VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE...

167
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE SANTO EM UMA ROÇA JEJE SAVALÚ NA AMAZÔNIA Belém 2018

Transcript of VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE...

Page 1: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA

VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES

DA COMIDA DE SANTO EM UMA ROÇA JEJE SAVALÚ NA AMAZÔNIA

Belém

2018

Page 2: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA

VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES

DA COMIDA DE SANTO EM UMA ROÇA JEJE SAVALÚ NA AMAZÔNIA

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, do Centro de Ciências Sociais e Educação, da Universidade do Estado do Pará, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação. Linha de pesquisa: Saberes culturais e Educação na Amazônia. Orientadora: Prof.ª Drª. Maria Betânia B. Albuquerque

Belém

2018

Page 3: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA

VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES

DA COMIDA DE SANTO EM UMA ROÇA JEJE SAVALÚ NA AMAZÔNIA

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, do Centro de Ciências Sociais e Educação, da Universidade do Estado do Pará, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________

Profª. Drª. Maria Betânia Barbosa Albuquerque (Orientadora)

Universidade do Estado do Pará – UEPA

______________________________________________________

Prof. Dr. João Colares da Mota Neto (Examinador Interno)

Universidade do Estado do Pará – UEPA

______________________________________________________

Profª. Drª. Taissa Tavernard de Luca (Examinadora Externa)

Universidade do Estado do Pará – UEPA

______________________________________________________

Profª. Drª. Marilu Marcia Campelo (Examinadora Externa)

Universidade Federal do Pará – UFPA

Conceito: _____________________ Data: _____/_____/_____

Page 4: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

À memória de todos os sacerdotes e sacerdotisas que educaram várias gerações, transformando espaços do cotidiano em lugares de aprendizado e da memória afro-brasileira. Realizaram, dessa forma, grande serviço à cultura deste país. Aos meus inesquecíveis avós (pais), Laura Melo da Silva e Ediberto Gonçalves da Silva (in memoriam), que me ensinaram o valor da Educação. À minha mãe, pelo exemplo de vida que é. À minha irmã e ao meu cunhado, por me darem a princesa Isis. Ao Mauro, o mais generoso companheiro. A Iuri e Iago, meus filhos, minhas maiores realizações!

Por toda minha vida!

Page 5: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

AGRADECIMENTOS

Esse é um prato, uma iguaria, daquelas que traduzem várias memórias, que

reúnem a família e os amigos. Na verdade, um banquete completo, daqueles, onde

o gosto retrata muitos ingredientes, lembra uma obra de arte, devido à sutileza de

seu colorido e as experiências compartilhadas, levando-me a sensações diversas,

como: a de saciedade, satisfação, paixão. Enfim, lembra sonhos e alegrias de

muitas vidas, memórias reconstruídas e compartilhadas. Esse é o retrato, a

simbologia desse trabalho, do qual partilho nesse momento. Assim, portanto, a

muitos preciso agradecer.

Primeiramente, a (os) Deus (es), pela vida e pela gana para lutar por meus

quereres. Obrigada!

À minha família, pelo amor, incentivo e preocupação constantes. Amo a todos

incondicionalmente!

Ao meu companheiro, pelo amor, dedicação, e pela tranquilidade que me

transmitiu nos momentos mais estressantes na realização dessa pesquisa.

A minha orientadora Prof.ª. Dr.ª. Maria Betânia B. Albuquerque, intelectual de

primeira grandeza, pelo cuidado e atenção com que me acompanhou durante este

período.

As historiadoras Andrea Pastana, Elane Gomes, Alessandra Mafra e Marly

Carvalho, amigas, companheiras de vida, da história. Serei eternamente grata pela

parceria e fraternidade demonstradas em nossa trajetória de luta e de muito carinho.

Obrigada por cada encontro gastronômico e pela participação encorajadora nesse e

em tantos outros projetos. Honrada pelas “provocações” e sugestões, que foram tão

úteis para o enriquecimento deste estudo.

A Amiga Wilcilene Sabrina, por me guiar nos encantos e recantos do

candomblé. Obrigada por me apresentar esse mundo de beleza e encanto e pela

sempre saborosa contribuição gastronômica.

Aos amigos Renata Costa, Ataíde Junior, Ana Célia Morais e Marcio Barradas

pelo interesse, disponibilidade e entusiasmo demonstrados desde o exame de

seleção para o mestrado.

Page 6: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

Aos professores, Dr.ª Marilu Márcia Campelo e Dr. João Colares, por suas

contribuições pertinentes e por toda a paciência, empenho e sentido prático com que

conduziram suas observações, durante a qualificação.

À querida professora, Dr.ª Taissa Tavernard, por ter acompanhado o

desenvolvimento deste trabalho, mesmo quando ele era apenas um esboço de

projeto. Agradeço também pelas recomendações valiosas e generosas à minha

dissertação, durante a qualificação.

Ao Programa de Pós-Graduação em Educação, em específico à Linha de

Saberes Culturais e Educação na Amazônia, agradeço todas as professoras e

professores e membros da secretaria, pois foram fundamentais para o elaborar

desta dissertação.

Aos parceiros do Grupo de pesquisa GHEDA pela oportunidade de

aprendizado e troca de experiências.

Aos meus amigos e colegas do RIO12, como carinhosamente denominamos

a 12ª turma do PPGED/UEPA, pelos momentos de debates, lutas partilhadas,

choros e consolos. Jamais teria conseguido sem esses ribeirinhos. Em todos os

piores e melhores momentos nós zelamos uns pelos outros, buscamos força e

aprendizado com nas dores e batalhas diárias. Vencemos, graças à nossa

pluralidade e ao desejo de fazer do mestrado um lugar de aprendizado, de leveza e,

sobretudo, de poesia. Obrigada pelo alimento da alma!

Aos amigos que sempre tiveram para mim palavras de incentivo e

compreensão. Indicando-me, não somente bibliografia, mas também me levando

aos terreiros/roças do seu bairro, da sua rua, ajudando, dessa forma, na

aproximação com estes. Por aceitarem minhas ausências e minhas constantes

fugas da realidade palpável, quando não mais conseguia falar sobre outra coisa,

senão, sobre essa pesquisa. Vocês foram adoráveis!

Por fim, o meu respeito a todas as comunidades afrorreligiosas do município

de Belém e da região metropolitana, em específico a roça Jeje Savalú Xwe Ace Kpo

Sohun, especialmente, a Mãe Jokolosy e aos outros narradores – que gentilmente

compartilharam suas memórias e histórias de vida. Os meus sinceros

agradecimentos por terem dividido comigo tantas histórias, segredos e sorrisos

perante o ofício de cozinheiras(os) educadoras(es) da comida sagrada.

Axé!

Page 7: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

Dize-me o que comes e te direi quem és.

(BRILLAT-SAVARIN apud LODY, 1977)

Page 8: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

RESUMO

O presente estudo parte da seguinte problemática: como, nas práticas rituais da

comida de santo em um terreiro afro-brasileiro Jeje Savalú desenvolvem-se

processos educativos de construção e mediação de saberes culturais? Possui como

objetivo geral analisar nas práticas religiosas da comida de santo em um terreiro

afro-brasileiro Jeje Savalú, práticas educativas de construção e mediação de

saberes culturais. Especificamente, propõe-se a investigar o lugar histórico ocupado

pela alimentação sagrada em uma roça de candomblé Jeje Savalú na Amazônia;

analisar os ensinamentos que perpassam a cozinha do axé, a partir de um diálogo

entre tradição e modernidade, em busca da compreensão de uma cosmologia do

sagrado; mapear os saberes que circulam a culinária sagrada, em uma roça

candomblezeira savaluana na Amazônia; analisar as práticas educativas vivenciadas

na cozinha de santo em uma roça de candomblé Jeje Savalu. Caracteriza-se,

metodologicamente, como uma pesquisa de campo do tipo etnográfica, com base

nos pressupostos da história oral. O lócus da pesquisa é um terreiro de candomblé

Jeje Savalú, denominado Xwe Ace Kpo Sohun, em Belém (PA). Utiliza como

procedimentos metodológicos: levantamento bibliográfico; observação; entrevistas

semidirigidas com membros permanentes e esporádicos da cozinha da casa;

registros visuais e de áudios da memória e narrativas dos praticantes do terreiro.

Teoricamente, a pesquisa inspirou-se nas obras de Flandrin e Montanari (1998);

Geertz (1989; 1997; 2001); Hampâté Bâ (2003); Brandão (2002); Santos (2000;

2010); Ingold (2008), entre outros. As categorias analíticas educação e comida como

cultura; educação da atenção, saberes da tradição e do cotidiano; foram

perpassadas e alinhavadas à luz da História da alimentação e de uma percepção

mais ampla da Educação, que repousa na cultura candomblezeira e para além da

perspectiva escolacentrista. O processo educativo investigado gira em torno da

sacerdotisa Jokolosy, que tem o maior posto hierárquico da casa. Como Gàniyakú,

ela orienta todos os postos de menor hierarquia e tem a condição de educadora e

portadora da memória e da maior experiência com os inúmeros saberes que

circulam no terreiro, associados à cultura Jeje Savalú, aos saberes culinários e

ritualísticos, encarados aqui como os conteúdos ensinados no terreiro.

Palavras-chave: Educação. Saberes. Comida de santo. Candomblé.

Page 9: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

ABSTRACT

The present study starts from the following problematic: how in the daily practices of

the "comida de santo" (saint‟s food) of a Jeje Savalú yard (terreiro) are developed

educational processes of construction and mediation of cultural knowledge? It aims

to analyze the educational practices developed in the daily life of the kitchen of santo

in a yard of the candomblé Jeje Savalú, centering, mainly, on the commensality, the

ritualistic of the saint‟s food, in the educative action and in the knowledge that

circulates there. As specific objectives, it is proposed to map the food knowledge in a

Jeje Savalú yard in Pará; to investigate how the symbolism of the kitchen of santo

and its paraphernalia emphasize the memory of the Jeje candomblé and show a

chronology of the symbolic; as well as to analyze how these knowledges circulating

the food of santo reveal the legacy of sacred cooking as learning of a cosmology of

the sacred. It is characterized, methodologically, as a field research of the

ethnographic type, based on the presuppositions of oral history. The locus of the

research is a Jeje Savalú candomblé yard, denominated Xwe Ace Kpo Sohun, in

Belém (PA). It uses as methodological procedures for the production of data:

bibliographic resarch; participant observation; semi-direct interviews with permanent

and sporadic members of the yard kitchen; audio-visual records with spiritual entities

incorporated in the followers and conversations with practitioners and visitors of the

yard. Theoretically, the research was inspired by the works of Montanari (2013);

Flandrin and Montanari (1998); Geertz (1989, 1997, 2001); Hampaté Bâ (2003);

Brandão (2002); Santos (2000; 2010); Pesez (1998); Ingold (2008), among others.

The analytical categories education as culture and food as culture; knowledge of the

experience and knowledge of everyday life; memory, identity, and material culture

have been pervaded and aligned in the light of the history of food and of a broader

perception of education, which rests on candomblearian culture and is beyond the

scientific and scholasticist perspective. The educational process investigated

revolves around the responsible and prominent figure of the yard, the priestess

Jokolosy, who has the highest hierarchical rank of the house (casa). As Gàniyakú,

the lady of the long skirt, she guides all posts of lower hierarchy and has the status of

educator and bearer of memory and greater experience with the numerous

knowledge that circulates in the yard, including those who are associated with the

Jeje Savalú culture, to the culinary and ritualistic knowledge, seen here as the

contents to be taught in the yard.

Keywords: Education. Knowledge. Saint food. Candomblé.

Page 10: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................ 11

1.1 A PERSPECTIVA TEÓRICA DE ANÁLISE ..................................................... 16

1.2 CAMINHOS METODOLÓGICOS .................................................................... 32

1.3 O LÓCUS DA PESQUISA .............................................................................. 38

2 ALIMENTAÇÃO E O CANDOMBLÉ: HISTÓRIA E MEMÓRIA ..................... 44

2.1 ALIMENTAÇÃO E HISTÓRIA ......................................................................... 44

2.2 O LUGAR DA ALIMENTAÇÃO NO CANDOMBLÉ ......................................... 48

2.3 O CANDOMBLÉ JEJE SAVALÚ: UM BREVE HISTÓRICO ............................ 57

2.4 CAMINHOS E DESENCONTROS NA TRAJETÓRIA DOS JEJE NO PARÁ .. 65

2.5 A ROÇA XWE ACE KPO SOHUN E O CANDOMBLÉ JEJE SAVALÚ ........... 66

2.6 A COMIDA DE SANTO REINVENTADA ........................................................ 75

3 COZINHA DO AXÉ: UM DIÁLOGO ENTRE OS SABERES TRADICIONAIS E

A MODERNIDADE ......................................................................................... 82

3.1 LUGAR DO SIMBÓLICO E DA MEMÓRIA ..................................................... 83

3.2 A COSMOLOGIA DO SAGRADO EM UMA COZINHA JEJE SAVALÚ .......... 93

3.3 COZINHA DE SANTO: UM ESPAÇO DE APRENDIZADO .......................... 100

3.4 “VODUNS TAMBÉM COMEM": COMIDA VOTIVA E OS TABUS

ALIMENTARES ............................................................................................. 112

4 AS HERDEIRAS DA COZINHA SAGRADA ................................................ 119

4.1 MULHERES E HOMENS QUE ALIMENTAM ............................................... 122

4.2 CULINÁRIA SAGRADA: TEMPO DE APRENDIZAGEM .............................. 126

4.3 O APRENDIZADO DAS SENHORAS DA COZINHA .................................... 142

5 CONSIDERAÇÕES SOBRE ESSAS E OUTRAS COMERAGENS ............. 144

REFERÊNCIAS ............................................................................................ 149

APÊNDICE ................................................................................................... 157

ANEXOS ....................................................................................................... 161

Page 11: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

Figura 1 – Mesa com comidas para o Tassen (Bori)

Fonte: Acervo da pesquisa, 2017.

Page 12: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

11

1 INTRODUÇÃO

A cozinha representa a cultura de quem a pratica, um elemento aglutinador das tradições e das identidades de grupos, por meio da qual o grupo se comunica, construindo trocas culturais que representam a diversidade cultural revestida de “significados identitários” (MONTANARI, 2013, p. 12).

Este estudo volta-se para análise dos processos educativos e dos saberes

existentes nas práticas religiosas cotidianas da cozinha de santo em uma casa de

Candomblé na Amazônia.

O despertar para essa temática recua a um tempo bem anterior ao próprio

processo de formação acadêmica, um tempo em que eu nem ao menos possuía

noção de que um dia enveredaria para os caminhos da história e da educação.

Nascida em uma família numerosa, composta por várias quituteiras, descobri

um dos mais caros prazeres: o gosto pela arte de combinar temperos, cheiros, cores

e sabores, a arte da culinária.

Minha avó Laura, cozinheira de mão cheia – como se diz quando alguém

domina essa arte –, fazia os mais variados quitutes, que, geralmente, eram

saboreados em refeições compostas por um grande número de indivíduos, dentre

familiares, vizinhos e agregados. Seu maior dote estava no fazer dos pratos típicos

da região norte, que sempre conquistavam o maior número de apreciadores de sua

culinária.

Aqueles nunca eram momentos apenas de necessidade biológica ou

alimentar. Em vez disso, eram o ápice do encontro de muitos testemunhos do

cotidiano de uma família de classe média, que incluíam revelações, desculpas,

declarações, risos, trocas, sentimentos, entre outras experiências que, de tão

corriqueiras, nem pareciam ter importância.

Uma memória muito presente sobre essas reuniões gustativas é aquela

referente ao preparo dos alimentos. Ficávamos reunidas na cozinha, logo após a

retirada do café, quando costumavam minha avó, tias, primas mais velhas e até

alguns dos pequenos iniciar os trabalhos para o preparo do almoço. Era uma

verdadeira festa, com corpos harmonicamente sincronizados, executando, cada um,

sua função, em uma espécie de coreografia de ingredientes, alguidares, peneiras e

pilões. Começava, assim, minha inquietude com toda aquela engrenagem familiar,

que, em torno da mesa, resultava em um momento de partilha e sociabilidade.

Page 13: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

12

Um outro momento no qual me deparei com o tema da alimentação foi ao

conhecer, para além do cardápio familiar, uma cozinha de santo, onde pude

presenciar várias experiências, momentos substanciais de trocas e aprendizados

que me colocaram em contato com a cultura alimentar afro-brasileira, donde veio

residir a particularidade do tema “Processos Educativos e Saberes da Comida de

Santo”.

Tudo começou quando, em meio a uma traquinagem, pude explorar,

passando por uma tábua solta, o quintal de uma vizinha, a dona Madalena, mãe de

santo de um terreiro de Umbanda próximo à minha casa. Sendo quase da mesma

idade de algumas das filhas de santo de D. Madalena, curiosa, tratei logo de me

aproximar, inclusive, da filha biológica, a qual estava sendo preparada para herdar

sua liderança.

Como vizinha, pude testemunhar então, várias vezes, festejos, obrigações e

ritos, em geral. Contudo, os que mais me intrigavam eram aqueles envoltos no ato

do preparar as comidas dos Orixás.

Seus sujeitos, as cozinheiras dos santos, chamadas yabassés, pareciam

figuras curiosas, com papel ímpar na estrutura do terreiro, pois neste, como em

outros locais de sociabilidade, a cozinha é e sempre foi local de poder. Portanto,

todos aqueles com cargos que envolviam os saberes culinários, igualmente,

aprendiam a exercer esse poder.

Tudo era muito fascinante aos olhos de uma criança, que, além de carregar

consigo um histórico familiar de intimidade com a alimentação, mergulhara em um

desconhecido e instigante mundo da comensalidade, apesar de, naquele momento,

não ter noção de que estava vivenciando tal exercício. Assim, mesmo não fazendo

parte da família de santo, pude participar de muitas ocasiões que envolviam o

preparo e a sacralização dessa comida.

Passados alguns anos, já na graduação, soube do falecimento de

D. Madalena e do desmonte do terreiro, por decisão de seus herdeiros biológicos,

que não aceitavam que o local continuasse a abrigá-lo, principalmente, depois que

sua filha biológica – a mesma que estava sendo educada para herdar a liderança da

casa – havia mudado de religião. Lembro de sentir um grande pesar e enorme

sensação de impotência pela interrupção, tão prematura, de toda a riqueza do

aprendizado que testemunhei. Busquei informações sobre o motivo do fechamento

do terreiro e a justificativa de um dos filhos de santo da casa foi que, pela ausência

Page 14: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

13

de uma liderança para sucedê-la na tarefa de administrar o terreiro, os herdeiros

resolveram encerrar a dinastia. Em todo caso, o contato com esse terreiro

possibilitou-me conhecer um pouco sobre as tradições religiosas dos ancestrais

africanos, sobretudo, aquelas referentes à comida de santo.

Além das motivações relatadas acima, recordo-me as várias experiências

ocorridas na vivência de sala de aula, dos projetos escolares que inusitadamente

culminavam com a experiência da culinária para o estreitamento entre os alunos e

as culturas estudadas, momentos de muito aprendizado e memórias deliciosas eram

os dias de apresentação da culinária afro-brasileira.

Como professora de história do ensino básico há mais de 15 anos, sempre

questionei a ausência ou pouca visibilidade dos conteúdos da cultura africana e afro-

brasileira nos livros didáticos de História. Entretanto, essa subalternização dos

assuntos não foi um obstáculo para elaborar projetos escolares, na tentativa de

reduzir esse abismo, e alcançar minimante a consciência da importância do

conhecimento e preservação de um dos pilares de nossa cultura.

A ideia de pesquisar os saberes existentes em um terreiro, mais

especificamente, aqueles que circulam na cozinha, me acompanharia em vários

outros momentos de minha trajetória e seria retomada, posteriormente, na

graduação em História. Nesse curso, estabeleci os primeiros contatos com a História

Oral e a História Cultural, principiando aproximação com temas sobre geografia da

alimentação (QUERINO, 2006), história da alimentação e comensalidade

(MONTANARI, 2013). Aprendi, que a cozinha representa a cultura de quem a

pratica, um elemento aglutinador das tradições e das identidades de grupos. Mas,

terminei enveredando, naquele momento, por outros caminhos de pesquisa.

Já graduada, um acontecimento viria, contudo, novamente instigar o interesse

pelo tema da alimentação: a leitura do livro Beberagens indígenas e educação não

escolar no Brasil Colonial, de Maria Betânia Albuquerque (2012). Na ocasião do

lançamento, em junho de 2013, ao comentar meu interesse pelas comidas e bebidas

como cultura, a autora me encorajou à desafiante empreitada, sugerindo-me uma

aproximação com a linha de pesquisa Saberes culturais e educação na Amazônia do

Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED) da Universidade do Estado do

Pará (UEPA), e a fazer parte do Grupo de Pesquisa em História da Educação na

Amazônia (GHEDA), o qual vem desenvolvendo importante papel na divulgação e

socialização de pesquisas nesse campo.

Page 15: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

14

Também fui encorajada pela autora em 2015, a frequentar como aluna

especial do Mestrado em Educação, a disciplina Seminários Temáticos de História

Cultural e Educação na Amazônia, ministrada pela mesma, de onde retomei a

experiência acadêmica e o desejo de levar a cabo a jornada de pesquisa na área da

nova história cultural, tendo como foco a história da alimentação, em particular, a

cozinha de santo.

Paralelo à essa disciplina, fiz uma busca exploratória em alguns terreiros

afrorreligiosos de Belém e região metropolitana, e observei mais atentamente as

relações neles vivenciadas. Visitei algumas casas, estreitei relações e estabeleci o

diálogo com essas comunidades. Essa pesquisa exploratória ocorreu no mesmo

momento dos debates sobre História da Alimentação travados durante a disciplina

Seminários Temáticos de História Cultural e Educação na Amazônia, e foi

fundamental para compreender que nos terreiros de matriz afro decorriam processos

que iam para além do ato de se alimentar, pois a comida agrega valores, como

tradição, simbolismo, sentimentos, trocas, pertencimento e identidade.

A comida e o ato de comer guardam, assim, diversos significados,

nutricionais, religiosos, festivos e, também, educativos, e são parte importante da

cultura de uma sociedade. Relacionam-se à identidade e ao sentimento de

pertencimento social das pessoas e envolvem, ainda, aspectos relacionados ao

tempo e à atenção dedicados a essas atividades, ao ambiente onde se dão, à

partilha das refeições, ao conhecimento disponível sobre alimentação, rituais e

tradições e às possibilidades de escolha e acesso aos alimentos.

A comida – em específico, a comida votiva – é, portanto, importante

mediadora de conhecimento e, ao mesmo tempo, significante pista para se conhecer

os sujeitos que dela partilham, pois, no ato de se reunir para comer, experiências

são partilhadas e saberes são circulados, configurando-se em ato educativo.

Nesse sentido, a questão da pesquisa pode ser enunciada nos seguintes

termos: como, nas práticas rituais da comida de santo em um terreiro afro-brasileiro

Jeje Savalú desenvolvem-se processos educativos de construção e mediação de

saberes culturais? Desta questão mais ampla decorrem outras, tais como:

qual o lugar ocupado, historicamente, pela alimentação sagrada na

cultura candomblecista, em específico, em um terreiro de candomblé Jeje

Savalú na Amazônia?;

Page 16: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

15

de que forma a cozinha do axé apresenta-se como universo de símbolos

e ensinamentos que dialogam com a tradição e modernidade, pistas da

existência de uma cosmologia do sagrado?;

que saberes da cultura afro-brasileira circulam na culinária sagrada de

uma roça candomblezeira savaluana na Amazônia?;

como a comida sagrada pode fornecer pistas para a compreensão da

ocorrência de processos educativos em uma casa Jeje Savalú na

Amazônia?

Em sintonia com as questões norteadoras, esta dissertação tem por objetivo

geral analisar como, nas práticas religiosas da comida de santo em um terreiro afro-

brasileiro Jeje Savalú, se desenvolvem processos educativos de construção e

mediação de saberes culturais.. Objetiva, ainda:

a) investigar o lugar histórico ocupado pela alimentação sagrada em uma

roça de candomblé Jeje Savalú na Amazônia;

b) analisar os ensinamentos que perpassam a cozinha do axé, a partir de

um diálogo entre tradição e modernidade, em busca da compreensão de

uma cosmologia do sagrado;

c) mapear os saberes que circulam a culinária sagrada, em uma roça

candomblezeira savaluana na Amazônia;

d) analisar as práticas educativas vivenciadas na cozinha de santo em uma

roça de candomblé Jeje Savalu.

Entende-se que a presença e a valorização de tradições culinárias no

cotidiano de um terreiro seja uma porta de acesso privilegiada para pensar sobre os

processos de construção e mediação de saberes que se ancoram nas memórias

deixadas pela cultura e ancestralidade africana, e suas ressignificações na região

amazônica.

O processamento, manipulação e o consumo dos alimentos é momento

educativo significativo, pois nele intercorrem processos de ensino-aprendizagem nos

quais o aprendiz assimila saberes que, posteriormente, serão transmitidos a outras

gerações. Vários símbolos da cultura afro-brasileira são ensinados ao longo da

experiência religiosa em uma casa de santo, com destaque, nesta dissertação, para

aqueles voltados aos saberes culinários.

Conceitos referentes à ética e moral das religiões de matriz africana também

estão no rol dos ensinamentos circulados e apreendidos. Desse modo, homens e

Page 17: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

16

mulheres aprendem, a partir da oralidade e da observação, como se comportar,

como falar, como se vestir, partilhar os alimentos e como agradar aos santos, seja

nos cânticos, oferendas, festas ou, simplesmente, no empenho e dedicação com a

confecção da comida votiva.

1.1 Perspectiva teórica de análise

Os antropólogos descobriram que as melhores vias de acesso, numa tentativa para penetrar uma cultura estranha, podem ser aquelas em que ela parece mais opaca. Quando se percebe que não se está entendendo alguma coisa – uma piada, um provérbio, uma cerimônia – particularmente significativa para os nativos, existe a possibilidade de se descobrir onde captar um sistema estranho de significação, a fim de decifrá-lo (DARNTON, 1984, p. 106).

Uma exploração prévia sobre as pesquisas relacionadas à alimentação ritual,

principalmente, sobre as comidas votivas, ou seja, o alimento de valor simbólico e

sagrado – entendidas no candomblé como comidas de santo –, revelou a existência

de vários estudos situados no campo das ciências da religião, da antropologia

cultural, da história, e alguns no campo da arqueologia. Não obstante, apesar de

alguns estudos fornecerem pistas direcionando a análise do tema da comida pelo

viés da educação, não foram encontrados trabalhos que se destinassem,

especificamente, a esse campo. Desse modo, o recorte analítico que este estudo

propõe se situa no campo da educação, articulado com a perspectiva da

antropologia e da história da alimentação.

Ao fazer um levantamento bibliográfico inicial sobre pesquisas com similitude

temática, considerei trabalhos atrelados às áreas da educação e história da

alimentação e de saberes não escolares, iniciando a busca por descritores como:

Processos educativos no terreiro; Educação no terreiro; Saberes alimentares;

Comida e cozinha de santo. Posteriormente, adicionei mais quatro descritores ao

meu inventário: Culinária candomblezeira; Cultura alimentar afro-brasileira;

Alimentação ritual; e Alimentação votiva. O recorte temporal inicial foram os

trabalhos (periódicos, livros, teses, dissertações, artigos e monografias) produzidos

nos últimos dez anos, entre 2006 e 2016, na grande área de conhecimento das

ciências humanas e educação, e inseridos, mais especificamente, nos campos da

Page 18: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

17

educação, história e antropologia. Posteriormente, ampliei a pesquisa para abranger

mais um ano, até 2017.

O levantamento foi efetuado, primeiramente, por meio da ferramenta Google

Acadêmico, a qual possibilita a busca e o acesso em bibliotecas virtuais, catálogos

de bibliotecas tradicionais, bases de dados bibliográficos, entre outras fontes de

informação, muitas das quais já disponibilizam, parcial ou integralmente, livros,

teses, dissertações, trabalhos de conclusão de curso, artigos e outros em PDF,

como aqueles que podem ser visualizados no Portal de Periódicos da Coordenação

de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e em boa parte do

acervo físico ou online das bibliotecas universitárias.

Foram feitos, também, levantamentos em acervos tradicionais de bibliotecas

locais, como da Universidade do Estado do Pará (UEPA), Biblioteca Central da

Universidade Federal do Pará (UFPA), no Núcleo de Altos Estudos Amazônicos

(NAEA/UFPA), Instituto de Filosofia e de Ciências Humanas (IFCH/UFPA), Instituto

Federal do Pará (IFPA) e nos Programas de Pós-Graduação em Educação da UEPA

e UFPA, utilizando os mesmos critérios de busca aplicados no levantamento online,

na grande área e áreas específicas.

Entretanto, gradativamente, se mostrou necessário o recuo e ampliação do

recorte temporal, à medida que foram encontradas bibliografias clássicas sobre as

religiões de matrizes afro, repletas de pistas e vestígios que enveredavam pelo

universo da alimentação ritual ou sobre outros objetos, analisados à luz das culturas

afrorreligiosas. Obras como as de Querino (1928), DaMatta (1981), Lody (1977) e

Corrêa (2005) são verdadeiros manuais para quem almeja adentrar no vasto

universo das matrizes religiosas africanas.

Em incursão no Portal da CAPES, não foram encontrados trabalhos

produzidos na região amazônica com o descritor saberes alimentares. No entanto,

os descritores processos educativos no terreiro; educação no terreiro; culinária

candomblezeira; cultura alimentar afro-brasileira; comida e cozinha de santo;

Alimentação ritual e Alimentação votiva recuperaram alguns trabalhos na grande

área da ciência da religião, na antropologia e na educação, inclusive, com certa

expressividade numérica, com lócus na região amazônica. Boa parte dessas

pesquisas compõe o acervo dos Programas de Pós-Graduação da UEPA e da

UFPA.

Page 19: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

18

Da mesma forma, foram localizadas pesquisas com os descritores saberes

alimentares, em Abbate (2016); processos educativos no terreiro e educação no

terreiro, em estudos de Mota Neto (2008), Costa (2017) e Ataíde Junior (2017), na

área da educação; Cultura alimentar afro-brasileira, como a dissertação e a tese de

Macêdo (2009; 2016), na área da história da alimentação.

Após esse primeiro contato, me dispus a uma breve análise dessa

bibliografia, com o intuito de dialogar com suas fontes e confrontá-las com o meu

objeto e, dessa forma, obter argumentos e direcionamentos para esta dissertação.

Assim, iniciei tal exame pelas bibliografias que abordavam os descritores processos

educativos no terreiro e educação no terreiro.

Mota Neto (2008), ao enfocar, em sua dissertação de mestrado, o processo

educativo em um terreiro do Tambor de Mina no Pará como um espaço

eminentemente de saberes, confronta a ideia reducionista de educação e

demonstra, sobretudo, a educação como uma atualização da tradição africana,

fundamental para a sobrevivência da religião e da cultura, posto que contribui para a

construção de identidades, orientando as ações dos sujeitos, suas relações dentro e

fora do terreiro, inclusive, no tocante à sociabilização dos alimentos, possibilitando

referências para as suas práxis diárias. Os registros feitos em sua vivência no

campo revelam como as experiências ocorridas no terreiro tornaram fecundas suas

interpretações.

Sua etnografia contribui significativamente para esta pesquisa, na medida em

que propõe um olhar para a educação não escolar, diferenciada, em relação ao que

a tradição escolacentrista e cientificista determina; demonstra as várias dimensões

assumidas no processo educativo cotidiano no terreiro, desde a educação moral até

os ensinamentos da doutrina. Evidencia a existência de toda uma teia de relações

pautadas em aspectos tradicionais da ancestralidade africana, desenvolvidas pela

comunidade do Tambor de Mina, como: as noções de saber, de poder, de

temporalidade, de experiência e de hierarquia, que são produzidas e transmitidas de

geração a geração ao povo de santo.

Em trabalho com temática diferenciada, porém, seguindo a mesma linha de

pesquisa da educação não escolar, Abbate (2016) revela que, na primeira metade

do século XVIII, na Amazônia, as trocas culturais de caráter alimentar possuíam

função educativa, haja vista o aspecto informativo sobre o fluxo global de entrada e

saída de mercadorias, incluindo os alimentos, e as permutas entre vários elementos

Page 20: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

19

da culinária indígena, europeia e africana, entre outros saberes que muito nos

revelam a respeito das práticas culturais daquele período.

Uma percepção que compreende a assimilação dos saberes do cotidiano,

como fruto de uma história da cultura alimentar da Amazônia.

Assim sendo, a pesquisa de Abbate fornece elementos para outros trabalhos

na área da educação, pois permite fazer uma aproximação com a história social e

cultural dos elementos que compunham a diversidade cultural da sociedade

amazônica colonial. Sua pesquisa alerta para o protagonismo indígena, mais

precisamente, da mulher indígena, em relação à proeminência de alimentos dessa

cultura na dieta alimentar da região e da presença de hábitos alimentares indígenas

compartilhados, o que leva o autor a indicá-las como grandes educadoras e

responsáveis pela transmissão da cultura alimentar na Amazônia.

Tais posições auxiliaram-me a enxergar mais livremente os sujeitos, no caso,

as senhoras da cozinha de santo, como agentes mediadores dos saberes a que me

propus investigar na alimentação ritual em uma roça candomblecista.

Fora do campo da educação, a pesquisa de Macêdo (2009) analisa o

processo de abastecimento da cidade de Belém, em pleno século XIX. Ao investigar

as relações desse abastecimento com os interiores da província, com outros países

e ainda com outras províncias do Império, ressalta os produtos mais comercializados

e consumidos na cidade durante a ascensão da economia da borracha, geradora de

transformações urbanas e demográficas.

Em sua dissertação Daquilo que se come: uma história do abastecimento e

da alimentação em Belém (1850-1900), Macêdo (2009) realiza uma história dos

hábitos e práticas alimentares da sociedade belenense da segunda metade do

século XIX. Dessa forma, ajudou-me a estreitar relações com a história da

alimentação e suas ramificações, a história do gosto, a história da mesa e a história

material que a compõe.

Macêdo (2016) defende a tese de que a cozinha paraense de fins do século

XIX e meados do século XX é mestiça, resultando de inúmeras trocas alimentares.

Ao contrário da ideia corrente, na qual a comida paraense é concebida como

regional, o estudo propõe que a mesma é originária de hábitos alimentares mestiços,

fruto de trocas alimentares, de temperos e de preparos entre a culinária indígena,

europeia e africana, resultando em uma cultura hibrida, um fio condutor para

entender as relações de mestiçagem existente no interior da cozinha de santo.

Page 21: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

20

Tal estudo auxilia na compreensão de que a cultura alimentar brasileira é fruto

de um grande processo de mestiçagem, no qual, ao alcançarem o Brasil, os hábitos

alimentares europeus se hibridizaram com elementos indígenas e africanos, devido

à opulência de alguns gêneros, à escassez de outros ou, simplesmente, pela

adaptação e convívio entre as culturas alimentares que, por vezes, depois do

choque entre culturas, tendiam a uma mistura, dando origem a uma cultura alimentar

mestiça.

Da mesma forma, a partir da pesquisa de Macêdo (2016), é possível entender

que os hábitos alimentares das comunidades afrorreligiosas também sofreram tais

influências; além da africana, foram e continuam sendo influência para vários outros

grupos e culturas. Assim, procurei evitar o equívoco de impermeabilizar a culinária

votiva, vê-la como impassível a influências e erguê-la em um pedestal sob a alcunha

da tradição, lembrando, sempre, que tradições podem ser reinventadas.

No campo da Nova História Cultural e, mais especificamente, na linha da

história da alimentação, fora da região amazônica, foram encontrados trabalhos dos

descritores comida de santo e cozinha de santo, como o de Nadalini (2009), no

Paraná. Trata-se de uma dissertação de mestrado que aborda a relação entre

alimentação e religião. Segundo a autora, a alimentação está ligada, em princípio, à

maioria das religiões. O estudo traça uma análise a respeito da relação inerente

entre alimentação, religiosidade e simbolismo, que foi de grande ajuda para

compreender o lugar da alimentação para as comunidades afrorreligiosas.

Os registros de Nadalini (2009) trazem aportes ao presente estudo, pois

reúnem informações diversas sobre as várias dimensões da alimentação ritual, em

particular da comida de santo. Sua análise versa sobre como a comida está

envolvida com a preservação da mitologia dos orixás, ou como os representantes de

alguns terreiros de candomblé, em Curitiba, definidos como “Povo-de-santo”,

condicionam a alimentação, dentro e fora do terreiro, à sua religiosidade. Esse

estudo levou-me à compreensão acerca das específicas e variadas relações

existentes entre a alimentação e os deuses, a alimentação e os homens e os deuses

e os homens.

Ainda no campo da história da alimentação e da antropologia social, registrei

os trabalhos de Ferretti (2011) e Santos (2013), nos Estados do Maranhão e Bahia,

respectivamente. Em artigo, Sérgio Ferretti (2011) analisou os ritos e símbolos

decorrentes das festas de terreiros e dos banquetes servidos nessas festas, os

Page 22: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

21

quais, repletos de signos, descortinam a amplitude da tradição e evidenciam o

sincretismo religioso entre a religiosidade afro e o catolicismo popular, presentes

nesses rituais. Para tanto, ele fez registros em duas casas de Tambor de Mina,

estabelecidas em São Luís desde meados do século XIX. Ferretti buscou evidenciar

que o preparo e o consumo da comida de santo permitem conhecer aspectos do

sincretismo e dos simbolismos nos rituais. Também analisou o fato da comida de

santo se constituir em um elemento atrativo nas festas maiores, devido à fartura dos

banquetes servidos nesses momentos. A experiência de Ferretti representa uma

importante contribuição, pois, além de demonstrar as dimensões alcançadas pela

comida de santo, revela um conjunto de fontes sobre pesquisas no âmbito das

matrizes afrorreligiosas.

O estudo de Wagner Santos (2013) objetivou analisar, através de uma

abordagem antropológica e da nova história cultural, o cotidiano das afro-baianas do

acarajé e as várias implicações que envolvem esse alimento, sejam de esfera

sagrada ou profana. Nem sempre consensuais, as relações que permeiam o

cotidiano em que está inserida a produção e venda dos acarajés é explicitada como

repleta de tensões, oriundas das disputas inter-religiosas, travadas, principalmente,

pelas religiões pentecostais e de matriz afro.

A pesquisa exploratória apontou para alguns trabalhos de valiosa importância

em minhas construções teórico-metodológicas. Entretanto, a principal contribuição

veio com a constatação da consolidação da linha de educação não escolar e da

valorização, ainda acanhada, mas promissora, do campo dos saberes do cotidiano,

principalmente, ao me deparar com estudos como o de Mota Neto (2008) e de

Abbate (2016), que envolvem processos educativos não escolares e de saberes do

cotidiano, na Amazônia, remetendo a um olhar mais amplo sobre a educação, que

entenda o ato de educar sob uma perspectiva ampla.

Uma educação sem amarras, oriunda de uma dinâmica cultural, que habitam

segundo João Colares Mota Neto (2008), um “mundo vivido”, onde sujeitos que

estão, cotidianamente, em situação de privação social, demonstram imensa riqueza

de saberes, experiências e modos de vida. Nessa perspectiva, sujeitos que

comumente são rotulados socialmente como ignorantes, inferiores, vulgares e

carentes aos olhos de uma educação escolacentrista, passam à condição de

mestres de um conhecimento desenvolvido no dia a dia. Uma compreensão

ampliada de educação que a concebe como

Page 23: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

22

prática social de formação cultural e humana de indivíduos e grupos sociais, a qual possibilita a sobrevivência e atualização de padrões culturais e a construção de identidades, por meio da transmissão de geração a geração de saberes, valores, normas de comportamento e linguagens culturais (MOTA NETO, 2008, p. 41, grifo do autor).

Tal concepção de educação auxilia esta pesquisa ao visualizar a relação

entre educação e cultura, que não avalia conhecimentos como inferiores ou

superiores. Uma educação não seletiva; pelo contrário, seu olhar é mais amplo,

parte do pressuposto de uma prática social, não discriminando saberes;

possibilitando, no caso da presente pesquisa, analisar a relação de saberes

originados de hábitos e práticas da cultura alimentar.

No cenário amazônico, já é possível constatar expressiva quantidade de

pesquisas que envolvem processos educativos em locais até então marginalizados,

como é o caso dos terreiros; mais restritas, no entanto, são pesquisas cujo objeto

aponta para elementos da cultura, como o que ocorre na alimentação votiva.

Foi tentando assimilar as relações existentes entre a cozinha de santo e os

demais atores sociais da pesquisa que me deparei com o olhar de Tim Ingold

(2008). Segundo ele, a cultura pode ser assimilada como uma malha de teias

finíssimas, como as produzidas por uma aranha, onde a própria ao tecer passa a ser

um prolongamento das suas teias, ligando tudo a todos, de tal forma que a linha que

separa indivíduo e cultura mostra-se tênue.

Percebo a relação entre os saberes que circulam a culinária sagrada e seus

atores, não como ato dicotômico, mas, de contínua reciprocidade, onde os saberes

são apreendidos e apropriados por seus protagonistas.

Ingold define que as relações existentes no cotidiano em uma pesquisa

etnográfica devem assumir a forma de um emaranhado similar às teias de aranha.

