre otros. Dan las cuatro, pero no lo notan. Rubén, de

repente, pide casi a gritos que se iluminen la mano. Ocho pares de ojos

se clavan en su puño. Tiene la piel arañada, las uñas rotas, el anillo de

casamiento opaco y cruzado de raspones. Y bien aferrado, como si fuera

un tesoro de cuento, un puñado de tierra negra que asoma entre sus

dedos crispados. Bogado trata de contener las lágrimas, pero cuando

escucha los sollozos de Carucha, y cuando ve que Sergio se hinca de

rodillas y se tapa la cara para que nadie lo vea, se lanza a moquear sin

vergüenza. (SACHERI, 2008, p. 75-76, grifo nosso)

Agrupados, com os olhos voltados para a mão de Rubén, observam o “tesoro de

cuento”, a terra do antigo estádio, o Velho Gasômetro. Essa terra seria passada de um

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estádio a outro, num rito supersticioso, para que, no Novo Gasômetro, os tempos de

glória pudessem ser revividos. O plano do Hormiga, envolto por uma atmosfera de

suspense e organizado nos moldes do relato policial de “aguantadero de mala película”,

tem como fim a recuperação da “terra” que representa a territorialidade associada ao

Velho Gasômetro, ao time e à torcida do bairro de Boedo.

O processo de reterritorialização que aciona a identificação possível entre os

dois estádios e entre passado e presente é trabalhado na dependência com a raiz

territorial do clube em seu bairro de origem. Aí, nesse bairro de operários, no pátio de

uma igreja, incentivados por um padre, surge o San Lorenzo, que se deslocará pela

cidade juntamente com sua torcida. A emoção coletiva exemplifica a força do

imaginário compartilhado pelo grupo no momento em que os integrantes choram e

ratificam o poder do território na construção social de uma comunidade imaginada. Na

descrição de Rubén pelo narrador, as mãos e as unhas sujas, o anel de noivado com

riscos causados pela retirada do cimento remetem à negação de elementos constitutivos

de um padrão social que envolve higiene, polidez e o cuidado da relação matrimonial,

fatores que, muitas das vezes, se sobrepõem ao clube e à relação com os amigos. Aqui,

eles surgem em um segundo plano, dando visibilidade à importância dos valores e

códigos compartilhados pela tribo, ao objetivo fundamental do projeto que se relaciona

diretamente com os interesses coletivos da micronação em foco. Assim, uma vez

concluído o plano, os oito “desquiciados” batem em retirada:

En la cabina de control de cámaras, un guardia frunce el entrecejo. Otro

le pregunta qué le pasa. El guardia piensa antes de responder. Esos

monitores color son muy lindos, pero todavía no se acostumbra. Igual

contesta que no pasa nada. Teme que su compañero piense que está loco

si le dice que creyó ver, a la altura de la góndola de los fideos, pasar

corriendo a unos tipos vestidos con camiseta de San Lorenzo.

(SACHERI, p. 76, grifo nosso)

“Hinchada hay una sola”, do argentino Alejandro Parisi, publicado na antologia

de contos de futebol De puntín (2008), explora a questão da migração, da diásporas pós-

modernas e as novas dinâmicas identitárias provenientes deste cenário transnacional. No

campinho dentro de uma “antigua fábrica textil convertida en Escuela Industrial”,

emigrantes latino-americanos se reúnem para disputar peladas, “más por uma necesidad

terapéutica que futebolística” (PARISI, 2008, p. 153). Diante do rechaço social da vida

em Barcelona, estes sujeitos tomam o futebol como elemento de união, tornando

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possível a criação de um grupo que emerge enquanto uma micronação de estrangeiros

em solo espanhol. Constituída, majoritariamente, por sulamericanos, esta comunidade

integra sujeitos das mais diversas nacionalidades: Argentina, Uruguai, Chile, México,

