Vítor Meireles e a tradição pictórica - PPGAV–EBA–UFRJ · artigo afirmo o existência de...

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V ítor Meireles e a tradição pictórica

Al exa nd re Linhare s G u edes

o artigo afirmo o existência de uma conexõo artístico entre Vítor Meireles e Eugene Delacroix, estabelecido por uma rede de conhecimento comum, isto é, uma

certo consciência artístico presente no tradição pictórico ocidental.

Vítor Meireles (1832-1 903) fez parte de uma geração de artistas que estimu lou na pintura brasileira um panorama de significativas conquistas não só entre os de sua época como ent re os da que a sucedeu. Segundo o pintor e crítico de arte Q uirino Campofiorito, por meio da obra de Meire lles, pode-se ve rificar um sentido plást ico mais audacioso nas primeiras décadas da segunda metade do século 19 no Brasil, alcançando nossa pintura nesse período, terreno que até então não era conhecido em nosso país. Sendo assim, vejamos em que bases Meireles constitui seu conhec imento acerca da pintura. Dessa forma, se rá possíve l entender de que maneira sua experiência acadêm ica resulta no exercício de sua prática artística ligada diretamente à trad ição pictórica.

Melreles fOI discípulo de Manue l de AraÚJO Porto -Alegre - ex-aluno de Debret e Gros - em se us estudos na Academ ia I mperial de Belas Artes, termi nando seu período de formação artística na Europa. Nesse continente, passa primeiro pela Itália, freqüentando em Roma a Academia São Lucas, como bolsista da insti tuição brasileira sob a orientação de Nicolau Couronni , I em cujo ateliê dedica a maior parte de seu tempo ao estudo do modelo vivo e de costumes. Ao término de suas atividades na capital italiana, dirige-se para Florença, onde tem contato com a obra de grandes pintores italianos . Aprecia todas as tendências estéticas, tocando de maneira part icular sua sensi bilidade, a Escola Veneziana: "absorve o co lorido suave dessa

De/aero ix. pintura. Vitor iVle ireles.

esco la de pintura e se influenc ia, espec ialmente, por Paolo Veronese (15 28 ­1588), conforme ele mesmo declara"2 Depois. a pedido de Porto-Alegre. seu mestre brasileiro, segue rumo à França para finaliza r seu aprimoramento. Em Paris. ingressa na École Nationale des Beaux-Arts, onde é assistido por Léon Cogniet e Gastaldi. Este último "o fez compreender a graduação que conservam entre si as fo rmas e as distâncias, a observar diretamente da natureza e enriquecer sua paleta ( ... )" 3

Artista dedicado . Meirelles trabalhou incansave lmente no intuito de aperfeiçoar se us conhecimentos plásticos sobre o desen ho e a pintura na Europa. Tal era seu empe nho, que o crítico Gonzaga Duque afirma que "ele se dedicava à arte com um entusiasmo de fan átlco "4 e completa, observando: "o desenho!. .. o desenho l . era a sua maior preocu pação. o seu cuidado, o seu amor. Estudava-o sempre, nos museus. na academia. nas horas de descanso".5

o esforço empreendido por Meirel les na busca de seu aprimoramento enquanto artista passa t anto pela prática exaustiva do desenho - mencionado por Gonzaga Duque em seu comentário - como também pela cópia de mestres da pintura européia. Por me io desses estudos, Meirelles pôde pe netrar o universo plástico das obras, delas extraindo o que tinham de mais importante : o conteúdo plástico. Isso só fOI possíve l graças à utilização da cópia, como um meio de experiência cogn itiva. Sobre esse tema. o pintor e teórico da arte John

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a/e REVISTA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS EBA • UFRJ 200Li

Burnet6 escreveu em L' art de lo peinture:

A invenção (criação) é a combinação de idéias adquiridas pelo estudo e pela pesquisa daquilo que já existe e, portanto, através de um método regular, os pintores deviam estudar as invenções (criações) dos outros, pois este era o caminho para se aprender a inventar. 7

Partindo desse ponto de vista, afirmamos a existência de uma conexão artística entre Vítor Meireles e Eugene Delacroix. Uma possibilidade que à primeira vista pode parecer estranha - se pensarmos apenas no aspecto estético -, mas que tem sua origem relacionada a uma rede de cognição comum, uma espécie de consciência artística ­apreensão visual do mundo sem relativização do conteúdo imagético, no pleno domínio das leis elementares da forma e da cor, com suas co-relações com positivas - presente na tradição pictórica ocidental. Paul Cézanne disse certa vez: "Estamos todos em Delacroix",8 frase que nos dá a exata dimensão de como, no caso de Meirelles, isso diz respeito ao caráter intrínseco da obra, na qual reside a unidade artística de Delacroix.

A princípio, podemos dizer que o conhecimento plástico contido na pintura de Delacroix foi indiretamente absorvido por Meireles, em sua experiência prática mediante a cópia de mestres como Ticiano, Veronese, David, Gros e Géricault, em momentos distintos de sua formação acadêmica.

Mesmo sem ter freqüentado o ateliê de Delacroix ou possuir conhecimento de sua obra a fundo, Meirelles estudou a partir das mesmas fontes do pintor francês. Ambos tiveram acesso à pintura italiana do Renascimento Pleno (classicismo) e do Barroco, assim como à pintura francesa do início do século 19. Essa

aproximação, que se baseia na utilização de referenciais comuns, pode ser mais explicitada pelo contato que tiveram em épocas distintas com a obra A bolso do medusa (1819), de Géricault, pintura de grandes dimensões: 4,90x7m.