Tendo em vista que experiência e objeto estão imbricados de tal forma, passando

assim um a ser extensão do outro. Para ele,

Diferente das redes de comunicação, por exemplo, os fios de uma teia de aranha não conectam pontos ou ligam coisas. Eles são tecidos a partir de materiais exsudados pelo corpo da aranha, e são dispostos segundo seus movimentos. Nesse sentido, eles são extensões do próprio ser da aranha à medida que ela vai trilhando o ambiente (INGOLD, 2008, p. 210).

Page 24: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

23

A alimentação é intrínseca a essa teia, pois a participação no seu sistema

particular só é possível com a participação profusa no seu sistema geral de

símbolos, o qual chamamos cultura, pois o primeiro sistema nada mais é do que a

compartimentação do segundo.

Dessa maneira, é possível entender que a comida de santo e seu sistema

cultural particular possuem dimensões simbólicas que vão além do seu valor

nutritivo e contemplam uma multiplicidade de sentidos, como o sagrado, o

sentimental e o educacional.

Assim, na produção da comida de santo, não há simplesmente o

envolvimento de ingredientes culinários. Hábitos e práticas dos ancestrais africanos

são lembrados em histórias contadas a cada prato preparado. É possível, então,

aprender, a partir desses hábitos alimentares do passado, sobre lugares, pessoas,

suas histórias e crenças.

A comida, vista como cultura, agrega valores que possibilitam uma identidade

àquele que a consome. Ela tem o poder de alterar posicionamentos ou fortalecê-los.

Pode, inclusive, reduzir o atrito entre culturas, porque, diferentemente de outros de

elementos da cultura, como a própria língua, ela funciona como elo de atração e de

curiosidade entre as pessoas.

Na percepção de Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari (1998), os

alimentos não são apenas comidos, mas, também, pensados; a comida possui um

significado simbólico, possui algo mais que nutrientes:

Acredita-se, geralmente, que o comportamento alimentar do homem distingue-se do dos animais não apenas pela cozinha – ligada, em maior ou menor grau, a uma dietética e a prescrições religiosas – mas também pela comensalidade e pela função social das refeições. [...]. Com o risco de cair num antropomorfismo descabido, pode-se perceber, nas refeições das próprias feras, um prazer em comer junto, uma certa cumplicidade atenta a uma clara hierarquia, que comporta precedências, e uma espécie de etiqueta adaptada a sua sociedade (1998, p. 32-35).

Partindo dessa forma de refletir a alimentação, a historiografia italiana

defende a comida como elemento que distingue o ser humano de outras criaturas

pela função social que exerce, pois o ato de comer possui um forte viés culturalista,

uma vez que não revela somente um aspecto fisiológico, mas, também, trocas,

Page 25: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

24

experiências, sentimentos, crenças, tradições, entre outras relações que

caracterizam a comensalidade.

A história da alimentação e a história da cultura humana estão, assim,

intrinsecamente ligadas, despertando o gosto de especialistas que fizeram dessa

área uma empreitada de vida, e, desde então, inúmeros trabalhos vêm sendo

publicados. Não se trata de entender somente o que se come, mas, principalmente,

ter o alcance de como, quando e o significado daquilo que se come.

Por trás dos benefícios do cozimento da carne para uma melhor e mais rápida

digestão, ou pela tentativa de obter uma cultura alimentar adequada para alcançar

uma qualidade de vida superior, o ser humano vem tentando desvendar os sentidos,

propriedades e símbolos da arte de preparar os alimentos, para compreender a sua

própria trajetória e, quem sabe, assim alcançar a longevidade.

Estudos sobre alimentação e identidade demonstram que antropólogos,

sociólogos e historiadores da alimentação têm se debruçado para entender os

efeitos ocasionados quando uma população é deslocada forçosamente, como a

experiência vivenciada pelas etnias africanas, durante a escravidão no Brasil. Para

Roberto DaMatta (1981), é preciso entender que nesse deslocamento tais sujeitos

levam consigo um conjunto de práticas ligadas à sua alimentação, traduzindo ou

acrescentando possibilidades e práticas alimentares no novo contexto em que

passam a viver, se adaptando ao sistema alimentar local, mas, interferindo nele a

partir dos hábitos nativos.

A alimentação é, dessa maneira, parte intrínseca da identidade cultural que

cada sujeito carrega por toda sua existência, não sendo possível, segundo Lévi-

Strauss (2004) apartá-la dos outros sentidos e características que fazem dele um

indivíduo, pertencente a um lugar e a um corpo social. Lévi-Strauss (2004, p. 30)

assevera que

“as formas de alimentação podem dizer algo importante não apenas sobre as formas

de vida, mas também sobre a estrutura de uma sociedade e sobre as regras que lhe

permitem persistir e desafiar o tempo”.

Na obra Comida como cultura, Montanari (2013) demonstra, citando exemplos

de mitos gregos e de tradições cristãs, que a rejeição à cozinha (e, portanto, ao

cozido) assume o significado de contestação da “civilização”. O autor corrobora com

a visão de Lévi-Strauss(2004), de que comida é necessidade biológica, mas,

também é algo que identifica o indivíduo com sua cultura, com seu lugar no mundo.

Page 26: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

25

Assim, destaca o quanto a alimentação traz, em suas práticas, muito do grupo que a

reproduz cotidianamente.

Ao refletir sobre a comensalidade, entendida com prática caracterizada pela

partilha de alimentos, Montanari afirma que, “assim como a língua falada, o sistema

alimentar contém e transporta a cultura de quem a pratica, é depositário das

tradições e da identidade de um grupo” (2013, p. 183). A comida, portanto, torna-se

um importante veículo de “auto representação e de troca cultural”, presumivelmente,

mais agregador do que o próprio o idioma: afinal, comer a comida de outros, lembra

o autor, é relativamente mais fácil do que decodificar seu idioma.

Na esfera do cotidiano, segundo Montanari (2013), essas duas noções, auto

representação e troca cultural, são quase sempre assimiladas de forma antagônica:

a troca cultural aparece como uma barreira à salvaguarda das identidades. Contudo,

o autor chama atenção para o fato que não é correto presumir a autopreservação,

ou identidade cultural, como uma entidade metafísica, ainda que o seu lugar na

história tradicional seja para perpetuar a ideia de produção de “raízes”.

Inspiração para esta e outras pesquisas, a obra História da alimentação, de

Flandrin e Montanari (1998), posiciona a alimentação como um intrigante ingrediente

da cultura, que vem se tornando parte presente em vários trabalhos. Ao traçar um

paralelo entre a trajetória da história do homem e dos seus hábitos alimentares, os

historiadores italianos provocam outras tantas analogias do tema da alimentação

com diversas áreas, como, por exemplo, as relações entre alimentação e educação,

em particular a alimentação nos terreiros de Candomblé.

Segundo Raul Lody (1977), ao serem trazidas ao Brasil, de forma

compulsória, após uma perigosa e exaustiva travessia pelas águas do Atlântico,

nações da África trouxeram consigo um modo de vida bem diferente do existente na

colônia portuguesa, incluindo hábitos alimentares, de diversas áreas da terra mãe,

tais como os aspectos peculiares de regiões da costa do Benim .

Região africana de um relevo de formação rochosa, o Benim era recortado

por muitas montanhas, possuía economia agrária dependente de uma base de

subsistência, onde os gêneros agrícolas refletiam a tradição alimentar de maior

consumo entre os habitantes desse território. Não por acaso, os grãos continuam,

ainda hoje, como base primordial dos alimentos processados nas religiões de matriz

afro-brasileira, exemplo, da nação Jeje Savalú, ora estudada.

Page 27: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

26

Corroborando com a ideia de que a comida possui muitos signos, Raul Lody,

convida a observar que boa parte das receitas do candomblé são elaboradas a partir

de grãos, como milho. Os grãos acompanham variados pratos e demarcam

acontecimentos de grande significação para as comunidades afrorreligiosas. A trilha

deixada por esses gêneros alimentares funciona como pista que revela a influência

ancestral africana:

O candomblé é, sem dúvida, o reduto de grande significado para a sobrevivência da cozinha dos orixás, onde as atitudes rituais e maneira de preparar os alimentos estão repletas de sentidos religiosos, significados sociais, sendo de alta importância para a boa realização da comida. Os pratos que constituem o cardápio dos deuses estão projetados além dos santuários - "barracões" e comunidades afro-brasileiras nas festas públicas e de largo, onde as multidões se reúnem para louvar e obsequiar seus santos de devoção. As comidas à base de milho, papas, azeite de cheiro, camarões secos, gengibre e bebidas - refrescos e alcoólicas, desempenham suas ações socializantes mantendo os grupos em suas atitudes de divertimento e fé (LODY, 1977, p. 34).

Entretanto, há de se considerar nessa identidade cultural outros aspectos,

como aqueles inseridos ao longo da diáspora africana, e que refletem o próprio

processo de mestiçagem desses hábitos alimentares. Caso exemplar foi a

mandioca, gênero amplamente usado em religiões afro-brasileiras na Amazônia.

Boa parte dessa identidade cultural trazida pela nação Savalú seguiu preservada

pela influência cultural alimentar originária da África, mesmo que de forma

ressignificada.

Desse modo, é possível entender a relação existente entre a comida que

circula no terreiro e a identidade desta com a cultura que ela exprime. Como expôs

Roger Bastide ao analisar a comida dos orixás, “os deuses são grandes comilões”

(2001, p. 331). Tal afirmação surge, principalmente, devido à presença constante da

comida em diversas ocasiões no cotidiano nos terreiros.

Assim sendo, a valorização de tradições culinárias no cotidiano de um terreiro

e nas diversas festas, comemorações e rituais representa uma porta de acesso

privilegiada para introduzir questões relacionadas aos processos de construção e

reconstrução de identidades étnicas, que dialogam e se ancoram nas memórias

deixadas pela cultura e ancestralidade afro, e suas ressignificações na região

Amazônica.

Page 28: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

27

Em História da alimentação no Brasil, Câmara Cascudo comenta:

Como a inclusão do milho nas comidas de Oxossi, Iemanjá, Omulú ou Xapanã que também gosta de pipocas, o feijão para Oxum, o fumo no culto de Irocô, e farinha de mandioca no amalá de Iansã. Serão conquistas brasileiras e não fidelidades sudanesas no cardápio dos orixás (2004, p. 161).

Não obstante, Cascudo (2004), admite haver na gastronomia brasileira

grande influência de elementos da culinária africana. Estes são notadamente

encontrados em grande abundância nas comidas votivas, das religiões afro-

brasileiras. Ainda assim, é perceptível a ação das permutas alimentares que

ocorrem com certa regularidade nas experiências gastronômicas desses terreiros,

mas, de forma distinta de comunidade para comunidade.

Desse modo, a comida de santo expressa não só a cultura alimentar africana,

como também a afro-brasileira, pois a mesma tem em si elementos da cultura

originaria da África, ao mesmo ponto em que revela em si elementos formadores da

identidade brasileira. É possível, portanto, ver expressos nela modos de ser, crenças

e saberes transmitidos desde a diáspora, e que sobrevivem até os dias de hoje.

Alinhavada conforme as premissas da Nova História Cultural, a alimentação é

compreendida no sentido mais amplo da cultura, e essa, por sua vez, é articulada ao

movimento de ampliação da noção de educação que rejeita a monocultura do saber

e considera processos educativos em locais antes subalternizados, como os que

ocorrem nas cozinhas de santo.

O termo comida de santo foi interpretado tanto em alusão ao seu caráter

ritualístico quanto às práticas de seu preparo, vistas como momentos de troca de

sentimentos, símbolos, envolvendo uma grande partilha de saberes que configuram

um processo educativo.

A educação, tal como a história, atenta cada vez mais para as relações do

cotidiano, onde se encontram os saberes. Uma educação encarada pelo viés da

cultura, em oposição a uma educação restrita à hegemonia escolar – tal como afirma

Fonseca (2003, p. 59-60), ao analisar a produção acadêmica em história da

educação e constatar “uma forte e já reconhecida tendência das pesquisas na

direção da nova história, especialmente na história cultural”.

Desse modo, lugares antes considerados inapropriados à educação, como o

terreiro e a cozinha, passam a ser descortinados a partir da perspectiva cultural da

Page 29: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

28

educação, revelando um arcabouço de saberes do cotidiano antes silenciados e

possibilitando que múltiplas práticas educativas sejam visibilizadas.

Os saberes do cotidiano, segundo Carlos Brandão (1981, p. 149), atrelados

às práticas culturais, formam uma dimensão educativa da alimentação. Isto posto,

Brandão afirma, nas práticas simples de um lavrador, existe um grande saber

compartilhado. Saber este que não só vislumbra hábitos e costumes alimentares,

mas também os preceitos, mitos e tabus em torno desses. Saberes de um lavrador,

que contempla a sabedoria da experiência sobre o que deve ser ingerido com

temperança ou de que “nem tudo o que é potencialmente comestível na natureza

pode ser consumido pelo homem, certos alimentos não devem ser comidos também

por certos tipos de pessoas”. Brandão (1981, p.150) explica que geralmente o que

mais intriga o pesquisador durante uma entrevista é

compreender a ordem de um domínio de representações sociais, ao mesmo tempo em que observa condutas e participa de situações onde o objeto representado é manipulado e consumido pelo sujeito, é a divergência entre o rigor das recomendações que acompanham as séries de conjunto alimentares e as condutas do cotidiano (BRANDÃO, 1981, p. 150).

O autor amplia, dessa forma, a noção da educação, a partir do estudo sobre

os hábitos alimentares dos camponeses de Mosâmedes, e aguça os sentidos para

além do domínio escolar, o que possibilita a compreensão da existência de

“educações”, visão agregadora e de caráter sociocultural.

Brandão respalda a existência de educação nos meios mais improváveis,

abrindo espaço para saberes do cotidiano, narrativas de vida, um tipo de educação

que se pauta no real, no sensível e, sobretudo, na diversidade. Para além da

educação escolar, Brandão (1993, p. 13-14) aponta para as:

Redes e estruturas sociais de transferência de saber de uma geração a outra, onde não foi sequer criada a sombra de algum modelo de ensino formal e centralizado. A educação aprende com o homem a continuar o trabalho da vida. [...]. Assim, aos poucos acontece com a educação o que acontece com todas as outras práticas sociais (a medicina, a religião, o bem-estar, o lazer) sobre as quais um dia surge o interesse político de controle. Também no seu interior, sistemas antes comunitários de trocas de bens, de serviços e de significados são em parte controlados por confrarias de especialistas, mediadores entre o poder e o saber.

Page 30: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

29

Nesse sentido, ao refletir sobre como processos educativos se manifestam no

ato de se alimentar, ressalto a existência de uma rede de saberes que circulam na

cozinha do terreiro, pautada nas mais variadas dimensões e simbologias, com

destaque, nesta pesquisa, para as dimensões orgânica, sagrada, estética e de

representação da cultura ancestral afro-brasileira.

Assim, à medida em que consolidava a experiência na cozinha do terreiro, era

perceptível que os saberes que fluíam naquele ambiente demonstravam uma cultura

pautada, principalmente, em uma tradição oralizada, com seus fundamentos,

sobretudo, na vivência e na memória.

Os conhecimentos adotados pela Sacerdotisa Gàniyakú1 Jokolosy são, na

sua maioria, provindos de uma memória representativa da reinvenção da tradição

africana. Algo que só pôde ser consolidado com a vivência e a partir do aprendizado

diário. São saberes do cotidiano, marcados pela experiência e pela criação de

estratégias de sobrevivência de suas tradições culturais. Albuquerque (2012, p. 24)

entende os saberes como:

Uma forma singular de inteligibilidade do real fincada na cultura, com a qual determinados grupos reinventam o cotidiano, criam estratégias de sobrevivência, transmitem seus saberes e perpetuam seus valores e tradições.

Registros de um saber que reflete a tradição de um povo, as experiências

cotidianas na cozinha de terreiro são permeadas de sensações e repletas de

ensinamentos. Os processos que se desenvolvem nesse local possuem aparência

singular, assumindo um sistema próprio, inteligível quando olhado pelo viés da

história cultural e de uma acepção ampla de educação.

Tal debate repousa sobre o pressuposto de que, por saberes, não se tem

apenas noções e valores acadêmicos, mas, também, valores sociais, adquiridos a

partir da tradição, territorialidade e identidade cultural, um convite a revisitar a noção

de cultura a partir da relação homem-natureza. Uma possibilidade de fazer jus a

saberes que transcendem a própria condição de conhecimento, para além da noção

1 Termo dado no candomblé Savalú à pessoa mais experiente nos rituais vodun, aquela

que transmite os ensinamentos da religião, da ética e da tradição para os filhos do terreiro, a senhora da saia longa.

Page 31: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

30

simplista que reconhece somente o saber acadêmico, em detrimento daqueles

obtidos pela vivência e experiência.

De que forma se pode perceber os saberes da comida de santo como um ato

potencial de aprendizagem? Como tal processo se relaciona com a transmissão da

cultura Jeje Savalú, da retenção de seus valores ancestrais, de seus hábitos e

costumes, representantes não só da tradição alimentar como, também, da religiosa?

Daí a importância de refletir sobre as experiências dentro de uma cozinha de santo e

dos sujeitos que a protagonizam.

O historiador Thompson (1981) exprime a experiência como resultante da

imbricação das relações do sujeito com sua cultura material e com as relações

vividas por este com outros indivíduos de seu grupo. Também investiga as relações

desses com sua classe ou comunidade, e como, de sua experiência cotidiana, em

conjunto com sua vida material, provém sua construção do conhecimento e a forma

como interpretam a realidade à qual estão submetidos no mundo.

Para Thompson, essas experiências vividas por uma comunidade ou grupo,

como aquelas que são percebidas, retidas e/ou transformadas no ambiente da

cozinha de um terreiro de candomblé Jeje Savalú, constituem-se em fontes

históricas para a interpretação da formação da comunidade. Segundo o autor, com

experiência e cultura estamos num ponto de junção de outro tipo. As pessoas não experimentam suas experiências apenas como ideias ou como instinto proletário. Elas também experimentam suas experiências com sentimento e lidam com esses sentimentos na cultura, como normas, obrigações familiares e de parentesco, e reciprocidades, como valores ou (através de formas mais elaboradas) na arte ou nas convicções religiosas. Essa metade da cultura (e é uma metade completa) pode ser descrita como consciência afetiva e moral (THOMPSON, 1981, p. 189).

O conceito acima converge na percepção sobre a experiência da alimentação,

no sentido de que, na cozinha de santo, o elaborar dos alimentos surge não

somente como experiência fisiológica, de sobrevivência do corpo físico, mas,

sobretudo, da própria sobrevivência da tradição de um povo, neste caso, a

sobrevivência da nação Jeje Savalú, a partir das experiências com a culinária da

ancestralidade africana.

Page 32: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

31

Assim como a comida é um ato cultural, todo o conjunto de artefatos e de

experiências deve ser considerado como parte de sua cultura material e imaterial.

Meneses (1983, p. 112) afirma que cultura material compreende

Aquele segmento do meio físico que é socialmente apropriado pelo homem. Por apropriação social convém pressupor que o homem intervém, modela, dá forma a elementos do meio físico, segundo propósitos e normas culturais. Essa ação, portanto, não é aleatória, casual, individual, mas se alinha conforme padrões, entre os quais se incluem os objetivos e projetos.

Pesquisas que direcionam para um sentido mais amplo de cultura, incluindo a

do antropólogo Vilson Caetano Sousa Júnior (2009), que, ao definir como objeto de

seu estudo o papel da responsável pela cozinha em um terreiro de candomblé, torna

evidentes as mudanças já conquistadas pela Lei 10.639/2003.

O autor analisa o cargo da responsável pela cozinha do terreiro, dando

visibilidade a dois objetos: o terreiro e a comida de santo. O posto da yabassé

(Dunúngàn no candomblé Savalú), segundo Sousa Júnior (2009), é definido como a

”Guardiã da comida dos orixás”, posto legitimado pela escolha da iyalorixá ou

babalorixá e recebido por uma das ebômis, ou seja, filhas de santos que já

completaram as obrigações de sete anos. Sousa Júnior (2009, p. 200) explica:

No terreiro, a chamada comida de orixá obedece a prescrições complexas construídas ao longo do tempo e redefinidas a cada momento de acordo com uma função que deva desempenhar ou à “realidade” que deseje instaurar ou dialogar. Tudo isso é expresso nas múltiplas formas, maneiras diferentes, modos de preparar, fazer ou de “tratar” os ingredientes.

Tal teoria sobre a comida no terreiro me auxilia a compreensão de como os

hábitos culinários são a chave importante para o entendimento do tipo de

relacionalidade que vigora no movimento dialético da aprendizagem – uma relação

que envolve misturas, transformações e fluxos. Para o autor,

Além de oferecer entrada à ontologia do candomblé, a comida é também porta de acesso à ética que lhe é própria: o preparo, oferta, distribuição e consumo do alimento são definidores da complexa

Page 33: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

32

dinâmica de cuidado que modula a vida de um terreiro2 (SOUSA JÚNIOR, 2009, p. 200).

A atenção a essas atividades que envolvem a cozinha mostra que, no

candomblé, o cuidado com as tarefas é inseparável do envolvimento e apreciação

do sensível, ou seja, a ética e a sensibilidade estão fortemente imbricadas. Também

ilumina a rotina de trabalho necessária para fazer circular a comida e discute o

campo de ação ética que é aberto por esta rotina.

A cultura material de um povo é a própria manifestação da sua ação na

história. Por meio desta, é possível ter indícios de seus hábitos, costumes, regras,

crenças, economia praticada, entre outras pistas da vida material que os nossos

ancestrais deixaram como legado.

Por meio da cultura material presente nas relações na cozinha do terreiro,

pode-se entender de que forma há apropriação, ou uso pragmático da tradição

Savalú (valor de uso, ou prático) em sintonia com a cultura imaterial (valor

simbólico). Tais objetos funcionam, portanto, como vetores pedagógicos mediadores

de identificação com os mitos, os símbolos e a cultura africana, e, por meio desses

utensílios, valores são preservados, num ato de aprendizagem contínua.

Finalmente, o uso de termos como: educação e comida como cultura;

educação da atenção, saberes da experiência e do cotidiano; memória, identidade e

cultura material, perpassados e alinhavados à luz da história da alimentação e de

uma percepção mais ampla da educação, compreendem as principais categorias

analíticas que norteiam esta pesquisa.

1.2 CAMINHOS DA PESQUISA

A presente pesquisa, voltada os processos educativos e os saberes que

circulam na cozinha de uma roça de candomblé Jeje Savalú no Pará, configura-se

como um estudo de campo, do tipo etnográfico, orientado por sentido mais amplo de

educação; como cultura e, portanto, coexistindo em diferentes espaços sociais.

2 Para entender o processo de relacionalidade analisado a partir de um terreiro de

candomblé, ver Sousa Junior (2009).

Page 34: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

33

Ao observar o ambiente em que o processo pedagógico é vivenciado, haja

vista seu caráter rotineiro, optei pela etnografia, com registros estruturados, obtidos

com a observação não participante, descrição dos dados e análise dos resultados.

O método etnográfico é um expediente que informa este trabalho de

pesquisa, através de dados registrados a partir da observação da ação dos sujeitos.

Tal método é de grande auxilio para a análise dos processos e interações sociais,

daquilo que é feito e das ausências, do que é dito (fala) e até dos interditos

(silêncios). Tem a funcionalidade, por todas as suas características, de suscitar o

que há de complexo, mas também o singular, a “arte de fazer”, como diz Certeau

(1994), o que possibilita explorar o cotidiano dos sujeitos.

A descrição densa, que é o detalhamento dos processos ocorridos no interior

da pesquisa, obtida com a observação em campo, considera os limites decorrentes

da própria construção da análise. Geertz (1989) aponta características analíticas,

que permitem ressaltar as particularidades, complexidades ou miudezas em uma

pesquisa etnográfica, como o fato dela ser “interpretativa; o que ela interpreta é o

fluxo do discurso social e a interpretação envolvida que consiste em tentar salvar o

„dito‟ num tal discurso da sua possibilidade de extinguir-se e fixa-lo em formas

pesquisáveis [...] ela é microscópica” (GEERTZ, 1989, p. 31).

Geertz corrobora que uma descrição densa permite ao pesquisador perceber

os momentos de estranheza, os conflitos, as piscadelas, tiques nervosos, ações

ensaiadas, enfim, tudo o mais que poderia passar despercebido se a pesquisa

recorresse a outros métodos. Ciente disso, e ao observar que, algumas vezes, os

sujeitos pareciam ter ações ensaiadas nos terreiros que visitei em Belém, dessa

forma, a pesquisa de campo do tipo etnográfica possibilitou-me enxergar até mesmo

quando as ações tinham certa plasticidade, ou seja, eram simuladas.

À medida que minhas experiências com os membros do terreiro se

intensificavam, e observando-os em suas funções mais rotineiras, notei a quantidade

expressiva de narrativas míticas e depoimentos de histórias de vida. Percebi, dessa

forma, a importância de recorrer à história oral.

Para compreender os hábitos alimentares dos filhos de santo tornou-se

necessária a observação de como executam as tarefas em silêncio, como utilizam

linguagem corporal para comunicação, e, sobretudo, como valorizam a

aprendizagem por meio da atenção.

Page 35: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

34

Então, enveredei a análise segundo pressupostos da história oral, devido à

complexidade do tema que se pauta na transmissão oral dos saberes culinários que

agregam consigo a cultura e ancestralidade afrorreligiosa, oriunda da diáspora

africana e/ou afro-brasileira. Afinal, quando as etnias africanas chegaram com seus

hábitos, crenças e tradições culturais, por ocasião da escravidão, elas tentaram

preservar seus conhecimentos tradicionais, por meio da oralidade.

Recorri, portanto, à história oral, por entender que a decodificação das

memórias faz parte das inúmeras contribuições possibilitadas pelo seu uso.

Segundo Thompson, a memória “quando inventada, não foi mais do que uma

cristalização do relato oral” (THOMPSON, 1992, p. 17). O autor inglês também

afirma que é possível trabalhar a história oral em três perspectivas:

A primeira é a narrativa da história de uma única vida. No caso de um informante dotado de memória excepcional, pode parecer que nenhuma outra escolha fará plena justiça ao material. A segunda forma é uma coletânea de narrativas. Uma vez que pode ser que nenhuma delas seja, isoladamente, tão rica ou completa como narrativa única, esse é um modo melhor de apresentar um material de história de vida mais típico. A terceira forma é a da análise cruzada: a evidencia oral é tratada como fonte de informações a partir da qual se organiza um texto expositivo (THOMPSON, 1992, p. 303).

As fontes orais e a recorrência à memória foram valorosas a esta pesquisa,

pois que, além dos relatos da sacerdotisa da casa, também foram ouvidos os relatos

dos sujeitos imbricados na produção e mediação dos saberes da comida de santo.

Para Machado (2007), o pensamento africano compreende sua própria

identidade e está pautado em signos que possuem uma lógica própria,

compartilhada geração após geração, e que, na forma de resistência ou pela própria

ressignificação, sobreviveram a processos agressivos, como a própria diáspora.

Para Machado (2007, p. 9), trata-se de uma

Lógica que se faz pela reexistência, como fenômeno de transformação cognitiva pela inter-relação de seres e saberes compartilhados. Seres que, expatriados pela diáspora, resignificaram seus papéis, organizando-se em torno de uma identidade ancestral. Saberes que se imbricaram e se expressam nos enredos da história oral, nos mitos, cantigas, provérbios e falares que anunciam um éthos epistemológico enraizado no pensamento africano na sua atemporalidade (MACHADO, 2007, p. 9).

Page 36: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

35

Assim, é possível aferir que boa parte dos ensinamentos afro religiosos são

mediados através dos mitos e cânticos oralizados e entoados, respectivamente.

Igualmente importante é o fato de que inúmeros desses mitos, no candomblé Jeje

Savalú, estão relacionados ao cardápio dos Voduns, e, por isso, têm dupla

finalidade: a de transmitir os ensinamentos dos ancestrais e a de fornecer pistas em

relação à alimentação dos deuses insaciáveis.

Faz parte da proposta deste estudo familiarizar o leitor com a rotina dos

processos educativos ocorridos em uma cozinha de santo e, consequentemente,

aproximá-lo dos saberes que circulam no ambiente, através dos registros das

experiências vividas e pelas narrativas das memorias de vida e narrativas míticas, no

epicentro e no entorno da cozinha de candomblé, para que, assim, seja possível

entender as formas pelas quais os saberes se dispõem e são transmitidos. Para

tanto, aliamos o método etnográfico aos pressupostos da história oral.

Trata-se de poder visualizar e acompanhar a rotina que se estabelece no

cotidiano da casa a que pertence essa cozinha. Pois tal rotina é uma parte

importante de toda a engrenagem movente das tarefas do terreiro. Segundo Lozano

(1996, p. 16), o uso esse método, portanto, torna a pesquisa:

Um espaço de contato e influência interdisciplinares; sociais, em escalas e níveis locais e regionais; com ênfase nos fenômenos e eventos que permitam, através da oralidade, oferecer interpretações qualitativas de processos histórico-sociais. Para isso, conta com métodos e técnicas precisas, em que a constituição de fontes e arquivos orais desempenha um papel importante. Dessa forma, a história oral, ao se interessar pela oralidade, procura destacar e centrar sua análise na visão e na versão que brotam do interior e do mais profundo da experiência dos atores sociais. (LOZANO, 2012)

Percebi que a minha presença causava estranhamento e algumas mudanças

no cotidiano do terreiro, levando-me a pensar estratégias para que os sujeitos

pudessem agir o mais naturalmente possível com a minha intrusão em seus

afazeres. Primeiramente, foi necessário guardar meu caderno de campo, pois

percebia que ele ocasionava mais incômodo do que o próprio celular. Mesmo

cientes de que estavam sendo gravadas, as pessoas se sentiam mais confortáveis

ao falar de suas experiências; outras, mais arredias, perguntavam se poderiam ver

seus depoimentos depois de transcritos.

Page 37: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

36

Outra estratégia usada foi pedir para que me ensinassem alguns de seus

afazeres. Dessa forma, pude ajudar em algumas das tarefas e, assim, obtive a

confiança de muitos. No entanto, só pude auxiliá-los nas tarefas que não possuíam

sentido sagrado.

Aos poucos, fui obtendo a simpatia do grupo, às vezes, compartilhando

algumas tarefas; em outras, simplesmente, em proveitosas conversas informais, em

almoços, lanches ou durante uma carona, ou nos intervalos entre suas obrigações.

Certa vez, tive a oportunidade de ir ao supermercado com as senhoras

responsáveis pela feitura da comida de santo, juntamente com a Mãe Jokolosy, que

sempre fazia questão de escolher o material a ser usado no cardápio da festa e,

assim, orientar as demais para que, no futuro, elas pudessem desempenhar tais

tarefas sem o seu auxilio. Pude observá-la explicando a importância da escolha de

cada ingrediente usado no preparo dos pratos. No mesmo dia testemunhei a

sacerdotisa explicando algumas noções sobre os saberes às filhas de santo.

Explicou que comidas rituais

eram as comidas específicas de cada Orixá, que, para serem preparadas, são submetidas a um verdadeiro ritual, por isso era preciso ser seletiva ao escolher seus ingredientes. Esses alimentos depois de prontos são oferecidos aos Orixás acompanhados de rezas e cantigas, durante a festa ou no final, em grande parte são distribuídas para todos os presentes, são chamadas comida de axé pois acredita-se que o Orixá aceitou a oferenda e impregnou de axé as mesmas (depoimento de Mãe Jokolosy, 2017).

Enfim, pude entender que o pesquisador etnógrafo precisa burlar o

acanhamento natural que existe sempre que um corpo estranho é introduzido a um

ambiente já acostumado à rotina vivenciada. Compreendi, na prática, o que me

disse uma vez o Kpédjígàn Hunsijé: “no candomblé primeiro se aprende, depois de

muito tempo se apreende e só assim de fato se compreende”. Ficou claro que minha

pesquisa teria limites nítidos, por conta do tempo empregado, pois possuía pouco

mais de um ano para concluí-la.

Em vista disso, fui a campo toda semana (pelo menos, três dias por semana),

para registros e coleta de depoimentos no terreiro. Como nem sempre tinha alguma

tarefa da cozinha, e eu tinha pouco tempo para a naturalização da minha presença

na casa, passei a me colocar à disposição em tarefas, que não estavam ligadas

diretamente ao meu objeto de pesquisa. Mesmo assim, ainda, havia a barreira

Page 38: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

37

natural, por conta de não pertencer a religião, de modo que alguns membros me

recebiam com certa desconfiança.

Assim, visando me inserir o mais possível no ambiente pesquisado, passei a

acompanhar os sujeitos da casa em alguns de seus projetos políticos e sociais,

como as passeatas pela Associação Afrorreligiosa e Cultural Funderê Oyá Jokolosy

(Arfuojy), festas em outros terreiros, e no lançamento do livro O candomblé Jeje

Savalú na Amazônia: história, cosmovisão e ecologia, desdobramento da

dissertação de mestrado do pesquisador Manoel Roberto Ferreira Chagas, na

associação Arfuojy, dentre outras tarefas mais corriqueiras, mas, que contribuiram

para tornar menos profundo o abismo entre pesquisadora e objeto.

Mesmo considerando a urgência em coletar evidências do cotidiano, não vi

problemas em passar algumas horas de convívio sem a pretensão de registros de

campo e, assim, dedicar-me ao estreitamento de laços ou, pura e simplesmente, à

ambientação aos ritos.

Também havia a consciência de que, apesar de todas as hipóteses prévias, e

mesmo adotando um planejamento prévio, poderia ser surpreendida por situações

fora de meus aportes teóricos e metodológicos, de maneira que se tornou

necessário criar possibilidades, soluções para sanar tais percalços. Afinal, adotar um

plano rígido teria o efeito de inviabilizar a pesquisa. Corroborando com essa ideia,

Malinowski (1984, p. 22) afirma que:

O pesquisador de campo depende inteiramente da inspiração que lhe oferecem os estudos teóricos [...]. Conhecer bem a teoria e estar a par de suas últimas descobertas não significa estar sobrecarregado de ideias preconcebidas. Se um homem parte numa expedição decidido a provar certas hipóteses e é incapaz de mudar seus pontos de vista constantemente, abandonando-os sem hesitar ante a pressão da evidência, sem dúvida seu trabalho será inútil.

Decidida a submeter minhas hipóteses às evidências surgidas com a

exploração do campo, como incentiva Malinowski, visitei algumas casas de santo,

antes de definir o terreiro no qual me dediquei a pesquisar. Durante essa busca

exploratória em casas de distintas linhas da matriz africana, observei uma

complexidade e diversidade muito grande quanto ao entendimento do papel da

guardiã ou senhora da cozinha:

Page 39: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

38

a) Diferenças em relação ao comportamento e identificação assumidos pelos

sujeitos que manipulam a comida de santo, não somente do ponto de

vista deles, mas, levando em consideração o olhar dos outros membros

integrantes do terreiro;

b) As designações do cargo das senhoras da cozinha, pois, dependendo da

linha, há uma diferenciação, relacionada à etnia e língua a que pertencem

às casas;

c) Quanto à estrutura hierárquica que os cargos relacionados à cozinha

votiva ocupam em relação aos demais cargos existentes em um

determinado terreiro;

d) A divisão etário-sexual presente na distribuição das tarefas rotineiras da

cozinha de santo;

e) Os trâmites da iniciação aos cargos pelo regimento da casa de santo,

percebendo, dessa forma, aqueles que estavam em contato direto ou

indireto com os saberes que circulam na cozinha;

f) A dieta alimentar diferenciada de casa para casa, incluindo as que

seguem a mesma linha.

Diante do que o campo apresentava, delimitei o lócus da pesquisa.

1.3 O LÓCUS DA PESQUISA

A fim de entender a estrutura e o modus operandi das práticas cotidianas dos

terreiros, realizei uma aproximação com roças de diversas linhas afrorreligiosa.

Segundo Klaas Woortmann (1977), a uma correspondência entre os termos:

terreiro, casa de santo, casa de axé e roça; recorrentemente usados nas narrativas

dos adeptos das religiões afro-brasileiras.

Woortmann assegura que a representação de cada um desses vocábulos

converge em uma só finalidade, a de reviver nesses quatro termos “muito mais que

um simples agregado de pessoas que cultuam uma ou mais divindades”; eles

equivalem, por conseguinte, a

um espaço ritual-simbólico que encerra em sua própria estrutura espacial, toda uma cosmologia; de outro, é uma replicação, um microcosmo, do espaço social africano [...] é uma verdadeira

Page 40: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

39

comunidade, ou um núcleo de comunidade, onde se socializam várias gerações (WOORTMANN, 1977, p. 256).

Assim, há um sentido no relato de Mãe Jokolosy, no qual ela assegura que os

Jejes geralmente chamam “roça” para o terreiro do qual fazem parte, aqui no Xwe Ace Kpo Sohun alguns continuam chamando terreiro, mas como nós tentamos viver em harmonia com a natureza, a forma melhor de se definir é roça. Todos os nomes dados, tanto terreiro, casa de santo, ou roça significam o espaço sagrado onde o culto aos Orixás, Inquices e Voduns é realizado (Entrevista: Mãe Jokolosy, 2017).

Nas visitas realizadas em algumas roças percebi a existência de práticas

educativas, em vários âmbitos da casa de santo, e compreendi que nos processos

rotineiros da casa, havia fruição de saberes e pude compreender a influência que

esses exercem na retenção de valores da tradição africana.

Em face as varias possibilidades optei por uma casa onde percebi um apelo à

preservação das tradições, da memória e ancestralidade da cultura alimentar

africana. Com isso, elegi como lócus da pesquisa o terreiro de candomblé Jeje

Savalú, Xwe Ace Kpo Sohun, com sede na região metropolitana de Belém do Pará

(Avenida Conselheiro Furtado, nº 5203) e outro polo, ainda em construção, na ilha

de Outeiro.

Como já mencionado, minhas perspectivas em relação ao objeto precedem

ao conhecimento da casa da mãe Jakolosy. No entanto, foi com essa comunidade

que meu olhar se objetivou e, de fato, iniciei minha investigação em busca das

práticas educativas no âmbito da cozinha e dos saberes que lá circulam.

Ao perceber o esforço que os membros desse terreiro faziam para me

convencer de que lá se mantinham costumes cultivados na África antes da diáspora,

percebi ali um campo fértil para uma discussão sobre saberes que se propagam em

meio à legitimação de tradições reinventadas.

Outra questão que me impeliu à escolha desse espaço foi o fato de ser bem

acolhida por seus membros, como se a casa tivesse também me escolhido. Restava

entender por que, mesmo não sendo nativa de tal religião, sendo uma católica

confessa, com pouca, quase nenhuma convivência com as comunidades

afrorreligiosas, ainda assim, fui escolhida. Qual o propósito dessa escolha?

Page 41: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

40

Com o tempo e a convivência com as comunidades afrorreligiosas, aprendi

que pesquisas como a minha, além de notoriedade, agregam valor simbólico à

militância política dessas comunidades. É preciso atentar que, quanto mais

pesquisas forem feitas sobre as religiões afrorreligiosas, principalmente, sobre uma

religião recente na região do Pará, como a Jeje Savalú, maior visibilidade e maior

capital simbólico, serão agregados a essas comunidades e consequentemente,

conseguirão maior legitimidade junto à sociedade.

Em 2016, fui devidamente apresentada à Mãe Jokolosy e ao Kpédjígàn

Hunsijé para expor minha pesquisa. Após definirmos algumas questões éticas e

sobre o calendário do terreiro, iniciei as visitas, efetivei as entrevistas e presenciei

momentos festivos, internos e externos, tanto no polo de Belém, quanto na ilha de

Outeiro, registrando as experiências da observação, que me permitiram conhecer o

universo da alimentação no candomblé Jeje Savalú.

Além da observação das relações travadas na cozinha do terreiro, optei por

dar ênfase às questões relacionadas às figuras centrais da pesquisa, como a

Gàniyakú Jokolosy (Mãe e senhora mais velha), a Sendugan Oyá Afulenjy (uma das

senhoras da cozinha), Dunugan Oru Mirê (senhora da cozinha) e o Kpédjígàn

Hunsijé (zelador do Peji dos Voduns), por se tratarem de elos que faziam a

mediação entre os saberes circulantes na comida de santo e a comunidade do

terreiro Xwe Ace Kpo Sohun, incluindo os filhos de santo, os clientes e adeptos do

candomblé Jeje Savalú.

A análise das experiências obtidas com a observação, os testemunhos em

forma de registros orais, como depoimentos e registros audiovisuais, e o

confrontamento destes com a bibliografia já produzida sobre o tema foi o caminho

trilhado para obter os dados que apresentarei no desenrolar da pesquisa.

Assim, os registros empíricos foram obtidos em quatro etapas: a primeira

apresentou-se com o levantamento prévio dos terreiros em Belém e municípios que

formam a região metropolitana; depois, fiz uma pequena pesquisa de aproximação,

explorando as possibilidades ideais para o lócus da pesquisa, usando como critérios:

a) A disponibilidade de acesso junto à comunidade do terreiro;

b) Calendário de festas e eventos relacionados à comida de santo;

c) Visibilidade do terreiro junto à comunidade do Candomblé;

d) Identificação e empatia da comunidade com o objeto da pesquisa;

Page 42: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

41

e) Acesso ao material usado e possibilidade de registros visuais para uso da

pesquisa;

f) Melhor entrosamento entre comunidade e pesquisador, principalmente,

por conta da diferença de orientação religiosa entre eu e dos sujeitos

envolvidos na trama da pesquisa.