Equador, Venezuela. Dentre eles, há ainda a presença de um marroquino. Todos

vivenciam da mesma maneira uma situação de desenraizamento, sendo ligados,

portanto, pela dificuldade de serem reconhecidos como parte de uma sociedade que os

recebe e rechaça em um solo estrangeiro distante de suas pátrias. As profissões

exercidas por esses imigrantes são as mais diversas possíveis. Há atores, médicos,

operadores de telemarketing, garçons, estudantes de pós-graduação. O panorama

desterritorializado constituído por estes sujeitos encontra uma possibilidade de

reterritorialização a partir do encontro de diferenças no espaço do campinho onde jogam

futebol todas as semanas. Sentir-se parte de um lugar se associa diretamente à

readaptação territorial e à construção de novas raízes que, agora, não se referem à

padronização social subordinada ao Estado, mas às conexões entre subjetividades

deslocadas que procuram identificar-se, reconhecer-se num ponto comum e trans-local

nessa nova terra por meio da interação sócio-espacial: “de alguna manera, la falta de un

grupo fijo para jugar al fútbol era un espejo exacto de mi situación general de

emigrado” (PARISI, 2008, p. 154). Arjun Appadurai comenta esse fenômeno que, de

modo geral, pode ser observado em distintas partes da ideia pós-nacional:

A produção da localidade […], como uma dimensão da vida social, uma

estrutura de sentimentos e em sua expressão material de vivência da

“co-presença” [...], enfrenta dois desafios numa ordem pós-nacional.

Por um lado, desafia a ordem e a ordenação do Estado-Nação. Por

outro, o movimento humano no contexto de crise do Estado-Nação

reforça a emergência de translocalidades. (1997, p. 34, grifo do autor)

Os deslocamentos e as migrações assumem uma enorme importância para

pensarmos as reformulações do espaço e as reconfigurações identitárias. Pensando a

localidade no sentido proposto por Appadurai, faz-se necessário reconhecer que a

produção do local está vinculada de modo muito forte com as inscrições das

subjetividades que nele interagem. Um espaço, além de conter seus traços geográficos

particulares, é também marcado por registros sociais e de sociabilidade derivados dos

sujeitos que o ocupam. Na condição de estrangeiros, os personagens, ao encontrarem

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dificuldades para se instalar socialmente entre os cidadãos de Barcelona, experienciam

ao mesmo tempo a não identificação territorial:

As políticas dos Estados-Nações, em particular com relação à população

considerada potencialmente subversiva, criam uma máquina em moto

contínuo, em que os refugiados de uma nação mudam-se para outra

criando ali novas instabilidades, que causam mais agitação social e

portanto maior êxodo [...]. Consequentemente, a necessidade de um

Estado-Nação de produzir “pessoas” [...] pode significar para seus

vizinhos agitação social e étnica, provocando ciclos infindáveis de

limpeza étnica, migração forçada, xenofobia, paranoia estatal e portanto

ainda mais limpeza étnica. (APPADURAI, 1997, p. 35)

Ao mesmo tempo que observamos uma diluição político-econômica do Estado-

Nação, a partir das narrativas pós-nacionais operadas por outros agentes, podemos ver

ainda, em contextos globais, que há uma reafirmação do papel do Estado como produtor

do relato identitário nacional no que diz respeito à produção de “pessoas” ou de

“cidadãos nacionais”, feitos sob medida para mostrar aos “invasores” a situação

desfavorável em que se encontram. A polaridade entre os sujeitos “nacionais” e os

estrangeiros se acirra nos cenários de migrações transnacionais, gerando, quase sempre,

problemas àqueles que buscam estabelecer-se em outra terra. O que fica marcado é a

promoção de agentes que impedem a chance de reterritorialização de emigrantes. No

conto, a possibilidade de criar vínculos ocorre com a interação coletiva entre

estrangeiros durante as peladas. A reconstituição identitária dos personagens através do

futebol se processa através de uma conexão imaginária e em rede de territórios distantes

que passam a contribuir para a formação de um novo território imaginado, o qual se

sobrepõe ao território real onde ios imigrantes constroem suas vidas. Nesse processo

reterritorializador, os sujeitos ressemantizam o espaço projetando novas maneiras de

pertencer ao território. Trata-se de fazer parte, enquanto uma micronação, de um

território que será marcado pela interculturalidade e pela negociação de diferentes

elementos culturais. Essa relação, mediada pelo imaginário de grupos culturais vários,

terá um papel de reestruturação identitária e na reconexão espacial de cada indivíduo

porque, em primeiro lugar, “representam e instituem o social” e, em segundo, atualizam

“em imagens aquilo que nossa sociedade experimenta em relação a outras” (GARCÍA

CANCLINI, 2007, p. 57). Nesse sentido, refletir sobre a translocalidade relacionada a

sujeitos deslocados ou em deslocamento aponta para a vastidão das diferenças culturais

