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    HOMICDIO ____________________________

    1.1 CONCEITO, OBJETIVIDADE JURDICA E SUJEITOS DOCRIME

    no art. 121 matar algum: pena recluso, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos que o Cdigo Penal brasileiro protege a vida humana extra-uterina. Sobre o homicdioescreveu Nelson Hungria:

    Como diz IMPALLOMENI, todos os direitos partem do direito de viver, pelo que, numa ordem lgica, o primeiro dos bens o bem da vida. Ohomicdio tem a primazia entre os crimes mais graves, pois o atentadocontra a fonte mesma da ordem e segurana geral, sabendo-se que todos os

    bens pblicos e privados, todas as instituies se fundam sobre o respeito existncia dos indivduos que compem o agregado social.1

    Homicdio a destruio da vida humana extra-uterina, por outro homem. A destruio da vida intra-uterina poder configurar uma das modalidades do crime deaborto, adiante abordado.

    A vida humana tem comeo e fim. S h homicdio aps o nascimento com vidae antes da morte. Necessrio, portanto, determinar esses dois momentos que delimitamo perodo de existncia da vida humana, protegida no art. 121 do Cdigo Penal. A leino estabelece quando comea a vida; portanto, cabe doutrina buscar o socorro dacincia para definir esse termo.

    A grande maioria dos doutrinadores concorda com a idia de que a vida extra-uterina comea com oincio do parto. Parto o conjunto de processos mecnicos, fisiolgicos e psicolgicos tendentes a expulsar do ventre materno o feto chegado atermo ou j vivel 2, que tem como marco inicial o rompimento do saco amnitico.

    1 HUNGRIA, Nelson.Comentrios ao Cdigo Penal . 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1955. v. 5, p. 26.2 GOMES, Hlio. Medicina legal . 32. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1997. p. 602.

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    Deve-se considerar iniciado o parto cirrgico cesariana com a primeira incisorealizada no corpo da gestante, pelo obstetra.

    Iniciado o parto, h vida extra-uterina e sua destruio ser homicdio, ouinfanticdio, como se ver adiante. Antes do incio do parto, poder haver aborto.

    No necessrio que o ser seja vivel. Haver homicdio ainda que o serhumano no tenha viabilidade. Mesmo quando se tratar de ser incapaz de sobreviver,ainda assim sua vida est protegida. Nasceu, ainda que venha a morrer segundos ouminutos depois, tem a proteo do Direito. No necessrio que tenha respirado, poish situaes em que o ser viveu sem ter respirado.

    Seres monstruosos, verdadeiras aberraes, recebem igual proteo atribudaaos ditos seres humanos normais, da que basta que tenha nascido de mulher para que

    sejam considerados oalgum da norma penal incriminadora do art. 121 do CdigoPenal.

    De se perguntar: se um ser produzido a partir de fecundaoin vitro vier a sergerado fora do tero de uma mulher isto , numa mquina que reproduza ascondies do tero ser considerado oalgum do art. 121? Se a resposta forpositiva, destru-lo ser homicdio.

    A hiptese no um absurdo ou apenas tema de fico cientfica. No est

    muito distante o tempo em que se poder presenciar esse progresso da cincia. Ser eleum ser humano?

    Penso que seres produzidos a partir de clulas do que hoje denominadoserhumano, inclusive os clones humanos, devem, em qualquer hiptese, merecer aproteo do Direito Penal, ainda quando venham a ter algumas ou muitascaractersticas diferentes das dos atuais humanos.

    Nesse futuro, que no est to distante, bastar doutrina alterar o conceitoatualmente aceito de humano ser nascido de mulher para considerar algum qualquer ser originado, de qualquer modo, a partir de clulas obtidas, direta ouindiretamente, de mulher. Aquele ser que tiver sido produzido a partir de clulas demulher ou de clulas que vieram de outro ser que adveio de mulher ser humano e,portanto, ter sua vida protegida pelo Direito Penal.

    O termo final da vida a morte. o fim da vida. Indispensvel determinar seumomento, quando o Direito deixa de proteger a vida humana, posto que, a partir da,no h mais vida, apenas o cadver, o corpo morto do homem, que tambm vai merecer

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    proteo penal, como se ver, mais adiante.

    A determinao do momento da morte cada vez mais importante nos diasatuais, uma vez que muito se avanou nas tcnicas de transplantes de rgos decadveres para seres vivos, criando a possibilidade concreta de extrao criminosa departes de corpo ainda vivo, o que, evidncia, constitui conduta criminosa.

    O critrio aceito pela Doutrina e pela Jurisprudncia o da morte cerebral ouenceflica: a destruio anatmica do crebro em sua totalidade. A Lei n 9.434, de 4de fevereiro de 1997, que dispe sobre a remoo de rgos, tecidos e partes do corpohumano para fins de transplante e tratamento, estabelece, em seu art. 3 , que:

    A retirada post mortem de tecidos, rgos ou partes do corpo humanodestinados a transplantes ou tratamento dever ser precedida de diagnstico demorte enceflica , constatada e registrada por dois mdicos no participantesdas equipes de remoo e transplante, mediante a utilizao de critriosclnicos e tecnolgicos definidos por resoluo do Conselho Federal de Medicina.

    Assim dispondo, a lei definiu quando termina a vida: no momento em queocorre a chamada morte enceflica, determinando ao Conselho Federal de Medicina(CFM) que, atravs de resoluo, estabelea os critrios clnicos e tecnolgicos a serem

    utilizados para sua constatao.O CFM cumpriu a ordem legal atravs da Resoluo n 1.480/97, assim

    dispondo:

    Art. 1 A morte enceflica ser caracterizada atravs da realizao de examesclnicos e complementares durante intervalos de tempo variveis, prprios paradeterminadas faixas etrias. Art. 2 Os dados clnicos e complementares observados quando dacaracterizao da morte enceflica devero ser registrados no termo dedeclarao de morte enceflica anexo a esta Resoluo. Pargrafo nico. As instituies hospitalares podero fazer acrscimos ao presente termo, que devero ser aprovados pelos Conselhos Regionais de Medicina da sua jurisdio, sendo vedada a supresso de qualquer de seus itens. Art. 3 A morte enceflica dever ser conseqncia de processo irreversvel e decausa conhecida. Art. 4 Os parmetros clnicos a serem observados para constatao de morte

    enceflica so: coma aperceptivo com ausncia de atividade motora supra-espinal e apnia.

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    Art. 5 Os intervalos mnimos entre as duas avaliaes clnicas necessrias paraa caracterizao da morte enceflica sero definidos por faixa etria, conformeabaixo especificado:a) de 7 dias a 2 meses incompletos 48 horas

    b) de 2 meses a 1 ano incompleto 24 horasc) de 1 ano a 2 anos incompletos 12 horasd) acima de 2 anos 6 horas

    Art. 6 Os exames complementares a serem observados para constatao demorte enceflica devero demonstrar de forma inequvoca:a) ausncia de atividade eltrica cerebral ou,b) ausncia de atividade metablica cerebral ou,c) ausncia de perfuso sangnea cerebral.

    Art. 7 Os exames complementares sero utilizados por faixa etria, conformeabaixo especificado:a) acima de 2 anos um dos exames citados no Art. 6 , alneas a, b e c;b) de 1 a 2 anos incompletos: um dos exames citados no Art. 6 , alneas a, b ec. Quando optar-se por eletroencefalograma, sero necessrios 2 exames comintervalo de 12 horas entre um e outro;c) de 2 meses a 1 ano incompleto 2 eletroencefalogramas com intervalo de 24

    horas entre um e outro;d) de 7 dias a 2 meses incompletos 2 eletroencefalogramas com intervalo de 48horas entre um e outro.

    O termo final da vida foi clara e precisamente definido pelo ordenamento jurdico brasileiro. Com a morte, portanto, no h mais ser humano, apenas o cadver.Sua destruio no poder configurar homicdio, posto que no h maisalgum , esim o corpo morto do que foi algum. Poder caracterizar um dos crimes contra ocadver, descritos nos arts. 211 e 212 do Cdigo Penal.

    No passado, alguns doutrinadores entendiam que o homicdio era a destruioviolenta e injusta da vida de um homem. Evidente que esses dois componentes nointegram o tipo de homicdio. No indispensvel que a destruio seja causada comemprego de violncia, posto que possvel cometer o homicdio sem ela. Quanto injustia, de ver que no integra o tipo de homicdio, mas a prpria ilicitude. Naesfera da tipicidade do homicdio, no se cogita da injustia da conduta ou do fato, oque se resolve no mbito da ilicitude.

    Em sntese: homicdio a destruio da vida humana extra-uterina, praticadapor outro ser humano. A destruio da prpria vida suicdio, fato atpico, e a da vida

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    intra-uterina poder ser aborto (arts. 124, 125 e 126 do Cdigo Penal).

    Sujeito ativodo homicdio qualquer pessoa. Haverinfanticdio, se a mematar o prprio filho, durante o parto ou logo aps, sob influncia do estado puerperal(art. 123 do Cdigo Penal).

    Sujeito passivodo homicdio algum, qualquer pessoa, salvo se o recm-nascido, morto pela prpria me durante o parto ou logo aps, sob a influncia doestado puerperal (art. 123 do Cdigo Penal).

    1.2 HOMICDIO DOLOSO

    Contm o pargrafo nico do art. 18 do Cdigo Penal norma geral segundo a

    qual, salvo os casos expressos em lei, ningum pode ser punido por fato previstocomo crime, seno quando o pratica dolosamente . A ordem para o legislador a deconstruir tipos dolosos e s excepcionalmente, ao lado de alguns, criar tambm tiposculposos. Assim, os tipos penais so construdos incluindo o dolo como um de seuselementos, sendo desnecessria a meno expressa a esse elemento subjetivo. No serdoloso o tipo quando a norma, expressamente, exigir a culpa, em sentido estrito, comouma de suas elementares. Por isso, o tipo penal do art. 121 do Cdigo Penal deve serlido assim:matar algum dolosamente .

    Dolo a conscincia e vontade de realizar o tipo legal de crime. Tratando-se decrime de resultado, haver homicdio doloso quando o sujeito ativo realizar umaconduta com conscincia e vontade de produzir o evento morte do sujeito passivo dolo direto ou determinado , ou quando, consciente de que sua conduta capaz deproduzir a morte, mesmo sem a desejar, o agente no se importar com sua produo,isto , aceit-la, se ela acontecer dolo eventual .

    Homicdio com dolo direto aquele em que o agente prev que, com sua

    conduta, causar a morte da vtima e a realiza exatamente com a finalidade de que amorte ocorra. Como odolo a previso do resultado (conscincia) e a vontade deproduzi-lo um elemento subjetivo, portanto, verificvel no interior da psique doagente , sua demonstrao, em algumas situaes, no tarefa das mais fceis.

    Homicdio com dolo eventual aquele em que o agente, prevendo que suaconduta poder causar a morte da vtima, realiza-a sem a finalidade de matar, mas, se a vtima morrer, esse resultado lhe ser absolutamente indiferente. No quer matar, mas,se matar, tudo bem . A demonstrao do dolo eventual ainda muito mais difcil que ado dolo direto.

