Viviane de Andrade Sá
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Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil.
9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9
ARQUITETURA VIOLADA
Hipóteses projetuais através de práticas artísticas
Viviane de Andrade Sá 1
Resumo: As décadas de 60 / 70 representaram um período de profundas transformações nos
modos de operação da arte. Esse momento ficou marcado por uma interdisciplinaridade que
saltou dos textos teóricos para a prática por meio de intervenções plurais, nas quais se tornou
extremamente complexo distinguir a que categoria das tradicionais artes pertencia. De uma forma
geral, elas se libertavam de amarras da instituição e do mercado e almejavam ocupar o espaço
público da cidade. O momento político era também delicado: a sociedade representava um
padrão de comportamento imposto pelo capitalismo e dificilmente este estado tenderia a alguma
alteração não fosse através do choque. Desta forma, inúmeros artistas buscaram modificar sua
obra a fim de tornar visível para a sociedade a sua própria realidade.
Esse deslocamento do espaço da obra desloca também o lugar da crítica, que passa da instituição
para a arquitetura, assim como seu conteúdo, que é ampliado em textos, fotografias, projetos e
intervenções que ora questionam o modo de ação do arquiteto, ora transgridem o espaço por ele
projetado.
Artistas como Dan Graham e Gordon Matta-Clark mostraram-se lúcidos diante da realidade
americana daquele período ao produzirem um conjunto de obras críticas inseridas num limite
entre arte e arquitetura. Esse outro olhar para a arquitetura se transfigura em hipóteses possíveis
para compreensão e atuação no espaço urbano contemporâneo, e já são mecanismos de atuação
por parte de alguns arquitetos como Peter Eisenman e Bernard Tschumi
e, merecendo, portanto, uma investigação mais aprofundada. Palavras-Chave: Relação entre arte e arquitetura. Arte Contemporânea. Arquitetura
Contemporânea. Movimentos culturais. Sociedade de consumo.
Desinventar objetos. O pente, por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear. Até que
ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou
uma gravanha.
Manoel de Barros em O livro das igonorãnças
1. Introdução
Definir estratégias de atuação na construção ou transformação do espaço urbano hoje é
uma tarefa capaz de consumir demasiada energia, pois, evidentemente a cidade reúne uma
complexidade possível de ser tratada por distintas abordagens. Ironicamente, essa rede tão
complexa é quase sempre regida por um único mecanismo – o capital. E se esse sistema é
único, parece lógico que a estratégia para sua validação seja a de unificar seus atores para que
todos obedeçam a esta mesma ordem. Surge, aqui, o conceito da personalidade tipo, estratégia
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vinda da classe média que justificava sua existência através da criação de uma cultura que
glorificava a presença de um mundo individualizado, no qual o ideal produtivo, a eficiência
dos movimentos e de gestos, a fetichização e a existência estandardizada foram incorporados
como padrões de organização das cidades e funcionava como estrutura das relações e do
comportamento humano. Da mesma forma, a organização espacial das cidades segue,
obrigatoriamente, tais diretrizes e a arquitetura entrega à cidade um conjunto de formas
rígidas com a clara função de disciplinar comportamentos e desejos como forma de
manutenção desta estrutura.
O desenvolvimento econômico exerceu uma pressão crescente que conduziu a uma
concentração de usos, ao distanciamento do indivíduo da escala das intervenções urbanas e à
erosão da vida pública. Uma ilusão fabricada da participação do indivíduo na sociedade
marca, invariavelmente, seu afastamento das relações envolvidas com o seu habitar a cidade.
O capitalismo fez surgir a figura do consumidor-produtor que é, na realidade, uma
personalidade construída e única, que uniformizou as identidades, criou um padrão de
comportamento e afastou os indivíduos da convivência.
A personalidade flexível representa uma forma contemporânea de
governamentalidade, um padrão interno e cultural de coerção “suave” que se
relaciona diretamente com as condições de trabalho, com práticas burocráticas que
garantam a ordem e com regimes de fronteira e intervenções militares. (HOLMES,
Brian. “The Flexib le Personality: For a New Cultural Crit ique”, 2006)
O histórico do capitalismo evidencia que a mercadoria não se restringe mais a bens de
consumo básicos. O que ocorre atualmente é o fato dessa mercadoria assumir diversas formas
e, invariavelmente, expandir-se para a escala urbana, transformando, inclusive, o papel
político das cidades naquilo que se refere a conflitos ou lutas urbanas. Um pe ríodo de crise
capitalista2 é capaz de interromper os fluxos mundiais acarretando, portanto, mudanças
políticas e sociais. Essa nova face do capitalismo também transforma aquilo que dele se
diverge. Se no princípio o foco da luta anticapitalista era trabalhista, hoje ela se dilui em
diversos campos da sociedade, fenômeno descrito pelo geógrafo David Harvey como o
1 Arquiteta e urbanista pela Universidade de São Pau lo e aluna no Programa de Pós Graduação em Artes Visuais
da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. 2 Um exemplo são as mais recentes crises financeiras ocorridas nos EUA e na Europa.
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proletariado num campo expandido, cujas reivindicações abrangem questões econômicas,
políticas, sociais e culturais. Essa pluralidade de temas determina também um novo formato
de luta, que, normalmente, é pequena, dispersa e efêmera.
A pulverização destas lutas desmonta a principal teoria de luta anticapitalista – o
marxismo. Se para Marx a possibilidade de transformação só aconteceria por meio de uma
luta de classes, a dispersão das lutas faria desaparecer a possibilidade de transformação.