Num segundo momento, fiz a devida apresentação do tema pesquisado à

liderança do terreiro Xwe Ace Kpo Sohun.

Em um terceiro momento, efetivei as visitações e registros escritos e de

áudios, em três dias da semana, à minha escolha e sem necessidade de aviso

prévio, ficando estabelecidas somente aquelas que constavam no calendário

litúrgico da casa, para acompanhamento dos processos no interior da cozinha e em

momentos ritualísticos.

A quarta etapa foi realizada concomitantemente com a terceira, mas, em dias

previamente agendados, para não atrapalhar as tarefas e compromissos da casa.

Esta etapa representa os momentos de efetivação das entrevistas semidirigidas aos

componentes do terreiro (narradores) e visitantes. O roteiro de entrevistas foi

semiestruturado em duas etapas: a primeira parte, composta por perguntas mais

gerais sobre o funcionamento da casa, o Candomblé e sobre a história de vida dos

entrevistados; na segunda, perguntas sobre a cozinha e em relação à comida ritual.

Para o aporte teórico sobre entrevistas com narradores de história ou

narradores de causos, considerei a definição conceitual de Walter Benjamim, onde

ele explica que “o narrador colhe o que narra na experiência, própria ou relatada. E

transforma isso outra vez em experiência dos que ouvem sua história” (BENJAMIN,

1980, p. 60). Tratei, portanto, com a categoria narrador pedagogo, por fazer analogia

à forma como os sujeitos dessa pesquisa, como a própria Gàniyakú Jokolosy,

mediam seus conhecimentos.

No que diz respeito à sacerdotisa Jokolosy, uma das figuras chave nesta

pesquisa, foi feita uma adaptação maior, por entender que ela possui certo poder de

convencimento, o que faz dela uma das principais mediadoras entre os outros

membros. Seu principal método é o uso de narrativas, como de histórias de vida e

de mitos, para transmitir seus ensinamentos no cotidiano. Seu poder de persuasão

se dá, principalmente, pelo seu status hierárquico, que advém de uma longa

trajetória religiosa, engrandecida por um profuso trânsito em religiões de matriz

africana, além de um papel ativamente político junto à comunidade do candomblé.

Page 43: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

42

Trabalhei com uma abordagem metodológica mais flexível, com um plano de

tarefas mais aberto, composto por momentos que vão desde uma simples conversa

informal até as entrevistas semiestruturadas, pois, em se tratando de um trabalho

etnográfico, em um ambiente onde muitos impedimentos e imprevistos ocorrem, foi

preciso ter estratégias para contornar situações que poderiam se tornar barreiras

entre pesquisador e os sujeitos analisados

Para a superação de problemas relativos a identificação que o pesquisador

tem em relação ao seu objeto, Brandão recomenda certa orientação sobre o tipo de

abordagem feita ao objeto. Ele observa:

É necessário que o cientista e sua ciência seja, primeiro, um momento de compromisso e participação com o trabalho histórico e os projetos de luta do outro, a quem, mais do que conhecer para explicar, a pesquisa pretende compreender para servir (BRANDÃO, 1984, p. 12).

Tais registros, em conjunto com a análise interpretativa dos mesmos,

orientaram para a estruturação dos capítulos desta dissertação, dispostos da

seguinte forma:

i. INTRODUÇÃO – aborda das motivações que suscitaram o encontro

com a temática; o aporte teórico utilizado; os procedimentos

metodológicos e a aproximação com o lócu da pesquisa;

ii. “ALIMENTAÇÃO E O CANDOMBLÉ: HISTÓRIA E MEMÓRIA” -

apresento o lugar da alimentação na história, assim como nas religiões

de matriz afro, seguida de um breve relato da memória sobre a

diáspora alimentar africana, quando da escravidão no Brasil. No

sentido de aproximar o leitor da temática, optei por uma breve

contextualização sobre a trajetória do candomblé Jeje até sua chegada

no Pará, como também sobre a formação de um imaginário das

tradições (reinventadas) da cultura alimentar candomblezeira.

iii. “COMIDA DO AXÉ: UM DIÁLOGO ENTRE OS SABERES

TRADICIONAIS E A MODERNIDADE”, analisa os símbolos e o

sagrado no candomblé; a cosmologia do sagrado em uma cozinha

ritual. O espaço das práticas educativas oriundas da comida ritual

(comida de santo), assim como das dimensões dos saberes que

circulam a comida ritual e os tabus que a permeiam;

Page 44: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

43

iv. “AS HERDEIRAS DA COZINHA SAGRADA”, exponho a pedagogia do

sagrado, os saberes da cozinha de santo, refletindo sobre o espaço

que a tradição alimentar africana ocupa nos dias de hoje em um

terreiro de Candomblé Djedje Savalú, além de abordar temáticas como:

a materialidade da cultura alimentar do terreiro, a estética que

representa essa cultura e a tradição que se reinventa dia após dia.

Nas CONSIDERAÇÕES FINAIS, ressalto os principais achados e conclusões

alcançadas em cada capitulo e, sobretudo, procuro suscitar questionamentos e

reflexões sobre como a cozinha de santo apresenta-se como local onde ocorrem

processos educativos e onde circulam saberes, extrapolando, portanto, a visão que

reduz as práticas educativas à versão escolacentrista, fundamentada no

reducionismo cartesiano da educação formal.

Page 45: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

44

2 ALIMENTAÇÃO, EDUCAÇÃO E O CANDOMBLÉ: HISTÓRIA E MEMÓRIA

O presente capítulo objetiva a compreensão do lugar da alimentação na

história e sua importância para a comunidade Candomblezeira. Em seguida

proponho uma breve contextualização histórica do candomblé Jeje como religião de

matriz africana, sua formação na Bahia, até seu aparecimento no Pará, entrelaçado

à história da fundação do Templo da Religião Africana Xwe Ace Kpo Sohun, no

município de Belém, enquanto espaço de ensino e aprendizagem, onde se

desenvolve uma importante cultura alimentar, oriunda dos saberes da tradição afro

religiosa.

2.1 ALIMENTAÇÃO E HISTÓRIA

Ao destrinchar as práticas educativas que perpassam a comida de santo em

um terreiro de Candomblé Jeje Savalú na Amazônia, procuro demonstrar a

ocorrência rotineira de processos de aprendizagens, desde o preparo até a própria

consumação do alimento sagrado, o qual, por sua própria tradição, é lugar de

proliferação de saberes da ancestralidade afro-brasileira.

Pesquisas em história da alimentação datam desde o início do século XX. O

pioneirismo, segundo Henrique Carneiro (2003), coube ao estudo do botânico

polonês Adam Maurizio, ao publicar, em Paris, 1932, a obra História da alimentação

vegetal: da pré-história aos nossos dias, onde estabelece um paralelo entre a

história da alimentação e a da própria trajetória humana. Tal estudo demarca

influência na formação de uma tradição historiográfica sobre a temática.

Nascia, assim, no cerne da nova história cultural, o apreço pela história do

cotidiano, das mentalidades e estabelecia-se, nesse âmbito, a história do gosto e da

sensibilidade alimentar, no sentido de investigar o comer e aquele que come.

Despontam estudos como de Jean Paul Aron e Jean Louis Flandrin, historiadores

que investem no novo campo e defendem que a história da alimentação deve tomar

posse de seu curso (LE GOFF; NORA, 1976).

Representante da terceira geração dos Annales, Jean-Paul Aron, em sua obra

História: novos objetos, traz à tona a discussão sobre o tratamento das novas fontes.

Segundo o autor, o objeto-documento da história culinária é vivo, possui um

desencadear próprio, ele se reconstrói assim que possível, então, não pode ser

Page 46: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

45

percebido como inerte, vazio de sua substancia; possui uma lógica própria que

difere da dos documentos históricos (ARON, 1974, p. 161).

Aron (1974, p. 161) defende que a alimentação é

objeto que deve ser abordado sob uma nova ótica, se é verdade, que nos foi entregue fisicamente em seu próprio enunciado, que não nos promete senão o que nos dá, que o saber que aprendemos dele envolve, numa síntese única, sua evidência e suas sombras.

Em História da Alimentação, os historiadores italianos Jean-Louis Flandrin e

Massimo Montanari (1998), trazem à tona pesquisas sobre o tema da alimentação,

realizadas desde a Escola dos Annales, propondo caminhos e métodos de

investigação. A obra gira em torno da historicidade, das vivências do cotidiano,

inscritos na perspectiva da longa duração braudeliana. Segundo os autores, analisar

a alimentação não somente em seu papel fisiológico, mas, sobretudo, pelo que esta

é capaz de agregar enquanto processo cultural e simbólico, exige um esforço de

implementar considerações a partir de temáticas como comensalidade, investigar

suas ligações com a História Cultural social e estabelecer um elo entre esta e a

antropologia da alimentação.

Jean-Louis Flandrin, em A distinção pelo gosto, onde o autor ressalta que a

partir do renascimento, a gastronomia começa definitivamente a se separar das

teorias dietéticas herdadas da Antiguidade Clássica, dando vazão às pesquisas que

investigam o gosto pela comida e às dimensões alcançadas pela mesma. Segundo o

autor, a gastronomia da Época Moderna procura o gosto e o prazer como bases

para a alimentação (FLANDRIN, 1986, p. 267-309).

A história da alimentação, como paradigma de um novo fazer da história,

presume um olhar a partir da história vista de baixo e da invenção do cotidiano, para

que seja possível constituir um inventário, um certo estado da arte pertinente ao

tema, e, dessa forma, torne-se mais natural à historiografia depreender a presença e

o caráter de pertencimento da comida

Um numero considerável de pesquisas direcionadas para as questões que

envolvem a comida e a alimentação esponta nas ciências humanas, a partir da

premissa de que a formação do gosto alimentar não se dá, exclusivamente, pelo seu

aspecto nutricional, biológico.

Page 47: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

46

Segundo Montanari e Flandrin (1998), o alimento constitui uma categoria

histórica, pois os padrões de permanência e mudanças dos hábitos e práticas

alimentares têm referências na própria dinâmica social. Os alimentos não são

somente alimentos. Alimentar-se é um ato nutricional; comer é um ato social, pois

constitui atitudes ligadas aos usos, costumes, protocolos, condutas e situações.

Nenhum alimento que entra em nossas bocas é neutro.

Apesar de não ter tido dotes culinários, o literato e jornalista Eça de Queiroz,

autor do final do século XIX, desenvolveu grande apreciação pela arte de comer e

pela boa mesa. Em boa parte de suas obras, o autor descreve a cozinha e a comida

como formas de caracterizar os diversos personagens da sociedade portuguesa, a

partir de uma proposta de representação realista, como em Arqueologia culinária,

ecoando tendência e influenciando várias outras personalidades que se tornaram

grandes nomes no meio dos escritos sobre alimentação, gosto e outras relações

oriundas do ato de comer. Fica claro que, para Eça de Queiroz,

O carácter de uma raça pode ser deduzido simplesmente do seu método de assar a carne. Um lombo de vaca preparado em Portugal, em França, ou Inglaterra, faz compreender talvez melhor as diferenças intelectuais destes três povos, do que o estudo das suas literaturas (QUEIROZ, 1997, v. III, p. 1226).

A literatura sobre a sensibilidade gastronômica explica e é explicada pelas

manifestações culturais e sociais, como representação de uma época. Nesse

sentido, o que se come é tão importante quanto quando se come, onde se come,

como se come e com quem se come. Enfim, dar vasão a tais questões significa

consolidar o lugar da alimentação na História.

No Brasil, a historiografia da alimentação ganhou respaldo com a obra A

História da Alimentação: balizas historiográficas, dos historiadores Ulpiano T.

Bezerra de Meneses e Henrique Carneiro, publicada em 1997. Essa obra buscou

analisar a história da alimentação, ressaltando que tal temática obedecia uma ótica

interdisciplinar e multidisciplinar, contemplando estudos de áreas como a

arqueologia, a antropologia, a biologia, a psicologia, entre outras. Isto confirma o

caráter democrático e plural da área e estreita as relações entre ela e sua área mãe:

a Nova História Cultural.

Page 48: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

47

Thaís Fonseca (2003) explica que o movimento inaugurado pela Escola dos

Annales forneceu respaldo a muitas áreas, como a história da alimentação, e surtiu

significante influência sobre a trajetória de outros campos do conhecimento, como

exemplo da educação, que, a partir dos pressupostos da nova história cultural,

passa a delinear um olhar mais abrangente sobre os processos educativos.

Os hábitos alimentares constituem um desses lugares, onde a cultura se

apresenta e é transmitida pelo ato da educação. Apresentam um conjunto de

situações, que, mesmo de forma ressignificada em relação à feitura e uso de

ingredientes, evidencia permanências de valores culturais, transportando as

pessoas, por vezes, a um tempo e lugar bem anteriores à realidade em que vivem.

A partir do olhar sobre a história da alimentação, é possível investigar práticas

educativas no seio de uma cozinha de terreiro, indagar que saberes foram

transmitidos no consolidar desses hábitos alimentares, desde a partida coercitiva

dos Jejes Savalú da África para suprir às demandas da escravidão no Brasil, até sua

inserção nos terreiros afrorreligiosos.

Em busca de pistas que comprovem a primazia das comidas votivas como

base fundamental nos terreiros afro-brasileiros, Norton Corrêa (2005) trilha uma

história da alimentação, na perspectiva antropológica. Segue pela culinária ritual do

batuque, percorrendo uma trilha de migalhas que levam até o alimento sagrado

como demarcador de territórios regionais, sociais, identitários, inscritos em contextos

sociais diversos. Em suas conclusões, o autor afirma que a

culinária ritual do batuque é suficiente para permitir algumas conclusões. Uma delas é que o fato de Ogum, Oxum, Bará e os eguns receberem respectivamente churrasco, polenta, batatas e erva-mate já sugere que se trata de uma religião do extremo sul brasileiro. Outra, que a culinária batuqueira expressa uma espécie de radiografia da sociedade riograndense, com suas várias influências culturais. Uma terceira conclusão é que o alimento não delimita apenas territórios físico-geográficos, mas também do social e do imaginário: conhecer ou não tal universo culinário específico significa pertencer ou não a certas categorias da sociedade rio-grandense (não-batuqueiro/batuqueiro). Mas, do mesmo modo que espelha tais diferenças, o alimento simultaneamente promove igualdades: a identidade batuqueira se realiza também por seu consumo. Já no espaço intramuros dos templos, ele distingue quem é vivo, morto ou divindade. Ou seja, o alimento é símbolo de categorias da sociedade humana e sobrenatural. Uma quarta conclusão é que ele atua como uma espécie de chave mestra reguladora no quadro geral das relações sociais e trocas simbólicas entre indivíduos, grupos e instâncias do mundo do batuque – por sua vez inscrito na sociedade

Page 49: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

48

gaúcha: de humanos entre si (sejam filiados ou clientes) e entre eles e as entidades sobrenaturais. Isto é, à própria essência e existência do batuque, como um todo, subjaz o alimento. (CORRÊA, 2005, p. 85).

Trata-se, assim, de entender o cotidiano de uma cozinha de terreiro como um

território onde ocorrem hábitos de uma cultura alimentar cheia de especificidades e

onde circulam saberes que informam sobre uma cultura ancestral milenar do outro

lado do oceano atlântico. Se os comerciantes de escravos traziam os ingredientes

(especiarias), os escravos traziam na memória os usos e os gostos desses

ingredientes de sua terra mãe. Aí estava o segredo, toda uma história contada em

deliciosas porções da generosa culinária africana.

Através dos rituais envolvendo a oferta de alimentos, os afrorreligiosos,

segundo Corrêa (2005), estabelecem um elo, possibilitando trocas e experiências

capazes de fundamentam as relações sociais existentes nos terreiros e para além

deles.

Pesquisas sobre a cultura africana têm suscitado muitos estudos no Brasil,

principalmente nas áreas da antropologia, da história e das ciências da religião. A

efervescência de trabalhos sobre o cotidiano do terreiro representa uma

preocupação com a cultura e o modo de vida dessas comunidades. E muito se tem

aprendido sobre o universo das religiões de matriz afro, sendo que um percentual

considerável desses estudos envolve os hábitos alimentares e suas práticas

simbólicas.

2.2 O LUGAR DA ALIMENTAÇÃO NO CANDOMBLÉ

Desde a antiguidade, alimentação e bebidas ocupam lugar de destaque, diria

até imprescindível, em rituais religiosos. No candomblé não é diferente, pois as

comidas sagradas são como um elo entre o mundo terreno e o espiritual. Segundo

Vogel

O Candomblé é considerado religião afro-brasileira onde se cultuam os orixás, deuses de origem africana e popularmente conhecidos como “santos” – que representam ancestrais divinos geralmente ligados a fenômenos ou forças da natureza. No candomblé a comida é uma das principais ligações entre o reino dos homens e do divino, e preparações culinárias são oferecidas como sacrifícios ou alimentos (VOGEL, 2001).

Page 50: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

49

A importância da alimentação no candomblé reside no fato de que a comida

está intimamente ligada à visão do fenômeno religioso, como sagrado imanente.

Alimentar exerce, portanto, a função de ligar a matéria ao sagrado. Por meio do

alimento, o membro do candomblé liga-se com seu Orixá, ou Vodum.

A alimentação é tão essencial nos ritos do candomblé, que uma das

determinações primárias dessa religião afirma que ao se dar de comer a um “filho de

santo”, regras deverão ser seguidas à risca em acordo com a orientação de seu

Vodun e com o tempo iniciático em que o indivíduo se encontra.

O ato de se alimentar com as mãos gera um elo direto entre o indivíduo e sua

divindade protetora, um filamento entre a matéria e o sagrado. Por isso representa

muito mais do que só respeito aos ancestrais; reafirma a sujeição do iniciado ao seu

respectivo Vodun, materializado na aceitação do recém filho de santo à estrutura

hierárquica existente nas crenças afrorreligiosas. É portanto, simbólico, repassa a

ideia de que, quanto mais humilde e resignado às suas funções na roça o indivíduo

é, mais merecedor da presença e influencia dessa divindade. Nesse sentido,

segundo Raul Lody,

As mulheres especialistas naelaboração dos alimentos sagrados dos Orixás são preparadas dentro do rigor dos cultos, que procuram manter importantes elos que possam unir os praticantes às divindades. [...] Na realidade, é na preparação dos quitutes das mesas dos deuses africanos que constatamos a necessária utilização do dendê, juntamente com as favas e frutos de origem africana, importantes na realização dos alimentos rituais, garantindo assim sua eficácia e destinação cultual (LODY, 1992, p. 61).

Entretanto, assim como existem alimentos que podem aproximar a matéria da

sua porção ou do todo sagrado, também existem aqueles gêneros alimentares que

tem o efeito contrário, de verdadeiros repelentes, interpondo-se entre a carne e o

divino, ocasionando um distanciamento, por vezes, uma ruptura com o sagrado.

É necessário esclarecer que, ao falar em alimentação, refiro-me ao ato de

ingerir gêneros, substâncias, nutrientes, para suprir à necessidade fisiológica do

organismo. No entanto, quando tal ato vem acompanhado de um significado social,

como em uma confraternização, um festejo, uma reunião familiar, um ritual, ele

passa ao ato de partilha, a comensalidade (comer), e o alimento ganha o aspecto de

comida.

Page 51: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

50

Pertinente à sua origem etimológica, do latim, comensalidade ou “comensale”

compreende a ação de comer junto, na mesma mesa; com - “junto” e mensa -

“mesa” (POULAIN, 2009, p.182). Implica partilhar as refeições, no mesmo lugar, e

compartilhar sensações. A comensalidade estabelece e reforça os laços de

sociabilidade. Segundo Poulain,

É pela cozinha e pelas maneiras à mesa que se produzem as aprendizagens sociais mais fundamentais e que uma sociedade transmite e permite a interiorização de seus valores. A alimentação é uma das formas de se tecer e se manter os vínculos sociais (POULAIN, 2009, p. 182).

Roberto DaMatta em um estudo que resultou em seu livro O que faz o brasil,

Brasil?, a pretexto de elucidar as diferenças e as nuances que a cultura alimentar

brasileira alcança, observa que

Para nós brasileiros, nem tudo que alimenta é sempre bom ou socialmente aceitável. Do mesmo modo, nem tudo que é alimento é comida. Alimento é tudo aquilo que pode ser ingerido para manter uma pessoa viva; comida é tudo que se come com prazer, de acordo com as regras mais sagradas de comunhão e comensalidade. Em outras palavras, o alimento é como uma grande moldura; mas a comida é o quadro, aquilo que foi valorizado e escolhido dentre os alimentos; aquilo que deve ser visto e saboreado com os olhos e depois com a boca, o nariz, a boa companhia e, finalmente, a barriga [...] O alimento é algo universal e geral. Algo que diz respeito a todos os seres humanos: amigos ou inimigos, gente de perto ou de longe, da rua ou da casa [...] Por outro lado, comida se refere a algo costumeiro e sadio, alguma coisa que ajuda a estabelecer uma identidade, definindo, por isso mesmo, um grupo, classe ou pessoa [...] Temos então o alimento e temos comida. Comida não é apenas uma substância alimentar, mas é também um modo, um estilo e um jeito de alimentar-se [...] A comida vale tanto para indicar uma operação universal – ato de alimentar-se – quanto para definir e marcar identidades pessoais e grupais, estilos regionais e nacionais de ser, fazer, estar e viver (DAMATTA, 1981).

No mesmo estudo, DaMatta demonstra os aspectos influenciadores da cultura

alimentar de cada povo formador da cultura brasileira. Diz que os africanos nos

presentearam com hábitos peculiares de sua cultura, como o de cozinhar os

alimentos, ao invés de assá-los, ou de misturar vários alimentos em uma mesma

panela, como cozinhar o arroz com alguma outra coisa, ou seja, os africanos tinham

a peculiar mania de “cozinhar” junto.

Page 52: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

51

Um dia, perguntei a um dos sacerdotes do terreiro, o Kpédjígàn Hunsijé, se

ele achava gostosas as comidas servidas no terreiro – não aquelas do dia-a-dia ou

as de festas, que são para os convidados, mas aquelas que são partilhadas, o

excesso, após a oferta ao santo. Então, ele me respondeu que “nem sempre são

boas, algumas são insossas ou frias por alguma indicação do santo (vodun), ou

pelos inúmeros tabus que circulam na cultura alimentar do candomblé”.

Ele insistiu que, mesmo reconhecendo as inserções de elementos culinários

nativos da América, ainda assim, ao ingerir algum desses alimentos, os

afrorreligiosos nutrem-se um pouco mais da África. De acordo com Maciel

A comida pode marcar um território, um lugar, servindo como marcador de identidade ligado à uma rede de significados. Podemos assim falar em “cozinhas” de um ponto de vista “territorial”, associadas a uma nação, território ou região, tal como a “cozinha chinesa”, a “cozinha baiana”, ou a “cozinha mediterrânea”, indicando locais de ocorrência de sistemas alimentares delimitados (MACIEL, 2001, p. 151).

Segundo o Kpédjígàn Hunsijé, o fato do candomblé ser uma religião onde os

conceitos de partilha e de fartura caminham lado a lado, boa parte dos rituais

permitem que orixás, devotos e visitantes compartilhem o mesmo alimento,

tornando-os cada vez mais popularizados no Brasil.

A inclinação pelo termo “santo” em “comida de santo” surgiu quando alcancei

o entendimento de que alguns terreiros savaluanos presumem em seus rituais a

relação colaborativa, independente, porém, harmônica, entre Voduns e Orixás.

Aspecto, que segundo os filhos de santo, é adotado com maior ou menor relevância

de casa para casa do candomblé jeje. Exprime um axioma do próprio candomblé

jeje, que assegura a distinção entre Voduns e Orixás, como divindades distintas,

mas colaborativas.

Os savaluanos, no geral, cultuam os Voduns, no entanto, admitem que alguns

templos Jeje Savalu “fazem” também Orixás e, apesar de testemunharem a total

diferença destas dinvindades, dizem que no Brasil não é incomum encontrar nas

roças Jejes a presença de Orixás.

Em terreiros Jeje Savalú, Orixás são cultuados como entidades estrangeiras,

mas são respeitados e tão venerados quanto os Voduns, pois recebem a mesma

dedicação, sem distinção que os próprios deuses savaluanos.

Page 53: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

52

Por isso, apesar de em muitos estudos ter identificado a presença de

indicadores comparativos e até associativos entre voduns e orixás, percebi que, de

fato, entre os afrorreligiosos, das roças candomblecistas jejes no Pará, a associação

entre Orixás e Voduns é rejeitada, motivo de algumas rivalidades entre terreiros que

definem essa atitude como esnobismo religioso.

Portanto, na designação da comida, optei pela terminologia “de santo”,

mesmo tendo pesquisado em uma roça Jeje Savalú, para esquivar-me dessa

dicotomia e, sobretudo, para deixar mais atrativo didaticamente aos possíveis

leitores, não especialistas, no assunto. Devo admitir que parte desse zelo para com

o leitor vem da minha própria dificuldade da aproximação com o tema, já que,

apesar da empatia, não sou nativa, nem estou em processo de convertimento em

nenhuma religião afro-brasileira.

Assim sendo, passa a existir um sentido localizado no termo “comida de

santo”, de marcação territorial, pois o santo a que faço referencia é o Vodun,

especificamente aquele que habita as crenças da nação savaluana.

Dessa forma, tal demarcação territorial, surte a ideia de identidade, passando

a demarcar um lugar de onde essa comida é servida, partilhada, gerando a ideia de

um sistema de alimentação delimitado, uma cozinha peculiar, não como de um

compartimento, mas bem mais amplo, como de uma região, ou nação, assim como

da nação de santo.

A comida funciona como elemento fundamental em uma casa de candomblé.

Ela está presente em todo o domínio do sagrado, nas oferendas, nos mitos, nos

preceitos alimentares e até nos seus tabus. Isto posto, pode-se dizer que, para

entender toda a estrutura dos rituais do candomblé, é preciso, antes, entender essa

relação íntima entre a comida e os elementos ritualísticos do candomblé, em

especial, no que diz respeito às oferendas. Segundo Ferrete

Os voduns fumam, alguns bebem vinho, os caboclos bebem, fumam e não recebem oferendas especiais. A comida de santo é insossa. Oferecem os axés: cabeça, pés, moela, fígado – só as partes dos axés. O restante é preparado para servir aos devotos e amigos. Oferecem para uma entidade de cada vez, em pratos brancos, alguidares, tigela branca para Oxalá, prato de barro para Acossi. São arrumadas em folhas de mamona. Oferecem por 24 horas e depois despacham. As comidas que sobram são despachar nas matas, nos rios e lagoas (FERRETE, 2011, p. 258).

Page 54: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

53

Em um terreiro, tudo se come, desde o alimento orgânico, que alimenta o

corpo – a matéria, até a energia e fluidos, que alimentam a alma e a psique. Todos

sempre estão comendo ou programando a refeição, ainda tem aqueles para quem o

alimento representa a cura, e outros para os quais alimentar-se significa estar em

sintonia com seus ancestrais. Rememorando as convicções de Norton Correa, o

alimento sagrado experienciado no terreiro, subjaz à própria essência do Batuque.

De fato, nele se ocultam os mistérios da natureza humana e divina, o poder e o perigo, os segredos do bem e do mal, da saúde e da doença, da vida e da morte. Por tudo isso, só posso dar total razão à saudosa Mãe Ester da Iemanjá, quando me confidenciou, literalmente, que “a cozinha é a base da religião” (CORRÊA, 2005, p. 85).

Se o alimento como necessidade fisiológica é indispensável para a

manutenção do bem-estar e da saúde dos componentes de um terreiro, o alimento

votivo (sagrado) significa a própria permanência e preservação dos rituais dentro de

qualquer terreiro. É através do alimento sagrado que o indivíduo se reúne com seu

“eu divino”, tornando-se cada vez mais próximo de suas divindades protetoras.

Como afirma Aguiar

A relação de sociabilidade entre os devotos e suas divindades se estende a toda à comunidade do entorno aos visitantes, através do s rituais públicos, as festas. Este é o momento em que a relação mediada pela a comida assume um significado mais amplo, promovendo a socialização entre os iniciados, a comunidade e os orixás (AGUIAR, 2012, p. 170).

O Ajeun, segundo o Kpédjígàn Hunsijé, possui uma dimensão sagrada, e

nessa dimensão, nem tudo pode ser revelado, mas, a partilha do mesmo é sempre

momento de grande expectativa, pois após alimentados, os santos sempre são

generosos e permitem que seus filhos desfrutem de seus banquetes e histórias.

O Ajeun, que representa em yorubano a contração de duas palavras, “awa” –

nós e “jeun” – comer, tem simbologia na partilha do alimento, um momento solene

no candomblé, pois congrega em si a reunião de praticantes, visitantes e divindades

em torno da comida sagrada. Não se trata de qualquer alimento, mas aquele que

representa as próprias características ou “qualidades” da divindade a que se oferta

em agradecimento ou obrigação.

Page 55: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

54

A forma de servir o Ajeun de obrigação para o Vodun Azansú, conhecido

também como Sakpatá, corrobora com a ideia de simbolização do alimento como

representação das qualidades dos santos, pois sendo este uma divindade

primordial, seus alimentos devem ser servidos e adornados por materiais da

natureza, como folhagens e ou de barro, que simbolizam as forças do elemento

“terra”.

Nesse caso em específico o alimento é servido em folhas de mamona, no

lugar de pratos, come-se com as mãos em vez de talheres, pois representa a

qualidade rudimentar da divindade, obedecendo a todo um ritual, onde as vasilhas

de barro foram cuidadosamente trazidas para cima de uns banquinhos, todas

tampadas com as próprias folhas ou com tampas do mesmo material, algumas

adornadas com tecidos rústicos.

Figura 2 – Ajeun "Comida de obrigação para Azansú"

Fonte: Arcevo da pesquisa, 2017.

A ordem na qual as folhas foram servidas também segue um ritual, que vai

dos mais antigos no santo (maior tempo de iniciação no candomblé), passando

Page 56: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

55

pelos mais novos (iniciados recentes), até os visitantes. Ritual muito parecido como

o de Obaluaiê, descrito abaixo:

As esteiras são desenroladas e sobre elas é colocado um tecido branco e imaculado. Um após o outro, os alguidares são colocados sobre a toalha e formam sobre o chão a grande mesa. A mão de santo incumbe a três dos mais velhos iniciados de servir, sobre folhas de mamona, utilizados como pratos, um pouco de cada alimento contido nos recipientes. Ela mesma se encarrega de oferecer os primeiros aos convidados mais importantes, aconselhando a todos a não ficarem imóveis, mãos a danças ou a sem mover sem parear e a comer com as mãos [...]. As folhas que servem de pratos para as comidas dos orixás devem ser fechadas, juntamente com os restos não consumidos, e passadas ao longo do corpo (BARROS, 2009, p. 84-85).

A Dunúgàn diz que em outras casas, nem sempre há a preocupação com a

estética. Mas , segundo ela, ao arrumar os pratos valorizando não só o sabor, mas

também a aparência, o filho de santo envia bons sentimentos ao seu vodun.

Segundo a cozinheira, quem não gosta de ver um prato arrumado com carinho?

Quem um dia já não se deparou com uma comida que parece deliciosa só pela

harmonização?

O mesmo ocorre com as divindades, pois elas também se sentem mais

seduzidas por pratos esteticamente arrumados. “Comer com os olhos” é uma

expressão que, segundo a cozinheira, faz parte dos conhecimentos que devem ser

obtidos na gastronomia sagrada de terreiro de candomblé. Nesse ponto, tais

experiências convergem com as conjecturas de Márcia Algranti (2000), ara quem o

ato de produzir, processar e comer vão além de uma questão fisiológica. Na

concepção da autora, a culinária remete ao prazer de comer, mas, não somente

aquele ligado à necessidade de nutrir-se, mas, também, pelo gozo e deslumbre, pela

arte que o ato de preparar e servir os alimentos pode alcançar. Nestes termos, o

conceito de gastronomia é amplo. Trata-se de um

termo grego formado por gaster (ventre, estômago), radical nomo (lei) e sufixo ia de substantivo, ou seja, estudo e observância das leis do estômago. De estudo de leis do estômago, passou à de preceitos de comer e beber bem; arte de preparar iguarias para obter delas o máximo deleite, tornando-as mais digestivas. Arte de cozinhar de maneira a proporcionar o maior prazer a quem come. Arte de regalar-se com finos acepipes e iguarias. Também se entende por

Page 57: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

56

gastronomia o ato de comer por mais prazer que necessidade (ALGRANTI, 2000, p. 252).

A forma de servir, as receitas, os ingredientes, o manejo desses, as

artimanhas na apresentação e até o ambiente onde os alimentos são servidos, são

tão importantes no candomblé quanto a própria feitura do alimento, todos os

elementos de um prato possuem um significado simbólico, se complementam e sua

estética não só observa uma função gustativa, mas de respeito às regras,

agregando inúmeros sentidos ao ato de comer.

Tem-se a percepção de que a comida deve ter no sujeito que a degusta o

poder de memorar sensações de felicidade, estreitar o elo entre individuo e

ambiente, estabelecer laços íntimos e, principalmente, agregar conhecimento,

manifestado antes mesmo de seu preparo, saberes que são partilhados e ensinados

desde a escolha dos ingredientes até o aprendizado dos signos por eles

representados.

A gastronomia candomblecista não se refere somente o uso do palato, pois

que contempla outros sentidos. As dimensões apresentadas anteriormente fazem da

culinária afrodescendente um elo entre a matéria e o sagrado. Isso explica, por

exemplo, porque para atender às necessidades dos Voduns, alguns preceitos, tabus

e injunções devem ser observados. Ratificando a presença de aspectos que

remetem à certa rigidez na culinária ritual, Raul Lody assinala algumas

particularidades sobre a cozinha ritual, definindo-a como:

A cozinha ritual é organizada seguindo critérios de utilização restrita ao preparo de muitos pratos constituintes dos cardápios dos deuses africanos. As disposições dos objetos, confecção dos utensílios e atitudes das pessoas que têm o mister de cozinhar para as divindades nos dão importante campo de análise, quando observamos complexos rituais gastronômicos que irão atender à fome dos deuses, satisfazer e cumprir as necessidades dos crentes que através do preparo dos alimentas realizam importante momento no conjunto de cerimônias votivas (LODY, 1977, p. 40-41).

Da mesma forma, a simbologia dos elementos da culinária candomblezeira

nos impele a compreensão sobre a importância do ohun – sangue (animal, vegetal e

mineral), um elemento fundamental da dieta sagrada candomblecista, que deve ser

ofertado na medida certa, podendo aumentar ou diminuir para atingir a quantidade

Page 58: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

57

desejada de acordo com a energia, temperatura e intensidade. Dessa forma,

propicia grandes experiências a todos que participam do ritual.

Enfim, tudo come em um terreiro de candomblé, o tambor come, a cabeça

come, as pessoas se alimentam, os objetos comem. No entanto, como tratar todas

as formas de alcance da alimentação em um terreiro demandaria muito tempo, um

tempo que diverge do percurso temporal de um mestrado, então, centrei minha

análise na comida sagrada, ou comida de santo.

Para compreender melhor essa cozinha, inicialmente, contextualizo,

historicamente, o terreiro estudado inserindo-o na história mais ampla da formação

do candomblé na Bahia e no Pará, para, então, adentrar na intimidade da cozinha de

santo.

2.3 O CANDOMBLÉ JEJE SAVALÚ: UM BREVE HISTÓRICO

Os dados desse tópico inscrevem-se no âmbito de reflexões anteriores,

incorporando o aporte de diferentes autores sobre o candomblé, dados oficiais sobre

religiões de matriz africana, bem como a partir da observação no terreiro e de

entrevistas realizadas com os integrantes da casa Xwe Ace Kpo Sohun, gravadas e,

depois, transcritas.

Assim que apresentada à casa de Mãe Jokolosy, em 17 de agosto de 2016,

recebi como sugestão de leitura da própria Gàniyakú alguns trabalhos anteriores

sobre sua casa, como o TCC de Renata Costa (2017), Festa no candomblé, corpo

em movimento: um estudo sobre corpo e dança em rituais públicos de candomblé, e

a dissertação de mestrado de Manoel Roberto Chagas (2014), O sagrado ecológico:

relação entre o homem e a natureza no candomblé Jeje Savalú em Belém do Pará.

Também me foram sugeridos alguns livros sobre o candomblé, como o de Luís

Nicolau Parés, Formação do Candomblé (2007)

Por não estar familiarizada com a religião, era necessário adentrar nesse

universo, entender suas engrenagens, conhecer sua fisiologia sagrada e,

principalmente, me familiarizar com sua peculiar ordem.

O Candomblé designa os grupos religiosos caracterizados por um sistema de

crenças em divindades chamadas de santos, voduns ou orixás e associadas ao

Page 59: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

58

fenômeno da possessão ou transe místico. O transe3

, que é considerado pelos

membros do grupo, como a incorporação da divindade na cabeça do iniciado,

ritualmente preparado para recebê-la4

.

Segundo Vivaldo Lima, na Bahia os termos Orixá e Santo se equivalem.

“Santo” traduz o iorubá Orisa, este último já dicionarizado em português na forma de

Orixá, conservando o mesmo significado que tem entre os nagôs. O autor afirma que

nos candomblés de caboclo chamam os Santos ou Orixás de Encantados. Os termos Vodum dos terreiros Jejes e Inquice dos candomblés congo e angola, são menos ouvidos fora das casas de suas respectivas nações. A grafia das palavras de línguas africanas assimiladas no corpus do português do Brasil obedece às normas prescritas pela Academia Brasileira de Letras. (LIMA, 1976, p. 66).

O significado do termo candomblé, entretanto – estende-se para além do

corpus ideológico do grupo, seus mitos, cosmogonias, ritual e ética – para o próprio

local onde as cerimônias religiosas desses grupos são praticadas, quando, então,

candomblé é sinônimo de terreiro, de casa-de-santo, ou de roça. Segundo Vivaldo

Lima Candonblé, casa de santo, terreiro, roça

são os diversos nomes dados ao local em que os afro-baianos realizam suas cerimônias religiosas. Nomes genéricos, pois cada terreiro tem sua denominação própria. geralmente uma evocação do Orixá ou Santo protetor da Casa, na sua forma africana ou em sua equivalência católica. As grandes Casas de Santo são ainda conhecidas por suas localizações. Dai ouvir-se comumente dizer - „vou a São Gonçalo‟, „há uma festa no Gantois‟, „o dia de Oxossi no Engenho Velho (LIMA, 1959, 4).

A palavra Jeje, segundo Prandi (1996a), vem do yorubá "jeje", que significa

estrangeiro, forasteiro. Portanto, não se trata da existência de uma nação Jeje no

continente africano, não em termos políticos, pelo menos. Pela terminação nação

Jeje, pode-se considerar o candomblé formado pelos povos fons vindo da região de

Dahomé e pelos povos mahins. Jeje era o nome dado de forma pejorativa pelos

3

Sobre o fenômeno do transe, ver a revisão crítica de BASTIDE, (1959, 181-207) e RIBEIRO, (2014, 29-60)

4 Sobre a iniciação nos grupos de candomblé existe uma farta literatura etnográfica. Ver

especialmente [NINA RODRIGUES, (1935, 75-85) : QUERINO, (1955, 63-71) ; CARNEIRO, (1948, 73-9), BASTIDE, (1945, 50-62) VERGER, (1987, 71-95).

Page 60: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

59

yorubás às pessoas que habitavam o leste e o sul da África ocidental, como era o

caso, respectivamente, dos mahins, tribo do lado leste, e Saluvás ou Savalus,

habitantes da porção sul, os quais, na maioria das vezes, possuíam interesses

adversos aos dos povos de idioma Yorubá.

Também é importante a definição territorial originária de tais ritos. Nesse

sentido, considerei o uso das expressões “Costa da Mina” e “Golfo do Benim” como

sinônimos. No entanto, tal escolha não foi fortuita. Pierre Verger chamava de Costa

da Mina a parte do golfo do Benim situada entre o rio Volta e Cotonu, e recorria aos

termos Golfo ou Baía do Benim quando tratava daquela parte da costa que incluía a

região a leste até o rio Lagos (VERGER, 1987, p. 37). De acordo com Costa,

Os Jejes chegaram ao Brasil por meio do tráfico negreiro que iniciou no século XVIII e perdurou até 1815, no chamado "Ciclo da Costa da Mina" ou "Ciclo de Benim e Daomé". Estes grupos étnicos africanos pertenciam à área denominada por Parés [...] como “área dos gbe falantes”, região setentrional do atual Togo, República do Benim, Gana e sudoeste da Nigéria. Nesta área, também conhecida como Reino Daomé existiam vários grupos como Savi, Allada, Adjatché (Porto Novo) e Abomé (Agbomè) (COSTA, 2017, p. 34-35).

Definição semelhante é utilizada para precisar os limites da área conhecida

entre os traficantes ingleses como Costa dos Escravos, que compreendia o sudeste

de Gana, o Togo, Benim e o sudoeste da Nigéria, como mostra o mapa a seguir.

Page 61: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

60

Figura 3 - “Área dos gbe falantes”, África Ocidental

Fonte: adaptado de https://goo.gl/images/oedzig.