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    Deve o aplicador da lei realizar um raciocnio lgico com base nascircunstncias que cercaram o fato, para deduzir a presena do dolo. Analisar a aomaterial e obter, dela, a certeza de que o agente previra o resultado e o desejara, ou,pelo menos, nele consentira. No tarefa simples e fcil.

    Induvidoso que aquele que, ao ver uma pessoa, pensa em disparar contra suacabea ou seu trax um projtil de arma de fogo tem plena conscincia de que, se agir, vai atingi-la, bem assim de que o ferimento causar, muito provavelmente, sua morte.Tendo essa conscincia, fazendo essa previso, e mesmo assim agindo, s lgicoconcluir que queria produzir o resultado.

    A considerao sobre o instrumento utilizado, a localizao da leso produzida,as relaes entre agente e vtima, os antecedentes do fato, o local em que se deu, e

    acerca de outras circunstncias que envolvem o acontecimento indispensvel paraque se possa concluir pela existncia do dolo na conduta do sujeito.

    Principalmente quando se tratar de dolo eventual, aquele em que o sujeito,mesmo prevendo o resultado morte, e no o desejando, age aceitando-o, se eleeventualmente acontecer. Esse dolo de mais difcil demonstrao, porque,encontrando-se na esfera do pensamento do agente, sua atitude interna a de noquerer a morte, mas nela consentir, aceitando-a, se ela ocorrer. de difcil verificao,porque muito se aproxima daquela atitude interna de prever a morte, no desejar econfiar, sincera, mas levianamente, que ela no acontecer, a qual no configura dolo,mas culpa consciente.

    Veja-se o seguinte exemplo: Joo, dirigindo seu veculo, v sua frente apedestre Maria. Joo pensa: Vou assustar Maria, passando com meu carro bem prximo dela.

    previsvel, como bvio, que com a conduta que pretende realizar poder,sem desejar, atropelar Maria. E Joo faz essa previso. A seu lado, est Jos, que o

    adverte do perigo. Provado est, portanto, que Joo fez a previso. Todavia, Joo podetomar duas atitudes internas: 1 Responde para Jos: Sei que possvel atingi-la, masno se preocupe, Jos, eu no vou atropel-la. Sou exmio motorista. No h perigo. Em seguida, Joo impulsiona seu veculo e, sem desejar, nem aceitar, acaba poratropelar Maria, causando-lhe a morte. 2 Responde para Jos: Sei que possvel atingi-la, no quero, mas se acontecer, aconteceu. No me importo. Em seguida Joomovimenta seu veculo e acaba por atropelar e matar Maria.

    Na primeira hiptese, Joo agiu sem dolo eventual. Na segunda, agiudolosamente, pois, tendo previsto o que poderia acontecer, aceitou o resultado que, de

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    fato, aconteceu.

    No exemplo dado, com os desdobramentos possveis, ficou fcil demonstrar aatitude interna do sujeito, graas presena de uma testemunha do fato, que poderrelatar exatamente o que se passou na cabea do agente. Na realidade, todavia, umatestemunha presencial honesta e sincera nem sempre comparece em juzo para facilitara tarefa do julgador.

    Analisando o mesmo exemplo, tal qual ocorreu, porm sem a testemunhapresencial, a tarefa do julgador ser mais difcil. Como poder o juiz identificar apresena ou a ausncia do dolo eventual?

    Primeira indagao importante: Joo e Maria eram conhecidos? Eram amigos?Se eram conhecidos, possvel crer na hiptese de que Joo pretendia, mesmo, aplicar

    um susto em Maria. Se no eram conhecidos, no se pode, com segurana, crer nisso.Se conhecidos e amigos, no tendo Joo nenhum motivo para causar algum mal para a vtima, possvel concluir que ele no tenha aceitado, anudo, consentido na morte. Se,porm, eram conhecidos e inimigos, ficar difcil acolher a alegao de no-aceitaodo resultado por parte de Joo.

    Em qualquer caso, penso, a atitude de Joo de promover umabrincadeira divertir-se com algo to perigoso impe sua compreenso como hiptese dedesconsiderao para com o bem jurdico, afastando, assim, a prpria idia de no-aceitao do resultado morte.

    Analise-se o caso do atirador de facas, do circo, que tem como parceira doespetculo sua prpria mulher. H anos, apresentam-se em pblico, sem que jamaistenha ocorrido qualquer acidente. At que um dia, ao atirar uma das facas, ele atinge emata sua esposa. H homicdio doloso ou culposo?

    Como descobrir a presena ou ausncia de dolo? Tarefa difcil, mas noimpossvel.

    As investigaes podem levar ao conhecimento da informao de que, nosltimos dias, o marido desconfiava de que ela o traa, tendo-a visto nos braos dotrapezista, na noite anterior ao fato. Uma testemunha vira-o presenciando o encontrodos amantes, que nada perceberam. Levada essa informao autoridade policial, estapode concluir que na verdade o atirador aproveitou-se da situao para simular umacidente, a fim de fugir da acusao de homicdio doloso. Novas investigaes levaro verdade.

    Se, porm, nada se descobrir acerca da existncia de um motivo para a prticado homicdio, a concluso inexorvel haver de ser a de que o atirador nem quis, nem

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    consentiu na morte da esposa que tanto amava. Nesse caso, no haver dolo. Ausente odolo, poder haver homicdio culposo ou um indiferente penal.

    Importante discusso, que nos dias atuais ganha cada vez maior importncia,diz respeito aos homicdios praticados no trnsito, especialmente aqueles provocadospor conduo perigosa por parte de jovens que se do prtica dos chamados rachas.O grande problema saber: quem provoca morte durante os rachas age dolosa ouculposamente?

    No passado, doutrina e jurisprudncia eram quase sempre unnimes emconcluir pela ausncia de dolo, simplesmente por ter sido praticado o homicdio notrnsito, com o uso de um veculo automotor, o que, evidncia, no correspondia prpria realidade desses infaustos acontecimentos, nem atendia s necessidades de

    proteo do bem jurdico. certo que a grande maioria dos homicdios praticados no trnsito , mesmo,

    culposa, por terem seus agentes se conduzido com negligncia, imprudncia ouimpercia, no querendo, nem aceitando, portanto, o resultado morte. Em muitassituaes, nem mesmo a previso feita pelo condutor do veculo, de modo que a nose pode falar em culpa consciente, mas culpa inconsciente.

    Na situao em que o agente participa de um racha, todavia, a situao bemoutra. No se trata de mera inobservncia do dever de cuidado objetivo, que ocorrequando condutores de veculos desrespeitam o limite de velocidade, realizandomanobras imprudentes ou comportando-se com impercia ou negligncia.

    No racha, as pessoas organizam-se para uma competio sem qualquer outramotivao como ocorre no trfego de veculos nas cidades. Querem simplesmenteextravasar certos sentimentos de frustrao pessoal. O objetivo se exibirem, e nadamais.

    Ora, essa atitude interna , por si s, reveladora da profunda desconsideraodos praticantes de rachas para com os bens jurdicos que se colocam a sua frente: vidas humanas, integridades corporais e mesmo bens materiais. O simples fato de sededicarem a esse pretenso esporte em via pblica j suficiente para demonstrar queno esto preocupados com a possibilidade de agredirem algum bem jurdico. No o valorizam, no se preocupam com sua provvel leso. No se importam com suapreservao. Move-lhes apenas a busca do prazer individual, ainda que, para alcan-lo, outros sejam prejudicados.

    Da que no se pode concluir que aqueles que praticam tais condutas estejamimbudos daquela atitude interna de no-aceitao, sincera porm leviana, da

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    possibilidade da causao do resultado lesivo indesejado. Deve-se, ao contrrio,concluir no sentido de que, tendo-se conduzido com indiferena para com os bens jurdicos em sua volta, que podem ser atingidos pelos movimentos que produzem comseus veculos, esto, com esse comportamento, aceitando a possibilidade concreta de

    lesion-los, da que sua conduta dolosa, com dolo eventual.

    Nesse sentido, vem posicionando-se o Superior Tribunal de Justia:

    No se pode generalizar a excluso do dolo eventual em delitos praticados notrnsito. Na hiptese de racha , em se tratando de pronncia, a desclassificaoda modalidade dolosa dehomicdio para a culposa deve ser calcada em provapor demais slida. Noiudicium accusationis, inclusive, a eventual dvida nofavorece os acusados, incidindo, a, a regra exposta na velha parmiain dubio pro

    societate.O dolo eventual, na prtica, no extrado da mente do autor mas, isto sim, dascircunstncias. Nele, no se exige que resultado seja aceito como tal, o que seriaadequado ao dolo direto, mas isto sim, que a aceitao se mostre no plano dopossvel, provvel.

    O trfego atividade prpria de risco permitido. Oracha , no entanto, emprincpio anomalia extrema que escapa dos limites prprios da atividaderegulamentada.3

    Como j se disse, embora o dolo direto ou eventual esteja na cabea doagente, cabe ao juiz, analisando as circunstncias que envolvem o fato, emitir seu juzo valorativo acerca da atitude interna do sujeito ativo do crime.

    No basta que este afirme no ter desejado nem aceitado o resultado, precisoque o juiz disso se convena, com base na anlise profunda de todas as circunstnciasfticas.

    Evidente que ao julgador caber emitir sua concluso acerca dos fatos, e suadeciso ser passvel de reexame pela instncia superior, afastando, assim, o perigo de julgamento injusto. O que no se pode aceitar que, pelo simples fato de ter sido amorte causada no trnsito, chegue-se generalizao de que culposa.

    1.2.1 Homicdio simples

    3 DJ de 21 out. 2002, p. 381.

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    No caput do art. 121 est o tipo fundamental do homicdio, denominadohomicdio simples.

    O homicdio um crime comum, material, simples, de dano, instantneo deefeitos permanentes e de forma livre. Diz-se que um crimecomum, porque pode serpraticado por qualquer pessoa, no se exigindo, ademais, qualquer qualidadediferenciada do sujeito passivo.

    crime material, porque h no tipo a descrio de uma conduta, com aexigncia, para sua consumao, de que o resultado morte seja produzido pela condutado agente.

    Simples,porque atinge um nico bem jurdico, a vida humana extra-uterina, ede dano, pois destri o bem jurdico protegido.

    instantneo de efeitos permanentes , porque consuma-se no momento damorte da vtima e suas conseqncias perduram por todo o tempo.

    um crime que pode ser praticado pelas mais diversas formas de execuo, porao stricto sensu ou por omisso, da que se diz ser um crime de forma livre.

    O homicdio porao, ou comissivo, aquele praticado atravs de uma condutapositiva do agente, que realiza um movimento corporal final, comodisparar uma armade fogo, desferir um golpe de faca,arremessar uma pedra ou uma barra de ferro,

    empurrar a vtima no precipcio, ministrar -lhe veneno, constringir seu pescoo,impedindo a respirao.

    A ao pode ser fsica, como nos exemplos dados, mas tambm pode ser moral,como a deassustar uma pessoa cardaca ou fragilizada fsica ou mentalmente, visandoa que ela morra.