Entretanto, para o próprio Harvey essas reivindicações poderiam transformar ou mesmo
causar alguma instabilidade na ordem vigente, pois a menor escala não determinaria o caráter
da “revolução”, pelo contrário, é justamente pelo fato do cenário de conflito se deslocar3 para
o espaço urbano4 que novas possibilidades se abrem.
Espaço urbano é produto do conflito. De diversas e incomensuráveis maneiras. Em
primeiro lugar, há a ausência de uma fundação social inquestionável. O
desaparecimento dos produtores de certezas torna o conflito um aspecto
inextrincável e permanente de todo espaço social. Em segundo lugar, a imagem de
um espaço público sem d ivisões, construída pelo discurso do urbanismo conservador
é, ela própria, produzida por meio da div isão constituída pela criação de um exterior.
A percepção de um espaço como algo coeso não pode ser separada da noção daquilo
que o ameaça: aquilo que se procurará excluir. Por últ imo, o espaço urbano é
produzido por conflitos socioeconômicos específicos; que não devem ser
simplesmente aceitos, sem reserva ou com pesar, como a ev idência da
inevitabilidade do conflito, mas devem, pelo contrário, ser polit izados – abertos à
contestação como parte de relações sociais, e, portanto, passíveis de modificação, de
opressão social. (DEUTSCHE, Rosalyn. Evictions : Art and S patial Politics, The
MIT Press, 1998.)
Se o espaço social é, assim como afirmou Rosalyn Deutsche, produzido e
estruturado pelo conflito, então parece pertinente que uma ação que se almeje pública parta de
uma política espacial democrática. Esta parece ser a hipótese mais plausível para situar
arquitetura e arte dentro de um lugar verdadeiramente democrático no perfil da cidade
contemporânea, com a pretensão de formar pontos de resistência a toda visão única da cultura
para poder superar as fronteiras da linguagem, das disciplinas culturais, das identidades e de
seus valores.
3 Esse deslocamento se refere ao cenário de luta anticapitalista que não se restringe mais à estrutura isolada da
fábrica. Essa mudança ocorre pela própria expansão dos temas reiv indicados e em função da nova organizaç ão
empresarial fundamentada não mais no fluxo de mercadorias, mas no fluxo – abstrato – do capital. .
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2. A Contracultura
Posteriormente ao movimento moderno e paralelamente ao surgimento da arte
minimalista uma série de propostas artísticas surgia frente a um olhar crítico diante do atual
contexto das cidades. Tratava-se de uma resposta acerca deste senso comum, sobre a
tecnologia, o progresso, a estandardização de produtos e do comportamento humano e
principalmente sobre o histórico da arte e sobre os elementos estéticos em vigor. Embora
essas reivindicações sejam análogas às propostas pelos Minimalistas, por exemplo, essa
discussão concentra-se em um tipo de arte mais marginal, que não apenas interaja com o
espaço da cidade, mas que de alguma forma crie uma situação de estranhamento e
desconforto durante sua experiência.
A estratégia adotada contra a construção destes estereótipos era a de colocar o próprio
sujeito numa situação de redescoberta. A década de 60 marcou, sem dúvida, uma
transformação ao menos nos modos de operação das atividades artísticas. Inúmeros artistas
estavam certos de que uma transformação na sociedade só se faria possível através da própria
transformação da Arte. E o que se assistiu foram cisões com os modos tradicionais de criação
na literatura, música, artes plásticas e teatro. Essas teorias pragmáticas tinham, entre algumas
de suas origens, o teatro de Brecht, que por sua vez resgatou de Antonin Artaud, em seu
Teatro da Crueldade, a ideia de transformação das relações entre artista e público com ê nfase
na experiência corpórea e no espírito desconfortável e constrangedor, como tentativa de
diminuir a distância entre ambos.
Nós os convidamos a caminhar conosco
e a conosco transformar não somente uma das leis da terra,
mas a lei fundamental.
Quando vocês tiverem melhorado o mundo, melhorem este mundo
melhorado!
Abandonem este mundo!
Quando, completando a obra, vocês tiverem transformado a
humanidade,
transformem esta humanidade transformada.
Desapeguem-se dela!
E t ransformando o mundo e a humanidade,
transformai-vos.
Saibam abandonar a si mes mos!
(Bertolt Brecht, “Peça Didática de Baden-Baden”, 1929)
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As obras deste contexto possuem uma predileção por elementos visíveis e efêmeros
como tentativa de desconstrução da visão do mundo capitalista. E exatamente por isso, há
uma aproximação da vida com a própria arte - live art - como numa espécie de resgate de um
ritual artístico que tenta tirar a arte dos “lugares mortos” como os museus, as galerias e os
teatros tradicionais, bem como, dotar a obra de elementos cotidianos triviais.
A contracultura e o movimento hippie dos anos 60 possibilitaram uma profusão de
experimentações cênicas como forma de colocar em prática aquelas propostas humanísticas
do período. Surge a figura - e pela primeira vez o termo - performer, um tipo de artista que
terá seu corpo como seu principal instrumento. Na realidade, a intenção era um certo tipo de
dissolução da figura do artista no contexto da obra, uma espécie de não-arte, uma atitude mais
espontânea e mais próxima da vida. Esses artistas acreditavam que era a própria sociedade
que naquele momento estava imersa numa vida coreografada e maquinal ditada pelo
capitalismo, e era urgente libertá- los dessas amarras através do resgate da não
intencionalidade, da obra aberta e, portanto, incerta.