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que um mesmo solo pode conter, em tensão com o poder coesivo em torno da

mesmidade manifestado pelos relatos do Estado-Nação. A partir dessa ótica, voltando

ao conto, observa-se não só que os movimentos intersubjetivos referentes aos

personagens apresentam um potencial de redefinir aspectos que apontam para o pós-

nacional, como também que os relatos de futebol e os sentimentos relacionados às

nações de torcedores propiciam uma imbricação de processos de desterritorialização e

reterritorialização: “o futebol adquiriu novas dimensões que o convertem em um

fenômeno local e supranacional” (PIMENTEL, 2014, p. 41):

A medida que llegaban los demás, cada uno con la camiseta de su

equipo, comentamos los resultados del ColoColo chileno, de Boca,

River y Racing, de los Pumas de México, del Emelec, del Gremio de

Porto Alegre… Sin embargo todos teníamos algo del Barza: un par de

medias, un llavero, un gorro, miles de modelos distintos de la camiseta

azulgrana que levábamos para sentirnos parte de algo más cercano con

el F. C. Barcelona, un equipo ajeno, pero tan poderoso como para

comprar a los mejores jugadores de todos nuestros países y ponerlos en

el mismo campo de juego. (PARISI, 2008, p. 155-6)

Este trecho do conto “Hinchada hay una sola” apresenta elementos portadores de

uma forte carga simbólica supranacional e pós-nacoional, a qual pode ser vista na

imagen do time do Barcelona. O processo de identificação é orientado pela localidade

do bairro, onde se situa o campinho, no caso da integração coletivizada da micronação,

ou da cidade no que diz respeito à negociação entre características ligadas às raízes dos

personagens (camisetas dos clubes relacionados aos seus países de origem) e outras

associadas ao F. C. Barcelona (meias, gorros, camisas). O registro pós-nacional,

refletido na aproximação com o clube catalão, indica o valor simbólico que possibilita

uma certa mescla com os limites identitários associados à América Latina. Ao trocar

informações sobre os resultados e transferências, podemos fazer a observação de que o

acesso às narrativas vinculadas aos seus respectivos clubes latino-americanos chega por

diversos modos através dos meios de comunicação. Jornais, revistas, televisão, TV a

cabo, internet servirão para recuperar o contato com o universo de origem destes

sujeitos. No entanto, a lembrança dos elementos ligados ao passado não se dá de

maneira nostálgica.

Encontramos uma boa comparação com um contexto anterior através da litura de

um texto do chileno Antonio Skármeta. Ao tratar das trajetórias no exílio decorrente da

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ditadura chilena, o escritor assinala que: “despojados do seu ambiente natural,

desprovidos de suas utopias, minuciosamente derrotados, os emigrantes latino-

americanos começaram uma militância em guetos de melancolia que muitas vezes os

impediu de assumir as paixões cotidianas dos países que lhes ofereciam refúgio” (1997,

p. 9). No ambiente das ditaduras da América Latina, a situação dos emigrantes

refugiados era marcada por um forte apego à nação, dada à resistência dos indivíduos a

se estabelecerem em terras estrangeiras e a verem sua permanência nos países

receptores como algo passageiro. A nostalgia e a melancolia, nesses casos, estão

diretamente associadas ao desejo de retorno ao país, ao reencontro com amigos e com a

vivência de experiências culturais enraizadas. No cenário de deslocamentos globais em

que se movem os personagens do conto, embora ainda haja uma forma de narrar

melancólica, já não é mais possível encontrar refúgio nos “guetos de melancolia” de que

fala Skármeta porque quase não existe perspectiva de regresso. Enquanto, num primeiro

momento, a experiência dos refugiados, descritos por Skármeta, se mantinha num

contexto de dura desterritorialização, alimentado-se o projeto de volta à pátria, no

segundo momento, os emigrantes do conto parecem ter a melancolia atrelada ao desejo

da precária reterritorialização. Trata-se aqui, principalmente, da chance de estabelecer

vínculo de identificação com um novo território. As inúmeras tentativas de interação

dos personagens com indivíduos locais de Barcelona refletem a falta de sentido de

pertencimento com o território, ainda associada às diferenças culturais: “había intentado

sumarme a varios grupos pero duré poco en todos lados: no soportaba jugar con gente

que paraba un contraataque porque alguien se caía al suelo (el fair play europeo no tenía

límites)” (PARISI, 2008, p. 154). Ainda assim, há o fator que se diferencia pelo desejo

de se manter e se identificar num solo estrangeiro (a exemplo dos níveis de

pertencimento atrelados ao clube do Barcelona) que, constantemente, é relembrado pelo

Estado catalão como inacessível a quem vem de fora. Nesse sentido, a promoção da

coletividade orientada pelo futebol oferece a possibilidade de uma nova nação, uma

micronação localizada e translocal que surge como um terceiro elemento entre o

binarismo nação x estrangeiros.