    O homicdio por omisso, chamado omissivo comissivo ou comissivo poromisso, o praticado apenas pelos chamadosgarantes , aqueles que tm o dever de

    agir para impedir o resultado e que, omitindo-se, permitem, com isso, a morte da vtima (art. 13, 2 , CP). Assim a me que deixa de amamentar o filho para que elemorra e o salva-vidas que permanece inerte diante do afogamento, desejando que oafogado venha a bito.

    Conquanto a lei tenha construdo outros tipos derivados do homicdio simples os privilegiados no 1 e os qualificados no 2 do mesmo artigo , haver homicdiosimples quando no for nem privilegiado, nem qualificado. Em outras palavras, parasaber se h homicdio simples, deve-se raciocinar por excluso. Somente ser homicdiosimples, se no tiver sido nem privilegiado, nem qualificado, nem qualificado-

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    privilegiado. Se o fato no se ajustar a nenhuma das circunstncias privilegiadoras ouqualificadoras, ser homicdio simples.

    1.2.2 Homicdio privilegiadoSe verdade que a destruio da vida humana por ao dolosa de outra pessoa

    constitui um dos crimes mais graves de nosso ordenamento jurdico, preciso verificarque o desvalor da conduta pode ser diferente em cada situao.

    Se no homicdio o resultado sempre o mesmo a morte da vtima , aconduta do agente nem sempre pode ser qualificada igualmente, pois se entremostra,muitas vezes, diferenciada uma de outras.

    Por essa razo, ao lado do homicdio simples, a lei fez derivar, no 1 do art. 121do Cdigo Penal, algumas espcies de homicdio que, por circunstncias especiais emque praticado, so merecedores de reprovao menor do que a conferida ao homicdiosimples. Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social oumoral, ou sob o domnio de violenta emoo, logo em seguida a injusta provocao davtima , a pena dever ser reduzida de um sexto a um tero.

    H decises jurisprudenciais e opinies doutrinrias respeitveis no sentido deque a reduo da pena mera faculdade do juiz. Sustentam essa tese a forma literalpoder contida no 1 do art. 121 do Cdigo Penal .

    Penso que a diminuio da pena no uma faculdade do juiz, mas um direitosubjetivo do acusado que tiver a seu favor reconhecida uma circunstnciaprivilegiadora, pelo Tribunal do Jri que o rgo competente para julgar os crimesdolosos contra a vida.

    No inciso XXXVIII do art. 5 da Carta Magna est consagrada asoberania dosveredictos do jri , isto , de todas as suas decises, as quais, por essa razo, no so

    meras indicaes ou recomendaes para o juiz, mas determinaes que devem ser,necessariamente, atendidas.

    Seria um contra-senso o jri afirmar o privilgioe o juiz no ficar vinculado a essadeciso, o que, a meu ver, constitui agresso soberania do tribunal popular,assegurada constitucionalmente. DAMSIO DE JESUS ensina:Reconhecido o privilgio pelos jurados, no fica ao arbtrio do julgador diminuir ou no a pena. A faculdade diz respeito ao quantum da reduo.4

    4 Direito penal . 14. ed. So Paulo: Saraiva, 1992. p. 56.

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    A dvida foi espancada com a nova redao do art. 492, inciso I, alnea c, doCdigo de Processo Penal, dada pela Lei n 11.689, de 2008, que obriga o juiz, no casode condenao, a prolatar sentena na qual impor as diminuies da pena admitidaspelo jri.

    H homicdio privilegiado pelas seguintes circunstncias: (a) por motivo derelevante valor social; (b) por motivo de relevante valor moral; e (c) sob o domnio de violenta emoo, logo em seguida a injusta provocao da vtima (art. 121, 1 doCdigo Penal).

    As duas primeiras figuras dizem respeito motivao do agente, a ltima, a seuestado psquico emocional provocado por atitude da vtima.

    1.2.2.1 Homicdio por motivo de relevante valor social

    Homicdio por motivo de relevante valor social aquele em que o agente ageimpulsionado por uma razo de grande importncia social. Por valor social deve-seentender o que diz respeito aos objetivos da coletividade, a ser aferido segundo critriosobjetivos e de acordo com a conscincia tico-social geral. Alm disso, o valor social quemotiva a ao deve ser relevante, vale dizer, de grande importncia, digno da maiorconsiderao por parte de todos.

    Nos dias de hoje, em que a criminalidade violenta e organizada, especialmente otrfico ilcito de entorpecentes, subjuga amplos setores sociais, mormente bairros efavelas, pode-se reconhecer o privilgio na conduta daquele que, com a exclusivainteno de combater a criminalidade, mata o chefe da quadrilha que domina suaregio. Move-o a busca da paz e da tranqilidade social, que so, a toda evidncia, deenorme relevncia social.

    1.2.2.2 Homicdio por motivo de relevante valor moral

    J no homicdio por motivo de relevante valor moral , cuida-se de umamotivao por valor de natureza moral. Tais valores so particulares, individuais, doprprio agente e devem, igualmente, ser de grande importncia. No contempla,portanto, qualquer valor individual, mas aquele que considerado, tica eobjetivamente, de grau elevado pela conscincia social. Seria, por exemplo, o caso dopai que mata o autor do estupro contra sua filha menor. J se entendeu tambm que omarido trado que mata a mulher adltera comete o crime por motivo de relevante

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    valor moral; todavia, melhor compreend-lo, em algumas situaes, como homicdioprivilegiado por violenta emoo, adiante comentado.

    A eutansia considerada pela doutrina dominante um homicdio privilegiadopor motivo de relevante valor moral. Segundo Nelson Hungria, homicdio eutansico aquele praticado para abreviar piedosamente o irremedivel sofrimento da vtima, e apedido ou com o assentimento desta. O sofrimento irremedivel da vtima, portanto,constitui o valor moral de relevncia que, impelindo o agente, torna-o menosseveramente punvel.

    O tema fascinante e mereceu profundas discusses no seio da Comisso deReforma do Cdigo Penal de 1997/1999, quando se tratou da eutansia e daortotansia. A proposta da comisso foi considerar a eutansia uma espcie de

    homicdio privilegiado e a ortotansia uma causa de excluso da ilicitude. Ficaramassim redigidas as duas propostas:

    Eutansia: Se o autor do crime cnjuge, companheiro, ascendente,descendente, irmo ou pessoa ligada por estreitos laos de afeio vtima, e agiu porcompaixo, a pedido desta, imputvel e maior de dezoito anos, para abreviar-lhesofrimento fsico insuportvel, em razo de doena grave e em estado terminal,devidamente diagnosticados: Pena recluso, de dois a cinco anos.

    A proposta estabelece vrios requisitos para o reconhecimento desse homicdioprivilegiado, regulamentando-o de modo claro e preciso.

    Segundo ela, no ser qualquer pessoa que poder ser beneficiada com oprivilgio. S o cnjuge ou companheiro, o ascendente ou descendente, o irmo ouirm, ou uma pessoa ligada por estreitos laos de afeio com a vtima.

    A vtima deve ser, necessariamente, maior de 18 anos e imputvel e deve fazer opedido de abreviao da vida ao agente. A motivao deste deve ser a compaixo e indispensvel que tenha a finalidade precpua de abreviar o sofrimento fsico, que deveser insuportvel e causado por uma doena grave, estando a vtima em estado terminal,o que dever ser devidamente diagnosticado.

    Ortotansia: No constitui crime deixar de manter a vida de algum por meioartificial, se previamente atestada por dois mdicos a morte como iminente e inevitvel,e desde que haja consentimento do paciente ou, em sua impossibilidade, de cnjuge,companheiro, ascendente, descendente ou irmo.

    Segundo a proposta, para caracterizar a ortotansia devem concorrer os

    HUNGRIA, Nelson. Op. cit. p. 125.

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    seguintes elementos: a vtima deve estar sendo mantida viva por meio artificial; suamorte deve ser atestada como iminente e inevitvel por dois mdicos; necessrio oconsentimento da vtima ou, no podendo d-lo, de seu cnjuge ou companheiro,ascendente, descendente ou irmo.

    As diferenas entre aeutansia e a ortotansia , conforme as duas proposies,so claras.

    Na eutansia, a vtima deve estar experimentando, vivendo, um sofrimentofsico insuportvel, causado por uma doena grave, e em estado terminal. So as doreshorrveis e o desconforto irremediveis que acompanham certas doenas graves.

    Na ortotansia, a vtima deve estar na iminncia de morrer, e mantida viva pormeio artificial, isto , por aparelhos ou equipamentos mdicos. No necessrio haver

    sofrimento fsico insuportvel. No h necessidade de algum sofrimento fsico, masdeve a pessoa estar sendo mantida viva artificialmente e a morte deve ser iminente einevitvel. Na eutansia, a morte no precisa ser nem iminente, nem inevitvel, mas adoena grave e o estado terminal devem ser diagnosticados, e na ortotansia aiminncia e inevitabilidade da morte devem ser atestadas por dois mdicos.

    A vtima, na eutansia, deve ser maior de 18 anos e imputvel, circunstncia nomencionada na ortotansia, da que pode ter qualquer idade e ser, inclusive,inimputvel.

    Na eutansia, o agente pratica uma ao para causar a morte da vtima, movidopela compaixo e a pedido dela. Na ortotansia, o agente, com o consentimento da vtima ou de um seu familiar, realiza um comportamento omissivo, deixando decontinuar mantendo a vtima viva por meio artificial. Claro que o desligamento dosaparelhos uma ao,stricto sensu, mas o que se exigia antes era a continuidade daao de manter a vida artificialmente, e o agente deixa de realiz-la, isto , deixa decontinuar mantendo a vida por meios artificiais.

    Na eutansia, a vida em estado terminal destruda. Na ortotansia, a morteiminente e inevitvel antecipada. Na primeira, a finalidade colocar um fim a umsofrimento insuportvel, acabando com uma vida que j se encontrava em estadoterminal, isto , prxima do fim. Um fim ainda no iminente, nem necessariamenteinevitvel, mas prximo. Por isso que a proposta a considera crime, porm privilegiado.J na ortotansia, no se est mais diante de uma vida digna e independente, capaz demanter-se naturalmente, seno por meio de sofisticados aparelhos e equipamentosmdicos. E mais, a morte , por isso tambm, iminente e inevitvel. Antecipar suachegada um gesto de amor, da que no pode ser considerado um crime.

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    Esto corretas as propostas da comisso, uma vez que definem, com rigor, essasduas situaes concretas, impondo exigncias a serem observadas pelo rgo julgador.Os adversrios dessas inovaes legislativas ora defendidas so muitos. Seusargumentos so, quase sempre, de natureza moral ou religiosa do tipos Deus pode

    decidir quando o homem deve morrer , ou ningum pode tirar a vida de outrem .

    Enquanto, todavia, o Congresso Nacional no aprovar modificaes nesse ounoutro sentido, tanto a eutansia quanto a ortotansia sero tratadas apenas comocircunstncias privilegiadoras de um homicdio. O tema fascinante e a sociedadeprecisa discuti-lo sem preconceitos.