Essa ruptura teve reflexos nos mais tradicionais campos da arte. Na música, Satie,
Stockhausen e John Cage introduziram o silêncio e o ruído como elementos de composição da
obra, bem como, a possibilidade do aleatório e de uma arte não intencional. Na literatura,
Ulisses, de James Joyce narrou a epopéia de um cidadão comum e o escritor Vito Acconci
transgrediu a forma tradicional ao transpor da página para o próprio corpo como suporte de
“leitura” de seu poema. No teatro os happenings levaram a ideia do improviso ao extremo ao
propor peças, cujos textos estavam “abertos”, obrigando uma interferência maior por parte do
ator e consequentemente do público na obra. Além de encenarem fora do circuito das
instituições, os atores destas peças eram, muitas vezes, propositalmente amadores
dispensando, portanto, a figura do artista profissional.
Embora as referências de práticas nesse período tenha sido extensas, este artigo
analisará apenas parte da trajetória de dois artistas, Dan Graham e Gordon Matta-Clark, em
virtude da proximidade de ambos com a arquitetura. Além disso, a experimentação destes
fornecem hipóteses para o exercício de projeto no ambiente urbano atual, como prova a
experiência de dois arquitetos contemporâneos, Peter Eisenman e Bernard Tschumi.
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2.1 Vida e arte
Meu corpo, de fato, está sempre em outro lugar, está ligado a todas as outras partes
do mundo e para dizer a verdade está em outra parte que é o além-mundo. Pois é em
torno dele que as coisas se organizam [...]. O corpo está no centro do mundo, ali
onde os caminhos e os espaços se cruzam, o corpo não está em parte alguma: o
coração do mundo é esse pequeno núcleo utópico a partir do qual sonho, falo, me
expresso, imagino, percebo as coisas em seu lugar e também as nego através do
poder indefinido das utopias que imagino [...]ele não tem lugar, porém, é de lá que
se irradiam todos os lugares possíveis. (FOUCAULT, Michel . “El cuerpo utópico.
Las heterotopías” . Buenos Aires: Nueva Visión, 2009, tradução nossa).
A diluição do artista na obra faz emergir o sujeito que passa de mero espectador para
participante da obra. Essa trajetória da conduta do espectador representou o cerne para as
performances do artista nova- iorquino Dan Graham (1942 - ) nos anos 70. O artista planejou
aglutinar na mesma pessoa a figura do espectador passivo e do artista ativo - performer. Faz
uso, para isso, de influências brechtianas, ao colocar o público num lugar de desconforto.
No ano de 1970 Graham realiza algumas obras nas quais é recorrente o uso do vídeo
como suporte que cumpre uma função simbólica de espelho na interação do corpo com espaço
e tempo. Destas, três obras são fundamentais para a compreensão do contexto de seu trabalho
e principalmente para situar os rumos que o artista tomaria em futuras experimentações. A
primeira delas Roll era uma exibição simultânea de imagens captadas por duas câmeras, uma
estava fixa em uma sala e filmava a performance do artista que rolava no chão com uma
segunda câmera à mão. A segunda obra, Body Press (1970-1972) foi outra performance
gravada novamente sob efeito de duplicidade. Trata-se da presença de dois corpos, um
masculino e outro feminino, dentro de um espaço circular espelhado. Cada um possui uma
câmera que registra os movimentos e a presença do outro através de sua reflexão no espelho,
que em todo momento está representado por uma imgem deformada da realidade. Apesar da
proximidade, os dois nunca se tocam ou se olham, estão exclusivamente em posições
invertidas um para o outro. O espectador da obra visualiza estas duas imagens
simultaneamente ao momento em que elas são criadas, portanto, num plano único e sem
cortes.
A mais complexa destas, TV Camera/Monitor Performance esboça uma participação
mais efetiva do público que é colocado em cadeiras diante do artista sobre uma mesa com
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uma câmera na mão, semelhante a Roll, mas com uma proximidade maior com o espectador
que visualiza sua imagem em tempo real sem ser mediado por um objeto. Entretanto, no
decorrer da performance, o artista manipula o tempo instantâneo ao gravar o próprio público
através de sua câmera que transmite imediatamente aquele filme para monitor posicionado
atrás daquelas cadeiras. A situação colocada pelo artista obriga o público a escolher entre ser
o espectador do artista ou de si mesmo, já que mais uma vez o monitor surge como uma
metáfora do espelho.
As três obras representam uma transformação na forma de apresentar uma performance.
De fato, introduzir câmeras e monitores modificam a percepção daquilo que inicialmente era
puramente uma interação entre o corpo do artista vs. espectador. De alguma forma essa
simplicidade de elementos abria margem para o surgimento de questões e embates que
inicialmente não estavam dispostos ali. Questões da ordem do tempo e espaço, história e
memória, por exemplo, instigam para distintas interpretações.
Em texto escrito posteriormente a estas obras, Cinema e Vídeo: Vídeo como Tempo
Presente, parte integrante de Essay on Vídeo, Architecture and Television5, de 1979, o artista
faz uma analogia entre cinema e a performance televisionada que considera tratar de um
tempo presente. Para ele o filme é uma reapresentação editada de outra realidade, para a
contemplação individual por pessoas sem relação, enquanto o vídeo representa uma
temporalidade imediata e real que coloca um espectador numa condição ativa e capaz de ser
alimentado por elementos do ambiente.
