Você está adquirindo um livro de produção independente. Toda … · 2014-07-30 · Você está...

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1 Você está adquirindo um livro de produção independente. Toda propaganda, ilustração e despesas foram responsabilidade do escritor. Então, muito obrigado. Saiba que está contribuindo para a realização de um sonho. Apenas peço que, se gostar da história que lerá nas próximas páginas, compartilhe essa ideia; não deixe que um grande mundo fique preso a uma pequena garrafa. Mais uma vez, obrigado e uma boa leitura. L. S. Bertolino

Transcript of Você está adquirindo um livro de produção independente. Toda … · 2014-07-30 · Você está...

1

Você está adquirindo um livro de produção independente. Toda propaganda,

ilustração e despesas foram responsabilidade do escritor. Então, muito obrigado.

Saiba que está contribuindo para a realização de um sonho.

Apenas peço que, se gostar da história que lerá nas próximas páginas,

compartilhe essa ideia; não deixe que um grande mundo fique preso a uma

pequena garrafa.

Mais uma vez, obrigado e uma boa leitura.

L. S. Bertolino

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Título

A LENDA DE ARION

Asaari

Todos os direitos reservados; nenhuma parte desta publicação pode

ser transmitida ou reproduzida por meio eletrônico, mecânico, fotocópia,

ou de outra forma sem a prévia autorização do autor.

Publicado no Brasil em 2014

pela Perse edt.

Copyright © 2014 Lucas Bertolino

O direito moral do autor foi assegurado.

“A LENDA DE ARION, nomes e indícios

correlatos estão protegidos pelo copyright, © 2014”

Arte da capa

L. S. BERTOLINO

Revisão

CLÁUDIA ECHTERNACHT

L. S. BERTOLINO

SAMUEL BERTOLINO

WESLEY FARIA

Diagramação e Ilustrações

HILRELI ALVES

L. S. BERTOLINO

Publicação

PERSE EDT.

BERTOLINO, Lucas S., 1991 –

A lenda de Arion: Asaari / L. S. Bertolino – São Paulo:

Perse, 2014

1. Literatura jovem-adulto

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Para Renilza e Marcelo,

avós de Arion.

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Agradeço a você, leitor, que aguardou

mais de três anos por essa continuação.

Se esse livro existe é porque você

fez, de algum modo, que eu continuasse escrevendo.

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A mulher cobriu o rosto com o capuz e deixou a floresta. Ela caminhava tentando não fazer barulho com seus sapatos, mas estava

certa de que os aldeões a ouviriam quando alcançasse a Praça do Chafariz. Se tivesse alguma sorte, muitos dos vendedores já teriam tomado o lugar com as barracas e sua figura insignificante passaria despercebida entre eles...

O problema é que ela não acreditava em sorte. Elenim era uma mulher que jamais levara em conta o acaso e tinha

certeza de que hoje não seria a primeira vez. Sabia que era uma loucura deixar o marido em casa em tempos como estes e que ninguém em seu lugar se arriscaria de tal maneira. Mas não havia escolha. Era, afinal, uma mulher de honra. Prometera, em nome do filho, ajudar no que fosse possível na luta do Círculo. Talvez, se pudesse ajudar de alguma forma aquelas pessoas, se seus esforços mínimos pudessem contribuir para acabar com aquela guerra, talvez o filho pudesse voltar são e salvo para casa...

Com um susto, percebeu que a praça já aparecia mais à frente, com alguma movimentação. Acelerou os passos e tentou manter o rosto escondido sob a sombra da capa, sentido o vento cortar sua pele suavemente. Os cartazes de alistamento de novos Guardas se espalhavam por toda parte e isso deixou seu coração ainda mais inquieto.

“Como Skan podia fazer isso?” Pensava com desprezo. “Como podia enganar as pessoas dessa maneira?!”.

O Chafariz Congelado surgiu assim que as casas terminaram e o centro da praça se abriu à sua frente de forma assustadora. O singelo monumento estava brilhante e petrificado como sempre estivera nos últimos milênios,

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escondendo a grande rede de túneis, que poucos sabiam existir, sob o objeto de prata.

Mas o mais assustador da Praça vinha logo em seguida. Por trás do Chafariz e próximo ao antigo Templo dos Deuses, um palco de horror lançava uma onda de medo em todas as direções, exibindo até em que ponto o rei estava disposto a ir naquela guerra. A Forca, que já havia executado uma centena de pessoas, agora exibia seis corpos vacilantes, cujos donos haviam sido condenados por traição à coroa. O mais triste e assustador era o da última condenada, uma garota de quinze Eras, cujos pais haviam sido pegos conspirando contra o rei.