    1.2.2.3 Homicdio emocional

    H homicdio sob o domnio de violenta emooquando o agente, diante deuma injusta provocao da vtima, se v dominado por tamanha emoo e reageimediatamente. So trs, pois, os requisitos para sua caracterizao: a injustaprovocao da vtima, a emoo violenta que domina o agente e sua reao imediata.

    Injusta provocao o comportamento da vtima capaz de, por sua natureza e,principalmente, injustia, desencadear um processo emotivo de grande intensidade noagente. Pode ser uma ao ou omisso que a vtima realiza em relao ao prprio

    agente ou a terceira pessoa. No se confunde a provocao com a agresso, que, seexistente, pode ensejar uma situao de legtima defesa. A provocao umcomportamento menos grave que a agresso, e com esta no se confunde. umaatitude de desvalor para com um bem jurdico.

    A provocao pode consistir em ofensas honra, vias de fato, ameaas, risode escrnio ou desprezo, apelidos vilipendiosos, expresses ambguas, indiretasmordazes, revelao de segredos, exerccio abusivo de direito, atos emulativos etc. 5

    A provocao deve ser injusta do ponto de vista objetivo, no do que sobre elapensa o agente. Contudo, para se considerar a injustia da provocao, deve ointrprete analisar as qualidades e condies pessoais de agente e vtima, de modo aconsiderar presente este requisito do homicdio emocional. H aquele que, pelos valores que cultua, pode no sentir-se atingido com uma ofensa sobre sua honestidadeno mundo dos negcios e sentir-se afrontado com uma meno depreciativa de seusatributos fsicos ou de suas relaes amorosas. Outros reagem de modo exatamente

    5 HUNGRIA, Nelson. Op. cit. p. 149.

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    contrrio. Ofensas graves que tenham partido de uma pessoa de pouca credibilidadepodem at ser relevadas por determinada pessoa, ao passo que um simples comentriocrtico oriundo de um homem respeitado pode causar-lhe grande indignao.

    No basta, porm, que a vtima tenha realizado a provocao injusta. necessrio que esta tenha desencadeado a violenta emoo.

    Emoo, dizem os doutrinadores, um estado afetivo, que atinge e perturba oequilbrio psicolgico do indivduo, alterando-lhe a maneira de pensar e, deconseqncia, a de agir, no retirando, todavia, sua capacidade de entendimento ou dedeterminao. A norma exige que a emoo sejaviolenta, isto , de tal intensidade quehaja muito mais do que uma simples alterao do equilbrio psicolgico. a verdadeiraira ou a clera que domina o sujeito, transformando-o por completo num ser

    descontrolado capaz de realizar comportamentos agressivos que no realizaria noestado normal.

    A reao deve ser pronta e rpida, imediatamente aps a provocao, pois docontrrio no se poderia atribu-la ao estado emocional. Passado algum tempo aps aprovocao, o estado psquico alterado do agente j no ser o mesmo, o furor j terarrefecido e sua reao s poder ser atribuda ao desejo de vingana ou ao dio que emsi se instalara, sentimento esse que o Direito no poderia, mesmo, premiar. Se noreagiu no instante seguinte provocao, em que a intensidade da emoo que lhearrebatou era maior, porque ela no lhe alterou sobremaneira a capacidade decontrolar-se, logo, no pode invocar o privilgio, que no se compatibiliza com a reaotardia.

    O chamadohomicdio passional daquele que mata por cimes, pela traio oupor simples suspeita, ou pelo flagrante de adultrio ou, ainda, pela perda da pessoaamada que o abandonou tem sido objeto de muitas discusses e decises as maisdiversas.

    preciso distinguir a situao do agente que encontra o cnjuge em flagrante deadultrio, das demais hipteses. No h dvida de que a traio um comportamentoequivalente a uma provocao injusta. Afinal, a fidelidade e o respeito mtuos sodeveres jurdicos, ainda quando no haja casamento mas s unio estvel. A viso dosamantes trocando carcias amorosas , sem dvidas, um fator de determinao dainstalao, na mente do trado, de violenta emoo, aquela que pode desencadear areao imediata. Tomado de clera, irado diante da certeza absoluta da traio, areao imediata com a morte de um ou de ambos ajusta-se perfeitamente terceira

    figura privilegiadora do 1 do art. 121.

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    J os homicidas passionais que matam por cimes, por suspeitas de traio ouporque foram abandonados, no esto acobertados pela norma. No tendo havidoqualquer provocao injusta, no h falar-se naquela violenta emoo, que deve sercausada pela ao da vtima. Ainda quando o agente esteja efetivamente perturbado ou

    mesmo sob o domnio de violenta emoo, de ver que, nesses casos, a causa daalterao psquica no pode ser atribuda a qualquer comportamento da vtima, masto-somente a suas prprias conjecturas, a sua prpria criao mental.

    Dir-se- que tais atitudes internas so decorrentes do sentimento de amor que oagente nutre pela outra pessoa e que a sensao de perda, ou o cime, ou, ainda, asuspeita de traio so capazes de produzir as alteraes psicolgicas quedesencadeiam o processo emotivo violento. Perderiam a, esses passionais, a plenacapacidade de determinao e, por isso, mereceriam menor reprovao penal.

    No assim. Se certo que o cime pode at ser considerado produto dosentimento de amor, no menos certo que ele seja principalmente fruto do sentimentode posse ou domnio sobre pessoa, o que, se no pode ser considerado ftil, tambmno pode ser entendido como motivo nobre. Da que a perda da pessoa amada ou asuspeita sobre sua fidelidade no se ajustam norma que beneficia o homicida. Semque exista uma atuao concreta da vtima, que provoque a reao do agente, oprivilgio seria, na prtica, um incentivo s construes mentais destrutivas que podem

    acometer, momentaneamente, certos indivduos.

    1.2.3 Homicdio qualificado

    Assim como h circunstncias legais que impem menor reprovao aohomicdio, outras h que, ao contrrio, exigem maior reprimenda penal. Isso vaiacontecer quando o fato cercado por circunstncias mais reprovveis, chamadasqualificadoras.

    As que qualificam o homicdio constituem, em relao aos demais crimes,circunstncias que sempre agravam a pena, as quais sero consideradas pelo juiz aps afixao da pena-base. No homicdio, entretanto, j sero consideradas para a imposiode maior reprimenda no momento da fixao da pena-base. Esto contidas nos incisos Ia V do 2 do art. 121 do Cdigo Penal.

    A Lei n 8.930, de 6 de setembro de 1994, que deu nova redao ao art. 1 daLei n 8.072, de 25 de julho de 1990, incluiu, dentre os crimes hediondos, todos os

    homicdios qualificados, consumados ou tentados. Incluiu tambm o homicdiosimples, quando cometido em atividade tpica de grupo de extermnio, ainda que por

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    um s executor .

    Ora, no ordenamento penal brasileiro no existe a figura tpica degrupo deextermnio , da que a norma inaplicvel, por fora do princpio constitucional dalegalidade, por falta da definio legal utilizada. Por outro lado, impossvel umhomicdio praticado pelos vulgarmente chamadosgrupos de extermnio no ser,necessariamente, qualificado por uma das circunstncias do 2 do Cdigo Penal, oque torna essa norma absolutamente desnecessria.

    A pena cominada para os homicdios qualificados recluso, de 12 a 30 anos.

    A premeditao no uma circunstncia qualificadora do homicdio. Tambmno o a relao de parentesco prximo entre agente e vtima. A premeditao, por sis, no revela um grau de perversidade ou de torpeza. Tanto possvel o agentepremeditar um crime por motivo de relevante valor moral, quanto faz-lo impelido poruma motivao ftil. O mesmo se diga em relao ao homicdio do ascendente pelodescendente, ou deste por aquele. Nesta ltima situao, h uma circunstnciaagravante da pena (art. 61, II,e, do Cdigo Penal).

    A premeditao, se evidenciada, pode ser levada em conta pelo juiz, nomomento da fixao da pena-base como uma circunstncia judicial desfavorvel aoagente.

    As circunstncias qualificadoras do homicdio dizem respeito (1) aosmotivosdeterminantes do crime, (2) aos meios empregados, (3) forma ou ao modo deexecuoou (4) conexo teleolgica ou conseqencial com outro crime.

    Nos incisos I e II do 2 do art. 121 do Cdigo Penal esto descritas ascircunstncias qualificadoras que dizem respeito aosmotivos do crime: paga, promessade recompensa ou outro motivo torpe e motivo ftil.

    O inciso III descreve circunstncias que se referem aosmeios empregados pelo

    agente: veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura, ou outro meio insidioso ou cruel, ou doqual possa resultar perigo comum.

    Formas ou modos de execuo qualificadores do homicdio esto contempladosno inciso IV, que assim considera a traio, a emboscada, a dissimulao e outrorecurso que dificulte ou torne impossvel a defesa do ofendido.

    Finalmente, tambm qualifica o homicdio a conexo finalstica ouconseqencial , relacionada no inciso V: homicdio praticado para assegurar a execuo,ocultao, a impunidade ou a vantagem de outro crime.

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    1.2.3.1 Paga, promessa de recompensa ou outro motivo torpe

    Motivo a fora psquica que impele algum a fazer ou deixar de fazer algumacoisa.

    Aquele que age impelido pelo recebimento de um pagamento, um valorpecunirio ou uma promessa de recompensa demonstra sua profunda desconsideraopara com o bem jurdico mais importante. Considera o valor monetrio ou o bemmaterial ou imaterial que receber mais importante do que a vida humana. Demonstrafrieza e insensibilidade diante do sofrimento da vtima e, mais grave, das conseqnciasda morte de um ser humano. Como se fora um deus, decide, por uma motivao abjeta,pr fim a uma vida humana simplesmente para auferir um ganho monetrio ou uma vantagem patrimonial, econmica ou de qualquer natureza. o cmulo do egosmo.

    Interromper toda uma vida pela simples razo de obter um ganho pessoal.Discute-se se qualificadora alcanaria tanto o autor executor do procedimento

    tpico, quanto o autor intelectual, o que promete a recompensa ou que efetua opagamento, dizendo uma parte da doutrina que sim, uma vez que tanto a conduta deum quanto a do outro merecem a mesma reprovao social.

    Noutro sentido a opinio de FLVIO AUGUSTO MONTEIRO DE BARROS:

    Observe-se, ainda, que o homicdio mercenrio crime bilateral, exigindo o

    concurso de duas pessoas: o mandante e o executor. Indaga-se se o homicdioseria ou no qualificado para o mandante, respondendo uns afirmativamente,argumentando que a paga e promessa de recompensa so elementares do delito,comunicando-se ao partcipe, nos termos do art. 30 do CP, enquanto outrosrespondem negativamente, asseverando que o fundamento da qualificadora punir a cobia, o mvel de lucro, na maioria das vezes ausente naquele quemanda matar. Esta ltima orientao mais certeira, pois, como sustenta Heleno Cludio Fragoso, no se exclui que mediante a ao de um sicrio

    pratique algum um homicdio por motivo de relevante valor social ou moral. Aqualificao do homicdio mercenrio justifica-se pela ausncia de razes pessoais por parte do executor (indcio de insensibilidade moral) e pelo motivotorpe que o leva ao delito. O mandante busca a impunidade e a segurana,servindo-se de um terceiro (Lies de Direito Penal, Parte Especial, pg. 68, Forense, 1989). Se, por exemplo, o pai pagar um pistoleiro para matar oestuprador da filha, a soluo, a nosso ver, ser a seguinte: o pai (mandante)responder por homicdio privilegiado pelo relevante valor moral; o pistoleiro

    (executor), por homicdio mercenrio (CP, art. 121, 2 , II). Anote-se que a paga

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    e a promessa de recompensa no constituem elementares do delito e, sim,circunstncias qualificadoras. Seria sumamente injusto imputar a qualificadoraao mandante. Sobremais, trata-se de circunstncia subjetiva (motivo de paga ou promessa de recompensa), sendo incomunicvel ao partcipe, nos termos do art.