Em A imagem do Espelho | A imagem do Vídeo, integrante do mesmo ensaio, o artista
compara os dois suportes evidenciando que, no caso do vídeo, esse tempo pode ser
instantâneo ou sofrer interferências relativas à condição espacial do espectador, mas em
qualquer dos casos terá uma duração. Por outro lado, o espelho reflete um tempo instantâneo
sem duração.
A crítica Rosalind Krauss agrupou algumas obras da videoarte, essencialmente aquelas
em que o artista é o próprio objeto do trabalho, no propósito de relacionar as principais
divergências destas para as demais obras de arte “convencionais”. Para a autora o ponto
5 A análise completa deste ensaio em: SANTOS, F. L. S. ; ALMEIDA, R. G. . Dan Graham: Olhar/ corpo,
vidro/ espaço, percepção, cotidiano e cidade.. In: VI Encontro de História da Arte, 2010, Campinas. Anais do VI
Encontro de História da Arte - História da Arte e suas fronteiras, 2010, 2010.
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fundamental de crítica é um inerente narcisismo que se tornou recorrente em algumas obras
do período da década de 60 e início de 70.
Em “Vídeo: a estética do narcisismo”, texto escrito em 1976, Krauss elege a obra
Centers (1971) de Vito Acconci como primeiro indício de sua hipótese: o artista utiliza o
vídeo como uma metáfora representativa de um espelho. O trabalho se caracteriza por uma
performance com duração de 20 minutos em que o artista indica com seu próprio dedo o
monitor do vídeo cuja imagem exibida é a do próprio artista, simultânea ao ato. O que a
autora considera uma quebra é o fato de não haver algum tipo de diferenciação entre o
medium6 e o artista. Ao analisar uma obra de arte convencional, seja ela pintura ou escultura,
por exemplo, essa distinção entre medium e artista é muito mais clara, pois envolve conceitos
técnicos práticos: a tela, a tinta, os materiais empregados para a criação de uma obra que terá
como elementos mais subjetivos a interpretação e decodificação por parte de quem a
observará num momento futuro.
Ainda seria preciso confrontar uma performance em si com uma performance
“televisionada”: ao pensar nos elementos que constituem as duas, a ausência de um suporte na
performance transforma o corpo do artista no próprio objeto, abrindo inúmeras possibilidades
de leitura da obra; na outra ponta estaria a performance com a presença do vídeo. Para Krauss
era como se ao lançar mão dessa ferramenta o artista estivesse fechando a obra ao invés de
abri- la às possibilidades de leitura. Nasce daí a analogia do artista à Narciso e do vídeo ao
espelho e o confronto da obra passa a ser interno e pessoal.
No caso de obras com imagens gravadas, o corpo do próprio artista foi o mais
frequente. No caso das videoinstalações, foi mais usado o corpo do espectador
participante. Não importa que corpo tenha sido selecionado para a ocasião, há outra
circunstância que está sempre presente. Diferente das outras artes visuais, o vídeo é
capaz de gravar e transmitir ao mes mo tempo, produzindo imediato feedback .
Portanto, é como se o corpo estivesse centralizado entre duas máquinas, que abrem e
fecham parênteses. A primeira delas é a câmera; a segunda, o monitor, que reprojeta
a imagem do performer com imediatis mo de espelho. (KRAUSS, Rosalind. Video:
The aesthetics of narcissism. New York, Springer, 1976, p.146)
Embora este não seja um espaço para um aprofundamento nas teorias psicanalíticas,
ainda assim, seria pertinente citar a analogia proposta por Krauss ao comparar o artista com o
6 A autora opta pela utilização do termo orig inal no latim.
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Narciso de Lacan, pois para a psicanálise a auto-reflexão só se inicia quando o sujeito se
liberta desta imagem retida no seu próprio “espelho”. Na videoarte, mesmo que de maneira
distinta, esse aprisionamento pode acontecer de duas formas: a primeira causada pela não
separação entre sujeito e objeto, enquanto a segunda seria uma suspensão da temporalidade.
Para Krauss isso colocaria o espectador de videoarte no espaço suspenso do narcisismo.
Para o artista Dan Graham “os espelhos refletem o tempo instantâneo sem duração (…)
enquanto os vídeos fazem exatamente o contrário, ligando ambos numa espécie de fluxo
duracional do tempo”7 que muitas vezes pode representar uma armadilha para a própria
compreensão da obra segundo alerta o autor Renato Cohen.
A prisão à míd ia, ao suporte, ao mero referencial leva à exacerbação de corpos sem
alma, estátuas sem vida: a ideia de separação / fragmentação é associada às teorias
econômicas do século XX que compartimentalizam o homem e m especialização e
limites dos quais ele não pode escapar. E os artistas caem nessa armadilha.
Caminhamos para uma arte total, para uma transmídia, para a eliminação de
suportes que impedem ou que se tornem mais importantes que a própria transmissão
da mensagem artística. (COHEN, Renato. “Performance como Linguagem”. São
Paulo, Perspectiva, 1989, p. 163)
Essa armadilha da utilização do vídeo como suporte não foi negligenciada pelo artista,
capaz de perceber que o fracasso tinha uma relação muito mais próxima com o entorno da
obra do que com a ferramenta em si. Se a estratégia era a reflexão do sujeito, era fundamental
que seu meio estivesse também visível. Essa aproximação com o espaço da cidade
invariavelmente o aproximou da arquitetura.