Na sequência do conto, Kavieres, o personagem equatoriano, convida a todos

para comparecerem ao estádio onde haverá um amistoso entre a seleção catalã e a

seleção do Equador. A princípio, ninguém aceita o convite. No dia do jogo, porém,

todos comparecem ao estádio Camp Nou para se reunir com o amigo. Formando parte

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da torcida equatoriana, o grupo de estrangeiros assume um novo registro identitário que

reforça os elos firmados pelo sentimento comum de estrangeiros em Barcelona:

-Mira a los catalanes, están todos sentados.– dijo Kavieres señalando la

tribuna de enfrente.

- Son unos amargos- dijo Marcelo, y comenzó a cantar –: El que no

salta es un europeo, el que no salta es un europeo…

Y todos, hasta los que estábamos tramitando la nacionalidad española,

todos empezamos a saltar. (PARISI, 2008, p. 166)

A condição de não pertencimento ao território abre um arco identitário que

reflete a pluralidade das formas como esses sujeitos podem se manifestar. Sendo

interpelados pela torcida equatoriana, não só vestem a camisa, mas reforçam o caráter

negocial e transitório de identidades híbridas. Há um deslocamento do âmbito da

produção para o âmbito da experiência proporcionada pelo futebol e que através dele é

contada. As práticas relacionadas ao evento futebolístico – ir ao estádio para assistir a

uma partida entre dois clubes, torcer na arquibancada por um time e configurar-se junto

à grande massa de torcedores como o décimo segundo jogador que compõe o elenco, a

exemplo da torcida do Boca Juniors intitulada “La 12”, cantar hinos e canções que

demonstram a paixão e o conjunto de valores formadores do imaginário de sujeitos

apaixonados por seus respectivos clubes – ganham um destaque que sugere um olhar

sobre o futebol, pelo espetáculo que ele representa, a partir da performance: “las

performances operan como actos vitales de transferencia, transmitiendo el saber social,

la memoria y el sentido de identidad a partir de acciones reiteradas” (TAYLOR, 2015,

p. 22).

Assim, vale ressaltar que a performance, como apresentada no conto de Parisi,

promove uma abertura de sentido, tirando o espectador de seu caráter passivo: “espect-

actors”11

, como propõe Diana Taylor ao utilizar o termo de Augusto Boal: “de todas

11

Augusto Boal, durante as discussões sobre o teatro do oprimido, procura rever a participação de

espectadores em meio às dramatizações teatrais. O envolvimento daqueles que assistiam a uma

encenação, para ele, era tão importante quanto a própria atividade dos atores da representação. Assim, a

reformulação do termo espectador, retirado da sua passividade como aquele que simplesmente observa,

objetiva inscrever a qualidade de agente no público, tornando-se parte fundamental na construção da

cena: “Espectador, que palavra feia! O espectador, ser passivo, é menos que um homem e é necessário re-

humanizá-lo, restituir-lhe sua capacidade de ação em toda sua plenitude. Ele deve ser também o sujeito,

um ator, em igualdade de condições com os atores, que devam por sua vez ser também espectadores.

Todas essas experiências de teatro popular perseguem o mesmo objetivo: a libertação do espectador,

sobre quem o teatro se habituou a impor visões acabadas do mundo. E considerando que quem faz teatro,

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formas, tanto los actores (sociales) como los espectadores siguen las reglas implícitas

del evento” (2015, p. 18). O futebol como lugar de enunciação das narrativas reúne

todos aqueles que compõem sua esfera e lhes permite ter experiências que constroem

relações interpessoais, baseadas em códigos e na memória afetiva partilhada pelos

sujeitos. Então, podemos observar que, enquanto expressão cultural, o futebol assume

uma função que se materializa na mediação assumida pelas subjetividades ligadas a ele,

espectadores ativos que não se encerram no ato da performance, carregando os valores e

traços pertencentes àquele meio que dialogam e podem gerar novas maneiras de

sociabilidade no contexto social.