Mas Elenim sabia que não havia conspiração. O crime pelo qual a garota havia pagado estava além da pura audácia de enfrentar o rei. O que a menina e seus pais queriam realmente fazer era abrir os olhos do povo... E Skan não iria permitir isso.

Elenim virou uma esquina e atravessou a praça sem chamar a atenção. Os poucos comerciantes que estavam pelo caminho estavam tão preocupados com os produtos em exposição que quase não viram a mulher passar pelo local. Os que viram, não se preocuparam também. Havia muito trabalho a se fazer.

Quando viu que a passagem pela praça fora mais fácil do que o esperado, Elenim suspirou aliviada e imaginou que, talvez, finalmente a sorte estivesse sorrindo para ela. Quem sabe aquele dia, enfim, fosse fazer alguma diferença? Quem sabe não fosse realmente o seu dia de sorte? Era isso pelo menos o que esperava quando, por fim, chegou ao seu destino.

Três batidas na porta pareceram uma dezena de relâmpagos no silêncio da rua que acabara de chegar. Ela olhou aflita para os lados e, pelo que pareceu uma eternidade, aguardou do lado de fora. A porta se abriu lentamente e, através de uma fresta, um olho cheio de rugas encarou a mulher por um segundo e a estudou. No instante seguinte, Elenim já saltava para dentro e a porta batia com força às suas costas.

― Onde está Gordem? Eu disse que precisava dos dois! Um homem baixo e esquelético olhava com uma mistura de desespero e

raiva para Elenim, enquanto procurava algum sinal do marido da mulher. ― Achei melhor vir sozinha. Já viu como está lá fora? Há Guardas por

toda parte! Não dá mais para fazer esse tipo de coisa, Tiown, eles estão desconfiados demais! Temos fornecido poções demais pra vocês!

― Não importa! ― Tiown gritou com voz esganiçada. ― Eu disse que precisava dos dois!

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Elenim sentiu-se um pouco assustada e chegou a dar alguns passos para trás. De esguelha, percebeu ferimentos recentes sangrarem pelo braço do homem:

― Seja o que for, Tiown, eu vou dar um jeito. Onde estão os feridos? Quantas poções você precisa? Não tenho muita coisa, mas acho que se pudermos...

― Não vai adiantar... ― Tiown começou a andar de um lado para o outro ― Não vai dar certo... Você não entende...

O coração de Elenim voltou a acelerar. Estava certa de que havia algo de errado.

― Tiown, onde está sua mulher? Onde está a Milla? Então o homem parou e encarou Elenim com seus olhos assustados.

Havia uma moldura de olheiras escuras entorno deles e profundas marcas de choro. E neste instante, Elenim percebeu que estava tudo acabado.

― Sinto muito, Elenim. Um estrondo ecoou por toda a casa, fazendo Elenim saltar

automaticamente. A mulher se virou em direção à porta para correr, mas, no mesmo instante, vários corpos cruzaram seu caminho. O reflexo das armaduras lustrosas e a berrante capa roxa surgiram à sua frente e ela percebeu que não havia mais escapatória.

Ao menos dez Guardas estavam ao seu redor e dois deles seguravam seus braços. A bolsa com medicamentos foi arrancada de seu ombro e jogada para aquele que parecia ser o capitão daquele grupo:

― Vocês cinco, ― ele disse a alguns Guardas ― sigam o rastro do marido dela. Tentem encontrá-lo na floresta. Com sorte, ainda podemos pegá-lo ― e sorriu para Elenim. ― Depressa!

Cinco dos homens deixaram a casa às pressas e logo em seguida Elenim foi colocada frente a frente com o capitão da Guarda:

― Sabia que eu pegaria vocês mais cedo ou mais tarde ― ele falou, triunfante. ― Pessoas como vocês, que não sabem honrar a própria terra, não merecem continuar vivos. Não são pessoas de honra.

― E você acha que Skan é? Um homem de honra? ― Elenim riu ― Para mim ele não passa de lixo.

O estalo da bofetada contra a mulher ecoou por todo o cômodo. Elenim virou o rosto lentamente para o Guarda e voltou a sorrir.