    30 do CP. 6

    No creio que essa seja a melhor soluo, nem tampouco que a busca da vontade da lei, nesse caso, deva ser feita luz da norma do art. 30 do Cdigo Penal.

    A conduta do mandante, ainda que impelido por motivo de relevante valormoral, no pode ser considerada apenas como a de quem pretende a impunidade e asegurana, seno como a de quem no teve a coragem moral para, por suas prpriasmos e arrostando todas as conseqncias de seu gesto, destruir a vida de quem, a seu

    ver, merecia a morte. Longe de merecer tratamento diferenciado, h de receber, doDireito, a mesma considerao dada ao que agiu impelido pelo fim da obteno da vantagem material, monetria.

    Quem, pretendendo a morte de outrem, procura esconder-se atrs da ao doexecutor, buscando impunidade e segurana, to vil quanto o que friamente executa amorte de algum sem qualquer outra motivao pessoal, seno a da obteno dorecebimento do valor ou da vantagem ajustada. Aquele o covarde que confia napossibilidade de, no executando o procedimento tpico, jamais ser alcanado peloaparelho estatal repressor. A busca da impunidade ou da segurana, longe de benefici-lo, , a meu ver, razo para maior censura penal. Se tivesse um motivo de relevante valor moral e executasse ele prprio o homicdio, a sim mereceria a diminuio dapena, na forma do 1 do art. 121, no incorrendo na majorao decorrente dequalificadora. Se, mesmo tendo uma motivao relevante do ponto de vista moral ousocial, prefere pagar a outrem para que mate algum, no pode merecer censura menordo que aquele que no teve medo, nem buscou segurana ou impunidade. Pensar ocontrrio homenagear a covardia, e isso no compatvel com o Direito.

    Tambm possvel ver, no que recebe a paga ou a promessa de recompensa,uma motivao de relevante valor moral, quando o faz para proporcionar alimentos aseus filhos famintos. Nos dias de hoje, em que a misria e a fome grassam pelos rincesdeste rico pas, no desarrazoado reconhecer no gesto de um sicrio destes um fiapode valor moral. Sicrio sim, mas, em algum caso, por motivo de relevante valor moral.

    A descrio tpica do inciso I do 2 do art. 121 no deve ser lida apenas em

    6 Crimes contra a pessoa . So Paulo: Saraiva, 1997. p. 28.

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    relao ao executor, mas tambm ao mandante, independentemente de se consider-la,ou no, circunstncia elementar do tipo de homicdio. que, ao descrev-la comomediante paga ou promessa de recompensa , a norma buscou alcanar a totalidadede um contrato bilateral que, por sua prpria natureza jurdica, envolve direitos e

    obrigaes para ambas as partes, e no apenas uma motivao pessoal exclusiva docontratado.

    O escopo da norma no , simplesmente, o de reprovar mais severamente o fimde lucro que moveu o executor, mas, tambm e antes, a conduta de ambos, executor emandante: celebrarem um pacto cujo objeto a destruio de uma vida humana. Ouseja, um contrato entre duas pessoas que visa destruio do bem jurdico maisimportante. Um porque encomendou a morte de um homem, o outro porque aceitou aencomenda. Ambos, igualmente, tiveram motivao torpe, abjeta, repugnante. Oprimeiro porque, dispondo de dinheiro, sentiu-se vontade para buscar alcanar adestruio de uma vida humana, por mos alheias. O outro porque, simplesmente pordinheiro, no teve qualquer condescendncia com a existncia de um semelhante.

    Se a vontade da lei fosse a de considerar qualificada apenas a atitude doexecutor, no utilizaria a expresso mediante paga ou promessa de recompensa ,mas escolheria outra frmula especfica, exclusiva ou prpria do executor, como para ( ou com o fim de ) obter paga ou promessa de recompensa . A expressomediante

    significa aquiloque medeia. O verbomediar significa ficar no meio de dois pontos, noespao, ou de duas pocas, no tempo. Assim, ao utilizar essa expresso, a lei vinculouas duas partes, o mandante e o executor. A paga ou a promessa de recompensa o eloque liga as duas pessoas, o que medeia as duas vontades e suas motivaes. Logo, oque medeia duas condutas a ambas se agrega, razo por que ambos praticam homicdioqualificado.

    Esta uma soluo acima de tudo justa, porquanto tanto repugna o gesto dequem executa a morte, quanto o de quem a encomendou. O pagamento feito maculatanto o que o fez, quanto o que o recebeu. O primeiro por no ter considerado a vidahumana seno uma coisa, passvel de ser destruda por fora do poder de quem dispede numerrio capaz de seduzir quem dele precisa. Este, por t-lo considerado maisimportante que a vida humana.

    Ambos, portanto, respondero na forma qualificada do homicdio.

    Quanto possibilidade de um dos dois, mandante e executor, ou at mesmo deambos terem agido, ao mesmo tempo, por motivo de relevante valor moral, nada obsta

    seu reconhecimento tambm pelo rgo julgador, o Tribunal do Jri.

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    Assim, o pai que manda matar o estuprador da filha poder ter a seu favorreconhecido o privilgio, que pode, perfeitamente, harmonizar-se com a qualificadoraem questo. Ser, pois, apenado por um homicdio ao mesmo tempo qualificado eprivilegiado, figura perfeitamente compatvel com a vontade do Direito. Ter sua pena,

    de 12 a 30 anos, diminuda, de um a dois teros, sem qualquer dificuldade.

    O mesmo se diga do que executou a morte para obter numerrio destinado acomprar alimentos para saciar a fome de seus filhos menores.

    Essa sim a soluo mais justa, porque reconhece, a um s tempo, a presena deuma circunstncia que aumenta a reprovao e outra que a diminui. Sua convivnciaem nada agride o sistema de leis do Estado.

    A mesma norma do 1 do art. 121 utiliza, aqui, da interpretao analgica,

    equiparando paga ou promessa de recompensa qualquer outro motivo torpe. A motivao do agente que se assemelhar daquele que contrata a morte de algum, oudo que mata, mediante paga ou promessa de recompensa, ser considerada torpe, isto, abjeta, repugnante.

    Sero torpes todos os motivos que, semelhana do fim de lucro, ou dacontratao de algum para destruir uma vida humana, impelirem o sujeito a mataralgum. So os motivos indignos, que contrastam com os valores morais.

    torpe a fora que impele o filho a executar ou a contratar a morte dos pais,com a finalidade de se livrar de sua presena na sua vida, de suas orientaes, doscorretivos normais, para alcanar a liberdade plena, para viver sem controle ou limitesaceitveis em sociedade. Mais torpe ainda, quando o fim a obteno de valoresmateriais, a ttulo de herana.

    A torpeza, como disse NELSON HUNGRIA, revela um grau particular deperversidade7.

    A vingana, porm, no , necessariamente ou por si s, um motivo torpe. Tantoque a lei a ela no se referiu. A vingana pode dar-se at mesmo por um motivorazovel, no justificado, bvio, mas no abjeto ou repugnante. preciso analisar osmotivos que levaram o sujeito a promover sua vingana. Estes podem, sim, ser torpesou no.

    1.2.3.2 Motivo ftil

    7 Op. cit. p. 162.

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    Ftil o motivo nfimo, insignificante, mesquinho, vazio, leviano, frvolo,extremamente desproporcionado ou de somenos importncia, que impele o sujeito amatar, revelando, assim, a intensa insensibilidade que o domina. o motivo banal.

    O agente que mata a vtima porque esta lhe pisou o p, o que mata ogarom porque este derramou vinho na roupa de sua acompanhante, bem assim o que atinge otorcedor que comemorou a vitria de seu clube de futebol agem impelidos pormotivao ftil.

    A futilidade nasce da prepotncia e da intolerncia que caracterizam certosindivduos. So os que se consideram seres superiores, pela fora do poder econmico,ou pela superioridade nos planos fsico, intelectual ou moral. Contrariados em qualquerpretenso, enchem-se de ira e voltam-se violentamente contra os mais fracos ou

    desavisados. No aceitam o no. No toleram a crtica, no convivem com nada quelhes incomode. No sendo agredidos, nem tampouco provocados, mas, simplesmente,no recebendo o que querem, no ouvindo o que gostariam, ou no vendo o quedesejavam, reagem e matam.

    E porque se consideram verdadeiros deuses, ai de quem, em sua frente, sepostar como, a seu prprio juzo, responsvel ou culpado pela no-realizao de seusdesejos. Chegam a matar e nessas circunstncias recebero reprovao penal maissevera.

    Cime, j se disse h pouco, um sentimento que no justifica qualquerconduta tpica, nem tampouco, por si s, capaz de ensejar uma causa de diminuioda pena. Ainda assim no um motivo torpe, posto que derivado de um estado afetivo.No , por isso, abjeto, nem repugnante. Seria ftil?

    Tambm no. Mesmo que se possa consider-lo fruto de um sentimentoretrgrado, inaceitvel, de posse sobre uma pessoa, ainda que querida ou amada, nopode ser includo entre os motivos insignificantes. O s fato de nascer, como

    efetivamente nasce, tambm do sentimento do amor, revelador, seno de suanobreza, pelo menos de sua importncia. Logo, no pode ser nfimo, nem desprezvelou banal.

    O cime no causa de justificao da conduta, nem circunstnciaprivilegiadora, todavia, no pode ser considerado motivo ftil, posto que, ainda que nose lhe reconhea qualquer nobreza, no se pode t-lo como mesquinho.

    Os humanos, no sei se infelizmente, tm, para com alguns de seus

    semelhantes, esse sentimento intenso, de t-lo como seu, de quer-lo para si, deexclusividade no relacionamento, mormente o afetivo e sexual e, s por isso, de se

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    compreender o cime como um estado relevante, ainda que incompatvel com a plenaliberdade individual e o respeito que todos a ela devem dedicar.

    A embriaguez seria compatvel com a motivao ftil?

    Essa outra questo qual se dedicam os estudiosos do Direito Penal. Para uns,o estado de embriaguez do sujeito ativo do crime absolutamente incompatvel com afutilidade, por no lhe ser possvel formular um juzo de proporo entre o motivo e aconduta. J outros entendem plenamente harmonizvel a alterao psquica decorrenteda ingesto de substncia embriagante com a avaliao do motivo que impele o agentea praticar o crime.