A língua também compõe um aspecto muito importante nessa engrenagem.

Mesmo dentro do candomblé, dependendo da nação, não há somente uma forma

diferenciada de denominar as divindades, mas também varia a forma dos cânticos e

da própria denominação dos cargos de casa para casa.

Segundo Castro5

, um equivoco metodológico geralmente cometido é aquele

que considera a variação linguística das religiões de matriz africana como

simplesmente uma variação de dialetos, “para sustentar o estereótipo colonialista de

se idealizar o continente africano como uma África „única‟, um país singular, de

língua e cultura iorubá, sem levar em consideração sua variedade étnica, cultural e

linguística” (CASTRO, 2001, p. 86).

Outra questão levantada por Castro tem relação com o uso generalizado do

termo “nagô” para designar “falares africanos ocorrentes nos terreiros de candomblé

e de competência dos seus falantes, ou seja, das comunidades religiosas afro-

brasileiras” (2001, p. 86), costume principalmente entre as casas da Bahia.

5 Etnolinguista, Doutora em Línguas Africanas.

Page 62: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

61

Uma mostra da diversidade entre os idiomas e nações do candomblé está

disposta no Quadro 1.

Entender essa diversidade é crucial para compreender as peculiaridades

entre e dentro de cada comunidade do candomblé. Entender que, se nem o idioma

falado entre as etnias africanas é o mesmo, como esperar que sua forma de

organização religiosa seja. Entretanto, também é possível constatar que,

salvaguardadas as peculiaridades, nações do candomblé, sejam elas Jeje, Nagô ou

Angola, partilham influências sociorreligiosas, intra e intergrupal.

Isso, segundo a linguista,

permite que, em cerimônias estruturalmente análogas, como durante as celebrações públicas, cada “nação” adore as mesmas divindades em sua língua, isto é, sob apelações diferentes a que se liga um vocabulário também diferenciado, mas que é do domínio religioso comum (CASTRO, 1981, p. 76).

A análise de Castro, a partir da linguística, permite entender nações

afrorreligiosas emergentes. Explicando, assim, a formação de nações que se auto

definem jeje-angola, nagô-angola e outras, que mesmo com diferentes

denominações passam a refletir uma certa unidade na diversidade e vice-versa.

Page 63: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

62

Quadro 1 – Comparativo das variações linguísticas do candomblé

“NAÇÃO”

Nação

Jeje (fon)

Nagô-Queto Ijexâ

(yourubá)

Congo-Angola (banto)

Deus Hansó Olorun Zambi

Divindade das encruzilhadas

Lebá Enxu Bambojira

Divindades ou santos

Vodun Orixá Inquice

Atributos das principais divindades

Divindade suprema Lisa Obatalá, Oxalá,

Oxalufã, Oxaguiã

Hemacalunga, Lancarenganga,

Lemba

Deus da tempestade Sobô Hevioso Xangô, Airá Zazi, Inzazi, Luango,

Quibuco

Deus da medicina, Deus das ervas e

das folhas Agué Ossaim Catendê

Deus da varíola e das doenças da pele

Airoso, Azoano e Zapatá

Omolu, Obalualê, Xapanã

Cavungo, Quingongo,

Cabalanguanje

Deus da guerra Gun Ogum Incoce,

Incocimucunbe

Deus da caça Aguê Oxóssi, Odê Mutacunzambê,

Congombira, Mutacalombo

Deus das águas doces, das fontes,

dos lagos Aziritoboce Oxum Quissambo

Deusa do mar, a sereia, Mãe-d‟água

Aziri Iemanjá Quisimbi,

Dandalunda

Deusa da tempestade

Calé Iansã Bamburucema

Divindade do arco-íris, representada

pela serpente Dã, Bessém Oxumaré, Bessém Angorô

Divindade das árvores

Locô Iroco Tempo

Divindade dos gêmeos

Hohó Ibeje Babaça, Vunje

Fonte: adaptado de Castro (1981, p. 77).

A partir da tabela, pode-se entender a diversidade existente entre as nações,

principalmente pela língua falada. Porém, também possibilita a compreensão de

uma correlação entre as divindades, especialmente, no tocante da

representatividade simbólica e características em comum dos deuses.

Silva junior afirma que em 1715,

Page 64: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

63

um viajante francês comentou que Salvador parecia uma “nova Guiné”, devido à diversidade de origem dos escravos. Malgrado essa diversidade, Salvador guardava uma alta concentração de africanos escravizados que compartilhavam aspectos religiosos semelhantes. Estes escravos vinham principalmente do golfo do Benim, a segunda maior região escravista na África ocidental (SILVA JR., 2016, p. 6).

A nação jeje, como já foi dito antes, veio de uma região da África que engloba

a “área dos gbe-falantes” ao exemplo do Togo, Gana, Benim e regiões vizinhas,

equivalente ao contingente de escravos trazidos para o Brasil. Foi entre as etnias

denominadas fon, éwé, mina, fanti e ashanti, habitantes desta região, que surgiu o

termo “vodum”, usado na identificação das forças invisíveis (PARÉS, 2007, p. 34-

37). Parés afirma que

Enquanto os grupos iorubás utilizam o termo "orixa" para referir-se às divindades, todos os grupos gbe-falantes, não apenas os adjas utilizam o termo “vodum”. Essa palavra aparece registrada pela primeira vez na tradução da Doutrina Cristiana para a Língua Arda, realizada pelos capuchinos espanhóis em 1858. A sua etimologia é incerta, mas de modo geral, o termo evoca uma ideia de mistério, o inefável que não pode ser conhecido (PARÉS, 2007, p. 37).

A formação do Candomblé na Bahia teve como pilar central a nação jeje. Esta

afirmação do antropólogo Luís Nicolau Parés (2007) emprega o teor argumentativo

da literatura sobre a origem das religiões de matriz afro no Brasil, sua relação com o

tráfico de escravos para a Bahia de Todos os Santos, sobre as disputas

internacionais pelos domínios desta atividade econômica, e ainda pauta as relações

internas de povos africanos com comerciantes europeus durante tal processo.

Na obra de Parés, é possível notar a presença maciça de jejes na formação

ritual e linguística do Candomblé na Bahia, até a metade do século XIX,

principalmente, nas fontes documentais produzidas em casos onde há possíveis

policiais e membros da elite política envolvidos com rituais de Candomblé desta

época. Com as proibições, principalmente, após a postura n.º 59, de 27 de fevereiro

de 1857, onde ficavam proibidos os batuques, as danças e as reuniões de escravos,

em qualquer lugar e hora, sob pena de oito dias de prisão. Para Parés, ainda é

possível ver na documentação policial a frequência das práticas afro-religiosas.

(PARÉS, 2007, p.37)

Page 65: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

64

Tais documentos comprovam a dimensão da luta a, que o povo Jeje foi

submetido, também explica a forte militância que presenciei nas casas de

candomblé no Pará, além de ilustrar, na mesma proporção, que a postura negligente

e/ou repressiva do estado e da sociedade a que ele representa hoje continua a ser

uma constante luta que esse grupo vem travando.

Entretanto, o estudo de Parés, A Formação do Candomblé demonstra que, já

no século XIX, havia outras formas de resistir, como, por exemplo, a negociação.

Era o caso de grupos do batuque que, na condição de livres e/ou de libertos,

encontravam brechas legais para desenvolver suas práticas, pois, nesta condição,

ficavam imunes à supracitada postura de 1857, bastando pagar uma licença à

polícia; dessa forma, podiam organizar livremente as suas festas, a maioria delas,

ligadas ao candomblé.

Segundo Parés, quando ocorriam batidas policiais nos calundus ou nos

candomblés, fosse para encontrar escravos fugidos ou para reprimir batuques e

festas não autorizadas, ou, simplesmente, para perseguir as práticas religiosas das

“classes perigosas”6

, autos de apreensões e processos criminais eram produzidos.

Assim sendo, Parés nos dá uma boa mostra das primeiras dificuldades

enfrentadas pelas primeiras casas de candomblé na Bahia. Assim como demonstra

as fontes a percorrer no caso de um estudo mais aprofundado sobre a formação do

candomblé no Brasil.

No Pará, estudo semelhante interpreta as articulações políticas insurgentes

no processo de formação das religiões de matriz africana no Brasil. Em tal estudo,

Santos reitera que

Para compreender estas articulações políticas e reconfigurações rituais é preciso estar atento ao papel secularmente ocupado pelas religiões de matriz africana na vida das populações negras trazidas para o Brasil desde o período o colonial. A religiosidade funcionou como um cimento da organização social de negros escravos e libertos e de outras populações mestiças e excluídas [...]. Sob a égide do catolicismo, as irmandades religiosas foram um dos espaços onde esta religiosidade pode se organizar e perpetuar costumes e crenças. Por outro lado, desde o Império, a repressão aos templos de religiosidade africana marcou a forma do governo e das autoridades constituídas lidarem com as manifestações

6 Em alusão à categoria de análise de Sidney Shaloub, em seu trabalho Classes

perigosas (Revista Trabalhadores, n. 6, p. 5-22, 1990).

Page 66: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

65

religiosas e culturais não hegemônicas [...]. Repressão que se acentuou no período republicano, especialmente na ditadura de Vargas (2012, p. 60).

No mesmo estudo, a antropóloga endossa que somente entre os anos 1960 e

70 o candomblé se fez presente no Pará. Vindo da Bahia, trouxe consigo a

possibilidade de legitimação religiosa de adeptos do batuque e da umbanda, pela

possibilidade de feitura do “santo”, e, portanto, aumentar o status dos adeptos pelo

atrelamento a uma matriz de reconhecimento nacional. Tal processo explica também

o transito intenso de “afrorreligiosos entre as diferentes matrizes de religiosidade

africana em busca de legitimidade e melhor maneira de professar a fé” (SANTOS,

2012, p. 64).

Nesse sentido torna-se necessário entender o percurso que os Jejes fazem

até a sua chegada ao Pará.

2.4 CAMINHOS E DESENCONTROS NA TRAJETÓRIA DOS JEJE NO PARÁ

Sobre a trajetória do candomblé Jeje no Pará, trabalhos com o de Marilu

Campelo (2008) apontam para dois processos específicos. Primeiramente,

decorrente da partida de integrantes de outras casas como a Mina (batuque) e da

umbanda para serem iniciados no candomblé baiano, a partir da década de 1960.

Em paralelo, outra frente se processa quando sacerdotes do candomblé, na

Bahia, fazem o sentido contrário, vindo para Belém, se instalando e criando seus

próprios terreiros, formando, em seguida, outros sacerdotes que iriam fundar suas

próprias casas e outras ramificações dessas. Tal estudo salienta que o precursor do

candomblé em Belém foi o candomblecista Pai Astianax Gomes Barreiro, o prego,

iniciado na Bahia pelo sacerdote do candomblé angola Pai Manuel Rufino.

Na década de 1990, trabalhos como de Taissa Tavernard de Luca (1999), ao

traçar um elo entre a mina e o candomblé e suas raízes africanas, confirmavam mais

ainda o distanciamento desta tão procurada tradição africana nos terreiros

paraenses. No sentido de garantir sua tradição junto à comunidade afro religiosa,

grande parte dos terreiros paraenses tratavam de atrelar suas origens aos terreiros

de mina do Maranhão.

Tal situação de sujeição à tradição maranhense, permanece até o ano de

2003, quando surge uma nova pista sobre a genealogia africana no candomblé

Page 67: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

66

paraense. Anaiza Vergulino Silva, em sua busca pela ascendência das religiões de

matriz afro no Pará, trouxe informações concisas através de uma busca documental

sobre duas genealogias, uma que liga o nigeriano Manuel Teu Santo a Benedito

Saraiva, vulgo Pai Bené, e a outra que estabelece ligação entre a africana

Massinokô-Alapong e Pai Bassu, Orlando Machado da Silva (SILVA, 2003).

Na análise de Campelo e Luca (2007), todos os terreiros pareciam filiais

desorientadas dos terreiros maranhenses, não tendo seu próprio legado em relação

à genealogia africana. Seus integrantes sempre remetiam sua tradição a fundadores

africanos, situados no estado do Maranhão ou da Bahia. Segundo as autoras,

Dizer: “sou feito por maranhense” era pleitear para si, a legitimidade dada pelo critério antiguidade. Diziam-se tradicionais por estarem ligados aos “fundadores”, que eram os migrantes do estado vizinho, mas as respostas se calavam na medida em que aprofundávamos nossos questionamentos acerca da origem mais específica dessas pessoas. Era então impossível cruzar as fronteiras de forma mais precisa e definir modelos esquemáticos do tipo matriz-filial (CAMPELO; LUCA, 2007, p. 6).

Não diferente, a formação da roça Xwe Ace Kpo Sohun também segue uma

das trajetórias apontadas por Campelo, como aquela que presume o trânsito dos

sacerdotes por outras matrizes, ou até por outras nações.

2.5 A ROÇA XWE ACE KPO SOHUN E O CANDOMBLÉ JEJE SAVALÚ

Segundo o Kpédjígàn Hunsijé, neto de Mãe Jokolosy e provável herdeiro da

roça Xwe Ace Kpo Sohun, o termo Saluvá ou Savalú, na verdade, vem de "Savê",

que era o lugar onde se cultuava Nanã. A divindade Nanã possui uma das origens

em Bariba, uma antiga dinastia originária de um filho de Oduduá, que é o fundador

de Savê (tendo, neste caso, a ver com os povos fons).

Page 68: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

67

Figura 4 – Afro Amazônicos e seus Símbolos

Fonte: https://youtu.be/XB8Mk960va0 (2016).

Hunsijé continua sua explicação, relatando que Abomei era uma região que

ficava no oeste, enquanto Axantis era a tribo do norte. Todas essas tribos eram de

povos Jeje.

Ser jeje é um ato de compromisso com o vodun, é ser escolhido pelo vodun, porque no meu caso, eu já nasci na nação Jeje. Não é simples entender, pois a nação Jeje pode ser savalú ou mahim, no nosso caso, a gente faz parte do savalú. É muito complicado mesmo, o Jeje é uma das religiões de matriz africana, ela pode ser ketu, angolana ou jeje. Chegando ao Brasil, o savalú foi fundado pela Gàniyakú Satu, com a ajuda de outros descendentes de africanos, como Sinfrônio que é nosso tataravô, e aí foi fundado o Axé Poejy, que seria a casa matriarcal dos jeje savalú, dela vem o Axé Kaleuery que era de nossa bisavó Pureza e depois passou ao nosso avó Carlinhos - Pai de santo de minha Mãe Jokolosy, no caso nosso avô. Essa é a descendência dos savalú no Brasil, na África é diferente, pois lá não há diferença entre os Mahin e Savalú, falam a mesma língua e os mesmos voduns (Entrevista de Kpédjígàn Hunsijé, 2016).

Quando lhe perguntei como havia obtido todas essas informações a respeito

da origem dos jejes, ele respondeu-me que uma das obrigações de um sacerdote é

estudar e ampliar seus conhecimentos sobre a cultura de seus ancestrais.

Page 69: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

68

Muitas das informações sobre a trajetória do terreiro Xwe Ace Kpo Sohun

chegaram em forma de relatos feitos pela sacerdotisa Jokolosy e por outros

membros da casa, como o Kpédjígàn Hunsijé; para eles a origem da casa se

confunde com a própria história de vida da Gàniyakú.

Mãe Jokolosy conta que somente há pouco mais de dois anos o terreiro Xwe

Ace Kpo Sohun passou a se chamar dessa forma. Antes se chamava “Funderê Oya

Jokolosy”. A troca ocorreu na época da sua obrigação de vinte e um anos no

candomblé Jeje Savalú, quando, por uma revelação, o nome lhe foi dado.

Oriunda de duas famílias bem antigas de Soure, A sacerdotisa Jokolosy, foi

criada em trânsito pelas religiões da família materna (pena e maracá) e paterna

(católica). Logo cedo, aos sete anos, apresentou problemas de saúde, sendo levada

a muitos médicos, que não conseguiam tratar a enfermidade. Foi levada, por sua

mãe, para tratar-se espiritualmente e foi destinada aos cuidados, primeiramente, de

Pai Luizinho e, em seguida, de mãe Pazica, onde foi iniciada em uma casa de pena

e maracá7

.

Costa (2013), detalha a formação religiosa da sacerdotisa e líder da

comunidade Xwe Ace Kpo Sohun. Diz que, na mesma época, Mãe Jokolosy

começou a receber alguns guias, como Caboclo Juruá e Caboclo Tapinaré, e que,

aos nove anos de idade, já em Belém, foi iniciada na umbanda branca. A autora

acrescenta que

Aos treze anos de idade na casa de pai Milton e posteriormente na casa de Pai Dedé. Por motivos de saúde, no ano de 1976 foi iniciada no candomblé Ketu no “Ilê Axé de Ajunssum Jidewy” do Babalorixá Haroldo Ferreira também conhecido como Jidewy, após algumas divergências familiares Mãe Jokolosy saiu da casa de Pai Haroldo e cumpriu sua obrigação de três anos com Mãe Deuí, vinda da Bahia, após onze anos de iniciada, Mãe Jokolosy, cumpriu sua obrigação de 7 anos e recebeu seu Ideká no terreiro “Ilê axé Agaro Nilê” do Babalorixá Walmir da Luz Fernandes. Atualmente Mãe Jokolosy possui o cargo de Gàniyakú e identifica-se como praticante do Candomblé Jeje Savalu e filha de santo de Pai Carlinhos (COSTA, 2013, p.8).

7 Pena e maracá ou pajelança, caracteriza-se na crença dos “encantados”, que “baixam” durante os rituais “incorporando” no pajé (curador), que é a figura central das sessões. Sobre o conceito e outros aspectos da nação Pena e Maracá, ver Quintas (2007)

Page 70: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

69

Não passou despercebido que Mãe Jokolosy já havia sido estudada em

outros trabalhos de pesquisa relacionados à sua trajetória de vida e/ou sobre a

fundação da comunidade Xwe Ace Kpo Sohun. Existe uma espécie de facilitação, ou

aceitação de pesquisas por parte da sacerdotisa, um indicativo importante sobre seu

engajamento na causa da comunidade afro amazônica, como ela prefere denominar

as casas de candomblé em território amazônico. Como em sua participação na IV

CONFERÊNCIA ESTADUAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL

(CESANS – PA), intitulado “Comida de verdade no campo e na cidade”, ocorrido em

2015

Figura 16 – Sacerdotisa Jokolosy na IV CESANS-PÁ 2015

Fonte: Acervo Savaluano, 2015.

O encontro objetivava ampliar e fortalecer os compromissos políticos, com a

finalidade de viabilizar a Política e do Plano de Segurança Alimentar e Nutricional,

previsto no Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN/PA), na

Page 71: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

70

perspectiva da participação social e gestão intersetorial nas três esferas de Governo

do Pará.

Ao participar como membro da liderança afrorreligiosa nesses eventos a

sacerdotisa Jokolosy demonstra o caráter politico de sua liderança, que se

compromete a dialogar com os gestores públicos no sentido de garantir a

permanência dos hábitos alimentares da tradição afrorreligiosa, dentro das posturas

e politicas de saúde publica e, dessa forma, resistir à intolerância religiosa.

O objetivo dessa expressiva história colaboração com pesquisadores, reside

no estabelecimento de um elo, certa intimidade com o espaço acadêmico, abrindo,

dessa forma, um importante canal para sua militância política em prol das religiões

de matriz afro e, em específico, pela preservação das comunidades do candomblé

aqui na Amazônia.

Durante uma entrevista com Gàniyakú Jokolosy e Hunsijé, a sacerdotisa diz

pertencer a uma comunidade tradicional de matriz africana, e que sua trajetória inicia

na Pena e Maracá e, posteriormente, permuta para o candomblé, inicialmente, no

Keto – no Ilê Três Unidos (Bahia), pelo Babalorixá Ajunssum Jidewy, e

posteriormente no Jeje.

Ser jeje, segundo ela, é estar em sintonia com a natureza, é estar com a

energia da ancestralidade.

Page 72: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

71

Figura 5 – Árvore que simboliza a divindade Locô para a comunidade Xwe Ace Kpo Sohun

Fonte: comunidade Xwe Ace Kpo Sohun (2016).

O Kpédjígàn diz que o povo Jeje cultua divindades ligadas à natureza e a

ancestralidade africana, o Vodun, que ele enfatiza ser a forma mais correta de se

referir à divindade; melhor, segundo ele, que entidade. O candomblé jeje tem uma

ligação com a natureza, por isso, as casas matrizes geralmente foram construídas

em espaços em contato direto com a natureza. Segundo o sacerdote, algumas

casas dizem: “casa de Jeje tem que ser em fazenda, sítio, tem que ter muita árvore,

criação de animais, rio etc.” (Entrevistas de Hunsijé, 2016). Segundo ele:

Para nós a divindade específica dos savalú é a “Locô”, que é a divindade que habita a árvore, representada na Bahia pelo pé de gameleira, aqui por razões de adaptação usamos ou a árvore de jaca, ou do taperebá. No axé o atin (árvoré) e o fruto atinçá (quando tem o vodum plantado) representam a nossa ancestralidade, ou seja, uma coisa que plantamos e nós somos os frutos. Tem a concepção também de hierarquia, por causa da sua origem, ela veio da África até chegar à gente, nos frutos desta árvore, que possui suas raízes plantadas lá na África. Lá está plantado o axé e através dela vieram todos os frutos para o Brasil. Conta a história que Locô trouxe todos os voduns para Terra, porque ele era a árvore mais alta e era o caminho pelo qual todos os outros voduns vieram para a terra.

Page 73: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

72

Portanto ele representa a ancestralidade, a memória, porque Locô está na presença de tudo, ele é o testemunho do início de toda a criação, é os olhos que tudo veem, tudo que se passa na mata ocorre na presença de Locô (Entrevista de Hunsijé, 2016).

Ainda segundo Hunsijé, existem diferenças pontuais entre as variantes do

candomblé, dentre elas, a própria organização dos cargos existentes em uma casa

Jeje Savalú.

Cada casa possui uma forma peculiar de organização, mesmo aquelas que

fazem parte da mesma linha. Essa diversidade se dá pela subjetividade que

perpassa cada sacerdote fundador. Aos poucos, cada um vai empregando suas

próprias noções morais e gerando estratégias para essa organização, que vão

desde a adoção de cargos criados, especificamente, para a casa até calendários

diferenciados para suas liturgias.

Um exemplo disso foi experimentado durante minhas pesquisas exploratórias

às casas de candomblé em Belém e em municípios vizinhos. Achei casas em que,

por falta de pessoas que assumissem o cargo de guardiã da cozinha, faziam

arranjos estipulando tal tarefa a outros membros, inclusive rodantes, que, de acordo

com o consenso, não eram os mais indicados para tal função, por não poderem se

dedicar à tarefa enquanto estivessem em transe. Essa situação foi assim

exemplificada pelo pai Fernando, quando frisou o fato de em seu terreiro não haver

uma

Iabassé, então algumas aiôs fazem o trabalho da cozinha supervisionadas por mim ou mãe Rose. Elas vão aprendendo pouco a pouco, com a experiência, apesar da função não ser de nenhuma delas, ainda sim elas contribuem com muito amor e dedicação, isso é fazer parte de uma família, a família de santo. Todos aqui dão o seu melhor pelo candomblé e pela tradição. São novos tempos, temos que nos adaptar, tentamos manter os antigos costumes, mas não descartamos as melhorias, as tecnologias vieram para ajudar. Eles, os santos, criaram essas tecnologias, então temos que aproveitar e

agradecer (Entrevista de Pai Fernando8

, 2016).

Visitar outros terreiros, além do Xwe Ace Kpo Sohun, tornou possível

entender a diversidade existente no interior do candomblé.

8 Babalorixá do Instituto Cultural Nagô Afro-Brasileiro (ICNAB) – Terreiro de Mina Nagô,

Belém/PA.

Page 74: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

73

No texto da primeira plenária do Forum Nacional de Segurança Alimentar e

Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana – FONSANPOTE9

, realizado

em outubro de 2012, uma das temáticas de abertura desse encontro foi justamente

dialogar com as transformações surgidas no seio da organização do candomblé, por

conta das regulamentações, que passavam à responsabilidade das casas de matriz

africana. Responsabilidades oriundas, principalmente, por conta dos códigos de

posturas públicas, decorrentes da carta de princípios da segurança alimentar. Cujo o

propósito da temática

O segredo desta temática é comandado pela guardiã da cozinha, a Iabassé, Mametu Mukamba ou Ponsilè. Aquela que “muito faz e pouco fala.” Quando se fala da sacerdotisa da comida, as formas mais antigas de transmissão do conhecimento trazida pelas diversas etnias africanas vão ser evocadas: a observação e a convivência. E o mestre dos mestres será mais uma vez chamado: o tempo. O conhecimento ritual, o respeito, a criatividade e o comando apresentam-se como o perfil da Iabassé, Mametu Mukamba ou Vodunsi Ponsilè que orientam à sua escolha, mesmo que, hoje, nos “novos tempos,” poucas sejam as mulheres que se disponham a tal cargo; não pelo gosto, mas pelas funções assumidas por elas na sociedade. (CONSEA, 2012)

Hoje em dia, devido às variadas atribuições pessoais de uma sacerdotisa da

comida, torna-se difícil uma dedicação exclusiva aos afazeres da cozinha de santo.

Muitas vezes, tal empecilho é solucionado com adequações informais, que mudam

de casa para casa, sendo, por vezes, treinadas outras senhoras para o cargo, ou

criados outros cargos para as auxiliares que efetivarão a função na ausência da

sacerdotisa. Em outros terreiros que investiguei, encontrei até iniciados homens

realizando as funções da Iabassé. Também não são raras as diferenciações dos

cargos existentes de casa para casa, em uma mesma linha do candomblé.

Segundo o estudo feito por Chagas (2014), os cargos são designados

conforme aspectos hierárquicos e de temporalidade do santo feito.

9 A ideia central do Fórum foi estabelecer o diálogo entre a legislação da implantação do

sistema de segurança alimentar e nutricional no país e a harmonização desta com o Decreto nº 6.040 de 07 de Fevereiro de 2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.

Page 75: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

74

Quadro 2 – Cargos existentes em uma roça Jeje Savalú

GÀNIYAKÚ

HÙNGBÓNNU

Maior cargo do terreiro, de responsabilidade da senhora mais velha no que se refere ao culto de santo na casa Status maior masculino

MÈHÙNÀN MEHUNTÓ

Cargo feminino e o masculino da segunda pessoa mais velha(o) da casa Mãe/Pai pequeno

EKEDJÉ Cargo feminino, porta voz do Vodun; é quem auxilia os Voduns

DERÉ Cargo feminino que auxilia a Gàniyakú e a Donné em diversos rituais

KPÉDJÍGÀN Cargo masculino de extrema importância na casa, por se tratar de um cargo de confiança; é ele que zela pelo Peji dos Voduns

HUNTÓGÃ Pai do Hún e chefe dos tocadores dos atabaques

GÀNTÓ Pai do Gan (Agogô)

AGBAJÍGÀN Cantador e zelador do barracão

HUNTÓ SENÉVI

Tocador do atabaque hùnpi

HUNTÓ HÙNSÉVI

Tocador do atabaque hùnlé

HUNDÉVÁ Ogan, braço direito da autoridade maior da casa

HÙNSESÍ Anagàn, braço esquerdo da autoridade maior da casa

GÀNKÚTÓ Zelador dos ritos de Ayizan

SENMATO ou AHUN SÉMÃ

Cargo de quem detém o conhecimento das ervas

VODUNSÍ Pessoa que entra em transe e cultua Vodun

VODUNS Qualquer pessoa que cultua Vodun

MÈJITÓ Usado para designar carinhosamente a Mãe de santo em algumas casas

OGAN Homem que não vira no santo, podendo receber cargo de Kpedjígàn, senhor que zela pelo Kpèdjí

GÀNIYNPÈ Auxiliar de Kpedjígàn

LANHÚNTÓ Responsável pela Nahùnnú

ANAGÀN Mulher que não incorpora

HUNSÓ Responsável por alguns ritos sagrados e pela dança

EKEDJÍ Responsável pelas roupas dos Voduns

GÒNZÉGAN Responsável pelas quartinhas

MLANGÀN Tem a responsabilidade de rezar com os vodùnsís

HUNTÓHWÈ Zelador da comunidade, responsável por averiguar tudo na casa, é o olho do Doté ou Donnè

DAGÀN Senhora que zela por Elegbá

DUNÚGÀN Senhora responsável pelas comidas sagradas

AMÀNÓN Responsável pela colheita das folhas

TÓHWÉTIN Pai das tinturas

ANANHWÉTIN Mãe das pinturas

Fonte: elaborado a partir dos depoimentos de Gàniyakú Jokolosy e Kpedjígàn Hunsijé, 2017.

No quadro acima, há a disposição dos cargos da comunidade Xwe Ace Kpo

Sohun divididos hierarquicamente, de acordo com o grau de experiência, baseada,

sobretudo nos critérios de idade de feitura da “cabeça no santo”, que se transcreve:

“Tá” no idioma Fongbé ou “Ori” no idioma Yorùbá, ou seja, seguindo a ordem do

período da iniciação de um indivíduo do candomblé.

Page 76: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

75

Mesmo considerando as peculiaridades existentes em cada roça, nota-se

alguns pontos comuns em todas as religiões afro-brasileiras. Como as divindades

cultuadas no candomblé, chamadas “orixás”, Voduns no jeje savalú, que têm

características muito humanas, cada uma, com suas preferências e idiossincrasias.

“Em seu conjunto formam uma sociedade em que há famílias, amor, ódio, intrigas,

lutas, amizade etc.” (CORRÊA, 2005, p. 71).

2.6 A COMIDA DE SANTO REINVENTADA

Nos últimos anos, com a aquisição do terreno de Outeiro, a sacerdotisa

investiu em uma criação de patos, pombos, galinhas, para o fim de aproximar os

rituais da comida de santo, da forma com eram praticados pelos antigos Jejes.

Também começou uma pequena horta e deu inicio a um processo de plantio de

algumas ervas e plantas que servem ao propósito de responder às necessidades

primeiras do funcionamento da cozinha do terreiro Xwe Ace Kpo Sohun. O projeto é

tornar o terreiro autossuficiente, assim como ela pôde testemunhar em alguns

terreiros na Bahia.

A intenção da sacerdotisa é tornar o alimento dos Voduns o mais próximo do

que eles imaginam ser o legado que seus ancestrais experimentaam na África.

Vivenciar, através dos hábitos alimentares, o retorno às origens dos primeiros jejes

na época da diáspora africana. A alimentação é, assim, um elemento pedagógico,

na medida em que contribui para a perpetuação da tradição.

Outra motivação, segundo a sacerdotisa, é ter de volta a privacidade e

liberdade dos afazeres do terreiro, que foram comprometidas com o crescimento

urbano desordenado, que reduziu os espaços entre as moradias, comprometendo a

privacidade para as múltiplas ações no terreiro. Mãe Jokolosy relata que:

Antes, quando fundei a casa, não havia vizinhos de muro, então a gente tinha mais liberdade para nossas tarefas, que as vezes não é no horário dos vizinhos. Aí vinha as reclamações e a polícia não parava de vir tomar satisfação. Algumas vezes tivemos que parar o ritual ou esperar até clarear. Outra coisa é que algumas das funções da casa exigem arvores plantas, mas com o perigo de crescer e cair na casa do vizinho tive que mandar cortar. Sabe como é né? a gente evita dor de cabeça. Também não tinha espaço pra imolar os animais, e evitar a faladeira. Então, graças aos voduns nós ganhamos esse terreno do Outeiro e ai vamos passando as

Page 77: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

76

atividades grandes aos poucos pra lá (entrevista de Mãe Jokolosy, 7 abr. 2017).

Ao tentar me convencer de que seu terreiro segue, efetivamente, a cultura

Jeje, procurando processar seus alimentos da mesma forma que os africanos

escravizados faziam no Brasil ou como eram feitos na África, Mãe Jokolosy faz

emergir um questionamento sobre as estratégias que as comunidades afro-

religiosas tem encontrado para legitimar suas crenças e hábitos culturais. Algumas

delas refere-se à tentativa de influenciar, ideologicamente, a comunidade

acadêmica, direcionando seu discurso, de modo a supervalorizar as práticas

efetivadas em sua comunidade.

Percebi, na comunidade estudada, certo esforço em manter a “tradição” da

cultura alimentar africana. Um certo ufanismo exacerbado para atestar a

ancestralidade africana, e, dessa forma, empoderar, inclusive, intelectualmente,

seus saberes religiosos através da reinvenção das tradições. Segundo Raul Lody,

mesmo que haja essa necessidade em afirmar uma cultura de raiz,

É notada a mistura da culinária profana à ritual, motivada por necessidade de espaço ou mesmo, pela natural mistura e distanciamento dos valores normativos originais, norteadores dos sentidos rituais. Na realidade, a cozinha artesanal afro-brasileira adquire suas versões e interpretações regionais nos terreiros de Xangô, Candomblé e outras formas de cultos populares. O nível de consciência dos rigores gastronômicos da vasta culinária dos terreiros também é significativo aspecto que irá determinar o grau de identidade ou de aculturação com a série de procedimentos da cozinha de uso religioso (LODY, 1977, p. 41).

Tal debate exige uma reflexão crítica, considerando o distanciamento

temporal e espacial que serve como abismo entre as nações fundadoras do

candomblé e suas variadas ramificações existentes na atualidade. Além de outros

obstáculos que inviabilizam a preservação das tradições, como: a distinção de

sistema econômico vivido por ambas, suas formas de sobrevivência,

desenvolvimento tecnológico, a dinamicidade da cultura, o anacronismo histórico

entre tantos outros aspectos.

Ainda sim, esforçando-se em se apropriar da forma como os africanos

escravizados usavam seus ingredientes, como, por exemplo, o modo como

descascavam o feijão fradinho, grão a grão, os membros do terreiro Xwe Ace Kpo

Page 78: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

77

Sohun pretendem resgatar em uma memória distante os hábitos e as formas de

resistência à sujeição em que se encontravam seus ancestrais, tendo como

finalidade aproximar essa tradição passada de seus novos hábitos, dando origem a

uma tradição reinventada, que evidencia aspectos pretéritos, com técnicas, métodos

e estratégias do presente.

O exemplo de tal esforço está em uma passagem em que Mãe Jokolosy narra

uma das peculiaridades da alimentação dos escravos africanos e a usa como

pretexto para fundamentar seus métodos culinários, empregando, através de uma

metáfora sobre o poder agregador da cozinha, uma estratégia para a sobrevivência

dos costumes e saberes tradicionais. A sacerdotisa contou ser comum, na época da

escravidão, que os escravos não tivessem permissão para usar os pilões e outras

ferramentas da casa grande. O uso desses instrumentos, quando permitido, gerava

momentos de socialização entre os escravos, pois o processamento das comidas

para a senzala era um dos raros acontecimentos de descontração em grupo.

Por conta desse histórico passado, o pilão representa para a sacerdotisa um

símbolo da culinária tradicional da diáspora africana, tendo seu uso,

constantemente, ressignificado junto à comunidade afrorreligiosa.

A apropriação dos pratos africanos pelos integrantes do terreiro Xwe Ace Kpo

Sohun demonstra que, por meio desses conhecimentos culinários, a casa de Mãe

Jokolosy mantém vestígios das práticas alimentares de nações africanas,

conservando, dessa forma, o próprio modo de vida dos ancestrais dessa matriz. As

praticas culinárias são, assim, um fato pedagógico.

Não é de hoje que a alimentação vem sendo usada pelos herdeiros

afrorreligiosos como estratégia de resistência às mais variadas mazelas a que foram

submetidos, desde o período colonial, pois, segundo o Kpédjígàn Hunsijé, comida e

música sempre aparecem lado a lado como ardil para promover a convivência

pacífica dos grupos étnicos, obrigados a coexistir pacificamente, no período da

escravidão africana. O Kpédjígàn relata que, no período colonial

Quando nossos antepassados chegaram às fazendas para serem escravizados, tiveram que renunciar a todas as crenças e hábitos cultivados na terra mãe, mas isso não os impediu de no seu íntimo, de forma velada, acreditar nas suas crenças. Então, a saída foi introduzir algumas histórias em forma de cantigas que podiam ser entoadas durante os trabalhos diversos que eram obrigados, e assim

Page 79: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

78

seus senhores não os castigavam (entrevista com Kpédjígàn Hunsijé, 5 mar. 2017).

Segundo o Kpédjígàn, os membros da casa aprendem, desde cedo essa lição

de resistência pela preservação de seus hábitos e pela liberdade religiosa.

Aprendem, que, similarmente, ao que ocorreu com os hábitos alimentares dos

escravos africanos, hoje alguns gêneros da culinária candomblezeira são trocados

por outros mais acessíveis na região, uma forma de adaptação às condições que se

apresentam.

Assim , segundo o religioso, também faziam os escravos africanos, na época

da diáspora, pois boa parte dos ingredientes marcantes na culinária africana não

existiam no Brasil, ou eram negados aos escravos, sendo, na maioria das vezes,

necessário substituir esses gêneros por outros, geograficamente e/ou

economicamente mais acessíveis.

Manuel Querino, que provalvemente foi um dos primeiros a pesquisar sobre a

comida de santo, afirma que o café esta entre a lista de alimentos, que eram

proibido à população escrava e, que de certa forma, passou a compor o rol dos itens

de comidas tabus para os africanos, chegando aos terreiros depois de séculos do

fim da escravidão, também como alimento interdito para os

afrorreligiosos.(QUERINO, 2006, p. 39)

Entretanto, segundo Querino, os escravos africanos conquistaram a

permanência de seus hábitos alimentares, impondo resistência ao processo

alimentar impositivo do colonizador. Uma forma de obter a liberação de certos

alimentos foi por meio do sincretismo religioso. Um caso exemplar é o do caruru,

prato feito a partir de uma massa cozida com quiabo, gênero introduzido no Brasil

durante a instalação da escravidão africana, e que foi, aos poucos, tornando-se

comida de festejo católico e afrorreligioso, durante as festividades de são Cosme e

são Damião. Como nessa passagem de Costumes Africanos no Brasil em que

descreve o cotidiano em um terreiro de candomblé:

Num dos dias da semana varre-se o santuário, substitui-se as águas das quartinhas, renova-se as comidas dos pratos. Cada invocação tem sua comida especial: Omolu alimenta-se de orobó e pipocas; Xangô de caruru, e assim por diante. (QUERINO, 2006, p.38).

Page 80: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

79

O curioso é que esse prato, na sua versão angolana, o “Kalulu de Honho”,

vem enriquecido com postas de peixes, enquanto que, aqui no Brasil, na versão

baiana, ele é cozido com camarões, galinha, e servido em festejos, sejam eles de

santos infantis, como os gêmeos Cosme e Damião (catolicismo), ou ofertados às

entidades jovens, como os erês do candomblé. Como explica Hunsijé, ao comentar

a relação entre sincretismo e alimentação, no caso especifico do caruru,

o prato, Kalulu de HonHo no idioma Fon, é prato de sincretismo, é uma comida de tradição religiosa, incorporada para a festa de Cosme e Damião, na tradição cristã, e ofertada na tradição do Candomblé aos eres e outras divindades como os Biatôs, vodun com essência de criança, nos terreiros Jeje Savalú (Entrevista de Kpédjígàn Hunsijé, 2017).

O Carurú, na versão afrorreligiosa, é comumente ofertado em rituais onde há

a necessidade de aplacar as peripécias de entidades infantis ou com essência

infantil. No catolicismo, não há relação direta entre a iguaria com o comportamento

dos santos infantis. Portanto, além da substituição de ingredientes que compõem os

pratos ou hibridização dos mesmos, uma simples adaptação às restrições

alimentares, a adoção ou troca de ingredientes, podem desencadear uma mudança,

da própria função social do prato.

Hunsijé segue explicando que o prato é ofertado no mês setembro, em

diferentes tipos de celebração na cidade de Salvador, configurando diversos

elementos associados à identidade baiana, tais como mestiçagem e sincretismo,

além de adjetivos que são associados ao caráter dos baianos como “generosos”,

“alegres”, “festeiros” e “comilões”.

Kpédjígàn discursa contra algumas casas na qual o sincretismo, através de

Cosme e Damião, passou a se sobrepor à própria origem africana do Caruru. Ele,

denuncia, que a negação da tradição do alimento, subalterniza a ancestralidade afro,

sujeitando-a a um plano secundário, alimentando, assim, a hegemonia exercida pelo

catolicismo na representação do Brasil, reverberando na própria descaracterização

da cultura alimentar e dos preceitos alimentares afrorreligiosos.

A necessidade de manter a tradição no terreiro Xwe Ace Kpo Sohun chega a

ser imperativa. Na verdade, ao optar pela forma tradicional dos alimentos, Mãe

Jokolosy tenta aproximar sua comunidade ao máximo da história dos jejes,

reinventando uma tradição que ela imagina ser imutável. Entender de onde vêm

Page 81: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

80

seus credos é importante para consolidar a identidade que esses sujeitos possuem

com sua religião e respaldar uma comunidade que precisa muito assegurar seu

direito ao credo escolhido, além de permitir que sua militância tenha fundamento na

ancestralidade africana.