Quando a viu pela primeira vez, Delacroix relatou: ''A impressão que me causou foi tão vívida que corri como um louco para a Rua de La Planche" 9 A reação expressa nesse discurso revela uma ação da consciência em seu movimento espontâneo de interação com o visível. Nesse sentido, seu contato visual com a forma configurada - a imagem criada por Géricault - gera uma experiência cognitiva diante da obra. Esse entendimento se dá como vivência de uma ordenação interna, na qual reside o sentido artístico de sua percepção. Éa partir da natureza dessa apreensão que ocorre em Delacroix a formação de um senso plástico sobre a pintura em questão. O resultado disso é que, três anos após ter sido tomado pelo envolvimento com aquela imagem, Delacroix exibia no Salão de 1822 A borco de Dante. Nessa obra, podemos perceber claramente que o artista aplicou o conhecimento plástico extraído de sua impressão sobre a pintura de Géricault. Isso não significa dizer que A borco de Dante é uma repetição de A bolso do medusa, mas sim um desdobramento lógico, resultante de uma interação cognitiva. Isso

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nos faz lembrar do método de Burnet - já citado -, quando se refere à importância de estudar as criações dos outros como meio para penetrar o caminho da invenção; do que, aliás, Delacroix, ao longo de sua vida artística, demonstra ter plena ciência. Em seu diário, deixou vários apontamentos sobre a obra de grandes mestres da arte.

Aqueles que vêem Ticiano simplesmente como o maior dos coloristas incidem em grave erro. Ele é isso, sem dúvida, mas, ao mesmo tempo, é o primeiro dos desenhistas (se compreendermos o desenho como aquele no qual a imaginação do artista desempenha um papel maior que o da imitação). 10

Meirelles, assim como Delacroix, esteve exposto aos mesmos níveis de significação plástica ao ter contato visual com a obra de Géricault. Ao debruçar-se sobre os estudos de A bolso do medusa, Meirelles teve a oportunidade de vivenciar, por meio de sua apreensão, um significado inerente à própria forma plástica em suas relações internas, possibilitando-lhe a descoberta intuitiva de seus princípios organizadores. Nesse sentido, aprofunda tal relação perceptiva ao executar uma cópia do original em dimensões pormenorizadas (3s, sxs l ,Sem), no ano de 1857. Com isso, Meire lles teve a oportunidade de captar, no decurso de seu exercício prático, todas as etapas de construção da obra, extraindo dessa experiência o caráter intrínseco contido naquela pintura. Assim como Delacroix, Meirelles absorve o conhecimento plástico introduzido por Géricault em sua criação , residi ndo aí o ponto de confluência de ambos. Isso nos leva a crer na existência de uma consciência artística presente na uadição pictórica, da qual Meirelles e Delacroix, assim como outros artistas, são um desdobramento possível.

Alexandre Un hares Guedes é bacharel em Desenho Industria l pela E!ico la de Belas Artes/ UFRJ, mestre em H istória e TeOria da Arte pelo Programa de Pós- G raduação em Artes ViSUãls/ lsco la de Belas Artes/UFRJ e professor de Desen ho Artístico na Esc.ola

de B las Artes/U FRJ. Este art igo é um fragmento d<: sua disser­taç~o de mest rado -A lógica visual no trabalho g(áiico de Rodolfo Amoedo & Henrique Bernardelií nas revistas Kosmos e

Renascença", o rie ntada pela ProP. DrI. Mana t...u, da Luz TavNa.

Notas

I Rosa, A P: Júnior, D. M.: Peixoto, E. R.: Souza , S. R. S. Victor Merelles de Uma - 1832-1903, Rio de Janeiro: Edições Pinakotheke, 198'2: 43.

2 N ,cola Consoni (18 14-1 884), pinto r Italiano, aluno de Minardi em Roma. Decorou a biblioteca do Vaticano. Duque, Gonzaga. (1888). A Arte Brasileira: introdução e notas de Tadeu Chiarelli. Campinas: Mercado das Letras, 1995: 170.

3 Rosa et 01 .. op. ciL: 3 1.

4 Duque, op. ciL: 170.

5 Idem ibidem.

6 John Bumet ( 1784 - 1868) publicou vários ensaios de 1827 a 18S2, entre eles, L Ar( de lo Peimure, como foi traduzido para o francês em 1835. "Na arte de compor ou inventar (criar), existem várias condições , como o equilíbrio e o balanço, a harmonia e a união entre as figuras e o fundo. O tema deve ser claramente exposto, recebendo um efei­to conveniente de luz e sombra. A relação, a oposição e as massas de sombra e luz loram objeto de estud o na obra de Burnet no que concerne aos efe itos desses aspectos com a composição. Os resultados proporcionados pela luz e sombra num quadro têm grande importânCia para Burnel. pois os claros e escuros são próprios para produ­zir diferentes resultados num quadro, mas o três principais são: relevo, harmonia e efeito. Os valores cambiantes da luz e sombra, a saber, lumiére, dernl-Iumiere, teime-moyen­ne, demi-obscure et obscure, são realçados pelo cr~ ico

inglês como aspectos importantes no desenvolvimento de uma compoSição . Além diSSO, o assunto deve ser suscetí­vel de uma combinação agradável de cores e, finalmente, o conjunto deve oferecer uma dispOSição de boa forma." Rosa et 01 .. op. cic : I 17-118.

7 Idem ibidem: 117.

8 Pool, Phoebe. Oelocroix, Rio de Janeiro: hJ Livro TécniCO: Londres: Hamlyn, 1987: 7.

9 Idem ibidem: 8,

10 Idem ibidem: 24.

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