― Vocês não têm ideia do que Skan está planejando, têm? Ele vai destruir tudo o que conhecemos. Não vai haver mais Havalis, não vai haver Mustor, não vai haver mais nada.

― Isso é o que o seu povo diz. Vocês acham que nós não sabemos o que vocês dizem por aí, ham? Que foi Skan quem começou tudo isso? ― o

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Guarda abriu um pequeno sorriso ― Nós sabemos a verdade. Nós sabemos o que vocês fizeram! Sabemos que o Círculo começou essa guerra, essa maldita batalha pela coroa da Trindade. Mas quer saber? Nós vamos ganhar. Apesar de ninguém apostar em Skan, nós vamos defender o que é nosso. Havalis vai vencer e é isso o que importa!

― Vocês estão errados! ― Elenim falou súplice ― Skan não está do lado de Havalis! Ele não está do lado de ninguém! Ele só quer dominar tudo o que puder e destruir o que estiver pela frente! Vocês têm que acreditar nisso!

Então o Guarda girou Elenim pelos cabelos e aproximou seus lábios lentamente do ouvido da mulher:

― Eu já tenho em quem acreditar. Com um empurrão, ambos começaram a caminhar pela sala e seguiram

na direção da porta. Atrás, os outros Guardas seguraram com força Tiown e o arrastaram para fora também.

― Vocês disseram que me deixariam livre! Eu e a minha mulher! ― ele gritou desesperado.

― Já vou levá-lo à sua mulher ― o capitão sorriu. E mais uma vez, Elenim se viu nas ruas de Mustor. Agora era possível ouvir o barulho que vinha da praça e ver a alguma

movimentação de longe. Quando viu o rumo que a caminhada estava tomando, a mulher levou os dedos discretamente até o bolso, encontrou a pequena metade de Treimina no fundo da veste e esmagou a pedra entre os dedos. O pó da pedra dançou entre suas unhas e ela sentiu um misto de alívio e tristeza. Com isso, ela tinha certeza de que haveria ainda alguma chance de Gordem sobreviver e escapar dos Guardas... com isso, ela tinha certeza de que ele saberia instantaneamente que ela estava... morta.

A Forca surgiu como uma grande tormenta mais à frente. Quando se

aproximaram, Elenim percebeu que todos os corpos em exposição haviam sido retirados e que quatro novas execuções haviam sido preparadas.

― O que estão fazendo? Disseram que a gente ia ser perdoado! Vocês prometeram! ― desesperou-se Tiown.

O capitão da Guarda apenas sorriu e continuou caminhando. Quando finalmente chegaram à Forca, o capitão da Guarda subiu à

frente dos outros e guiou-os lentamente até o topo do tablado. De um jeito estranho, Elenim sentiu-se aliviada por caminhar sobre aquela madeira, já que conhecia muito bem as atrocidades que eram feitas àqueles que eram levados para a “coleta de informações”. Sabia que, por ser mulher, teria uma passagem direta para a morte, sem tortura física ou psicológica, e que ninguém precisaria sujar as mãos com seu sangue.

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À medida que ia subindo as escadas, Elenim percebia um aglomerado de aldeões se aproximar e vários rostos se virarem em sua direção. Algumas pessoas estavam chocadas, outras simplesmente interessadas em saber os rostos dos mais novos “apanhados” da Guarda Real. Mas o que se via na maioria delas era o que Elenim conseguiu identificar como prazer de justiça.

Assim que as pessoas se aproximaram, o capitão da Guarda se posicionou na frente do palco e bradou à multidão já ansiosa:

― Hoje, povo de Mustor, mais traidores foram pegos pela Guarda Real de Havalis. São culpados, como devem imaginar, por traição direta à coroa, contra o próprio rei! São pessoas sem caráter, pessoas que insistem em manchar a honra do nosso reino e das pessoas que vivem aqui ― o capitão fez uma pequena pausa para encarar cada aldeão nos olhos. ― Mas hoje, povo de Mustor, esses traidores serão exemplo da vergonha que se espalha por Havalis. Eles serão exemplo de que o Círculo pode, sim, ser derrotado por homens de fé e bravura. E em nome de Havalis, o Primeiro, e Skan, nosso líder nesta guerra, condeno esses traidores à morte.

Vários gritos em aprovação ecoaram pela praça e imediatamente os presos foram arrastados até às cordas. Com cuidado, foram todos posicionados sobre o alçapão da Forca e uma corda úmida foi colocada em volta de seus pescoços. Ao mesmo tempo, mais uma pessoa foi levada para o tablado e Elenim reconheceu imediatamente a figura.