Ao ouvir Mãe Jokolosy e o jovem Kpédjígàn Hunsijé descrevendo

minunciosamente que os pratos preparados para uma obrigação hoje em dia são

feitos como eram no tempo da escravidão, ou antes na África, é possível ver que a

para a família de santo do terreiro Xwe Ace Kpo Sohun a alimentação é forma

também de educar para a preservação da memória dos seus antepassados. Pois,

sendo o candomblé uma religião de resistência cultural, a comida, tem o papel de

agente mediador de valores e saberes, imprescindível, para a circulação de

conhecimento e elo de aprendizagem constante.

Page 82: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

81

Figura 6 – A Dunúgàn e a Sedugàn da comunidade Xwe Ace Kpo Sohun

servindo os adeptos de acordo com os costumes Djedje Savalú

Fonte: Acervo da pesquisa, 2017.

Comer, como os antigos ancestrais (escravos africanos) comiam, é parte

desse processo. Dessa forma, a alimentação torna-se um elo poderoso entre o

tempo presente e o passado em forma de simbolismo e tradição, assegurando a

legitimação da religiosidade abraçada.

O alimento sagrado, quando partilhado (Ajeun), possibilita uma viagem na

história africana, na aliança com seus deuses primordiais e na educação

candomblecista. Comer juntos, em plena sintonia com os hábitos dos seus

antepassados faz com que os filhos de santo estreitem laços, criando identidade

com a diáspora africana, além de fornecer os fundamentos para seus rituais. Dessa

forma, pode-se dizer que a comida ritual funciona como legitimação para a crença

da ancestralidade afrorreligiosa, além de uma forma de mediação de saberes.

Page 83: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

82

3 COZINHA DO AXÉ: UM DIÁLOGO ENTRE OS SABERES TRADICIONAIS E A

MODERNIDADE

Figura 7 – Cozinha do terreiro Xwe Ace Kpo Sohun

Fonte: a autora, 2017.

A comunidade do terreiro Xwe Ace Kpo Sohun se identifica como uma casa

de preservação da cultura e costumes tradicionais do Candomblé Jeje Savalú como

uma estratégia de sobrevivência e legitimação dos atos desses sujeitos perante

outras comunidades e em relação à sociedade brasileira, como um todo.

As cozinhas Xwe Ace Kpo Sohun – tanto da sede na rua Conselheiro Furtado,

quanto na ilha de Outeiro (futura sede) – não diferem das cozinhas de terreiros

visitados, ou mesmo de outras cozinhas brasileiras. Como de costume, elas

possuem mobiliários onde são guardados os utensílios, tais como mesas, cadeiras,

onde parte das tarefas e das refeições são feitas.

Também comportam fogões, geladeiras, panelas, louças, eletrodomésticos,

enfim, tudo o que é necessário para desenvolver os trabalhos culinários cotidianos

Page 84: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

83

de uma casa comum. E não poderiam ser diferentes, afinal, as cozinhas, nos dois

locais, alimentam não somente à comunidade de santo, mas também figuram como

parte dos cômodos das famílias que moram nos dois endereços. Por isso, como em

qualquer casa, tais cozinhas carregam em si também o potencial objetivo de serem

práticas e funcionais.

No entanto, ao olhar a cozinha da comunidade Xwe Ace Kpo Sohun com mais

atenção, é possível notar que, por detrás de toda essa aparente funcionalidade,

existe uma quantidade significativa de objetos que parecem não pertencer às

cozinhas de nosso tempo. Sui generis, esses artefatos, como o alguidar, a moringa,

o pilão, potes e panelas de barro, tábuas de lavar, chaleiras, entre outros itens, não

só parecem de outro espaço e tempo, tanto pela rusticidade de seu material como

por conta de sua pouca praticidade, de acordo com o que hoje se imagina em

termos de funcionalidade.

Tais objetos parecem diferir ou contradizer com o sistema e modo de vida

capitalista, onde tudo tem urgência, dado o valor antiquado e não produtivo para os

padrões da cozinha planejada e funcional do nosso tempo – ou, melhor dizendo, da

lógica de temporalidade nos moldes do grande capital.

Esses objetos, contudo, não são de todo desconhecidos, pois é possível

encontrá-los em cozinhas do tempo presente, como artigos de decoração, ou

mesmo em cozinhas de famílias onde o uso da tecnologia é restrito em função do

seu alto custo monetário. Uma lição que se deve aprender da relação comida e

religião afro é que existe uma lógica, certo sistema, não ditados por valores como

lucro, espécie, competitividade ou algo do gênero. Mas, por que tais objetos

recebem lugar de destaque nas comunidades afrorreligiosas? Que valor simbólico

está agregado a tais objetos?

3.1 LUGAR DO SIMBÓLICO E DA MEMÓRIA

Uma vez que a comida tem papel especial na religiosidade afrorreligiosa, isso

significa que ela não pode ser servida em qualquer recipiente. Se a comida é

preparada de acordo com a qualidade de cada divindade, os objetos onde esta vai

ser servida também devem possuir características que se assemelham aos preceitos

que caracterizam os deuses a que servirão.

Page 85: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

84

Figura 8 – Louças para a comida votiva

Fonte: Acervo da pesquisa, 2017.

Assim, além do simples valor utilitário, esses objetos possuem simbologia.

Para cada santo, existe um tipo de objeto em que deve ser depositado o Ajeun.

Geralmente, esses recipientes são feitos de vários materiais naturais, como madeira,

barro, palha e até porcelana, e compreendem: panelas, pratos caçarolas, colheres

de pau, assadeiras ou simplesmente adornos, onde são apoiadas tais vasilhas.

Cada um desses materiais comunica funções que servem a motivos diferenciados,

como ao estado de espírito, aspectos inerentes à forma da divindade, origem mítica,

enfim, as “propriedades” que exprimem características de determinado santo. Como

expressa Raul Lody,

É comum observarmos nessas cozinhas sagradas a presença do fogão à lenha, contendo ainda, muitos fogareiros, outros tipos de fogões e os muitos utensílios são colocados nas mesas ou bancas. [...] Panelas de barro, alguidares, travessas, tigelas nagé, quartinhas, talhas, pratos de cerâmica, gamelas, pilões, pedras de ralar, moinhos, abanos, colheres de pau, peneiras, bacias em ágata e folha de flandres, tachos de cobre, entre outros objetos constituem o ferramental de trabalho das iabassês, mulheres que cozinham para os santos. Noites inteiras são destinadas ao preparo dos alimentos rituais e após as manhãzinhas, quando sacrificam os caprinos e as aves, no interior dos pejis, as iabassês vão preparar, com grande rigor, os animais que sacrificados deixaram o sangue nos símbolos

Page 86: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

85

dos deuses, unindo seus elementos de vida e fertilidade ao estimulante contato da seiva, o sangue nas pedras, nas esculturas e nos objetos dos assentamentos, nutrindo o axé, revitalizando as propriedades dos deuses, cumprindo seus sentidos de dinamismo e força (LODY, 1977, p. 41).

Cada objeto da cozinha sagrada não é escolhido aleatoriamente. A triagem

deles reflete um sortimento de símbolos, de profusão de sentidos e funções. Se a

comida votiva reflete os atributos dos “santos”, ou voduns, a louça e artefatos, assim

como os adornos e o próprio ambiente onde será servida, possuem, igualmente, os

atributos desta.

Na maioria das vezes, por ser uma cozinha de múltiplos usos, considerando

que a mesma é também usada para o preparo das refeições regulares da família

que ali reside, a cozinha não se diferencia de outras, que não lidam com o alimento

ritual. Entretanto, não se pode perder de vista que lá ocorre a feitura dos alimentos

destinados aos rituais sagrados, o que explica, em alguns momentos, a presença de

um delicado cheiro de ervas, como alecrim, arruda, benjoin, alfazema, guiné, anis

estrelado e outras folhas e raízes, geralmente, usadas em defumadores antes da

preparação das tarefas na cozinha do Axé. Tais aromas combinam-se com o

perfume das frutas e temperos usados, intercalados às vezes por um odor forte dos

animais imolados.

Do ponto de vista da estética, também se pode notar uma miscelânea de

gêneros, desde ervas e raízes, de perfume e gosto memoráveis, e tantos outros

artigos da culinária afro-brasileira, conformando certo fascínio visual. Nessa mistura,

podem ser encontrados elementos de várias culturas, entre eles, gêneros da cultura

alimentar africana a elementos de origem indígena e europeia.

O que é peculiar no uso desses objetos, ervas e gêneros descritos acima é o

simbolismo, memória e a temporalidade a que pertenceram no passado. Mantê-los é

como presenciar processo similar ao descrito no mito de Ariadne, do “eterno

retorno”. Segundo o olhar de Paolo D‟Iorio (1993).

D‟Iorio esclarece que a simbologia de tal mito quando usada no sentido da

filosofia em Nietzsche expressa uma conotação adversa da que se consolidou no

meio filosófico, onde este afirma que

Gilles Deleuze sustenta que “na expressão „eterno retorno‟, cometemos um contra-senso quando compreendemos retorno do

Page 87: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

86

Mesmo”, que é sobretudo necessário evitar “acreditar que se trata de um ciclo ou de um retorno do mesmo, de um retorno ao mesmo” e ainda: “Não é o mesmo que revém, não é o semelhante que revém, mas o Mesmo é o revir do que revém, isto é, do Diferente, o semelhante é o revir do que revém, isto é, do Dissimilar. A repetição no eterno retorno é o mesmo, mas enquanto ele se diz unicamente da diferença e do diferente” (D„IORIO, 1993, p. 69-70).

Ao tentar preservar a memória a partir do uso dos objetos pertencentes na

cozinha do terreiro, um mito do “eterno retorno” foi se criando até que, para além da

utilidade de cada objeto, erguia-se um propósito simbólico em que a tradição ligada

ao uso desses artefatos retornava, não mais como ela foi no tempo pretérito, mas

sim como um eterno devir, que se transforma e não se estabelece pela

permanência, mas sim pela mudança.

Ao se apropriar dos hábitos culinários afrorreligiosos, a comunidade Xwe Ace

Kpo Sohun passa a vivenciar o legado de seus deuses africanos, as memórias que

recebem alicerçadas pelos ritos, narrativas míticas, narrativas históricas a respeito

dessas entidades e dos fundadores de suas crenças, que parecem ser tão tangíveis

quanto aquelas herdadas de seus ancestrais biológicos. Manter essa simbologia dos

elementos gastronômicos significa permanecer o mais próximo possível de seus

deuses e, consequentemente, revivê-los, através das suas cantigas, do cheiro de

suas essências, ou simplesmente num prazeroso momento em que se partilha um

“legítimo” prato africano.

Dessa forma, mesmo quando reconhecem as permutas existentes na

culinária votiva, ainda assim, os membros do terreiro Xwe Ace Kpo Sohun afirmam

estarem no caminho de um retorno aos termos de uma cultura afro-brasileira, da

época da diáspora. E, assim, reinventando o passado e até mesmo a memória sobre

este, a casa segue persistindo e se auto preservando.

O binômio quente/frio na culinária afrorreligiosa cumpre o papel de estreitar os

laços entre a antiga África, suas práticas sagradas, e as religiões de matriz africana

no Brasil. As comidas e os utensílios seguem esse binômio, que permite uma

logística de símbolos agregada aos rituais e alimenta ainda mais a ideia do eterno

retorno à tradição sagrada africana. Em tese, segundo Lody,

A cozinha é um espaço que reúne não apenas os saberes culinários. É um verdadeiro depósito de utensílios, tradicionalmente artesanais e cerâmicos. Formas, tipos e quantidades existem para apoiar a tarefa de preparar os alimentos. Embora os utensílios elétricos componham

Page 88: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

87

o elenco de peças de apoio das cozinhas, mesmo daquelas consideradas as mais ortodoxas, verificase uma valorização das peças artesanais [...] os muitos e diferentes utensílios que proporcionam o fabrico dos pratos assumem valores especiais, não apenas pelos seus significados funcionais, mas, também, pelos simbólicos (LODY, 2004, p. 42-43).

A forma como os alimentos são servidos no terreiro Xwe Ace Kpo Sohun

segue, no geral, o sistema descrito por Raul Lody (2004). O sistema simbólico

empreende a linha de pensamento que atrela a disposição dos utensílios às

propriedades de cada vodun do candomblé jeje savalú. Portanto, tais quais os

ingredientes, folhas e temperos da cozinha sagrada, os utensílios, similarmente,

estão predispostos a receber uma rotulação em um binômio sistematizado em dois

lados opostos e harmônicos, uma dicotômia, que os divide em divindades quentes x

divindades frias. As louças e outros utensílios, são assim distribuídas de acordo com

a simbologia binomial do quente/frio.

São entidades quentes os voduns Onitá, Abesàn, Sogbô, Gú, Heviossô,

Sakpatá e Elegbá. Geralmente, simbolizam fogo e terra, dinâmicos (pelejadores) e

temperamentais, até voláteis, como a maioria dos elementos quando convergidos à

alta temperatura. Fazem parte do clã de voduns frios as divindades Lissá, Aziri

Tobossi, Tòkpádù, representantes simbólicos da água e do ar. Possuem

temperamento mais ameno do que os voduns quentes, e regularmente são

entidades que, em muitos aspectos, simbolizam a origem da vida.

Os objetos feitos de cerâmica e de vidro são mais adequados para servir os

voduns frios, já os quentes em vasilhas de barros. Mas, às vezes, o uso dos

utensílios também está ligado ao gosto de algumas divindades. Por vezes, verifiquei

que algumas divindades femininas também exigiam que seus pratos fossem arriados

em peças de cristal. Outras gostavam que incluíssem adornos brilhantes e até

tecidos às vasilhas, convertendo as louças em verdadeiras obras de artes.

Isso remete ao pensamento de que as propriedades das vasilhas da cozinha

sagrada não só refletem as características primordiais dos deuses aos quais elas

servem, como também representam aspectos de sua personalidade, como: orgulho,

vaidade, paixão e até ostentação. Dessa forma, acredito que cada móvel, utensilio,

ferramenta, ingrediente, encontrados na cozinha sagrada podem falar muito sobre a

própria organização dos hábitos cotidianos de seus praticantes e dizem também

Page 89: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

88

sobre seus próprios ícones. São, portanto, objetos pedagógicos, posto que

comunicam algo.

Sem ignorar que nem todos os elementos formadores dessa cozinha

simbolizam algo do sagrado, ainda assim é preciso entender que até as ausências e

excessos cometidos na cozinha de santo ou cozinha do axé podem informar sobre a

cultura em torno deles, seus saberes, os sujeitos envolvidos, suas experiências

cognitivas e subjetividades.

Encontrar tais objetos tão bem cuidados e em grande número suscitou-me

curiosidade. Então, resolvi fazer um pequeno inventário da posição em que estava a

cozinha e seus objetos em relação à própria casa. Uma breve descrição exploratória

que possibilite vislumbrar a divisão dos cômodos pertencentes às casas, assim

como os imóveis que abrigam o terreiro Xwe Ace Kpo Sohun, especificamente, os

cômodos ligados à cozinha sagrada:

Figura 9 – Fachada da Associação e Templo Religioso (atual Xwe Ace Kpo Sohun)

Fonte: Acervo Savaluano, 2014.

Roça na Trav. Conselheiro Furtado

Ao observar a geografia do terreiro destaco, inicialmente, sua entrada que

leva a uma garagem coberta em parte, desocupada a maior parte do dia, havendo

ao longo dela algumas plantas, como espada de são Jorge, roseiras, samambaias e

outras. Geralmente, quando os visitantes chegam no terreiro, são recebidos na

garagem e, depois de falar com o Kpédjígàn ou com mãe pequena, são levados

Page 90: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

89

para uma consulta no quartinho dos búzios; lá eles recebem a indicação do

tratamento mais adequado para sua aflição espiritual.

Ali também ocorre a maior parte das amenidades sociais, como as conversas,

os lanches da tarde, as refeições, no geral, ou simplesmente os momentos de

intervalo entre os rituais. As reuniões presenciadas transcorreram na área da

garagem e é nesse ambiente que ocorreu a maioria das entrevistas para esta

pesquisa.

A garagem leva diretamente à porta de entrada da casa, onde está localizada

a cozinha, não antes de passar pelas portas laterais de um banheiro e dois

pequenos cômodos (quartinhos), onde são realizados alguns dos rituais do terreiro.

1º Quarto: local onde fica uma mesa branca, algumas cadeiras e algumas

imagens de voduns. Este cômodo serve, geralmente, para as consultas, onde Mãe

Jokolosy ealiza o jogo de búzios ou outras tarefas de aconselhamento e

administração da casa.

2º Quarto: roncó10

, espaço sagrado onde são feitos os assentamentos de

santo e onde são feitos os recolhimentos dos neófitos para as cerimônias de tasén

(Boris) e feitura de santo. Também usado para abrigar um altar, chamado pelos

integrantes da casa de Peji, que no rito do candomblé serve para colocar os fetiches

e implementos rituais.

Logo depois do roncó, é, possível, visualizar a porta da cozinha, que não é

muito grande, por isso, os animais são higienizados e tratados na parte externa, ao

lado da cozinha, onde há uma pia e um fogareiro a carvão e onde algumas comidas

são feitas. Na entrada, ao lado da porta, um fogão e um armário em cima de uma

pia. Em frente, uma geladeira, um freezer e uma mesa. No outro lado da porta um

armário onde ficam mantimentos e alguns utensílios. As peças em barro, de madeira

e de outros materiais rústicos, ficam em baixo da pia. Em ocasiões ritualísticas ou

em dias festivos, por vezes a mesa é coberta com uma toalha branca e as iguarias

são servidas na área externa da casa.

Ao final do corredor externo, percebe-se um barracão de porte médio, onde

as festas e rituais públicos são feitos. Às vezes, alguns alimentos são guardados lá

10

Cômodo onde os iniciados passam seus períodos iniciáticos em reclusão.

Page 91: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

90

até o inicio dos rituais. Boa parte dos rituais internos ocorrem em frente ao Peji11

,

quase sempre, sem a abertura ao público.

Os outros cômodos, como o banheiro, próximo à cozinha, na parte interna e

os quartos, não fazem parte da área de circulação do candomblé, pois são

considerados como os espaços privados da casa.

A roça na ilha do Outeiro

Trata-se de um terreiro consideravelmente maior que o da travessa

Conselheiro; lá se verifica algumas espécies vegetais, que englobam ervas,

pimentas, plantas para defumação, folhagens diversas para banhos, árvores

frutíferas e uma pequena horta. Uma pequena quantidade de animais,

principalmente, aves, pode ser encontrada no lugar.

Na lateral direita do terreiro, encontra-se o roncó, onde fica o Peji, assim

como na outra casa. Algo curioso é que, na maioria dos terreiros em que realizei

entrevistas, a localização do roncó era na lateral e próximos a um banheiro ou

“quarto de banho”. A diferença está no fato de que, em alguns casos, esses

cômodos ficavam na parte interna da casa, em outras roças, na parte externa.

A cozinha fica logo após o pátio e a sala de estar, respectivamente.

Diferentemente da cozinha da travessa Conselheiro, a casa da ilha possuí uma

cozinha bem ampla. Sua arquitetura é mais generosa, ambientes mais amplos e a

possibilidade maior do cumprimento dos rituais, de forma a propiciar mais conforto

aos filhos de santo e aos visitantes. Esse terreiro funciona como alternativa para os

rituais que exigem mais contato com a natureza, já que a sua sede não contempla

um espaço ao ar livre. Encontra-se ainda em construção, mas algumas tarefas e

festejos já estão sendo feitas lá.

11

Também conhecido por quarto de santo, espaço sagrado e de culto onde ficam resguardados os assentamentos dos Orixás dos filhos e filhas do terreiro.

Page 92: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

91

Figura 10 – Terreiro na ilha do Outeiro

Fonte: Acervo da pesquisa, 2017.

O fluxo de pessoas nas duas cozinhas é bem maior do que costuma ser nas

cozinhas de uma família biológica e até mesmo de outros terreiros visitados. Mesmo

havendo três senhoras responsáveis pela confecção dos alimentos, a Sedugán, a

Donugán e a Dugán, outras pessoas sempre estão lá de prontidão nas tarefas

complementares, como na compra dos alimentos, na limpeza, lavagem da louça e

na limpeza dos animais que serão imolados e, por vezes, na ausência de alguma

delas, na função de cozer os alimentos.

Outras pessoas estão na cozinha, porque ali também é lugar de conversas,

de trocas de segredos, de risos, reuniões, momentos de descontração, lazer. É

também lugar de cantar, espaço de aprender e ensinar sobre os santos (Voduns),

sobre o certo e o errado e sobre a condição do homem e de suas relações em

sociedade. Trata-se, portanto, de um espaço pedagógico.

Também é um lugar onde se aprende sobre a origem dos símbolos cultuados.

Assim, enquanto a Donugán me contava sobre como era problemático o serviço

culinário dedicado a Nanã, testemunhei um relato do mito de origem ligado à

divindade anciã. Fiquei impressionada com a riqueza de detalhes e tantos

Page 93: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

92

pormenores que chamaram minha atenção, pois percebi que uma cosmologia do

sagrado se desenhava ali, naquele momento.

Desse modo, dando alusão às memórias e palavras da cozinheira do terreiro

Xwe Ace Kpo Sohun, ela relatou que

a Vodun Nanã é muito exigente no que vai vestir, comer e partilhar. Difícil de agradar! Tem uma forma certa de se fazer oferendas a ela. Como ela é idosa, costuma ser muito sábia, mas também é muito orgulhosa e conservadora, tal qual seus filhos de santo (Entrevista da Donugán, 2017).

A partir desse relato, começo a identificar um pouco das dificuldades

enfrentadas pelos filhos de Nanã Buruku, que por ser um vodun elementar, reclama

muito pelo retorno aos tempos passados, um ciclo que novamente remete ao mito

do eterno retorno. De todas as divindades, ela é a que mais reclama o pretérito e o

regresso aos antigos costumes. Seus símbolos elementares, água e terra – a lama.

Sua comida, geralmente, simboliza esse conservadorismo e o saudosismo e, não

diferentemente, os utensílios e ferramentas usados para a elaboração de seus

pratos também seguem a mesma linha de austeridade, conservadorismo e retorno

ao passado. Em entrevista com Manoel Chagas

Kpédjígàn Hunsijé (Aldryn) informa que a partir do uso da lama e do barro que foi cedido por Nanã, o Vodun Unitá passou a modelar os corpos dos humanos. Mawu e Lissá se encarregaram de dar o sopro da vida, o ato da respiração ficou por conta de Vodunjó. A divindade Nanã (respeitável senhora) habita nas águas salobres e nos pântanos, sua morada preferida é no barro (kó na língua fon). As oferendas destinadas a essa divindade não devem ser “arriadas” em pratos de vidro ou esmalte, para Nanã a comida é oferecida somente em prato de barro, assim como para Elegbá e outras deidades da Terra. Na mitologia da criação, Mawu pediu para Nanã o barro para criar os humanos, nesse contexto percebe-se a importância desse elemento da natureza. Da argila é feito o prato de barro (Agban na língua Fon). Hunkó é o nome de um quarto feito de barro que é a preferência dos Voduns que tem ligação com esse elemento da natureza, sendo que no espaço urbano o hunkó foi adaptado para a construção de tijolo e cerâmica (CHAGAS, 2014, p. 41).

Assim, Manoel Chagas, através do relato de Hunsijé, confirma essa relação

entre o material utilizado na cozinha do Axé e sua narrativa mítica, uma “cosmologia

do sagrado”.

Page 94: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

93

3.2 A COSMOLOGIA DO SAGRADO EM UMA COZINHA JEJE SAVALÚ

Entende-se por cosmologia “um agrupamento de coisas e seres que introduz

um princípio de ordem no universo” (LÉVI-STRAUSS, 1997, p. 24). Por conseguinte,

depreende-se por cosmologia do sagrado todo processo que ocorre fora da vida

diária comum. A função da cosmologia é entender o mundo e todas as coisas

contidas nele, como vivas, ordenadas, classificadas e agrupadas de acordo com

uma força motriz sutil, oriunda de uma energia primordial.

Reginaldo Prandi (2001), ao analisar os mitos do candomblé, demonstra

como a comida está presente na mitologia dessa religião e, em muitos casos, ela

representa lugar de status, como na passagem sobre a entidade Exú (Eleguá na

língua fon)12. Segundo descreve o autor,

Olofim13

estava muito doente. Muitos foram vê-lo, mas não se encontrou o que o curasse. Por esses tempos, Eleguá comia o que o lixo lhe dava, convivendo com a miséria. Sabendo da doença de Olofim, Eleguá vestiu um gorro branco, igual aos que usam os babalaôs, e foi visitar o velho rei. Levou consigo suas ervas e com seu poder curou Olofim. Olofim ficou agradecido. Perguntou a Eleguá qual deveria ser a recompensa. Eleguá, que conhecia o que era a miséria, Eleguá, que provara do desprezo de todos, pediu-lhe que lhe dessem primazia nas oferendas, que lhe dessem sempre um pouco de tudo o que dessem a qualquer um. E que o pusessem à entrada da casa. E para que fosse saudado pelos que saíssem à rua. Olofim estava grato a Eleguá. Olofim deu tudo o que Eleguá pediu (PRANDI, 2001, p. 53-4).

A comida de santo, nesse contexto, segue uma cosmologia sagrada, onde

além da dimensão fisiológica, ela vem agregar várias outras dimensões, como a

social, religiosa, simbólica e pedagógica, todas perpassadas por elementos de

ordem mítica, originando também a dimensão sagrada.

O alimento ritual, como experimento humano, conduziu ao desenvolvimento

de mitos mais elaborados, em particular, mitos de criação, cujo objetivo era explicar

a origem do universo. Ao comer, rememorando seus mitos, obedecendo uma

12

Eleguá no candomblé significa “o imprescindível mensageiro de Olodumaré”, o mesmo que Olorum, o deus supremo dos yorubás, e Yemanjá, a mãe do mundo e dos deuses yorubás.

13 Na mitologia iorubaense, no candomblé, Olofim é o Ser Supremo da religião; criador do tempo e do Universo.

Page 95: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

94

estrutura ritual, onde transcorrem preces, culto à natureza, linguagem corporal, em

conjunto com sacrifícios e oferendas aos deuses, o ser humano aspira o controle

dos fenômenos que ocorrem ao seu redor e, intrinsecamente, à sua existência, pois,

segundo Pierre Bourdieu,

Nada parece ser menos inefável, menos incomunicável, menos imitável, e, por isso, mais precioso do que os valores transmitidos ao corpo, feitos corpo pela transubstanciação adquirida pela persuasão escondida de uma pedagogia implícita, capaz de insuflar toda uma cosmologia, uma ética, uma metafisica, uma filosofia politica, através de mandamentos insignificantes como “fique em pé” ou “não pegue a faca com a mão esquerda (BOURDIEU, 1987, p. 94).

Em um dos momentos de processamento da comida sagrada, fui advertida

que poderia acompanhar as tarefas da cozinha. Porém, como era um dia em que os

iniciados iriam estar lá e que como um dos membros rodantes estaria corporificado14

,

então fui recomendada a não fazer registros áudios-visuais. Mãe Jokolosy permitiu

apenas que anotasse e observasse o processo. No entanto, não poderia emitir sons,

pois o silêncio e a observação são parte dos ensinamentos aos iniciados. Eles

deveriam aprender alguns aspectos das comidas de suas divindades protetoras,

pois estavam a uma semana do fim do recolhimento iniciático e deveriam agora

aprender como fazer os pratos votivos de acordo com os atributos dos seus santos.

O silêncio e a exclusão do pesquisador em alguns momentos, quando o

campo é uma comunidade afrorreligiosa, podem ser bem ilustrados no depoimento

do pesquisador Marcos Alvarenga (2017). Em seu estudo sobre a dimensão sagrada

da comida em um terreiro de candomblé, rememorou que quando estava em seu

período iniciático na religião, lhe fora ensinado que o candomblé é uma religião de

preservação e mistérios. Por isso afirma que

é importante mencionar que para um filho de santo nessas circunstâncias, de ser um recém-iniciado, as informações que circulam dentro do terreiro devem ser contidas ou devem ser filtradas pelos mais velhos da comunidade antes de virem ao meu conhecimento. Como veremos, dentro dos terreiros, essa condição do “não-saber” é tão importante quanto o saber e aprender. E aqui, o segredo ocupa lugar de destaque, falo a partir de uma realidade

14

Percebi que alguns rodantes não ficavam à vontade com a palavra incorporado, ouvindo algumas vezes de alguns sacerdotes da casa savaluana o termo corporificado, no sentido de incorporado ou consubstanciado.

Page 96: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

95

onde nem tudo pode ser aprendido quando se é ritualmente jovem. Determinadas informações tornam-se um segredo que deve ser partilhado por poucos, um segredo a ser preservado. Enquanto iniciado, partilho da concepção de que o Candomblé não é uma religião de ministérios, mas uma religião de preservação. Preserva-se a floresta (Igbô), pois ela é morada dos Orixás Odé – Orixás caçadores – e em alguns mitos, a floresta (Igbô) é o próprio Orixá Odé (caçador); preservam-se as nascentes e rios, pois sem água limpa e cristalina não há Orixá, não há vida; a terra ou o solo (Ayê) é também reverenciado e precisa ser preservado, pois deles vem o sustento da comunidade, e é nele que se presta o culto a Obaluaê, o senhor da terra, e a Onilé; e preservam-se também os segredos (Awô) das práticas rituais, dos cânticos e das danças. Em suma, minha experiência como iniciado me faz acreditar, dia após dia, que “a relação dos terreiros com a terra e com a água é constitutiva e constante, e essa relação é sempre ambientalmente correta: respeitosa, preservacionista, amorosa e cuidadosa” [...]. Valendo esta relação cuidadosa também para os segredos da religião. Ainda que os segredos venham a ser partilhados dentro do terreiro, não necessariamente devem ser repartidos com a comunidade externa (ALVARENGA, 2017).

A cozinha da comunidade Xwe Ace Kpo Sohun representa bem a fala de

Alvarenga, pois todos caminhos levavam à ideia de preservação. Entendi que nas

inúmeras vezes que os filhos de santo faziam alusão à tradição, estavam muito mais

empenhados em preservar o que eles julgam de grande importância para que a

cultura afro-brasileira não desapareça com os novos costumes ou, como eles

próprios costumam falar, por causa da “tal modernidade”.

O segredo, nesse sentido, é parte do projeto de preservação dos costumes,

pois, somente quando o filho está pronto para receber os ensinamentos sagrados, e

até que ele esteja pronto, esses ensinamentos representam um dos mistérios que só

cabe aos mais velhos saber.

Acredito que por isso os caderninhos de anotação, ainda que existentes, não

são permitidos em algumas comunidades. admiti-los, representa quebra de um

preceito muito importante para eles, o segredo, ocasionando uma ruptura com o

passado a ser preservado. Além disso, pode vazar informações que nem o mundo

externo ao candomblé, nem os adeptos inexperientes teriam maturidade espiritual

para aprender.

Mas o candomblé não se relaciona, somente, com a preservação da tradição

afro-brasileira. Os sacerdotes savaluanos da roça Xwe Ace Kpo Sohun sempre

faziam referência a respeito da temática ambientalista, que tem sido uma

Page 97: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

96

preocupação recorrente em suas reuniões com outras comunidades religiosas de

matriz afro. Alvarenga (2017).

Na comunidade Xwe Ace Kpo Sohun, a preservação ecológica é tão evidente

no universo alimentar, que eles vêm investindo em um modo de sobrevivência dos

hábitos alimentares, tentando uma proximidade maior com os costumes culinários

passados. Voltando-se mais para uma comida artesanal, feita com menos

tecnologia, com produtos hortifrútis cultivados por eles próprios, criações de animais

e outras ações, que, segundo os filhos de santo são pequenas, mas podem fazer a

diferença no futuro. De acordo com Roberto Chagas (2014),

O Sagrado ecológico é um termo representativo da relação harmoniosa entre o homem e a natureza fundamentado numa “postura” ou “atitude ecológica” que vem sendo construída pelos afrorreligiosos. Contudo, acima dessa atitude “ecologicamente correta”, está a relação de respeito, de louvor e de reverência, alicerçada nos moldes da tradição africana em que o homem, apesar de estar inserido na sociedade moderna, ainda guarda o sentimento de docilidade para com a natureza. O meio urbano já não oferece os espaços de mata verde como era no passado, nesse contexto a adaptação se faz necessária para que a prática litúrgica da religião de matriz africana permaneça atuante e alcance seus propósitos (CHAGAS, 2014, p. 118).

Esse pensamento acerca da sustentabilidade no terreiro demonstra sensível

responsabilidade social e revela a existência de uma relação entre os símbolos do

candomblé e a natureza, compreendidos aqui a partir da comida sagrada. Nesse

sentido, retomo o ponto central desta pesquisa, a comida votiva como ato cultural

que potencializa uma pedagogia do sagrado, através da aprendizagem pela

atenção, onde circulam uma diversidade de saberes do cotidiano. Saberes esses

que reúnem o humano, a natureza e os símbolos representantes de uma cosmologia

do sagrado. Segundo Carlos Brandão (1981), tais conhecimentos criam relações ou

situações, que:

Esparramadas pelos cantos do cotidiano, todas as situações entre pessoas, e entre pessoas e a natureza, situações sempre mediadas pelas regras, símbolos e valores da cultura do grupo, tem, em maior ou menor escala, a sua dimensão pedagógica (BRANDÃO, 1981, p 20-21).

Page 98: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

97

A comida, dessa forma, media conhecimentos, não somente nos momentos

da partilha, pois o sistema de aprendizado que flui intrinsecamente e em torno da

comida de santo emerge bem antes do ato de comer, dando vasão ao processo de

aprendizagem da cosmologia do sagrado.

Ao iniciar os trabalhos na cozinha do axé, os filhos de santo percorrem vários

rituais, tais como: banhos de limpeza e defumações para purificação espiritual,

entoação de cânticos, onde são contadas histórias, mitos, narrativas variadas de

lendas que envolvem os pratos, sobre o material das louças, contação de causos

sobre quizilas, preceitos e tantas outras que abastecem a culinária votiva de um

imenso arcabouço de saberes.

Em uma passagem sobre uma representatividade dos mitos Xangô e Oxalá e

sobre o rompimento da amizade dos orixás, Marcos Alvarenga (2017) expôs a

voracidade (gula) do caráter relacional dos deuses africanos para com suas

comidas. Corroborando com Querino (1928), Ribeiro (2014), Corrêa (2005), Souza

(2006) e Ferretti (2011), ele ressalta a importância crucial da alimentação, tanto para

os santos e filhos de santo, como para filosofia das religiões de matriz africana,

Alvarenga diz em sua análise, que Xangô demonstrara nesse itan15

ter uma

grande gulodisse e apetite sexual e que isso acaba sendo um de seus principais

aspectos na mitologia africana. No entanto, o que interessava não era tanto

o caráter do desejo sexual apresentado por Xangô neste itan, mas sua voracidade em relação à boa comida – tratada dentro dos termos da narrativa como gulodice. Isso demarca a importância que o ato de comer representa, em primeira instância, para os Orixás e seus filhos, em segunda, para a filosofia das religiões de matriz africana [...] e, em última instância, baliza a centralidade da cozinha nas comunidades de terreiro. Sem a cozinha, com seu espaço devidamente sacralizado por objetos, posturas e ritos, não seria possível alimentar os Orixás e a comunidade, como prescrevem os mitos e as preferências (qualidades e características) de cada divindade. É assim que se pode considerar a cozinha como um espaço “tão significativo como o peji” (ALVARENGA, 2017, p. 48).

Considerei um grande desafio compreender a cosmologia do sagrado que

sobrevém da comida de santo, vivenciada na cozinha do terreiro Xwe Ace Kpo

Sohun.

15

Segundo o povo de axé as narrativas míticas são conhecidas como itan.

Page 99: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

98

Em entrevista com filhos de santo do terreiro pude colher alguns relatos sobre

a cosmologia subjacente aos hábitos culinários jejes savalú. De posse destes,

selecionei alguns entendimentos sobre a relação entre os saberes que transitam a

cozinha do Axé e o aprendizado alicerçado na cosmologia do sagrado.

Além da relação analógica entre a substância de que são feitos os utensílios

da cozinha e as particularidades sagradas dos santos, há cosmologia em todos os

âmbitos da cozinha sagrada, na receita, no preparo, na escolha dos ingredientes, na

forma da exposição dos pratos e até na fisionomia do comer. Aprender sobre tais

cosmologias faz parte da educação do terreiro, e, por conseguinte, ensinar pela

comida e por meio dos objetos.

Quadro 3 – A organização dos utensílios e materiais da cozinha entre voduns

VODUNS UTENSÍLIOS

Tipo de Objetos Material das louças

Ori Panelas comuns; Colher de pau Cerâmicas de coloração branca; formato ovalado ou redonda

Gu Panelas comuns; Colher de pau Utensílios de barro, alguidares e pratos

Agué Panelas comuns; Colher de pau Utensílios de barro, alguidares e pratos

Heviossô ou Sogbô

Panelas comuns; Colher de pau Utensílios de madeira, preferência pela gamela

Onitá ou Abesàn

Panelas comuns; Colher de pau Utensílios de barro, alguidares e pratos

Azowany ou Azonssú Sakpatá

Panelas comuns; Colher de pau Utensílios de barro, alguidares e pratos

Sanyn Ibô ou Aguémàn

Panelas comuns; Colher de pau Cabaça

Azirí ou Tòkpádùn

Panelas comuns; Colher de pau Itens de louça; preferência pela forma redonda ou ovalada

Oulissá Panelas comuns; Colher de pau Cerâmica branca

Fonte: Acervo da pesquisa, 2017.

É hábito entre os savaluanos do terreiro Xwe Ace Kpo Sohun, terem suas

próprias louças, geralmente segundo os predicados de seus voduns protetores. No

caso dos iniciados, as louças são de cerâmica ou esmaltadas para evitar o

desperdício em material descartável, o que indica a introdução gradativa de uma

consciência ecológica atrelada aos preceitos sagrados.

Cada cardápio da comunidade savaluana é produzido envolto em um clima de

cooperação, respeito, sacrifício, adoração e profundo reconhecimento dos costumes

afro-brasileiros. A estética e a apresentação dos pratos são também um dos

Page 100: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

99

aspectos mais visíveis dessa cosmologia. Emite não somente a ideia de respeito às

propriedades mágicas, mas, sobretudo, do lugar que cada um ocupa nessa

estrutura. A comida, o cheiro, o ambiente onde se come, o gosto e, inclusive o servir,

estão ligados à hierarquia dessa engrenagem religiosa.

Figura 11 – Iniciadas na “Feitura do Santo” se alimentando

Fonte: Acervo Savaluano, 2016.

Além dos ingredientes e modos de preparo, os alimentos também são

acompanhados por palavras mágicas responsáveis por sentimentos generosos, mas

também podem conter pesares, rivalidades, pensamentos invejosos e conflituosos.

Por isso, todo cuidado é pouco na confecção da comida de santo.

Para que os saberes culinários sejam mediados de forma correta, e assim

não ocorram prejuízos às prescrições da cultura alimentar candomblecista,

necessita-se por em prática uma educação rígida e disciplinada, como convém aos

costumes do candomblé. Então, cabe à cozinha, em específico a cozinha de Axé,

ser o espaço a que se designa, primordialmente, essa aprendizagem.

Page 101: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

100

3.3 COZINHA DE SANTO: ESPAÇO DE APRENDIZADO

Um terreiro de candomblé é um universo com múltiplos espaços de

aprendizagem, como a cozinha. Pode-se aprender muito em uma cozinha de santo e

nem é necessário falar ou anotar, basta ouvir, olhar, sentir e experimentar.

Quando iniciei a observação sobre a circulação da alimentação no terreiro

Xwe Ace Kpo Sohun, tornou-se evidente que o fazia sempre de forma a retratar a

rotina da cozinha. Assim, se a alimentação é o veículo pelo qual a educação é

mediada, a cozinha simboliza o próprio ambiente onde os saberes circulam.

Segundo Sabbag sentimentos como:

Posteridade. Emoção. Satisfação. Felicidade por estar ali em torno de uma mesa, com pratos simples ou rebuscados, rodeado de pessoas, familiares ou não. Esse é o espírito e conteúdo da gastronomia, que tem o poder de aproximar as pessoas, integrando o indivíduo ao meio. Porém não é somente à mesa que as trocas sociais e culturais se dão, essa permuta começa a ocorrer antes mesmo de os pratos serem servidos. Isso porque o processo de preparação envolve os conhecimentos, as técnicas, costumes e regras na confecção do alimento e estes tornam-se um sistema de transmissão de conhecimento entre gerações e meios sociais

(SABBAG, 2014, p. 40).

Outro ingrediente importante dessa equação culinária é a mesa, local de alta

performance na sociabilização entre alimentos, convivas e visitantes. Ela funciona

como conector, geradora de muitos sentimentos e processos, seja quando serve aos

desígnios do dia a dia ou para cumprir com as obrigações e funções da alimentação

sagrada. Ao investigar sobre o papel da experiência corporal nos processos

ocorridos em um terreiro de candomblé, a socióloga Rosamaria Barbara (2002) se

depara com o momento em que, em volta da mesa, as filhas de santo, mais novas,

vivenciavam trocas de experiência e adentravam no mundo simbólico da comida

ritual.