    No h receiturio preciso para o problema. Importa verificar, em primeiroplano, o grau de embriaguez. Se for completa, evidente que no est o sujeito com a

    capacidade de discernir sobre a proporo entre a provocao e a conduta. Como j sedisse anteriormente, a responsabilidade penal, nos casos de embriaguez voluntria ouculposa, objetiva, por fora da teoria daactio libera in causa, adotada peloordenamento penal. Rigorosamente, h, nessas hipteses, ausncia de conduta, porabsoluta falta de conscincia ou vontade. Fazer incidir, ademais, a circunstnciaqualificadora do motivo ftil , a meu ver, responsabilizar o indivduo, objetivamente,duas vezes. bastante que ele seja apenado, mas a deve-se contentar com a tipicidadedo homicdio simples.

    Dividem-se, doutrina e jurisprudncia, acerca da ausncia de motivo serequiparada, ou no, ao motivo ftil. Penso que correto o entendimento segundo oqual, se o agente praticar o fato sem qualquer motivo, dever responder pela formaqualificada, uma vez que no poderia merecer menor reprovao do que aquele queagiu por um motivo banal. Se certo que o motivo ftil o pequeno demais, o motivonenhum a ele deve equiparar-se, porque, inexistente, como se fora ainda menor.

    1.2.3.3 Veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio

    insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum

    No inciso III do 2 do art. 121 do Cdigo Penal esto consideradosdeterminados meios empregados pelo agente, os quais, por sua natureza insidiosa oucruel, revelam a extrema perversidade com que o crime praticado, da que nopoderia ser considerado um homicdio simples. Se o homicdio j , por si s, um crimeextremamente grave por destruir o bem jurdico mais importante, a utilizao de certos

    meios, que infligem maior sofrimento vtima, constitui circunstncia que o torna maisseveramente punido.

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    A Toxicologia, cincia que estuda os venenos ou substncias txicas, noapresenta um conceito unnime de veneno, uma vez que determinadas substnciasperigosas para a vida da maioria das pessoas, em alguns casos, apresentam-se, emrelao a outras vidas, absolutamente incuas. O acar, alimento para quase todos,

    para o diabtico pode ser letal.

    Isso porque, segundo HLIO GOMES, entre alimento, medicamento e venenonem sempre se pode fazer distino rigorosa. SOUZA LIMA, em sua notvelToxicologia, primeiro livro escrito no Brasil sobre o assunto, diz:

    Por exemplo, o lcool, que em pequena dose reputado um alimentorespiratrio (como se dizia na antiga filosofia); em dose mais elevada ummedicamento excitante difusivo, e, alm de certos limites, torna-se veneno

    estupefaciente. A mesma substncia , pois, um alimento enquanto concorre para a nutrio e para a vida, um medicamento quando cura ou modifica favoravelmente a marcha e terminao das molstias, e um veneno quando produz desordens graves na economia e a morte.8

    do mesmo SOUZA LIMA a seguinte definio de veneno:

    substncia estranha categoria dos agentes vulnerantes e patognicos, que,introduzida ou aplicada de qualquer modo ao corpo humano em certaquantidade, relativamente grande, produz mais ou menos rapidamenteacidentes graves na economia, que podem terminar pela morte, ou deixardefeitos permanentes e irremediveis.

    Para NELSON HUNGRIA, veneno a substncia que, introduzida noorganismo, capaz de, mediante ao qumica ou bioqumica, lesar a sade oudestruir a vida 9.

    Neste ltimo sentido, tambm deve ser considerado veneno ovrus, que umelemento gerador de doena, por sua caracterstica de contagiosidade, e que pode serintroduzido no corpo humano causando leses ou a prpria morte.

    O veneno pode ser introduzido no organismo pela via gastrointestinal, pelas vias respiratrias, pela via endrmica ou hipodrmica, pela pele ou pelas mucosas ediretamente no sistema circulatrio. Sua atuao ocorrer quando atingir o sistemaarterial e capilar, que seu campo de ao.

    A qualificadora incidir apenas quando o veneno ministrado de modo

    8 Op. cit. p. 434.9 Op. cit. p. 162

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    insidioso, isto , dissimulado. A vtima ludibriada pelo agente, e no percebe suainteno criminosa.

    Se o agente utiliza-se de violncia ou grave ameaa para que a vtima sejaexposta ao contato com o veneno, ingerindo-o ou inalando-o, e tenha, por isso,conscincia da ao lesiva que a substncia vai produzir em seu organismo, o homicdioser qualificado pela crueldade, uma vez que importar em grande sofrimento.

    O uso do fogo sobre o corpo humano provoca enorme sofrimento. O calorproduzido pela combusto e as chamas que dela decorrem importam em doreshorrveis, alm da conscincia de que os rgos do corpo esto sob um violento e rpidoprocesso de destruio, consumindo-se. A exposio do corpo a temperaturas elevadasproduz modificaes de sua matria que vo chegar at a carbonizao. meio

    crudelssimo. A norma no se referiu exposio do corpo humano a temperaturas

    extremamente baixas, que podem lev-lo ao congelamento. Com certeza porque talfennemo natural no seja prprio de nosso espao geogrfico. Todavia, um homicdiocometido com a submisso da vtima ao frio intenso, produzido artificialmente, ser,induvidosamente, qualificado pela crueldade.

    Explosivo, para os fins da norma em comento, qualquer corpo, aparelho ousubstncia capaz de produzir exploso. Exploso a expanso violenta de gases, emforma de calor, acompanhada de estrondo e presso disruptiva, causada por repentinaliberao de energia decorrente de uma reao qumica muito rpida, ou de uma reaonuclear, ou do escape de gases ou vapores sob grande presso. Com a exploso, asmatrias prximas, inclusive corpos humanos, sofrem a ao da enorme foraexpansiva dos gases liberados, recebendo seu impacto, o que pode ser letal.

    Asfixia a supresso da respirao, com a cessao das trocas orgnicas,reduzindo-se o teor de oxignio, aumentado o de gs carbnico no sangue arterial. So

    vrias as modalidades de asfixia. A chamadasufocao direta aquela produzida por uma ao que impede a

    entrada do ar no aparelho respiratrio atravs das vias areas superiores ou de seusorifcios externos. Com as mos ou certos objetos moles, como um travesseiro oucobertor, o agente fecha os orifcios superiores do aparelho respiratrio. a chamadaocluso direta das narinas e da boca . Para ser concluda, necessrio que hajadesproporo de fora entre os sujeitos do crime. Ocorre muito nos casos deinfanticdio.

    Pode a sufocao direta dar-se atravs da ocluso dos orifcios da faringe e da

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    laringe, que se realiza com a introduo de panos, papel, rolha ou outros objetosadequados, na boca da vtima, obstruindo aqueles rgos, dando incio supresso doprocesso respiratrio.

    H sufocao indireta quando a vtima impedida atravs de uma fora externade realizar os movimentos de inspirao e de expirao. O peso excessivo do agressorsobre o trax da vtima uma dessas situaes. tambm chamada de compressotorcica.

    Asfixia porenforcamento decorre da constrio do pescoo exercida por meiode um lao, fixado num ponto superior ao corpo, cujo peso atua como fora constritora. As vias respiratrias so obstrudas e a morte pode demorar geralmente de cinco a dezminutos.

    O estrangulamento consiste na constrio do pescoo, tambm por lao;todavia, a fora atuante, diferentemente do enforcamento, no o prprio peso da vtima. Se o agente utilizar-se das prprias mos para efetuar a constrio, a asfixia sedenomina esganadura .

    Confinamento uma forma de asfixia na qual a vtima mantida presa numambiente fechado, sem a necessria e adequada renovao de ar, de tal modo que asquantidades de oxignio e de remoo do gs carbnico no sejam adequadas aoprocesso respiratrio. O sofrimento da vtima indizvel, porque, medida que otempo passa, vai sentindo os efeitos da diminuio do oxignio e do aumento daumidade e da temperatura ambiente.

    medida que o tempo passa, a situao vai se agravando e duas sndromesvo se instalando simultaneamente: hipxia e exausto trmica. Ambas levam a uma fase de reao com hiperpnia, taquicardia, elevao da presso arterial e incio de pnico. Mais adiante, vem o desespero, grande agitao e perda da conscincia comou sem convulses. Segue-se estado de coma, que evolui para o estado de choque e a

    morte por asfixia. 10 O soterramento a asfixia em que a vtima fica coberta completamente por

    escombros ou por terra. D-se quando, por exemplo, provocado um desabamento ouquando a vtima enterrada viva. A morte poder se dar pela compresso torcica oupor sufocao direta.

    Tambm h asfixia noafogamento. Nesse caso, ocorre a penetrao de grande

    10 GOMES, Hlio. Op. cit. p. 519.

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    quantidade de lquido, gua ou outro, nos pulmes, atravs das vias respiratrias.

    Qualquer que seja a modalidade, a asfixia um meiocruel , porque impe umsofrimento desnecessrio para a vtima, da a razo de ser uma circunstnciaqualificadora do homicdio.

    Tambm qualifica o homicdio o uso detortura em sua execuo. a utilizaode tormentos, fsicos ou mentais, para executar a morte da vtima. A expressotortura ,do inciso III do 2 do art. 121 do Cdigo Penal, no corresponde idntica expressoutilizada na construo dos tipos legais decrime de tortura definidos na Lei n 9.455,de 7 de abril de 1997. No homicdio, significa um dos meios cruis, utilizados peloagente na execuo do homicdio.

    A definio dos crimes de tortura uma exigncia mundial, antes mesmo de seruma ordem constitucional. A Declarao Universal dos Direitos do Homem, em seu art. V, estabeleceu queNingum ser submetido tortura ou a tratamento ou castigocruel, desumano ou degradante .

    A Assemblia Geral da Organizao das Naes Unidas adotou, em 10 dedezembro de 1984, a Conveno contra a Tortura e Outros Tratamentos PenaisCruis, Desumanos ou Degradantes, que foi aprovada pelo Congresso Nacional peloDecreto Legislativo n 4, de 22 de maio de 1989 e promulgada pelo Presidente da

    Repblica pelo Decreto n

    40, de 15 de fevereiro de 1991, a qual, na Parte I, art. 1

    ,estabelece:

    Para os fins da presente Conveno, o termo tortura designa qualquer atoatravs do qual dores ou sofrimentos agudos, fsicos ou mentais, so infligidosintencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa,informaes ou confisses; de castig-la por ato que ela ou uma terceira pessoatenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminao de

    qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos so infligidos por um funcionrio pblico ou outra pessoa no exerccio de funes pblicas, ou por suainstigao, ou com o seu consentimento ou aquiescncia. No se considerarcomo tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqncia unicamente desanes legtimas, ou que sejam inerentes a tais sanes ou delas decorram.11

    Em nenhuma hiptese, a tortura admitida, como se v do art. 2 da mesmaConveno, o qual, em seu item 2, dispe:Em nenhum caso podero invocar-se

    11BRASIL. Dirio Oficial da Unio, de 18 fev. 1991, p. 3012-3015.