2.2 Arte e cidade
No texto Art in relation to architecture, também de 1979, Graham traça novamente um
paralelo de seus pensamentos com relação ao espaço da cidade. Nele, desenvolve uma série
de críticas mais diretas ao contexto político e econômico americano e demonstra um profundo
domínio sobre a disciplina arquitetônica ao enumerar uma série de julgamentos à arquitetura
moderna. Para ele, os instrumentos de validação da arquitetura moderna agiam dialeticamente
sobre a mesma: ao mesmo tempo em que a emancipa – construtivamente – também contribui
7 GOLDBERG, Roselee. “Performance Art”. Madrid, Destino, 1979, p. 152
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para a própria validação do capitalismo. Aquela negação aos estilos históricos representa um
rompimento com a própria história, dotando a arquitetura de um purismo formal e temporal.
Nos EUA, o Estilo Internacional disseminou e propiciou a sua prática através do ensino nas
escolas de arquitetura enquanto que o capitalismo americano o absorveu ideologicamente.
Essa racionalidade objetiva, neutra e desenraizada condiz exatamente com o capitalismo de
exportação americano.
Esse limiar tão tênue entre a revolução e a validação do poder capitalista também fez
parte do universo artístico minimalista – de maneira semelhante à arquitetura moderna –
assim como da Pop Art. Esta última, entretanto, se diferencia ao emergir dos mesmos
elementos da instituição que critica. Essa semelhança é a responsável pela incorporação da
pop art pela própria mídia. Obviamente essa duplicidade ora é entendida como crítica, ora é
absorvida como produto, sem que haja algum tipo de reflexão, mas ainda assim, atinge de
forma muito mais precisa o alvo de sua crítica. Um paralelo com a arquitetura poderia ser
apontado pelos trabalhos de Robert Venturi que analogamente constrói suas obras através dos
excessos americanos. Seus projetos são marcados tanto por uma ironia à arquitetura moderna
com suas formas “limpas”, quanto por uma ironia à própria sociedade americana. Em seu
discurso revela ser impossível retratar a realidade em uma obra de arquitetura 8 como forma de
contestação e acredita que esta somente possa se feita por meio da contradição.9
O desafio do trabalho da arte ou de arquitetura não é a resolução de conflitos sociais
e ideológicos em uma bela obra de arte, e também não é a construção de um novo
contracontexto; em vez disso, o trabalho de arte dirige sua atenção para conexões
com d iversas representações ideológicas - revelando a variedade conflituosa das
interpretações ideológicas. Para fazer isso, o trabalho usa uma forma híbrida, que
participa tanto do código popular dos meios de comunicação de massa quanto do
código “elevado” da arte e da arquitetura, tanto do código popular do entretenimento
quanto da análise política da forma com base teórica, e tanto do código da informação quanto do código esteticamente formal. (GRAHAM, Dan. A Arte em
relação à arquitetura. In Escrito de artistas: anos 60 / 70 . Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2006, p. 450)
Retomando um pouco aquelas discussões sobre a intenção que colocam a
sociedade/público diante de sua própria realidade, novamente aquela metáfora da obra de arte
como espelho - que escancara a contradição e o conflito -, reaparece na trajetória de
8 Crit ica direta ao slogan “less is more” do arquiteto moderno Mies Van der Rohe
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experimentações de Graham. O grande salto acontece justamente num momento em que suas
experimentações extrapolam o espaço da galeria e do museu e invade e se define no espaço da
cidade. É interessante notar que boa parte dos conceitos aplicados naquelas experimentações
com vídeos são utilizados em outras obras, nas quais, entretanto, a participação do espectador
sofre uma transformação capaz de deslocá- lo de sua posição passiva. Embora fisicamente
compostos de elementos simplificados, suas obras se adensam na medida em que o corpo
“refletido” não é tão somente o corpo do artista dentro de sua própria natureza, mas o corpo
em sentido mais amplo que envolve um sem número de elementos e conflitos presentes na
cidade. Metaforicamente era como se ao sair do ambiente privado – do próprio corpo ou da
galeria – a obra se aproximasse a uma esfera que é, de fato, pública.
Essa invasão do espaço social da cidade englobou inúmeras obras, inclusive em
períodos mais recentes da arte. O autor José Miguel Cortés agrupa de forma precisa três obras
que resumem os fundamentos que tornariam esse conjunto de obras como mais próximas do
universo urbano contemporâneo.
A primeira delas é uma série de fotografias feitas na cidade de Nova Jersey em 1966,
que simulam muito bem o programa típico de uma obra minimalista. Entretanto, as imagens
captadas pelo artista representam uma profunda crítica ao formalismo defendido e praticado
pela arquitetura moderna daquele período nos EUA. Ao invés de mostrar as imagens de uma
paisagem vazia,10 suas imagens eram carregadas de cenas do improviso humano numa área
tipicamente suburbana.
O segundo trabalho se refere a uma série de intervenções realidades num ambiente
institucional de uma revista. Destas, a Homes for America, publicada em Arts Magazine de
dezembro de 1966 a janeiro de 1967 é a mais importante. Nesse período, uma série de
fotografias de subúrbios foi publicada de forma a novamente criar um olhar crítico por parte
de seus leitores. O que diferencia esta obra da anterior é que estas fotos vinham
acompanhadas por textos escritos pelo artista, portanto, interferindo e modificando a leitura
da imagem disposta. O conteúdo representava, novamente, uma crítica ao modernismo, à
racionalização e à estandardização das construções.
9 Referente ao livro Complexidade e Contradição escrito pelo arqu iteto em 1966.
10 Novamente uma crítica à arquitetura moderna e a escultura minimalista que forçavam cenários puros e libertos
de referências.