Os afazeres culinários são traduzidos, em parte, por atos corporais, de grande

sensibilidade e disciplina. Essas ações são reforçadas por ensinamentos de uma

vida, sobre a cultura e circuladas por saberes tradicionais do candomblé. Barbara

descreve que, ao presenciar os preparativos para uma festa de Oxóssi, em uma

casa de candomblé em São Paulo, notou-se uma cozinha com grandes fogões a

lenha, onde

Page 102: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

101

O calor era muito forte. Ao redor de uma mesa um grupo de mulheres depenava as galinhas, enquanto um outro grupo retirava delas o axé, as partes destinadas ao orixá (santo). Cada grupo ou pessoa em separado depenava, limpava, cortava, mas, sobretudo, contavam-se histórias e se falava sempre de algum assunto relacionado ao candomblé, comentando-se de que é dever de todos trabalhar nas festas dos orixás. [...] Ali, na pratica, tem início a escola do candomblé. As velhas mostram às jovens como se tratam as galinhas: primeiro são escaldadas em água fervente, depois são depenadas e passadas sobre o fogo para que percam a penugem remanescente. Um fato curioso: uma abiã que estava colocando sua galinha na água, deixou sem querer sua saia ficar em contato com o fogo. Logo, logo foi avisada por uma das ebômis, que assim disse: “minha sereia, você quer que a sua comida pegue fogo? Não faça assim, mas bote a saia no meio das pernas quando está na frente do fogo” (BARBARA, 2002, p. 117, grifo meu).

Desse modo, na mesa da cozinha ou na mesa do barracão várias vezes

foram presenciadas práticas educativas, ensinamentos sobre: a postura corporal que

o praticante deveria empregar nos rituais; sobre o comportamento dentro e fora do

terreiro, as vestimentas e alimentos mais indicados segundo a condição de iniciação

e a posição hierárquica ocupada na casa. Em longas conversas entre iniciados e os

mais experientes, ou na simples observação do modo de agir dos mais velhos, o

convívio à mesa trazia em si momentos de grandes ensinamentos.

Sentar à mesa é momento de grande significação, portanto. Lá ocorrem

diversas tarefas e quase todas as ações de relevância no terreiro são ambientadas

em uma mesa. É na mesa que se põe os búzios, é nela também que se orienta para

um trabalho, que se faz uma reunião, além, obviamente, das refeições, momentos

de sociabilidade entre o grupo.

Page 103: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

102

Figura 12 - Ritual narruno

Fonte: Acervo da pesquisa, 2017.

Como suporte para o preparo dos alimentos sagrados, ou como local de

comunhão entre adeptos e visitantes da roça jeje savalú, a mesa marca presença e

expande o alcance já consideravelmente valoroso da alimentação.

Sentados à mesa os filhos de santo falam sobre suas obrigações, sobre as

inúmeras histórias que rondam suas divindades, seus mitos e sobre como serví-los

da melhor forma que puderem. Ao partilhar dos alimentos postos à mesa, eles

também partilham seus planos, suas trajetórias de vida, angustias, alegrias e tantas

outras experiências que os tornaram filhos de santo ou simplesmente adeptos da

religião.

As reuniões à mesa sempre são instigantes do ponto de vista pedagógico.

Mae Jokolosy, preserva o ato de sentar à mesa junto aos seus filhos para orientá-los

nas tarefas mais corriqueiras. A sacerdotisa é habilidosa em explicar sobre a

importância de uma vestimenta adequada, uma que esteja de acordo com os

preceitos ritualísticos, sobre a conduta moral-religiosa que presume comportamentos

e hábitos variantes com o gênero e a hierarquia a que se encontra o adepto.

Page 104: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

103

Ensina sobre o uso correto dos ingredientes, sobre como é crucial observar e

pouco falar para servir seus deuses, e, sobretudo, instrui a respeito da simbologia e

dos dogmas existentes em uma cozinha sagrada. Enfim, ensinamentos e regras que

estão intimamente ligados à comida de santo e que compõem o candomblé.

Se a alimentação votiva é importante elo agregador dos hábitos e costumes

da população afrorreligiosa, o candomblé permite a contínua renovação desses

hábitos alimentares. Portanto, a mesa possui dupla valorização, pois além de abrigar

a função de aparato para a alimentação, também serve de inúmeras outras

maneiras numa roça de candomblé.

Em muitas de minhas visitas a terreiros de candomblé, pude observar a mesa

em várias de suas outras dimensões, como: espaço de aconselhamento, local onde

muitos “Pejis” (altares) são erguidos, também ao servir de recurso para o

planejamento dos eventos e reuniões, e de suporte para o preparo dos ingredientes

e alimentos. Conforme os depoimentos da sacerdotisa, grandes banquetes são

degustados, resultando no estreitamento das relações sociais e no reforçamento da

coletividade.

Entretanto, como espaço ritualístico de partilha alimentar, a mesa não

configura, exatamente, um aspecto da cultura africana. Grande parte dos hábitos

alimentares das variadas etnias africanas, anteriores à diáspora, eram cultivados ao

longo de uma tradição de comer sentados ao chão. Tal costume de uso da mesa,

portanto, vem exprimir muito mais uma lógica da antiga tradição europeia, do que

africana. Portanto, sentar à mesa em uma roça de candomblé jeje savalú representa

uma de tantas ressignificações vivenciadas em uma cozinha de santo.

A respeito do binômio tradicionalidade /modernidade, bastante discutido na

atualidade, aqui, especificamente, pelas comunidades afrorreligiosas, que

pretendem a partir de um sentimento saudosista e de retorno aos hábitos

alimentares da ancestralidade africana, rememorar tradições culinárias, pretéritas,

que lhe outorgam uma identidade coletiva com a diáspora africana, reafirmada

através da memória gustativa. Tal apelo ao retorno a uma tradição idealizada

encontra refúgio explicativo na obra A Invenção das Tradições, organizada por E.

Hobsbawm e E. Ranger, onde por significado de

“tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais

Page 105: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

104

práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com

um passado histórico apropriado. (HOBSBAWM e RANGER, 1997, p.9)

Assim sendo, a repetição das técnicas e do modus operandi, obedecendo, os

antigos hábitos praticados pelos africanos, à época da diáspora, estabelece relação

entre uma tradição que se almeja alcançar e uma tradição resultante das

transformações históricas, da limitação geográfica, e do contexto sócio econômico

vigente, originando assim, uma terceira tradição, emergida da relação de

ressignificação entre os antigos e novos costumes.

Dessa forma, ironicamente, a mesa como ápice dos momentos de

socialização de saberes e retorno às tradições passa a ter o caráter temporal, um

marco social, pois agrega a ideia de que sua função age diretamente no prazer de

consumir o tempo por meio de conversas ao seu entorno, onde são partilhadas

vivências e saberes relacionados à tradição culinária candomblecista.

Diante disso, a mesa representa uma parte que compõe o todo. Uma

percepção diferente da cozinha usual como habitualmente conhecemos. Trata-se de

uma cozinha do olhar, do sensível, dirigida aos deuses, uma cozinha do sagrado.

Na cozinha de um terreiro, aprende-se muito além de receitas e misturas

gastronômicas. Se a comida pode nos dizer muito sobre hábitos, costumes e sobre

os gostos de um determinado grupo, a cozinha pode nos falar muito sobre como

esses saberes são transmitidos e de que forma eles se apresentam no cotidiano.

Certo dia, enquanto duas senhoras da cozinha estavam depenando e preparando o

axé, a outra fazia os acassás e uma delas deixou que um copo caísse no chão. No

mesmo momento, um curioso ritual foi descrito por elas, sem falas, em silêncio, só

com olhares.

Rapidamente, Mãe pequena repreendeu com olhar os risos e falas pela

cozinha. Enquanto isso uma das filhas correu para pegar um preparado de

aguardente e mel e jogar no local. Somente depois de uma prece feita e uma

repreenda à entidade bagunceira, elas voltaram a falar e me explicaram o sentido do

pequeno ritual. Segundo Mãe pequena,

Page 106: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

105

quando algo cai e quebra, temos que ter cuidado, pode ser “quizila”. Então é sempre bom ter a mão um “quebra quizila”, podendo nesse caso usar sal grosso, mas se tiver suspeita de traquinagem, de divindade criança, então é melhor o mel e aguardente pra acalmar. Pegar e jogar fora sem usar o “quebra quizila” pode trazer má sorte e até doenças, não se brinca com essas coisas. Tem gente que fica anos e anos com quizila e não sabe porque (entrevista de Mãe pequena, 2017).

De uma forma própria, a prática educativa experimentada no espaço da

cozinha define-se pela capacidade de olhar, interpretar gestos e calar quando

necessário. Portanto, exige certa dosagem de sensibilidade e respeito à hierarquia.

Noções de respeito aos mais experientes (os mais velhos na cabeça do santo),

pontualidade, comprometimento e responsabilidade com as suas tradições são

ensinamentos diários em uma cozinha de santo, detalhes de um ensino do cotidiano,

uma pedagogia do fazer.

Como em uma sala de aula, a cozinha de um terreiro possui uma logística e

estrutura que favorece a aprendizagem. As tarefas possuem horários, os

ensinamentos tem uma ordem e são transmitidos sempre daqueles com maior

experiência para os que estão iniciando o aprendizado.

Como em todo processo pedagógico, no cotidiano da cozinha, filhas e filhos

de santo, recentemente iniciados, podem, no decorrer de seus afazeres, ser

avaliados, não somente pelos mais velhos, mas, sobretudo, por seus Voduns de

cabeça. Nesse momento, alguns testes são feitos para que os iniciados saibam

quais preceitos seguirão pelo resto de suas vidas.

Outro teste comumente aplicado está relacionado à compreensão de que

cada cargo possui um lugar de poder e responsabilidade com o restante. Portanto,

esses filhos iniciados devem reconhecer seus postos na hierarquia da casa. Sendo

que, durante as tarefas na cozinha, eles tornam-se auxiliares em tarefas mais

subalternas, como picar temperos, lavar louças, pegar objetos, bater massas, dentre

outras.

Os filhos de santo aprendem logo cedo que, ao cozinhar, não se deve falar, a

não ser que seja interpelado por seu superior. Aprendem também que mesmo

podendo anotar em seus caderninhos ou registrar com os aparelhos celulares, em

um dado momento, lhes será cobrado o aprendizado e nesse momento não lhe será

permitido olhar anotações e registros, pois mostrar prontamente uma lição aprendida

Page 107: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

106

de cor significa dizer que o aprendiz leva com seriedade, amor e respeito a vocação

religiosa.

Outra peculiaridade do processo educativo desenvolvido na cozinha de santo

são os segredos, algo que chama atenção, pois permeia boa parte das relações

existentes nesse espaço.

O segredo, de certa forma, é uma moeda de troca, uma forma de barganha,

ou, como diria Michel Foucault (1979), uma forma micro de exercer o poder. O

aprendizado na cozinha está longe de ser democrático. Pelo contrário, atinge-se a

experiência e maturação, o reconhecimento junto à roça à medida que se detém,

paulatinamente, a revelação de alguns segredos. E, se a revelação de segredos

significa a conquista de um lugar proeminente junto à comunidade, não o obter ou

não o merecer significa, na mesma proporção, o esquecimento e vergonha, por não

estar apto à vontade de seu vodun. O segredo, nesse caso, pode ser a resposta de

uma simples receita, ou uma filosofia de vida, algo vivenciado há muito tempo,

tornado uma tradição, um ensinamento, uma condição para exercer profundamente

o sacerdócio. Ao refletir sobre o segredo, a sacerdotisa e matriarca do terreiro,

testemunha que:

os antigos preservavam muito esse segredo do sagrado e eles acabavam, mesmo com as outras coisas do cotidiano, eles acabavam ensinando pra aquela pessoa que eles recebiam aquela intuição. Por exemplo: Uma matriarca, ela é da casa, tem uma função iam e ensinavam pra ela, mas ela não tinha permissão de ensinar pros outros, acontecia muito isso [...]. Mas, o saber não se perdia não, só que não pode ir chegando e falando tudo pra pessoa, em algumas casas o saber se perdia, mas não aqui, mas a gente não pode ir falando tudo que nos é passado pelos voduns (Entrevista de Mãe Jokolosy, 5 mar. 2017).

Ao ser entrevistada Mãe Jokolosy, maior autoridade na hierarquia do terreiro

Xwe Ace Kpo Sohun, diz não revelar totalmente os segredos e ensinamentos

passados a ela. Afirma que é uma tradição que começa devido à multiplicidade de

etnias vindas para o Brasil e ao próprio processo de escravidão, que foi responsável

pela tradição de resguardar os segredos da mãe África. Segundo ela,

a gente não pode ir falando sobre tudo, a gente não pode passar tudo, por exemplo, os pesquisadores eles nos ajudam, eu já falei isso lá na UEPA, na verdade eles nos ajudam, os pesquisadores. Tem mãe e pai que não gostam dos pesquisadores, eu já sou diferente,

Page 108: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

107

eu gosto. Porque vocês sabem muito bem que quando eles [os pesquisadores] iam para África [Diáspora], até pra fazer o reconhecimento né, ouviam um falar uma coisa, outro falar outra [diversidade de idiomas] e não entendiam nada [risos] e muitas coisas ficaram preservadas, porque você sabe, antigamente os sacerdotes não gostavam de caderno, hoje a gente dá caderno aqui pra eles. Hoje algumas pessoas dos voduns são abertos pra falar, tem permissão pra falar até de frente [incorporados] com os pesquisadores (Entrevista de Mãe Jokolosy, 5 mar. 2017).

A explicação da sacerdotisa sobre a prática do segredo na tradição do

candomblé remonta ao processo de mistura étnica ocorrido com a chegada dos

africanos vindos para suprir o tráfico de escravos. Segundo ela, os povos da África

não falavam o mesmo idioma e nem possuíam os mesmos hábitos. Então, para que

os costumes não fossem deturpados ou esquecidos, adotou-se a prática de

salvaguardar esses hábitos entre os mais velhos, que deveriam passá-los em forma

de aprendizagem apenas àqueles que provassem merecimento.

Outra motivação atrelada à escravidão era a intolerância religiosa e o cunho

xenófobo da própria empresa colonizadora, pois apenas era considerada religião a

católica, e todas as outras crenças eram duramente reprimidas, não restando outra

saída senão o sigilo nas práticas religiosas na época censuradas. Portanto, era

preciso mostrar-se merecedor para obter segredos tão preciosos. E continua sendo

dessa forma ainda hoje nas casas Jeje Savalú.

O relato da sacerdotisa deixa transparente o fato de que a vivência da

religiosidade a aproximou da história dos ancestrais africanos e de seus hábitos,

além de explicar, em parte, a estrutura hierárquica, tão respeitada na sua casa e em

outras. O que para alguns indivíduos de fora da religião é considerado sujeição, para

o povo do terreiro significa preservação e respeito aos costumes de seus ancestrais

espirituais.

Segundo Gàniyakú Jokolosy, o conhecimento sobre os segredos da tradição

Jeje Savalú, que foi relatado, anteriormente em sua entrevista, é específico, muda

de casa para casa. Trata-se de um saber tradicional repassado com riqueza de

detalhes ao seu neto o Kpédjigàn Hunsijé (Aldryn), possível herdeiro da liderança do

terreiro.

A apropriação desses e outros conhecimentos visam à formação do

Kpèdjigàn e sua possível liderança do terreiro, no sentido de que este possa

apreender esse farto conteúdo.

Page 109: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

108

Esse e outros processos de aprendizagem acerca da história do povo Savalú,

ocorrem por via da transmissão oral e versam sobre diversos conteúdos a respeito

do Candomblé Jeje Savalú, quando incorporado às outras formas de religiosidade

no Brasil e, em especifico, na sua versão amazônica. Conhecimento que versam,

sobre as regras morais, símbolos do passado mítico da tradição Jeje, sobre a cultura

diásporica africana, entre outros fundamentos da religiosidade candoblecista e que

envolvem diferentes outros saberes de outras tradições, como de Angola, do

Candomblé de caboclo, das casas de Pena e Maracá e de outras nações das

religiões de matriz africana.

Mãe Jokolosy afirma que ao assumir o papel de líder e mantenedor da casa, o

Kpédjígàn, assim como ela o fez, um dia, irá assumir também o propósito de

assegurar a sobrevivência da cultura Savalú, incluindo sua língua mãe, a Fon, os

costumes, tradições religiosas e hábitos alimentares. Todos esses aspectos se

relacionam e remetem aos ancestrais da matriz cultural afro-brasileira.

Como educadora, via na cozinha do terreiro Xwe Ace Kpo Sohun um lócus de

aprendizagem e reconhecia na própria Jokolosy o sujeito central na hierarquia da

finíssima malha que interliga todo o sistema de conhecimentos que irrompiam

naquele ambiente.

O esforço de compreender esse sistema pedagógico peculiar requer uma

análise diferenciada, que entenda a educação num sentido mais amplo, diferente do

modelo eurocêntrico, escolacentrista, cientificista. Uma prática educacional onde o

conhecimento não se apresenta a partir de dicotomias binárias e simplista, como

desde a ciência moderna foi calcificado.

Não é possível entender todas as dimensões do processo educacional

experimentado na cozinha do terreiro Xwe Ace Kpo Sohun sem a consciência de

que quando falam sobre comida, não estão falando simplesmente sobre ingredientes

ou receitas, mas sobre fórmulas mágicas. De uma forma ou de outra, o diálogo e a

troca de ideias são outra manifestação que o convívio à mesa inspira e também

compõe, de forma marcante, o conjunto da comensalidade. Assim, segundo

Montanari (2013), é grande a simbologia que envolve o estar à mesa e partilhar a

refeição, pois

[...] comer junto não significa estar em perfeita harmonia. Se a mesa é a metáfora da vida, ela representa de modo direto e preciso não

Page 110: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

109

apenas o pertencimento a um grupo, mas também as relações que se definem nesse grupo (MONTANARI, 2013, p. 160).

Ao longo da convivência no terreiro, Mãe Jokolosy e os outros membros do

terreiro, com muita leveza e paciência tentavam fazer com que me sentisse o mais

acolhida possível. Sempre responderam com muita objetividade e clareza todas

minhas arguições sobre o tempo de iniciação, sobre suas famílias, funções na casa,

as tensões vividas pela escolha da religião, seu próprio processo de aceitação e,

fundamentalmente, sobre as experiências vividas com as comidas do Candomblé

Savalú.

A sacerdotisa Gàniyakú Jokolosy tem 39 anos de experiência de culto

afrorreligiosos e vem desenvolvendo importante trabalho à frente da roça Xwe Ace

Kpo Sohun Jeje Savalú. Respeitada pela sua militância religiosa, galgou importante

lugar junto à comunidade do candomblé de Belém e municípios vizinhos. É

reconhecida junto a essa comunidade por seu jeito humilde, sua simplicidade no

trato, acolhimento e respeito pela religião.

Gàniyakú desenvolve suas funções na casa juntamente com os adeptos da

comunidade e faz questão de ela própria orientar e supervisionar os serviços,

principalmente, aqueles que estão ligados aos processos da rotina da cozinha, como

a preparação e escolha dos ingredientes utilizados nos ebós16

, que consiste em um

sacrifício ritual, uma oferenda. Pode ser uma oferenda votiva ou um “sacrifício de

limpeza ou descarrego. Nesse caso, serve para transferir a alimentos e animais

sacrificados certos males que estão no corpo da pessoa”. (PRANDI, 1991, p. 245).

Também divide seu tempo como sacerdotisa em tarefas como o atendimento

aos adeptos através das defumações, banhos, jogo de búzios, “importante meio de

contato com o Vodun (orixá), um oraculo feito de conchas” (BRAGA, 1988; PRANDI,

2004; 1996b). No processo de feitura da filha ou filho de santo, os búzios

determinam os seus deveres e proibições. Além de supervisionar a montagem e

preparo das oferendas aos voduns, faz questão de pessoalmente fazer o lebalilé,

mistura de farofa de dendê, mel, cachaça, azeite de oliva e água para o despacho

da porta.

16

Ebós são as oferendas no candomblé, que visam corrigir várias deficiências na vida de um ser humano, como: saúde, amor, prosperidade, trabalho profissional, equilíbrio, harmonia familiar, entre outras.

Page 111: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

110

É também da Gàniyakú Jokolosy, da Mèhùnàn Nalva, juntamente com o

Kpédjígàn Hunsijé a responsabilidade de informar sobre a agenda de atribuições da

semana a cada filho da casa, tarefa, segundo ela, bem mais flexível hoje por conta

do uso de e-mails e dos grupos e comunidades de celulares que ela,

sistematicamente, organiza. Assim como em qualquer espaço que se destine ao

aprendizado, na cozinha, as tarefas possuem um calendário e horários a serem

cumpridos.

Kpédjígàn Hunsijé, quando questionado a respeito da disciplinarização dos

filhos da casa, visando observância de tais compromissos, principalmente, aqueles

relacionados à cozinha, explicou, através do ensinamento que ele acabara de

mediar a uma das senhoras da cozinha, sobre a existência de elementos sincréticos

na organização de alguns rituais e da própria comida. Para o sacerdote, a casa de

santo

é como se fosse uma escola. É dada certas explicações que faz surgir dúvidas e perguntas, gerando então uma nova aula, um novo aprendizado. Em outros terreiros esse sincretismo é mais forte. Aqui não! Nós gostamos mesmo é de preservar a tradição, de antes mesmo da escravidão, a própria da África sabe? Então, e por aqui não ter tanto, surge a dúvida neles (os filhos de santo) do por que não tem. Então é explicado a eles (Entrevista de Kpédjígàn Hunsijé, 18 mar. 2017).

A consciência da existência de um processo educativo é marcante em sua

fala talvez pela própria formação que o Kpédjígàn possui. Graduando em pedagogia,

isso lhe permite perceber com mais clareza o aprendizado recebido e ministrado.

Dessa forma, a comparação com uma sala de aula lhe parece bem razoável e até

natural.

Ao manusear os alimentos, os filhos de santo aprendem a problematizar a

respeito de sua origem, sobre os mitos que os cercam, sobre as transformações que

sofreram tais iguarias, sobre os preceitos e quizilas, sobre a questão do gosto e

preferências que cada vodum tem em relação a um ou outro alimento, sendo

esclarecidos, inclusive, sobre a historicidade desses hábitos alimentares, assim

como sobre seu processo de mestiçagem.

A cozinha, dessa forma passa de simples espaço à mediadora do próprio

conhecimento, haja vista que este se processa centralmente nela e se utiliza das

Page 112: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

111

experiências e aprendizados como meio de articulação entre seus sujeitos e a

cultura da qual eles se apropriam.

Um exemplo dessa relação entre o cozinhar e o aprender está na própria fala

do filho de santo que, ao explicar sobre o sincretismo aos seus irmãos em período

iniciático dos primeiros trinta dias, acaba por lhes educar sobre a realidade mestiça

das religiões de matriz afro e sobre a constatação de que cada casa age de forma

diferenciada quando consciente dessa ação sincrética. Umas se adaptando e outras

buscando, nessa realidade, a resistência dos hábitos culturais praticados por seus

ancestrais.

Então, quando o Kpédjígàn Hunsijé afirma que a experiência gera a

formulação de questionamentos e que esses, por sua vez, geram outros

aprendizados, é evidente que tal processo pedagógico tem como fio condutor a

própria experiência empírica.

Ao permitirem que participasse de suas experiências e fazeres, o kpèdjígàn

Hunsijé, a mèhùnàn Nalva e a gàniyakú Jokolosy apresentaram-me uma nítida

estrutura educativa onde cada integrante apoia os afazeres do outro, mas cada um

dentro da sua própria função. Tudo para conquistar uma relação harmoniosa entre

os filhos de santo e seus Voduns. Relação essa que se materializa na partilha dos

alimento entre os filhos e suas divindades. Alvarenga ao expor suas motivações em

trabalhar com o tema cozinha de santo, afirma ter enveredado por entender que

A comida que é preparada para os rituais é, também, uma forma de cuidar das pessoas e dos Orixás. Através de rituais como os ebós e os boris, por exemplo, fortalecemos os vínculos com nossas divindades e tratamos de enfermidades e problemas dos mais diversos. Dentro da cozinha do terreiro, enquanto trabalham, os filhos e filhas de santo contam histórias, riem, brincam e aprendem (...)Não somente porque comer era importante, afinal, estamos entrando em um universo onde pessoas, animais e objetos comem, produzem relações e interagem. (ALVARENGA, 2017,p. 3-4)

Dessa maneira, a comida de santo, ou de Vodum, simboliza um elo, uma

forma de garantir que a divindade esteja sempre em contato com seus devotos, a

partir do ajeum, da partilha dos alimentos, dos conhecimentos absorvidos e,

sobretudo, das sensações obtidas com o ato de comer.

Page 113: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

112

3.4 "VODUNS TAMBÉM COMEM": COMIDA VOTIVA E OS TABUS ALIMENTARES

No Candomblé, tudo come, inclusive o Vodun. Em minhas observações no

campo pude entender que o vodum também precisa da comida, de sua energia. Isso

não quer dizer que o mesmo irá mastigá-la, ou deixar a sua marca ali na comida,

mas vai absorver a aura do alimento, sua pureza, tempero, cheiro. O alimento é a

ponte entre os desejos e sua realização. Nesses momentos, segundo Flandrin e

Montanari, come-se, não somente por fome, mas pelo deleite da comunhão. Pois,

comer tem serventia

para satisfazer uma necessidade elementar do corpo, mas também (e sobretudo) para transformar essa ocasião em um momento de sociabilidade, em um ato carregado de forte conteúdo social e de grande poder de comunicação (FLANDRIN; MONTANARI, 1998, p. 108).

Com o banquete preparado e depois de saboreado, o santo garante que os

pedidos sejam atendidos, ou seja, a divindade vai se alimentar dessa energia que

emana dos sentimentos partilhados na comida. Por isso, ao preparar o alimento para

o vodum, as cozinheiras devem sempre estar purificadas e concentradas nos

objetivos que esperam alcançar de seus deuses.

O que se vivencia ali é o registro de trocas de saberes, mediados pela

comida. A comida se revela, assim, como uma biblioteca, onde são mediados vários

conhecimentos, um ato pedagógico que cumpre o papel de possibilitar a circulação

de múltiplos saberes.

O Ajeun, segundo Hunsijé, possui uma dimensão sagrada, e nessa dimensão

nem tudo pode ser revelado, mas a partilha do mesmo é sempre momento de

grande expectativa, pois quando saciados, os voduns sempre são generosos e

permitem que seus filhos desfrutem de seus banquetes e histórias. Nesses

momentos, a partilha do alimento conduz a socialização dos saberes e induz o

processo de aprendizagem.

No entanto, como tudo na vida, e no Ajeun não é diferente, há de se atentar

para os excessos, preceitos ou prescrições, originários de quizilas e ou tabus em

torno de alguns de alguns alimentos, resultando em interdições alimentares. E no

caso da comida sagrada, tais regras se relacionam com as características de cada

prato e obedecem a uma lógica de pertencimento aos aspectos que se relacionam

Page 114: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

113

com a essência e simbolismo em torno de cada divindade afrorreligiosa, e dessa,

com os ingredientes (matéria) da culinária votiva.

Tabus alimentares

Como dito, anteriormente, a alimentação votiva é repleta de muitas

proscrições, interdições. A causa desse desses aspectos peculiares da comida de

devoção, reside na própria essência do candomblé e das outras religiões de matriz

afro, o fato de ser uma religião de sagrado imanente, onde faz todo sentido,

portanto, essa relação de integração entre homens – alimento – deuses, e de outros

processos que interagem com esses alimentos como as características intrínsecas a

cada essência divina e aos símbolos estabelecidos a partir dessa integração. Os

tabus, portanto, se inscrevem nesse processo de construção das próprias religiões

de matriz afro.

Prova de tamanha integração está nas oferendas ou sacrifícios destinados

aos deuses, como expõe Vogel, ao afirmar que

A pedra angular da piedade afro-brasileira é o sacrifício. Sem ele nenhuma passagem pode se efetuar com êxito. Os sacrifícios, no entanto, requerem que se ofereçam aos deuses coisas de sua preferência [...]. Quanto mais importante a passagem, mais dramático o sacrifício. Nos minúsculos transes do quotidiano, basta o dispêndio modesto e plácido das libações, defumações e oferendas culinárias. As grandes passagens, no entanto, requerem os grandes sacrifícios, o sangue derramado, as hecatombes. Na relação dos homens com os deuses, o sacrifício animal constitui o penhor mais precioso. É indispensável para abrir caminhos em todos os grandes ritos que visam transformar radicalmente a forma de existência dos seres humanos. Dentre todos eles a iniciação, mais do que qualquer outro, precisa oferecer vida por vida (VOGEL, 2001, p. 17).

A análise produzida por Vogel (2001) transporta nossa percepção do

candomblé, para além de suas já consolidadas definições, enquanto religião de

resistência das crenças e da cultura africana e de integração entre natureza e o

sagrado, atingindo seu aspecto essencial, o desapego e a devoção – o sacrificio,

“pedra angular” da religiosidade afro-brasileira, segundo o autor.

A comida votiva e a cosmologia do sagrado, produzida a partir desta, tem sido

constantemente retomada, como no testemunho acima, de Arno Vogel (2001), em

Page 115: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

114

seu estudo intitulado A galinha d'angola: iniciação e identidade na cultura afro-

brasileira.

No entanto, a comida que aproxima, felicita e até mesmo cura aqueles que

dela fazem uso, é a mesma que se usada de forma inadequada, com ou sem

propósito explícito, tem o poder de arruinar laços, anular a integração, aspecto

primordial das culturas afrorreligiosas, alargando fossos entre o mundo material e o

mundo humano.

Sobre a importância da alimentação e sobre a percepção de quizilas,

preceitos e tabus que cercam esses alimentos no candomblé, Raul Lody (1977)

afirma não haver “cerimônia de cunho privado ou público onde a comida não esteja

presente”. Além disso, segundo ele, a alimentação dos deuses e das pessoas que

participam dos preceitos é norteada por tabus e injunções tais como:

As iniciadas de lansã não podem comer caranguejo ou abóbora; as pessoas que têm Oxim como Orixá principal não devem comer peixe sem escama, principalmente o tubarão; os iniciados de Omulu não podem comer siri; os adeptos de Xangô, em sua grande maioria, não comem carneiro e caranguejo e os iniciados da Nação Gege Mahino têm a proibição de consumir carne de porco, também não constando de nenhum cardápio sagrado dessa nação (LODY, 1977, p. 42).

Os preceitos representam uma das mais importantes facetas da comida,

proporcionam momentos de trocas de conhecimento espontâneo. Mesmo sem

perceber as próprias senhoras começaram a mostrar alguns dos aprendizados sobre

as folhagens trazidas pelo Sénmàtó. Enquanto lavava umas folhas de mamona a

Dunugàn relatava suas propriedades, dizia que usá-las como aparato para acolher a

comida trazia a alimentação um equilíbrio que podia até curar enfermidades.

Da mesma forma Lody possibilita fazer uma leitura dos ritos na perspectiva

dos preceitos, remontando a importância desses na organização do serviço antes de

um ritual afrorreligioso. Informa que nos preparativos “a louça utilizada para servir os

alimentos é separada de acordo com os preceitos das pessoas diante dos deuses

africanos. Os noviços e iaôs utilizam vasilhames em ágata; pessoa iniciada e público

em geral comem em pratos comuns, servindo-se ou não de talheres convencionais”

(LODY, 1977, p. 40).

A preparação e ingestão dos alimentos produzidos durantes os processos

litúrgicos do candomblé, segundo os membros da casa de Mãe Jokolosy, são

Page 116: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

115

repletos de significados, que vão além da dimensão material. Por isso, a escolha dos

ingredientes e a montagem dos pratos não devem ser menosprezadas. A escolha de

um ingrediente estragado pode inutilizar todo o prato, inutilizando também o

propósito da oferenda, ou da comemoração.

O estado de quem prepara os pratos também deve ser cuidadosamente

levado em questão. Um corte, as regras menstruais, um período de lua e até

algumas circunstâncias do momento podem servir de alerta para o impedimento da

cozinheira ou do imolador.

Em uma conversa informal e espontânea a Sedugàn relatou um acontecido

que demonstra muito bem esses preceitos e tabus em relação a arte de cozinhar

para os santos:

Eu não quis ouvir os sinais, a mãe já tinha me falado dos preceitos, dito pra eu ficar atenta, mas eu não prestei atenção, e deu no que deu: uma vez eu acordei menstruada, e não quis dizer nada, fiquei com vergonha porque tinha furado o compromisso duas vezes por doença, ai vim assim mesmo. Assim que comecei um copo quebrou, era aviso, não quis saber. Ai eu cai, foi o Elegbá. Podia ter evitado se tivesse ouvido, mas agora aprendi a lição (Entrevista com Sedugán, 2017).

O relato da Sedugán demonstra toda a complexidade e significado dos tabus

alimentares nas religiões de matriz africana. Tais interditos norteiam a maioria das

decisões dentro da cozinha. Portanto, a escolha do que será considerado comida

para o santo e do como, quando e porque comer tal alimento, esta relacionada com

uma classificação estabelecida culturalmente. Neste sentido, Sousa Júnior reitera,

que

A cozinha é cheia de interdições como: não conversar mais que o necessário, não falar alto, gritar, cantar ou dançar músicas que não sejam do santo; não entrar pessoas que não sejam iniciadas - dependendo do que se estiver fazendo, somente um número muito restrito - não admitir que mulheres menstruadas permaneçam nela, etc. Neste espaço sacralizado, tudo vai ganhando significado: a bacia que cai, o garfo, a faca, a colher, o óleo que faz fumaçar o fogo, etc. Na cozinha se aprende além do "ponto" certo de determinado prato, que não se dá as costas para o fogo, não se joga sal no chão, não se mexe comida de Orixá com colher que não seja de pau, que a comida mexida por duas pessoas desandar, que não se joga água no fogo e que muitas pessoas por terem o sangue ruim fazem a comida desandar. Ou que a presença de pessoas de um determinado Orixá

Page 117: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

116

faz com que uma certa comida não dê certo, como por exemplo: em cozinha onde se tem gente de Xangô o milho de pipoca queima antes de estourar. Pela cozinha, entram as pessoas de maior prestígio na Religião e é nela própria que, em certas ocasiões, muito antes mesmo de se chegar no peji do Orixá, que este é consultado a fim de se saber se a comida foi bem preparada ou não (SOUZA

JUNIOR, 2016, online, acesso em 11 ago).

Deste modo, a tradição cultural alimentar afrorreligiosa não apenas indica o

que representa a comida votiva, como também estabelece as prescrições do que se

permite ou não ser ingerido e quando deve ser feito, além de demarcar as

proibições, interdições ou tabus, distinguindo entre o que é considerado bom ou mal,

vigoroso ou não, classificando e hierarquizando os alimentos, predefinidamente,

pelos costumes em comum. De fato, a cozinha de santo é repleta de uma “antipatia

supersticiosa que os africanos nutrem por certos alimentos e determinadas ações”

(QUERINO, 1928, p.76).

Segundo Marcos Alvarenga alguns tabus estão relacionados ao gênero dos

Voduns e a cor do animal. Sobre a questão de gênero

alguns dos animais utilizados em rituais dentro do terreiro. Estes animais estão organizados em relação aos Orixás e suas prescrições e interdições, e, também, estão organizados em machos, fêmeas e sem gênero definido. (ALVARENGA, 2017).

Alvarenga demonstrou alguns animais que representam essa relação de

interdependência entre gênero, cor, forma e tamanho com os respectivos aspectos

essenciais de algumas divindades do Candomblé Ketu. Seguindo o mesmo método,

fiz um levantamento, a partir da comunidade Xwe Ace Kpo Sohun, que evidenciou

uma certa correlação entre as prescrições dos Voduns relativas a associação entre a

representação das entidades e as características dos animais prescritos à estas.

Demonstrado no quadro a seguir:

Page 118: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

117

Quadro 4 – Animais: prescrições e interdições alimentares em relação aos Voduns

Voduns

Animais

Prescrições Proscrições

Machos Fêmea Indef. Macho Fêmea Indef.

Ta - Galinha

Pata

Pombo, Angola, Peixe

Galos, patos

- Peixes de

couro

Gu Bode/galos

/pato -

Pombo, Angola

- Cabra/gali

nhas -

Dan/ Bessen

Marreco Cabra/gali

nha Preá

Juriti Angola

Codorna

Galos, pato

Marreca, pata

Pombo

Sakpatá Bode/galos

/ Porco -

Pombo Angola

- Cabra/gali

nhas Porca

-

Oyá/ Djamsan

- Cabra/gali

nhas Perua,

Pombo Angola

Bode/galos Carneiro

- -

Odé/ Otolu

Bode/galos Animais de

caça -

Pombo Angola

Codorna Periquito

- Cabra/gali

nhas -

Agué Bode/galos

Garnisé, faisão

- Pombo Angola

Pato Cabra/gali

nhas -

Heviossô Bode/galos

Ajapá, peru, preá

- Pombo Angola

Porco Cabra/gali

nhas -

Lissá - Cabra/gali

nhas brancas

Pombo Angola

Bode/galos - -

Fonte: Acervo da pesquisa, adaptado de ALVARENGA , 2017.

Através do levantamento, pude compreender que os tabus alimentares

relacionam-se às regras gerais estabelecidas no candomblé, porém podem divergir

de uma para outra região, devido à presença em excesso, a carência de alguns

alimentos, ou por questões que variam desde o poder aquisitivo, de comunidade

para comunidade, até a localização geográfica, que pode impor restrições ao

cardápio dos deuses.

No entanto, há de se considerar que nem sempre as razões que levam aos

tabus são pela restrição dos gêneros alimentares da região. Os preceitos também

obedecem a um sentido simbólico, subjetivo, na maioria das vezes transmitidos por

narrativas míticas, sem uma razão conhecida no cientificismo formal, ou em qualquer

outro tipo de razão que não seja pelos princípios e regras da própria cultura

Page 119: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

118

afrorreligiosa. Fazem parte de um conhecimento tradicional, passado de geração a

geração. Estabelecem uma simbologia própria, a do sagrado.

Assim, mitologia, simbologia do sagrado, ritualização, valores e tabus, são

ingredientes que compõe a elaboração da comida de santo no candomblé e que se

apresentam como conhecimentos da cultura afrorreligiosa, saberes tradicionais que

perpassam a educação na comida de santo.

Os mediadores dos saberes da cozinha votiva, primordialmente, as filhas de

santo, são reconhecidamente mais que educadoras, posto que conquistaram o

status de herdeiras da tradição cultural alimentar afrorreligiosa.

Page 120: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

119

4 AS HERDEIRAS DA COZINHA SAGRADA

Na cozinha de santo, não apenas na do candomblé Jeje Savalú, o papel de

mediador dos saberes culinários é eminentemente feminino, exceto nas tarefas onde

há um impedimento da própria religião, como por exemplo, as imolações,17

tarefa

proscrita às mulheres. Dessa forma, é do gênero masculino a função das imolações

e preparo dos animais que serão usados nas obrigações e em outras liturgias.

Somente depois de mortos e lavados os animais são entregues para as senhoras da

cozinha prepará-los de acordo com os preceitos e características que os cercam.

Na reflexão de Lody (1977), a supremacia das mulheres como protagonistas

dos saberes culinários, gera equívocos. Tal sistema, se visto, por uma ótica

ocidental, pode ser interpretado como prova de um reforço machista da tradição.

Porém, quando analisado considerando o potencial cinegético da comida e a

presença proeminente desta na maioria dos rituais no candomblé e em outras tantas

religiões de matrizes afro, aí o que pode representar lugar de sujeição, transforma-

se em espaço de poder e virtude. No entender de Lody,

Por tradição, o homem não deve entrar ou permanecer na cozinha sagrada. As mulheres que nela trabalham deverão ser iniciadas para os mistérios e segredos das porções, receitas e atitudes rituais que irão variar de prato. As cozinheiras dos deuses devem atuar no espaço sagrado de suas cozinhas como se estivessem no interior dos santuários e os alimentos que não pertenceram ao cardápio ritual não poderão permanecer nesses locais, devendo ocupar cozinha própria (LODY,1977, p. 39).

17

A utilização do termo “imolação” dá-se pela escolha da própria comunidade Xwé Ace Kpo Sohun, que explica a preferência pelo termo em vez da expressão “sacrifício”, por seu teor pejorativo no imaginário popular.

Page 121: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

120

Figura 13 – A Dunúgàn da comunidade Xwe Ace Kpo Sohun (Outeiro)

Fonte: Acervo da pesquisa, 2017.

No entanto, poucos são os terreiros onde os homens não participam das

tarefas gastronômicas, seja por desfalque das senhoras, ou por algum impedimento,

como uma quizila, por exemplo. Nesses casos, os filhos são chamados a

comparecer com seus serviços na cozinha, mas, sempre supervisionados por uma

Ekedjé ou por uma das sacerdotisas mais antigas que estiverem presentes no

momento. Esses arranjos estão cada vez mais frequentes nos dias de hoje, haja

vista as incumbências particulares que por vezes as senhoras detêm, como o

cuidado com a família biológica, ou afazeres domésticos e profissionais.

Page 122: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

121

O mesmo pode-se dizer da ekedjé, filha biológica da sacerdotisa Jokolosy,

que mesmo não sendo da mesma roça,18

também participa do processamento das

comidas do povo de santo, sempre acompanhada dos iniciados, que são orientados

por ela sobre as receitas, e sobre o que é permitido a eles fazer. Afinal nesse

período da iniciação existem muitos preceitos, muitas quizilas e uma das formas de

aprendê-las é a partir da experiência.