Os valores e códigos partilhados entre os amigos sofrem um processo de

ritualização através do futebol e por ele encontram um meio de se identificarem para

além do Estado e de suas raízes. A transitoriedade das identidades aqui em jogo

expressa as tesões entre os níveis de pertencimentos de sujeitos transnacionais. Os

fluxos globais, que também abarcam as dinâmicas da cultura, permitem observar a

emergência de sujeitos de fronteira, já não determináveis pela rigidez identitária.

Nesse sentido, a experiência compartilhada pelo grupo de estrangeiros, no conto

“Hinchada hay una sola”, por um lado, explicita os laços estabelecidos por estrangeiros

em uma situação de dezenraizamento e o modo como sujeitos podem imaginar a

sociedade e se imaginar através do futebol; por outro, há uma radicalização da

experiência no contato direto com a torcida equatoriana, promovendo o fortalecimento

da coletividade e dos afetos que os tornam parte de uma mesma unidade de grupo,

forjada desde a partilha de uma identidade que gira em torno da porosa condição latino-

americana. Assim, o processo de reterritorialização se dá na medida em que o

imaginário desse grupo constitui uma prática social que vai influenciar o modo como os

personagens interagem e se reconhecem dentro de um mesmo território estrangeiro.

em geral, são pessoas direta ou indiretamente ligadas às classes dominantes, é lógico que essas imagens

acabadas sejam as imagens da classe dominante. O espectador do teatro popular (o povo) não pode

continuar sendo vítima passiva dessas imagens. O mundo é dado como conhecido, perfeito ou a caminho

da perfeição, e todos os seus valores são impostos aos espectadores. Estes passivamente delegam poderes

aos personagens para que atuem e pensem em seu lugar. Ao fazê-lo, os espectadores se purificam de sua

falha trágica – isto é, de algo capaz de transformar a sociedade. Produz-se a catarse do ímpeto

revolucionário! A ação dramática substitui a ação real. O mundo se revela transformável e a

transformação começa no teatro mesmo, pois o espectador já não delega poderes ao personagem para que

pense em seu lugar, embora continue delegando-lhe poderes para que atue em seu lugar. A experiência é

reveladora ao nível da consciência, mas não globalmente ao nível da ação. Ação dramática esclarece ação

real. O espetáculo é uma preparação para a ação” (BOAL, 1973, p. 236-237)

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CONCLUSÃO

Ricardo Piglia, em “Tres propuestas para el próximo milênio (y cinco

dificultades)” (2009), ao pensar sobre as características que constituem uma literatura

nacional argentina e os novos caminhos aos quais a escrita do século XXI se destina,

assinala uma tendência nas produções literárias que se direcionam à representação das

esferas populares. Tomando como ponto de partida o conto “Esa mujer” de Rodolfo

Walsh, publicado em 1963 e escolhido melhor conto argentino do século XX por uma

comissão de escritores e críticos, Piglia analisa as condições para o desenvolvimento de

uma literatura que se orienta pelos desafios de figurar o “outro”, as esferas da população

que se colocam na oposição do intelectual: “El intelectual, el letrado, no solamiente

siente el mundo bárbaro y popular como adverso y antagónico, sino también como un

destino, como un lugar de fuga, como un punto de llegada” (Piglia, 2009, p. 84).

Passando por cima de grandes escritores como Borges, Cortázar e Silvina

Ocampo, Walsh desperta a curiosidade de Piglia a respeito da eleição e instiga uma

reflexão que se projeta no futuro, o por-vir literário, uma literatura que não estranha o

popular, mas que vai a seu encontro. Textos que não se limitam a trabalhar essa

alteridade apenas a partir do estranhamento, como objeto visto desde um observador

intelectual, distanciado, analítico; mas que, na posição de sujeito, esse “outro” possa se

representar desde e no campo literário, fazendo emergir no meio intelectual novas

subjetividades de escritores e de personagens na história.

A literatura de futebol reúne essa série de tensões que se problematizam tanto na

formação dos autores quanto na construção representacional de sujeitos torcedores.