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A terceira análise, apesar de representar apenas um modelo é a que mais precisamente
interfere e critica o contexto americano. Alteration to a Suburban House, de 1978 era uma
casa tipicamente miesiana11, na qual o artista insere um espelho em seu eixo interno. Quem a
observasse em sua face externa estaria, metaforicamente, dentro da mesma. Ironia e analogia
à arquitetura moderna e à forma como o próprio sistema capitalista controla e manipula sua
sociedade.
A estratégia de tornar visível o interior da casa12 transformou-se em prática na obra do
artista americano Gordon Matta-Clark (1943-1978), cujo objetivo principal era o de
escancarar as estruturas mais íntimas da arquitetura, através da subversão e transgressão da
linguagem tradicional. O artista tem como matéria casas e estruturas de edifícios abandonados
ou inutilizados, para ele, os signos presentes em edifícios íntegros eram inferiores aos
existentes naqueles edifícios decadentes. Matta-Clark, filho de um pintor surrealista, formou-
se em arquitetura sem, entretanto, nunca exercer sua profissão da maneira tradicional. Sua
breve atuação deixa um conjunto de obras reflexivas sobre o papel da arquitetura na
construção dos espaços urbanos – físicos ou simbólicos.
Na intervenção Spliting (1974) Clark partiu ao meio uma residência comum de subúrbio
Nova Jersey. O corte da casa veio acompanhado de uma alteração na base da estrutura que fez
com que as partes ganhassem uma inclinação de cinco graus em sua cobertura garantindo a
entrada de luz por essa fresta. São gestos desconstrutivos que imprimem na arquitetura uma
questão dialética, que é a criação a partir da ruína. Estes gestos agressivos destruía consigo o
conceito tradicional da casa, que sempre esteve ligado ao conforto, intimidade, refúgio e
segurança. Através de sua ótica a casa adquire uma imagem de fragilidade e vulnerabilidade,
uma espécie de anti-monumento que retrata a debilidade da própria sociedade.
Com semelhantes argumentos realizou em Paris a Conical Intersect (1975), uma série
de rasgos circulares feitos em edifícios que seriam demolidos por ocasião da construção do
Centro Georges Pompidou. As aberturas funcionavam metaforicamente como olhos diante do
arrasamento do centro histórico da cidade em função da nova construção. Esse pan-ótico era
uma espécie de denúncia da especulação que acontecia no centro da cidade.
11
Refere-se ao “estilo” de arquitetura defendida pelo arquiteto Mies Van de Rohe e era caracterizada por
imensos planos de vidro nas fachadas e quase não havia segmentação de ambientes internos: planta l ivre. 12
A visibilidade desse interior não se limitava às formas físicas ou construtivas, a intenção era claramente
evidenciar as contradições políticas ou sociais presentes nas cidades americanas daquele período.
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A ação de evidenciar, desfazer ou desconstruir distintos edifícios refletia uma resposta
contra as convenções da prática arquitetônica profissional, por isso, o ato de destruir no lugar
de construir equivale a uma inversão da doutrina arquitetônica funcional. Essas intervenções
contém em si uma demasiada carga política capaz de penetrar além da superficialidade
doméstica a fim de escancarar a lógica burguesa presente em sua estrutura. Em todas elas, há
um minucioso controle do artista para não arruinar com o edifício. São feitas cisões no limite
de um quase desmoronamento, atitude que desmonta a crença de que a obra de arquitetura
seja construída para a eternidade.
As transformações que operava na arquitetura poderiam ser lidas simbolicamente como
possibilidades de modificação da estrutura e de comportamentos sociais. Em Office Baroque
(1977) criou uma série de rasgos nas lajes em diferentes níveis de um edifício comercial.
Convidava desta forma, para uma crítica mais interiorizada na qual, o visitante era chamado
para uma reflexão acerca da organização econômica da sociedade. O fato de trabalhar com
uma estrutura já construída demonstra seu interesse em tratar a arquitetura menos pelo projeto
e formas, e muito mais por sua função social. Desta forma, derrubou diversos sistemas de
representação urbano e social, desmanchando e superando as fronteiras que estratificam e
organizam os espaços e o tempo. A ideia era a de transformar a condição estática e pura da
arquitetura moderna a fim de romper com os limites da ordem doméstica e urbana,
potencializando uma inversão da doutrina arquitetônica funcional.
3. Cidade e arquitetura
O passado demonstra que houve a procura por uma arquitetura que negasse a forma fixa
e rígida em favor de uma obra em contínua metamorfose e que fosse capaz de se relacionar
com as dimensões políticas e culturais da cidade. Entre as inúmeras vertentes daí surgidas,
uma delas se caracterizou pelo resgate aos estilos históricos e, obviamente, isso não
representaria apenas um retorno ao passado, mas significava uma critica muito mais irônica
daquela negação moderna à memória. Arquitetos como Robert Venturi e Aldo Rossi
incorporaram esse conceito ao extremo propondo obras de conteúdo quase absurdo. Aquela
ausência anterior é substituída por um excesso de signos e imagens de elementos históricos
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representados de maneira estilizada. A ironia recai justamente nas técnicas construtivas que se
utilizavam da tecnologia para representar uma forma do passado, que aqui eram reproduzidas
de maneira muito mais simplificadas, pois o que interessava, de fato, era um resgate da
memória apenas e não uma espécie de volta ao passado.