As senhoras da cozinha sempre pareciam incomodadas com a minha

presença, as vezes por timidez, ou por estarem sujas. Mas quase sempre era o

receio de cometer alguma indiscrição que suscitava o mal-estar.

Também testemunhei os dois filhos biológicos da Mãe Jokolosy dando

assistência aos iniciados e treinando-os para tarefas rotineiras do terreiro, com uma

predileção por aquelas relacionadas às festas e ao Ajeun do povo de santo. Sendo

ele um mehuntó, termo dado ao integrante masculino e segunda pessoa mais velha

da casa, sempre há o que ensinar e disciplinar, motivo pelo qual reconhece-se nele

um autêntico disciplinador, sempre àfrente, na liderança, firme nas suas convicções,

e com um senso de justiça no exercício diário de auxiliar na formação dos novos

adeptos da religião.

Várias vezes fui testemunha de sua voz enérgica dando lições que

demonstravam todo o encantamento com a própria paixão pela religião. Em dias de

festejo, geralmente é o mehuntó quem delibera as funções e orienta a limpeza,

fiscaliza se as roupas estão adequadas, se os filhos estão se esforçando e se tudo

está de acordo com o que os voduns almejam. Nesses momentos a partilha do

alimento conduz a socialização dos saberes e induz o processo de aprendizagem.

Mesmo não tendo consciência, as senhoras da cozinha são herdeiras de um

vasto conhecimento cultural, saberes transubstanciados na forma de alimentos,

comida sagrada. Esses saberes são recheados de aprendizagem, que transcendem

o apreço objetivo do gosto, do nutritivo e resultam em saberes subjetivos, repletos

de sentidos, simbologia, filosofia e responsabilidade com a preservação dos hábitos

e costumes da ancestralidade afro-brasileira.

As senhoras da cozinha são mediadoras de um conhecimento, de uma

ciência que se fez a partir de uma “sabedoria da tradição”, uma ciência dos

alimentos, algo aprendido com a vivência na cozinha do terreiro, um processo

18

Roça – nome popular de uma casa de Vodun/Orisá/N‟inkisse.

Page 123: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

122

educativo perpassado cotidianamente, pela experiência e, principalmente, pela

atenção. Por saberes da tradição candomblecista, compreendem-se aqueles que

circulam no

cotidiano nos terreiros de candomblé através de sua cosmogonia e concepção de vida possibilita o acesso a outros planos de existência, uma vez que seus mitos, histórias e liturgias se agenciam na produção de novos territórios subjetivos e de práticas de cuidado, transformando-os em espaços de promoção à saúde para adeptos e não adeptos (GOMBERG, 2011). Espaços esses que, afirmam saberes populares, tradicionais e ancestrais legados pelos povos africanos escravizados no Brasil, representando uma forma específica de resistência da cultura e da religiosidade negra. (GUILHON e SALAS, 2017, p.4)

Na região Amazônica, por exemplo, outras diferentes formas de saberes

tradicionais, como aqueles testemunhados na comida do axé, são expressivas e

objetos de estudo, como a confecção de objetos do miriti, como a pesca artesanal

realizadas pelos ribeirinhos ou ainda, a produção de redes de pesca ecológicas

pelos mesmos.

Todas essas representações estão ancoradas em uma forma de saber não

relacionada ao conhecimento escolacentrista-cientificista, mas sim, na inter-relação

homem/natureza/cultura. Trata-se, portanto, de um processo pedagógico, onde a

engrenagem desenvolve-se no âmbito do sagrado e os mediadores de tal pedagogia

cumprem ao mesmo tempo o papel de ensinar e alimentar.

4.1 MULHERES E HOMENS QUE ALIMENTAM

Momento fecundo, do ponto de vista educacional, é a chegada de um bode

ofertado para um Tasén19

. Pois mesmo antes de chegar à cozinha, o mesmo é

levado aos cuidados do Kpéjígàn Hunsijé, que após conduzir o processo de limpeza

19

Tasén é o ritual que cultua a cabeça; o mesmo que borí para os nagôs. Provavelmente o mais importante ritual, pois ele principia todas as etapas que antecedem à iniciação. É através do jogo de Búzios que o Babalorixá recebe as instruções para realizar este ato ritualístico, o Tasén, que possibilitará não só a mudança da sorte como também a manutenção da mesma, para que não se a perca.

Page 124: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

123

e de purificação do animal, executa o ritual de imolação, auxiliado por dois

Gàniynpès da casa.

O Kpéjígàn, explica que mesmo antes dos cortes (animais imolados)

chegarem para a Sedugàn, o animal deve ser imolado por um dos Gàniynpè,

revelando, que apesar de predominante, a feitura da comida sagrada não é um

monopólio exclusivo das mulheres.

Gàniynpè, instruído pelo Kpéjígàn Hunsijé, conduziu a tarefa, da imolação,

desde a preparação ritualística até a conclusão com o abate do animal.

O corte cirúrgico para não inutilizar a pele – que posteriormente seria usada

no emprego do revestimento dos atabaques – a curtição ao sol, a ordem da retirada

dos órgãos, que obedece várias interdições até a limpeza da área do holocausto,

tudo era minuciosamente explicado e conduzido pelo Kpéjigan, tal como um

professor age com seu aluno.

A Gàniyakú do terreiro Xwe Ace Kpo Sohun firma não ser possível para as

senhoras da cozinha, dôgan, donugán e sèdugán, realizarem suas funções (o

preparo das comidas sagradas para os Voduns) e também cozinhar para o povo de

santo, de forma isolada das demais tarefas da casa. Sem a colaboração dos demais

filhos de santo, principalmente os não rodantes como o Kpéjigan, ou mesmo os

rodantes, como por exemplo, do Sénmàtó, as tarefas das senhoras não se

concretizariam, devido principalmente aos preceitos e impedimentos originários no

próprio candomblé.

Um dos exemplos mais contundentes do valor dessas tarefas que não fazem

parte das obrigações culinárias das senhoras da cozinha é justamente a do cargo de

Sénmátó. O senhor das folhas, atribuição ou denominação para quem é responsável

por coletar as folhas, faz desse filho de santo pessoa de grande relevância no

universo da cozinha do Axé. Do realce do sabor à estética das iguarias, as folhagens

colhidas pelo Sénmátó são de importância imensurável para o bom andamento dos

hábitos culinários da roça.

As iguarias dos santos são, geralmente, servidas em composições arranjadas

harmoniosamente em pratos decorados pelas folhagens e ervas coletadas, ou,

diretamente, nas próprias folhas. E na impossibilidade do cumprimento de tais

tarefas pelas cozinheiras, devido à existência de alguns tabus que comprometeriam

a integridade dessas com seus deuses protetores, o auxílio dos outros filhos acaba

sendo imprescindível. Assim, como explica Raul Lody, os tabus e as

Page 125: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

124

injunções norteiam os procedimentos das responsáveis pela cozinha, onde o homem, em muitos terreiros, é proibido entrar por se tratar de local exclusivo das Yabas, responsáveis pela preparação dos "Axés" retirados dos animais sacrificados nos pejis e das comidas secas que constituem a grande base da alimentação dos deuses. Os utensílios culinários e os tipos de fogões utilizados nas cozinhas dos deuses africanos mantêm os rigores tradicionais do cozimento demorado e vigiado pelas atentas labassês. Os momentos, dias da semana e palavras mágicas contribuem para o real funcionamento do prato sagrado em sua realidade cerimonial e de conteúdo votivo (LODY,1977, p. 39).

O cargo de Sénmàto é imprescindível para os afazeres alimentares, pois é

responsável pela colheita das folhagens necessárias para os ingredientes

determinados pelos Voduns. Esta tarefa é delicada, pois algumas folhas podem

conter algum tipo de peçonha, tornando-se danosas à saúde daqueles que as

consumirem.

O Sénmàtó, portanto, deve ter ao mesmo tempo um conhecimento preciso e

amplo das folhagens que fazem parte dos hábitos alimentares, das sensações,

odores e sabores provocados pelas mesmas e da sua utilidade como ornamentação,

de acordo com o que demanda a tradição do prato escolhido pelos santos (voduns

no Fongbe), ou seja, da dimensão estética das folhas, raízes e ervas colhidas por

ele. Seu saber vem da vivência e dom em apurar o olfato e o paladar para o

conhecimento de plantas, raízes e ervas, os saberes da natureza (ecológicos),

inspirados, ou melhor dizendo, influenciados pela sabedoria incisiva de seus

mentores espirituais (voduns), sobre suas escolhas.

Seu vodun protetor Agué, é o detentor da cura por meio das ervas. Ele é a

própria essência das folhas, das matas e do cheiro da flora. Sénmàtó explica que:

Antes, quando não era da roça, do candomblé eu não sabia nada sobre as folhagens e seus efeitos energizantes e curativos. Aprendi vendo os mais experientes e com o tempo, quando os búzios determinaram, eu passei a ter uma iluminação sobre o uso das plantas. Tinha algo que fazia eu saber onde procurar , mesmo na cidade existem algumas matas virgens e os voduns me orientavam, mas se eu não tivesse aprendido olhando e experimentando eu não teria a permissão deles (Entrevista de Sénmàtó da Xuè, 18 mar. 2017).

Page 126: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

125

A explicação do Sénmàtó perpassa por várias dimensões da cultura

Savalúana. É possível enxergar a dimensão simbólica da relação entre os elementos

da natureza ofertados para nutrir e curar os homens, sua função social, pois o

conhecimento das plantas remete a uma prática popular tradicional, rara nos dias

atuais e, finalmente, a dimensão do sagrado, perceptível no xwénuxo (história-mito

no idioma Fon), relatada a seguir e que explica a importância da dinvindade Agué

para o candomblé:

Agué que era apenas um caçador, estava passando pelo local e ouviu o cântico do coelho e percebeu o que estava ocorrendo, resolvendo logo em seguida matar a hiena para livrar os animais de tamanha astúcia. Diante do ocorrido, o esquilo e o coelho instituíram Agué como os olhos e ouvidos da floresta, porque ele conseguiu ver e entender o que se passava com os animais nas mãos da hiena, livrando-os da morte (Entrevista de Mãe Jokolosy, 2017).

Tal narrativa não se restringe a uma lição de cunho moral, mas, sobretudo,

refere-se à proximidade entre a intuição natural e o merecimento de dons, à valentia

e o aprimoramento do senso de justiça. Lições de vida e experiências que são

contadas, geralmente, à mesa, no momento das refeições, ou durante a feitura das

mesmas.

É também função dos homens do terreiro a escolha e compra dos animais

que serão imolados, assim como é do Kpédjígàn a função de auxiliar o Sénmátó

Amànón (responsável pela colheita das folhas). É ele e a Gàniyakú Jokolosy que

sempre aparecem nos comandos das tarefas, mesmo naqueles mais simples, desde

a escolha do material a ser utilizado para o banquete ofertado, até a montagem dos

pratos, uma especialidade do Kpédjígàn Hunsijé.

Quando entrevistadas, as senhoras da cozinha fizeram várias vezes

referências aos cargos do kpèdjígàn e do Sénmàtó da Xuè. Dizem que sem o

conhecimento deles elas não podem concluir com competência suas próprias

tarefas, mesmo se tratando de conhecimentos específicos, mas que no entanto

estão interligados.

A dunúgàn dizia, enquanto lavava a folha da mamona, que considera seu

cargo muito importante, pois sem ele os voduns não seriam alimentados. Entretanto,

sem o conhecimento dos gostos e do cardápio, tarefa do kpèdjígàn, ou do dom de

reconhecer a erva ou folhagem respectiva para cada prato e para cada rito, ela

Page 127: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

126

poderia estragar os pratos destinados aos voduns, por simplesmente não haverem

seguido os preceitos de forma adequada. Este é o caso da mamona, folha de

importante simbologia entre os jejes, e que, segundo a senhora da cozinha, significa

ao mesmo tempo a vida e a morte, ou seja, o equilíbrio.

A função de Sénmàtó é, justamente, ensinar para dunúgàn a forma correta de

conduzir o uso das folhagens, como neste caso. O especialista indica “aninhar” a

comida sempre do lado oposto da palma da folha, pois se procedido de forma

contrária, a obrigação poderia gerar grande descontentamento ao deus a que o

alimento foi ofertado.

Todos esses conhecimentos revelados tanto pelo Sénmàtó, quanto pela

dunúgàn, alimentam cotidianamente atos educativos, que aprendidos pelos filhos e

filhas de santo, numa roça jeje savalú, fazem da culinária sagrada um lugar de

conhecimento onde circulam saberes diversos, relativos à simbologia, à tradição, ao

sagrado e à experiência, ou seja, saberes mediados pelo fazer – aprender e pela

atenção, possibilitando homens e mulheres vivenciarem memorável tempo de

aprendizagem.

4.2 CULINÁRIA SAGRADA: TEMPO DE APRENDIZAGEM

A alimentação possui papel singular no candomblé. Pois as oferendas e

sacrifícios marcam um ponto alto em sua estrutura teológica. Através dos alimentos

os adeptos interligam-se aos seus deuses e, para tanto, todos os filhos dessa

religião, os filhos de santo aprendem logo no início a controlar a culinária,

estreitando, dessa forma, sua relação e vivência no santo. A esse respeito Nadalin

afirma que:

Os Filhos-de-Santo têm obrigações para com as divindades, especialmente com aquela de sua origem. Um filho de Iemanjá, por exemplo, tem que tratar com carinho o seu Santo, dando-lhe as comidas que ele gosta, as flores de sua preferência. Da mesma forma, tem compromissos com outros Orixás, deve satisfazê-los e relembrá-los principalmente em seu dia de festa, ou ainda por alguma necessidade específica que o Orixá pode intervir. Pierre Verger defende a mesma visão de Vogel quando fala que “nada se faz sem consultá-los e garantir sua proteção. Os homens gozam da abundância e da prosperidade se souberem satisfazê-los e, ao contrário, as catástrofes e calamidades sucedem-se na terra se

Page 128: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

127

esses deuses forem negligenciados ou ofendidos” (NADALIN, 2012, p. 311).

Para os filhos de santo do terreiro Xwe Ace Kpo Sohun, o primeiro passo para

conhecer a mística do processo iniciático é conhecer as propriedades da sua

entidade protetora para, assim, satisfazê-la e ganhar sua proteção. Em relato a um

iniciado sobre uma receita de sua divindade protetora, o pegìgán Hunsijé demonstra

o quanto é poderoso esse elo entre a comida e o sagrado.

Sendo assim, os filhos de santo devotam horas do seus dias para cuidar de

suas oferendas cotidianas, corriqueiras, afim de apreender como agradar , por meio,

dos alimentos ofertados, seus voduns.

O tempo dedicado aos saberes praticados em uma cozinha de santo exige

não somente a compreensão de tempo cronológico, como também apelar para a

análise de outras categorias de temporalidade que suportem o complexo fenômeno

decorrente dessas práticas.

A variação de tempo no candomblé é muito complexa. Quando se fala de

idade de cabeça, via de regra, compreende-se o tempo de iniciação. Mãe Jokolosy,

no entanto, diz que segundo seus mentores divinos,

em uma época anterior à diáspora africana, antes mesmo da época da escravidão no Brasil, a iniciação ou formação do rito por vezes coincidia com a infância, possuía relativa relação com a idade cronológica do iniciado (Entrevistas de Mãe Jokolosy, jan. 2017)

Atualmente é possível ver nos terreiros várias crianças em processo iniciático.

Caso exemplar, foi o do neto da sacerdotisa, o Kpédjígàn Hunsijé que, iniciado ainda

na adolescência, possui hoje maior experiência do que muitos iniciados com idade

cronológica mais avançada que a dele. Como a dunugàn, iniciada depois de adulta,

mesmo mais velha cronologicamente, ao ser comparada ao Kpédjígàn, de apenas

20 anos, é considerada mais nova, pois o rapaz detém mais segredos, mais

saberes do que ela, devido o tempo de iniciação no santo, ou seja, na religião do

candomblé.

Portanto, Kpédjígàn Hunsijé vem ocupar junto à roça Xwe Ace Kpo Sohun um

status de maior poder, o que explica o motivo pelo qual a senhora deveria bater

cabeça (pedir benção) para ele. Explica também as intervenções feitas por ele, junto

Page 129: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

128

às senhoras da cozinha sagrada, em relação aos pratos servidos aos voduns e ao

povo de santo.

Os segredos da cozinha também são partilhados pouco a pouco, de acordo

com um tempo que mede a capacidade de dedicação e experiência nos afazeres

culinários e no tamanho de sacrifícios que cada individuo pratica.

Uma noção diferente do tempo cronológico que, geralmente, usamos.

temporalidade relacionada, com o grau de produtividade e lucratividade e não pela

aprendizagem alcançada.

Na cozinha do Axé ou em outro espaço qualquer do terreiro, predomina o

conhecimento experienciado no santo, pois aquele que em um dia figurou na

condição de aprendiz, no outro, estará na função de mentor, mantendo, dessa forma

um sistema contínuo de construção e desconstrução das relações entre educando e

educador.

A razão de ser desse sistema é tentar preservar o legado de seus

predecessores, reinventando a tradição através de um movimento continuo e

dialético, e assim mantê-la “descontaminada” em relação às transformações que

decorrem fora do âmbito do sagrado.

Seguindo o cronograma estabelecido pela casa, depois de montado o

cardápio considerando a seleção dos ingredientes, começam os trabalhos, ainda de

madrugada, geralmente às cinco da manhã, para não incomodar os vizinhos. Dá-se

início, então, a preparação dos alimentos votivos.

O cronograma inicia com os cantos para a preparação dos animais que vão

ser imolados, depois de lavados e homenageados, por conta da doação e sacrifício

a que serão submetidos. Em seguida, vem os cortes, que ocorrem depois que cada

animal foi devidamente homenageado e entregue a seus respectivos voduns.

Posteriormente, os animais são encaminhados ao ritual de corte (bejeressun ou

nahunnú na língua fon) e entregues aos não rodantes da casa, pois a tarefa não

pode ser feita por iniciados, mulheres e nem rodantes. A não ser que haja uma

necessidade extrema, os rodantes homens serão convocados.

Enquanto isso, as senhoras da cozinha iniciam a preparação dos outros

ingredientes que acompanham as carnes do cardápio. Alguns filhos de santo,

principalmente, os não rodantes são convocados para auxiliar na cozinha e na

preparação dos ambientes que vão ser usados pelos membros visitantes.Todo o

Page 130: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

129

processo conta com a presença dos filhos de santo e de pessoas externas se o ritual

em questão for um trabalho ou festejo.

No início da tarde, geralmente, depois do almoço o sangue dos animais

(Ohun) é ofertado aos deuses, assim como os órgãos vitais são oferecidos às

divindades. A carne do animal é devidamente preparada, cozida e oferecida a toda a

comunidade. A pele dos bichos de quatro pés é utilizada na confecção dos

atabaques. A matriarca explica que o sangue vermelho está relacionado diretamente

às coisas quentes e ao movimento do fogo.

O sangue tem um papel importante na cozinha votiva do candomblé. Sua

presença tem simbologia primordial nos rituais das oferendas destinadas aos

Voduns.

Quadro 5 – Sangue dos Três Reinos

SANGUE VERMELHO SANGUE BRANCO

SANGUE PRETO

REINO ANIMAL

Corrimento menstrual, sangue humano ou animal

Sêmen, saliva, hálito, secreções, plasma (de caracol)

Cinzas de animais

REINO VEGETAL

Azeite de dendê, pó vermelho de urucum, mel (sangue das flores)

A seiva, o sumo, o álcool e as bebidas brancas

O sumo escuro de certos vegetais

REINO MINERAL

Cobre e bronze Sais, giz, prata e chumbo

Carvão, ferro e outros

Fonte: Chagas (2014, p. 82).

Segundo Chagas (2014) entender a capacidade de integração ou ruptura que

o sangue pode representar é imprescindível para a compreensão dos tabus

alimentares e dos sacrifícios. No entanto, quando se fala da relação do povo de

santo com sua culinária

é comum surgir alguns questionamentos sobre uma ambivalência que envolve o sacrifício de animais e a importância do sangue para as religiões de matriz africana. Alguns antropólogos que trabalham com a Umbanda, falam da possibilidade de substituir o sacrifício de animais, afirmando que essa religião tem superado a tradição porque passou por um processo de branqueamento que vislumbrou uma saída para a retirada desse ritual. Mãe Kátia fala da dificuldade de se manter uma tradição por conta da falta de conhecimento, do racismo e da intolerância religiosa. “A perseguição sobre o sacrifício de animais está relacionada com o racismo e com a intolerância religiosa, tudo que vem do negro é discriminado. Mas a religião de matriz africana não vive sem esses elementos, sendo que um complementa o outro. O sacrifício é um pedido dos orixás, é uma troca, quando fazemos referência aos animais de quatro patas,

Page 131: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

130

estamos falando dos bichos que se entregam para o sacrifício, é como uma reciprocidade, o egé precisa ser derramado em favor da própria vida, porém sem excesso, o excesso significa a falta de conhecimento. A tradição deve ser mantida para acalmar os orixás, isso mostra a importância do egé para a nossa religião. Quebrar a tradição é a mesma coisa que retirar a hóstia do culto católico ou a bíblia do culto evangélico. A tradição africana tem mais de 10.000 anos e as práticas litúrgicas mais importantes que representam a sustentação do culto devem ser mantidas. O afrorreligioso que tem a função de sacrificar o animal é devidamente preparado para que o animal não sofra, o animal tem o seu tempo de descanso e tem como recusar o sacrifício, isso só pode ser percebido por quem detém o conhecimento específico”. (CHAGAS, 2014, p 111)

Segundo ele, se o valor simbólico do sangue e das práticas rituais tornarem-

se do conhecimento público. A conscientização pela informação terá o papel

importante de desmitificar a demonização em torno das práticas culinárias e,

sobretudo, para desenraizar a intolerância religiosa em relação as comunidades

afrorreligiosas.

No meio da tarde, geralmente antes do pôr do sol, a carne dos animais,

juntamente com os outros acompanhamentos preparados pelas cozinheiras são

ofertados, simbolicamente, aos Voduns e depois aos membros da comunidade,

inclusive aos visitantes, se desejarem. A recusa do alimento, contudo, dependendo

da entidade, pode não ser bem recebida, significando uma afronta a generosidade

do vodun.

Para atender as necessidades dos Voduns, o ohun (animal, vegetal e mineral)

deve ser oferecido na medida certa, podendo aumentar ou diminuir para atingir a

quantidade desejada de acordo com a energia, temperatura e intensidade.

A apresentação da comida de santo também é algo que suscita curiosidade.

Os pratos possuem uma estética peculiar, geralmente associada a alguma xwénuxo,

relacionada, por sua vez, a algum aspecto da natureza, pode ter representação em

formas de animais.

O sacerdote orienta o praticante para o cozimento da iguaria de agrado do

seu santo protetor, o Vodun Bessén. Diz o pegígàn ao seu pupilo que o adimu,

comida do vodun Bessén, deve ser feita com batata doce cozida, amassada e

regada com dendê. Depois, em um alguidar, o iniciado deve moldar com as mãos a

forma de duas serpentes, pois esse é o símbolo da natureza que representa a

divindade. Enquanto preparava o adimu,, ele entoava a cantiga do vodun descrita no

refrão a seguir:

Page 132: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

131

Canto para Bessén

VODUN RUDJÊ, MINA KORÓ RUMBÊ(BIS)

RUDJE ZÔ, RUMBONU NUM KWÊ MINADÔ (BIS)

DANSIDABELA RUMBÊÊÊÊÊÊÊ

ÊÊ MARRUMBÊÊÊÊ

RUMBÊÊÊÊÊÊÊ (BIS)

BRAVUN

SATO

E DORIGAN AIBUNA E DABUNCÔ (BIS)

RUM BARRA BERO BUNCO

RUM DAMBALA BALA SODAN AÊ AÊÊÊ BUNCO (BIS)

Fonte: Arcevo Savaluano, 2017.

Observa-se, portanto, que tanto a cantiga aos deuses, quanto a comida,

traduzem-se, não somente como nutrientes. Através do relato do Hunsijé, é possível

visualizar que, além de educar, a comida possibilita o estreitamento das relações

entre praticantes e o sagrado, agrega um conhecimento mítico afro-brasileiro ao

ritual no presente e media saberes para capacitar o iniciante na cosmologia do

sagrado.

É preciso ressaltar, no entanto antes de qualquer alimento ser preparado para

o santo deverá ser jogado os búzios para, assim, determinar-se o tipo de ritual e o

prato a ser ofertado.

Alimentar a cabeça, em alusão ao “ebó”, tem função na resolução de

problemas cotidianos e representa tarefa rotineira no terreiro.

Page 133: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

132

Figura 14 - Prato para feitura em bessén

Fonte: Acervo da pesquisa, 2017.

O mesmo ocorre quando o vodum exige por meio dos búzios um “narruno” –

uma obrigação, que, de acordo com o Tasén, pode variar de santo para santo. A

máxima “gosto não se discute” é um pressuposto de grande relevância na comida

votiva, e suscita não só o paladar como também os preceitos respeitados em cada

um dos rituais e que podem variar também de roça para roça.

Segundo me disse um vodunsi (filho de santo) em transe, virado em uma

entidade “erê” no momento em que ocorria um “narruno”:

Todo o encaminhamento dos trabalhos em um ritual “narruno” é o pai/mãe (santo) quem decide, determina o que vai ser permitido ou não no momento do ritual. Cada prato é diferente para resolver cada problema. Se usar o prato errado ou não obedecer tudinho o que eles mandarem ai é pior, tem que fazer tudo de novo, e se o santo for quente e servir comida fria, ele fica todo mole e ai vai perder a força, mas tem vezes que é pra acalmar mesmo, é de propósito. Não é muito bom brincar com o pai, pode levar peia, pra acalmar depois é bem pior, as vezes ele nunca mais desce (Entrevista de vodunsi, 2018).

Page 134: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

133

Cabe lembrar que boa parte dos conhecimentos descritos na cozinha, pelos

filhos de Mãe Jokolosy, não vieram de teorias científicas ou dos conteúdos

desenvolvidos em espaços escolares, ou centros universitários, apesar de que a

matriarca exige de seus filhos mais jovens que continuem seus estudos para que

assim tenham mais oportunidades na vida.

Para a sacerdotisa, esses conhecimentos expressam toda a grandeza dos

saberes culturais afro religiosos, saberes populares, oriundos de uma forma mais

ampla de educação, e que ela descreve abaixo, comparando ao trabalho do

pedagogo,

O que fazemos aqui é mais ou menos o que os pedagogos fazem né? Na cozinha, tem eu, a ekedjé e o kpèdjígàn que sempre estamos orientando. Então as meninas [senhoras da cozinha] fazem, porque tem coisas, algumas coisas que elas não sabem, porque são novas [idade de santo], não sabem tudo e quando ensinamos elas têm que prestar atenção, não se repete, não se fica falando não, tem que olhar eu e os mais experientes fazer pra aprender, isso é amor pelo vodun, amor pelo candomblé, não se fica repetindo não (entrevista de Mãe Jokolosy, 2017)

A importância da aprendizagem, em seu sentido amplo, conforme descrita

pela sacerdotisa Jokolosy, remete ao antropólogo Tim Ingold (1995, 2010),20

que

propõe “a noção de cultura como habilidade” e de “aprendizagem como educação da

atenção”. Para o autor, o aprender se faz a partir do olhar, do cuidado com os

pormenores, nos interditos, ou seja, muito além de uma aprendizagem verbalizada

ou escrita.

Vale ressaltar que Ingold (2010) não nega a escrita e a oralidade, apenas

sinaliza para a urgência de abrir mão dos métodos tradicionais, principalmente

quando a cultura em questão se manteve viva através dos gestos, do simbolismo

corporal e, sobretudo, do fazer com atenção, habilidades que, segundo ele, não

podem ser descartadas em nome do cientificismo.

20

Professor de Antropologia Social da Universidade de Aberdeen Tim Ingold discute a cultura em relação à aprendizagem e é uma referência importante na Antropologia internacional. Ingold acentua a importância do desenvolvimento de habilidade na vida social, inclusive no aprendizado da antropologia.

Page 135: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

134

Deste modo, é possível compreender que a aprendizagem da atenção não só

se efetiva de diversas formas no terreiro, como pode se aperfeiçoar, dando aos

sujeitos a condição de habilidosos mestres na arte de fazer. Isto é possível observar

no entendimento dos próprios atores dos processos educativos no cotidiano da

cozinha de um terreiro jeje savalú, conforme narrativa da sacerdotisa:

O negocio é olhar, ouvir com atenção e fazer da mesma forma, porque tudo vem com uma explicação, do mito, da cantiga, é segredo de família, a família Savalú. É claro que não somos mestres, professores, não temos os conhecimentos da escola, mas sabemos e estudamos, nos aprimoramos nas coisas dos voduns, na sabedoria dos antigos (Entrevista de Mãe Jokolosy, 5 mar. 2017).

O relato de Mãe Jokolosy aponta para dois sentidos. O primeiro que, apesar

do acanhamento, ela possui consciência de seu papel de educadora e orgulha-se de

estar prestando um serviço em prol da tradição cultural do candomblé Savalúano.

Outra percepção é de que tal papel depende de uma visão mais abrangente de

educação, que considere o processo educativo como uma prática cultural, não

estática e como uma ponte onde aquele que educa não deixa de exercer o papel

também de educando.

Em sua obra “Da transmissão de representações à educação da atenção”,

Ingold (2010) levanta uma questão que norteia toda essa análise: “como cada

geração contribui para o conhecimento da seguinte?” O antropólogo nega a visão

reducionista de alguns estudiosos de que o ato de educar seja meramente de

transmissão. Seu respaldo teórico se assenta, sobretudo, na prática da atenção,

onde o ato de educar se processa pela experiência cotidiana, pela observação e

pela apropriação dos valores culturais, de geração a geração.

Na perspectiva da educação por transmissão, a cultura, ou melhor dizendo,

seus significados, seriam repassados, mas não habilitariam as futuras gerações a

seus usos. Seriam bens herdados sem o benefício das naturais contribuições

emergidas no contexto particular de cada geração. Na ausência da “educação da

atenção” o que se aprenderia seriam conhecimentos abstratos e não teriam uma

praticidade real em suas vidas (INGOLD, 2010, p. 139).

A reticência de alguns pesquisadores em relação a uma abordagem mais

ampla de educação existe em razão de um preconceito enraizado em séculos de

Page 136: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

135

colonização do conhecimento, muito, segundo Santos e Menezes (2010), por conta

da própria mentalidade do sistema em que vivemos, pois:

O capitalismo global, mais que um modo de produção, é hoje um regime cultural e civilizacional, portanto, estende cada vez mais os seus tentáculos a domínios que dificilmente se concebem como capitalistas, da família à religião, da gestão do tempo à capacidade de concentração, da concepção de tempo livre às relações com os que nos estão mais próximos, da avaliação do mérito científico à avaliação moral dos comportamentos que nos afetam. Lutar contra uma dominação cada vez mais polifacetada significa perversamente lutar contra a indefinição entre quem domina e quem é dominado, e, muitas vezes, lutar contra nós próprios (SANTOS; MENESES, 2010, p. 18).

Como afirmam Santos e Menezes (2010), a soberania institucionalizada e o

monopólio epistêmico da ciência não conseguiram eliminar, nem ocultar o

reconhecimento dos outros saberes que circulam a realidade. No terreiro, por

exemplo, os conhecimentos são de uma ordem diferente da ordem globalizada, seu

alicerce está na experiência de vida, na habilidade do fazer, nos costumes locais,

nos aprendizagem no cotidiano e não em teorias pré-concebidas.

Assim, quando os membros do terreiro tratam a comida de santo como um

saber expoente da cultura afro, estão se referindo a vivência cotidiana deles, daquilo

que lhes foi ensinado através da irradiação de costumes e tradições, saberes que

vieram da África e se disseminaram pelo Brasil com a escravidão.

Em outras palavras, os hábitos alimentares cumprem a função de ponte para

as representações ou significados culturais, de acordo com a teoria das habilidades,

a partir de uma “educação da atenção” (INGOLD, 2010).

Ao se apropriar da forma que os africanos escravizados usavam seus

ingredientes, a comunidade savaluana rememora, pela habilidade e pela atenção os

costumes de seus antepassados e assim estreita laços, consolida identidade com

sua cultura alimentar. Como por exemplo, pelo modo como descascam o feijão

fradinho, grão a grão, os membros do terreiro resgatam a partir de uma memória

distante, seus hábitos e suas formas de resistência à sujeição em que se

encontravam, no período da diáspora africana.

Era comum na época da escravidão que os escravos não tivessem a

permissão para usar os pilões e outras ferramentas da casa grande. Além disso,

segundo Jokolosy essa prática permitia momentos de socialização entre as

Page 137: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

136

escravas, pois o processamento das comidas para a senzala era um dos raros

momentos de descontração do grupo.

A apropriação dos pratos africanos pelos integrantes do terreiro Xwe Ace Kpo

Sohun demonstra que por meio destes conhecimentos culinários a casa de Mãe

Jokolosy mantém vestígios dos modos de alimentação africanos Jejes e

reconfigurações desta matriz.

Não é de hoje que a alimentação vem sendo usada pelos herdeiros afro

religiosos. Ainda no período colonial e mesmo durante o império essa estratégia

vinha sendo usada, pois segundo Kpédjígàn Hunsijé comida e música aparecem

lado a lado das estratégias políticas para a promoção da convivência pacífica dos

grupos étnicos obrigados a coexistir pacificamente no período da escravidão

africana. O Kpésjigàn relata que no período colonial:

Quando nossos antepassados chegaram às fazendas para serem escravizados, tiveram que renunciar a todas as crenças e hábitos cultivados na terra mãe, mas isso não os impediu de no seu íntimo, de forma velada, acreditar nas suas crenças, então a saída foi introduzir algumas histórias em forma de cantigas que podiam ser cantadas durante os trabalhos diversos que eram obrigados, e assim seus senhores não os castigavam (Entrevista de Kpédjígàn Hunsijé, 5 mar. 2017).

Da mesma forma, segundo o Kpédjígàn, ocorreu com os hábitos alimentares,

que foram sendo adaptados segundo a necessidade e disposição da colônia. Na

época da diáspora, muitos dos ingredientes usados na cultura alimentar africana,

não existiam no Brasil, ou não eram destinados aos escravos. É o caso, por

exemplo, do café que era proibido e por isso passou a compor o rol dos itens de

comidas de interdições para os africanos. Chegando aos terreiros depois de séculos

do fim da escravidão como alimento tabu para os afros religiosos, permanecendo

assim, ainda hoje, em várias linhas, inclusive no candomblé Savaluano.

Outra forma dos ancestrais africanos obterem acesso a alguns alimentos

vindos da África foi o sincretismo religioso, agregando valores da cultura culinária

afro em comemorações religiosas, Esse o caso do caruru, que passou a ser comida

de festejo católico, durante as festividades de são Cosme e são Damião. Ao

comentar a relação entre sincretismo e alimentação Hunsijé afirma que,

Page 138: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

137

O Caruru (Kalulu de HonHo no idioma Fon) é prato de sincretismo, diz o kpédjigàn é uma comida de tradição religiosa, apropriado para a festa de Cosme e Damião, na tradição cristã, e ofertada na tradição do Candomblé aos eres e outras divindades como os Biatôs, vodun com escência de criança nos terreiros Djedje Savalú (Entrevista de Kpédjígàn, 2017).

Tendo mais instrução formal do que a maioria dos integrantes do terreiro,

Hunsijé teve acesso ao conhecimento acadêmico também. Mesmo assim o

sacerdote demonstra muito respeito às habilidades aprendidas no terreiro e diz, com

muito orgulho, que ter aprendido sobre a cultura do terreiro lhe possibilitou uma certa

predisposição à liderança junto ao meio acadêmico.

Quando questionado sobre o preconceito que adeptos do candomblé sofrem,

Hunsijé responde que hoje, com a lei no 10.639/2003 o preconceito é mais velado, as

pessoas temem processo. Fica feliz em admitir que muitos recebem suas crenças

com muito respeito e alguns até mesmo o admiram pela sua militância.

O teor militante e orgulhoso com o qual o kpéjigàn trata os conhecimentos da

língua Fon e mitos da afroreligiosidade, alguns atrelados à alimentação, apreendidos

como seus próprios valores, vem de uma educação intensa no cotidiano do terreiro.

O jovem explica que sempre que há um festejo aberto ao público ele chama

convidados e quase sempre esses são atraídos pelos banquetes, que são

tradicionalmente conhecidos.

A comida aparece, não somente com o papel de educadora, é possível

através do relato do Hunsijé, visualizar que além de educar ela possibilita o

estreitamento das relações entre praticantes e não praticantes, fornecendo

acolhimento e simpatia.

Se os demais integrantes da casa trouxeram suas bagagens de outras

crenças e de uma vivência apartada do terreiro, Hunsijé, nasceu e foi criado

segundo os valores. E, ao contrário dos demais, incluindo Mãe Jokolosy, suas

representações externas sobre o convívio com sujeitos, de culturas diversas, nos

vários outros ambientes frequentados por ele, não tem grande peso em suas

convicções.

A fé na educação que recebeu nos mais variados ambientes do terreiro, e que

partilha em boa parte nas refeições, remeteu-me a uma passagem do livro “O que é

educação”, onde Brandão afirma existir mais de uma educação, coexistindo em

vários contextos e realidades, inatingíveis se somente forem limitadas à prática

Page 139: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

138

escolar. Não que esta seja antagônica aos saberes cotidianos, mas é diferenciada

na formalidade a que se propõe (BRANDÃO, 1993). Logo no primeiro capítulo desse

livro intitulado Educação? Educações: aprender com o índio, Brandão nos transporta

para o espaço da educação indígena, através de uma carta resposta dos índios

norte-americanos, que recusaram um convite dos governantes do estado de Virgínia

e Maryland para que enviassem jovens de sua tribo para estudar fora com os

colonizadores. Aqui o trecho da carta:

Nós estamos convencidos, portanto, que os senhores desejam o bem para nós e agradecemos de todo o coração. Mas aqueles que são sábios reconhecem que diferentes nações têm concepções diferentes das coisas e, sendo assim, os senhores não ficarão ofendidos ao saber que a vossa ideia de educação não é a mesma que a nossa. [...] Muitos dos nossos bravos guerreiros foram formados nas escolas do Norte e aprenderam toda a vossa ciência. Mas, quando eles voltavam para nós, eles eram maus corredores, ignorantes da vida da floresta e incapazes de suportarem o frio e a fome. Não sabiam como caçar o veado, matar o inimigo e construir uma cabana, e falavam a nossa língua muito mal. Eles eram, portanto, totalmente inúteis. Não serviam como guerreiros, como caçadores ou como conselheiros. Ficamos extremamente agradecidos pela vossa oferta e, embora não possamos aceitá-la, para mostrar a nossa gratidão oferecemos aos nobres senhores de Virgínia que nos enviem alguns dos seus jovens, que lhes ensinaremos tudo o que sabemos e faremos, deles, homens (BRANDÃO, 1993, p. 9).

Assim como os indígenas acreditavam na educação que transmitiam aos seus

jovens, mãe Jokolosy e o jovem Kpédjígàn acreditam que os iniciados do terreiro

devem se orgulhar da educação recebida. Inclusive Hunsijé afirma não entender

porque alguns membros do terreiro batizam seus filhos em práticas religiosas que

não seja do candomblé Savalúano. Segundo o Kpédjígàn, se o adepto está convicto

de sua crença no candomblé, não há porque recorrer a outras religiões na criação

de seus filhos.

Os ensinamentos sobre intolerância religiosa também são pauta da cozinha,

geralmente, quando os filhos de santo precisam tomar decisões a respeito de

manifestações, militância afrorreligiosa, ou mesmo em comemoração por alguma

conquista para a as religiões de matriz afro. A mãe Jokolosy convoca sacerdotes de

outras comunidades para durante uma boa refeição deliberar sobre tais decisões.

Mãe Jokolosy afirma, que nessas ocasiões, escolher para a refeição

integrantes apropriados proporciona aos voduns mais sintonia com a luta a ser

Page 140: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

139

travada, segundo ela é preciso está conectado com o pensamento da vitória a que

se quer obter , por isso durante a ingestão da comida, deve-se mentalizar os

objetivos à conquistar, para que os Voduns estejam mais garridos no proposito a ser

alcançado. O alimento segundo relata a matriarca do terreiro,

é tudo, pois serve para equilibrar o corpo e a mente; nutre o corpo e energiza o espirito, o corpo não alimentado não tem forças para sustentar o vodun, fraco não poderá cumprir com suas obrigações, por isso comida é tudo, é vida é alimento para as boas soluções. Santo fraco não traz energia, os trabalhos não acontecem. Todos os filhos da casa sabem que quando estão incorporados não se alimentam, porque seus voduns de cabeça já estão alimentados, mas após as obrigações a alimentação é fundamental, é a primeira coisa que se faz (Entrevista de Mãe Jokolosy, 15 abr. 2017).

Mãe pequena conta que a primeira lição que um iniciado aprende é a prezar a

humildade e respeitar os mais velhos e a forma que isso lhe é ensinado vem por

meio da comida. Trancado em um quarto, o iniciado não pode fazer nada sozinho,

tem que ser limpo, ter os cabelos raspados, não pode comer sozinho e nem mesmo

escolher seus horários de alimentação. Tudo isso para que ele aprenda que

ninguém é autossuficiente e que até o mais insignificante ser é necessário para sua

sobrevivência.