― Milla?! MILLA, NÃO! TIREM ELA DAQUI! ELA NÃO!

Tiown gritava desesperado. As lágrimas cortavam as bochechas macilentas e escorriam lentamente pela corda em seu pescoço. Ao mesmo tempo, Milla, uma mulher magra e com grandes olhos negros, lutava desesperada para se desvencilhar do Guarda que a segurava com força. Logo, ela também tinha uma corda presa à sua garganta.

― Tiown, Tiown, me ajuda, por favor, me ajuda. ― a mulher desesperou-se.

― Calma, amor, vai ficar tudo bem, calma ― Tiown a consolou. Em seguida virou-se enfurecido para o Capitão ― VOCÊ DISSE QUE NOS

DEIXARIA EM PAZ! VOCÊ PROMETEU, DESGRAÇADO! ― Como prometido: aí está sua mulher. ― o capitão disse, tão baixo que

só os presos foram capazes de ouvir. ― Acabem logo com isso ― ele rosnou para os Guardas.

Não houve, então, tempo para muita coisa. Elenim ergueu os olhos para o céu e percebeu que o sol não sairia uma

última vez para ela. Pensou, com um frio no estômago, que aquela guerra estava longe de acabar. Torceu, também, para que o marido estivesse bem,

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onde quer que estivesse; orou para que o filho voltasse bem para casa e, por fim, pediu aos Deuses que Skan fosse derrotado...

E se deu conta de que aquele não era mesmo o seu dia de sorte. O alçapão, então, se abriu.

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A ESCOLHA DE CAÇA-LOBOS

Eu estava perdido num mundo em guerra. As árvores de Ernuth balançavam ao meu redor enquanto o vento

soprava gélido em minha nuca, lançando um barulho seco no ar. Algo ruim estava próximo. Continuei minha caminhada pela floresta e segui ziguezagueando pela

mata na busca da pequena estrada oculta pela noite. Quando a encontrei, firmei meus passos na trilha de folhas recém-pisoteadas e segui veloz por todo o seu trajeto. A chuva se aproximava lentamente, alertando-me de sua presença através dos clarões que explodiam no céu e do vento gelado que carregava as nuvens para o leste. Apertei o passo. Pouco tempo depois, um casebre coberto de musgo e quase abandonado surgiu à minha frente, transformando minha respiração em rápidas golfadas de ar. Através dos primeiros pingos grossos de chuva, pude ver várias sombras se movimentando na janela iluminada virada para mim e logo eu deduzi que eles me esperavam.

Durante o percurso da floresta até o casebre, a chuva começou a cair pesadamente. Eu cheguei sem ar até a varanda e bati com rapidez na porta, enquanto sacudia a água dos cabelos. A passagem rapidamente se abriu e a luz do casebre cortou a escuridão da noite, cegando-me momentaneamente. Uma voz seca ordenou-me que entrasse e eu saltei imediatamente para dentro.

Assim que dei o primeiro passo para o interior do cômodo, um par de braços envolveu meu pescoço e eu senti um mar de cabelos loiros cobrir parte da minha visão:

― Quanto tempo! A voz de Ana era a única coisa que me transmitia segurança naquele

mundo. Quando ela me apertou forte entre seus braços, eu percebi que a solidão desses últimos meses havia sido infinitamente maior do que eu imaginara.

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― Tempo demais, Ana ― eu falei, acariciando suas mechas. Ainda com o queixo em seus ombros finos, varri com os olhos o local ao

meu redor e me deparei com vários rostos familiares: Aedim, com suas camadas de roupas extravagantes e o rosto mal-humorado e murcho; Caça-lobos, vestido com a tradicional capa preta e o rosto deformado pela cicatriz em forma de garra; Tumilínea, mais atrás, de cabelos em caracóis, corpo delgado e roupa de couro; o corpulento Nômos e seus longos dreads em forma de serpente; Tevor, com barbas e cabelos loiro-branco; e Laila, sua esposa, com curtíssimos cabelos cor de fogo e uma singela barriga arredondada que mostrava a todos o quanto o tempo havia passado.

― Venha, sente-se aqui comigo ― Ana falou, arrastando-me até uma cadeira no canto da sala abarrotada de livros ― A reunião já vai começar.