Em duas obras pós-modernas, Duck e em o Teatro del Mondo – de Venturi e Rossi,
respectivamente – fica evidente a perseguição pelos símbolos na arquitetura entendendo que
um signo deslocado de seu contexto original pode assumir outros significados e
interpretações. Julio Plaza identifica isso como um fenômeno de “contiguidade por
referência”, onde há o deslocamento espaço-temporal do signo. Venturi em seu discurso
revela ser impossível retratar a realidade em uma obra de arquitetura 13 como forma de
transformação e acredita que esta somente pode ser conquistada por meio da contradição 14.
Ainda no final da década de 70 surgia uma corrente de pensamento filosófica que
também buscava um rompimento com a arquitetura moderna, mas que, também nascia em
oposição aos pós-modernistas. Tratava-se do pós-estruturalismo, que consistia num conjunto
de ideologias pautadas na desconstrução da linguagem. Para eles, a realidade é uma
construção social e, portanto, subjetiva, e exatamente por isso, precisa ser analisada de forma
mais ampla e aberta para que haja espaço para seus elementos simbólicos.
O pós-estruturalismo rejeita qualquer tipo de sistematização, nele, um fato pode ter
inúmeras verdades. Na realidade, esse conceito de verdade não excluiria a possibilidade de
uma verdade única; a rejeição se faz sobre as verdades absolutas ou os conceitos universais.
Exatamente por isso há uma radicalização do conceito de sujeito do humanismo e da filosofia
da consciência e desta forma, o sujeito passa a ser uma ficção, uma invenção social e
histórica.
A criação liv re de significado, arbitrária e eterna da artificialidade, deve ser
distinguida daquilo que Baudrillard chamou de “simulação": não se trata de uma
tentativa de apagar a distinção clássica entre realidade e representação -portanto
fazendo, mais uma vez, da arquitetura uma série de convenções simuladoras do real;
antes, trata-se de fazê-la apresentar-se mais como uma dissimulação. Enquanto a
simulação tenta obliterar a diferença entre o real e o imaginário, a dissimulação
deixa intocada a diferença entre realidade e ilusão. A relação entre a dissimulação e
a realidade é semelhante à significação corporificada no disfarce: o signo no qual se
supõe não ser o que é - ou seja, um signo que parece não significar nada além de si
mes mo (o signo de um signo, ou a negação do que se encontra atrás dele). Tal
dissimulação, em arquitetura, pode ser intitulada provisoriamente de não -clássico.
13
Crit ica direta ao slogan “less is more” do arquiteto moderno Mies Van der Rohe 14
Referente ao livro Complexidade e Contradição escrito pelo arqu iteto em 1966.
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Da mes ma forma que a dissimulação não é o inverso, o negativo ou o oposto da
simulação, uma arquitetura "não-clássica" não é o inverso, o negativo ou o oposto da arquitetura clássica. (EISENMAN, Peter “The End of the Classical: the End of the
End, the End of the Beginning”. Perspecta: the Yale Architectural Journal, 1984)
Esses conceitos foram incorporados na produção de algumas obras de arquitetura a
partir da década de 80. O destaque acontece principalmente em obras do arquiteto Peter
Eisenman e Bernard Tschumi, graças à efetiva participação em discussões pós-estruturalistas,
pela produção teórica e crítica sobre o contexto contemporâneo - e o passado moderno - e
evidentemente por sua bem sucedida transfiguração da teoria em atividades práticas.
O que está sendo proposto é uma expansão além das limitações apresentadas pelo
modelo clássico para a realização de arquitetura como um d iscurso independente,
liv re de valores externos – clássicos ou quaisquer outros; ou seja, a interseção do
sem-significado, do arb itrário e do atemporal no artificial. (EISENMAN, Peter “The
End of the Classical: the End of the End, the End of the Beginning” . Perspecta:
the Yale Arch itectural Journal, 1984)
Para Tschumi a arquitetura estava livre dessa sua “obrigação” histórica de responder
pela utilidade, pela ordem e pelo funcionalismo. Segundo ele, todas essas ordens estavam
regidas pelo capital e não pela arquitetura, colocando-as, desta forma, numa condição de
inutilidade, de desnecessidade. Ao situar a arquitetura nessa condição, criou-se uma
aproximação dela com a arte, colocando-a num sistema aberto, pois para a arte, embora
existam inúmeros fatores para sua existência, é praticamente impossível encaixá- la dentro de
conceito universal de função, mesmo porque a definição sobre a função da arte envolve
conceitos e opiniões muito mais abstratas, especialmente em seu contexto contemporâneo.
A arte, hoje, não pode mais ser pensada em termos diacrônicos, pois a própria
velocidade de mudança acabou mudando até as formas de produção. O que vemos
agora não é mais uma sucessão de “ismos”, escolas ou tendências como há bem
pouco tempo, mas uma intervenção sincrônica de eventos artísticos e a-artísticos que
explodem precisamente com a ideia linear de tempo, tida tanto pela tradição como
pela vanguarda. Pode-se pensar a arte contemporânea como uma formidável
bricolagem (passada, recente e presente) em contradição não antagônica. (PLAZA,
Julio. Mail Art: arte em sincronia. In Escrito de artistas: anos 60 / 70. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 452)
A transformação da realidade, do contexto urbano moderno para o contexto
contemporâneo é a principal causa para a transformação nos moldes da própria arquitetura. As
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obras emergidas daqui fogem completamente daquela geometria cartesiana, incorporam uma
certa “confusão” formal, instabilidade e violência, que são características que habitam a
própria cidade. Para Eisenman é a nova realidade urbana que obriga às novas formas de
operar a arquitetura. Segundo ele o mundo é regido pelo paradigma eletrônico e isso desafia a
arquitetura em termos de mídia e estímulo, já que ele prioriza a aparência em detrimento da
existência. A mídia criou ambiguidades que não devem ser ignoradas pela arquitetura que,
fundamentalmente, ainda se mantém dominada pela mecânica da visão, especialmente a da
perspectiva.