O iniciado, quando alimentado por um dos irmãos de santos, passa a

condição de seu filho e renasce para uma outra vida Seus primeiros fundamentos

nascem de um simples ato biológico o ato de comer, mas ganha proporções

gigantescas quando verificadas a partir dos significados dessas simples ações.

Nem sempre os educandos savaluanos são conscientes do processo

educativo a que são submetidos, mas mesmo sem a consciência do objetivo a que

se propõe o aprendizado ocorre. A proximidade com o cotidiano da cozinha da casa

Xwe Ace Kpo Sohun não só confirma que a culinária votiva está sortida de saberes,

como é possível visualizar um complexo e peculiar processo educacional, emergido

nas relações norteadas durante a feitura desses alimentos.

A necessidade de manter a tradição não é um capricho. Na verdade, ao optar

pela forma tradicional dos alimentos Mãe Jokolosy aproxima sua comunidade ao

máximo de sua história. Entender de onde vem seus credos é importante para

consolidar a identidade que esses sujeitos possuem com sua religião. E comer como

Page 141: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

140

os antigos escravos comiam é parte desse processo. A alimentação torna-se um elo

poderoso entre o presente e o passado em forma de simbolismo e tradição.

Analisar a alimentação não somente em seu papel fisiológico, mas,

sobretudo, pelo que esta é capaz de agregar enquanto processo educativo, cultural

e simbólico, implica considerar que

Nós não nos sentamos à mesa para comer – lemos em Plutarco – mas para comer junto. [...] o primeiro elemento que distingue o homem civilizado das feras e dos bárbaros... é a comensalidade: o homem civilizado come, não somente (e menos) por fome, para satisfazer uma necessidade elementar do corpo, mas também (e sobretudo) para transformar a ocasião em um momento de sociabilidade, em um ato carregado de forte conteúdo social e de grande poder de comunicação [...] (FLANDRIN E MONTANARI,1998, p.108)

A habilidade de fazer a comida de santo e do povo de santo não nasce com

as senhoras da cozinha, apesar que elas erem confirmadas pelos voduns e a partir

disso passarem a se dedicar a tarefa que lhes foram imputadas pelas divindades.

Suas vocações não afloram imediatamente, pois mesmo sendo apontadas

para tais cargos, as cozinheiras dos santos passam por um processo de contínuo

aprendizado, até estarem prontas a assumir com a distinção que os voduns

merecem, e assim também poderão ensinar a outras iniciadas. Os integrantes de

outros cargos podem assessorá-las nas tarefas da cozinha e até cumprir com o

papel de ensinar para elas o oficio, mas a responsabilidade de alimentar os deuses

e tudo o que isso acarreta sempre será delas.

Page 142: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

141

Figura 15 – Momento de ensinamentos para Dunúgàn e Sedùgàn

Fonte: Acervo da perquisa, 2017.

A partir dos pressupostos de uma educação tradicional, de preservação dos

costumes e da relação homem/cultura/natureza, se consolida a cosmologia do

sagrado, transmitida geração pós geração. Tal processo implica analisar as etapas

iniciáticas dentro de uma cozinha de santo, e de como estas, fazem desse um lugar

de produção e mediação de conhecimento.

Compreende-se, portanto, que por tratar de um universo onde se processa a

educação e onde circulam saberes em meio as obrigações diárias do terreiro, a

cozinha de santo passa a ter um caráter, imprescindivelmente, de espaço

pedagógico.

O papel que Mãe Jokolosy desempenha junto a sua comunidade e na

sociedade, como educadora, traz um significado mais complexo do que se pode

imaginar, pois perpassa pelo aspecto da identidade para com seu grupo, sua religião

e principalmente para com a identidade desse grupo na sua condição de herdeiros

da cultura afro-brasileira. Segundo ela:

Ao educar os filhos de santo, não faço apenas minha função de sacerdotisa, também estou ajudando a manter o terreiro e

Page 143: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

142

principalmente estou fazendo minha parte para manter a tradição dos voduns. Por isso sou exigente, não aceito filho da casa que não estude os costumes. Para o indivíduo que ama a sua religião, o mínimo que você deve a ela é o domínio do seu conhecimento (Entrevista de Mãe Jokolosy, 5 mar. 2017).

Na cozinha o primeiro momento do processamento dos alimentos inicia com a

escolha dos ingredientes, tarefa que a sacerdotisa Jokolosy não abre mão de

executar. Assessorada por uma das cozinheiras ela prepara na véspera dos rituais o

cardápio, de acordo com as preferências de cada vodun e, às vezes, de acordo com

o que foi solicitado pelos búzios.

O processamento e ingestão dos alimentos produzidos durantes os processos

litúrgicos do candomblé, segundo os membros da casa de Mãe Jokolosy, são

repletos de significados, que vão além da dimensão material. Por isso a escolha dos

ingredientes e a montagem dos pratos não devem ser menosprezadas. Até a

escolha de um ingrediente estragado pode inutilizar todo o prato, inutilizando

também o propósito da oferenda, ou da comemoração.

O estado de quem prepara os pratos também deve ser cuidadosamente

levado em questão. Um ferimento, as regras menstruais, um período de lua e até

algumas circunstancia do momento podem servir de alerta para o impedimento da

cozinheira ou do imolador. Para tanto, desde sua iniciação, as cozinheiras de santo,

recebem educação que irá capacitá-las ao comprometimento com os preceitos e

regras da culinária votiva. Tal aprendizagem, obtida, principalmente, pela atenção,

irá guia-las por toda sua vida, balizando-as nas relações com seus deuses e

tornando-as, a partir de suas vivências, mestras ou senhoras dos saberes da

culinária sagrada.

4.3 O APRENDIZADO DAS SENHORAS DA COZINHA

A dunúgàn, que na maioria das vezes se mostrava no papel de educanda,

agora fazia às vezes de educadora e explicava para as outras senhoras e para mim

sobre como era importante servir a comida de maneira correta.

No momento em que o Kpédjígàn Hunsijé entrava para fiscalizar os trabalhos

das senhoras, que, segundo ele, às vezes pode se prolongar demais devido às

conversas, uma das senhoras o interpelaou sobre os efeitos da folha de mamona.

Page 144: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

143

Sua expressão foi um misto de curiosidade e receio pelo que as senhoras pudessem

ter dito. Nesse momento compreendi que nem tudo poderia ser dito a mim.

Esta situação proporciona o entendimento que o aprendizado das iniciadas na

comida de santo é constante e respeita regras de hierarquia e convívio social, pois

quando sozinha com as outras ajudantes, a dunúgàn parecia ser a autoridade da

culinária do terreiro, ou seja, era ela que fazia o papel de educadora naquele

momento. No entanto, assim que o Kpédjígàn ou a mãe Jokolosy entravam na

cozinha, ela imediatamente retornava à condição de educanda, a espera de mais um

ensinamento.

Assim, instruídas a partir de uma educação na tradição alimentar

afrorreligiosa, que contempla a cultura candomblecista e suas práticas sociais, as

senhoras da cozinha, aprendiam e ensinavam conhecimentos através da comida,

que iam ao encontro de suas origens ancestrais, do amor e devoção aos seus

deuses e, sobretudo, em direção a preservação do candomblé. Brandão (2002)

aponta para uma pedagogia do sagado, responsável pela sobrevivência e

preservação de padrões culturais e identitários, transmitidos de geração a geração,

permeada de valores morais, normas, comportamentos, crenças e linguagem

própria.

Essa pedagogia do cotidiano difere da pedagogia moderna escolacentrista,

pautada na monocultura do saber, enaltecendo a visão científica do processo

educacional, e que não alcança a diversidade de saberes existentes no mundo. É o

caso daqueles aprendidos no cotidiano, como a educação que permeia os hábitos

alimentares afrorreligiosos.

O processo educativo pela educação da atenção, tem a função de habilitar as

futuras gerações para à perpetuação de seus hábitos. Tal aprendizagem,

fundamenta-se também na filosofia de vida e nos saberes tradicionais de

comunidades locais, configura-se em forma de reação a processos expropriatórios e

da destruição de suas crenças e modo de vida. Pressupõe o rompimento com a

monocultura que engessa o saber e o aprisiona em uma caixinha.

Page 145: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

144

5 CONSIDERAÇÕES SOBRE ESSAS E OUTRAS COMERAGENS

Ao concluir esta pesquisa, espero ter contribuído para o esclarecimento sobre

o quão importante é o papel da alimentação para o candomblé, pois, quando se fala

de comida nas religiões de matriz africana, nunca é somente a respeito da sua

dimensão fisiológica, mas, também, como ato cultural, simbólico, sagrado e

educativo.

Um dos maiores aprendizados deste estudo foi o de que o alimento ritual

ofertado, o Ajeun, está ligado ao ciclo da vida e que, ao oferecê-lo às suas

divindades, como os voduns, o filho de santo nutre-se de conhecimentos, que

versam sobre a história, a simbologia e a cultura afrorreligiosa.

Na introdução, procurei demonstrar as motivações pessoais, acadêmicas e

sociais que me levaram ao estudo da alimentação votiva, bem como busquei

evidenciar os objetivos que nortearam a investigação. Almejando posicionar meu

objeto, realizei um recorte, através de um levantamento prévio de artigos, trabalhos

de conclusão de curso, teses e dissertações referentes às temáticas da alimentação,

educação e religiões de matriz africana. Também fiz uma busca exploratória em

terreiros da região metropolitana de Belém, com o intuito de estreitar conhecimento

com as comunidades afrorreligiosas e estabelecer o lócus da pesquisa.

Optei pela comunidade candomblecista Jeje Savalú, a roça Xwe Ace Kpo

Sohun, por um conjunto de motivações, mas, como dito na referida seção, a maior

de todas não veio da pesquisadora, e sim da comunidade pesquisada. Posto que eu

fui escolhida e nada tem a ver com motivos não intencionais. Na verdade, em uma

pesquisa etnográfica, nada pode ser tão intencional quanto os interesses entre

pesquisador e objeto. Tais interesses convergem em uma relação de reciprocidade,

onde a partilha de conhecimentos que auxiliará o pesquisador a desenvolver sua

teoria, também trará visibilidade ao grupo pesquisado, objetivos distintos, porém,

que caminham lado a lado. E, por parte da comunidade pesquisada, havia um

grande interesse em que a pesquisa fosse feita, para somar a outros trabalhos e,

assim, trazer legitimação à linha candomblecista Jeje Savalú, campo árido e ainda

com poucos estudos na região amazônica.

No segundo capítulo, procurei traçar o lugar ocupado pela alimentação na

história, assim como seu espaço no candomblé. Em seguida, optei por um breve

diálogo sobre o percurso seguido pelo candomblé Jeje no Brasil, desde sua

Page 146: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

145

formação, na Bahia, até sua adaptação na Amazônia, em específico, no Pará.

Investiguei o processo originário de suas bases e sua relação com as demais

religiões de matriz africana praticadas localmente, e a relação entre a fundação da

comunidade Xwe Ace Kpo Sohun com a trajetória de vida da sacerdotisa. Por final,

estabeleci um diálogo entre modernidade e tradição, debatendo acerca da

construção de uma tradição reinventada da culinária candomblecista por parte dos

savaluanos.

No capítulo “Cozinha do Axé”, rocurei estabelecer um diálogo entre os

aspectos da culinária atual, inseridos nos hábitos da cozinha candomblecista, que

fogem à percepção de ideal da tradição afrorreligiosa, gerando uma certa tensão em

torno da mentalidade sobre a perda de identidade com a cultura ancestral africana.

Na tentativa de avançar com o tema, investiguei a simbologia e a memória

que perpassam a comida de santo e pela educação mediada através do ato de

produzir e comer os alimentos votivos. A alimentação como facilitadora do processo

de aprendizagem, através da memória, possibilita nutrir de cultura “viva” aqueles que

a consomem.

Constatei que a preparação dos pratos está relacionada diretamente às

características das divindades a quem são ofertados. Portanto, sua simbologia vai

ao encontro das características físicas, psicológicas e elementares com as quais os

deuses se identificam. A alimentação ultrapassa os valores fisiológicos, une o

homem, a sua natureza e a sua crença. A comida, portanto, funciona como elemento

otimizador dos resultados a que se pretende em uma obrigação, Bori, Tasén, entre

outros rituais. Dessa forma verificou-se a presença de uma cosmologia do sagrado,

oriunda de um processo de imbricação das várias dimensões da comida, com seu

papel educativo e pelos símbolos e memórias que são despertadas com o Ajeun, ou

seja, durante a produção e partilha nos rituais alimentares.

Procurei analisar as práticas educativas vivenciadas na cozinha de santo em

uma roça de Candomblé Jeje Savalú, apontando e mapeando, os processos que

fazem dessa cozinha um espaço de aprendizagem e de circulação de saberes da

culinária candomblezeira na Amazônia.

Percebi que a mediação dos saberes na cozinha de santo se dá, muito mais

frequentemente, através de uma linguagem gestual, pela vivência, observação,

oralidade, do que propriamente pela documentação escrita. Não que se ignore a

existência dos caderninhos, e nem que este seja desaconselhado, mas, porque o

Page 147: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

146

exercício de olhar com atenção, de aprender ouvindo e aprender fazendo é tão

importante para a aprendizagem dos costumes africanos quanto a experiência da

escrita, sendo os gestos, o corpo, sons e toda a narrativa importantes para

consolidar as informações na memória.

Finalmente, no último capítulo, direcionei meus esforços ao propósito de

entender o sistema de educação usado pelas “pedagogas da cozinha sagrada” e da

eficácia da mediação dos saberes, assim como da inserção de outros sujeitos no

papel de educadores, mesmo que reconhecendo ser essa função uma prerrogativa

do gênero feminino.

Busquei analisar como a alimentação sagrada, em uma roça de candomblé

Jeje Savalú na Amazônia, é ato potencializador da aprendizagem da atenção e de

construção e mediação de saberes culturais. Tal análise foi possível seguindo o

pressuposto da educação no sentido mais amplo, que considera o ato de comer

como símbolo da cultura de quem o produz.

A função e o papel que cada um ocupa no candomblé é uma das mais caras

lições a se aprender por aqueles que desejam seguir tal religiosidade. Através da

comida, aprende-se a esperar, a contemplar com respeito, a ter humildade, a provar

pitadas de saborosas lições de compaixão, respeito à experiência, resistência e

comprometimento com suas crenças.

Compreende-se, portanto, que, assim como nos demais cômodos do terreiro,

a organização dos processos de aprendizagem ocorridos no universo da cozinha

sagrada são ordenados por uma rígida hierarquia, assegurada pela experiência no

santo e pela vivência e dedicação aos costumes e cultura do Candomblé.

Ao conhecer mais sobre o tema do candomblé, pude observar alguns eixos

tangenciais a esta pesquisa. No entanto, por questões práticas, como a limitação de

tempo, não pude levar a cabo o projeto de desenvolver tais temáticas, deixando para

outro momento os questionamentos, que apontam para novos diálogos a serem

explorados.

Um possível desdobramentos que merece atenção, um olhar sensível e

cuidadoso, são as implicações políticas e militantes que podem ser analisadas à luz

da cozinha de santo. Caso exemplar está na difícil e conflituosa relação entre as

comunidades de terreiro e o poder público que vem, há algumas décadas,

desempenhando, através de atos, posturas públicas e projetos políticos, grande

Page 148: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

147

esforço para deslegitimar as práticas alimentares sagradas das comunidades

afrorreligiosas, em clara demonstração de arbitrariedade e intolerância religiosa.

Nesse sentido, Mãe Jokolosy exerce um papel militante em defesa da cultura

afrorreligiosa, sendo respeitada entre os membros da roça Jeje Savalú, Xwe Ace

Kpo Sohun e de outras comunidades religiosas de matriz afro. Sua prática

educativa pode ser encarada como uma pedagogia ou saber da vivência e do

sagrado, que alia uma forma de ensinar predominantemente carregada de memórias

e mitos e permeada pelo amor e respeito que nutre por sua religião.

Não é possível desvincular essa prática pedagógica da militância politica

exercida pelos sacerdotes da comunidade Xwe Ace Kpo Sohun, que se estende

desde as lutas pela liberdade religiosa e igualdade racial até o direito à

representatividade política das religiões de matriz africana junto aos órgãos e

legislação que legitimam tais credos. Essa postura foi verificada na participação da

sacerdotisa em um encontro, em agosto de 2015, no IV Conferência Estadual de

Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável (CESANS-PA), que abordu os rumos

da política de segurança alimentar para as comunidades afrorreligiosas (Apêndice

B).

Reconheço que este estudo está aquém de desbravar toda a complexidade

que envolve o universo da alimentação sagrada e suas dimensões educativas.

Entretanto, espero ter contribuído para a emergência de novas problematizações

sobre a temática e apontado algumas provocações, sem a pretensão de esgotar ou

concluir definitivamente, mas, somar esforços para a edificação de uma concepção

de educação Educação no sentido mais amplo e democrático, resultante do

aprendizado pela atenção, memória, oralidade e experiência.

A educação e o processo de aprendizagem dos saberes culturais

instrumentalizados pelos savaluanos, por meio da comida de santo, desperta outras

possibilidades de investigação no campo da educação, sobretudo, no que tange à

temática dos processos de ensino-aprendizagem, privilegiando as narrativas,

memórias e a cosmologia de comunidades de santo, de maneira a perpetrar como e

de que forma se pode aprender a partir do ato de produzir e partilhar a comida

sagrada, ou seja, a partir do exercício da comensalidade.

Através da diversidade das narrativas no discurso dos sujeitos e da memória

sobre a relação alimentação-cosmologia do sagrado, foi possível compreender a

estrutura epistemológica dos saberes presentes na comida votiva, por meio de uma

Page 149: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

148

educação da atenção, evidenciada no cotidiano de uma roça de candomblé Jeje

Savalú; questionando-os: com quem aprenderam a feitura da comida votiva?, que

aprendizado foi efetivado?, de que forma apreenderam?, qual a motivação do

aprendizado?

O reconhecimento da diversidade de saberes da comida sagrada produz uma

significativa contingência de problematizações, tais como: que outras interlocuções

podem surgir entre os saberes do cotidiano e a educação da atenção nos terreiros

de candomblé? Seria possivel inserir esses saberes no âmbito da educação escolar

e universitário? Quais benefícios a relação entre a educação da atenção, os saberes

culinários, a cultura afro-brasileira e a cosmologia do sagrado poderiam ofertar à

sociedade? Indagações que postergo aqui para futuras investigações.

Page 150: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

149

REFERÊNCIAS

ABBATE, Francidio Monteiro. O que não mata, engorda: cultura alimentar, mediadores culturais e educação na Amazônia Colonial. 2016. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade do Estado do Pará, Centro de Ciências Sociais e Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Belém, 2016. AGUIAR, Janaina Couvo Teixeira Maia de. Os Orixás, o imaginário e a comida no Candomblé. Revista Fórum Identidades, Itabaiana: UFS, v. 6, n. 11, p. 160-170, 2012. ALBUQUERQUE, Maria Betânia Barbosa. Beberagens indígenas e educação não escolar no Brasil colonial. Belém: FCPTN, 2012. ALGRANTI , Marcia. Pequeno dicionário da gula. Rio de Janeiro: Record, 2000. ALVARENGA, Marcos Junior Santos de. "Cozinha também é lugar de magia": alimentação, aprendizado e a cozinha de um terreiro de candomblé. 2017. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2017. ARON, Jean-Paul. A cozinha: um cardápio do século XIX. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1974. ATAIDE JUNIOR, Adelson. Iyá Ejité: educação e saberes da experiência em uma casa de Candomblé. 2017. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade do Estado do Pará, Belém, 2017. BÂ, Amadou Hampâté. Amkoullel, o menino fula. São Paulo: Pallas Athena; Casa das Áfricas, 2003. BARBARA, Rosamaria. A dança das Aiabás: dança, corpo e cotidiano das mulheres de candomblé. 2002. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade de São Paulo, Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, São Paulo, 2002. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-09082004-085333/pt-br.php. Acesso em: 11 ago. 2017. BARROS, José Flávio Pessoa de. O banquete do rei Olubajé: uma introdução à música sacra afro-brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Ao Livro Técnico, 2009. BASTIDE, Roger. Imagens do Nordeste místico em branco e preto. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1945. BASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. BASTIDE, Roger; FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São Paulo: ensaio sociológico sobre aspectos da formação, manifestações atuais e efeitos do

Page 151: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

150

preconceito de cor na sociedade paulistana. São Paulo, Global, 1959. BENJAMIN, Walter. O narrador: observações sobre a obra de Nicolai Leskov. In: BENJAMIN, Walter et al. Textos escolhidos. São Paulo: Abril, 1980. (coleção Os pensadores). BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1987. BRAGA, Júlio Santana. O jogo de búzios: um estudo da adivinhação no candomblé. São Paulo: Brasiliense, 1988. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Participar-pesquisar. In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues (0rg.). Repensando a pesquisa participante. São Paulo: Brasiliense, 1984. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. 28. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. (Coleção Primeiros Passos). BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A educação como cultura. Campinas: Mercado das Letras, 2002. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 1981. (Coleção Primeiros Passos). CAMPELO, Marilu Marcia. Recontando uma história: a formação e a expansão do candomblé paraense. In: MAUÉS, Raymundo Heraldo; VILLACORTA, Gisela Macambira (Org.). Pajelanças e religiões africanas na Amazônia. Belém: EDUFPA, 2008. CAMPELO, Marilu Márcia; LUCA, Taissa Tavernard. As duas africanidades estabelecidas no Pará. Revista Aulas, n. 4, p. 1-27, abr./jul. 2007. CARNEIRO, Henrique. Comida e sociedade: uma história da alimentação. Rio de Janeiro: Campus, 2003. CARNEIRO, Edison de Souza. Mães de Santo. Província de S. Pedro, Porto Alegre, v. 11, p. 51-53, 1948. CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2004. CASTRO, Yeda Pessoa de. Línguas africanas e realidade brasileira. Revista da FAEEBA, Salvador, v. 10, n. 15, p. 83-91, jan./jun. 2001. Disponível em: https://www.revistas.uneb.br/index.php/faeeba/issue/viewIssue/242/141. Acesso em: 11 ago. 2017.

CASTRO, Yeda Pessoa de. Língua e nação de candomblé. África, n. 4, p. 57-76, 1981. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/africa/article/view/90848. Acesso em: 11 ago. 2017.

Page 152: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

151

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. v. 1. Petrópolis: Vozes, 1994. CHAGAS, Manoel Roberto Ferreira. O sagrado ecológico: relação entre o homem e a natureza no candomblé Jeje Savalú em Belém do Pará . 2014. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) - Universidade do Estado do Pará, Centro de Ciências Sociais e Educação, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Religião, Belém, 2014. CONSEA, Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. África-Brasil, tradição e segurança alimentar: a importância da alimentação e da soberania alimentar na tradição e a segurança alimentar no mundo. - Indicadores e Monitoramento - da Constituição de 1988 aos dias atuais. Salvador (BA): CONSEA; 2012. Disponível em: http://www.ufrgs.br/redesan/1plenaria-permanente-do-forum-nacional-de-seguranca-alimentar-e-nutricional-dos-povos-de-terreiro. Acesso em: 11 Setembro. 2017. CORRÊA, Norton. A cozinha é a base da religião: a culinária ritual no batuque do Rio Grande do Sul. In: CANESQUI, Ana Maria; DIEZ GARCIA, Rosa Wanda. Antropologia e nutrição: um diálogo possível. Rio de Janeiro, Fiocruz, 2005. p. 69-85. COSTA, Renata Silva da. Festa no candomblé, corpo em movimento: um estudo sobre corpo e dança em rituais públicos de candomblé. 2013. TCC (Graduação em Ciências Sociais) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2013. COSTA, Renata Silva da. Iniciação religiosa e processos educativos no terreiro de candomblé Jeje Ilê Asé Gunidá. 2017. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade do Estado do Pará, Centro de Ciências Sociais e Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Belém, 2017. DAMATTA, Roberto. A fábula das três raças ou o problema do racismo à brasileira. In: DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Petrópolis: Vozes, 1981. DARNTON, Robert. O grande massacre dos gatos: e outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1984. D'IORIO, Paolo. La superstition des philosophes critiques: Nietzsche et Afrikan Spir. Nietzsche-Studien, v. 22, n. 1, p. 257-294, 1993. FERRETTI, Sérgio Figueiredo. Comida ritual em festas de tambor de mina no Maranhão. Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 21, p. 242-267, abr./jun. 2011. FLANDRIN, Jean-Louis. A distinção pelo gosto. In: HISTÓRIA da vida privada. 1986. v. 3, p. 267-309. FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da alimentação. v. 2. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.

Page 153: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

152

FONSECA, Thaís Nívea de Lima e. História da educação e história cultural. In: VEIGA, Cynthia Greive; FONSECA, Thaís Nívea de Lima e (Orgs.). História e historiografia da educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1989. GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1997. GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. GUILHON, Flavio; SALAS, Luiza Franklin. Valorizando os saberes tradicionais de Candomble-Uma estrategia de combate a intolerancia religiosa. In: Anais do Congresso Africanidades e Brasilidades. 2017, p. 1 – 12.. HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (Org.). A invenção das tradições. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1997. INGOLD, Tim. Humanidade e animalidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 10, n. 28, p. 39-54, 1995. INGOLD, Tim. When ANT meets SPIDER; social theory for arthropods. In: KNAPPETT, Carl; MALAFOURIS, Lambros. (Ed.). Material agency: towards a non-anthropocentric approach. New York: Springer, 2008. INGOLD, Tim. Da transmissão de representações à educação da atenção. Educação, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 6-25, jan./abr. 2010. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/view/6777. Acesso em: 11 ago. 2017. LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. História: novos problemas, novas abordagens, novos objetos. v. 3. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. LÉVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido. São Paulo: Cosac Naify, 2004. (Mitológicas, 1). LIMA, Vivaldo da Costa. O conceito de "nação" nos candomblés da Bahia. Afro-Ásia, Salvador, n. 12, p. 65-90, 1976. Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/afroasia/article/view/20774. Acesso em: 12 ago. 2017. LIMA, Vivaldo Costa. Uma festa de xangô no opô afonjá. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL DE ESTUDOS LUSO BRASILEIROS. [Anais...], 1959. LODY, Raul. Alimentação ritual. Ciência & Trópico, Recife, v. 5, n. 1, p. 37-47, jan./jun. 1977. Disponível em: https://periodicos.fundaj.gov.br/CIC/article/view/176. Acesso em: 12 set. 2017.

Page 154: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

153

LODY, Raul. Santo também come. Rio de Janeiro: Pallas, 2004. LODY, Raul. Tem dendê, tem axé: etnografia do dendezeiro. Salvador: Pallas, 1992. LOZANO, Jorge Eduardo Aceves. Práticas e estilos de pesquisa na história oral contemporânea. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (Coord.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1996. LUCA, Taissa Tavernard de. Devaneios da memória: a história dos cultos afro-brasileiros em Belém do Pará na versão do povo-de-santo. 1999. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) - Universidade Federal do Pará, Belém, 1999. MACÊDO, Sidiana da Consolação Ferreira de. Daquilo que se come: uma história do abastecimento e da alimentação em Belém (1850-1900). 2009. Dissertação (Mestrado em História Social da Amazônia) - Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, Belém, 2009. Disponível em: http://repositorio.ufpa.br/jspui/handle/2011/4581. Acesso em: 11 ago. 2017. MACÊDO, Sidiana da Consolação Ferreira de. A cozinha mestiça: uma história da alimentação em Belém (fins do século XIX a meados do século XX). 2016. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal do Pará, Belém, 2016. Disponível em: http://repositorio.ufpa.br/jspui/handle/2011/8849. Acesso em: 12 set. 2017. MACIEL, Maria Eunice. Cultura e alimentação ou o que têm a ver os macaquinhos de Koshima com Brillat-Savarin? Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 145-156, 2001. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ha/v7n16/v7n16a08.pdf. Acesso em: 11 ago. 2017. MACHADO, Vanda. Educação iniciática: um estudo com o pensamento africano recriado na diáspora. In: Encontro de Pesquisa Educacional do Norte e Nordeste, 18., 2007, Maceió. Anais... Maceió: UFAL, 2007. MALlNOWSKI, Bronislaw. Argonautas do pacífico ocidental. 3. ed. São Paulo: Abril, 1984. MENESES, Ulpiano T. Bezzerra de. A cultura material no estudo das sociedades antigas. Revista de História, São Paulo, n. 15, p. 103-112, 1983. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/61796. Acesso em: 12 ago. 2017. MONTANARI, Massimo. Comida como cultura. São Paulo: Senac, 2013. MOTA NETO, João Colares da. A educação no cotidiano do terreiro: saberes e práticas culturais do tambor de mina na Amazônia. 2008. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade do Estado do Pará, Centro de Ciências Sociais e Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Belém, 2008.

Page 155: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

154

NADALINI, Ana Paula. Comida de santo na cozinha dos homens: um estudo da ponte entre alimentação e religião. 2009. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2009. NADALINI, Ana Paula. “O nosso missal é um grande cardápio”: candomblé e alimentação em Curitiba. Angelus Novus, n. 3, p. 310-322, maio 2012. Disponível em: http://www.usp.br/ran/ojs/index.php/angelusnovus/article/view/145. Acesso em: 11 ago. 2017. PARÉS, Luis Nicolau. A formação do candomblé: história e ritual da nação Jeje na Bahia. Campinas: Unicamp, 2007. PESEZ, J. M. História da cultura material. In: LE GOFF, Jacques (Org.). A história nova. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. POULAIN, J. P. Sociologias da alimentação: os comedores e o espaço social alimentar. Florianópolis: Ed. UFSC, 2009. PRANDI, Reginaldo. Os candomblés de São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1991. PRANDI, Reginaldo. Herdeiras do axé: sociologia da religiões afro-brasilieras. São Paulo: Hucitec, 1996a. PRANDI, Reginaldo. Religião paga, conversão e serviço. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 45, p. 65-77, jul. 1996b. PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. PRANDI, Reginaldo. O Brasil com axé: candomblé e umbanda no mercado religioso. Estudos Avançados, São Paulo, v. 18, n. 52, p. 223-238, 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ea/v18n52/a15v1852.pdf. Acesso em: 5 out. 2017. QUEIROZ, Eça de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1997. 4 v. QUERINO, Manuel. A arte culinária na Bahia. Salvador: Progresso,1928. QUERINO, Manuel. A arte culinária na Bahia. Salvador: Edições. 1938. QUERINO, Manuel. A raça africana e os seus costumes. Salvador: Progresso, 1955. QUERINO, Manuel. Costumes Africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2006. QUINTAS, Gianno Gonçalves et al. Entre maracás, curimbas e tambores: pajelanças nas religiões afro-brasileiras. 2007. RIBEIRO, René. Cultos afro-brasileiros do Recife: um estudo de ajustamento social. In: HUTZLER, Celina Ribeiro (Org.). René Ribeiro e a antropologia dos cultos

Page 156: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

155

afro-brasileiros. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2014. RODRIGUES, Raymundo Nina. O animismo fetichista dos negros bahianos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1935. SABBAG, PÉRCIA HELENA. Fotografia gastronômica: um convite a "comer com os olhos". 2014. Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Universidade Paulista, São Paulo, 2014. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. São Paulo: Cortez, 2000. SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. SANTOS, Daniela Cordovil Corrêa dos. Religiões de matriz africana no Pará: entre a política e o ritual. PARALELLUS, Recife, v. 3, n. 5, p. 59-73, jan./jun. 2012. SANTOS, Vagner José Rocha. O sincretismo na culinária afro-baiana: o acarajé das filhas de Iansã e das filhas de Jesus. 2013. issertação (Mestrado em Cultura e Sociedade) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013. SILVA, Anaiza Vergolino. Os cultos afro no Pará. In: CONTANDO a história do Pará: diálogos entre a História e a Antropologia. Belém, PA: Ed. Motion, 2003. SILVA JR, Carlos da. Ardras, minas e jejes, ou escravos de “primeira reputação”: políticas africanas, tráfico negreiro e identidade étnica na Bahia do século XVIII. Almanack, n.12, p.6-33, 2016. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/alm/n12/2236-4633-alm-12-00006.pdf. Acesso em: 11 ago. 2017. SOUZA, Angelo José Sátyro de. Alimentação: antropologia, candomblé e nutrientes. Barcelona, 2006. SOUSA JÚNIOR, Vilson Caetano de. O banquete sagrado: notas sobre os 'de comer' em terreiro de candomblé. Salvador: Atalho, 2009. SOUSA JÚNIOR, Vilson. Caetano. Candomblé é cozinha. 2016. Disponível em: http://www.okitalande.com.br/novosassuntos17.htm. Acesso em 11 ago. 2016. THOMPSON, Edward Palmer. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos. Salvador: Corrupio, 1987. VOGEL, Arno; MELLO, Marco Antônio da Silva; BARROS, José Flávio Pessoa de.

Page 157: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

156

Galinha d'Angola: iniciação e identidade na cultura afro-brasileira. Rio de Janeiro: Pallas, 2001. WOORTMANN, Klaas. Cosmologia e geomancia: um estudo da cultura Yorùbá-Nagô. In: Anuário Antropológico. 1977. Disponível em: http://www.dan.unb.br/images/pdf/anuario_antropologico/Separatas1977/anuario77_woortmann.pdf. Acesso em: 12 ago. 2017.

Page 158: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

157

APÊNDICE A – TERMO DE CONSENTIMENTO

Page 159: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

158

APÊNDICE B – FONTES CONSULTADAS

Fontes de Imprensa e Periódicos:

Notícias da Câmara de São Paulo (13/04/2012)

Revista Gula (02/2005)

Revista Antropologia e nutrição: um diálogo possível (01/2005)

Fontes orais (entrevistas concedidas à autora por):

Gàniyakú ou Mãe (Sacerdotisa, maior cargo da roça savaluana)

Mèhùnàn/Mehuntó ou Mãe/Pai pequeno (Sacerdotes, segundos na hierarquia da

roça savaluana)

Alguns Ekedjé

Kpédjígàn

Senmato ou Ahun sémã

Vodunsí

Voduns

Senhoras da cozinha :

Dagàn

Dunúgàn

Sedúgán

Page 160: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

159

APÊNDICE C – ROTEIRO DE ENTREVISTA

Identificação

Idade:

Sexo:

Cargo na religião:

Roteiro

1) Para você, o que é o Candomblé Jeje?

2) Você sabe a origem de sua religião?

3) Para você, o que são os Orixás, Voduns, Caboclos?

4) Qual o papel da alimentação para o candomblé?

5) Conte como foi sua trajetória na religião.

6) Que importância ocupa a religião no seu cotidiano?

7) Na cozinha ou no terreiro quais são suas tarefas/obrigações? Você gosta de

desenvolvê-las? Por quê?

8) Existe hierarquia no candomblé? Qual a hierarquia que você ocupa na cozinha

de santo?

9) O que é a comida do axé para você?

10) O que são os preceitos e tabus na culinária candomblecista?

11) Como foi sua iniciação? O que foi preciso para você iniciar? Como foi o

processo?

12) Você optou por cozinhar? O que lhe levou a isso?

13) Você aprendeu a cozinhar no terreiro? O que aprendeu? O que não aprendeu?

Como aprendeu?

14) Quando está cozinhando, como descreveria o que vive e sente?

15) Quais os saberes que a comida te proporcionou? O que mudou?

16) Para você, o que é educação? Acha que existe educação ou formas de

ensinamentos na comida sagrada?

Sim ( ) Não ( ) Se sim, como ocorre? Se não, por quê?

17) O que você já aprendeu na cozinha de santo (rituais, crenças, práticas,

mitologias, orações, danças, doutrinas)? Como aprendeu? Essas aprendizagens

lhe foram importantes no seu dia-a-dia?

18) A comida possui simbologia? Quais?

Page 161: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

160

19) Quais aspectos religiosos se aprende/ensina com a feitura e a partilha da

comida de santo (Ajeun)? O que ensina? Como ensina? Para quem? Onde

ensina? Quando ensina?

20) Você se considera um(a) educadora/aluno?

Page 162: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

161

ANEXO A – GLOSSÁRIO

A

Agέ (Agué): vodun das plantas, folhas e da caça.

àgbò: carneiro

ako/henu: família, linhagem familiar, clã.

amà: folha, planta.

àtín: árvore

àtinmévodun: vodun que vive na árvore.

àtínsá: árvore onde está o vodun.

Avimaje: vodun da família de Sakpata.

àyǐ: terra

Àyǐzàn: vodun da memória ancestral (jeje-mahi). Senhora dos mercados; esteira da

terra.

Azaká: vodun originário de Savalu. Caçador.

Azànsú/Azònsú: um dos nomes de Sakpatá; homem da esteira/homem doente.

Azawani: vodun da família de Sakpatá.

Azli (Aziri): vodun das águas, representada como uma serpente.

B

Bafono Deká: vodun representado por uma cobra com cabeça de crocodilo.

Bakonò: sacerdote de Fá, o mesmo que babalawô para os nagôs.

Bakuxé (lê-se bakurrê): prato de barro.

Bosalabe: vodun feminino da família de Dan, Irma de Bosuko.

Bosuko: vodun da família de Dan.

D

Dagbosi aó: pedido de bênção do iniciado cujo vodun pertence à família de Hevioso,

para um sacerdote de outra família.

dahún: conjunto de três tambores.

Derrirró (grafa-se ɖɛxixò): ato de rezar.

Dan: serpente mitológica

dàn: serpente, cobra

Danbadahwedó/Dambala: grande serpente (vodun).

Page 163: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

162

Dangbέ: serpente da vida, conhecido no Brasil como Gbέsén.

Dangbέsén: assentamento do vodun Dangbέ.

dokwín: batata-doce.

E

ekidi: acaçá vermelho.

Eku: a Morte (divindade).

Etemi: alguém com mais tempo de “santo”. O mesmo que egbomi para os nagôs.

Ewá: vodun feminino das famílias de Dan e Sakpatá.

F

Fá/Gbadú: divindade da advinhação.

Fáká: cabaça para consultar Fá.

G

Găyăkú: um título sacerdotal do jeje-mahi.

gannyikpén (gaimpê): Ogã auxiliar do kpénjígan

gankutó: ogã responsável pelo rito aos ancestrais e por Ayizan.

gantó: ogã que toca o instrumento gan.

Gbadé: vodun da família de Hevioso.

gbé (bê): voz, fala, linguagem, língua.

gbέ (bé): vida.

Gŭ: vodun dos metais e da guerra.

H

Henugán: chefe de uma família.

hùn: o mesmo que vodun

hún: ato de o vodun dançar; “tomar hún”.

hŭn: tambor.

hùndoté: o mesmo que abiasé para os nagôs.

Hùngán: sacerdote ou sacerdotisa de vodun, espécie de “avô ou avó de santo”

Hùngbónò/Hùngbónà: sacerdote ou sacerdotisa do vodun (“pai ou mãe de muitos

voduns”)

Hùnsó: cargo que designa a mãe pequena.

Page 164: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

163

Hŭntɔ: “pai do tambor”.

hùnsì: o mesmo que vodunsì.

J

Jĭ-vodun: vodun do céu.

Jwá: rito semelhante ao bori dos nagôs.

L

Legbá: divindade análoga ao orixá Exú dos yorubás.

Lisá: divindade co-responsável pela criação.

Lŏko: “Chlorophora Excelsa”. Esta árvore é frequentemente utilizado como um apoio

para os voduns. Vodun Loko – divindade que habita dentro da árvore, senhor da

memória ancestral.

M

M jitɔ : sacerdote ou sacerdotisa cujo vodun pertence à família de Dan.

N

Nănà Búlúkú: divindade originária de Dassa-Zume.

nă/naé/năjinò/nò: mãe.

O

osó: cavalo.

Ògŭ/Ògŭn: vodun dos metais e da guerra (Gŭ).

Olisá/Olisasá: vodun Lisá (jeje-mahi)

P

Parará/Kpadadá/Pararaligbú: vodun Sakpatá feminino.

S

Sakpatá: divindade da varíola e da terra. Rege todas as enfermidades de pele.

Sògbó: Grande Raio – vodun da família do raio.

Page 165: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

164

T

ta: cabeça

tasén: cultuar a cabeça; o mesmo que borí para os nagôs.

tògbósì: Esposa (ou mulher) da água em grande quantidade (Azli Tògbósì).

Divindades infantis da realeza do Dahomey.

To-vodun: vodun que protege aldeias.

Tò-vodun: vodun aquático.

tɔ -vodun: vodun patriarca.

V

Vodúnsén: cultuar o vodun.

Vodúnxwé/kwé: casa onde se cultua o vodun.

Vodúnsì: pessoa consagrada ao vodun.

W

we: você.

X – com som de “RR”

xwé/kwé: casa.

xó: fala.

Xú: mar, oceano. Vodun do mar.

Page 166: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

165

ANEXO B – PLENÁRIA DO FONSANPOTE

Page 167: VODUN TAMBÉM COME: EDUCAÇÃO E SABERES DA COMIDA DE …ccse.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/dissertacoes/12/franciliete_dos... · FRANCILIETE DO SOCORRO CAMPOS SOUZA VODUN TAMBÉM

Universidade do Estado do Pará

Centro de Ciências Sociais e Educação Programa de Pós-Graduação em Educação

Travessa Djalma Dutra, s/n – Telégrafo 66113-200 – Belém - PA

www.uepa.br www.uepa.br/mestradoeducacao