Dois meses haviam decorrido desde o último ataque de Skan. Dois meses esses que eu contava no tempo de Caça-lobos, pois no meu tempo e de Ana, eu teria que contar cerca de seis meses de calmaria. Durante esse tempo, as coisas haviam se estabilizado, o povo de Galagar havia começado o processo de reconstrução da cidade e o grupo permanecera nas redondezas para se recuperar de tudo o que havia acontecido no deserto e conseguir novos membros para o Círculo. Essa era a primeira vez que nos reuníamos desde então e eu me sentia estranhamente desconfortável.

Juntos, Ana e eu sentamos e vimos os membros do Círculo se espalharem pelo cômodo. A iluminação vinha de um candelabro de três velas pendurado perigosamente no teto do casebre e algumas velas espalhadas pelo cômodo. Os lugares que não estavam cobertos por livros de todos os tipos, estavam ocupados com objetos inusitados, pergaminhos e poeira. Achei um milagre conseguirmos um lugar vazio para nos sentarmos, próximo à galinha de estimação de Aedim:

― Todos sabiam que, mais cedo ou mais tarde, essa reunião teria que acontecer, não é? ― Caça-lobos começou seu discurso, encostando-se a uma mesinha mais distante, os braços cruzados sobre o peito. ― Sabíamos que uma hora ou outra as notícias de Havalis iriam chegar... boas ou ruins.

Houve um pequeno silêncio no cômodo. Nossa respiração foi abafada pelo temporal no telhado:

― Ontem eu recebi uma carta de Ommue com péssimas notícias de Havalis. As piores, talvez.

― Ommue? ― Ana perguntou ao meu lado. ― Um espião. Um dos membros do Círculo que permaneceram em

Mustor para ficar de olho em Skan. Ele tem enviado notícias para mim desde que partimos de lá... Mas ultimamente não tem enviado muita coisa.

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― O que ele disse? O que há de errado em Havalis? ― questionou Nômos.

― Bem, pelo que parece... Nesse momento a porta do casebre se escancarou. O temporal caía

fervorosamente lá fora e os raios iluminavam o céu de modo assustador. Dion estava entre a porta e a varanda destruída, a água da chuva escorrendo de seu corpo para o chão através de uma linha contínua e fina.

― Atrasado como sempre ― Caça-lobos falou. Dion sacudiu os cabelos negros e compridos e sorriu como sempre faz

nesses momentos que constrangeriam qualquer pessoa. ― Foi mal, Caça-lobos, mas não sou bom para achar essas trilhas que

vocês fazem. Sabia que elas somem com a chuva? ― Se não tivesse demorado tanto, poderia ter encontrado a trilha antes da

chuva. ― Talvez. Mas nós nunca saberemos, não é? ― ele sorriu e cruzou a sala

até meu encontro. Não pude segurar o sorriso. ― Então, o que eu perdi? Caça-lobos revirou os olhos e continuou com as informações: ― A situação está bem ruim em Havalis. Nesse meio tempo que ficamos

aqui, parece que Skan conseguiu dominar grande parte do nosso reino e acabar com muitos dos membros do Círculo que ainda restavam em Mustor. Pelo que consta na carta, Skan formou aliados nos territórios mais fracos e conseguiu conter as informações da revolução nos mais fortes. Ele espalhou Guardas pelo reino e mandou que matassem qualquer um que fosse suspeito de participar do Círculo. Os Capitães, como são chamados os Guardas de confiança de Skan, estão espalhados por todo o continente de Havalis e dominam várias cidades como lordes, liderando, cada um, um pequeno exército de Guardas. É desse jeito que Skan tem controlado todo o reino e mantem um olho em tudo o que fazemos.

― Então é isso que ele tem feito durante esses dois meses? Dominando primeiro os territórios mais fáceis? ― Tumilínea perguntou.

― Isso. Talvez ele queira juntar forças novamente. Acabamos com uma parte considerável do seu exército aqui em Comoska. Cem Caçadores e um batalhão gigantesco de Guardas, isso deve ter sido uma perda e tanto para ele. Esse talvez seja o tempo que ele está usando para se fortalecer e criar novos Caçadores.

― Mas então esse seria o melhor momento para atacar, certo? ― perguntou Nômos ― Conseguimos juntar um grupo disposto a ir conosco para Havalis, cerca de cem homens. Não é muito, mas já é alguma coisa...