As concepções de Eisenman tem a intenção de mudar a relação entre corpo e obra e
para isso é necessário transformar também a relação entre projeto e espaço real. Desta forma
ele cria uma série de transgressões à forma dobrando planos, desfazendo retas ou qualquer
outro elemento tradicional da arquitetura. Segundo ele a possibilidade de transformar a forma
como as pessoas enxergavam a obras seria somente através da mudança delas próprias. Se o
“usuário” tentasse decodificar a obra através de seu repertório formal convencional ele estaria
fadado ao fracasso pois a concepção da obra agrega valores até então ignorados por ele. E
essa dificuldade na “leitura” o obriga a se desvencilhar das regras impostas pelo sistema –
capital, político e midiático. Essas formas complexas também deslocam sua percepção para
além da visão, a noção de perspectiva é quebrada e muitas vezes não é possível captar uma
imagem síntese da obra, exigindo-se uma percepção muito mais abstrata. E por fim, a
ausência do caráter funcional retira a pré-leitura da obra; a ida ao museu, à escola, ao hospital
estabelece no imaginário pessoal uma série de regras de comportamento e uso do espaço que
se transfiguram em ações muitas vezes mecânicas por parte de quem o utiliza. Ao desutilizar
um espaço essas ações passam a não ser mais tão óbvias, exigindo, novamente, uma nova
postura pessoal.
Os descosntrutivistas acreditam que a arquitetura não deve ser concebida como uma
espécie de texto para ser “lido”, pelo contrário, trata-se de torná- la menos comunicativa,
confundindo signos ao limite de não se poder mais diferenciar a composição básica de um
edifício. É uma espécie de arquitetura caótica onde os materiais e formas são improváveis,
análoga a uma pintura de deixa de ser figurativa para tornar-se abstrata. Em termos piercianos
é a possibilidade de percepção sem referência ao objeto, e isso é possível graças à capacidade
de auto-representatividade do signo. Nesse sentido, há uma certa proximidade de valores entre
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modernos e os desconstrutivistas, nos dois casos, a transformação seria a de dotar a
arquitetura de uma certa autonomia. O que as diferencia é o seu conteúdo que no moderno se
esvazia e no descostrutivista vaza. Nos dois casos, novamente, há uma crença de que a carga
simbólica do edifício não deve ser buscada no passado, na memória, pois ela faz parte do
contexto atual, do momento presente.
O momento presente é caótico, não em sentido qualitativo, não se trata de tecer
julgamentos sobre o contexto atual, mas é caótico pelos excessos de conteúdo e pela
velocidade de transformação deles próprios. E é exatamente por isso que a arquitetura não
pode se limitar a responder programas ou a simplesmente exercer o seu papel funcional. As
cidades continuam tendo suas necessidades – morar, deslocar, trabalhar, descansar – e o
arquiteto continua respondendo por elas. Entretanto, nessa mesma cidade emergem novas
categorias de interação que se transformam diariamente e parece claro que o manejo deste
contexto não poderá continuar sendo feito seguindo regras tradicionais.
Os fragmentos da arquitetura (pedaços de parede, de salas, de ruas, de ideias) são
tudo o que realmente vemos. Esses fragmentos são como inícios sem fim. Há
sempre uma cisão entre fragmentos reais e fragmentos virtuais, entre memória e
fantasia. Essas cisões não têm nenhuma outra razão de ser senão a de passagem de
um fragmento para outro. São mais dispositivos de transmissão do que sinais. São
rastros, coisas intermediárias. (NESBITT, Kate(org.). Uma nova agenda para a
arquitetura: antologia teórica (1965 – 1995). São Paulo, Cosac Naify, 2006, p.
583).
Assim, o método de projeto se desloca da postura tradicional de simples manejo
descritivo da forma e passa a incorporar o lugar filosófico pós-estruturalista que considera o
espaço um lugar de leitura. Para Tschumi o espaço se constitui através da escrita e o arquiteto
está imerso nela e precisa, por isso, abrir caminhos através da escritura. O contexto atual
sugere que essa escritura seja uma espécie de labirinto, não havendo, portanto, início nem fim,
mas um constante movimento de transformações. O confronto tempo e espaço não faz mais
sentido hoje, pois se vive num espaço da escritura e o ato de escrever é a nova forma de vida.
Seu projeto para o Parc de La Villette se transfigura como a transcrição dos conceitos
defendidos por Derrida15. Aqueles objetos dispostos no parque são escrituras caóticas,
desprovidas de função, início ou final. São labirintos por onde, como eventos, se movem os
15
Filósofo pós-estruturalista.
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corpos e segundo o próprio arquiteto, é através desse movimento que são produzidos espaços,
“é a intromissão dos eventos nos espaços arquitetônicos”.16 Esses eventos transformam-se em
cenários esvaziados de questões morais ou funcionais17, mas são, entretanto, inseparáveis do
contexto no qual se inseriu.
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Anais do VI Encontro de História da Arte - História da Arte e suas fronteiras, 2010, 2010.
16
TSCHUMI, Bernard. The Pleasure of Architecture. Architectural Design, 1977 17
Essa noção de uso do espaço também é quebrada, pois a forma não incorpora qualquer tipo de uso ou função
pré-determinada.
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Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil.
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