Nesse sentido, esta pesquisa, que se estende por dois anos, procurou estudar algumas

das particularidades sobre esse campo literário, que cada vez mais agrega produções de

grandes autorias e se enriquece de abordagens críticas na contemporaneidade.

A expansão dos horizontes temáticos da literatura possibilita vislumbrar uma

gama de outros olhares que atentam direta ou indiretamente para o social. Se há uma

ampliação dos registros populares e da cultura de massas permeando o círculo de

narrativas literárias, resta-nos desenvolver meios através dos quais essas obras possam

servir à crítica tanto para o reconhecimento da expressão de novas subjetividades,

quanto para a compreensão dos valores, costumes e modos de pensar inscritos na

sociedade e na cultura através dos indivíduos.

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Com nossos interesses voltados para a discussão de problemáticas sociais que

repercutem nos espaços da teoria crítica – disputas entre o popular e o intelectual,

gênero e sexualidade, território e nação –, pensamos através dos contos de futebol

argentinos as maneiras pelas quais a sociedade pode se revelar na representação dos

cenários da bola, tão presentes na vida cotidiana, onde se concentram, ao mesmo tempo,

as esferas da reprodução social e a possibilidade da inovação que mira reestruturar as

práticas e o discurso.

O futebol como um assunto “banal”, assim como tantos outros na sociedade,

oferece uma gama de informações sobre os expedientes rotineiros de indivíduos, assim

como serve para a observação de estruturas de poder que regulam a construção de

mundo e dos imaginários coletivos. Compreender o popular através da literatura

significa lançar-se a ele ou, ao menos, abrir as vias e construir as condições necessárias

para sua expressão nos diferentes contextos de produção da escrita.

Para a crítica literária, é fundamental a importância das discussões

metodológicas que levam à leitura de tais textos. Tendo em vista que um método

comporta todos os vícios que dele mesmo nasceram – o que, em certa medida, não se

apresenta de forma negativa –, torna-se necessário rever as medidas pelas quais

transitaremos em meio a narrativas que tendem, numa escala crescente, à adoção de

temas corriqueiros e próximos aos indivíduos intelectuais e não-intelectuais. Esse

trabalho pensa uma dessas formas, ler um campo temático, marcado, em muito, pelo

irracionalismo, pela violência, pelo domínio sobre os corpos, pela masculinidade e pelo

discurso nacionalista, através de uma perspectiva alegórica que vai em direção à

contribuição para uma crítica sócio-cultural.

Algo como Ricardo Piglia, mais uma vez, pensou: “un cuento siempre cuenta

dos historias” (2000, p. 105): aquela própria ao conto e uma outra, cifrada, alegórica,

que bifurca a percepção e a leva para novos lugares. Enquanto produto social, o texto

literário não se desassocia das lógicas imanentes sobre as quais ele foi construído. Ele é

carregado de marcas pessoais e impessoais, do escritor, dos personagens e da temática

escolhida (estilo, perspectivas da posição social ou do lugar de fala, dinâmicas e códigos

pertinentes à escolha do universo a ser representado etc.). Como ler um conto de futebol

sem repetir o desapreço comum à crítica? Como reconstituir um cenário favorável no

qual contos de futebol possam dizer algo que vá além de um olhar torcedor? Como ir ao

encontro de uma cultura popular muito específica e abrangente sem recair nos

banalismos convencionais? Essas foram perguntas que este estudo tentou responder na

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medida em que a leitura dos contos nos proporcionou vislumbrar a sociedade desde a

representação de um de seus interstícios, do ambiente específico do futebol, que

aglomera uma enormidade de sujeitos das mais distintas origens.

A constatação, em uma mesma medida, de práticas e demandas populares, que

desde o lugar da escrita podem ser problematizadas, denunciadas, reivindicadas ou

elogiadas. Pensamos tanto através do olhar intelectual, quanto do olhar em que se

confundem o escritor e o popular, um híbrido que a cada geração torna-se mais visível

na literatura. É dizer: operou-se uma permuta. Não só o intelectual frente ao torcedor;

mas o torcedor frente ao intelectual, a partir de uma fronteira, na qual o escritor e a

escritora dificilmente conseguem esconder seus traços de formação pela cultura popular.

Ao contrário, deixam-nos mais evidentes e, assim, constituem um campo literário que,

já na sua formação, indica uma teia de narrativas orientada tanto pela imaginação

literária quanto pela experiência concreta de sujeitos.

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