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― É sim, Nômos, mas tem mais uma coisa. Na carta, Ommue me disse que Skan colocou nosso reino na defensiva e proclamou estado de emergência em todos os territórios.

― Estado de emergência? ― perguntei. ― Ele proclamou que todos os territórios devem ficar preparados para

um ataque iminente dos outros reinos. ― Um ataque? Mas é ele quem está atacando! ― Não segundo Skan. A informação que tem corrido por Havalis é que

está acontecendo uma guerra entre os três reinos pela dominação da Trindade e que, se eles não se protegerem, serão os primeiros a serem derrotados.

― Quer dizer então que as pessoas de lá não sabem que foi Skan quem começou a guerra?

― Não, ou pelo menos a maioria não sabe. Elas pensam que Galagar e Verique são os inimigos e Skan é quem vai guiá-las na guerra contra eles. Skan pensou em tudo, Arion, ele é um ótimo estrategista, acredite. Por exemplo, esses Capitães: eles são aclamados como grandes heróis nas cidades! Acha que Skan ia repreender um povo que já está do seu lado? Ele não é idiota. Ele passa para as pessoas uma sensação de segurança e é isso que o povo quer, mesmo que não saibam do preço. Ommue disse que há filas quilométricas de rapazes e até crianças querendo ser Guardas por todo o continente! ― Caça-lobos sorriu com tristeza. ― Skan fez muito bem o trabalho dele.

Todos ficaram calados. Durante um tempo fiquei ponderando sobre a situação em geral e sobre como Skan havia dado a volta por cima sem nem ao menos levantar uma espada. Eu não conseguia ver muita chance para o time dos mocinhos, não do jeito que as coisas estavam caminhando.

― Então temos que voltar para Havalis! ― Nômos disse com firmeza. ― Skan precisa ser impedido antes que ele construa outro exército de Caçadores, isso se ele já não construiu um.

― Seria o mais racional. Mas tem mais uma coisa. Caça-lobos olhou para Aedim e os dois se encararam em silêncio. Um

instante depois, o líder do Círculo se virou para mim e para Ana e, sem mudar de expressão, revelou:

― Descobrimos como mandar vocês de volta para casa. Eu e Ana não movemos um músculo. Claramente, a voz de Caça-lobos

não era de boas novas. ― Qual o problema? ― Ana arrancou as palavras de minha boca. Caça-lobos não respondeu. Caminhou pela sala caótica e sentou-se

pesadamente sobre uma poltrona velha e cheia de mofo. Ele olhou para nós com o olhar cansado, como se tivesse pensado muito a respeito daquela situação, e então falou lentamente:

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― Na verdade, não há problema. Não para vocês. ― Para você, então? ― perguntei. ― Para o restante de nós, talvez ― ele disse sério, encarando-me. ―

Conte a eles, velho ― Caça-lobos acrescentou, olhando diretamente para Aedim.

O mago arrastou-se pela sala e tirou um pergaminho amarelado do alto de uma estante. Ele desenrolou lentamente o papel sobre o meu colo e o de Ana e apontou-nos uma grande imagem adornada com uma moldura.

― Vocês se lembram disso, não é? ― Aedim nos perguntou. Ele apontava para uma figura que representava o Portal de Verique: uma

construção grande e robusta, cheia de marcas e figuras enigmáticas, cuja funcionalidade ninguém sabia dizer exatamente qual era.

― Claro que lembramos ― Ana disse impaciente. ― Foi de onde viemos. ― E vocês podem me dizer o que está na segunda figura? ― Outra imagem do portal ― Ana respondeu prontamente. ― Só que

está num ângulo diferente... Aedim soltou um pequeno riso debochado. ― Leia para mim o que está escrito logo abaixo da primeira imagem,

moleque ― ele pediu a Dion, puxando o garoto para mais perto. O guerreiro esticou o pergaminho impaciente e começou a ler as

pequenas linhas escritas em Arzemin1, língua falada pelas pessoas da Trindade: ― “Portal de Verique. Construído na Era de Borderon, na Colina de

Ererth, próxima a Mustor, Reino de Havalis”. ― Ótimo. O que tem isso? ― perguntei, minha paciência se esvaindo. ― Leia a segunda legenda ― Aedim pediu, ignorando meu comentário. ― “Portal de Verique” ― Dion continuou ― “Construído na Era de