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    circunstncias excepcionais tais como ameaa ou estado de guerra, instabilidade poltica interna ou qualquer outra emergncia pblica como justificao paratortura.

    A Lei n 9.455/97, no art. 1 (caput e 1 e 2 ), descreveu seis condutastpicas de tortura (a tortura - prova, a tortura como crime-meio, a tortura racial oudiscriminatria , a tortura - pena ou castigo, a tortura do encarcerado e a omisso frente tortura ). J no 3 cuidou do crime qualificado pelo resultado, preterdoloso, eno 4. previu causas de aumento de pena.

    ALBERTO SILVA FRANCO, acerca do conflito entre a qualificadora dohomicdio e os tipos da Lei de Tortura, assim se expressou:

    Mas qual seria o tipo de relacionamento entre a tortura e o homicdio? Aqui,a questo apresenta um enfoque diverso. Se o resultado morte no foi querido pelo torturador, mas advm como conseqncia da ao torturadora, asoluo da matria j se acha na prpria Lei 9.455/97 que prev a hiptese detortura qualificada e lhe comina pena reclusiva de oito a dezesseis anos. Mas,se o agente est praticando a tortura e, num dado momento, decide eliminar avida do torturado, evidente que, nessa situao concreta, houve duasviolaes, representando a segunda um desvio em relao primeira: oagente quis torturar e depois, quis matar. Em verdade, so duas aescompletas e bem definidas a configurar dois delitos, em concurso material: atortura e o homicdio.12

    Trs so as possibilidades. Na primeira, o agente age dolosamente realizandoum dos tipos legais de tortura e sobrevm, por culpa,stricto sensu, o resultado morte. A h crime de tortura seguida de morte. crime preterdoloso. H dolo na aomaterial de realizar a tortura, com o elemento subjetivo respectivo, e culpa na produodo resultado morte.

    Na segunda, o agente tem o dolo de realizar um crime de tortura e, no decorrerde sua ao, resolve matar a vtima. Nesse caso, h dois crimes, tortura e homicdio, emconcurso material.

    Uma terceira hiptese: o agente quer, desde o incio, cometer um crime detortura e tambm matar a vtima. Quer infligir intenso sofrimento fsico ou mental, como fim de obter uma confisso da vtima e, tambm, deseja sua morte. A haverconcurso formal entre um crime de tortura e outro de homicdio qualificado, com a

    12 Tortura Breves anotaes sobre a Lei n 9.455/97, Revista Brasileira de Cincias Criminais , v. 19, p. 65.

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    aplicao cumulativa de pena, porquanto resultantes de desgnios autnomos.

    Assim, a tortura que qualifica o homicdio o suplcio violento que o agenteinflige vtima, como meio para a obteno do resultado morte, que no se confundecom qualquer dos crimes de tortura, que, muito embora constituam, igualmente,intenso sofrimento fsico ou mental para a vtima, devem, para perfazer-se, realizar osoutros elementos do respectivo tipo.

    Para alcanar outras condutas igualmente reprovveis, a norma do inciso III do 2 do art. 121 utiliza, outra vez, o mecanismo da interpretao analgica, a fim de queo intrprete, diante do caso concreto, faa a comparao entre o meio efetivamenteutilizado pelo agente e um dos j explicados (veneno, fogo, explosivo, asfixiae tortura ). Se o meio concretamente usado tiver sido, semelhana desses,insidioso ou

    cruel , ou do qual possa resultar perigo comum, a qualificadora incidir. Meio insidioso aquele dissimulado em sua influncia malfica. Atravs dele, o

    agente emprega um ardil ou um artifcio qualquer, de modo a ludibriar a boa-f doagente. Como no caso da propinao de veneno, a vtima no percebe a intenocriminosa. Vale-se o agente de determinado estratagema ou de armadilha para realizaro intento criminoso. O meio insidioso como a dissimulao, mencionada no inciso IV do mesmo 2 , adiante comentada, porm deve guardar maior similitude com autilizao do veneno, quando a vtima at colabora com a ao do agente. Tanto nainsdia quanto na dissimulao, a vtima fica privada da possibilidade de resistir aocriminosa, mas naquela d alguma contribuio, ainda que passiva, para o evento, aopasso que na dissimulao no d qualquer colaborao.

    A diferena est, ainda, em que ainsdia consiste no meio utilizado, ao passoque a dissimulao encontra-se no modo como o fato praticado, o que se vaidemonstrar adiante.

    Meio cruel todo aquele que importa para a vtima um padecimento fsico ou

    mental alm do necessrio e suficiente para a consumao do homicdio. osofrimento desnecessrio, intil. Muitos podem imaginar que a reiterao ou o excessode golpes perpetrados pelo agente contra a vtima constitui meio cruel de execuo dohomicdio. No necessariamente. Pode ocorrer que j ao primeiro golpe a vtima percaos sentidos ou mesmo venha a bito, o que, evidncia, no importa em sofrimentodesnecessrio ou excessivo.

    Matar a vtima atravs de reiterados e sucessivos cortes em seu corpo,produzindo, lentamente, hemorragia e deixando-a sem qualquer socorro at que amorte ocorra uma forma extremamente cruel de homicdio. Revela a absoluta falta de

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    piedade do agente, extrema frieza e insensibilidade, que provocam enorme e desumanosofrimento para a vtima. Bater num idoso ou num enfermo, minando-lhe,paulatinamente, as foras at que sobrevenha a morte, igualmente matar por meiocruel. Manter algum em crcere privado privando-o de gua ou de alimento para que

    ele, com o tempo, venha perder suas foras e, lenta e dolorosamente, morrer outrainduvidosa hiptese de homicdio por meio cruel.

    A crueldade do meio deve ser interpretada semelhana da tortura ou daasfixia, nas quais a vtima morta depois de algum tempo de enorme sofrimento, fsicoou moral.

    Haver homicdio qualificado por ummeio de que possa resultar perigocomum quando a conduta do agente puder causar, alm da morte da vtima, uma

    situao de perigo para a vida ou para a sade de outras pessoas. A verificao deve serfeita com recurso da interpretao analgica, comparando-se o meio utilizadoefetivamente pelo agente com as hipteses de utilizao de fogo ou de explosivo, jcomentadas. Tanto na utilizao do fogo quanto na do explosivo existe a possibilidadeconcreta de que outras pessoas venham sofrer as conseqncias da ao delituosa. A frmula genrica ora comentada permitir ao julgador considerar tambm qualificadoo homicdio utilizado atravs de incndio ou de inundao provocados pelo agente com vistas na morte de determinada pessoa.

    Assim, se o agente, sabendo que seu desafeto encontra-se em determinado local,resolve causar um incndio ou um desabamento do prdio, com o fim de provocar umacidente e sua morte, incidir essa qualificadora.

    certo que se ele souber da presena de outras pessoas, fizer a previso damorte de alguma ou de vrias delas e, pelo menos, mostrar-se indiferente a um desseseventos letais, e uma daquelas pessoas vier a ser atingida e morrer, haver doishomicdios dolosos, em concurso formal imperfeito. Inaceitvel que, tendo feito a

    previso da morte de qualquer dos demais, possa ter agido apenas com culpaconsciente. Haver dolo eventual.

    Desconhecendo o agente a presena, ainda que previsvel, de outras pessoas nasimediaes e, portanto, agindo sem dolo em relao morte ou leso corporal dequalquer delas, a soluo outra. Se no resultar morte ou leso corporal de qualquerdos circunstantes, haver ento concurso formal perfeito entre o crime de homicdioqualificado e o crime de perigo comum. Se resultar morte ou leso corporal de qualquerdeles, haver concurso formal perfeito entre o crime de homicdio qualificado realizado

    e homicdio culposo ou leso corporal culposa.

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    1.2.3.4 Traio, emboscada, dissimulao ou outro recurso que

    dificulta ou impossibilita a defesa do ofendido

    O inciso IV do 2 do art. 121 do Cdigo Penal descreve circunstnciasqualificadoras que dizem respeito s formas ou modos de execuo do homicdio, todaselas insidiosas, traioeiras, ardilosas, dissimuladas, nas quais a vtima v dificultada ouimpossibilitada sua capacidade defensiva. S por isso impe-se a reprimenda maissevera, por isso que h homicdio qualificado.

    Traio o ataque sbito e sorrateiro, que colhe a vtima desavisada, tranqila. a ao inesperada, que estava fora da cogitao da vtima, a qual no tinha qualquerpossibilidade de perceber o gesto homicida. Constitui traio matar a vtima pelascostas, isto , quando ela, desatenta, no pode pressentir o ataque letal. No se deveconfundir a ao pelas costas com o disparo ou golpe efetuadonas costas, que podeocorrer apenas porque, no momento de seu desfecho, a vtima vira as costas para oagente, ainda que para empreender fuga.

    Emboscada o mesmo quetocaia. a espera da vtima que, despreocupada,no est preparada para um ataque criminoso. O agente, escondido, aguarda suapassagem para s ento, com plena segurana, desencadear a ao que a fulminar.

    Tanto quanto na traio, a vtima no est em condies de esboar qualquer gestodefensivo, porque desconhece o intento do agente e, quase sempre, ignora sua prpriapresena nas imediaes.

    Dissimulao o comportamento anterior do agente consistente em disfarar,ocultar ou esconder a inteno de matar. Age de modo a que a vtima no perceba seufim homicida. Procura, por vrias formas, conquistar a confiana da vtima, inspirandonela at mesmo o sentimento de amizade para, quando esta mostrar-se absolutamenteconfiante e despreocupada, s a executar o homicdio. Conheci um homicidaprofissional que utilizava a dissimulao como modo de executar suas vtimas. Delas seaproximava, tornava-se amigo, ntimo at, para, depois de dias de relacionamentoamistoso, convid-las para jantar em sua residncia onde, horas depois, com a vtimatotalmente tranqila, executava-a friamente, tranqilamente, sem qualquerpossibilidade de reao.

    Tambm incidir essa qualificadora quando o agente utilizaroutro recurso quedificulte ou torne impossvel a defesa do ofendido. Outra vez o Cdigo Penal determina

    ao intrprete que realize uma interpretao analgica. Deve analisar o modo como ohomicdio foi praticado e, se concluir que esse modo anlogo traio , emboscada

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    ou dissimulao, dever impor a qualificadora. Em outras palavras, a traio, aemboscada e a dissimulao so recursos que dificultam ou impossibilitam a defesa doofendido. Assim, qualquer outro recurso que, semelhana desses, tornar impossvelou difcil a defesa da vtima, ser uma circunstncia qualificadora do homicdio. o

    caso do homicdio cometido mediantesurpresa , que se assemelha a traio, emboscadae dissimulao. Haver surpresa quando a vtima no tiver razo para suspeitar ouesperar a inteno do agente.

    O homicdio cometido quando a vtima encontrava-se dormindo ou embriagadaajusta-se a essa frmula genrica, porquanto ela, nessas condies, no tinha qualquerpossibilidade de defender-se.

    1.2.3.5 Execuo, ocultao, impunidade ou vantagem de outro

    crime

    Finalmente, no inciso V do 2 do art. 121, encontram-se as circunstncias quequalificam o homicdio por sua conexo teleolgica ou conseqencial com outro crime.O agente mata algum para assegurar a execuo de outro crime. H conexoteleolgica.