Borderon, próximo à floresta de Firinim, Reino de Verique”. Todos se olharam. Demorei um pouco mais que os outros para entender

o que Aedim estava dizendo. ― Dois portais? É isso mesmo? Existe outro portal de Verique?! ―

perguntei. ― Sim. E ele é a sua provável saída deste mundo. Saída? Isso queria dizer que finalmente poderíamos sair daquele mundo e

voltar para onde não precisaríamos lutar ou ver gente morrendo o tempo todo? Eu não podia acreditar. Na verdade, não parecia sequer uma informação real. Ainda mais que nem um tipo de euforia parecia ter tomado conta de mim. Talvez fosse pela expressão séria de Caça-lobos. Ou, quem

1 Veja mais sobre Arzemin no Apêndice.

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sabe, pela falta de entusiasmo de Ana ao meu lado. Eu não sabia dizer. Alguma coisa não estava certa.

― Vocês não irão com a gente, não é? ― Ana disse ao meu lado, fazendo, de repente, algo estranho se revirar dentro de mim ― É esse o problema com a missão, não é Caça-lobos? Não podem fazer as duas coisas ao mesmo tempo: ir para Mustor e vir com a gente.

Olhei para Caça-lobos. Por um momento infantil, eu esperei ouvir o homem dizer que não era esse o problema e que nós todos ficaríamos juntos como sempre estivéramos, que não haveria com o que me preocupar... mas o que vi foi só a cabeça de Caça-lobos sinalizando que Ana estava certa.

― Então é isso? ― perguntei tentando manter a voz equilibrada ― Escolher entre nós e Havalis?

Ele me olhou e lançou-me um sorriso fraco. ― É isso aí, garoto ― e em seguida, levantou-se ― E a decisão já foi

tomada. Vamos com vocês. De um modo estranho, eu não me surpreendi com a notícia.

Conhecendo bem Caça-lobos, no fundo eu já sabia que ele escolheria a missão que tivesse mais chances de fracassar sem a ajuda dele. Era tão óbvio...

― Você não pode ir ― eu disse com a cabeça baixa. Não pude conter o tom de raiva da voz ― Não é justo.

― Já está decidido. Partiremos ao amanhecer. E sem sequer olhar para mim, Caça-lobos abriu a porta do casebre e

misturou-se à chuva do lado de fora. Num salto, eu levantei, atravessei a porta e corri em seu encalço pela escuridão.

As gotas batiam como pedra nas minhas costas, o sapato escorregava nas folhas e na lama e eu quase não conseguia enxergar a figura de Caça-lobos caminhando rapidamente à minha frente.

Quando o alcancei, segurei seu braço com força e o coloquei frente a frente comigo. Ele parecia sorrir.

― Você não pode fazer isso! ― gritei, tentando fazer com que ele me escutasse através da chuva e dos relâmpagos.

― Eu sou o líder do Círculo, Arion, eles decidiram isso. E agora eu estou tomando a minha decisão como um líder deve tomar.

― Isso não é justo! Vai arriscar a vida deles! Vai arriscar a vida de todo mundo em Havalis!

― Eles não precisam de mim, Arion! Vocês precisam! ― Não! Eu consigo fazer isso! Consigo chegar sozinho até lá! Você já me

ajudou! ― Não seja idiota, Arion! Como vai fazer isso? Como vai chegar até o

outro continente sozinho?! Nem sabe qual caminho tomar!

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― Eu me viro! Eu consegui aprender um pouco da língua de vocês, aprendi a sobreviver! Você não vai trocar aquelas pessoas por nós!

― Vocês são mais importantes! ― Por quê?! ― Porque foi essa a minha promessa! ― ele gritou ― Você salvou a

minha vida! É uma dívida minha! ― Mentira! ― gritei ainda mais alto. ― Está fazendo isso por causa

daquela droga de previsão! Eu já falei: NÃO-SOU-EU! Esqueça essa droga de uma vez!

― Eu prometi levar você... ― Não seja idiota! É só uma promessa estúpida! Você não me deve nada!

Já salvou minha vida um milhão de vezes depois do Chafariz! ― Eu prometi! ― Quebre a promessa! Eu não quero que a cumpra! É só uma promessa! ― Ah é?! E quanto a sua promessa de proteger a Ana? Também é só uma

promessa? Eu fiquei calado. Meu peito subia velozmente e minha garganta doía por

causa dos gritos. Não, não era só uma promessa. ― Arrume suas coisas. ― Caça-lobos disse, certo de que vencera a

discussão ― Vamos partir de manhã.