    Quando mata para garantir a ocultao, a impunidade, ou para assegurar a

    vantagem obtida com o outro delito, h conexo conseqencial.

    Essas qualificadoras, segundo JOS FREDERICO MARQUES, so espcies demotivo torpe e sua relevncia est no elemento subjetivo, bastando que se apure aconexo em sentido meramente psicolgico. Isto , basta que o sujeito tenha praticadoo homicdio com uma daquelas finalidades para que sua reprovabilidade seja maior. A torpeza evidente em qualquer das hipteses.

    A primeira figura a do que mata com o fim de tornar possvel ou mais fcil a

    realizao de outro crime, no sendo indispensvel que este venha a ser executado.Basta que o agente tenha matado com a finalidade de assegurar a execuo do outrocrime. Esse crime pode, inclusive, ser outro homicdio, j que a lei no restringiu essapossibilidade.

    Se o agente mata algum para assegurar a execuo de um furto, isto , de umasubtrao de coisa alheia mvel, no incidir a qualificadora, mas sim a norma do art.157, 1 e 3 do Cdigo Penal, chamadolatrocnio, soluo, alis, mais gravosa.

    E se o crime-fim for um crime impossvel ou um delito putativo, imaginrio, aqualificadora incidir?

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    A norma fala emexecuo, da que de se perguntar se a qualificadora incidirna hiptese em que o agente tenha praticado o homicdio para assegurar no aexecuo, mas aconsumao de outro crime.

    Vejam-se os exemplos:

    a) Carlos, desejando matar Maria, casada com Joaquim, ingressa no quarto do casal,imaginando que estariam dormindo, quando surpreendido com o marido acordado;mata-o, ento, para, em seguida, disparar vrios tiros de revlver contra Maria que,nada obstante Carlos imagin-la dormindo, j estava morta em virtude de um ataquecardaco ocorrido duas horas antes;

    b) Eduardo, crendo que o incesto crime e desejoso de manter relaes sexuaisconsentidas com sua filha, Cludia, maior de 18 anos, mas sabendo que sua mulher,

    Clia, poderia descobri-los, resolve mat-la, a fim de obter seu intento libidinoso;

    c) Joo, com dolo de matar, dispara arma de fogo contra Manoel, que no morreimediatamente. Pedro socorre Manoel e vai lev-lo ao hospital quando Joo o mata,para assegurar a consumao do homicdio contra Manoel.

    Qual soluo se deve dar para essas trs situaes? Na primeira, o homicdio cometido com a finalidade de cometer umcrime impossvel , porque o objeto absolutamente imprprio. Maria no era mais algum. No havia Maria. Havia o corpo

    de Maria. E o agente cometeu o homicdio contra Joaquim, para assegurar a prtica deum crime cuja consumao era impossvel.

    No segundo exemplo, Eduardo comete o homicdio contra Clia, para assegurara execuo de umno-crime, mas que, em sua mente, constitua um delito. Umcrime putativo por erro de proibio.

    No ltimo exemplo, o agente mata algum para assegurar no a execuo, mas aconsumao de outro crime.

    Se certo que as normas penais incriminadoras, especialmente as queimpem maior censura penal, no podem ser interpretadas extensivamente, noincidir essa qualificadora. O crime impossvel no crime, mas uma tentativainadequada, inidnea, de crime, e conquanto a norma em comento faa menoexpressa a um crime, tornar-se-ia necessrio ampliar seu significado para alcanartambm o crime impossvel. O mesmo em relao ao delito putativo. Dever-se-ia,igualmente, ampliar o significado de execuo para alcanar tambm aconsumao?

    Penso que a melhor soluo no aceitar a interpretao extensiva da normaincriminadora, para no fazer qualquer concesso a esse expediente, ainda que por um

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    motivo de busca da soluo mais justa. Mesmo porque no h necessidade, nas trssituaes, de utiliz-la, uma vez que os trs homicdios sero igualmente qualificados, j que, nas trs situaes, dvidas no podem restar de que a motivao dos agentes, aomatarem as vtimas, , nas trs hipteses, induvidosamente torpe, abjeta, repugnante,

    aplicando-se-lhes, por isso, a qualificadora do inciso I, e no a do inciso V, do 2 , doart. 121.

    Tambm so qualificados os homicdios cometidos para assegurar a ocultaoou a impunidade de outro crime. Ocultao e impunidade se distinguem. DAMSIOexplica:

    Na ocultao, o sujeito visa a impedir a descoberta do crime. Ex.: o incendiriomata a testemunha do crime. Na impunidade, o crime conhecido, enquanto a

    autoria desconhecida. Ex.: o sujeito mata a testemunha de um desastre ferrovirio criminoso. Como vimos, existe diferena entre ocultao eimpunidade. Na ocultao, o outro delito no conhecido; na impunidade, ocrime conhecido, a autoria, entretanto, no conhecida. 13

    Impe-se maior reprovao porque, nas duas situaes, o sujeito busca um fimabjeto, repugnante, desvalorizando uma vida humana por puro egosmo, para livrar-seda aplicao da lei penal.

    A ltima figura dessa qualificadora a prtica do homicdio com a finalidade deassegurar vantagem de outro crime. Essa vantagem pode ser de qualquer natureza,patrimonial ou moral. Assim, nela incide o que mata o parceiro do furto, para ficar coma res furtiva.

    No necessrio que o outro crime tenha sido praticado pelo mesmo sujeito dohomicdio. Ele pode matar algum para assegurar a execuo de um crime a serperpetrado por outro, ou para assegurar a ocultao, impunidade ou vantagem decrime praticado por terceira pessoa.

    O homicdio e o outro crime so dois crimes conexos, e no um crime complexo como a hiptese delatrocnio , da que o agente, na hiptese de ter sido tambm oautor ou partcipe do outro crime, responder por ambos os delitos, em concursomaterial.

    Se o crime conexo com o homicdio, teleolgica ou conseqencialmente, tiversua punibilidade extinta, a qualificadora, ainda assim, prevalecer, consoante dispe a

    13 Op. cit. p. 60-61.

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    norma do art. 108 do Cdigo Penal.

    1.2.3.6 Anteprojeto de Cdigo Penal

    No j mencionado anteprojeto de Cdigo Penal, dois novos incisos estoincludos no 2 do art. 121, que contm novas circunstncias qualificadoras.

    A primeira delas:por preconceito de raa, cor, etnia, sexo ou orientaosexual, condio fsica ou social, religio ou origem diz respeito aos motivos queimpelem o agente, os quais, poderiam dizer os crticos, so todos torpes, sendodesnecessria sua explicitao na norma. No creio que seja assim. Fala-se que o brasileiro no um povo racista, mas a realidade mostra, muitas vezes, o contrrio.

    Quase ningum tem a coragem de assumir, em pblico, uma postura racista, mas nodia-a-dia so ainda muitos os que se comportam com atitudes que levam excluso demuitos indivduos, exatamente por sua raa, cor, etnia, sexo ou orientao sexual,condio fsica ou social, religio e tambm por sua origem.

    A intolerncia de muitos, inclusive de pessoas que se organizam em gruposformados para a prtica de crimes inspirados por esses motivos, vem crescendo e dever do legislador procurar, sempre que necessrio e possvel, ampliar o alcance danorma incriminadora, de modo claro e preciso, em respeito ao princpio da legalidade.

    Sempre que possvel, melhor no deixar para o julgador a tarefa interpretativa,mormente quando se tratar de temas dessa natureza.

    A explicitao dessas novas figuras qualificadas, longe de ser desnecessria, por j estarem, implicitamente, contempladas na categoria de motivo torpe, umaexigncia imposta pela necessidade de conferir melhor e maior proteo s minoriasdentro da sociedade, contra os ataques homicidas de pessoas intolerantes.

    A outra inovao a qualificao do homicdio quando cometidopor grupo de

    extermnio . Nos ltimos tempos, tem sido cada vez mais comum a prtica dehomicdios perpetrados por grupos de pessoas que se organizam exatamente com afinalidade de matar, pelas mais diversas motivaes, seja mediante paga ou por outromotivo torpe. A nova qualificadora de natureza objetiva. O grupo de extermnio umaespcie de quadrilha, portanto deve ter o mnimo de quatro integrantes, e serconstitudo para cometer homicdios.

    1.2.4 Homicdio qualificado-privilegiado

    Doutrina e jurisprudncia divergem quanto possibilidade de um homicdio ser

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    ao mesmo tempo qualificado e privilegiado.

    Uma corrente entende ser impossvel a convivncia de privilgio comqualificadora, porquanto o primeiro uma mera causa de diminuio da pena e que,situado topograficamente, no 1 do art. 121, diz respeito, exclusivamente, aohomicdio simples, descrito nocaput do artigo. Logo, se o homicdio qualificado,ainda que cometido por relevante valor moral, no poder ser aplicada, em hiptesealguma, a diminuio da pena.

    Outra corrente, que admite a possibilidade do concurso de qualificadoraobjetiva e circunstncia privilegiadora, considera, entretanto, que esta preponderante,isto , afasta a incidncia daquela, por fora do que dispe o art. 67 do Cdigo Penal.Para essa corrente, ainda que cometido traio, o homicdio cometido por relevante

    valor social ser to-somente privilegiado, diminuda a pena de seis a vinte anos razode um a dois teros.

    As duas correntes no so aceitveis. A ordem de colocao topogrfica dascircunstncias, privilegiadoras e qualificadoras, no interior do art. 121 no significa queas primeiras destinam-se a regular apenas o preceito incriminador docaput . Ambos ospargrafos dizem respeito ao tipo bsico, fundamental. As qualificadoras noconstituem tipos autnomos, nem circunstncias elementares de um novo tipo dehomicdio. Se o legislador entendeu de, para as primeiras, determinar a reduo dapena, e, quanto s segundas, de cominar pena abstrata autnoma, nem por isso se podeconcluir que teve a lei a vontade de impedir sua harmonia. Esta deve ser buscada com base na razo de ser do art. 121 em sua totalidade, em seus fins. Direito , acima detudo, bom-senso e coerncia.

    A individualizao da pena, garantia constitucional inarredvel, busca oencontro da pena justa, e esta deve ser conhecida com base na considerao de todas ascircunstncias que envolvem o fato. Todas elas: as elementares do tipo, as judiciais, as

    privilegiadoras e as qualificadoras, as agravantes e as atenuantes. Assim, toda e qualquer circunstncia que estiver presente num fato, que nele se

    intrincar, seja ela prpria do agente, seja do crime em si, deve ser considerada pelo julgador. E s no o ser por fora de um mandamento legal expresso, como o caso dapreponderncia das atenuantes de carter pessoal sobre as agravantes. Existe a normanesse sentido, a do art. 67 do Cdigo Penal.

    A segunda corrente, muito embora invoque a mesma norma do art. 67 paraditar que as circunstncias subjetivas devem preponderar sobre as objetivas, esquece-sede que referida norma diz respeito apenas s circunstncias atenuantes e agravantes,

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    no aos casos de aumento de